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SABRINA KÉSIA DE ARAÚJO SOARES

IMBRICAÇÕES ESTÉTICO-POLÍTICAS NAS INTERVENÇÕES DO COLETIVO APARECIDOS POLÍTICOS

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas e Sociedade. Área de Concentração: Políticas Públicas. Orientador: Prof. Pós-Dr. Alexandre Almeida Barbalho

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________

Prof. Pós-Dr. Alexandre Almeida Barbalho

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

______________________________________________

Profª. Dr. Deisimer Gorczevski

Universidade Federal do Ceará (UFC)

____________________________________________________

Profª. Pós-Drª. Kadma Marques Rodrigues

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

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À minha sobrinha, Tamyres, por me ensinar o amor e me fazer afirmar a criança existente em mim. Ao Igor, por me ensinar a inventar moinhos de vento.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todas as pessoas que de algum modo cruzaram meu caminho, vibraram e acreditaram comigo na realização deste trabalho. Ao professor e orientador Alexandre Barbalho, pela calma, paciência e disposição em construir comigo este percurso. À banca avaliadora da qualificação, que se repete na defesa, Professora Kadma Marques e Professora Deisimer Gorczevski, pelo tempo e disponibilidade dispensados à leitura do trabalho e principalmente pelas contribuições que vieram e virão a enriquecer a pesquisa. Agradeço ao Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS), seus professores e funcionários, especialmente a secretária, Cristina Pires, pela atenção e cuidado, sempre pronta a ajudar e fazer com que as coisas aconteçam, mesmo passando do seu horário de almoço. À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP) pelo financiamento da pesquisa através da bolsa concedida. Gratidão ao Alexandre Mourão, Stella Pacheco, Sara Nina e em especial ao Marquinhos, integrantes do Coletivo Aparecidos Políticos, pela acolhida, pelas possibilidades de inventar, criar e intervir e me descobrir nesse percurso, por me ensinar a ver onde só existia ruídos. Agradeço também por entenderem os momentos em que busquei minhas ilhas de silêncio em meio a tanta turbulência em mim. Ao Coletivo de Pesquisa In(ter)venções, lugar onde tudo começou, agradeço pela partilha de tanta coisa bonita, pelos encontros, descobertas, e afetos ao longo de três anos e as amigas feitas naquele período: Fabíola Gomes por me ensinar que desterritorializar é preciso e não dói e a Jéssica Barbosa, com quem sigo aprendendo e inventando. Aos colegas integrantes da Pesquisa Arte | Espaço Comum | IntenCidades, João Miguel, Fernanda Meireles, Rafaela Kalaffa, Alexandre Ruoso, Ceci Shiki, Joana Schroeder, Ana Lilu, pelos encontros, conversas e cervejas tomadas juntos. Ao Grupo de Estudos PPGARTES / ICA UFC pelas contribuições teóricas. Aos amigos incríveis do Coletivo Audiovisual do Serviluz, Pedro Fernandes, a querida Fabíola Gomes e ao Gerardo Santos, por me apresentarem sempre algo novo de um lugar mágico chamado Titanzinho, por me ensinarem que o bom mesmo é fazer as coisas juntos e na rua, e por me proporcionarem a imersão no universo que me fascina, o audiovisual. Agradeço as colegas de mestrado e amigas irmãs, Ana Paula, Deinair, Lidiane e Jaiane, pelo carinho, atenção e cuidado. À Wilma Farias, por me mostrar que é preciso encontrar um tempo em mim. À Carla Galvão, pelas conversas inquietantes e eloqüentes e pelos abraços que emanam sempre boas energias.

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Toda minha gratidão à Deisimer, pelas constantes perturbações, por me ensinar a argumentar, mas principalmente por entender meu tempo, sua amizade nesse processo fez com que eu me inventasse. Aos amigos irmãos que a vida me deu: Evilene Abreu, Beatriz Lopes, Nadson Fernandes, Mariana Cordeiro, Dayane Falcão, Bruno Fernandes, todos sempre presentes mesmo que distantes fisicamente. Ao amigo querido Renan Menezes (in memorium). À minha tia Lúcia, ao meu tio Frivaldo e a minha avó Mariinha, pelo suporte, carinho e acolhida de sempre. À Rosangela Bezerra, por abrir suas portas recebendo-me como uma filha. Ao meu pai, Valdir, pelo amor, cumplicidade e compreensão dos momentos de distância. A minha mãe, Graça, por me ajudar a crescer todos os dias e a ver o mundo de possibilidades ao meu redor. Aos meus irmãos Walter e Sammires, por acreditarem e vibrarem, mesmo que de modo contido, silencioso. Ao Igor e a Tamyres, a quem dedico esse estudo.

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Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar.

Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas

Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença.

Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos

como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato

de canto. Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.

(O apanhador de desperdícios – Manoel de Barros)

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RESUMO

O presente trabalho apresenta breves apontamentos acerca dos processos de criação

do Coletivo Aparecidos Políticos, focando em uma das primeiras intervenções realizadas pelo

Coletivo logo no início de sua constituição, a intervenção “o que resta da ditadura” e dois

processos de intervenção realizados com o Coletivo: o primeiro produzindo imagens nos

espaços públicos da cidade, a partir de fotografias de familiares de mortos e desaparecidos; e

o segundo momento a partir da performance Operação Carcará, realizada dentro do Salão de

Abril. Nesse sentido, o trabalho busca construir e perceber as potencialidades presentes nas

intervenções propostas pelo Coletivo, operando a inter-relação entre arte e política e que

evoca a dimensão de resistência nessas intervenções que produzem nos espaços a construção

de uma memória plural. Como aporte metodológico, utilizo a pesquisa-intervenção lançando

mão dos procedimentos do cartógrafo no sentido de perceber como as intervenções se

constituem potencialmente capazes de interferir no regime visível, produzindo a construção

de mundos. Como corpus teórico procurou-se conferir espaço aos estudos da arte e da política

como também da filosofia e sociologia, cujas proposições estivessem alinhadas e

estabelecessem conexões com o que vem sendo criado e realizado pelo Coletivo em meio ao

espaço da cidade de Fortaleza. A relevância do trabalho consiste em produzir um estudo que

traga análises sobre o trabalho do Coletivo a partir da perspectiva da imersão nas intensidades

vividas. Para além, produzindo análises sobre os trabalhos do Coletivo que se tornou

referência dentro do campo da arte contemporânea em torno da memória, verdade e justiça.

Palavras-chave: arte política; espaço público; resistência; memória.

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ABSTRACT

The current work present brief notes about the process of Coletivo Aparecidos Políticos

creation, focusing on one of the first interventions makes by the collective at the beginning of

your constitution, the intervention what last from dictatorship and two process of intervention

making with the collective: the first take picture an public space the city, stating with relative

picture of dead and missing and the second moment with the Operação Carcará performance a

held inside of the Salão de Abril At the point, the work hopes the build and realize the present

potential in the intervention proposed by the collective. Operating the inter relationships

among arts and politicos and that among art and policy that evokes dimensions of resistance.

That produce in those places the construction of a plural memory. As methodological

contribution. I use the intervention-research taking of the cartographer procedures in an effort

to see how the interventions potentially constituted are capable to affect the visible regime,

producing the construction of the word. As theoretical corpus it tried to give space to art

studies and policy. As also to philosophy and Sociology, whose proposal when aligned and

establish connections with what has been created and direct by the collective amid the space

Fortaleza.

Key Word: politic art; public space; resistance; memory.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CAMP - Centro de Assessoria Multiprofissional

FERES - Fórum de Educação da restinga e Extremo Sul

GAC - Grupo de Arte Callejero

GRIM - Grupo de Pesquisa da Relação Infância de Mídia

ICA - Instituto de Cultura e Arte

IFCE - Instituto Federal do Ceará

MPL - Movimento Passe Livre

ONG – Organização não governamental

RENAP – Rede Nacional dos Advogados Populares

SAJUS - Serviço de Assessoria Jurídica Universitária Popular

UECE – Universidade Estadual do Ceará

UFC – Universidade Federal do Ceará

23º BC – 23º Batalhão de Caçadores do Exército

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LISTA DE IMAGENS

Figura – 1: Criações no #OcupeAquário 44

Figura – 2: Criação/invenção da resistência no #OcupeAquário 44

Figura – 3: Cartaz lambe-lambe Jana Moroni 56

Figura – 4: Cartaz lambe-lambe Maria Lucia Petit 56

Figura – 5: Rebatismo Centro de Cidadania Edson Luis 58

Figura – 6: Fachada Centro de Cidadania Edson luis 58

Figura – 7: Rebatismo Praça do Preso Político Desaparecido 59

Figura – 8: Mapa cita Praça do Preso Político Desaparecido 60

Figura – 9: Feira da Memória – Praça do Preso Político Desaparecido 61

Figura – 10: Intervenção Urbana Pelo Ar – SPA das Artes 61

Figura – 11: Exposição/Ocupação Galeria Antônio Bandeira 63

Figura – 12: Coletivo Aparecidos Políticos em Marabá 64

Figura – 13: Abertura da Exposição Prestes no Ceará 65

Figura – 14: Painel Aparecidos Políticos na Exposição Arquivo das Sombras 66

Figura – 15: Intervenção UECE Itaperi – Jornada para Não Esquecer Jamais Jamais 67

Figura – 16: Intercâmbio Argentina 68

Figura – 17: Curso Ativismo criativo 69

Figura – 18: Exposição Transições Latinas – Inauguração do Ateliê 70

Figura – 19: Intervenção 01 de abril – 2014 Erro! Indic

Figura – 21: Performance homem encapuzado -“O que resta da ditadura” 80

(O apanhador de desperdícios – Manoel de Barros) 7

(O apanhador de desperdícios – Manoel de Barros) 7

(O apanhador de desperdícios – Manoel de Barros) 7

(O apanhador de desperdícios – Manoel de Barros) 7

(O apanhador de desperdícios – Manoel de Barros) 7

(O apanhador de desperdícios – Manoel de Barros) 7

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(O apanhador de desperdícios – Manoel de Barros) 7

Figura –29: Av. Aguanambi – transeuntes 113

Figura – 30: Paraquedas montados 128

Figura – 31: Paraquedas montados prontos para lançamento 129

Figura – 32: Abertura Salão de Abril 132

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SUMÁRIO

1. LINHAS E PERCURSOS .................................................................................................. 14

1.1 A escolha do método de pesquisa: pesquisa-intervenção e a “atitude do cartógrafo” como estratégia de pesquisa ................................................................................................... 26

1.1.1 Pesquisa-Intervenção no Brasil ....................................................................................... 28

1.2 Apostas e estratégias para pesquisar com o Coletivo Aparecidos Políticos ............... 29

2. CRIAÇÃO E RESISTÊNCIAS: BREVES APONTAMENTOS SOBRE INTENSIDADES CONTEMPORÂNEAS ........................................................................... 35

2.1 Breve olhar sobre a ditadura no Brasil .......................................................................... 46

2.2 O Coletivo Aparecidos políticos – percurso e interferências nos espaços da cidade . 51

2.2.1 Intervenção como proposta ............................................................................................. 53

2.2.2 Percurso e intervenções do Coletivo Aparecidos Políticos ............................................ 54

3. IMAGENS, PERFORMANCES E TEXTOS COMO INSCRIÇÃO DA AUSÊNCIA – ANÁLISES DE “O QUE RESTA DA DITADURA” ......................................................... 73

3.1 “O que resta da ditadura” e seus afetos intensivos ....................................................... 76

3.2 O lugar da fotografia na intervenção ............................................................................. 83

3.3 Processos de memória no contemporâneo ..................................................................... 86

3.3.1 Memórias no espaço público .......................................................................................... 90

3.4 Atravessamentos da arte política ................................................................................... 93

4. NARRATIVA HÍBRIDA: IMAGENS E PALAVRAS – A NÃO COMEMORAÇÃO DO GOLPE MILITAR A PARTIR DAS INTERVENÇÕES DO COLETIVO APARECIDOS POLÍTICOS. ............................................................................................... 98

4.1 Agenciamentos e produções .......................................................................................... 101

4.2 Encontros urbanos efêmeros ........................................................................................ 109

4.3 Interferências urbanas: do rosto ao corpo .................................................................. 116

4.4 Segmentos molares e moleculares: atravessamentos imanentes ............................... 120

5. QUANDO A INTERVENÇÃO URBANA EVIDENCIA O PODER DO ESTADO FRENTE AÇÕES CONTRA HEGEMÔNICAS: RELATOS DA INTERVENÇÃO OPERAÇÃO CARCARÁ ................................................................................................... 124

5.1 O contar de uma experiência estética política – Operação Carcará ......................... 124

5.1.1 O não como potência .................................................................................................... 135

5.2 Democracia: arte traçando outras formas de uma construção plural ...................... 137

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 141

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 144

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ANEXOS ............................................................................................................................... 152

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1. LINHAS E PERCURSOS

Poderia começar a escrita do presente trabalho por diversas entradas. Pela fantasia

das cidades em Italo Calvino; a partir das imagens inventadas ao longo do caminho com o que

era possível (câmeras, celular); a política no seu sentido mais filosófico e que sem dúvida me

encanta; a resistência em desobediência civil de David Thoreau, o começo e uma inspiração

antiga que me impulsionou a pensar muitas questões, dentre elas a vida enquanto comum;

pela música Mistério do Planeta dos Novos Baianos que fala disso que é “jogar o corpo no

mundo e acreditar na lei natural dos encontros”; ou mesmo pelos incontáveis documentários

assistidos, imagens que tomam a vida cotidiana como elemento sublime, todos esses pontos

intimamente ligados à minha trajetória e constituição social.

Mas penso que iniciar o presente trabalho apresentando meu percurso com uma

pesquisa iniciada em 2011 e as implicações com o método escolhido para seguir pesquisando

e que dão o tom do presente estudo, é apresentar consequentemente meu percurso como

pesquisadora que vem sendo desenhado e intensificado nos últimos anos, uma experiência

ancorada no fazer-saber, caminho que, como indica Passos e Barros (2009) o saber emerge a

partir da experiência do fazer.

Penso ainda que apresentar esse percurso é a melhor escolha para a compreensão das

redes de forças as quais eu, enquanto pesquisadora que experimenta e vive o método como

forma de estar no mundo, chego ao encontro do objeto da presente pesquisa, do Coletivo

Aparecidos Políticos, um caminho atravessado por encontros e articulado em redes de

singularidades.

Em 2011, começa a se desenhar um caminho de aproximações, agenciamentos,

encontros corpóreos e incorpóreos, de afetos, desejos e ao mesmo tempo a imersão no

processo de me conhecer e de afirmar minhas escolhas e tomadas políticas diante das questões

que tomam a vida como cerne, onde as relações e experiências coletivas/colaborativas é o que

de fato interessa e instiga o viver/pesquisar.

Após conversas com amigos tomei conhecimento de uma professora/pesquisadora

em comunicação, professora Deisimer Gorczevski1, recém chegada do Rio Grande do Sul e

que montava um grupo de pesquisa intitulada Pesquisa In(ter)venções Audio-visuais das

1 Pela proposta da pesquisa e confiança a mim depositada, trago como proposta construir o texto utilizando o verdadeiro nome das pessoas que atravessaram os movimentos da presente pesquisa. Desse modo, abro mão da utilização de pseudônimos.

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Juventudes em Porto Alegre e Fortaleza2, coordenada em Fortaleza pela professora Deisimer,

e em Porto Alegre pela professora Nair Silveira. A Pesquisa tinha como objetivo

[...] acompanhar processos de intervenções audio-visuais das juventudes em territórios de criação, produção e circulação, na perspectiva de cartografar como os jovens (e seus coletivos) experimentam o poder de intervir e inventar – seja através de ONG’s, alianças com elas ou em coletivos autônomos – bem como analisar a incidência de tais intervenções nas políticas públicas na configuração de práticas micropolíticas, em Fortaleza e Porto Alegre3.

Na abertura do processo de seleção de bolsistas para a pesquisa, diversas pessoas

interessaram-se pela proposta, mesmo aquelas que não possuíam vínculo institucional com a

Universidade. Entre diversos inscritos, a maior parte alunos da Universidade Federal do Ceará

e mais especificamente do Instituto de Cultura e Arte (ICA) dos mais diversos cursos, foi

selecionada uma estudante para permanecer como bolsista remunerada, a estudante do curso

de graduação em cinema e audiovisual Maria Fabíola Gomes. Os demais participantes do

processo de seleção foram convidados a permanecerem como pesquisadores voluntários.

Compunham a pesquisa estudantes de graduação, mestrandos e estudantes já

formados que nutriam o desejo de seguir pesquisando, como foi o meu caso e de uma amiga,

Maria Evilene, com quem já partilhava desejos e fazeres. Encontrei na proposta da Pesquisa

muitos pontos em comum com o trabalho que desenvolvi para a conclusão de curso na

graduação em Comunicação Social, desenvolvido em 2010. A partir da TV Janela, ONG que

no período trabalhava com produção audiovisual feita por jovens no bairro Planalto Ayrton

Senna, periferia de Fortaleza, desenvolvi meu trabalho a partir da comunicação alternativa e

popular.

Logo no início da pesquisa, era possível apontar diferenças significantes em relação a

como outros grupos de pesquisa da universidade eram compostos e funcionavam.

Primeiramente, pela proposta de reunir alunos, independentes do curso, que tivessem interesse

em pesquisar intervenções que trabalhavam a comunicação influenciada por outras áreas,

principalmente intervenções sonoras, visuais e audiovisuais. Segundo, pela abertura à pessoas

que desejavam seguir pesquisando mesmo não estando regularmente matriculado em um

2 A pesquisa foi realizada no Instituto de Cultura e Artes, em parceria com o Grupo de Pesquisa da Relação Infância de Mídia (GRIM), vinculado à Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, e com o grupo de Pesquisa Educação e Micropolíticas Juvenis, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, além do Centro de Assessoria Multiprofissional (CAMP) e do Fórum de Educação (FERES), ambos em Porto Alegre. Mais detalhes podem ser acessados no blog da pesquisa. Disponível em: http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/ 3 Texto retirado da Memória produzida das atividades do Coletivo no primeiro ano. Disponível em: http://issuu.com/yishay/docs/memoria_pesquisa_intervencoes2011.2?e=6873425/1518056 Aceso em 20 de outubro de 2014.

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curso da universidade, corroborando o institucionalismo dos grupos compostos

exclusivamente por pesquisadores da instituição.

Ao contrário do institucionalismo e acreditando na potência de produzir com, a

pesquisa buscou desfazer essas barreiras que por vezes acabam distanciando a universidade da

comunidade, abrindo-se assim aos encontros e trocas, interferências diversas que passaram a

atravessar o grupo. Uma pesquisa que tomou por base, o rizoma, com múltiplas entradas, sem

meio nem fim, mas que transborda e cresce sempre por entre o meio, que ao longo do

percurso foi capaz de constituir multiplicidades, esse agregado de dimensões que nos tomam

ao longo do processo.

Tendo como abordagem teórico-metodológica a pesquisa-intervenção e apostando na

cartografia como uma das estratégias capazes de dar conta do acompanhamento de processos,

a pesquisa iniciou tomando como dispositivo os encontros semanais entre os participantes da

pesquisa. Aqui o dispositivo é tomado como “práticas e funcionamentos que produzam

efeitos”, segundo Kastrup e Barros (2009, p.81). O dispositivo corresponde a um conjunto de

práticas que engloba discursos, organizações, enunciados e como afirma Deleuze (1990, p.55)

os dispositivos “são como as máquinas de fazer ver e falar, tal como são em Foucault. A

visibilidade não se refere à luz em geral que ilumina objetos pré-existentes”. Portanto o

dispositivo auxilia o pesquisador a construir as linhas que permeiam um território.

Eram encontros que propiciavam a partilha de experiências nos mais diversos

campos. Ao mesmo tempo, nos preparávamos para reuniões tomando o debate de textos que

nos conduziam ao acompanhamento com os territórios existenciais. Além de nos auxiliar a

operar o método, as contribuições dos textos produzia em nós, o desmanche da metodologia

como algo rígido e fixo para nos apresentar as linhas de fuga propostas pelo rizoma. Logo

uma pesquisa rizomática é aberta, de múltiplas entradas apresentando linhas de intensidades

que propiciem que as ligações, ao mesmo tempo em que são feitas, descobertas (DELEUZE

& GUATTARI, 2011a, p.30).

Como a proposta da pesquisa era de que as questões e o próprio território de pesquisa

fossem definidos a partir do caminhar, não tínhamos um território de pesquisa pré-

estabelecido. Fomos conhecendo os territórios dos quais os integrantes da pesquisa faziam

parte e mapeando outros existentes na cidade que também nos interessavam.

Pela expressividade do ritmo, pelo acolhimento e efervescência, escolhemos seguir

acompanhando intervenções propostas por jovens participantes da Associação de Moradores

do Titanzinho, localizado no bairro Serviluz em Fortaleza. É importante dizer que mesmo

tomando o Titanzinho como território de pesquisa, a ideia do coletivo era de que cada

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integrante pudesse desenvolver seus projetos em paralelo, com a pesquisa em andamento,

encontrando no percurso as aproximações e as diferenças.

Ao passo que habitávamos, na medida do possível, o Titanzinho, íamos sendo

apresentados e nos aproximando de outras experiências e fazeres que tinham como proposta:

comunicação alternativa, cinema/audiovisual, artes, teatro e intervenções das mais singulares

que logo passaram a compor a pesquisa como convidados. É importante também citar que

redes de conversações iam aos poucos sendo construídas, a partir das Rodas de Conversa,

outro dispositivo adotado pela pesquisa.

Em uma das reuniões do Coletivo de Pesquisa In(ter)venções, mais especificamente

em outubro de 2011, conversávamos sobre experiências de coletivos e intervenções na cidade.

Fernanda Meireles, integrante da Pesquisa In(ter)venções e naquele período mestranda no

Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC, nos contou do Coletivo Aparecidos

Políticos, grupo o qual um amigo “zineiro”4 participava.

Formado inicialmente por três estudantes do curso em artes visuais do Instituto

Federal do Ceará (IFCE)5, nesse período composto por Viviane Rocha, Ton Almeida e

Alexandre Mourão. A proposta do coletivo era evidenciar, de maneira sensível, os modos de

atualização da repressão do Estado como vestígios do período ditatorial. No entanto, a

proposta do grupo centrava-se em tornar visíveis os muitos nomes e rostos de mortos e

desaparecidos pela ditadura militar no Brasil, por meio de processos artísticos.

Fernanda nos contou que naquela semana o Coletivo6 estava no acampamento do II

Festival Latino Americano da Juventude em Fortaleza7, debatendo rebatismo social,

apropriação urbana, memória, verdade e justiça e a democratização dos meios de

comunicação. Além disso, realizavam em tempo real a transmissão das atividades que

aconteciam no acampamento por meio da Zuada Rádio Livre, frequência 103,5 FM.

Nos relatos de Fernanda, ao final da programação da rádio, o Coletivo realizou a

leitura dos nomes de 140 mortos e desaparecidos políticos pela ditadura militar. Naquele dia,

tudo o que Fernanda conseguiu contar, ainda que pouco, nos tomou e esse foi o primeiro

relato que tivemos do Coletivo que trazia como proposta trabalhar intervenções que

transitavam entre arte e política, de intervir na cidade e em seus fluxos, o que já era o

suficiente para nos afetar e produzir o desejo de que buscássemos mais informações.

4 Assim Fernanda chama todos os amigos que fazem fanzines. 5 Essa era a composição do Coletivo Aparecidos Políticos em meados de 2011. Ao longo dos anos de atuação, o Coletivo foi passando por outras formações, as quais serão apresentadas ao longo do trabalho. 6 Sempre que me referir a Coletivo em maiúsculo, estarei me referindo ao Coletivo Aparecidos Políticos. 7 O acampamento foi realizado entre os dias 8 e 11 de outubro de 2011 na praia da Cofeco, em Fortaleza.

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Ainda que breve, a narrativa de Fernanda foi o bastante para contagiar todos os

presentes no encontro. Queríamos saber quem eram, o que faziam e qual a proposta do

Coletivo com essas intervenções. Queríamos chegar perto, ter o contato, dispor nossos desejos

ao encontro. Fui afetada, e como nos diz Deleuze (1978, pag.9), um afeto alegre, capaz de

produzir um agir. E é logo nas variações de afetos vividos, que algo convocava-me ao

movimento de pesquisar (LAZZAROTTO E CARVALHO, 2012, pag.26). Ao mesmo tempo

em que me fascinei, os questionamentos tomavam-me, invadidos também de sensações.

Perguntava-me quais as inquietações que moviam essas pessoas que não viveram o período

ditatorial, a mexerem nessa ferida recente e ao mesmo tempo tão delicada do país? Quais

eram os desejos ali em jogo? O que cada um trazia? Qual a dimensão dessa resistência? O que

conduzia os participantes a pensar a arte como potência de intervenção?

Quando me pegava pensando no Coletivo e no relato feito por Fernanda, podia

imaginar de maneira muito nítida, a leitura dos 140 nomes dos desaparecidos e mortos pela

ditadura. Podia ouvir como se estivesse com o ouvido colado no rádio o nome e sobrenome de

cada um. Esse imaginar é provocador de um composto de sensações potentes e ainda capaz de

encarnar o acontecimento. Imaginar “se coloca como invenção de si e do mundo: tornar

visíveis forças que não estão visíveis” (DIAS, 2012, p.129).

Ao mesmo tempo me pegava tentando puxar pela memória, lembranças das aulas de

história que abordassem o estado de exceção vivido entre 1964-1985. Pouco me vinha, não

conseguia lembrar de nenhum professor tomando esse momento como um dos piores da

história do país. Meus pais, ao contrário de muitos outros e paradoxalmente igual a muitos,

viveram aqueles anos de agitação na mais completa apatia. Esses eram pontos que naquele

momento me inquietaram profundamente, o conhecer de maneira muito superficial aquele

momento que trouxe resquícios tão profundos para todos os segmentos da sociedade, que

torturou e calou tantas pessoas de modo brutal.

O próprio nome do Coletivo nos dava pistas de que algo daquele período não havia

desaparecido, a memória, a resistência como invenção e o desejo de verdade e justiça,

aguçados por novos fazeres políticos continuavam vivos. Os demais participantes e também a

professora Deisimer, coordenadora da Pesquisa In(ter)venções, sentiram-se instigados, afinal,

havia aproximações com o objetivo da pesquisa que vinha cartografando em Fortaleza e Porto

Alegre, intervenções de jovens que se organizavam em coletivos, ou mesmo sozinhos, mas

que tivessem como proposta intervir na cidade e em seus fluxos a partir de fazeres

comunicacionais e artísticos.

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Combinamos com Fernanda de que ela nos colocaria então em contato. Comecei a

pesquisar na internet e encontrei o site do Coletivo8 que dava mais informações: quem eram

seus integrantes, um pouco das intervenções que já haviam sido realizadas, além das

inspirações teóricas e mesmo de intervenções na rua que os norteavam. Ficamos

compartilhando informações e conversando sobre essa experiência de um fazer que trazia arte

e política, naquele primeiro momento entendido como algo separado. Esse primeiro conceito

foi o que nos moveu a pesquisar, a querer chegar mais perto e a pensar que essas novas

organizações coletivas carregam uma carga política muito forte. É também, um dos conceitos

centrais no presente trabalho. Não a política tradicional, mas o conceito de política em um

campo alargado, visto como a irrupção de algo que abala as estruturas do consenso.

Em fevereiro de 2012, por meio de um edital da Secultfor, o Coletivo realizou, na

Galeria Antônio Bandeira9 a Exposição/Ocupação Rádio Arte: Memórias e Resistência. A

proposta primeiramente era refletir sobre os resquícios da ditadura militar e segundo, a

ausência de democracia nos meios de comunicação, que deriva da incompleta justiça de

transição no país. Assim a proposta era de que artistas, coletivos e movimentos sociais se

apropriassem da rádio Zuada e criassem suas programações, feita a cada dia com um grupo

diferente.

Por intermédio de Fernanda e também com contatos por email realizados pela

Pesquisa In(ter)venções, fomos convidados a participar um dia da programação juntamente

com Fernanda que iria falar sobre Fanzine e a cidade. Foi nosso primeiro contato direto.

Conversamos sobre a experiência do coletivo de pesquisa no Titanzinho, sobre os desejos e

também de convergências, e de como os fazeres em arte também nos interessava. Participei

do momento acompanhada dos demais integrantes da Pesquisa: Fernanda, professora

Deisimer, Fabíola, bolsista da pesquisa. Também tínhamos como convidada Janaina Bento,

que fez parte de projetos da ONG Aldeia e que naquele momento vinha participado de

atividades da Pesquisa, inclusive em Porto Alegre.

Após o término da nossa participação, resolvemos ir caminhando até o centro, pois

tínhamos tempo para conversar mais um pouco, sobre os nossos fazeres. Seguimos

caminhando e logo fomos alcançadas por Marquinhos10, integrante do Coletivo. Marquinhos

nos falou sobre os filhos e do quanto eles gostavam do centro da cidade. Achamos

8 Para conhecer o site do Coletivo Aparecidos Políticos acessar: http://www.aparecidospoliticos.com.br/ 9 A galeria é um equipamento da Prefeitura Municipal de Fortaleza que abriga exposições de artes visuais. http://www.galeriaantoniobandeira.ce.gov.br/a-galeria/a-galeira 10 Seu nome é na verdade Marcus Venícius, mas todos o conhecem e o mesmo prefere ser chamado de Marquinhos.

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interessante a companhia dele, mesmo que breve. Percebemos que essa aproximação, naquele

momento, era tão natural que parecíamos próximos a ele de outros tempos. Talvez seja um

pouco do que nos fala Deleuze (2006, pág.7) de que é tudo uma questão de estar sensível aos

signos emitidos pelo outro, a necessidade da atenção mesmo que nos momentos de deriva.

Daquele dia em diante estreitamos os laços. Passamos a nos interessar ainda mais

pelas ações do Coletivo e a escrever, especialmente eu e Deisimer, sobre as inquietações que

essas intervenções nos provocavam. Em paralelo, vimos que em Porto Alegre, o Levante

Popular da Juventude11 vinha produzindo intervenções abordando a ditadura também pelo

viés artístico, mais precisamente por meio do teatro, produzindo encenações de torturas em

frente as casas de torturadores, ações conhecidas como escrachos12. Encontramos nos dois

territórios de pesquisa, Fortaleza e Porto Alegre, essa nova aproximação. Enquanto o Levante

propunha ações mais diretas e incisivas, os Aparecidos Políticos trabalhavam com a ordem do

sensível, no entanto sem perder a força e o caráter transgressivo da arte, recorrendo a

elementos da arte urbana.

A fim de conhecer mais sobre as intervenções do Coletivo Aparecidos Políticos no

espaço público de Fortaleza, em especial, resolvemos convidá-los para a VI Roda de

Conversa da Pesquisa In(ter)venções13, outro dispositivo adotado pela pesquisa com o intuito

de criar aproximações com outros coletivos da cidade. As intervenções apresentadas muito

tinham a nos falar desses fazeres artísticos e comunicacionais pela cidade, tomando a política

como cerne de produção artística.

11 Com atuação em dezessete Estados brasileiros, o Levante Popular da Juventude é um movimento que surge em 2005, no Rio Grande do Sul. Jovens que se apresentam como militantes organizados com o objetivo de lutar pela transformação social propondo um “Projeto Popular para o Brasil” com o desejo de renovação das práticas políticas no país. Um movimento que se propõem descentralizado na perspectiva de ampliar as ações e experienciar outras formas de organização juvenis atuando em diferentes cidades e envolvendo múltiplos setores e movimentos sociais. Nos centros urbanos, participam jovens do meio estudantil e universitário e nos setores camponeses são os jovens da Via Campesina, bem como os que buscam alternativas na construção de seus movimentos e a relação com um projeto popular. Dentre as mobilizações e agitações realizadas pelo Levante, enfatizamos os “Escrachos” , ato político que acontece nas ruas, geralmente em frente às residências ou locais de trabalho dos envolvidos em praticas de crimes durante a ditadura militar. Nas manifestações os jovens encenam atos de tortura que marcam acontecimentos ocorridos durante o período da ditadura no Brasil. O principal objetivo dos Escrachos é denunciar os crimes praticados por esses agentes e defender a instalação da Comissão da Verdade nas mais diversas instituições, no sentido de afirma o direito à memória, a verdade e a justiça. 12 Também conhecido como escraches, a ideia é de produzir um constrangimento ou uma denúncia em frente a casas ou mesmo locais de trabalhos, de pessoas que tiveram relação ou mesmo praticaram crimes de tortura e morte durante o regime militar. A ação que já é feita na Argentina, toma o Brasil em 2012 por meio de ações do Levante Popular da Juventude. (Texto retirado do Blog da Pesquisa In(ter)venções. Disponível em: http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/p/territorios-levante-popular-da-juventude.html) 13 Para visualizar imagens e o convite-apresentação da Roda de Conversa acessar: http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/p/roda-de-conversa-fortaleza-com.html

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Durante a Roda de Conversa, percebíamos que o Coletivo recorria aos “dizeres” do

Filósofo Jacques Rancière, quando o autor afirma que “arte é política”. Para o Coletivo as

intervenções produzidas eram intervenções artístico-políticas e afirmavam isso baseado nas

palavras de Rancière. Foi o bastante para que me sentisse ainda mais curiosa, definindo desde

então a primeira categoria teórica para seguir pesquisando: arte política. Essa era a pista para

seguir, uma vez que continuo achando que precisamos de uma dose de tomada política, a

política enquanto partilha e desentendimento, para sairmos desse estágio de letargia que por

vezes parecemos imersos.

No mesmo dia da Roda de Conversa, nas paredes do prédio de comunicação da UFC,

realizamos a projeção de vídeos produzidos pelo Coletivo. Era a primeira vez que algo era

projetado nas imensas paredes brancas do prédio. Esse foi o segundo despertar, já que vídeo e

fotografia sempre foram duas linguagens das quais nutri o desejo de aproximação e também

de fazer. O Coletivo de Pesquisa foi o impulsionador desses desejos e comecei a experimentar

de forma mais intensa as duas linguagens.

Comecei a participar cada vez mais das atividades do Coletivo, queria acompanhar

de perto e decidi que aquela seria a pesquisa que desejava desenvolver, já que nutria em mim

a vontade de construir modos de ser e estar no mundo ligados à cultura, à arte e à

comunicação, conectados com o fazer político. Algo que fosse potente no sentido de produzir

desterritorializações. Pesquisar para mim, sempre teve e sempre terá um sentido atravessa

uma escolha de quais modos de existir.

A partir da Roda de Conversa chegamos ainda mais próximos dos fazeres do

Coletivo. Começamos a estabelecer uma relação de afinidade entre coletivos, pois comecei a

participar de forma mais intensa do que conseguia acompanhar. Nas atividades do Coletivo,

tomei a câmera também enquanto dispositivo de agenciamento e passei a registrar os

momentos em fotografia e vídeos.

Naquele momento já havíamos estabelecido contatos por meio das redes sociais.

Passei a receber mensagens de Alexandre, integrante do Coletivo, pedindo as fotos do dia

anterior para serem postadas na página que o Coletivo mantém no Facebook. Logo fui

incluída na lista de emails por onde comecei a acompanhar e as vezes disponibilizando-me

para fazer algo nos momentos em que eles se viam mais atarefados. Nesse período o Coletivo

tinha outra composição, sendo os integrantes Marquinhos, Stella e Alexandre. Além do email,

conversávamos também via troca de mensagens pela rede social.

Depois de um período, Marquinhos e Stela também começaram a participar das

atividades da Pesquisa In(ter)venções no Titanzinho, território da pesquisa. Começamos a nos

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implicar e a nos conhecer mais. Conhecer o que tínhamos de proximidade e o que entre nós

eram diferenças. Marquinhos, a partir da aproximação com a Pesquisa, passou a contribuir em

alguns momentos no Titanzinho facilitando oficinas de estêncil.

Ingresso no mestrado com o desejo de seguir pesquisando com o Coletivo

Aparecidos Políticos, e percebendo que esse momento fez com que eu pudesse estar ainda

mais presentes nas atividades e intensidades do Coletivo. Não eram mais participações

pontuais, mas um “estar com”.

Comecei a me aproximar ainda mais de Marquinhos, pois como moramos em bairros

próximos, sempre voltávamos juntos após as atividades que realizávamos pelas imediações do

bairro Benfica. Conversávamos sobre a vida, as desilusões, dificuldades, desejos e

principalmente sobre as ações do Coletivo Aparecidos Políticos. Marquinhos é desde o início

alguém importante, de maneira a provocar sentidos e sensações, impulsionando-me ao fazer

artístico e afirmando até mais do que eu, minhas invenções a partir da fotografia.

No dia 01 de abril de 2013, em atividade de rememoração ao golpe militar, o

Coletivo realizou uma intervenção no Mausoléu Castelo Branco14, colocando cerca de 150

barcos de papel com a imagem de mortos e desaparecidos políticos em uma das piscinas que

ornamentam o espaço. Dentro do barco uma vela possibilita ver o rosto impresso no papel.

Na ocasião, os integrantes do Coletivo convidaram pessoas próximas que

acompanham o trabalho. Recebi o convite de Alexandre. Participando da ação e ao mesmo

tempo com a câmera acoplada ao meu corpo, criava imagens daquele momento em que cada

um dos presentes, com o barco em mãos, lia o nome do seu desaparecido e todos os outros

respondiam em voz alta: “presente”, colocando em seguida o barco na piscina. O grito de

“presente”, rompia com a construção de que falávamos de um desaparecido, para evocar a sua

presença, mesmo que simbólica. No decorrer da ação, parentes e amigos de desaparecidos

falavam daquele momento, da memória das pessoas que morreram lutando por um ideal

democrático. Um momento único e forte, que pela potência derivada, conseguia evocar algo

daquele período e dos seus “homenageados”.

Com as imagens capturadas, fiz uma rápida edição para apresentação na IX Roda de

Conversa em Porto Alegre – Memórias da Ditadura e Políticas de Resistência em Tempos de

Democracia, que teve como objetivo discutir políticas de resistência de coletivos de jovens

que problematizam práticas da ditadura a partir de intervenções urbanas. A Roda de Conversa,

articulada pela professora Deisimer e pela professora Nair, reuniu um bom número de

14 Mais detalhes da intervenção na seção 2.2.2 que apresenta o percurso do Coletivo Aparecidos Políticos.

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estudantes e pesquisadores interessados na temática. Na ocasião tivemos a apresentação dos

envolvidos na pesquisa e montagem do "Não calo, Grito: Memória Visual da Ditadura Civil-

Militar no Rio Grande do Sul", Carla Simone Rodeghero e Dante Guimaraens Guazzelli, livro

produzido em parceria com o CAMP (Centro de Assessoria Multiprofissional). E ainda com

a apresentação do Projeto “Ausências Brasil” com fotografias de Gustavo Germano,

realização da Ong Alice - Agência Livre para Informação Cidadania e Educação, mostrando

de modo muito particular e ao mesmo tempo muito forte imagens dos arquivos familiares de

mortos e desaparecidos.

O encontro que durou toda uma tarde e uma parte da noite, rendeu uma incansável

conversa que apresentou diferentes modos de abordar a memória, maneiras de lidar com

contextos históricos, políticos e sociais do país de modos sensíveis. Realizar esse intercâmbio

naquele momento, foi muito significativo tanto para o amadurecimento da pesquisa, quanto

para mostrar que as pistas que vinha seguindo eram consistentes.15

Após a Roda de Conversa em Porto Alegre, apresentei o vídeo editado para aquele

momento ao Coletivo Aparecidos Políticos que imediatamente disponibilizou o material no

seu site. Essa questão do vídeo também constituiu um ponto importante para nos

aproximarmos, já que o Coletivo tinha o desejo de inventar e produzir materiais audiovisuais.

A partir do conviver com o Coletivo, alguns padrões e marcadores foram surgindo

durante o percurso. Abro mão do conceito categorias, muito ancorada nos apontamentos de

Pellanda (2003, 2008), para quem as “categorias não são adequadas para lidar com uma

realidade complexa e em devir” (2008, p.1080). Uma primeira dimensão dos dados é pensar

que são padrões que se conectam no sentido de que a realidade vai sendo configurada por

meio da repetição desses padrões. Os marcadores, enquanto segunda dimensão, correspondem

aos pressupostos teóricos mais importantes do quadro teórico utilizado. Esses pressupostos

vão sendo aplicados a essa realidade que emerge.

Desse modo, nas conversas e trocas de email entre os integrantes dos Coletivos, a

ideia de uma resistência sempre era tomado como algo que evoca força e criação. Fui então

me dando conta que correspondia a um dos marcadores da presente pesquisa. Por vezes

interrogava-me que forma de resistência era essa que se ancoravam para falar, já que hoje a

resistência pode ser tomada por diversas entradas.

15 Para conferir a programação da Roda de Conversa, com os convidados à participar acessar o link: http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/p/ix-roda-de-conversa-porto-alegre.html

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Por meio das conversas e dos momentos de acompanhamento de algumas

intervenções, as evidências apontavam que, para o Coletivo, o termo evocava certa

ambiguidade. Ao mesmo tempo em que tomavam resistência como ato contrário, como recusa

e negação em seus discursos, evocavam a resistência como potência inventiva e criativa, de

que nos fala Deleuze (2011a) a partir de suas ações.

Durante conversas em encontros mais informais, percebi que muito falavam do

espaço público, da tensão estabelecida entre o público e o privado, além da potência da

estética nesses espaços, do quanto existe potencia nas construções estéticas que tomam a rua.

Decidi assim seguir com essa pista, espaço público, como o segundo padrão e marcador.

A partir da Pesquisa In(ter)venções, das aproximações que vinha tendo com os

Aparecidos Políticos, o desejo de estar ainda mais perto, bem como os fazeres com o Coletivo

me conduziram a participação como integrante. O convite muda minha condição de alguém

que acompanha e intervém pontualmente, para me tornar integrante. É o início da partilha de

fazeres políticos e artísticos, além da amizade que se constituía e se fortalecia a cada encontro,

a cada email trocado, a cada momento compartilhado ao final dos encontros. Não havia mais

a possibilidade de me dissociar daquilo que já era um dos meus universos.

Pesquisar e viver estavam, portanto, intimamente imbricados. Já não era mais a

mesma. A partir dos agenciamentos, ao longo do tempo fui aspirada e multiplicada,

partilhando com os demais integrantes esse sensível que a memória dos mais de 400 mortos e

desaparecidos políticos. A questão da memória também se apresenta enquanto marcador

importante, por esse motivo também compõe as análises que seguem.

Ao mesmo tempo em que sigo intervindo com e no Coletivo, as novas experiências

muito têm interferindo em mim, no modo como tenho lançado meu olhar ao mundo, no

constituir de novos fazeres/saberes. Tudo se reconfigurou em uma velocidade que não consigo

explicar. O espaço, o tempo, o sensível, a percepção do espaço público e da memória desses

lugares. As escolhas estéticas também já se modificaram e por tais interferências, o caminhar

sem metas pré-fixadas, foi significativamente fundamental para minha constituição como

pesquisadora.

Chegamos ao fim da Pesquisa In(ter)venções no final de 2013. Ao longo do percurso

de dois anos e meio tivemos diversos encontros e muitas pistas por onde poderíamos seguir.

Durante o percurso fomos atravessados por processos artísticos intensificados no Titanzinho,

mais especificamente com o processo de pintura da fachada da Associação de moradores,

momento que encontramos artistas locais, como Ceci Shiki e o próprio Marquinhos, com

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oficinas de estêncil, grafite e colagem de cartazes lambe-lambes16. Do encontro com Wriel,

grafiteiro da própria comunidade do Titanzinho e articulado com artistas da cidade, que

também colaboraram nas intervenções, além da própria Fernanda, nas oficinas de fanzine de

portas abertas levando à cidade um pouco desse lugar, através de textos e imagens.

Percebemos, nessas intervenções, a potência para seguir pesquisando com as

múltiplas linguagens artísticas, mais especificamente, problematizando a relação existente

entre arte e política. Nessa perspectiva, buscamos intervir em diferentes espaços da cidade de

Fortaleza, inventando encontros com singularidades, subjetividades, modos de conviver e

circular nela.

Tomando o encontro de desejos de seguir pesquisando e afirmando o percurso

realizado pela Pesquisa In(ter)venções, montamos um projeto a várias mãos chamado Arte |

Espaço Comum | IntenCidades, aprovado no início de 2014 no Programa de Pós-Graduação

em Artes e que reuni pesquisadores, estudante e artistas participantes do processo anterior de

pintura da fachada da Associação de Moradores. Com a coordenação da professora Deisimer

Gorczevski o projeto teve as seguintes autorias: Anna Lúcia dos Santos, Fernanda Meireles,

João Miguel Lima, Rafaela Kalaffa e Sabrina Araújo. Como co-autores: Alexandre Ruoso,

Cecília Shiki, Joana Schroeder, Marcos Venicius, Fabiola Gomes e Wilma Farias. Contou

ainda com os coletivos aliados: ONG ZINCO17 – Centro de Estudo, Pesquisa e Produção em

Mídia Alternativa, Aparecidos Políticos, Projeto de Extensão "Se essa rua fosse nossa" –

UFC18, Coletivo Audiovisual do Titanzinho e Coletivo In(ter)venções. O projeto teve como

proposta, seguir pesquisando a partir das pistas: resistência, arte política e espaço público,

buscando o cruzamento de pesquisas que são singulares e ao mesmo tempo comuns a todos. A

aposta na amizade, nos afetos tristes e alegres, nos encontros, na criação de possibilidades

outras de resistir a cidade e inventar outros modos de estar nesse lugar, é o que nos motiva a

seguir inventando e intervindo.

16 A técnica consiste na colagem de cartazes, seja imagens ou desenhos, impressos em papel e colados nos espaços da cidade a partir de cola branca ou cola caseira, feita a base de farinha de trigo. 17 Para conhecer a ONG Zinco ver a dissertação de Meireles (2013) “Cartas ao Zine Esputinique: escritas de si e invenções de nós da rede”. 18 Intervenção realizada com os estudantes de Arquitetura da UFC e moradores da Rua Lauro Vieira Chaves, uma comunidade ameaçada pela remoção, em Fortaleza. O trabalho é uma continuidade do mutirão iniciado no SENEMAU-2012 (Seminário Nacional dos Escritórios Modelo de Arquitetura e Urbanismo) sediado pelo Canto.

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1.1 A escolha do método de pesquisa: pesquisa-intervenção e a “atitude do cartógrafo” como estratégia de pesquisa

A complexidade da realidade social, a multiplicidade de fenômenos sociais e

subjetivos e a demanda por uma efetiva contribuição de trabalhos acadêmicos com a vida tem

nos colocado, enquanto pesquisadores, diante de um desafio pertinente, inventar

procedimentos metodológicos que sejam ao mesmo tempo mais abertos e inventivos quando

nos referimos a pesquisas em ciências humanas. Métodos esses capazes de produzir

conhecimento afirmando outros possíveis, extrapolando os limites da representação,

rompendo com o positivismo das ciências humanas e colocando as verdades produzidas no

ato de pesquisar, sempre como algo provisório, sendo reinventado em cada pesquisar.

Não tenho a pretensão de travar aqui uma discussão ou mesmo considerar qual o

melhor ou pior caminho metodológico a realizar, muito menos apresentar o método que

escolhi para seguir meu percurso, enquanto proposta revolucionária do conhecimento, longe

disso. Até mesmo porque a escolha metodológica implica dois pontos importantes: primeiro o

desejo do pesquisador de qual caminho traçar e o segundo o próprio campo de pesquisa muito

diz ao pesquisador quais procedimentos necessitam ser adotados.

É ainda interessante pensar que não se refere a noção de técnica ou enquadre do

campo o que define o caráter da pesquisa-intervenção, mas esse tipo de pesquisa implica

justo a posição que o pesquisador ocupa nos jogos de poder, a sua implicação com o saber

científico e abertura para a criação de zonas de desestabilização.

Rosário e Aguiar (2012, p.1263) nos falam da tradição que tem o Brasil em trabalhar

com pesquisas qualitativas, sobretudo nas ciências sociais. Mas há grandes tensões sobre que

tipo de abordagem utilizar, se quantitativa ou qualitativa, e também uma polarização de onde

empregar uma ou outra. O que se observa é que enquanto pesquisas quantitativas se

empenham em trazer à ciência a exatidão e segurança, pesquisas qualitativas tem se imbricado

muito mais com a representação da realidade.

Mesmo sendo abordagens distintas, não anula-se a possibilidade de combinação dos

dois métodos na realização de uma mesma pesquisa. No entanto, como já citado

anteriormente, é necessário que a produção científica se coloque para além da exatidão e

representação de objetos, mas que se comprometa com a produção de conhecimento em que o

agenciamento de práticas reais sejam capazes de ampliar possibilidades de vida. Tentando

fugir de todos os impasses metodológicos, a questão central deve ser “como investigar

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processos sem deixá-los escapar por entre os dedos” (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA,

2012, p.08).

Como pesquisadores do campo das ciências humanas e sociais, nossas perguntas

necessitam de uma abordagem que consiga indagar sobre os modos de viver, de existir e de

pensar. Compreender um sistema de vida a partir das suas múltiplas formas de constituição.

Nesse sentido parece-me que a abordagem qualitativa é a que de fato consegue aproximar tais

questões no presente estudo.

Santos (2002) têm afirmado a crise pela qual tem passado a ciência moderna e

demonstrado preocupação quanto a contribuição da produção de conhecimento para a

sociedade. Para o autor, vivemos um momento de transição científica,

sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente). (SANTOS, 2002, p.37)

É justo por esse caminho, do percurso realizado com o Coletivo de Pesquisa

In(ter)venções e também a partir do Coletivo Aparecidos Políticos, que me despertou pensar o

pesquisar, a produção do conhecimento como domínio do conviver, de que nos fala

Maraschin (2004, p.100), logo o observar e o explicar são erguidos a partir do acoplamento

entre organismo e meio, ou seja, sobre a dinâmica estrutural do ser vivo ligado ao modo como

a vida se organiza, apresentando desde logo uma imersão no funcionamento da vida ao invés

da tentativa precipitada de responder o que ela é.

No entanto, existe um nível de complexidade nesse pesquisar que se coloca além da

mera representação de objetos e exige do pesquisador trazer para a pesquisa uma dimensão

sensorial, já que observar a vida e compreendê-la requer a realização de um percurso vivo,

imbricado ainda em uma rede de conversações. Esse tipo de pesquisa requer um tempo em

campo, tempo esse que só poderá ser precisado pelo conviver.

Nesse sentindo, penso que empregar a pesquisa-intervenção como aporte

metodológico e lançar mão da “atitude do cartógrafo” (GORCZEVSKI, 2007, pág.44) como

estratégia da pesquisa-intervenção, é o que mais conseguiria abarcar alguns dos momentos de

acompanhamento de processos junto ao Coletivo Aparecidos Políticos. No percurso, a

subversão inicia justo pelo sentido tradicional de método: não um caminhar no sentido de

alcançar metas pré-fixadas, mas de fazer com que a meta se torne efeito do caminhar, que

surja a partir do percurso (PASSOS; BARROS, 2012). Logo, o método é uma aposta à

experimentação e não uma aplicação, como fala Passos; Kastrup; Escóssia, (2012).

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Apesar de já serem diversas as pesquisas que tomam a intervenção e a cartografia

como metodologia de trabalho, pesquisas essas nos mais variados campos como da

psicologia, educação, comunicação, saúde, arte e ainda filosofia, ainda é evidente a grande

desconfiança da ciência moderna com pesquisas que têm como foco acompanhar processos de

subjetivação. Mas apostar na intervenção como processo de coengendramento, de criação de

si e do mundo é, ao mesmo tempo, um modo de resistir aos processos de institucionalização

que tomam o método como algo fixo e que objetivamente deve ser seguido como uma espécie

de prescrição.

Esses que não se deixam captar por métodos que fatalmente levariam a representação

dos seus objetos de pesquisa, são muitas vezes questionados quanto a cientificidade de seus

trabalhos, quanto ao rigor do método e validade perante a ciência. Quanto ao rigor, não se

trata de tomá-lo enquanto rigidez, muito menos como questão de um abrir mão,

[...] mas esse é ressignificado. O rigor do caminho, sua precisão, está mais próximo dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo, de que fala Canguilhem. A precisão não é tomada como exatidão, mas como compromisso e interesse, como implicação na realidade, como intervenção. (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2012, p.11)

1.1.1 Pesquisa-Intervenção no Brasil

Leituras e pesquisas dão conta de uma tradição da pesquisa-intervenção frente a

outros métodos empregados em pesquisa. Há também uma densa contribuição teórica de

grandes nomes de diversas áreas do conhecimento como pedagogos, filósofos, artistas,

psicólogos e ainda de cientistas sociais. É importante dizer que a pesquisa-intervenção é

tomada como prática metodológica inicialmente por psicólogos, os quais tinham uma atuação

assentada na pedagogia na busca pelo rompimento do institucionalismo e das múltiplas

práticas cristalizadas nesse campo de conhecimento.

As décadas de 1950 e 1960 marcam esse momento histórico de ruptura,

ressignificações metodológicas e desnaturalização das práticas, que passaram a ser colocadas

em análise. A efervescência política na França de caráter descentralizador e principalmente os

conflitos de Maio de 1968, responsável pela contestação de diversos aspectos da vida em

sociedade, foram os principais fatores para que esse rompimento eclodisse.

No Brasil, são décadas de grande insurgência popular e ao mesmo tempo de

resistência. Vivia-se um contexto de grande agitação e ao mesmo tempo de uma forte

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repressão política com o exílio de militantes e intelectuais do país, causando uma

desmobilização dos movimentos populares.

No entanto, a resistência continuava mesmo que por meio da “clandestinidade”.

Nesse contexto, é interessante citar o método desenvolvido por Paulo Freire, que tinha e ainda

tem como cerne, uma educação popular que fugisse os tradicionais modelos de limitar o

educando a decorar letras e formar palavras. A questão central da metodologia era que,

independente de classe, sexo, cor ou religião, o educando tivesse acesso aos direitos básicos e,

por meio de uma escolarização das camadas populares, respeitando seus processos cognitivos

e mesmo seu cotidiano, eles pudessem contribuir para a transformação social. Paulo Freire,

mesmo não tendo o devido reconhecimento nacional, é mundialmente celebrado como

pedagogo que realizou um caminho de desnaturalização das práticas pedagógicas no país.

No campo da psicologia, na qual a pesquisa-intervenção é cada vez mais recorrente,

foi o momento de experimentar a psicologia social no desenvolvimento de processos

educativos, especialmente junto a grupos e organizações das camadas populares. Nesse

sentido, a porta de entrada da pesquisa-intervenção no Brasil se dá por esses dois eixos em

específico: educação e psicologia.

Logo é possível apontar que produziu-se nesse período uma densa articulação entre a

psicanálise e os movimentos políticos de esquerda, o qual também coincide com todo o

movimento relacionado à reforma na saúde mental. Questionavam-se diversos aspectos

institucionais, dentre eles os jogos de poder evidenciados nas práticas além do claro

afastamento entre teoria e prática.

Denominado de movimento institucionalista, era evidente a contraposição a

cristalização das práticas nas diversas instituições. A aposta do movimento se deu então na

dissolução desses territórios constituídos para evocar a criação de outros capazes de subverer

a noção de instituição como algo regular, regrado e normatizado, reapresentando a instituição

como a “retenção do processo de criação que por fuga, por ruptura, gera realidade”

(AMADOR, 2012, p.136).

A Pesquisa-intervenção surge então no fluxo do movimento institucionalista com

dois sociólogos da educação, Lourau (1993;1996) e Lapassage (1979;1989) em conversação

com Guatarri (1987) e outros pensadores da época, como o próprio Foucault

(2008;2009a;2009b). Lourau, como principal nome, leva adiante a pesquisa-intervenção e

fala da necessidade em apresentar as implicações do pesquisador em situação de pesquisa

como aspecto fundamental no desenvolvimento do seu trabalho científico, mesmo essa

implicação sendo fortemente negada.

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A possibilidade de intervir, apresentada por Lourau, apresenta como possível a

produção de desmanche das posições, como a clássica polarização sujeito-objeto, ainda muito

evidente na pesquisa-ação, para provocar o saber como algo contido no regime de

intervenção. O processo implica, portanto, em colocar as práticas em análise, rachar as coisas

para delas extrair as visibilidades, e rachar as palavras no sentido de extrair os enunciados,

como nos fala Deleuze (2010) reafirmando o pensamento de Foucault. Desse modo o

processo se constitui como uma espécie de busca dos fios que compõem a trama.

1.2 Apostas e estratégias para pesquisar com o Coletivo Aparecidos Políticos

Embora não seja a única estratégia da pesquisa-intervenção, aposto na atitude do

cartógrafo como valioso caminho de investigação. Isso porque o interesse em pesquisar o

Coletivo Aparecidos Políticos se dá justo pelo ato de acompanhar um processo artístico da

ordem do invisível, do micropolítico, que necessita ser vivido na sua intensidade. Seguindo as

pistas de Deleuze e Guattari (2011a), formuladores da cartografia, a aposta é justo na

construção de intercessores, interferências e agenciamentos a partir de movimentos múltiplos

e que, diferente da ciência moderna,

[...] não visa isolar o objeto de suas articulações históricas, nem de suas conexões com o mundo. Ao contrário, o objetivo da cartografia é justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente. (BARROS; KASTRUP, 2009, p.57)

Para Suely Rolnik, a cartografia é para os geógrafos a representação de um plano

estático, diferentemente do que o método cartográfico em ciências humanas significa. A

cartografia de que falamos trata de um território que antes de ser geográfico é existencial,

exigindo do pesquisador o movimento com o objeto no sentido de compreender suas

modulações. Rolnik (2006) afirma que

a cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (ROLNIK, 2006, p.23).

É necessário, portanto, a imersão no plano das intensidades a que o território se

encontra, logo cabe ao cartógrafo, dar língua aos afetos e estar atento a essas linguagens que

vai encontrando no percurso.

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Em Cartografia Sentimental, Rolnik traça um “manual” do cartógrafo, com o

objetivo de “direcioná-lo” para sua pesquisa. A priori, a autora alerta de que não existem

direções prefixadas,

restaria saber quais são os procedimentos do cartógrafo. Ora, estes tampouco importam, pois ele sabe que deve “inventá-los” em função daquilo que pede o contexto em que se encontra. Por isso ele não segue nenhuma espécie de protocolo normalizado. (ROLNIK, 2006, p.68).

O mergulho do cartógrafo se dá, portanto, nas intensidades da vida e seu princípio é

desde logo

[...] extramoral: a expansão da vida é seu parâmetro básico e exclusivo, e nunca uma cartografia qualquer, tomada como mapa. O que lhe interessa nas situações com as quais lida é o quanto a vida está encontrando canais de efetuação. Pode-se até dizer que seu princípio é um antiprincípio: um princípio que o obriga a estar sempre mudando de princípios. É que tanto seu critério quanto seu princípio são vitais e não morais. (ROLNIK, 2006, p.68)

Ao longo do trajeto e mais especificamente da Pesquisa In(ter)venções, a leitura do

livro Pistas do Método da Cartografia, organizado por Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e

Liliana da Escóssia, foi o encontro com o método que apontava outras possibilidades para

seguir pesquisando. Passei então a tomar o envolvimento que vinha tendo com o Coletivo

Aparecidos Políticos, enquanto um pesquisar “com” algo e não “sobre” algo. Como afirma

Passos e Barros (2012, p.31) “conhecer o caminho de constituição de dado objeto equivale a

caminhar com esse objeto, constituir esse próprio caminho” ao mesmo tempo em que me

constituía, propriamente .

Durante o percurso, fui percebendo que o campo empírico é muito mais um território

existencial, onde a expressividade é mais significante do que a funcionalidade. O território só

existe a partir do momento em que há expressividade do ritmo, constantemente em processo

de produção. Assim, percebi que não havia outro caminho para o processo de habitação de

um território se não a imersão nas próprias situações cotidianas.

No sentido de produzir dados ao invés de coletá-los, como é proposto pelo método

cartográfico, lancei mão de alguns dispositivos que durante o percurso contribuíram com a

produção de informações. A ideia é de que esses dispositivos pudessem operar tanto no

sentido metodológico como também de intervenção.

O primeiro dispositivo foi a aposta em encontros semanais que já acontecem no

Coletivo Aparecidos Políticos. O momento é reservado para a partilha de experiências,

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fazeres, criar coletivamente as ações do Coletivo, bem como planejar e avaliar as ações

propostas.

Pensando na importância e necessidade de escrever e atentar sempre para os

acontecimentos junto ao Coletivo, a escrita de um diário de bordo se colocou como aspecto

importante, composto não só pela linguagem escrita, mas apostando no uso de tecnologias

visuais, sonoras e audiovisuais como possibilidade de construção do presente diário. A aposta

no diário segue as indicações do que Barros e Passos (2012, p.172) apontam como necessário

para o trabalho da pesquisa, a qual “deve ser sempre acompanhado pelo registro não só

daquilo que é pesquisado quanto do processo mesmo do pesquisar.”

Nesse contexto e emaranhado de conexões de gestos, fazeres e pessoas, o desejo de

realizar a presente pesquisa se constituiu. Na verdade, é um percurso atravessado por

implicações que foram responsáveis pela produção de uma rede intensiva, um rizoma com

muitas entradas e muitas saídas. Por esse motivo, interessa no presente trabalho analisar três

situações distintas, a primeira uma intervenção que produz intensidades e mesmo não tendo

vivenciado o processo de criação, as imagens do registro demanda um olhar atento. Outros

dois momentos foram vivenciados com o Coletivo Aparecidos Políticos. Desde a concepção

da ideia até o momento de ir à rua produzir. Os três trabalhos apresentam questões pertinentes

que nos conduzem a compreender, se não, problematiza algumas questões: primeiro quais as

potencialidades presentes nas intervenções propostas pelo Coletivo, segundo como o Coletivo

opera a inter-relação entre arte e política e terceiro qual a dimensão da resistência nessas

intervenções.

Para fins práticos, a presente pesquisa foi estruturada em seis capítulos. No primeiro

discorro a presente introdução que possibilita ao leitor compreender como a pesquisa se

constitui a partir do percurso do pesquisador. É apresentado ainda as implicações

metodológicas, pertinentes ao processo.

No segundo capítulo apresento breves apontamentos acerca dos movimentos de

criação e resistência em meio ao contemporâneo, destacando, sobretudo, os acontecimentos

políticos e sócio-culturais dos anos mais recentes, situando ainda o contexto de Fortaleza. A

partir da existência de coletivos e grupos que criam resistências diversas em meio aos espaços

da cidade de Fortaleza, situo o Coletivo Aparecidos Políticos e trago, em uma seção, um

breve percurso do Coletivo.

Como proposta de imersão, construo, no terceiro capítulo, uma análise de uma das

primeiras intervenções do Coletivo, “O que resta da ditadura?”. A proposta não se dá pela

perspectiva cronológica e aqui fujo um pouco da proposta que é apresentar percursos vividos

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com o Coletivo. No entanto, a intervenção apresenta uma enorme potência a partir de uma

criação híbrida, agregando imagens, performance e escrita. Nesse momento, situo questões

relacionadas a memória, corpo e espaço e funcionam como uma espécie de intervenção

disparadora e referência para o processo de criação do Coletivo.

No quarto capítulo apresento o processo vivido junto ao Coletivo na produção da

intervenção em rememoração aos 50 anos de instauração da ditadura do país. No contexto da

entrega do relatório da Comissão Nacional da Verdade, a data não poderia passar em branco,

demandando do Coletivo uma ação que evidenciasse, no espaço da cidade, as intensidades da

memória. O momento de criação busca inspirações no Projeto Ausências, que trabalhou no

Brasil, a partir de fotografias de álbuns dos familiares de mortos e desaparecidos, a

reconstrução das imagens, porém, evidenciando a ausência desse desaparecido pelo regime. A

intervenção, que trouxe fotografias de Bergson Gurjão, Iure Xavier e Alex Xavier, apresentou

um corpo intensivo, político para pensar a construção de modos de subjetivação política a

partir das imagens.

O processo da Operação Carcará ainda ecoa em cada um dos integrantes do Coletivo

Aparecidos Políticos e apresento, esse processo que mobilizou o fechamento do espaço aéreo

da cidade de Fortaleza por um dia. Questões como democracia e de como a arte produz

desmanches sociais são apresentados no quinto capítulo, que explora a potencialidade desse

momento que colocou o Coletivo diante de uma ordem policial, o impedimento do

lançamento de 140 paraquedas de brinquedo. Na conclusão, apresento apontamentos dentro

do campo de vivências e percepções junto ao Coletivo, apresentando outros possíveis dentro

do processo de pesquisa que demanda uma escrita que perpassa o campo das sensações. Trago

nesse momento o apontamento de outros possíveis no fazer da arte como possibilidade de

erigir mundos.

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2 CRIAÇÃO E RESISTÊNCIAS: BREVES APONTAMENTOS SOBRE INTENSIDADES CONTEMPORÂNEAS

Antes mesmo de adentrar nas intensidades vividas com o Coletivo Aparecidos

Políticos, mais especificamente apresentando e problematizando questões dois processos de

criação vivenciados com o Coletivo, trago como significativo dimensionar, mesmo que breve,

o contexto social, político e urbano de anos mais recentes. A partir desse dimensionamento é

possível perceber uma grande mobilização que abre espaço para a afirmação de novos modos

de vida e a invenção/criação de resistências, sobretudo, nos espaços públicos das cidades

brasileiras.

Para tanto, se faz necessário lançar o olhar para o cenário contemporâneo marcado

por profundas transformações ocorridas nos campos econômico, cultural e político. Ao que

me parece, pensar que a modificação desses espaços corresponde a lógica acelerada imposta

pelo modelo capitalista na sua incessante uma reinvenção, se apresenta como uma pista a ser

seguida.

Essas transformações, em níveis diferenciados e obedecendo particularidades, são

vivenciadas tanto por países ocidentais como pelos orientais. Países que apresentam um

cenário marcado por contestações e contradições políticas que por sua vez, conduzem as

sociedades a se organizarem na reivindicação por melhores condições de existência nas

grandes metrópoles.

No entanto, essa atuação tem se mostrado diferenciada, sobretudo na maneira como

questionam e reivindicam essas transformações e a realidade dos cenários urbanos. São

modos de fazer que colocam em evidência as fragilidades das organizações partidárias e

mesmo da sociedade civil em lidar com as novas dinâmicas e mobilizações sociais existentes,

o que tem ocorrido em praticamente todos os países.

Nas últimas décadas têm surgido modos de engajamento político, caracterizados pelo

descrédito nas formas tradicionais de participação. Vemos surgir outro conceito de filiação

política, que não passa pelos mecanismos de institucionalização. Peter Pal Pelbart (2013)

descreve que

talvez esteja nascendo outra subjetividade política e coletiva, aqui e outros pontos do planeta, para o que carecemos de categorias. Mais insurrecional, de movimento mais do que partido, de fluxo mais do que disciplina, de impulso mais que finalidades, com um poder de

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convocação incomum, sem que isto garanta nada, muito menos que ela se transforme no novo sujeito da história.19

Ao mesmo tempo, organizações em coletivos independentes ganham os espaços

urbanos. Trago o termo independente para pensar que não há nesses grupos uma orientação

partidária ou amarras que prendam esses coletivos nas estruturas segmentares. Mas o que dá

consistência à esses grupos é a noção de resistência enquanto produção de vida e mundos em

meio aos espaços urbanos. Nas palavras de Pelbart (2003), a resistência empregada nas

produções do contemporâneo, podem assim serem expressas:

Se na modernidade a resistência obedecia a uma matriz dialética, de oposição direta das forças em jogo, com a disputa pelo poder concebido como centro de comando, com os protagonistas polarizados numa exterioridade recíproca, mas complementar, o contexto pós-moderno suscita posicionamentos mais oblíquos, diagonais, híbridos, flutuantes. Criam-se outros traçados de conflitualidade, uma nova geometria da vizinhança ou do atrito. Talvez com isso a função da própria negatividade, na política e na cultura, precise ser revista. Como diz Negri: “Para a modernidade, a resistência é uma acumulação de forças contra a exploração que se subjetiva por meio de uma ‘tomada de consciência’. Na época pós-moderna, nada disso acontece. A resistência se dá como a difusão de comportamentos resistentes e singulares. (PELBART, 2003, p.142)

Observamos que a insurgência de tais coletivos tem tomando força pelo mundo e que

a partir de suas especificidades, desafiam a ordem vigente na condição de criar modos de

existência. Dentre os protestos que imprimem certa semelhança, vale citar a Primavera Árabe,

o Occupy, nos EUA, os Indignados, na Espanha, o de defesa da Praça Taksins, na Turquia até

chegarem na América Latina. Primeiro no Chile, por meio da mobilização de estudantes, se

espalhando pela Argentina, Uruguai até chegar ao Brasil.

Em Fortaleza, assim como em outros lugares do país e mesmo do mundo, o que

torna-se evidente é que não são só outros modos de se relacionar com a política. É importante

deixar claro desde logo, que política, no presente trabalho, deve ser entendida não como

exercício do poder ou luta pelo poder. Seu âmbito não se define nas leis e instituições, mas

deve ser compreendida tal como presume Rancière (2012):

A política é a atividade que reconfigura os quadros sensíveis no seio dos quais se definem os objetos comuns. Ela rompe com a evidência sensível da ordem “natural” que destina os indivíduos e os grupos ao comando e a obediência, a vida publica ou a vida privada, ao assiná-los desde logo a um certo tipo de espaço ou de tempo, a certa maneira de ser, de ver e de dizer. Esta lógica dos corpos no seu lugar dentro da distribuição do comum e do

19 “ANOTA AÍ: EU SOU NINGUÉM”. Folha de São Paulo, São Paulo. 19 de mar. 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/07/1313378-peter-pal-pelbart-anota-ai-eu-sou-ninguem.shtml> Aceso em: 20 out. 2014.

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privado, que e também uma distribuição do visível e do invisível, da palavra e do ruído, e aquilo a que propus nomear com o termo de policia. A política é a pratica que rompe com essa ordem da policia que antecipa as relações de poder na própria evidencia dos dados sensíveis. Ela o faz através da invenção de uma instancia de enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns (RANCIÈRE, 2012, p. 60).

Encarar a política por essa ótica se apresenta, portanto, como modos de resistir ao

instituído rumo ao plano do instituinte20, às contradições criadas pelo Estado e à normatização

da vida nas cidades aceleradas, ao mesmo tempo em que encarna modos de existir nesses

espaços.

É sintomático, e aqui me arrisco apontar, a existência de aspectos estéticos em ações

políticas que tem se constituído na esfera coletiva do contemporâneo, ou vice-versa. Nesse

contexto, a estética é tomada a partir do seu sentido original no grego aesthesis, que significa

“conhecimento sensorial, experiência sensível, sensibilidade” de que fala Chauí (2003, p.

281). Para Rancière (2011, p. 06) a “experiência estética implica o livre jogo da faculdade

intelectual e da faculdade sensível”, logo os dois autores desvinculam, em suas falas, a

experiência estética como sendo algo ligado a ideia do Belo.

Os coletivos que se proliferam nas cidades são das mais variadas frentes, no entanto,

o que mais se percebe são coletivos que inventam outros modos de vida, contestando os

acontecimentos produzidos pela ordem estatal. São frentes que tomam como objetivo, a

intervenção nos temas: mobilidade urbana, direito à cidade, movimentos de ecologia e que

encontram na arte possibilidades de criar e intensificar as relações com o mundo, instaurar

dissensos nos modelos vigentes. A partir de signos, gestos, performances e/ou objetos,

produzem vínculos com o universo comunicacional e simbólico desses espaços.

É importante deixar claro que não há, nesses coletivos, nenhuma pretensão de trazer

resoluções à vida caótica dessas cidades - de tomar a frente e produzir essa transformação

efetivamente - uma vez que as transformações estruturais desses espaços acabam se dando no

plano da macropolítica. O que interessa é pensar que esses coletivos exprimem interesses que

incidem no aparelho estrutural estatal. Vale situar, como afirmam Deleuze e Guattari (2012)

tudo é político, no entanto esse político é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica.

Vale ressaltar ainda que macro e micro não se referem aos binômios Estado e sociedade,

20 De acordo com Escóssia (2009, p.690), “Simondon (1989, 1964) denomina este plano, instituinte das forças, de transindividual e afirma que ele é da ordem do coletivo, entendido como espaço-tempo entre o individual e o social, espaço dos interstícios. Plano de criação ou de coengendramento das formas individuais e sociais, origem de toda mudança, plano do movimento”.

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grande ou pequeno. O macro se refere a política do plano, linha que recorta os sujeitos a partir

das oposições binárias, segmenta os objetos e as unidades de tempo.

Interessa perceber que esses movimentos do contemporâneo operam na ordem da

micropolítica que são, ao contrário da macro, linhas dos afetos, devires, intensidades

determinadas pelos agenciamentos que o corpo produz. Como Deleuze e Guattari (2012,

p.105) afirmam “a micropolítica não se define no que lhe concerne pela pequenez de seus

elementos, mas pela natureza de sua massa – o fluxo de quanta, por sua diferença em relação

à linha de segmentos molar”. As micropolíticas instauram mudanças imateriais,

imperceptíveis, no entanto, atuante no território sociopolítico “já que alteram sua dinâmica

subjetiva, afetiva, política e ética” (DOTTO, 2013, p.283).

Nesse sentido, os movimentos do contemporâneo dizem respeito ao encontro de

corpos no espaço público, produzindo intervenções capazes de criar zonas de deslocamento,

movimentos e ocupações de espaços a partir da visibilidade de singularidades negadas e vozes

silenciadas ao longo da história, ou ainda, são movimentos que seguem por linhas de fuga

desterritorializantes (DELEUZE; GUATTARI, 2012) e agenciamentos políticos.

Há a partir dessa desestabilização, outra conotação do público e do privado, do que é

ser coletivo e ser individual. Estas outras configurações sociais provocadas por esses

agenciamentos, dificilmente podem ser mensuradas, mas de fato delineia-se outro espaço

público, assim como outra conceituação do político. Movimentos que emergem a partir das

fugas desses espaços, indo de encontro à produção de uma democracia pluralista como aponta

Mouffe (2003).

As manifestações ocorridas nos últimos anos em Madrid, Lisboa, Nova York,

Atenas, Roma, Istambul, Tunísia e, mais recentemente no Chile, Argentina, Uruguai e no

Brasil, são exemplos claros de que esses acontecimentos fogem a qualquer modelo de

organização política que opera no plano do instituído. Do contrário, resistem e re-existem a

partir da invenção de movimentos desterritorializantes.

Penso que é significante citar o quanto a arte, por meio de diversas manifestações

como o grafite, a música, o teatro e, principalmente, o cinema emergem como importantes

aspectos na recomposição do imaginário social. Tais manifestações se apresentam como fértil

terreno para sociedades que buscam uma reinvenção diante das profundas transformações

políticas e sociais que marcam o mundo contemporâneo.

Em meio as intensidades políticas e sociais que eclodiram nos últimos anos em

diversos países, as expressões artísticas são tomadas enquanto proposição de redesenhar a

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rede de afetos que compõem o cotidiano, as vidas e paixões que insistem em pulsar nos

muros, visíveis e invisíveis desses países.

Abro um parêntese para mencionar artistas brasileiros que são referências marcantes

no que concerne pensar arte imbricada aos movimentos da vida. Helio Oiticica, Lygia Clark e

Cildo Meireles, são apenas alguns desses nomes que constroem, cada um a seu modo, o

cruzamento inevitável entre arte-vida.

Para pensar, portanto, os movimentos contemporâneos como potência de criação de

“mundos”, trago como significativo pautar os acontecimentos do ano de 2013, no Brasil, que

afirmou a produção de modos de vida por meio da resistência aos dispositivos de poder,

produzindo re-existência. Nessa concepção, o que surgi é a invenção de outros modos de

existir e habitar o mundo.

Em 2013 vimos insurgir um levante que já se anunciava nos anos anteriores, , mas

que de modo inesperado, toma corpo a partir de junho e julho de 2013. O levante mostrou a

reconfiguração pela qual passa o público e o privado são conceitos constantemente

tensionados após o nascimento da modernidade (COCCO, 2014).

Diversas insatisfações tomaram jovens, idosos e adultos cansados das contradições

que parecem engolir as cidades. São descontentamentos e insatisfações de diversas ordens,

mas podemos apontar como principal delas, os altos investimentos em obras de megaeventos,

como a Copa do Mundo de 2014, e as Olimpíadas de 2016, na cidade do Rio de Janeiro.

Assistimos investimentos bilionários sendo despendidos em estádios e obras

megalomaníacas enquanto os serviços mais básicos necessários para o “bem estar” coletivo,

como saúde, educação, segurança pública, políticas de habitação, de mobilidade urbana e

mesmo questões ambientais, relegadas a planos distantes. Eram essas as insatisfações que

estampavam cartazes de manifestantes por todo o país, levando a teoria do bem estar social

sustentada a duras penas pela massiva propaganda governamental, cair por terra, revelando

um “paraíso em crise”.

Existem outros pontos responsáveis pela ida de milhares de pessoas às ruas,

mostrando profunda indignação com a configuração política do país, onde impera, sem

constrangimentos, a grosseira cultura do compadrio e do nepotismo, além da corrupção

arraigada nas mais distintas esferas, atingindo circunstâncias patológicas.

A eleição do pastor Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos

e Minorias da Câmara dos Deputados do Brasil, no início de 2013, gerou também grande

polêmica por conta de suas declarações homofóbicas e racistas, fazendo o país se indagar de

quais manobras e argumentos se utilizam os partidos políticos para elegerem alguém cujas

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competências não condizem com as exigências do cargo. De fato, o que essa comissão

necessitava naquele momento - e necessitará sempre – é de um corpo administrativo com o

olhar capaz de ultrapassar as limitações de uma democracia que nega justiça às minorias que

por sua vez necessitam ser tomadas como parte do todo.

As manifestações também eram contra as manobras de injustiça e a violência

praticada pelo Estado que como soberano, faz viver os corpos dóceis, aptos e úteis à servidão

do modelo capitalista (FOUCAULT, 2005) e deixa morrer, ou no caso do país, faz morrer os

invisíveis que ousam lutar por qualquer direito. Assim mostraram as violentas remoções de

periferias localizadas nos centros das cidades brasileiras, tentativa de higienizar os espaços

urbanos para os megaeventos.

Indignou ainda as mortes contra moradores de comunidades no Rio de Janeiro, como

o caso do pedreiro Amarildo, torturado, assassinado e até então desaparecido da Unidade de

Polícia Pacificadora da Rocinha; a morte dos 10 moradores da Favela da Maré em junho de

2013 durante operação da Tropa de Elite da Polícia Militar, e da empregada doméstica

Claúdia Silva, moradora do Morro do Madureira que depois de ter sido alvejada por um tiro,

foi colocada no porta-malas do carro da Polícia Militar que a levaria à um hospital, mas que

acabou sendo arrastada em via pública com o carro em movimento, depois do porta-malas se

abrir.

Todos esses casos têm algo em comum: mostram que moradores de favelas,

periferias e subúrbios do país não têm acesso a qualquer direito e que só mobilizaram a

sociedade a refletir sobre tais acontecimentos pelo nítido requinte de crueldade que os

envolve. Essa é a democracia a qual o país da Copa e a metrópole olímpica vivem

constantemente, uma democracia forjada na subordinação, opressão e dominação que silencia

de maneira brutal os sujeitos invisibilizados pelo rolo compressor que é o sistema capital.

O aumento de 20 centavos no preço das passagens do transporte coletivo das

principais capitais, foi o estopim de uma série de revoltas que se alastraram pelo país tomando

todos de surpresa em véspera de Copa das Confederações21. Ao contrário do que se divulgou

no período, essas mesmas manifestações já ocorriam antes de junho e julho, tendo início ainda

em fevereiro na cidade de Porto Alegre a partir da organização do Bloco de Luta22. O grupo,

depois de tomar as ruas e montar acampamento em repartições públicas, conseguiu manter o

valor da passagem municipal.

21 A Copa das Confederações funciona como um ensaio para a Copa do Mundo. 22 O Bloco de Luta foi um movimento criando em 2013 na cidade de Porto Alegre, composto por pessoas, movimentos sociais, organizações e Coletivos, no sentido de reivindicar por um transporte público de qualidade. (texto retirado do site http://blocodeluta.noblogs.org/.

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Quando a proposta de aumento chega a São Paulo, a mobilização, inicialmente do

Movimento Passe Livre (MPL), toma proporções nunca imaginadas se quer por quem

encabeçava o movimento, que seguia gradativamente ampliando a rede de articulação que

ligou bairros, comunidades, movimentos sociais e estudantis. A pauta inicial tomava a

questão do transporte público como direito fundamental para a efetivação dos demais direitos

sociais e evidenciava que as manifestações não eram exclusivamente por conta dos 20

centavos, mas pelas 20 tantas insatisfações nacionais que até então não haviam provocado um

levante nacional.

As redes sociais Facebook e Twittter, tiveram papel fundamental, propriamente

tomadas como ferramentas contra-hegemônicas diante dos tradicionais23 meios de

comunicação. Não funcionaram apenas como dispositivo comunicacional, mas se

constituíram ao longo do processo enquanto principal mecanismo de articulação e divulgação

dos atos que tinham, na grande maioria, dia, local e horário para iniciarem bem como a

confirmação de milhares de pessoas em eventos organizados no site Facebook.

Durante as manifestações se experimentou novas formas de compartilhar imagens

em tempo real, como nos mostrou os Mídias Ninjas, “(Narrativas Independentes Jornalismo e

Ação) que cobriu colaborativamente as manifestações em todo o Brasil” (BENTES, 2013, p.

15). Através do sistema de streaming vídeo24, os Mídias Ninjas conseguiram criar outra forma

de experienciar a ida às ruas, mostrando episódios que até então eram ocultados pela mídia

tradicional, o que acabava por colocar em cheque a postura adotada por esta, frente às

manifestações que incendiavam o país. Nas palavras de Bentes (2013, p.15) “o midialivrismo

e o midiativismo se encontram numa linguagem e experimentação que cria outra partilha do

sensível, experiência no fluxo e em fluxo, que inventa tempo e espaço, poética do descontrole

e do acontecimento”.

Enquanto os grandes meios de comunicação entoavam um discurso de

aconselhamento a realização de manifestações pacíficas e sem violência, diferenciavam os

manifestantes entre pacifistas e vândalos, na tentativa de impor modos específicos de

protestar. Logo, ações que se desviassem do ato de caminhar e segurar cartazes, sem

“atrapalhar” a organicidade dos espaços, eram tomadas como ato de vandalismo.

Independente de serem realizadas por pacifistas ou por “vândalos”, o simples fato de

dispor o corpo na rua e compor a multidão - esse conjunto de singularidades que na busca de

23 O livro @Internet e #Rua – Ciberativismo e mobilização nas redes sociais mostra exatamente essa relação. 24 De acordo Zanetti (2013) a streaming é uma plataforma que permite a transmissão em tempo real de conteúdo audiovisual.

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suas necessidades, sejam elas corporais, materiais e de seus desejos - assumindo a vida como

comum, para tomar o pensamento de Negri (2005). Essa mesma multidão foi recebida com

balas de borracha, bombas de efeito moral e sprays de pimenta, um cenário de sensações,

cheiros e sons nunca experimentado pela maioria presente. Desse momento em diante, as

ações policiais, sobretudo das polícias militares, passaram a ser contestadas pelo visível

despreparo e desproporção empregada na mobilização contra os manifestantes.

Ao mesmo tempo, jovens com dispositivos móveis, câmeras fotográficas e celulares,

tomavam as ruas criando e inventando suas imagens em vídeos e fotografias. Rapidamente

diversas composições de vídeos e fotos eram compartilhadas nas redes com os que se faziam

presentes nos protestos e com aqueles que apenas acompanhavam as manifestações pela

internet. Por conta das novas mídias e da produção de conteúdo alternativo, milhares de

pessoas puderam comparar as informações divulgadas pela mídia tradicional e pelos

midiativistas. Desse modo, era possível acessar diversos aspectos presentes nessas imagens,

captados por olhares distintos, dentre esses aspectos, a visível manipulação de imagens e

discursos da mídia tradicional, agora desmoralizada, desmentida e que também passava a ser

alvo de protesto nas grandes capitais.

É ainda curioso observar como as formas de se manifestar e resistir em dias de

manifestações eram múltiplas, o que mostrava que os movimentos das décadas de 70 e 80,

como Diretas Já e o movimento dos Caras-Pintadas, muito havia se modificado. Os carros de

som já não davam o tom das ruas e as bandeiras partidárias foram rechaçadas pelos

manifestantes. Os “sem bandeiras” improvisavam paródias puxadas por bandas de latas,

performances, encenações teatrais, frases escritas nos muros que mexiam com o imaginário e

desejo, e imagens inventadas em dias de protestos, revelando que o estar nas ruas, na união de

corpos e ânimos eram a potência revigorante do país na busca exasperada de transformar a

“carne” em novas formas de vida. Quanto a essa potência da multidão, vimos a aglutinação e

constituição de singularidades e ao mesmo tempo a produção de novas subjetividades:

A união de corpos e a união de ânimos, constituídas naturalmente pela física do indivíduo como causa interna das ações, a união dos ânimos propiciada naturalmente pela psicologia dos afetos e a união dos corpos e ânimos determinada naturalmente pela lógica das noções comuns como convivência entre as parte de um mesmo todo, permitindo a sua concordância quanto ao que lhes é útil, fazem com que a reunião dos direitos (os numerosos indivíduos como participantes que apenas compõem um todo) se torne a união dos direitos (a causalidade comum dos constituintes para obtenção de um mesmo efeito). Essa união não é uma passagem do menos ao mais, não é algo meramente quantitativo, mas sim é a criação de uma potência nova, a multitudo, origem e detentora do imperium. O imperium é a potência da

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massa unida como se fosse uma única mente e a multitudo, o indivíduo coletivo singular, consoante a definição da individualidade (união dos componentes para uma ação única que os transforma em constituintes de um todo) e da singularidade (existência finita na duração, portante, acontecimento). O imperium, “direito definido pela potência da massa”, é a ação coletiva ou a potência coletiva que se organiza como civitas ou res pública. (CHAUÍ, 2003, p. 163, 164).

As manifestações mostravam que a multidão se expunha para além da aglutinação de

corpos, era muito mais complexo como apresenta Chauí (2003), uma constituição natural

baseada nos desejos, nas experiências e aspirações das singularidades que compõem o

comum.

Fortaleza também foi às ruas, experimentando coletivamente a violência e repressão

policial. Se inventou e também resistiu aos grandes investimentos em detrimento à cidade25.

Em julho de 2013, logo após a Copa das Confederações e seguindo o fervor das

manifestações nacionais, ocorre dois episódios que mostram o tamanho da potência e da

vontade de resistir a como o poder público “organizava” a cidade por meio da política do

concreto e do asfalto, das magníficas autopistas e da verticalização infecunda, foram eles o

#Ocupe Aquário e o Ocupe Cocó.26

É inquietante olhar à cidade e ver as inúmeras contradições, como é o caso do

Aquário do Ceará. Imaginar que justo um dos estados que mais sofre com o problema da seca

consegue aprovar um orçamento de aproximadamente 261 milhões para a construção do que

será o primeiro aquário internacional da América do Sul, localizado em uma das regiões mais

valorizadas de Fortaleza. Logo na sua apresentação houve a contestação com os gastos da

obra e outros pontos que aparentemente não mostravam preocupação para os executores do

projeto, como a remoção de cerca de 2.400 moradores da comunidade Poço da Draga,

comunidade centenária bem ao lado da megalomaníaca obra e que ironicamente enfrenta

problemas básicos, como o saneamento. Rapidamente artistas, historiadores, uma parte dos

fortalezenses se organizaram articulando o movimento Quem Dera Ser um Peixe. O grupo

25 Vale abrir aqui um parêntese e citar os movimentos de resistência da cidade ainda no ano de 2010 em Fortaleza. A comunidade do Serviluz, situada geograficamente na região portuária da cidade, resiste a proposta de instalação do estaleiro que acarretaria a remoção da comunidade. O projeto do governo estadual foi desaprovado pela prefeitura municipal e pelos próprios moradores, uma das comunidades mais antigas da cidade, uma verdadeira ilha urbana fortemente visada pela especulação imobiliária. 26 Para mais informações sobre o #Ocupe Aquário acessar: https://acquarionao.wordpress.com/ http://www.cbg2014.agb.org.br/resources/anais/1/1404158242_ARQUIVO_AndreLimaSousaArtigocompletoCBG2014.pdf http://actacientifica.servicioit.cl/biblioteca/gt/GT20/GT20_dePntesGodim.pdf Para mais informações sobre o movimento Ocupe Cocó acessar: http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10939/1/2014_dis_gmlopes.pdf

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articulado com os moradores da própria comunidade, não só contestaram a construção do

aquário, mas se mobilizaram para resistir e permanecer no local.

A resistência se deu de forma criativa e inventiva, a partir da “difusão de

comportamentos resistentes e singulares”, referido por Negri (2003, p.130). Com uma

programação inteira iniciando às sextas-feiras e se estendendo até o domingo pela manhã,

diversas pessoas acamparam em frente à obra localizada no calçadão da Praia de Iracema e

uniram esforços para dizer de forma criativa que não queriam a construção de um aquário

naquele local, muito menos a remoção da comunidade. (Figura 1 e 2)

Figura – 1: Criações no #OcupeAquário. Fonte: Quem Dera Ser um Peixe, 2012.

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Figura – 2: Criação/invenção da resistência no #OcupeAquário. Fonte: Quem Dera Ser um Peixe, 2012.

Além da própria comunidade envolvida nesse processo, a cidade abraçou a causa e

durante o final de semana atípico podiam ser vistas projeções e grafites feitos sobre os

tapumes da obra, encenações teatrais, performances, malabares, rodas de capoeira, cirandas

dentre outras manifestações onde era possível tomar a potência da comunidade imbricada às

potências da arte. Ao mesmo tempo, as manifestações eram assistidas pela vigilância atenta da

Polícia Militar, instalada em uma base no mesmo local. Mesmo com a continuidade da obra,

aquela ação produziu discussões e afetou a população que discutiu sobre o que acontecia e a

forma como acontecia.

Em paralelo a ocupação do aquário, mais precisamente no mesmo final de semana,

deu-se início a derrubada de árvores no Parque do Cocó para a construção de um viaduto,

considerado pela Prefeitura Municipal a solução ao problema do trânsito daquela região.

Mesmo enfrentando problemas de degradação ambiental, o Parque é uma das poucas áreas

verdes que a cidade abriga e é considerado um dos maiores parques urbanos da América do

Sul. O início da derrubada fez com que, inicialmente, um grupo em específico da cidade,

Crítica Radical27, se dirigisse ao Parque e se acorrentasse as árvores no sentido de impedir que

fosse dada sequência a derrubada, uma vez que trinta já haviam sido cortadas e pelo menos

outras 70 viriam a baixo. Esse era o pontapé inicial da ocupação que ficou conhecida como

“Ocupe Cocó”.

Rapidamente mais grupos e pessoas de diversos setores da sociedade aderiram à

causa, grupos que eram não só contra a construção do viaduto, mas insatisfeitas com outros

desmandos do governo municipal e estadual que seguiam no desenvolvimento de projetos de

grande impacto na cidade e que em contrapartida, não eram discutidos com a população. Era

clara a reivindicação pelo direito à cidade e a participação democrática em discussões de

quais espaços se queria construir para viver. Logo diversos manifestantes permaneceram

acampados no Parque a fim de que o diálogo fosse estabelecido. Em contraposição, outra

parte da população se manifestou a favor da construção do viaduto, criando o movimento

#viadutosim.

Começou a se pensar e elaborar alternativas para a construção do viaduto a partir do

envolvimento de arquitetos e estudantes de arquitetura que criaram um concurso de

27 Grupo formado ainda na década de 70 em Fortaleza e que resiste ao poder do capital e domesticação da vida. Membros do grupo têm uma extensa trajetória de lutas sociais que vêm desde a Ditadura Militar, da qual participaram ativamente. Para conhecer mais sobre o grupo acessar o site. Disponível em: http://criticaradical.org/

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alternativas com projetos pensando na abertura de canais de diálogos com os governos.

Tentativas em vão, já que em nenhum momento o prefeito de Fortaleza ou mesmo seus

assessores se faziam presentes na discussão de propostas apresentas como alternativas.

A disputa pela permanência no local foi então levada a esfera jurídica e entre idas e

vindas de liminares a Justiça Federal acaba concedendo à Prefeitura de Fortaleza a

reintegração de posse do Parque, garantindo a construção do viaduto. A Polícia Militar

cumpre a decisão oficial transformado o acampamento e arredores em um verdadeiro campo

de batalha. Enquanto a polícia reprimia com bombas, gás e muita pancadaria, os

manifestantes faziam de paus e pedras suas armas, outros subiam em árvores na tentativa de

escapar da violência e ao mesmo tempo de impedir que a derrubada continuasse.

Foram 84 dias intensos de produção criativa, debates políticos, aulas públicas e mais

uma vez se estabeleceu uma resistência onde a criatividade transborda, sobra, fazendo emergir

um campo de singularidades heterogêneas e insurgentes que constituem modos de vida.

Produziram-se vídeos, fez-se intervenções, sarau com poesia, shows, oficinas, sessões de

criação de fanzines, noites de ciranda em meio as árvores e rodas de capoeira. Uma

comunidade se formou, acolhedora e que nos colocava diante de uma “partilha do sensível”

de que nos fala Rancière (2010), desse sensível que é o cotidiano e os desejos de

transformação.

2.1 Breve olhar sobre a ditadura no Brasil

Em meio a toda efervescência política do país, se faz necessário lançar um breve

olhar sobre aspectos da ditadura militar no país, sobretudo por 2014 ter marcado os 50 anos de

instauração do golpe. Nesse momento de ebulição política, muitas práticas do Estado, ainda

do período ditatorial foram reatualizadas e por isso se faz pertinente lançar o olhar, pautando

como Estado e sociedade lidam com a memória do período e principalmente com a memória

dos seus mortos, desaparecidos.

Talvez não haja palavras para descrever o horror vivido no Brasil entre 1964-1985,

um dos períodos políticos mais tensos enfrentados pelo país com a instalação do golpe militar.

No entanto, muito tem sido discutido e produzido a cerca daquele período, que inquieta ao

mesmo tempo em que assombra o presente. Dos 21 anos de sombra vividos, ainda sabemos

pouco comparado ao que de fato existiu e aconteceu. De forma gradativa vamos conhecendo

histórias, relatos que nos sensibilizam a pensar sobre os horrores do passado e os resquícios

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que insistem em permanecer, atualizados constantemente na ação pelos aparelhos do Estado.

São relatos dos mais fortes e assombrosos desde mortes e torturas, até a vivência em celas

menores do que os corpos presos na tentativa da domesticação.

Por mais cruéis e intensos que possam ser tais relatos, nunca conseguiremos

dimensionar a densidade vivencial desses acontecimentos. Nossos corpos livres, nossas

famílias, nunca saberão a dor pela qual passaram e ainda passam familiares de mortos,

torturados e desaparecidos políticos. Os sobreviventes do horror carregam as mais duras

marcas na memória e em seus corpos. Por mais impregnados que estejam esses relatos - pela

ausência, perda, frustração e dor - nunca seremos afetados da mesma forma.

Passado 30 anos desde o fim do golpe, impressiona perceber que as memórias desse

período continuam privadas, guardadas como os segredos que eram ocultados durante o

período. De forma contraditória o cotidiano das cidades e também do campo abrigam

símbolos e nomes desse processo. São símbolos que imperam como as forças brutais daquele

período, o que revela a produção de uma memória excludente e ao mesmo tempo autoritária.

No entanto essa memória excludente evidencia a existência de uma democracia construída a

partir do consenso e da aceitação, pois como afirma Mouffe (2003) há, em uma democracia

verdadeiramente plural, posições que são irreconciliáveis e que por isso necessitam ser

reconhecidas.

Nesse sentido, negar ou esconder os nomes dessa memória contribui para promover

uma espécie de “apagamento”, aspecto esse que durante anos teve reforço do Estado,

conferindo o que Galeano (1999, p.214) afirma ser “o preço da paz, enquanto nos impõe uma

paz fundada na aceitação da injustiça como normalidade cotidiana. Acostumaram-nos ao

desprezo pela vida e à proibição de lembrar”. Essa na verdade se apresenta como o maior

terror e mais profundo resquício desse momento histórico, evidenciando que mais uma vez as

vítimas desse período são atingidas de forma não menos violenta, um segundo

desaparecimento.

Vale aqui realizar um recorte importante para problematizar o conceito de vítima, a

partir do interessante trabalho de Figueiredo e Aydos (2013) e também no trabalho de Sarti

(2011). Quando se fala em “vítimas da ditadura militar” rapidamente vêm como referência às

pessoas presas, torturadas, mortas e desaparecidos pelo regime ditatorial no Brasil. A

construção da concepção de vítima no contemporâneo têm operado como “forma de conferir

reconhecimento social ao sofrimento, circunscrevendo-o e dando-lhe inteligibilidade”

(SARTI, 2011, p.54). Cabe então refletir que a construção da vítima supõe necessariamente a

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existência de um agressor como também o contexto de violência, que no caso da ditadura é

representada pelo regime de exceção.

Como apontam Figueiredo e Aydos (2013) o conceito de vítima foi sendo

construído ao longo do tempo. Inicialmente, ainda na década de 70, a noção de vítima não

gerava uma representação social. Somente com o exílio de militantes é que se começa a

construir a noção de vítima. Nem mesmo os militantes, certos dos seus “papéis de militantes”,

se consideravam vítimas, já que como apresenta Figueiredo e Aydos (2013) torturas, exílios e

prisões faziam parte do ethos militante. Nos apontamentos de Sarti (2011) é na transição para

o processo de democratização que a noção de vítima se constitui de modo latente. Nesse

período, a noção da vítima se constrói pela alteridade e pelos contrastes presentes. De um lado

os que “perderam” e sofreram, do outro os que perpetraram crimes, mas que permaneciam na

vida legalizada podendo seguir suas vidas.

Atualmente o conceito de vítima se expande, não se restringindo apenas aqueles

que sofreram diretamente com a máquina engendrada da repressão, mas também seus

familiares que sofriam privações e que passavam por situações as quais não escolheram, uma

desclassificação do sujeito ao mesmo tempo em que é exposto a situações de

vulnerabilidade28. Ao longo do tempo as inúmeras produções e também trabalhos produzidos

retratam o militante, personagem que sofreu danos físicos e psicológicos enquanto vítima,

expressão essa que se cristalizou. É bem verdade que os danos foram produzidos dos dois

lados, mas em um sistema de forças o que se observa é que o Estado operou enquanto

máquina engendrada, apresentando todo o seu potencial de “guerra”.

Ainda com relação ao confisco da memória, o que diversos estudos historiográficos

apontam é que, em praticamente todos os países latino-americanos que sofreram com o estado

de exceção, essa é uma prática que insurge com força, no entanto, o processo de

desmemorização é ainda mais brutal no Brasil. Os 400 mortos e desaparecidos 29durante o

período da ditadura não impressionam, não são conhecidos e sequer mobiliza a sociedade

brasileira a pensar os 21 anos de sombra vividos pelo país, o que evidencia que esses

desaparecidos e mortos são de fato as sombras do período.

28 O conceito de vítima se apresenta como algo denso, por esse motivo trago apenas apontamentos para a formulação desse conceito. Aponto interessantes trabalhos que contribuem no aprofundamento do conceito: Jimeno (2010); Sarti (2011); Saunders (2008); Aydos (2002); Gasparotto (2008). 29 Esse número é até então o oficial divulgado pela Comissão Nacional da Verdade, não contabilizando cerca de 2mil indígenas Waimiri-Atroari desaparecidos pelo regime como citado no 1º relatório do Comitê Estadual da Verdade. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/a_pdf/r_cv_am_waimiri_atroari.pdf. Acesso em 20 out. 2014.

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Enquanto isso, países vizinhos, Argentina e Chile, que também passaram por regimes

ditatoriais, insistem em clamar por justiça e trazer a memória de seus mortos e desaparecidos

de múltiplas maneiras, seja por meio de protestos, como fazem as mães da Praça de Maio30,

ou mesmo na construção de memoriais, monumentos e espaços, que para além de homenagear

os mortos e desaparecidos, reatualizam a memória do período no sentido de que “que seja

sempre lembrado para que nunca mais aconteça”

Tem sido interessante perceber que mesmo com o amplo “esquecimento” da

sociedade, como também do Estado que aposta no “esquecer para conciliar” tem emergido

modos construtivos e singulares de trazer à tona a memória de um passado tão recente. São

modos que também produzem visibilidade de uma parcela esquecida da sociedade brasileira,

como é igualmente o caso de negros, índios e demais minorias31 (étnicas, religiosas) que não

tem o reconhecimento de suas singularidades perante o Estado democrático de direito.

Cito então a importância das políticas de reparação do Estado, perante os crimes

cometidos pelo regime militar, que mesmo não trazendo de volta as vítimas dizimadas, se

constituiu como o primeiro passo na reparação aos familiares e torturados. Menciono ainda as

políticas públicas de memória, que por meio do Arquivo Nacional, da Comissão da Anistia e

Comissão Nacional da Verdade, tem desenvolvido ações no sentido de garantir o acesso a

informações e divulgação de material que subsidie o aprofundamento de questões

relacionadas ao período. Essas informações, guardadas por muito tempo, conservaram o

direito daqueles que posam como paladinos da democracia.

Trabalhando a partir desses dois conceitos, verdade e memória, parece interessante

apontar o quanto a verdade desempenha uma “força coercitiva” na realidade, logo a verdade

factual é superior ao poder, existindo assim contingências, passivas de contrariedades como

coloca Arendt (1995). É nesse sentido que o desenvolvimento de políticas públicas tem sido

importante, pois reside na ideia de uma verdade única o grande risco do autoritarismo e

formas de dominação das quais fala Foucault (2012) e como nos diz Mouffe (2003), essas são

30 Mulheres, já idosas, que tiveram seus filhos desaparecidos e que se reúnem todas as quintas-feiras em frente a Casa Rosada buscando manter vivo na memória dos argentinos, o desaparecimento de seus filhos. 31 Aqui parece interessante trazer a abordagem de Deleuze (2010, p. 59; 63-64) sobre minoria que afasta a noção de menor como o reduzido para dizer: [...] minoria não designa mais um estado de fato, mas um devir no qual a pessoa se engaja. Devir-minoritário é um objetivo, e um objetivo que diz respeito a todo mundo, visto que todo mundo entra nesse objetivo e nesse devir, já que cada um constrói sua variação em torno da unidade de medida despótica e escapa, de um modo ou de outro, do sistema de poder que fazia dele uma parte da maioria. De acordo com este segundo sentido, é evidente que a minoria é muito mais numerosa que a maioria. Por exemplo, de acordo com o primeiro sentido, as mulheres são uma minoria, mas, pelo segundo sentido, há um devir-mulher de todo mundo, um devir-mulher que é como uma potencialidade de todo mundo e, a exemplo dos próprios homens, até mesmo as mulheres têm que ter devir-mulher. Um devir-minoritário universal. Minoria designa a potência de um devir, enquanto maioria designa o poder ou a impotência de um estado, de uma situação.

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maneiras de desconhecer o pluralismo de valores que indiscutivelmente estão presentes na

esfera pública.

Verdade e memória dialogam no sentido de que enquanto a primeira se liga ao

acesso a informação e ao conhecimento dos fatos - logo uma dimensão muito mais objetiva -

a memória é tomada como campo da construção de referentes sociais conectadas à

subjetividade, lembrança individual e coletiva.

Mesmo tendo avançado em muitas questões, é necessário apontar que há ainda

muitos entraves no reconhecimento dessa memória, bem como no reconhecimento das vítimas

do horror do Estado. Isso porque os interesses e poderes de quem um dia torturou e

assassinou, continuam preservados, produzindo antagonismos. Neste momento interessa

refletir a dimensão de uma política dos antagonismos, inerente às relações humanas que

segundo Mouffe (2006, p.174) “pode tomar muitas formas e emergir em diferentes tipos de

relações sociais”.

Chamo atenção para a arte contemporânea que de modo singular tem despertado

para criação de formas sensíveis de recortar e de reapresentar os processos políticos e sociais

do país, sobretudo no sentido de tornar visíveis os invisíveis, que por não integrarem

mercados consumidores nem serem contados como parte do corpo social, a eles são negados

muitos direitos incluindo a própria condição de existência.

O percurso do Coletivo Aparecidos Políticos tem sido nesse sentido, algo que

desperta em mim um olhar curioso, uma das várias formas de produzir um sensível sobre o

período ditatorial. São pessoas que não vivenciaram o período da ditadura militar, no entanto

convivem com os resquícios e carregam consigo o desejo de construir nos espaços públicos da

cidade, a visibilidade dos mortos e desaparecidos pelo regime. A ocultação dos corpos durante

o período

O Coletivo se interroga ao mesmo tempo em que interroga a cidade, seus espaços e

o próprio Estado do que foi feito da memória dos desaparecidos e mortos pela ditadura, um

ponto na história do país que vive movimentos de ir e voltar. Interrogam ainda sobre o poder

autoritário do Estado diante dos acontecimentos passados (e também dos mais recentes) e da

impunidade que permanece. De longe nenhum motivo aparente, mas de perto o senso de

justiça vivo em cada integrante do Coletivo, histórias singulares que se entrelaçam, desejos

comuns e subjetivos que formam um coletivo de forças, utilizando o conceito de Escóssia e

Tedesco (2012).

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2.2 O Coletivo Aparecidos políticos – percurso e interferências nos espaços da cidade

Por meio de uma narrativa carregada de emoções e afetos, Alexandre conta como

foi acompanhar a chegada dos restos mortais do guerrilheiro Bergson Gurjão, morto na

Guerrilha do Araguaia. Mais precisamente em 2009 o “corpo”32 de Bergson foi entregue à sua

família, que depois de 37 anos de aflição, buscas e incertezas, pode então cumprir o ritual

fúnebre que é velar e enterrar o seu morto

Quase 40 anos depois e o peso do real no simbólico: Uma caixa leitor, uma caixa. Eu estava longe, mas via, como de perto, algo que se movia... Eu imaginava o quão quente era ali, depois de anos em terra úmida. E de repente o real pesou: as ossadas de uma pessoa. Não queria ver, apesar de imaginar, o que ali estava na minha frente... Como será que estavam esses ossos nessa caixa? Ossos, que de tão fechados, mostravam um corpo cearense bem aberto como nossas veias, nossos olhos, nossas memórias. Sim eu me lembro! Mesmo aos meus 25 anos que há quase 40 anos pessoas caíram por um “crime”... Eu me lembro e ainda escuto velhos carrancudos e bofejantes dizerem que “eles mereciam”, “era uma guerra”, “bando de...” Sim, como não lembrar disso? Como olhar pra aquela caixa e não escutar um barulho vazio e ensurdecedor? Esse peso, essa caixa. Então, eu estava perto, mas via como de longe, algo que se distanciava: algo que fazia e faz, em um inquietante silêncio como daquela caixa, homens silenciarem em seus cargos públicos e em seus cômodos lares... algo que sempre fez esses homens se esquivarem ao serem apontados: TORTURADORES! A distância leva isso... Um peso que ainda sangra e cheira a corpo de gente vindo da terra... Um peso tão forte – que sempre retorna – chamado: Justiça e Memória. (Texto de apresentação retirado do site do Coletivo Aparecidos Políticos)33

Esse episódio foi o impulso para a formação de um coletivo que tem como a busca

dos mortos e desaparecidos pelo regime ditatorial, busca essa não exatamente pelo material,

pelo concreto, corpos ou vestígios materiais deles, mas sim pelo peso simbólico que é a

memória. A criação do Coletivo teria como proposição produzir sensíveis do período e

reapresentar aos espaços, interferir nas memórias e lugares, criar fissuras e fazer caber no

32 Me refiro corpo para pensar no cumprimento de um ritual fúnebre. No entanto o que foi entregue à família foi apenas os restos mortais de Bergson, uma ossada localizada ainda em 1996 em uma escavação realizada no Araguaia. A confirmação de que a ossada era de Bergson Gurjão só veio 13 anos depois, um trabalho realizado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SDH) e pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. 33 Texto disponíven em: http://www.aparecidospoliticos.com.br/sobre-nos/ Acesso em 12 de julho de 2013.

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mundo e nesses espaços, os invisíveis que até então não cabiam, que não eram contados no

cálculo produtivista do país, como fala Moacir dos Anjos34.

A cerca desse momento, enquanto o que dispara o desejo de produzir sensíveis a

cerca dos mortos e desaparecidos, parece interessante pensar como Rancière (2007) apresenta,

enquanto momentos de completa irrupção que o artista sofre. É como se o sensível se

marcasse agora na carne, um encontro com o real que desorganiza nossas experiências

cotidianas, Rancière (2007, p.137) então afirma que: “Para tanto, é preciso que o artista tenha

ele próprio passado "do outro lado", que ele tenha vivido algo de demasiado forte, de

irrespirável, uma experiência da natureza primordial, da natureza inumana da qual ele retorne

"com os olhos avermelhados" e marcado na carne.”

Durante o período de formação do Coletivo, Alexandre é que formado em

psicologia pela Universidade de Fortaleza, e no período estudante em Artes Visuais pelo

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE, integrava o grupo

Meio Fio de Pesquisa, coletivo de artes formado por estudantes e artistas sob a coordenação

do artista, curador e professor Herbert Rolim ligado ao IFCE.

O grupo Meio Fio lançava como proposta, trabalhar a arte como modo de interação

com o espaço urbano, considerando o contexto histórico, social, político e cultural. A

participação de Alexandre no grupo, além da imersão em pesquisas e propriamente no

universo artístico brasileiro, são também pontos que inspiraram as ações do Coletivo

Aparecidos Políticos na rua. Na verdade, o que pude perceber a partir da aproximação com o

Coletivo, é que há uma abertura e acolhimento à expressividade artística de cada participante,

indo de encontro ao que Escóssia e Tesdesco (2012, p.100) afirmam ser a “exposição de

corpos em seu estado de variação o mais intensivo” o que potencializa:

[...] a criação de novas formas que não pertenciam a nenhum dos componentes já existentes e nem ao somático desses. É do encontro, do contágio recíproco ali operado entre as diferenças puras, constituintes do plano coletivo de forças, ou coletivo transindividual, que as novas formas ganham realidade.

Falar da constituição do Coletivo é ir apresentando as mudanças, entradas e saídas

que foram ocorrendo ao longo do tempo, o que mostra como movimento constante, um

Coletivo em eterno devir. Por questões particulares, cada um que entrou e saiu, foi se

conhecendo e se experimentando durante o processo de intervir, afirmando seus caminhos

com o Coletivo e em outros momentos, cruzando esses caminhos. Os movimentos foram

34 Fala de Moacir dos Anjos, na aula aberta “A representação da sobras” realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFC, no dia 22 de nov. de 2013.

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muitos, as indas e vindas também e por esse motivo trago como proposta ir apresentando mais

os acontecimentos que foram de dando ao longo do tempo, do que propriamente ir

apresentando as pessoas. Isso será realizado na medida do caminhar.

2.2.1 Intervenção como proposta

Antes mesmo de adentrar no percurso do Coletivo Aparecidos Políticos, é

importante situar sua aposta na intervenção urbana, conceito que tem se expandido nos

últimos anos por meio de diversas práticas e gestos em meio ao espaço público das cidades. É

importante também situar a carga que tem o conceito de intervenção no trabalho do Coletivo,

que trabalha a memória de pessoas mortas e desaparecidas durante o regime de exceção.

Nesse momento a ideia da intervenção segue a lógica que cabe em uma das cinco definições

encontradas para o verbo intervir, encontrada no dicionário Houaiss (2013). Nesse contexto,

intervir é sinônimo de interpor determinada autoridade, usar do poder no intuito de controlar.

O termo intervenção ganha outra conotação no Coletivo, e passa a ser tomando

como possibilidade de subjetivação da experiência em meio aos espaços da cidade, prática

que insere a arte no circuito dos espaços públicos, interferindo nos fluxos indo de encontro a

construção de outras imagens desses espaços.

Na verdade ao conceito de intervenção se abrem inúmeras possibilidades de

interpretação, não havendo uma definição única. O conceito parece ter as linhas que definem

seus contornos também borradas, mas sua concepção nasce, especialmente no Brasil, com

trabalhos Hélio Oiticica, Flávio de Carvalho, Lígia Pape e Lygia Pape e ainda os trabalhos de

Antonio Manuel e Cildo Meireles, segundo Cocchiarale (2004). São artista que a partir de

seus trabalhos provocam a invenção de novas formas de sociabilidade por meio de práticas

que valorizem o gesto, a convivência e a interação em meio ao espaço. Logo, na intervenção,

o processo artístico está imbricado nos processos cotidianos e se dá enquanto possibilidade de

interferência no que já se tem consolidado enquanto espaço e enquanto ação nesses espaços.

No entanto, o conceito de intervenção tem se alargado a partir das experiências

criadas pela arte urbana, prática que tem afirmado a intervenção enquanto deslocamento de

não para fora, mas pelo contrário, segue dentro da própria prática com o intuito de criar

visibilidades.

O conceito ganha visibilidade a partir das práticas contemporâneas que buscam

inserir a arte no circuito dos espaços públicos, aproximando arte e cidade. Nesse contexto, se

redefine o lugar da obra que passa a integrar linguagens diversas, espaços e outras

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visibilidades, somente possível a partir desses outros espaços que constroem a possibilidade

de uma arte vivencial.

No Coletivo Aparecidos Políticos, o conceito de intervenção é permeado pela arte

urbana, pelas possibilidades de criar no espaço urbano as imagens e a memória dos mortos e

desaparecidos políticos. Trazem como proposta interferir nos fluxos na paisagem concreta do

espaço da cidade bem como nas subjetividades que permeiam esses espaços, dando conta de

outras experiências em meio ao campo.

A aposta do Coletivo nas intervenções tem como proposta situar, demarcar a

existência dessa memória nesses espaços, e como já mencionado anteriormente, a intervenção

parece violar o pensamento, podendo até se utilizar do ruído, mas que carrega enquanto

desejo a possibilidade de se perceber a palavra. O que se produz nessas intervenções, são os

contornos de um período, inscrevendo no contexto da cidade essa memória.

2.2.2 Percurso e intervenções do Coletivo Aparecidos Políticos

Na medida em que o Coletivo foi realizando, criando suas intervenções no espaço

público da cidade de Fortaleza, foi ganhando notoriedade, se tornando referência no campo da

memória, mas, sobretudo, de uma arte que toma enquanto proposta produzir rearranjos

sensíveis, deslocamentos imagéticos e variação nos espaços. Esse aspecto atravessa todo o

trabalho do Coletivo ao longo dos anos de atuação. Proponho apresentar esse percurso não

exatamente pensando em uma perspectiva cronológica, mas se exatamente pela possibilidade

de aqui refletir ou mesmo perceber a variação de intensidades que vai constituindo o Coletivo.

“Os Ex-Sem-Voto” é a primeira intervenção realizada pelo Coletivo logo em

outubro 2010, na programação da Bienal Internacional de Dança do Ceará. Mesmo iniciando,

o Coletivo já propõe ao mapeamento de espaços na cidade, sobretudo no centro, que carrega o

peso dos conflitos e dos gritos. São lugares, que de maneira direta ou indireta, possuíam

alguma relação com o período ditatorial. A opção pela rua, pelo espaço tido como comum

surge como algo certo, por ser o cerne das contradições é também nela que as provocações

devem surgir, logo o Coletivo assume a tensão existente entre o público e o privado.

Essa tensão parece ser aspecto característico dessa arte urbana, que como fala

Peixoto (2002), a partir dos anos 60 passa a negar os espaços convencionais destinados à

“exposição artística”, galerias e museus, para afirmar a potencialidade dos espaços da cidade.

O muro surge nas ações do Coletivo como esse lugar de tensões, que brinca também com o

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ser/estar público ou privado, tomado pelas práticas artísticas que passam a ser reconhecidas

enquanto modos de subjetivação política.

A opção pelo muro como espaço político, artístico e também espaço da

comunicação urbana nas ações do Coletivo, parte das inspirações em trabalhos que tomam

este como território das visibilidades. É possível destacar os trabalhos dos coletivos: Acidum,

Grupo de Arte Callejero – GAC, Poro e o trabalho do Coletivo Político Quem, se tronaram

inspirações para o trabalho do Coletivo Aparecidos Políticos e são coletivos que também

produzem no espaço público a concepção de outros usos capazes de extrapolar a marca

fronteiriça que separa o que é comum do que é particular.

A ação proposta pelo Coletivo consistia em afixar cartazes com fotografias

ampliadas dos desaparecidos, imagens essas de documento de identificação oficial ou mesmo

do arquivo da polícia que passaram a compor a paisagem da cidade. Ao lado das imagens, de

maneira descomprometida com o acabamento, a tinta, preta ou vermelha escorria escrevendo

os nomes dos que se foram e o ano do episódio. Também escreveram, em uma das

intervenções, o pedido de afastamento de José Armando Costa à frente Corregedoria Geral

dos Órgãos Públicos de Segurança, uma espécie de ouvidoria da polícia. O motivo das frases

no muro era a relação direta de José Armando com sessões de espancamento contra ex-presos

políticos cearenses.

Ao mesmo tempo, parte do corpo humano, escupida em madeira, também

compunha a obra no sentido de fazer referência a tortura, ao esquartejamento de corpos,

práticas comuns durante o período. Essas partes eram fixadas nas paredes ao lado das imagens

e nomes. (Figura 3 e 4)

A ação proposta, era baseada no ato de dispor partes que representam o corpo em

salas e principalmente santuários, ação denominada de os ex-votos, prática muito comum no

Nordeste e Sul do país. Por meio de elementos materiais, as pessoas agradecem a intervenção

miraculosa ou graça recebida, depositando esse objeto que representa, na maioria das vezes, a

parte do corpo que recebe a graça. No cenário da arte contemporânea destaca-se Efrain

Almeida, artista plástico que busca na religiosidade, a inspiração para seus trabalhos com

esculturas e também no trabalho do pai, artista local do interior do Ceará, situado

especificamente em uma região marcado pelo ex-votos. (VERAS FILHO, 2014)

Colocando partes do corpo, o Coletivo tem como intenção produzir uma linguagem

que afete, tratando da concretude desse corpo, da materialização, mas sobretudo de um corpo

que se torna intensivo. Parece então interessante pensar o conceito de corpo sem órgãos

desenvolvido por Deleuze e Guattari (2012a), um corpo inimigo da instrumentalização e do

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adestramento que ao invés de seguir o padrão de um corpo produtivo, envereda pela

possibilidade de torná-lo intensivo. Logo o CsO corresponde a essa desorganização do

organismo para torná-lo intensivo, tomando o que verdadeiramente é seu: a potência de

existir. Por isso, na intervenção não interessa se o que o Coletivo expõe são pedaços da

materialidade do corpo, pernas, braços, cabeças, o que importa é a intensidade, mesmo que de

modo “desorganizado”.

Desde logo fica claro a intenção do Coletivo em fazer alusão a guerrilheiros que

experimentaram outras formas de sentir a vida, produzir e serem afetados, mas que agora são

postos nesses espaços como modo de experimentação contínua, uma “vida” que quer se

expandir e criar novas realidades.

Figura – 3: Cartaz lambe-lambe Jana Moroni

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.

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Figura – 4: Cartaz lambe-lambe Maria Lucia Petit Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.

Em 2011, dentro da programação da Jornada Para Não Esquecer Jamais, o Coletivo

também criou nos espaços da cidade. O evento realizado todos os anos durante o mês de

rememoração do golpe militar, busca reunir uma série de atividades acerca da memória,

verdade e justiça no Ceará. Nesse período compunha o Coletivo Viviane Rocha (cineasta) e

Daniel Muskito (grafiteiro e fotógrafo), além de Alexandre e Ton.

Mais uma vez o Coletivo insiste na fixação de cartazes com imagens dos

desaparecidos nos muros de Fortaleza, ousando ao realizar performances durante a ação de

nome “O que resta da ditadura”35. A proposta de intervenção foi pensada a partir da

aproximação com o Coletivo Curto-Circuito, que também próximo das questões relacionadas

à ditadura e da arte urbana, encarregou-se de conceber a ação performática.

A intervenção proposta centraliza-se, sobretudo na experiência da exploração do

corpo a partir da sua capacidade de gestualidade. Os gestos desse homem produzem afetos

quando encontram outros corpos, o que faz pensar na sua potência política, desnudo da

segurança e certeza do mundo cotidiano.

A partir de um chamado a organizações, movimentos sociais e sociedade civil, o

Coletivo realizou no dia 28 de março de 2011 o “rebatismo popular” do Centro Social Urbano

Presidente Médici para Edson Luís. Durante o momento foi realizada a leitura de uma carta

manifesto enquanto o nome de Médici era apagado por um dos integrantes do Coletivo que

logo em seguida escreveu com tinta vermelha o nome do estudante Edson Luís, morto no

mesmo 28 de março de 1968 por Policiais Militares em meio a manifestação estudantil.

(Figura 5)

Havia naquela ação uma coragem muito maior do que até eles achavam que teriam,

afinal era o rebatismo de um local público, era ir de maneira direta contra o poder do Estado

que decisivamente regulamenta o que pode ou não ser feito mesmo no espaço “público”. A

ocasião funcionou também como articuladora com outros movimentos, como a própria

Associação da Anistia 64/68 com mais de doze anos de atuação no Estado. Contou ainda com

a presença do Coletivo Curto-Circuito, Instituto Frei Tito, Rede Estudantil Combativa e

Classista, Organização Resistência Libertária e integrantes da peça teatral “Filha da Anistia”.

35 No presente trabalho há um capítulo que aprofunda as questões da performance em questão, por isso não será apresentada agora com riqueza de detalhes.

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Figura – 5: Rebatismo Centro de Cidadania Edson Luis

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.

No período do rebatismo, houve uma grande comemoração por ser uma ação que

consentia ao espaço outro significado, um movimento que até então a cidade não havia

experimentado. Trazia o peso de uma intervenção política, mas que se propunha ser antes de

tudo artística. Era um modo de dizer que outras pessoas participaram desse processo e isso é

o que sustenta a legitimidade da ação que mais uma vez tensiona os limites do público e do

privado.

Durante cerca de um ano o nome de Edson Luís permaneceu nomeando o Centro

Urbano. No ano seguinte o prédio seguiu abandonado pelo poder público, sendo desativado

logo em seguida. Uma das primeiras ações foi demolir a parte de concreto (Figura 6) onde a

pintura revelava o nome de Edson Luís nomeando o espaço. Mesmo diante de tais

circunstâncias, a ação ainda é lembrada com potência por muitos e fez perceber e desejar que

mais ações desse sensível ocorressem na cidade.

Figura – 6: Fachada Centro de Cidadania Edson luis Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2012.

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O Coletiva continua a realizar rebatismos tão potentes quanto o realizado no Centro

Urbano. Em outubro de 2011, um outdoor fixado bem frente ao 23º Batalhão de Caçadores do

Exército, localizado no bairro Benfica, estampava um chamado para encontro de

confraternização de oficiais da reserva, trazendo o seguinte texto: “relembrar é viver”. No

sentido de produzir contraponto e questionar o que orgulhosamente o exército relembra como

ato glorioso, o Coletivo propôs no mesmo dia e horário um “relembrar é viver” de mortos e

desaparecidos políticos. Na intervenção que tinha como proposta a ocupação do espaço, a

praça fora rebatizada com o nome de “Praça do Preso Político e Desaparecido”, recebendo

uma placa faz referência ao lugar além do busto de uma mulher desaparecida política. (Figura

7)

Na IX Roda de Conversa36 da Pesquisa In(ter)venções, Alexandre nos fala como

sendo um momento de tensão:

A gente tava produzindo a ação quando de repente veio um soldado perguntar o que a gente tava fazendo e se tínhamos autorização para intervir naquele espaço. Explicamos para ele o que era e que nosso objetivo não era de afrontar ninguém, fizemos o ato de forma tranqüila, mas mesmo assim plantaram dois soldados para vigiar o que fazíamos. (Transcrição da fala de Alexandre na Roda de Conversa no dia 04 de jun. de 2013).

Figura – 7: Rebatismo Praça do Preso Político Desaparecido

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.

36 Para ver as imagens da Roda de Conversa e ter acesso ao áudio gravado pela Zuada Rádio Livre acessar: http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/p/roda-de-conversa-fortaleza-comunicacao.html

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Em fevereiro do ano seguinte, o Jornal O Povo, ao produzir matéria para o

caderno de esportes, indicando locais de possíveis confrontos entre torcedores no entorno do

Estádio Presidente Vargas - PV, localizado no Benfica, cita a praça incorporando o nome

concedido pelo Coletivo durante a intervenção de rebatismo, Praça do Preso Político e

Desaparecido (Figura 8). A posição da mídia nesse caso, também legitima a ação e torna

visível a apropriação do nome pela cidade, não consistindo o rebatismo um mero ato

simbólico e pontual.

Figura – 8: Mapa cita Praça do Preso Político Desaparecido

Fonte: Matéria do Jornal O Povo cita Praça do Preso Político Desaparecido, 2012.

A partir do rebatismo da praça, surgiu a Feira da Memória que tinha como

objetivo, criar um espaço de convivência entre as pessoas da cidade e mesmo do bairro

Benfica. Ocupar a praça era reverter seu estado de abandono visível para criar um espaço de

memória. A feira seguiu por dois anos e acontecia sempre no primeiro sábado de todo mês

(Figura 9). Qualquer pessoa podia participar levando o que tivesse interesse em trocar, já

que a proposta não consistia em criar um espaço objetivando transações comerciais, mas um

espaço de escambo.

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Figura – 9: Feira da Memória – Praça do Preso Político Desaparecido Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2012.

Em novembro do mesmo ano, o Coletivo participou dentro da programação do II

Festival Latino Americano das Juventudes de Fortaleza. Além de realizarem a transmissão ao

vivo, direto do acampamento e das ações que lá aconteciam, o Coletivo participou ainda de

debates sobre o rebatismo popular e a importância dessa discussão como também de ações

que partissem de movimentos juvenis. Como já citado anteriormente, durante a transmissão o

Coletivo realizou a leitura dos nomes de 140 mortos e desaparecidos políticos pela ditadura. O

momento no acampamento foi a possibilidade de encontrar a cidade e ampliar os fazeres do

Coletivo, inclusive encontrando outras experiências locais e de fora do estado.

As articulações do Coletivo foram ampliadas e assim levadas a outros estados. A

visibilidade que o Coletivo foi adquirindo, fizeram com que o Coletivo, ainda em 2011, fosse

um dos convidados a participar no SPA Artes, em Recife, com a Intervenção Urbana Pelo Ar,

por meio da freqüência 103,5 e com oficina de Rádio Arte apresentando como proposta

discutir mídia livre e questões relacionadas à arte no Brasil. (Figura 10)

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Figura – 10: Intervenção Urbana Pelo Ar – SPA das Artes Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2012.

No mesmo ano, o Coletivo participou da programação de outros eventos também

propondo intervenções, como a distribuição de arquivos relacionados ao período, letras de

músicas emblemáticas até arquivos sigilosos do DOPS, dentro do Encontro Nacional de

Advogados Populares (RENAP) realizado em Fortaleza. Participou ainda com a Intervenção

Urbana pelo Ar, na programação do II Manifesta. O evento reuniu diversos artista, coletivos e

grupos do cenário local, seguindo a inspiração no Movimento Massafeira, realizado em 1979

e que naquele período também reuniu diversos artistas cearenses, no Teatro José de Alencar,

em um movimento musical que apresentava a grandeza dos artistas locais (ROGÉRIO, 2011).

Em 2012 o Coletivo começou a pensar em proposições artísticas em espaços

edificados, como galerias e museus, levando a linguagem da rua para o cubo branco.

Pretendiam fazer desse espaço algo inventivo, que extrapolasse o plano e o fixo que evocam

tais espaços. É também nesse período que o Coletivo passa a se interessar e buscar no plano

das formas, mais especificamente em editais de arte, possibilidades de ir mais longe

geograficamente, produzindo intervenções também em outros estados.

Ainda em 2012, o Coletivo foi convidado a participar da programação do projeto

Percursos Urbanos, organizado pelo Centro Cultural do Banco do Nordeste. A ação teve como

propósito explorar diferentes espaços do território de Fortaleza por abrigarem essas memórias

que são desconhecidas por muitos de seus moradores. O percurso deu então a dimensão

existencial à cidade, muito mais que sua dimensão geográfica a partir de seus planos e mapas.

Logo em seguida o Coletivo participa do edital de Exposição/Ocupação da Galeria

Antônio Bandeira. Selecionado, o Coletivo permanece durante um mês com exposição sobre

os mortos e desaparecidos do período e também com as transmissões ao vivo da programação

diária e diversificada, mobilizando artistas locais e movimentos da sociedade civil ao diálogo.

Também foram expostos trabalhos de coletivos e artistas do país que trabalham a temática da

ditadura como o Coletivo Quem (Figura 11). A exposição recebeu, principalmente, a visita de

estudantes da rede municipal de educação, um momento que funcionou enquanto suporte

educacional.

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Figura – 11: Exposição/Ocupação Galeria Antônio Bandeira Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2012.

Já com a aprovação no Edital Rede Nacional Funarte Artes Visuais – 8ª Edição

(2011), o Coletivo segue para as cidades de Campinas (SP) e Marabá (PA) onde desenvolveu

oficinas de rádio arte além da realização de intervenções. A escolha dos estados locais se deu

por serem linhas latentes de resistência37 durante o período. Para além, Campinas configura-se

como espaço de referência para os movimentos de rádio livre e alternativa frente às

experiências nacionais, e Marabá por ter sido uma das regiões a abrigar um dos maiores focos

de resistência durante o período: a Guerrilha do Araguaia, episódio que movimenta a

sociedade na busca por esclarecimentos e responsabilização do Estado pelos diversos crimes

cometidos contra militantes e moradores locais.

O intercâmbio não só aproximou o Coletivo de articulações nacionais, como também

do peso real que tem os dois lugares, das histórias e vivências que permanecem como uma

“nuvem negra naquele lugar” que carrega o peso da história, ver (Figura 12). Marquinhos em

conversas, falava o quanto aquele lugar tinha um peso que não era possível explicar:

Andar nas ruas lá era uma coisa muito estranha, como se os conflitos ainda existisse lá sabe? Se bem que lá ainda existem pessoas que naquele período ajudavam o exército a caçar guerrilheiros no mato. Até hoje mandam matar pessoas que desobedecem ou fazem algo que desagrade. É muito louco ta lá

37 Para acessar o cronograma das atividades desenvolvidas acessar: http://www.funarte.gov.br/wp-content/uploads/2012/04/Cronograma-de-atividades_Projeto-Intervencao-urbana-pelo-ar_2012_Rede-Nacional-Funarte-Artes-Visuais-8a-Edicao_Grupo-Aparecidos-Pol%C3%ADticos_CE.pdf

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e saber que várias pessoas morreram naquele lugar. (Transcrição da conversa com Marquinhos na sede do Coletivo em maio de 2013).

Figura – 12: Coletivo Aparecidos Políticos em Marabá

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2012.

No mesmo ano o Coletivo participou do intenso calendário de atividades da 33ª

Caravana da Anistia, que já havia percorrido diversas cidades do país. Ainda na programação,

o Coletivo entregou uma bandeira com a assinatura do grupo para compor a colcha de retalhos

de movimentos sociais e organizações que lutam pelo direito à memória, verdade e justiça no

país.

Os chamados cada vez mais recorrentes à compor mesas de discussões e outros

importantes debates locais, articulados à movimentos sociais, davam a dimensão da tamanha

articulação e visibilidade que o Coletivo havia alcançado. Ao mesmo tempo, assinalava para

um momento muito mais político do Coletivo do que propriamente artístico. Com uma grande

demanda de participação em eventos e também a partir da participação no Comitê Estadual de

Memória Verdade e Justiça, as ações na rua foram se tornando cada vez mais pontuais.

A proposta de construir intervenções em espaços físicos segue. A convite da

Associação da Anistia 64/68 realizam a Exposição Prestes no Ceará, na própria sede da

Associação que contou com a presença de ex-gerrilheiros, estudantes, personalidades políticas

além de Anita Leocádia Prestes, filha dos militantes Olga Benário e Carlos Prestes. Na

ocasião, Anita falou do percurso de seu pai no Ceará e também da necessidade de tornarmos

sempre à temática da ditadura na perspectiva de não tropeçarmos nesse passado. Na imagem a

baixo, (Figura 13) segue uma composição que apresenta a movimentação em frente a

Associação 64/68, o momento em que Anita fala, além do Coletivo que pousa ao lado do

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grafite do rosto de Carlos Prestes e Alexandre Mourão em um momento de fala. No mesmo

dia Anita lançou o livro Luiz Carlos Prestes – o combate por um partido revolucionário (1958

- 1990).

Figura – 13: Abertura da Exposição Prestes no Ceará Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2013.

São convidados pela Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza em parceria com a

Butuca Produções, à participarem juntos da construção de um espaço destinado à memória em

um dos lugares que foi centro clandestino de tortura, a Secretaria de Cultura de Fortaleza,

lugar que abrigou a sede da Polícia Federal. A construção do memorial da resistência abriga a

exposição permanente “Arquivo das Sombras” e apresenta um conjunto de imagens, áudios,

registros fotográficos, marcas deixadas nessa cela que contam as experiências vividas por

presos políticos.

Um painel criado pelo Coletivo e que fica localizado na entrada da exposição, leva

imagens de presos e desaparecidos por meio da técnica do estêncil e fazendo uso de múltiplas

cores. Por cima da imagem o Coletivo instalou um imenso vidro, e do lado uma caneta de cor

branca que possibilita a intervenção dos visitantes que não são só espectadores, mas

participam da obra a partir do momento que passam a escrever nesse vidro. As frases são

várias, desde “ditadura nunca mais” a “Viva Marighella”. Na imagem a baixo (Figura 14) é

possível ver inscrições sobre a superfície e ao fundo as imagens dos desaparecidos criadas a

partis do estêncil. As imagens agora são coloridas, não mais a partir da tinta preta, como era

visto nas ruas.

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Figura – 15: Intervenção UECE Itaperi – Jornada para Não Esquecer Jamais

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2013.

Dentro da mesma programação do mês de rememoração, e também contando com a

presença do GAC, o Coletivo por meio de convites a pessoas próximas ao Coletivo, artistas,

coletivos, membros da sociedade civil organizada além de ex-presos políticos, realizou uma

intervenção no Mausoléu Castelo Branco, local construído e mantido pelo Estado para

guardar os restos mortais do ex-presidente e ditador Humberto de Alencar Castelo Branco.

A intervenção, detalhada anteriormente, consistia em colocar barcos de papel com as

imagens de desaparecidos e iluminados por uma vela, em uma piscina que ornamenta o

entorno. Em meio a discursos e gritos de “presente”, a intervenção chamava a atenção ao

mesmo tempo em que despertava a curiosidade de quem passava pelo local. A ação, que não

havia sido informada aos responsáveis pela segurança do Mausoléu, foi assistida atentamente

por um grupo de policiais presentes no local.

Realizando o caminho inverso, seguindo a proposta do edital, o Coletivo GAC

recebe os Aparecidos Políticos em Buenos Aires onde também realizaram intervenções e

participaram de debates e outros eventos na cidade. Na ocasião os integrantes Marquinhos,

Stella e Alexandre, puderam conhecer e sentir as disparidades existentes nos dois países

quanto ao reconhecimento de seus mortos pela ditadura. Buenos Aires com seus memoriais e

museus parece preservar a memória daquele período, fazendo caber esses mortos entre os

sobreviventes do horror do Estado. A figura 16, mostra algumas das atividades realizadas pelo

Coletivo

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Figura – 16: Intercâmbio Argentina

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2013.

Pensando em pulverizar ações e desejos de intervenção, além de seguir o calor das

revoltas nacionais e também locais no ano de 2013, o Coletivo organiza, por meio da parceria

com a Pesquisa In(ter)venções, o Curso de Ativismo Criativo (Módulo I), com “aulas” sobre

arte política e ativismo criativo direcionadas à movimentos sociais, militantes, estudantes,

educadores, “jovens da periferia”. O texto abaixo é esclarecedor quanto aos objetivos do

curso:

A ideia é que o curso seja uma maneira de apresentar algumas experiências de Ativismo Criativo no intuito de possibilitar a criação de formas de intervenção artística ou manifestação política afim de convergi-las com as lutas sociais locais; como também aprofundar algumas práticas já em desenvolvimento, atentando para os riscos de não sobrepujar a arte à política e vice-versa.40

Além de textos e debates sobre as possibilidades de explorar as intensidades

cotidianas por meio da arte política, o curso contou com oficina de estêncil e vivência no

acampamento Ocupe Cocó. Na figura 17 é possível ver momentos teóricos e práticos do

curso, além de um momento do Coletivo no acampamento.

Existem muitas questões a serem debatidas quanto a proposta do curso, abordagem

metodológica, questões que pude perceber durante o acompanhamento das atividades, no

entanto não adentrarei em tais questões nesse momento. O que realmente interessa e que pude

perceber a partir do curso, é o quanto as possibilidades de criação apresentadas pelo Coletivo

40 Texto retirado da página do Coletivo em rede social. https://www.facebook.com/photo.php?fbid=403813989738835&set=pb.100003307123208.-2207520000.1407826913.&type=3&theater

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interessou e instigou muitas pessoas da cidade, como também de outros estados. Surgiram

demandas de coletivos em outros estados querendo a realização do curso.

Foram cerca de vinte participantes e o Coletivo contava ainda com uma lista de

espera, mesmo sendo esse um módulo mais teórico. Existiu no Coletivo o desejo de lançar o

Módulo II, o que seria “um momento mais prático” nas palavras de Alexandre. No entanto a

falta recursos próprios para que isso aconteça é um dos entraves que o Coletivo enfrenta.

Figura – 17: Curso Ativismo criativo Fonte: Pesquisa direta, Sabrina Késia de Araújo Soares, 2013.

.

Em outubro de 2013, o Coletivo passa a contar com um espaço físico, uma espécie

de ateliê dentro da Associação da Anistia 64/68, denominado de Aparelho, fazendo referência

ao local, que no contexto da ditadura, era usado como refúgio pelos grupos políticos

clandestinos. O local é onde ocorrem os encontros semanais, armazena-se material de criação

e também onde se realiza algumas transmissões da Zuada Rádio Livre.

A partir da aproximação, agora física, com a Associação 64/68, o Coletivo enxerga a

possibilidade de fazer com que as pessoas da cidade, sobretudo as juventudes, conheçam o

espaço que abriga um acervo de livros, jornais e documentos do período, além de ser ponto de

encontro de ex-militantes que sobreviveram ao regime ditatorial. É também dos desejos do

Coletivo que o espaço possa ser também um lugar de aproximação de outros grupos, coletivos

de arte e movimentos sociais, evidenciando a construção de redes de criação.

Nesse sentido, é interessante pensar que como afirma Salles (2008), que nunca

atuamos sozinhos no processo de criação, o processo se constrói por meio de uma rede

formada por referências, encontros, aproximações. Essas interações são complexas e formam

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um conjunto que apresenta infinitas possibilidades ao Coletivo. Nas relações estabelecidas

com esses grupos, bem como na abertura do espaço, fica evidente o quanto o Coletivo

acredita que não pode atuar de modo isolado e que as redes de conversação são importantes

para ligar os processos de luta por memória com outras questões.

A inauguração do Aparelho (Figura 18) contou com exposição do Coletivo em

parceria com o artista cearense Rafael Lima Verde expondo uma série de ilustrações chamada

Sacro Rebellis. As ilustrações criadas por Rafael para aquele momento, tomaram, em

momento posterior, o Farol Antigo do Mucuripe41, gerando grande discussão sobre

apropriações dos espaços públicos e o abandono de equipamentos pelo órgãos competentes.

Figura – 18: Exposição Transições Latinas – Inauguração do Ateliê

Fonte: Pesquisa direta, Sabrina Késia de Araújo Soares, 2013.

A proposta de ser um espaço que pode ser apropriado por outros grupos conseguiu se

fortalecer e o Coletivo, além de realizar suas reuniões, festas e exposições nesse lugar abriu as

portas, junto às Associação, para que outras entidades e grupos pudessem realizar suas

atividades. São acolhidas no local, com periodicidade, as reuniões do Comitê pela

Desmilitarização, formações do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária Popular (Sajus)42

e reuniões do Levante Popular da Juventude. Sem contar em outras atividades que acontecem

esporadicamente.

41 Para mais informações sobre a intervenção realizada no Farol do Mucuripe acessar: http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2013/11/19/noticiasjornalvidaearte,3164851/artistas-grafitam-farol-do-mucuripe.shtml 42 Grupo dos estudantes do Curso de Direto da Universidade de Fortaleza – Unifor.

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Em 2014 as propostas de intervenção na rua são retomadas pelo Coletivo. No ano

que completa os cinquenta anos do golpe, mais especificamente no mês em que se rememora

o golpe militar, o Coletivo volta a realizar intervenções nas ruas de Fortaleza. São propostas

três ações que ganham destaque e reascende no Coletivo, o desejo de voltar a produzir

intervenções sensíveis nos espaços da cidade. Na primeira intervenção o local escolhido foi o

muro do 23º BC localizado na Av. 13 de Maio no bairro Benfica, um ex-centro de tortura do

exército.

Afixar espelhos com imagens de mortos e desaparecidos, essa era a ação que

homenageava as vítimas do horror e todos os que sofreram inesgotáveis sessões de tortura

naquele local (Figura 19). Na calada da madrugada o muro do 23º BC recebeu as imagens dos

desaparecidos colocadas em espelhos. No dia seguinte, logo ao amanhecer, como já se

esperava e imaginada, as imagens já não compunham o muro, evidenciando a efemeridade da

ação. Os registros logo foram disponibilizados na rede de internet, abrindo e também fazendo

com que as pessoas pudessem relembrar a data, e mais especificamente, os mortos e

desaparecidos.

Figura – 19: Intervenção 01 de abril - 2014

Fonte: Pesquisa direta, Sabrina Késia de Araújo Soares, 2014.

A segunda intervenção será melhor detalhada em um dos capítulos, pois se trata de

um processo vivido, o que aponta diversas questões as quais merecem um olhar apurado. A

intervenção teve como proposta retornar a trabalhar imagens fotográficas de mortos e

desaparecidos. Agora não mais fotografias de documentos de identificação ou arquivos

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policiais, mas imagens familiares que mostram essas pessoas em suas vidas, em seus

cotidianos, antes dos acontecimentos. Trata-se de imagens que só foram possíveis de ser

conseguidas pela aproximação do Coletivo com membros familiares.

Foram fixadas duas grandes imagens, uma delas um homem sentado em uma cadeira

de balanço em uma varanda, a fotografia de Bergson Gurjão, imagem cedida pela irmã Tânia

Gurjão. Já na segunda imagem, Iure Xavier, irmão de Iara Xavier, militante na década de 70

da Aliança Libertadora Nacional.

As imagens foram fixadas em baixo de um viaduto de intenso fluxo de pedestres

localizado na Av. Aguanambi em Fortaleza. No momento de fixação pessoas curiosas

perguntavam do que se tratava, quem eram aquelas pessoas. Outras, apenas observavam de

longe, na tentativa de entender.

A terceira intervenção, proposta dentro do 65º Salão de Abril, também corresponde a

um dos capítulos a serem contados enquanto processo dentro do presente trabalho. Por esse

motivo, detalhes e problematizações estarão presentes no decorrer do referido capítulo.

Denominada de Operação Carcará, a proposta consistia em lançar de um helicóptero

cerca de 140 miniparaquedas de brinquedo com os rostos dos desaparecidos no entorno do

23ºBC, ação essa que seria acompanhada por artistas, curadores e pessoas presentes no

espaço. Diante de um aparato do exército, capaz de mobilizar o fechamento do espaço aéreo e

ordenar que a aeronave contratada para realizar o lançamento dos miniparaquedas pousasse, a

ação não havia encerrado por ali. Com horário marcado para acontecer, a mobilização de

curiosos, imprensa e também curadores do Salão acontecia em frente ao 23ºBC, que contava

com um intenso aparato dos soldados posicionados em suas guaritas além de carros com

homens armados. O Coletivo, “impedido de realizar a ação”, retornou ao Salão para contar o

ocorrido. O que o Coletivo provocou consistiu na possibilidade de tornar visível aquilo que

aparentemente não mais existe. Evidenciou ainda a potência da arte e o quanto as propostas

artísticas em meio aos espaços produzem tensões e resistência no seu sentido macropolítico,

de uma força reativa.

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3. IMAGENS, PERFORMANCES E TEXTOS COMO INSCRIÇÃO DA AUSÊNCIA – ANÁLISES DE “O QUE RESTA DA DITADURA”

A impossibilidade de dissociar os processos artísticos da vida cotidiana me leva a

construção de uma análise do percurso do Coletivo enquanto realizador daquilo que autores

como Márcio Seligman (2008), Moacir dos Anjos (2014), Angélica Mellendi (2014), Tania

Rivera (2014) e Leila Danziger (2014) tem tomado em suas análises, situando a arte

contemporânea produzindo a inscrição da violência.

Essa possibilidade de inscrição vem respondendo aos movimentos de violência que

marcam o cotidiano e fraturam a sociedade. A resposta à esses movimentos já não parte da

própria violência, o que sempre foi uma tendência muito comum e recorrente se observarmos

com atenção os processos sociais e políticos ocorridos ao longo de décadas no ocidente e

oriente. Mas é possível apontar que a arte agora é o principal dispositivo que responde a

contrapelo os recortes de violência que marcam a história e que de maneira inaceitável são

constantemente atualizadas no contemporâneo.

Aqui vale citar desde logo artistas e trabalhos renomados e conhecidos

internacionalmente que de modo sensível, reinstauram o real nos aproximando dele, de modo

que seja possível apreender não só com os olhos, mas a partir do campo dos afetos que

marcam o encontro entre corpos. Nesse sentido aponto para o trabalho da fotógrafa Cláudia

Andujar43 que ainda na década de 70 criou um ensaio fotográfico com os índios Yanomamis,

relegados ao esquecimento; ou mesmo do Chileno Alfredo Jaar que a partir do trabalho

Untitled desenvolveu uma exposição que nos coloca diante dos mecanismos de construção de

visibilidade social, narrando paralelamente em duas linhas do tempo distintas, os

acontecimentos de um mesmo período: o assassinato de cerca de um milhão de ruandeses e as

capas da revista Newsweek, um dos maiores meios de notícia do mundo, que no mesmo

período concedia destaque a outros acontecimentos banais do mundo.

Há ainda trabalho de artistas ligados diretamente a arte e memória como o de

Naomi Salomon, que por meio de exposição organizou objetos encontrados nos campos de

concentração nazista; do artista Horst Hoheisel44 que desenvolveu trabalhos conceituais

entorno do Holocausto e também sobre os regimes militares no Brasil, Uruguai e Chile; o

impressionante trabalho de Doris Salcedo que a partir de cadeiras presas no prédio do Palácio

da Justiça da Colômbia, narra o massacre ocorrido em 1985 naquele lugar. São trabalhos que

43 Para acessar imagens do trabalho acessar: http://povosindigenas.com/claudia-andujar/ 44 Para conhecer os trabalhos de Horst acessar: http://hoheisel-knitz.net/

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reúnem a potência da arte em criar perceptos, pensado como propõe Deleuze (2010, p.175),

enquanto “pacotes de sensações e de relações que sobrevivem àqueles que os vivenciam”,

logo uma potência que comporta a força do devir, e que pelo modo singular de tocar as

sensações, nos fazem enxergar esses acontecimentos de modo singular.

Os exemplos são inúmeros nessa linha de trabalho, mas o mais importante é refletir

o quanto essas criações têm conduzido a um importante papel político na construção de

identidades dispostas nas bordas da ordem global. São escolhas estéticas diversas que

apresentam toda potência de singularizar essas identidades, conceito que evoca processos de

afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outras percepções como indicam

(GUATTARI;ROLNIK, 1996; GUATTARI, 1992; GUATTARI, 2001).

Essa disposição artística tem nos reelaborado diante das mais terríveis práticas de

violência que inacreditavelmente são naturalizadas e se tornam invisíveis no cotidiano opaco.

Logo reelaboramo-nos no sentido de enfrentar a violência de modo criativo, sensível,

dialógico e consequentemente “não violento”45, pela capacidade da arte em lidar com as

diferenças que nos tomam, criando agregados sensíveis.

A arte agora puxa para si a tarefa de inscrever o desaparecimento, a dor e a

violência, construindo uma espécie de reelaboração da perda por meio de mecanismos

capazes de fazer com que essa mesma dor adquira novos sentidos. Um movimento de

transformação, onde dor e o sofrimento são potencializados em algo maior. Arte engajada,

arte ativista, arte social e arte política, termos que nos conduzem a pensar que a arte não está

fechada em si, mas atrelada à outros dispositivos e, sobretudo, comprometida com uma ordem

do sensível e da vida, que aqui se apresenta enquanto vida comum.

A proposta é refletir sobre esse movimento que tem marcado as artes

contemporâneas, assumindo a necessidade de inscrever essa “memória do mal” em uma

sociedade marcada pela ilusão de superação, sobretudo no que desrespeita as situações pós-

conflitos políticos e aqui me volto para a pós-ditadura militar especificamente no Brasil.

Cada artista tem apontado para um fato esquecido no tempo, rasurado pelas

memórias hegemônicas, ao passo que lançar um olhar singular para esses fatos tem produzido

narrativas diversas em contraposição às formas comuns de narrar esses acontecimentos. Como

fala Mellendi (2014, p.39) esses novos processos do contar fazem com que esses fatos sejam

45 É interessante pensar que o termo violência tem distintas formas e dimensões. Interessa pensar o não-violento no sentido de não gerar danos físicos, aquilo que não afeta o corpo em sua forma física, o que não exclui a possibilidade de produzir uma violência psicológica.

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“colocados em nossas mãos como se fossem folhas secas ou borboletas mortas. Quiça

possamos revivê-las, deixá-las perfumar e voar por aí.”

É o que tem criado o Coletivo Aparecidos Políticos com suas escolhas estéticas e

políticas, produzindo intervenções que transitam entre a denúncia e o lembrar dos mortos e

desaparecidos pela ditadura civil-militar 1964. São proposições que contestam as práticas

repressoras do Estado no contemporâneo que por meio de ações e discursos tendem a

conceber o pensamento da “eliminação do inimigo”. Aqui tem interessado pensar as potências

de afeto que permeiam o trabalho do Coletivo e especificamente o quanto esses processos

evocam a instauração de ficções, tensões, a produção de novas relações, aspectos que como

veremos adiante, Rancière (2010) concebe serem comum tanto no campo da política como no

campo das artes.

Penso ser importante situar os movimentos que me fazem fugir nesse momento

inicial da proposta metodológica do presente trabalho. Mesmo apostando na pesquisa

intervenção, acompanhando e intervindo com o Coletivo Aparecidos Políticos ao longo de

dois anos, indico a necessidade de lançar o olhar para a primeira intervenção realizada pelo

Coletivo e que subsidia compreender as transformações ocorridas na forma singular de

inscreverem a violência por meio de construções estéticas.

A construção de uma análise da intervenção “O que resta da ditadura” é também

uma forma de operar os conceitos presentes no trabalho do Coletivo sendo eles: arte política,

memória (coletiva/individual) e cidade. Três aspectos que conduzem as produções do

Coletivo e que marcam os novos modos de redesenhar o urbano por meio da arte política

enquanto esse possível.

A opção por apresentar o trabalho, que é um dos primeiros do Coletivo, não

acontece pela sua perspectiva cronológica, mas sim pela enorme potência na composição da

ação que aglutina escrita, performance e imagem como aspecto único. Esse é também o

primeiro momento de contágio com o trabalho do Coletivo.

Não posso deixar de expor minhas inquietações enquanto alguém que pesquisa e se

implica, diante desse modo de recortar os acontecimentos do mundo e o quanto essa

intervenção tem a capacidade de nos mobilizar a pensar os contextos urbanos e também o

campo das artes visuais, que cada vez mais agência novas possibilidades de criação.

Nesse sentido, buscarei não uma leitura partilhada de cada expressão, mas ao dar

contornos específicos a cada uma delas, até porque é necessário e se mostra impossível a

realização de uma leitura única, proponho então pensar o quanto a arte se vale cada vez mais

de processos híbridos no construir de um percurso. O que o Coletivo tem realizado é recorrer

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a criação que toque no âmbito da política, de uma questão que nos sensibiliza pensar a história

do país e o quanto ainda estamos imersos nesse passado. Tentarei a seguir, apresentar em

certa medida, as potências presentes na intervenção, constantemente revisitada por intermédio

do registro audiovisual, e que a cada momento incorpora novos significados. Afetos que

sempre produzem, no entanto em intensidades distintas.

3.1 “O que resta da ditadura” e seus afetos intensivos

Como já citado anteriormente, “O que resta da ditadura” aconteceu em 2011 dentro

da programação da Jornada Para Não Esquecer Jamais, evento realizado todos os anos durante

o mês de rememoração do golpe militar. O Coletivo Aparecidos Políticos, em parceria com o

Coletivo Curto-Circuito - coletivo ligado a performances e as implicações da arte no espaço

público urbano - disparam a intervenção “O que resta da ditadura”46, realizada nas ruas de

Fortaleza. Naquele momento, a produção da performance pelo Coletivo Curto-Circuito tinha

como âncora a realização de uma performance para a exposição Sala Escura da Tortura47,

com curadoria e produção do Instituto Frei Tito de Alencar, apresentada na Assembléia

Legislativa do Estado do Ceará.

Durante a intervenção fotografias de Frei Tito, Ieda Santos, Áureliza, Dinaelza

Santana, Lucia Maria, Antonio Theodoro, Saraiva Neto, Jana Moroni, José Montenegro e

David Capistrano, desaparecidos e mortos pelo regime civil-militar de 1964 que integraram,

naquele momento, a paisagem visual da cidade. Nomes e identidades que permaneceram por

muito tempo entre a linha da opacidade, entre a visibilidade familiar e a invisibilidade social.

Essas imagens e nomes são partes de uma memória fragmentada e contribuem na construção

de uma memória coletiva, como fala Halbwachs (2004) são pontos de vista, ramificações que

organizadas em rede constroem essa memória maior.

Foram utilizadas fotografias dos mortos e desaparecidos a maior parte deles

constando em listas oficiais. Penso que essa opção do Coletivo já se coloca como aspecto

interessante de se pensar. No país o que marca, uma das grandes tensões, quando se fala nos

mortos e desaparecidos pelo regime, é o não reconhecimento de todos os atingidos pela

ditadura. Pessoas que não tinham, necessariamente, envolvimento político, mas que do

46 Link de acesso a intervenção: https://www.youtube.com/watch?v=xi1nkLPESWo 47 Para acessar o livro da exposição Sala Escura da Tortura: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/tito.pdf

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mesmo modo sofreram torturas, foram mortos ou continuam desaparecidos, o que amplia o

conceito de desaparecido não restringindo aos militantes políticos.

É importante citar ainda, nomes e casos de mortos ou desaparecidos que circulam

nas rodas de debates, nomes esses amplamente reconhecidos pela atuação, mas que por muito

tempo não integravam a lista oficial ou se quer eram reconhecidos. No entanto Alexandre,

integrante do Coletivo, fala que a escolha dos nomes/imagens não se deu por serem ou não

oficiais:

A nossa intenção nunca foi de personificar um morto e desaparecido em específico. Sabíamos desde sempre que muitos daqueles nomes integravam a lista oficial e que há muitos anônimos que não são lembrados. Mas nesse caso em específico estabelecemos alguns critérios, como inserir os nomes de mortos e desaparecidos cearenses assim com o gênero feminino. Em alguns pontos estabelecíamos relação: em frente a Casa do Estudante colocamos o Antonio Theodoro porque foi lá que ele estudou. Próximos aos centros de tortura colocamos os cearenses desaparecidos. (Transcrição de entrevista realizada com Alexandre Mourão, em 10.10.2014)

Talvez a dimensão da escolha seja a primeira tensão referente ao trabalho do

Coletivo, já que produzir um recorte sensível do mundo nos impele consequentemente ao ato

de escolher, de preferir um ou outro. Ao mesmo tempo é importante citar o quanto a arte

trabalha com recortes do mundo, e ao que se apresenta o escolher, nesse caso, não se

configura como esquecimento consciente. No entanto vale a reflexão se a escolha,

especificamente na intervenção proposta pelo Coletivo por nomes oficiais, não seria um

segundo momento de exclusão desses mortos e desaparecidos, já que há tantos outros nomes e

histórias nesse processo que merecem ocupar o mesmo lugar de visibilidade. Em

contraposição é como se a opção pelos nomes oficiais, pelos casos que se tornaram

conhecidos, fosse um modo de afirmar que esses rostos tivessem se tornado a “face” de

milhões “sem rosto” e “sem nome” que não integram as listas oficiais.

Desses escolhidos, as fotografias selecionadas, ao que indica retiradas de arquivos

familiares ou mesmo de documentos, foram ampliadas pelo Coletivo na busca de produzir

contraste com o espaço urbano a partir de sua fixação nos muros. Na verdade, essa estratégia

do Coletivo é como quem deseja dar a esses invisíveis a verdadeira dimensão que lhes cabe na

sociedade.

Vale citar que a identidade visual ganhou reforço a partir da escrita em tinta preta e

vermelha, do nome desse morto ou desaparecido, seguido da pintura “morto pela ditadura” e

“desaparecido pela ditadura”, fragmentos que vem a indicar o rastro sutil de ausência e

presença paradoxalmente. Nesse sentido, a escrita também cumpre o papel de imagem

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revelando aspectos não só verbais como também simbólicos, dando ainda mais sentidos às

fotografias dispostas nesses espaços, que como um grito sufocado emerge, irrompem no

cotidiano desse tempo presente.

É a partir da escrita do nome que se evoca a possibilidade de individualizar, nomear

esses invisíveis que por muito tempo se encontraram além da linha abissal, termo cunhado por

Santos (2007) para distinguir visíveis e invisíveis dos processos sociais. Para o autor, do outro

lado da linha “há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética” (2007, p.04).

Para Rancière (1996, p.37) são seres sem nomes, logo “aquele que não tem nome não pode

falar” emite apenas ruídos de prazer e dor ao invés de palavras.

A reflexão de Rancière (1996) nos remete de imediato a pensar o quanto os últimos

trinta anos o ato de silenciar consistia em enclausurar imagens, sons e cheiros do sofrimento,

para que o tempo cronológico, enquanto aliado do Estado, cumprisse o papel de apagar essas

marcas do passado. Assim o ruído é consisti na tentativa exasperada da memória se sobressair

e reconhecer os que tombaram nesse caminho como os sem nomes, os sem rostos e os ruídos,

constantemente presentes entre nós e nos espaços da cidade.

É nesse sentido que o uso do nome se torna significativo para esses desaparecidos,

que durante muito tempo sobreviveram na clandestinidade, relegando seus nomes. Agora o

nome parece evocar a própria existência, a possibilidade de ser reconhecido pela sua

identidade oficial. É como se a possibilidade de ser chamado pelo nome apresentasse várias

palavras relacionadas ao período e a sua ausência, nomeando em meio aos acontecimentos, os

danos desse período. Nomear pode ser tomado como ato de conceder a palavra ou mesmo a

premissa de ser visto e ouvido na ágora (ARENDT, 2010).

Simultâneamente a escritura dos nomes e frases nos muros, se cria uma performance

no mesmo ambiente. Um homem encapuzado vestindo calça jeans e camiseta, vestes que

também nos remete a um tempo-espaço anterior. Nos movimentos que obedece a um tempo

lento, o performer leva as mãos à cabeça e põe a girá-la em um gesto sufocante, como quem

tenta se libertar do capuz, indumentária comumente utilizada nas práticas de tortura durante o

regime ver (Figura 20). Ou ainda a performance joga com a relação do corpo e tempo

presente, um corpo sufocado pela velocidade e urgência dos processos urbanos intermitentes.

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Figura – 20: Performance homem encapuzado -“O que resta da ditadura”.

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.

O gesto lento vai de encontro às questões que tomam a cidade e que também

perpassam pela questão do corpo, que necessariamente “precisa” responder aos estímulos

desse espaço com gestos que correspondam a velocidade do mesmo. Na intervenção, o corpo

responde a partir da ordem do homem lento, do qual fala Santos (2007), se referindo a

materialidade do corpo para mencionar a experiência na tessitura urbana. São lentos por

tomarem um ritmo outro, negando a velocidade imposta pelo contemporâneo que promove o

anestesiamento dos corpos nos cotidianos urbanos. No entanto, essa lentidão não se refere a

um tempo objetivo, mas subjetivo, um tempo em que é possível ver e perceber melhor do que

qualquer outro essa cidade e seus espaços, para além das fabulações imagéticas que nos

tomam, como afirma Santos (2007).

A performance joga com tempos distintos: se refere ao passado, aos acontecimentos

contidos nesse tempo anterior, mas ao mesmo tempo nos toma no presente e nos faz pensar

como nosso corpo encontra esse outro corpo, e como esse corpo encontra o corpo urbano a

partir da lógica que rege o tempo cronológico nesses espaços.

Em outro momento um homem sentado em uma cadeira vestindo apenas uma

cueca, tem as mãos amarradas para trás, os olhos vendados por um pano vermelho e o

tornozelo preso as pernas da cadeira (Figura 21). Nessa outra performance não há qualquer

reação, apenas a inércia do corpo que pela fisionomia, possível de ser visualizada nas

fotografias retiradas do vídeo, mostradas a seguir, parece não mais esboçar qualquer reação

perante a situação. É como se esse corpo reelaborasse sua forma de resistir, agora por meio do

silêncio que também nos diz muito sobre esse processo.

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Figura – 21: Performance homem sentado -“O que resta da ditadura”.

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.

Durante as duas performances o que existe são apenas os gestos de corpos, em

processo de afetação, e a ausência desses mesmos gestos, mas que pela construção comportam

a mesma intensidade, produzem afetos cada uma ao seu modo.

Em meio aos ruídos do espaço público, vestígios de um silêncio que marcam as

situações de violência no cotidiano desses espaços. Silêncio que não significa uma mera

ausência, mas “ato de escapar à responsabilidade de manter a memória que sustenta o mundo.

Esquecimento, memória e responsabilidade se interpenetram e formam, dessa maneira, uma

tríade que edifica e mantém a condição humana”. (NASCIMENTO, 2011, p.95)

Por meio do vídeo é possível ver as diversas reações provocadas nos transeuntes.

Alguns passam apressados sem olhar. Outros olham discretamente e seguem o caminho, mas

há aqueles que acometidos pela curiosidade e afetados pelas imagens e gestos que compõe a

intervenção, querem chegar mais perto, perguntar, saber do que se trata e se deixar afetar.

O estranhamento é, no entanto, o que marca e parece inevitável diante de situações

que nos desestabilizam. Talvez escrita, imagem e performance não sejam suficientes perante

os pormenores dos acontecimentos uma vez que há muitos detalhes em meio ao híbrido que

nos puxam à curiosidade, que nos impelem a chegar ainda mais perto. Alexandre Mourão fala

de algumas reações mais fortes:

Havia obviamente muito estranhamento e curiosidade. Algumas foram marcantes como a de um jovem, de nossa idade aproximadamente. Ele se aproximou da gente perguntando o que era aquilo que fazíamos. Chegamos no assunto “ditadura militar” e ele nos revelou que não sabia o que havia sido a “ditadura”. Outra reação bem interessante foi em frente a Casa do Estudante, local onde o desaparecido político Antonio Theodoro viveu e presidiu. Fixamos a imagem do mesmo em frente a casa e iniciamos a performance. Foi então que o presidente do espaço chegou pra gente bastante contente em nos ver realizando aquele trabalho ali, de alguém que

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foi tão significante praquele espaço. (Transcrição de entrevista realizada com Alexandre Mourão, em 10.10.2014)

Em um campo aberto de sentidos, as experiências e o encontro de corpos parecem

trazer à tona as intensidades vividas nesses espaços, e o quanto o outro é por sua vez

ressignificado, a partir da criação de novos contextos e na intervenção do Coletivo a partir dos

contextos urbanos.

A performance a partir do que Cohen (2002, p.704) indica, corresponde a

experiência do movimento onde as fronteiras entre arte e vida são borradas dando conta de um

caráter mais radical, capaz de ampliar as fronteiras da experimentação artística encarando

enquanto experiência de vida. É uma vivência que dá margem a busca pela

desterritorialização por meio de processos artísticos.

Ainda segundo o autor, a performance prescinde qualquer elemento prefixado se

valendo da liberdade no ato de criação, o que nos põe a pensar que os gestos do performer se

apresenta como sendo um campo aberto de criação e nunca uma representação, cópia fiel de

um acontecimento.

Reside na arte essa capacidade de nunca se fundir por completo no real, mas sim de

se difundir, na perspectiva de uma criação. É nessa intenção que a performance abriga uma

contextualização, leituras de espaços e gestos de modo singular e que parte desses processos

de criação que também a imersão do performer e os modos como esse encarna os processos

de vida.

Nesse sentido, a construção da performance na intervenção do Coletivo parece

conseguir, se não preencher, minimizar a ausência de imagens de torturas que tem

representado um buraco na história e nos registros visuais do país. Essas imagens,

reconhecidamente difíceis de serem processadas, precisam compor a memória visual desse

momento para que seja possível criar condições de interpretação e considerar os

acontecimentos enquanto parte do processo histórico-social e não um acidente de percurso,

como aponta Dias (2012) a cerca das considerações errôneas que acabam sendo realizadas

acerca do regime militar.

A performance, na intervenção proposta, corresponde a um ato de criação que se dá

a partir da narração verbal, do relato de torturados que carregam a construção dessa imagem

na memória individual e as marcas no corpo. Enquanto resultado de um processo artístico

livre, a performance se constrói em cima tomando como referência os elementos verbais,

reelaborando e também levando em consideração as experiências individuais do performer.

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São gestos que carregam a “silenciosa violência” praticada durante as sessões de

tortura e que no espaço da cidade são recriados com potência de afeto, possíveis pelo encontro

entre corpos. Corpos que como fala Deleuze (1978) residem neles a potência de afetar e ser

afetado ao mesmo tempo, como numa espécie de mistura de corpos que entram em processo

de afecção. É, portanto, “uma mistura de dois corpos, um corpo que se diz agir sobre outro, e

um corpo que recolhe o traço do primeiro” (1978, p.06).

São performances que extrapolam o regime da representação e criam um modo

singular de perceber que os gestos falam de uma violência contra muitos corpos, nesse sentido

a intervenção parece transitar entre o individual e o coletivo simultaneamente, criando fissuras

no próprio modo de pensar. Busco nas reflexões de Gil (1997, p.35) pensar que o “corpo não

fala, faz falar” e tomo o corpo nessa performance como o que produz essa fala, diz sobre

horror da tortura, do silêncio e do invisível, transformado o gesto em muitas vozes quando

deslocado para o espaço comum, expropriando memórias privadas para compor a construção

de uma memória coletiva.

Esse mesmo corpo, que outrora passava pela instrumentalização da vida, corpos

docilizados (FOUCAULT, 2008), agora ocupam os espaços públicos predestinados à vida

comum. São corpos que desobedecem a predeterminação de tempos, movimentos e

enunciados para alcançarem a subjetivação política, aqui entendido como ações que

reconfiguram o campo da experiência sensível (RANCIÈRE, 2012). Parece pertinente a

escolha do Coletivo Aparecidos Políticos pelo corpo, explorando sua capacidade e

potencialidade de afeto, testando seus limites e gestualidades. Corpo que passa a ser visto não

mais como centro de poder, mas como ponto de nossas experiências sensoriais, como lugar

próprio da arte.

O corpo é na obra, o próprio dispositivo na busca pela habilitação das dimensões

espaciais e sensoriais da nossa experiência no mundo, na tentativa de nos conduzir ao contato

com o sensível do que vivenciamos nos espaços públicos e privados. Corpo que se desloca a

partir dos dispositivos audiovisuais e da estratégia do Coletivo em ampliar o alcance da

performance.

A possibilidade de acessar a intervenção é possível por meio do recurso

audiovisual. As imagens, capturadas, editadas e montadas ganham um significado próprio.

São imagens que ampliam a ação a partir do momento em que são levadas para o espaço

virtual e que por meio dos diversos acessos ganham outros espaços. Para Matesco (2012,

p.06) os recursos imagéticos, seja o vídeo ou fotografia, são “apenas registros incompletos de

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uma temporalidade anterior” não dando conta da complexidade do trabalho em toda sua carga

performativa artística, mas funcionam como uma espécie de testemunhas da obra.

Tomando, sobretudo o corpo nesse processo Duve (1981) considera a performance

como arte que implica a copresença do performer e público em espaço e tempo reais. Essa

assertiva de Duve parece frágil diante das produções atuais que apostam nos recursos

audiovisuais como possibilidade de deslocamento desse tempo-espaço presente para outros

tempos-espaços. Como afirma Mello (2008) é cada vez mais recorrente a utilização do vídeo,

seja como forma de registro para que se tenha acesso a ação, ou mesmo como produção de

vídeoperformance que passam a integrar as redes de compartilhamento ou mesmo deslocam o

espaço da rua para museus e galerias por meio desses processos.

Não pretendo questionar aqui a possibilidade de afetos a partir da co-presença, mas

do quanto o corpo passou a ser associado a outros elementos e como o próprio vídeo e a

fotografia são capazes de romper com a construção espaço-temporal. É inegável a potência

audiovisual em tempos onde a imagem recobre toda a vida em sua totalidade, onde já não se

concebe a vida distante ou mesmo apartada do registro. São formas de afetar distintas e aqui

não é possível dizer como esses afetos se constituem, em que medida e em que grau afetam.

É justo nesse sentido que o trabalho do Coletivo se atrela a quebra desse espaço-

tempo que agora são recortados e enquadrados, afirmando o possível da arte e a subversão das

cristalizações, para apresentar as potencialidades do vídeo, cada vez mais exploradas.

3.2 O lugar da fotografia na intervenção

As fotografias também realizam essa quebra de espaço e tempo. Aqui cito o quanto

essas imagens, sobretudo a imagem enquadrada dos rostos, parte do corpo que mais

disntingue uma pessoa das demais, parece seguir uma espécie de ritual que vem se

materializando na cultura pós-ditadura latino-americana. São imagens que parecem obedecer

a uma lógica de enquadramento e que se tornou aspecto marcante e presente nos processos de

memória coletiva desses países marcados pela busca de seus entes, desaparecidos durante o

regime.

Ao longo dos anos essas fotografias acabaram operando como único documento

que confrontava o Estado acerca do desaparecimento de pessoas. Somente por meio delas era

possível afirmar que aquele desaparecido existiu, que teve uma vida antes mesmo de ser

subtraído do seu cotidiano. É por esse motivo que essas imagens se tornaram importante

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instrumento de denúncia da ausência dessas pessoas, ao mesmo tempo em que se tornaram

ferramenta de busca diante da incerteza da morte.

Se por um lado essas imagens carregam a incerteza da vida, é quando são levadas

as ruas, muros e outros espaços públicos que indubitavelmente conseguem reconstruir o

pertencimento à vida, evocando a possibilidade do lembrar em uma dimensão de reconstrução

e não um mero resgate do passado. É nessa mesma dimensão que essas imagens, ocupando

lugares e espaços, interpelam o passado, o próprio Estado e a justiça.

Assim a fotografia cumpre, na intervenção proposta pelo Coletivo, muito mais que

a possibilidade de materializar para a sociedade o morto ou desaparecido ou mesmo um modo

de identificação, mas se coloca como possibilidade de clamar por justiça em meios ao

processo de desmemorização e encarar a vida em meio ao processo de construção histórico-

social da memória coletiva. Na verdade é quando colocadas em um campo aberto de

interpretações que essas imagens borram identidades.

Nas imagens, chama atenção a posição frontal, o caráter sério, as vestes que

denunciam ser aquela imagem parte de um documento em um tempo já distante. Esses

aspectos reunidos indicam que essas imagens são, na verdade, parte de uma identificação

formal, por mais que não seja possível dizer que espécie de documento seja. Mas é o

enquadramento do rosto, o mesmo utilizado em fotografias 3x4 habitualmente empregada

para fins burocráticos, o que elucida ser de fato essa imagem artefato de registro para

documento. Na verdade é apenas dessa maneira que vemos esses desaparecidos enquadrados,

em uma fotografia 3x4. As poucas fotografias de família parecem não compor essas memórias

ou são relegadas aos arquivos pessoais como uma espécie de preservação das boas

lembranças.

Não só na intervenção desenvolvida pelo Coletivo, como também no trabalho de

artistas como é o caso de Rosangela Rennó, Paulo Brusky, Claudia Andujar, a fotografia

ocupa o lugar de dispositivo central nas composições artísticas que trabalham a memória. Ao

mesmo tempo em que essas imagens revisitam o passado elas nos interrogam no presente a

partir do desaparecimento, da ausência de qualquer indício de vida ou de morte desses

desaparecidos.

Além da possibilidade de recordar os acontecimentos passados, as imagens

trabalhadas pelo Coletivo Aparecidos Políticos cumprem o papel de reverter a condição de

ausente e como afirma Catela (2012, p.113):

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A partir dessas imagens, enfrenta-se simbolicamente a categoria coletiva de “desaparecido”, “assassinado” ou simplesmente “morto” (a qual engloba todas as individualidades sem distinção de sexo, idade, temperamento, trajetória) e se pode mostrar uma existência individual, uma biografia. Essas fotos devolvem uma noção de pessoa, aquela que, em nossas sociedades, condensa os traços mais essenciais: um nome, um rosto, um corpo.

Logo a condição de “desaparecido” é excluída a partir do momento em que os

traços e rastros são dispostos nos muros. Como o minucioso trabalho de um arqueólogo esses

traços são o que contribuem para a construção da presença. São esses traços e imagens,

recobertos por novos significados, construídos a partir das novas relações sociais e mesmo das

novas identidades que as interpelam. Enquanto fragmento do mundo, a fotografia do morto ou

desaparecido tem a capacidade de transportar um espaço-tempo anterior para o presente,

carregando de novas significações agora disposto em um campo aberto.

Essas fotografias passaram a compor a memória social do país e se outrora eram

relegadas ao espaço privado, com o passar do tempo passaram a compor documentos

nacionais e internacionais. Desde logo são imagens que deixaram de pertencer as famílias

para pertencer a todos que de algum modo estão ligados as questões da memória, verdade e

justiça no país.

Na imagem a baixo (Figura 22) Frei Tito (na imagem da direita) e Antônio

Theodoro (na imagem esquerda), imagens também capturadas do vídeo “O que resta da

ditadura” no momento em que essas fotografias foram dispostas no espaço comum, como que

um ato de ornamentação transpondo espaço e tempo.

Figura – 22: Cartazes lambe-lambes de mortos e desaparecidos políticos.

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.

Na intervenção do Coletivo é curioso como essas imagens jogam com os limiares

do público e do privado. No espaço em que são instaladas, o modo como são dispostas logo

nos remete a molduras antigas, corroídas pelo tempo e dispostas nas salas de casas também

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antigas, onde a fotografia do morto na parede da sala é uma espécie de rememoração

constante, hábito comum na cultura brasileira. Nas casas essas imagens são expostas

geralmente nos lugares mais altos, uma espécie de altar, de culto a esse morto como se a

presença fosse sempre constante, ao mesmo tempo em que se esvai, sendo corroída pelo

tempo denunciada pelo envelhecimento do papel.

O espaço da rua agora remonta o espaço da casa, em dimensões maiores e

recorrendo ao texto, sobrepondo camadas e mais camadas de tinta envelhecidas dos muros da

cidade, como uma espécie de várias peles desse tecido social. É como se naquele momento,

imagem e escrita correspondessem a mais uma dessas camadas que o tempo cumprirá o seu

papel de “apagamento”, fossem portanto uma única imagem.

3.3 Processos de memória no contemporâneo

Ao problematizar as intervenções do Coletivo Aparecidos Políticos é impossível

deixar de citar o quanto o trabalho cumpre um papel de memória e ao mesmo tempo um papel

político no contemporâneo. Na verdade, podemos colocar de antemão que a questão da

memória tem sido cada vez mais recorrente em diversos campos de estudos, em especial nas

ciências sociais e histórias e mais recentemente nos processos artísticos que afirmam essa

memória enquanto processo político, em vistas de responder o presente e vislumbrar o futuro.

Em diversos âmbitos falamos da memória que a largos passos se tornou problemática

central nos debates políticos e culturais, sobretudo no que se refere a memória política e social

do país, marcada por profundos embates. Como afirma Menezes (1992), essa memória vive

sob a polaridade do lembrar/esquecer, “caminhos que não conduzem ao presente” (1992,

p.10).

Abro aqui um parêntese para citar o quanto tem se intensificado, nos últimos dez

anos, a efetivação de políticas de verdade e memória a cerca da ditadura civil-militar no

Brasil. De modo mais incisivo se experimentou nos últimos anos, governo da presidente

Dilma Rousseff, a ampliação do debate sobre as memórias da ditadura militar, discussões

essas que repercutem também no campo midiático, espaço conflituoso e de construção de

memórias hegemônicas.

É importante citar o quão representativo é esse momento para o quadro político do

país, já que se trata de uma ex-militante presa durante o regime militar além de ser a primeira

mulher eleita presidente no país. Certamente essas políticas e ações que vem se fortalecendo

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no âmbito cultural e político, representam escalas que ainda podem e necessitam ser

ampliadas. Mas não há como negar os largos passos dados nos últimos anos, avanços

significativos se compararmos as décadas passadas, cujo contexto era marcado pela

inexistência de debates. As políticas de memória são nesse contexto, o que asseguram o

fortalecimento social de garantias e da não repetição.

Vivenciamos a efervescência da memória não só concernente às ditaduras e aos

momentos pós-conflitos. Vale então recorrer ao pensamento do teórico alemão Huyssen

(2001) para quem afirma vivenciarmos o que chama de uma “cultura da memória”. Esse

aspecto tem se concretizado por meio dos processos de democratização e do acesso aos

arquivos, da profunda preocupação com o esquecimento que se apresenta irrecuperável. Mas

o que realmente nos põe a pensar é como o conceito de memória tem sido capturado pela

indústria cultural e ganhado reforço dos meios de comunicação de massa. É como se a

memória tivesse se tornado em artigo de consumo em tempos de um presente partido em

instantes. Seja na moda, na música, na própria arquitetura da cidade, consumimos o passado

agora revestido de novos atrativos e significados.

Mesmo em tempos de uma “cultura da memória” é inegável a carga paradoxal que

essa carrega, já que vivenciamos ao mesmo tempo uma espécie de amnésia, apatia e a

incapacidade de lembrar os processos históricos tão vitais, pois nos conduziram ao presente, e

como causa e efeito esse mesmo presente se tornará passado. (HUYSSEN, 2000)

A memória como coloca Huyssen (2000, p.1) se tornou uma das preocupações

centrais no âmbito político e cultural das sociedades ocidentais e aqui é importante dizer que

me refiro a memória coletiva. Mesmo as dualidades do lembrar/esquecer (já citado

anteriormente), passado/presente, são aspectos eminentes ao processo. No entanto há que se

colocar que passado e presente estão mais imbricados do que se poderia imaginar. Passado e

presente são indissociáveis e é impossível mantermos o olhar fixo no presente sem olhar esse

passado. Como apresenta Deleuze (2006, p.126):

(...) cada atual presente não é senão o passado inteiro em seu estado mais contraído. O passado não faz passar um dos presentes sem fazer com que o outro advenha, mas ele nem passa nem advém. Eis por que, em vez de ser uma dimensão do tempo, o passado é a síntese do tempo inteiro, de que o presente e o futuro são apenas dimensões. Não se pode dizer: ele era. Ele não existe mais, ele não existe, mas insiste, consiste, é”.

Pensando enquanto conceito enérgico, Meneses (1992) apresenta que a memória

deve ser vista como processo permanente, ato que se faz a partir da sua construção e

reconstrução, sendo que a “memória de grupos e coletividades se organiza, reorganiza,

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adquire estrutura e se refaz num processo constante, de feição adaptativa” (MENEZES, 1992,

p.11), sempre um devir, um vir a ser, sempre em fluxo e transformação.

É por esse motivo que a “tradição (memória exteriorizada como modelo) nunca se

refere a nenhum corpo consolidado de crenças, normas, valores, referências definidas na sua

origem passada, mas está sujeita permanentemente à dinâmica social” (1992, p. 11), o que

torna impossível pensarmos a memória enquanto resgate do passado, uma vez que sua

elaboração se dá no presente.

Nesse sentido, Gibbons (2007) tem atentado para um aspecto interessante sobre a

memória no contemporâneo, na verdade é como se ansiasse por esse posicionamento acerca

da memória e do arquivo em tempos de outros fluxos e encontros, outras possibilidades de

inscrição. Segundo o autor, memória não é mais um arquivo com dados fixos e inalterados,

mas um conceito pessoal, subjetivo e em permanente reconstrução. Gibbons (2007) entende a

memória como aspecto central para a nossa compreensão e também do mundo, sendo os

arquivos componentes concretos no processo de manutenção da memória e que auxiliam de

forma integral no funcionamento da sociedade.

O que o autor nos apresenta é a possibilidade de a memória ser trabalhada de outros

modos, não negando o lugar do arquivo, pois é ele quem subsidia no processo de construção

da memória que necessita ganhar outros modos de constituição para que possa ser pensada,

adquira novos significados em meio aos processos urbanos do presente que contém esse

tempo anterior.

O sociólogo francês Halbwaschs (2004) trabalha com a premissa fundamental de

que a memória se constitui pelas lembranças de um grupo, o que o garante como unidade. Na

compreensão do autor só lembramos na medida em que nos inserimos em uma perspectiva de

grupo, portanto ela é uma reconstrução do passado dinâmico, onde tomamos dados do

presente e o inserimos em uma perspectiva de grupo. Residi também na perspectiva do autor

essa referência do passado contido no presente, não existindo memórias completamente

isoladas, pois estão sempre “apoiadas” pela constituição de um presente dinâmico, em

constante reformulação. (HALBWACHS, 2004).

Mas a cerca da memória em Halbwaschs (2004), é necessário estar atento para um

aspecto em específico. Para ele a memória é o que garante a unidade de uma sociedade.

Podem ser configuradas por percepções que se opõe, mas devem reforçar a garantia da noção

de unidade e coesão social.

Entretanto Michael Pollak (1989) expande suas considerações e toma a memória

como sendo negociação e conflito entre memórias individuais e memórias coletivas. Nesse

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sentido a memória entra em disputa sendo confrontadas, sobretudo, as memórias tidas como

hegemônicas cristalizadas ao longo dos anos e que acabam sendo dotadas de estabilidade,

adquirindo duração. O que se observa é que a memória se insere na perspectiva de poder,

operando a partir de uma relação de força, colocando a memória em uma dimensão do

conflito, logo do político, eliminando qualquer margem de pensamento da memória enquanto

aspecto consensual.

As concepções do historiador Pierre Nora (1993) convergem para as assertivas

anteriores e considera que a memória deve ser encarada como um acontecimento sempre

atual, carregada por grupos vivos e por essas considerações, inserida em um movimento de

constante transformação ao invés de uma memória que repousa.

Retornando o pensamento de Gibbons (2007) para quem o processo de memória já

não corresponde apenas ao acesso aos arquivos, trago a reflexão do quanto a questão da

memória tem recebido uma atenção considerável no domínio artístico. Tradicionalmente a

palavra arquivo nos remete a uma organização de dados, geralmente relacionado ao processo

de escrita e produção de textos, pilhas e pilhas de papéis que como afirma Latour (2000) é

uma “inscrição plana” (2000, p.223), se referindo ao estudo de uma ciência em laboratório. A

arte contemporânea tem insistido em resistir ao esquecimento e a força totalitária da ordem

instituída. Logo a intervenção do artista no presente consiste em um posicionamento político

de tradução da realidade e também enquanto um dever de memória.

Tomando a memória a partir de inscrições que nos desterritorializam, que nos

reelaboram transformando esses arquivos em novas significações, que a intervenção “o que

resta da ditadura” nos transporta assim para um tempo espaço outro, nos colocando de

encontro a constituição de blocos de sensações e afetos no presente.

São rastros do passado que no remete não só a esse tempo anterior, mas ao presente

vivo, o que nos faz pensar o quanto arte e memória concatenam passado e presente em vistas

de outras possibilidades de interpretação que fujam as prefixações dos arquivos fixos. São

processos na verdade que nos conduzem a vitalidade política que enxerga o passado, presente,

mas principalmente vislumbra seu futuro.

O processo artístico do Coletivo se apresenta, portanto, como o que Deleuze e

Guattari (1992) definem enquanto acontecimento. O conceito transcende o pensamento de um

espaço-tempo ordenável se apresentando na verdade como o que emana desse espaço-tempo.

“O que resta da ditadura” se liga ao que está na égide do Aiôn, um tempo das intensidades,

das vivências e dos devires, pertencendo ao tempo da imanência. (DELEUZE, 2007)

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O que a intervenção propõe é o encontro com a diferença que é sempre intensiva e

exerce sobre o pensamento certa violência que força o pensar. A intervenção é acontecimento

porque também exerce certa violência sobre o passado, provocando em certa medida o seu

deslocamento e rompimento da ideia, já citada anteriormente, de um progresso sem vistas

para esse tempo anterior. É nesse sentido que podemos considerar a produção de memória por

meio da arte, sobretudo no trabalho do Coletivo, como se tratando de um acontecimento

potente evocando outras possibilidades de memória, pronto a responder ou problematizar as

questões do presente.

“O que resta da ditadura” carrega ainda dois aspectos que Halbwaschs (1990)

considera constituir o plano da memória, sendo eles reconhecimento e reconstrução.

Reconhecimento porque em certa medidas o Coletivo trabalha imagens, textos e gestos que

nos conduz a pensar que aquela composição, em certa medida habita em nós. Como se o

trabalho do artista fosse exatamente o de samplear48, se apropriar de imagens e gestos que

habitam o cotidiano, não como uma repetição, mas como processo de criação que emana a

subjetivação política. Logo a ideia do reconhecimento é encarada aqui como a sensação do “já

visto” como coloca o autor. Reconstrução por não se tratar de uma repetição linear dos

acontecimentos vivenciados no passado, mas sim um modo de reelaboração artística por meio

de agenciamentos, produzindo deslocamento de tempos e espaços e elaborando um espaço-

tempo diferente. Um quadro de preocupações e interesses atuais, localizada num tempo, num

espaço e num conjunto de relações sociais. São esses aspectos que fazem a intervenção do

Coletivo algo singular, que joga também com as questões espaciais e de tempo e que nos

evocar a pensar politicamente, uma vez que instaura fissuras nos modos de sentir e perceber

os acontecimentos.

3.3.1 Memórias no espaço público

A partir das breves colocações a cerca da memória e do quanto se tem pensado

reconfigurações para os espaços designados à memória, vale aqui suscitar diálogos entre as

configurações desses espaços e a intervenção do Coletivo, que desde o primeiro momento

mexe com a cristalização desses espaços, tencionando rua e museu. Pretensamente o Coletivo

escolhe o espaço público como lócus das poéticas visuais e sonoras em seus trabalhos e logo

48 Termo usado no Hip Hop para designar uma montagem que leva trechos de várias músicas. Viveiros de Castro tem pensado o conceito enquanto possibilidade de inventar maneiras de articular discursos.

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em “o que resta da ditadura”, uma das primeiras intervenções, afirmam o espaço da rua

enquanto lugar de memória.

Há uma coerência na proposição do Coletivo, uma vez que levar aos espaços da

cidade a memória do processo político e social do país é também falar dos embates ocorridos

nesse espaço, na rua. Logo é nele onde a memória se cristaliza, sendo passível de outras

significações agora por meio da arte e aqui vale dizer que o Coletivo recorre especificamente

a arte urbana para produzir seus trabalhos.

O que tem ficado claro é que o uso recorrente do espaço público para manifestações

estéticas e mesmo da memória, se apresenta na verdade como estratégia de aproximação entre

corpo e corpo urbano, entre corpo e a memória, seja por meio das estratégias imagéticas,

sonoras ou corporais. O fato é que esses modos conduzem à percepções sensoriais, por meio

de leituras sensíveis de arquivos que guardam escritos, imagens, fragmentos de memórias que

agora compõe a memória coletiva.

O espaço público, lócus de todas as contradições do contemporâneo é reafirmado

no trabalho do Coletivo a partir de uma perspectiva museológica, depositário do passado nos

aspectos materiais e também simbólicos, mas que se transforma a cada momento, a cada nova

intervenção proposta. Nesse sentido a intervenção “o que resta da ditadura” apresenta

possibilidades dos espaços dessa cidade serem praticados, tornando esse espaço “outro corpo

urbano” capaz de suscitar outros modos de apreensão, de reflexão e intervenção na cidade.

Me refiro intervenção não só a cerca das questões relacionadas ao período do

regime de exceção vivido no país entre 1964-1985, mas outras questões que tem tomado o

contemporâneo e que se desvelam mais potentes de suscitar discussões e pensamentos quando

levados à esfera da produção estética e dispostos nos espaços de trânsito. São criações que

refazem não só o lugar da memória como também o lugar da arte.

É pensando a cidade enquanto cidade museu que somos forçados a realizar outras

leituras desses espaços que necessitam ser pensados transpondo a noção de espaços

preservacionista, para entendê-los enquanto espaço aberto à novas significações e leituras

possíveis, oferecendo possibilidades de apropriação, percepções e de significados. É por meio

das diversas possibilidades de uso de espaços e tempos na cidade, que reside a

impossibilidade de separar a rua e o museu e passamos a compreendê-la enquanto espaço

plural que acolhe as singularidades, poéticas que se manifestam nesses espaços.

Nesse sentido, os lugares de memória extrapolaram a noção espaço físico destinado

para tal fim, extrapola a ideia do museu enquanto lugar fechado e ganha o espaço da cidade

que necessita ser percebido para além de um lugar dos passantes. É pensando em outras

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possibilidades que Nora (1993) considera que os lugares de memória são espaços que

garantem a fixação de lembranças e de sua transmissão, estando sempre carregado de

simbolismos, pois caracterizam experiências vividas por determinados grupos. Para Nora

(1993) os lugares de memória se constituem a partir de uma tríplice acepção: são lugares

materiais, onde a memória social se ancora e pode ser apreendida pelos sentidos,

independentes de ser o museu ou mesmo a rua; são lugares funcionais, que independente das

estratégias empregadas acabam exercendo a função de alicerçar memórias coletivas e são

simbólicas porque é onde essa memória coletiva se expressa e se revela.

Talvez o termo mais caro a Nora, seja pensar que esses lugares cumprem uma

função. Não quero aqui adentrar em méritos do conceito, mas cabe aqui a reflexão se a

desobrigação desses espaços não é na verdade o caminho mais curto para se atingir o

significado que de fato interessa: pensar que essas memórias, assim como a arte, enquanto

criação de perceptos, afetos e entendendo que todo lugar é possível.

As considerações de Nora nos fazem pensar que o trabalho do Coletivo vai de

encontro a cristalização de memórias no espaço urbano, que ao mesmo tempo tem afirmado as

potencialidades desses espaços que comporta outros tempos-espaços. Na ação do Coletivo há

a possibilidade da construção de significações para os espaços da cidade, há a construção

desses espaços enquanto espaços de memória, na verdade é a atribuição do real sentido a

esses espaços, logo o artista é também um negociador das diversas memórias existentes na

malha urbana, fazendo caber aquilo que não era visível.

A intervenção do Coletivo nos espaços públicos consegue, no contexto da cidade,

atribuir memórias a determinados lugares que por meio de gestos, imagens e sons atravessam

a condição de não-lugares para a condição de um lugar de memória, retomando o termo de

Pierre Nora.

Há na construção da intervenção pelo Coletivo a ideia de que a cidade não é

definida somente a partir de sua identidade política e social, mas corresponde a um sistema

simbólico de produção de sentidos, de representação cultural e da presença de diversos

discursos. A cidade de Fortaleza, assim como muitas outras, é o resultado da sobreposição de

épocas, de memórias fragmentadas trabalhadas pelo Coletivo por meio da arte contemporânea

que significa na verdade, não um olhar fixo no presente e no futuro, como já citado

anteriormente, mas o que a proposição artística do Coletivo propõe é justamente deslocar esse

tempo presente para que possamos compreendê-lo mais do que qualquer outro.

Afirmar que a intervenção “o que resta da ditadura” carrega o contemporâneo

demanda de nós reflexões a cerca do termo que, como apresenta Agambem (2009) é ser

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contemporâneo. Ser contemporâneo é extrapolar as fronteiras do tempo presente. O

Contemporâneo na intervenção do Coletivo é na verdade um tempo que comporta outros

tempos. É uma proposição estética que ao invés de se alinhar com o seu tempo o percebe de

modo anacrônico, produzindo deslocamentos que conduzem a apreensão e percepção desse

tempo, mais do que os outros que mantém o olhar fixo nesse tempo.

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEN, 2009, p. 59).

Com o olhar no seu tempo o que o Coletivo consegue perceber é o escuro em meio

as luzes do século, como afirma Agamben (2009). Nesse escuro ao invés da mera ausência o

Coletivo percebe aspectos que lhe diz respeito e que ao mesmo tempo não cessa de interpelá-

lo. O que há de contemporâneo na intervenção “o que resta da ditadura” é justo sua

capacidade de analisar criticamente o seu tempo olhando outros tempos, percebendo espaços e

o cotidiano dessas cidades, onde os não-lugares passam a ser percebidos dentro do processo

artístico não se deixando cegar pelas luzes do século.

3.4 Atravessamentos da arte política

A diversidade de linguagens as quais o Coletivo Aparecidos Políticos recorre,

passando pela fotografia, grafite, performance, a escrita e a própria construção do vídeoarte,

especialmente na intervenção “o que resta da ditadura”, dão conta de duas dimensões cada vez

mais recorrentes no panorama das artes visuais no Brasil, primeiro da singularidade nos

trabalhos que são constituídos a partir de processos híbridos e segundo pela dimensão do

conflito tão presente também nesses trabalhos que desobedecem tempos e espaços e que

desobedece, sobretudo, as convenções vigentes para afirmar sua presença no mundo a partir

da distinção.

Vale situar que essa mesma distinção é operada a partir da quebra de tabus dos

quais ela precisa, de forma contraditória, para afirmar sua diferença de tudo o que existe. É

como se a negação da autoridade que parte de um sistema de valores, fosse o start para que a

diferença possa de modo expressivo existir. É nesse sentido que é possível dizer talvez, que

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toda arte que consegue expandir o seu lugar de existência no mundo se coloca como

transgressora, desfazendo regras, ignorando convenções e por sua vez alargando o campo de

percepção da realidade do mundo.

É nesse fluxo que a intervenção “o que resta da ditadura” opera, produzindo afetos,

deslocando corpos, tempos e espaços, produzindo conflitos, tensões e dissensos tão

necessários para a compreensão do mundo partido e como Rancière (2007, p.226) coloca o

dissenso se apresenta como a capacidade de “sempre reexaminar as fronteiras entre o que é

suposto ser normal e o que é suposto ser subversivo, entre o que é suposto ser ativo, e,

portanto, político, e o que é suposto ser passivo ou distante, e, portanto, apolítica”. “O que

resta da ditadura” toca nesses pontos, vai de encontro ao limite do que nos é apresentado

como curso natural dos processos históricos para nos dizer que há aspectos outros que

necessitamos repensar. Modos e práticas de memória que nos colocam diante da possibilidade

de criar um dos muitos modos possíveis de singularizar mortos e desaparecidos pelo regime

militar do país.

O dissenso enquanto “regimes de sensorialidade” (RANCIÈRE, 2012, p.59) toca,

portanto, nas duas dimensões que tem interessado pensar a ação do Coletivo Aparecidos

Políticos: arte e política. Se visualiza o dissenso nas duas formas de ruptura do mundo e aqui

arte e política não devem ser tomados enquanto aspectos separados, mas como único, onde

arte e política se fundem na busca da reconfiguração de perceptos. É justo por serem dois

modos distintos de recortar o mundo que arte e política estão desde logo ligadas.

Assim, o dissenso deixa de ser o mero conflito de ideias e sentimentos para se

expandir e adquirir uma dimensão política. E é necessário também entender que a política de

que falamos não é o exercício ou luta pelo poder, ou mesmo definida nas leis e instituições,

mas que se constitui nos processos cotidianos e também nos processos artísticos.

Entender que a intervenção “o que resta da ditadura” se trata na verdade de uma

intervenção que evoca as possibilidades da arte política é compreender que a política tem

assumido lugares e formas múltiplas no contemporâneo, extrapolando os limites institucionais

que colocam a política como relativo a grupos específicos. Essa noção da política não

contempla as práticas que vem sendo desenvolvidas no cotidiano, não contempla desde logo a

ação do Coletivo Aparecidos Políticos que se debruça em trabalhar questões da ditadura

ativando o pensamento político por meio da criação sensível. Como apresenta Ranciére (2012,

p.59):

[...] a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das competências - e incompetências. Começa quando seres destinados a

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permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum para mostrar o que não se via [...].

É possível dizer, portanto que a estratégia do Coletivo é exatamente a mudança de

referencial do que é visível e enunciado, mostrar de outro modo o que não era facilmente visto

na sociedade, mortes e desaparecimentos abjetos que retornam aos espaços de enunciação

produzindo rupturas no tecido sensível das percepções e na dinâmica dos afetos. A

intervenção cumpre assim o papel de fccionar o real para que esse possa ser pensado. Ficção

como coloca Rancière (2012) não diz respeito a criação de um mundo imaginário é oposição

ao mundo real, mas opera na produção de dissensos construindo “relações novas entre a

aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação” (p.64). São na

verdade rearranjos materiais de signos e imagens, “[...] das relações entre o que se vê o que se

diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (RANCIÈRE, 2010, p.59). Assim, o Coletivo

produz o ensaio de tensões que mobilizam o passado como pano de fundo, atualizado na

presença dos corpos em meio aos fluxos da cidade, construindo ficções.

Em “o que resta da ditadura” há a mudança da nossa percepção dos acontecimentos

sensíveis, na nossa maneira de relacionar os acontecimentos com o que vivenciamos

cotidianamente nos espaços da cidade. Talvez reside nessas intervenções a possibilidade de

problematizarmos muitas questões que nos tomam e que por vezes nos cegam no

contemporâneo. “O que resta da ditadura” está na verdade articulada com uma série de

questões que não só a relação com a ditadura militar e o desaparecimento e morte de pessoas

durante o período, mas está também atrelado a uma série de acontecimentos situados no

espaço-tempo presente, repletos de conexões como as situações de violência que desnudam a

posição do Estado.

Falar do período é uma estratégia da qual o Coletivo se vale para situar um tempo-

espaço anterior que se reatualiza nas práticas cotidianas do agora. É também a possibilidade

encontrada de tornar visíveis esses que no processo político-social do país representam a

invisibilidade humana. A potencialidade da arte no trabalho do Coletivo conduz a

possibilidade de fugir das formas regulares de organização da vida e dos arquivos, produzindo

deslocamentos que abandonam a representação para evocar a criação de afetos, sensações e

perceptos. Reside na intervenção a criação de equivalentes sensíveis de uma experiência de

estar no mundo, dando a outros a possibilidade de ter acesso a esse acontecimento singular, a

essa experiência de mundo.

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A performance, as fotografias envelhecidas e ampliadas nos muros da cidade foram

os modos encontrados pelo Coletivo de partilhar esse sensível que não é visível. Partilhar o

sensível é definido por Rancière (2010) como:

O sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. (RANCIÈRE, 2010, p.15)

A partilhar o sensível é o resultado de um tensionamento existente no corpo social

estruturado. Há nessa partilha partes que ocupam o seu lugar e aqueles que não têm lugar,

aqueles Rancière (2010) denomina de "a parte de parte alguma". É essa parte a espinha dorsal

na intervenção, os mortos e desaparecidos que de modo singular são responsável por perturbar

a referida ordem em nome da igualdade de todos os sujeitos políticos enquanto seres falantes,

na intervenção “O que resta da ditadura”.

É importante dizer que as construções estéticas que lidam com essas tensões de

visibilidade, são sempre maneiras provisórias de se partilhar esse sensível e que a todo o

momento emerge maneiras singulares de também realizar o papel de agente da memória por

meio da arte contemporânea.

É por meio do processo que funde arte política, que o que se produz no lugar de

objetos, são relações com o mundo, logo formas ativas de se organizar e estar em

comunidade. É como se a vida sempre partilhada em fragmentos, sempre isolada pelas

individualidades pudesse agora ser pensada eliminando essas partilhas e fragmentações.

O que se encontra se encontra no cerne de “o que resta da ditadura” é a capacidade

de outros corpos, distantes no tempo e no espaço, se apoderarem do seu destino e

confrontarem a vida naquilo que podem, conferindo potencialidade à paisagem da exclusão e

da indiferença social construindo uma subjetivação política.

Nesse sentido partilhar o comum é tomar para si aquilo que cabe à todos e falar dos

desaparecidos e mortos pelo regime, se desprendeu desse tempo passado e das pessoas que

vivenciaram o período para tomarem outros pensamento e corpos que podem falar e produzir

afetos. São pessoas, que assim como o Coletivo Aparecidos Políticos, acreditam que essas

práticas de deslocamento e de produção sensível se concretizam como único modo de

visibilizar e de tomar parte nesse comum.

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“O que resta da ditadura” se materializa em uma intervenção de arte política justo

pela sua capacidade em nos desestabilizar, em produzir e fazer com que ao mesmo tempo em

que me dou conta do outro, dou conta de mim e dos afetos produzidos que esse outro me

produz. Há uma descomunal potência de afeto capaz de mobilizar o corpo social não na busca

de um consenso a cerca dos mortos e desaparecidos, mas na busca de um pensamento político

onde esses possam caber, modos esses de sensibilização que me arrisco a dizer, talvez só seja

possível por meio da arte.

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4. NARRATIVA HÍBRIDA: IMAGENS E PALAVRAS – A NÃO COMEMORAÇÃO DO GOLPE MILITAR A PARTIR DAS INTERVENÇÕES DO COLETIVO APARECIDOS POLÍTICOS.

O que marca o presente capítulo é a imersão em uma das intervenções do Coletivo

Aparecidos Políticos, momento de intensidades artísticas e políticas e de experimentação nas

ruas de Fortaleza. O momento se apresenta significativo, uma vez que marca o retorno do

Coletivo a produzir intervenções nos espaços da cidade depois de um período imerso em

outras atividades que conduziram o Coletivo a operar nas formas. Foi o momento de buscar

outros espaços capazes de dar visibilidade não só as produções estético políticas, mas que

também fosse possível apresentar o posicionamento do Coletivo diante das questões que

regem o cotidiano desses espaços. A intervenção se coloca como momento do Coletivo se

voltar mais uma vez à produção de tensionamentos a cerca da memória dos mortos e

desaparecidos políticos, agenciando e afirmando a arte urbana.

Importante situar o contexto no qual a intervenção se deu. 2014 seguia com agitações

muito latentes, na verdade uma espécie de continuação das manifestações de 2013 em

proporções e intensidades bem específicas. As escritas nos muros dimensionavam um

verdadeiro levante contra o poder, e as práticas instituídas. A partir de frases, deixavam

latente o descontentamento e a leitura que era feita dos instrumentos, técnicas e dispositivos

governamentais como sendo a de um “Estado ditador”, frase pichada no muro de uma das

residências situada próximo ao Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará –

UECE, localizada no Bairro de Fátima, em Fortaleza.

O ano de 2014 também marcou os 50 anos de instauração do golpe militar. A data

não poderia passar em branco, não só por se tratar de uma data marcante, mas por demandar

da sociedade a produção de dissensos, criações de movimentos capazes de perturbar esse

momento. Há ainda o desejo e a necessidade de produzir o desmanche da imagem de

“comemoração da revolução”, como é comumente lembrado. Incomodou profundamente

perceber como a data inspirava em diversos grupos a ideia de comemoração que na imprensa

ganha sempre local privilegiado, como aponta Dias (2012). Esses apontamentos evidenciam

sempre a necessidade de instaurar fissuras no modo de pensar, de contrapor mundos e que

essas mesmas fissuras sejam capazes de criar outros modos de pensar e agir diante os

acontecimentos.

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As “comemorações” necessitavam de contrapontos. Eles emergiram por meio de

ações realizadas por coletivos articulados em torno da verdade, memória e justiça do período

ditatorial. O Cordão da Mentira49, coletivo que mistura música, especificamente o samba,

teatro, movimentos sociais e carnaval, saiu às ruas cantando seus sambas para lembrar que os

resquícios ainda estão presentes. O Levante Popular da Juventude articulado com o MST,

realizou um escracho50 em frente a residência do então coronel Carlos Alberto Brilhante

Ustra, acusado de coordenar cerca de 500 sessões de tortura durante o regime. Nas ações se

evidencia a potência dos dissensos e a possibilidade de afirmar modos de subjetivação

política. Apresenta um campo de conflitos e de posições que justo por serem contrárias

produzem em nós outras percepções.

Aqui apresento o quanto é importante, e necessário, tomar outras experiências que

não só sejam capazes de tornar nítido os conflitos políticos e sociais em torno dessa memória.

Especificamente a partir da ação do Coletivo Aparecidos Políticos produzindo inquietações e

levando essas memórias às ruas, produzem coengendramentos, conduzem a emergência de

subjetividades políticas em meio ao espaço urbano.

O ano nos colocou não só a pensar memória, verdade e justiça, mas o quanto aquele

momento reatualizava questões e muitas marcas do período ditatorial. Mais uma vez o

exército tomava as ruas em meio a um enorme esquema de segurança articulado e

intensificado em torno da Copa do Mundo. Preparados para reprimir qualquer manifestação

contrária ao megaevento, que por sua vez acabou deixando ainda mais latente as diversas

contradições existentes nas cidades.

É claro que todo esse movimento que circunda o aparato de segurança, se deu em

uma dimensão muito diferente do que ocorria durante o período ditatorial, mas conseguiu

espalhar pelas cidades brasileiras uma imensa sensação de vigilância que colocava grupos e

coletivos a cuidar de suas ações em meio aos espaços da cidade, fossem públicos ou privados.

Foram diversos os momentos em que se ouviu pessoas próximas dizerem que “todo cuidado

era pouco”, se referindo a como os grupos de inteligência do Estado vinham intensificando a

vigilância em torno de diversos grupos, tivessem eles ligações partidárias ou não.

A articulação do Coletivo Aparecidos Políticos em rede, o colocava em situação

privilegiada na obtenção de informações sobre determinados acontecimentos que pelo temor,

acabavam circulando de forma subterrânea, em poucas rodas de conversa e que eram

49 Para conhecer as ações do coletivo acessar: https://cordaodamentira.milharal.org/2014/03/18/ha-50-anos-o-golpe-civil-militar-o-aviversario-pode-ser-deles-mas-a-rua-e-nossa/ 50 Para ver imagens do escracho acessar: http://www.revistaforum.com.br/mariafro/2014/03/31/levante-popular-da-juventude-escracha-o-coronel-torturador-brilhante-ustra/

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pulverizadas entre os demais grupos, coletivos e ou militantes espalhados pelo país. Mesmo

todos os cuidados parececem exacerbar o que se vivia, toda atenção era necessária, uma vez

que vivenciávamos nesse período, meses de uma democracia restritiva e mesmo a arte,

enquanto dispositivo produtor de tensões e agenciamentos passava pelos mecanismos de

vigilância do Estado. Esse modo de operar tornava visível a clara oposição entre um “nós”

“eles”, que a partir do momento em o “eles” representa uma ameaça, essa relação é convertida

em uma relação de amigo/inimigo, oposição que marca a democracia liberal evidenciando

uma relação de antagonismo como aponta Mouffe (2007).

Pesquisar e intervir com o Coletivo Aparecidos Políticos me colocava ainda mais

próxima das tensões e negociações existentes. Situava-me dentro dos acontecimentos que se

passavam dentro do Coletivo e naquele ano, exatamente em abril já faziam 6 meses de

intervenção com o Coletivo, enquanto integrante.

Naquele momento minha intervenção já me colocava em condição de propor ações,

de me posicionar frente as decisões e escolhas estéticas políticas do Coletivo. O próprio

Coletivo me demandava outro modo de estar, que perpassa pelo corpo e pela partilha de

desejos. Nesse sentido fui me construindo, deixando aflorar meus desejos de criação artística

e subjetivação política. Desse modo fui assumindo posições e mesmo nas coisas mínimas fui

percebendo a construção de uma confiança e cumplicidade que se fortalecia nos gestos

cotidianos. Ter minha própria chave de acesso ao ateliê do Coletivo, assumir o controle da

conta bancária, pequenos gestos coisas que se tornaram comuns à nós e que evidenciavam e

marcavam minha participação como efetivamente integrante do Coletivo. Aqui se apresenta o

quanto a abertura para o exterior possibilita uma vida “disposta a admitir a diferença e aceitar

o novo, o aberto, a contingência, o efêmero, o estranho” (ORTEGA, 2001, p. 1).

A amizade permeia o Coletivo, está presente entre os integrantes, produzindo o

mundo comum que, ao mesmo tempo em que uni separa os indivíduos, existindo sempre uma

distância entre eles, o que garante a condição da pluralidade. Pensar a amizade no coletivo se

liga, portanto, a ideia de inventar modos de sociabilidade, contrapondo a noção de

fraternidade e do amor romântico, como assinala Aguiar (2010).

Parece interessante entender a amizade no Coletivo, a partir do que Ortega (2001)

considera como sendo a dimensão política da amizade. Arendt (1983) também apresenta essa

dimensão tomando a amizade como amor mundi, que corresponde a capacidade de se associar

aos outros por meio da palavra e da ação. É ainda um modo de partilhar a partir do discurso,

os acontecimentos mundanos, não no sentido de nos voltarmos à nossa intimidade, mas como

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Arendt (2010, p.62) afirma “o mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e,

contudo, evita que colidamos uns com os outros”. Arendt (2010) ainda afirma:

conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens. (Arendt, 2010, p. 62)

A amizade se encontra relacionada como esse intermediário, possibilitando a partilha

de algo em comum, ao mesmo tempo em que diferencia seus participantes por meio da

comunicação e das ações. Na relação de amizade o que predomina é o desejo de partilhar o

mundo, de se voltar para fora produzindo outras formas de vida, o que evoca um agir, para

além do pensar. É na medida em que a amizade preserva a pluralidade humana, a partir de um

mundo partilhado, que ela pode ser pensada como um conceito político.

Pensar a amizade no Coletivo Aparecidos Políticos é pensar que essas relações

necessitam do mundo para florescer, necessita ainda “da visibilidade dos assuntos humanos

para florescer. Nosso apego exacerbado à interioridade, a ‘tirania da intimidade’ não permite

o cultivo de uma distância necessária para a amizade, pois o espaço da amizade é o espaço

entre os indivíduos, do mundo compartilhado - espaço da liberdade e do risco -, das ruas, das

praças [...].” (ORTEGA, 2001, p.61-62).

A partir das condições também de experimentação, fui sentido meu corpo nesse lugar

se constituindo enquanto um corpo político. Havia muitas questões, desde o primeiro contato,

as quais desejava interferir, mas me cabia também enquanto pesquisadora, aguardar o

momento apropriado. Foi assim a construção das intervenções do mês que marcou os 50 de

instauração da ditadura no país, uma intervenção atravessada por muitas questões e tensões

que nos conduziu a pensar, estrategicamente, modos de fazer fluir esse sensível. Para além foi

o momento de fazer com que o medo e as tensões vivenciadas nos espaços da cidade,

potencializassem a criação de afetos, que como coloca Deleuze (1978) a partir de Spinoza,

fossem capazes de nos fazer agir ao invés de nos paralisar. O momento foi a chave para

repensar as práticas do Coletivo até aquele momento, atravessado por múltiplos fluxos, novos

agenciamentos criadores, produção de novas realidades e pensar as diferenças que se

aproximam no sentido de interferir no que aparentemente é dado como certo.

4.1 Agenciamentos e produções

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Cada vez mais atravessados pelos cuidados com os fazeres do Coletivo e entendendo

a necessidade da produção de uma intervenção que falasse de um corpo intensivo, capaz de

produzir um pensar que perpassasse também as emoções. O Coletivo decide que retornar os

espaços da cidade reinventado as imagens dos rostos dos desaparecidos pela ditadura seria

então o caminho a ser seguido. É importante deixar claro que as decisões são sempre

atravessadas por questionamentos e nunca se chega ao consenso pleno. Acho que a ideia de

consenso deve aqui também ser eliminada para pensar que são sempre negociações, pois

como apresenta Rancière (1996) o consenso exclusivo se desfaz quando mundos singulares se

abrem desfazendo as partes que supostamente estão dadas para se instaurar o dissenso, o que

possibilita a promoção de formas de resistência ao que é consensual. Desse modo foi sendo

constituída a intervenção do dia 01 de abril, uma intervenção onde se ensejava a produção de

algo novo, capaz produzir desestabilizações e criar outras leituras do período ditatorial.

As subjetividades individuais davam conta dos muitos caminhos possíveis que nos

impeliam a operar negociações e tomar os conflitos, desacordos e negociações que a todo o

momento nos colocavam em posição de incerteza. Movimentos que mostrava-nos que era

necessário nos render a modos de vida com os quais se produzia certa identificação,

invocando um espaço simbólico de construção de um “comum” que são essas memórias que

nos tomam.

É seguindo essa linha de raciocínio que o Coletivo toma como desejo de ação,

desestabilizar e interferir experimentando, de outros modos, as imagens dos desaparecidos

políticos nos espaços da cidade, trabalhando o que marca o Coletivo por meio do que se tem

de mais evidente, que são as fotografias em vida, a busca incansável pelas memórias, busca

essa que é conduzida pela arte que fala desse corpo que é político, e como apresenta Deleuze

e Guattari (2012) é uma superfície composta de traços e linhas intensivas.

Minhas implicações se davam no campo de uma pesquisa, mas, sobretudo de alguém

que desejava intervir criando campo de desestabilizações, produzindo posições subjetivas de

invenção a partir dos fluxos de conversações e nas dinâmicas dos encontros corporais.

Exponho então minhas inquietações sobre o retorno as imagens dos desaparecidos

enquadrados nas imagens 3x4, e os afetos produzidos em mim em uma das Rodas de

Conversa da Pesquisa Intervenções. O momento disparou múltiplas inquietações,

principalmente a cerca de como o Coletivo poderia operar, como poderia evocar a existência e

produzir outros modos de intervir a partir de imagens.

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Na participação da Roda de Conversa em Porto Alegre51, em maio de 2013, o

momento reuniu processos singulares de falar sobre modos de resistência e sobre como a

memória da ditadura vinha sendo trabalhada por diversos Coletivos e grupos. Na ocasião,

apresentei o trabalho do Coletivo Aparecidos Políticos ao mesmo tempo em que me

aproximei de experiências de grupos situados em Porto Alegre. Aproximo-me do trabalho e

do processo de criação da Exposição Ausências, realizada pela ONG Alice – Agência Livre

para Informação, Cidadania e Educação, de Porto Alegre em parceria com a Secretaria de

Direitos Humanos da Presidência da República – SDH/PR52. O projeto, idealizado pelo

fotógrafo argentino Gustavo Germano, cuja família também sofre a ausência de um dos

irmãos, aspecto que motivou o fotógrafo a iniciar o trabalho com imagens que evidenciam a

ausência dos entes queridos.

O trabalho teve inicio na Argentina, onde a ditadura, instaurada em 1976 produziu

em apenas oitos anos, a impressionante soma de aproximadamente 30 mil pessoas mortas e

desaparecidas, de acordo com informações da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos

Políticos, vinculada a SDH/PR. A exposição contava de dois momentos distintos das vidas de

militantes políticos do período, reconstruindo o buraco deixado pelo desaparecimento e ao

mesmo tempo evidenciando o desaparecimento. A exposição conta a história de dezoito

casos, doze brasileiros e seis argentinos, que tem em comum, a ausência de seus parentes.

O trabalho se dá em cima de uma reconstrução. Duas imagens contrastadas, na

primeira o registro de uma pessoa em seu cotidiano, reunido com amigos ou familiares,

momento que desconstrói por completo a imagem de um militante para produzir a imagem de

um jovem de vida intensiva como a de qualquer outro jovem daquele período. Na imagem

seguinte, disposta horizontalmente, se faz a reconstrução da imagem com as pessoas dispostas

do mesmo modo como na imagem anterior, no entanto há uma lacuna que violenta o olhar.

Alguém que esteve presente na imagem anterior, mas que já não aparece na imagem seguinte,

uma lacuna que não é possível reconstruir por meio do corpo. No entanto o que ocupa esse

espaço é apenas a ausência, a saudade e a dor que se estabelece por completo.

A sobreposição de imagens tece elos entre tempos distantes. Por vezes, são imagens

de paisagens que revelam a especificidade de seus lugares de origem outras, momentos em

suas casas no convívio com os seus. Na imagem a baixo (Figura 23) uma das composições

presente na exposição. A imagem é do arquivo pessoal da família de Bergson Gurjão. Na

51 Para visualizar o convite da Roda de Conversa bem como as imagens do momento acessar: http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/p/ix-roda-de-conversa-porto-alegre.html 52 Para mais informações acessar a página da Comissão disponível em: http://cemdp.sdh.gov.br/

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primeira imagem aparecerem Bergson ao lado da então namorada, Simone, e de sua irmã,

Tânia Gurjão. Na imagem seguinte a mesma cena, no mesmo cenário e a ausência de

Bergson, morto no Araguaia em 1972.

Figura – 23: Montagem Exposição Ausências – Bergson Gurjão.

Fonte: Página Socialista Morena53

Na imagem, o contraste violento nos coloca a buscar compreender as razões daquela

ausência, como se os nossos olhos, diante daquela exposição e inquietos, buscasse

angustiadamente, no momento em que fita a imagem, encontrar esse desaparecido. Ao

mesmo tempo a imagem produz em nós questionamento se é mesmo um desaparecido, de que

modo desapareceu, já que o registro fotográfico primeiro desloca a imagem do desaparecido

político abrindo à outras significações e leituras.

Fica evidente a proposição do fotógrafo de construir uma subjetivação política para

essas imagens intensivas, imagens que capazes de expressar a vida em sua plenitude,

deslocando a construção anterior de como conhecemos e o modo como acessamos as imagens

desses mortos ou desaparecidos políticos, sempre por meio da imagem de um documento. A

construção da fotografia expressa, assim, a vida que insiste em se apresentar de outros modos,

uma construção em que o artístico vai de encontro a subjetivação política das imagens.

As fotografias apresentadas me afetaram de um modo peculiar, dispararam em mim o

desejo de intervir e de produzir tensões no modo como o Coletivo Aparecidos Políticos

operava seus trabalhos a partir das fotografias 3x4 dos desaparecidos, um trabalho sempre de

enquadramento e que de forma paradoxal nos conduz a voltarmos novamente o olhar onde

aparentemente não há nada a ser visto, em um movimento que nos chama a transformação,

53 Disponível em: http://socialistamorena.com.br/familias-amputadas/. Acesso em jan. 2015.

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conectando passado e presente para pensar o futuro como verdadeiramente um gesto político

(LEVY, 2011).

Disparo no Coletivo a possibilidade de que a intervenção do dia 30 de março

provoque nos espaços a produção de outros modos de percepção, onde a vida seja a potência

sensível de mobilizar e agenciar afetos, fazendo da arte verdadeira máquina de guerra, como

indicam Deleuze e Guattari (1996). Com o tempo, fui percebendo também o quanto, para o

Coletivo, a produção das intervenções buscava, sobretudo, afetar as forças militares e demais

instituições do Estado que abrigam torturadores e participantes dos desaparecimentos e

mortes. Percebo nas falas, o quanto os locais escolhidos para se criar as intervenções eram, na

maioria das vezes, pensados nesse sentido, o que me inquietava também.

Centramos-nos em realizar duas intervenções. Uma exatamente no dia 01 de abril

utilizando as imagens 3x4 no muro do 23º Batalhão de Caçadores – 23º BC, e outra a partir da

colagem de lambe-lambes de imagens desses desaparecidos seguindo a mesma linha das

imagens familiares apresentadas na exposição Ausências, imagens essas em escala ampliada.

É essa a intervenção que será, portanto, apresentada com mais riqueza de detalhes.

As articulações e inquietações se davam no sentido de como o Coletivo chegaria até

as imagens familiares desses desaparecidos políticos, pois o que sabíamos era que essas

fotografias guardadas com todo apreço por familiares, acabam sendo imagens que carregam

uma presença, uma densa carga emocional para a família.

Para acessar essas imagens o Coletivo acaba se valendo da proximidade com

familiares de dois militantes em específico: Iara Xavier, ex-militante da ALN que teve o

companheiro Arnaldo Cardoso e os irmãos Iure Xavier e Alex de Paula, executados por forças

repressoras; e Tânia Gurjão, irmã de Bergson Gurjão, militante também morto pelo regime

ditatorial. Logo a possibilidade de acessar essas imagens, além das conversas com Iara e

Tânia, tornaram-se potencializadoras desse momento que significou o encontro de desejos.

Para Iara e Tânia, o Coletivo era naquele momento, a quem confiavam suas memórias,

reminiscências privadas que deixavam esse lugar para se tornarem parte de uma obra pública

e recente. Tornar-se assim, ignitor das lembranças de quem com ela tenha agora contato

nesses espaços. É como se naquele momento o Coletivo produzisse um falar em nome de um

“nós”, criando formas de enunciação coletiva, formando o tecido dissensual que criam

“possibilidades de enunciação subjetivas” (RANCIÈRE, 2012, p.65), próprias a ação do

Coletivo.

Tânia e Iara, por terem construído uma proximidade com o Coletivo, já haviam

compartilhado em momentos anteriores, algumas dessas imagens familiares, fragmentos de

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um tempo e vida. O que se apresenta na verdade é que esses familiares passam a conceber a

intensidade dessas fotografias. Quando deslocadas para o fora, carregam a possibilidade de se

transformarem em intensidades, de produzirem certa violência sobre o pensamento dando a

ver para além de uma imagem, ou ainda nas palavras de Ortega (2009, p.55) “o exterior, o

fora, constitui uma dimensão construtiva da existência”. Uma ação “contra o passado, sobre

um presente, em favor de um por vir” (Deleuze e Guattari, 1996, p.144), uma verdadeira

experimentação que por esse motivo se constitui enquanto constituição artística e não apenas

enquanto construção histórica.

Sinto nesse momento, que começa a se produzir outro modo do Coletivo se

experimentar enquanto grupo que se propõe partilhar de uma memória, criando interferências,

onde as diferenças tensionadas e acolhidas se apresentam como possibilidades de reconfigurar

o sensível diante da ausência. São imagens que rompem com o enquadramento da vida em um

retângulo 3x4 inventado novos modos de existência.

Diante da disponibilidade das imagens, tínhamos dimensão da responsabilidade que

carregávamos, uma vez que já não se tratava de imagens partilhadas no plano comum, mas de

memórias pessoais das famílias, do domínio privado, imagens intensivas que produzem a

atualização da vida familiar, que deixavam os álbuns para ganharem os muros.

Eis que somos apresentados a três fotografias. Em um momento do Coletivo em

Brasília, no encontro com Iara Xavier, somos apresentados as imagens de Iure Xavier e Alex

Xavier. Em Fortaleza, o contato com Tânia Gurjão nos revelou imagens sensíveis dos

momentos de Bergson junto a família. Nas três imagens há um comum, não são retratados

com familiares ou amigos, no entanto sozinhos em momentos de particularidades. Imagens

que apresentam traços e vestígios capazes de dar a sentir não só a existência, mas

propriamente a presença.

Nas imagens a baixo (Figura 24), as fotografias que foram disponibilizadas por Iara e

Tânia. Alex Xaiver é fotografado de um modo descontraído, vestindo apenas calças com parte

do corpo exposto, os traços evidenciam o rosto de uma pessoa ainda jovem, onde a vida pulsa

intensivamente. Iure em pé, mais sério, tem um dos braços cruzados. O modo como o corpo

se apresenta parece nos falar de um corpo já vivido. Na fotografia de Bergson um

enquadramento peculiar, um homem sentado em uma varanda parece contemplar o tempo. Os

traços parecem de alguém com pouca idade, ainda muito jovem, mesmo que as roupas

formais queiram dizer o contrário.

De ante mão nenhuma das imagens nos falam de um militante político e é para além

desse marca que as construções imagéticas nos espaços devem operar, forçando nossa visão,

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exigindo de nós que “abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não mais

veremos - ou melhor, para experimentar que o que não vemos com toda a evidência (a

evidência visível)” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.34), mas o que se apresenta visível/sensível

a todo corpo que não apenas restrito a visão.

Figura – 24: Fotografias: Alex Xavier, Iure Xavier e Bergson Gurjão.

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.

As tensões a cerca da intervenção não cessam e começamos a ponderar os possíveis

locais de disposição das imagens. Proponho pensarmos a partir de uma dimensão da

desterritorialização dessas imagens, (e aqui me refiro a pensar o desterritorializar

geograficamente), que elas sejam levadas à outros espaços da cidade que não façam,

necessariamente, referência a centros de tortura ou instituições de repressão, mas que

possibilite construir a cidade como um museu aberto.

É em meio aos espaços públicos diversos que as práticas artísticas se constroem, ao

mesmo tempo em que apresentam o imaginário social. Abrindo-se a um campo de

indeterminação a arte urbana permeia as construções simbólicas dos espaços públicos,

intervindo nos diferentes modos de construção desses espaços. Cria-se assim uma situação de

visibilidade latente, apontando ausências e que também corresponde a um modo de resistir em

meio as exclusões das cidades. Desterritorializar essas imagens é criar, desde logo,

expectativas de novas convivências.

Proponho que a intervenção aconteça em outro lugar que não localizado no bairro

Benfica, ponto de grande movimentação de estudantes e que concentra instituições de ensino,

além de uma intensa vida cultural. Assim, suponho que para esses, falar de memória e

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especificamente dos mortos e desaparecidos políticos não tenha a mesma intensidade quando

falo para outras pessoas que, supostamente, não tem o mesmo acesso à essas memórias, já que

boa parte desses estudantes conhecem muito do que foi o período e seus resquícios.

Não pretendo produzir apontamentos de que o Coletivo cria suas intervenções

vislumbrando determinados espaços e públicos específicos, direcionando suas intervenções, já

que a proposta é sempre de fazer com que o maior número de pessoas tenham acesso a essas

memórias. No entanto quando se concentra nesses espaços se restringe o campo de afetação,

correndo o risco de serem as mesmas pessoas que já conhecem sobre o período e suas

ausências. O que interessa é buscar outros espaços de construção estética, produzir outras

subjetivações.

Minha proposição foi então que essas imagens ocupassem outros espaços onde

pudéssemos construir enunciações dialogando com a cidade no seu sentido mais amplo, com

seus fluxos e o corpo social de modo mais intensivo, “criando novas formas de deslocamento

e ocupações, usos e contra-usos de espaços e corpos” (ZANELLA E FURTADO, 2012,

p.139). Logo, a busca por distintos espaços é também a possibilidades de criar linhas de fuga

nas palavras de Deleuze e Guattari (2012) na perspectiva de designar outras leituras e escritas

que possibilitem o duplo caminho de afetar e ser afeto para que se produza o pensar, lançando

mão de estranhamentos em nós e de nossas posições.

Desse modo, proponho que as imagens sejam trabalhadas em baixo do viaduto da

Av. Aguanambi, local de saída da cidade que chama atenção pela inequívoca autonomia que

possui. O lugar abriga formas diversas de vida e também de intervenções como grafite,

pichação, cartazes de propaganda e cartazes de grupos como as constantes intervenções do

grupo Crítica Radical, que ganham visibilidade também em outros espaços da cidade. É

também local de habitação, mas principalmente de passagem e do flaneur.

Não chegamos exatamente ao consenso se seria de fato aquele o lugar, mas havia no

próprio Coletivo o desejo de novas experimentações de espaço-tempo, capazes de produzir

inquietações. Diante da dificuldade de mais uma vez encontrar palavras que caibam no

processo de reconstrução dessa memória, seguimos mais uma vez pela possibilidade de um

linguajar imagético e intensivo e como Demoly (2008) em Maturana, o linguajar evoca toda

nossa dinâmica corporal que não apenas a fala, palavras que saem da boca, mas que perpassa

todo corpo. Certamente as palavras enquanto signo que se misturam aos sons desses espaços

constituem-se enquanto potência, no entanto a imagem representa a possibilidade de violentar

o pensamento no sentido de produzir rupturas, mais do que simplesmente dar a ver imagens.

Nas palavras de Didi-Huberman (1998, p.77):

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O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do ‘dom visual’ para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Entre aquele que olha e aquilo que é olhado (p.77).

Essa afirmação nos conduz pensar as intervenções artísticas enquanto

fundamentalmente criações ambíguas e plurais, o que acaba tornando-se central nas poéticas

do contemporâneo e também no trabalho do Coletivo. É necessário também perceber a

potência em outras construções que não apenas nos modos como coletivos espalhados pelo

país insistem em operar.

Esses novos modos de trabalhar o sensível, de criar a partir do que se tem em mãos,

modos muito próximos a nós, se apresenta como possibilidade do artista em “remontar a

trajetória e recompor o contorno borrado das imagens, devolvendo-nos sua nitidez” como

apresenta Bosi (1993, p.281). Cabe então, ao Coletivo Aparecidos Políticos devolver a nitidez

dessas memórias e das imagens que já não cabem no campo do privado, necessitando serem

expandidas.

Nas intervenções, o Coletivo trabalha os aspectos visuais no sentido de romper com a

linearidade dos locais, de produzir rupturas no modo de apreender esses espaços. Nesse

sentido o Coletivo opta por trabalhar imagens ampliadas e como afirma Furtado e Zanella

(2007) intervir nesses espaços é evidenciar que “a experiência estética faz parte da vida do

sujeito nesse contexto urbano como uma das formas de apropriação dessa realidade” assim, as

questões da memória podem se espalhar pelos espaços, ganhando contornos e visibilidades na

cidade ordenada.

4.2 Encontros urbanos efêmeros

Mergulhamos na intervenção no dia 30 de março, domingo. Data que antecedia a

semana que abria o mês de rememoração da instauração da ditadura. No momento em que

realizávamos a montagem dos lambe-lambes nos pontos escolhidos, os olhares voltados

pareciam ler perfeitamente o que se tratava, pareciam reconhecer os artefatos da intervenção:

cola branca, muitos papéis, um esquema de montagem na mão e pincéis de pintar parede.

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Havia no local diversos trabalhadores, taxistas e mototaxistas que permaneciam ali sem

estranhar, no primeiro momento, o modo como nos dispomos no espaço.

Os papéis, distribuídos no chão, começaram a ser montados paulatinamente em uma

das colunas, que já abrigava muitas camadas de cola e papel. Havia a preocupação de que as

imagens não recobrissem pichações ou mesmo intervenções em grafite realizadas pelo grupo

Crew54, uma vez que existe uma espécie de ética na produção estética em meio aos espaços

públicos, um modo de deixar evidente que aquilo que o outro faz é tão importante e

necessário para outras conexões com o mundo, quanto aquilo que faço.

Deparamos-nos com diversas propagandas, sobretudo de festas, serviços sendo

oferecidos, imagens de políticos, cartomante, várias e várias propagandas que recobrem essas

paredes como uma espécie de pele. Textos-imagens que vão se enraizando nas paredes da

cidade. Na imagem a baixo (Figura 25), o momento em que iniciávamos a colagem dos

cartazes, recobrindo imagens e textos diversos.

Figura – 25: Av. Aguanambi – intervenção lambe-lambe.

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.

No momento da colagem ficamos a imaginar que as imagens as quais disporíamos,

estavam também passíveis de serem recobertas pelas mesmas propagandas no momento

seguinte. Esse start nos colocava diante de uma experiência de tempo efêmero em toda sua

intensidade, uma existência passageira da qual não era possível dimensionar com exatidão sua

54 Para visualizar imagens acessar a página do grupo: https://www.facebook.com/VdmcrewVozDosMuros

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duração e potência de afeto, restando apenas os registros, imagens e vídeos que desempenham

um regime de criação, inventando máquinas de multiplicação que escapam o controle de

sistemas de validação, como é a internet.

A partir do momento em que iniciamos a montagem das imagens, dando-lhes volume

e construindo seus contornos, era possível perceber como rapidamente a ação, que momentos

atrás parecia banal, começava também a ganhar outros contornos, construir olhares inquietos

que ao encontrar as imagens pareciam tentar estabelecer a conectividade com o espaço, um

modo de tentar situar, também dentro de sim, certa conectividade. É momento de produzir,

em habitantes e transeuntes, o desmanche das fronteiras rígidas da vida, abrindo à

possibilidades de encontro de corpos intensivos, mesmo que materialmente seja impossível

produzir esse movimento.

A fotografia a baixo (Figura 26) apresenta o processo de construção da imagem de

Iure Xavier ao lado outras intervenções. A frente, um homem dentro do carro estacionado

acompanhou, durante certo tempo, a construção da imagem. Em determinado momento o

homem nos chamou e perguntou do que se tratava, nas palavras dele, aquela colagem. Na

imagem seguinte (Figura 27), mais olhares curiosos que iam de encontro a imagem tentando

construir alguma compreensão daquele momento.

Figura – 26: Av. Aguanambi – criação imagem Iure Xavier.

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.

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Figura – 27: Av. Aguanambi – criação imagem Iure Xavier olhares.

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.

As perguntas mais uma vez eram inevitáveis. Tentávamos responder dentro do que

nos parecia ser possível, explicando o processo, falando dos 50 anos, mas, sobretudo, do

quanto esse momento político marcou várias famílias com a ausência dessas pessoas.

Falávamos da data, mas sempre fazendo referências aos mortos e desaparecidos.

Na coluna lateral o acaso nos agraciava. Encontramos uma das intervenções

realizada pela Crítica Radical. A partir de vários cartazes repetidos em preto e branco com os

dizeres: “DITADURA NUNCA MAIS! NEM MILITAR! NEM CIVIL! NEM DE ESTADO!

NEM DE MERCADO!” (Figura 28), o grupo convocava as pessoas para um ato em

rememoração aos 50 anos da ditadura, marcado para o dia 31 de março de 2014 com

concentração no centro da cidade, mais especificamente na Praça do Ferreira. O momento

seria articulado com outros grupos da cidade que também estão ligados aos direitos humanos

e principalmente carregam a bandeira da memória, verdade e justiça.

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Figura – 28: Av. Aguanambi – Ditadura nunca mais. Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.

Não por acaso a intervenção do grupo Crítica Radical também tinha como proposta

dimensionar e tornar visível esse momento político social, e apesar criarem toda uma

articulação em torno da data, pelo peso simbólico dos 50 anos, alguns dos integrantes do

grupo, tinham ainda mais motivos de estarem produzindo todo o movimento e articulação.

Alguns de seus integrantes vivenciaram na pele os muitos horrores cometidos durante o

período, logo falavam da sua própria história, do que se carrega no próprio corpo, marcas

físicas e psicológicas que se estendem por toda uma vida. Um grupo político que assim como

muitos outros estão também ligados as questões concernentes a memória, verdade e justiça.

O encontro com a intervenção da Crítica Radical nos revela o quão aberto são as

possibilidades e conexões estabelecidas nos espaços urbanos entre práticas estéticas. Mais do

que o acaso ou coincidência, existe o desejo que produz essas aproximações que não passa

necessariamente pelo estar próximo fisicamente, mas pela sintonia dos desejos em um campo

aberto de produção e subjetivação política que é a cidade. Logo são encontros sempre

possíveis de acontecer, de se misturar e intensificar as possibilidades de afeto, entendendo

desejo não enquanto conceito abstrato, mas como fala Deleuze (1989) em seu abecedário,

desejar é construir agenciamentos é propriamente construir.

A estratégia do Coletivo se deu em utilizar duas imagens, cada uma de um lado da

avenida, posicionadas de frente para quem aguarda o sinal de pedestres para realizar a

travessia da avenida, uma vez que o intenso tráfego de carros e pedestres impele o tempo de

espera. As escolhas se deram por duas imagens, de um lado a de Bergson Gurjão e do outro a

de Iure Xavier. O tempo de espera do sinal, aproximadamente de 4min., era o suficiente para

que as pessoas se desconectassem da efervescência urbana e pudessem se conectar a outros

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movimentos em meio aquele espaço. Ao movimento do próprio corpo a partir do momento

em que se desconecta dos fluxos outros para se conectar às micropolíticas urbanas.

O grande número de pessoas que necessitam chegar até Av. Aguanambi e seguir por

um caminho transversal, seja sentido bairro Aldeota ou sentido Benfica, necessitam

obrigatoriamente descer na avenida e caminhar perpendicularmente, passando por debaixo do

viaduto até a parada de ônibus mais próxima, o que coloca o corpo em conexão com esse

espaço e consequentemente encontrando essas imagens. Na imagem a baixo (Figura 29) é

possível ver pessoas aguardando o sinal abrir para que possam seguir o percurso. Ao fundo é

possível ver a imagem ampliada de Bergson Gurjão em meio aos transeuntes que seguem no

sentido do bairro Benfica.

Figura –29: Av. Aguanambi – transeuntes.

Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.

Além da imagem, as palavras mais uma vez permeiam a intervenção, constituindo o

híbrido entre imagem e escrita. Na imagem de Bergson Gurjão, produzimos uma escrita por

cima da fotografia, no entanto cuidando para que a imagem de Bergson sentado na cadeira

não fosse recoberta. Em tinta vermelha a escrita de um trecho do poema “Desaparecidos” do

poeta uruguaio Mario Benedetti55, militante que participou ativamente da vida política de seu

país até a ocorrência do golpe de estado. Texto e imagem conseguem imediatamente nos

desestabilizar, provocando questões e ambigüidades em nós: “Ninguém os explicou se já se

foram ou se são tremores sobreviventes”.

55 BENEDETTI, Mário. Desaparecidos. Disponível em: < http://www.poemas-del-alma.com/mario-benedetti-desaparecidos.htm> Acesso em: 30 mar. 2014.

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O texto é na intervenção, parte dessa presença, do visível, valendo apenas pela sua

composição com os demais elementos visuais, frases e palavras escritas. Assim elementos

visuais e textuais são tomados pelo seu entrelaçamento, logo há pesos de imagens e palavras

que juntas, formam visibilidades. Signos e formas tem aqui o peso da realidade e reconstroem

a cidade enquanto espaço das manifestações diversas.

A palavra tem na intervenção sua gramatura, seu poder de afetar tanto quanto a

imagem e é nesse sentido que mais vale perceber a imagem que recebe essa escrita, enquanto

aquilo que Rancière (2012) prefere chamar de frase-imagem e diz que não há na frase um

dizível ao mesmo tempo em que não há na imagem o visível:

Elas desfazem a relação representativa do texto com a imagem. No esquema representativo, a parte que cabia ao texto era o encadeamento ideal das ações, a parte da imagem, a de um suplemento de presença que lhe conferia carne e consistência. A frase-imagem subverte essa lógica. A função frase-imagem ainda é a de encadeamento. Mas a partir daí, a frase encadeia somente enquanto ela é aquilo que dá carne. E essa carne ou essa consistência, de modo paradoxal, é a da grande passividade das coisas sem razão. A imagem tornou-se potência ativa e disruptiva do salto, da transformação de regime entre duas ordens sensoriais. A frase-imagem é a união dessas duas funções. É a unidade que desdobra a força caótica da grande parataxe em potência frástica de continuidade e potência imageadora de ruptura. (RANCIÈRE, 2012, p.56)

A potência da frase imagem é dar a ver de modo mais evidente aquilo que os olhos

certamente procurariam entender em seu tempo. Uni heterogêneos que ao aproximar distância

e tempos revelam o “segredo” do mundo que se escondem atrás de aparências. Texto e

imagem são construções a fim de que sejamos capazes de nos aproximar do murmúrio, e

dizível e visível ainda se confundem nesse jogo que se cria. Imagem e texto, dispostos nesses

espaços, esperam que possamos nos aproximar, nos convoca a nos reconhecermos nessas

imagens como parte daquela família.

Na imagem fixada no sentido contrário, Iure Xavier que é composto pela escrita de

um trecho de “Dissidência ou a arte de dissidiar” de Mauro Iasi: “Tempos de dizer: não mais

em nosso nome!”. A frase imagem nos convoca então a pensarmos se não estamos desde logo

falando em nome de um corpo social e não apenas de dois ou milhares de desaparecidos pelo

regime militar. Assim, a frase-imagem nos dar a enxergar que falamos de um corpo muito

maior e que sofre as interferências do Estado em momentos diversos ao longo da história.

Ao final da colagem, os olhares pareciam reconhecer as imagens, faziam conexão

entre o que se apresentava como texto e o que se propunha enquanto imagem na tentativa de

construir as conexões cabíveis. Imagens e palavras se avizinham da ruptura, o que

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potencializaria a visualização do trabalho e a aproximação entre a dor íntima e o caso que se

torna público.

4.3 Interferências urbanas: do rosto ao corpo

Recorrer a arte urbana se constitui um modo de problematizar questões concernentes

a vida em meio aos espaços urbanos a partir de produções artísticas. É por meio da

intervenção, nos espaços diversos da cidade, e mesmo em baixo de viadutos, que o Coletivo

Aparecidos Políticos constroem canais de comunicação com o corpo urbano, mas

principalmente a edificação da visibilidade política dos mortos e desaparecidos. Nessa linha,

Pallamin (2000) afirma que a arte urbana ultrapassa a concepção de intervir, deslocando para

a concepção de que a produção artística produz na verdade, a construção social dos espaços

de uma cidade, “uma via de produção simbólica da cidade, mediando suas conflitantes

relações sociais” (2000, p.13). Assim a arte urbana opera enquanto construção social e

simbólica dos espaços da cidade, produzindo visibilidades e materializando as conflituosas

relações sociais existentes nele.

Pensar a arte urbana nesse intermédio é aproximar a arte de modos de vida,

produções de mundos no espaço ambíguo da cidade e que também são produtoras de

subjetividades no campo do simbólico. Logo o que o Coletivo realiza é a criação de

ambigüidades por meio da produção de antagonismos, visibilizando o real, aquilo que falta. A

perda de alguém como capaz de comover outros e fazer pensar as causas dessa dor.

O que o Coletivo faz a partir das proposições em espaço aberto, é dialogar com as

possibilidades de criação na cidade, construindo modos de visibilidade que só são possíveis

nesses espaços. Por meio do desmanche de barreira, criando novos significados para esses

espaços.

Para Certeau (1994), os espaços da cidade estão abertos à reconstrução de sentidos os

mais variados. É tomando a assertiva do autor que trago o pensamento de que as práticas da

arte urbana estão desde já, coengendradas com o inventar processos. Dessa forma produzem

rupturas e a criação de sentidos outros, constituindo-se enquanto uma via de acesso a esse

modo de reapropriação, quer efetivando-se temporária ou permanentemente.

Na intervenção há a criação de significados outros para esses mortos e desaparecidos

que agora tem todo o corpo exposto, saindo do enquadramento 3x4. A aposta do Coletivo se

mostra ainda mais potente na criação de situações de visibilidade e presença inéditas,

apontando ausências até então imperceptíveis no domínio público ou resistências às exclusões

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aí promovidas, desestabilizando expectativas e criando novas convivências, abrindo‐se a uma

miríade de motivações.

O rosto ganha nova composição, ganha um corpo que aqui precisa ser compreendido

como fala Ribeiro (2008), não como “um corpo organismo, mas de um corpo pulsional,

intensivo, um corpo que também se faz enquanto corpo na medida em que percebe, marca e

cria memória” nesses espaços da cidade. Embora Deleuze e Guattari (2012) afirmem a

potência do rosto, e mais, que rosto e corpo não podem se confundir, o corpo pode passar

integralmente pelo rosto. Essa afirmativa nos conduz a pensar que nossa identidade passará

sempre pelas linhas do rosto que não se assemelham ao corpo, ou para além, se o corpo não

teria o mesmo poder de falar de nós como o rosto consegue.

Há no corpo uma intensidade profunda e se “o rosto é uma política” como aponta

Deleuze e Guattari (2012), desfazer o rosto também é no sentido de criar a recusa do rosto e

afirma as potências de afeto do corpo. Assim, o corpo se mostra componente indisciplinado,

que se desterritorializa a cada possibilidade de ser apreendido. O que o Coletivo resgata

quando trabalha imagens do corpo é a tensão de que corpo é memória e memória pode ser

corpo.

Não penso em adentrar aqui nos méritos a cerca do arquivo, mas fica explícito na

construção do Coletivo Aparecidos Políticos, o quanto o arquivo funciona como uma espécie

de resistência contra a morte. São imagens de um corpo que resiste, mesmo que por meio do

papel, ao desaparecimento, para se construir enquanto desejo de resistência que marca esses

espaços.

É importante situar que tipo de resistência se propõe o Coletivo. O conceito necessita

um olhar atento, já que tomamos resistência no sentido de uma criação/invenção que

possibilite a construção de novas possibilidades de vida. A resistência no trabalho do Coletivo

deve ser tomada a partir das proposições de Deleuze, Guattari e Foucault. Nos três autores

reside o comum que é pensar a resistência não enquanto embate de poderes, um bloco maciço

que se constitui a frente do poder do Estado que nega as subjetividades políticas que emergem

em meio aos espaços da cidade. Estado esse busca por meio de todos os dispositivos

disponíveis, tornar invisível toda a diferença que produz um contrário e novas subjetividades

políticas. Nos três autores a resistência se abre à criação de novos espaços de vida e

pensamento, não se deixando capturar pelos dispositivos de poder.

Para Foucault (1988) o poder existe emaranhado em uma rede vasta e multiforme de

relações, logo os pontos de resistência também se apresentam em multiplicidade ou como

“focos”. Foucault (1988) aponta que as resistências apresentam-se como pontos e nós sempre

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irregulares que se distribuem no jogo relacional com o poder. Essas resistências são, portanto,

capazes de produzir rupturas profundas, mas segundo o autor o comum é que elas sejam

pontos sempre transitórios em meio aos espaços.

Podem provocar levantes radicais, rupturas profundas, mas é mais comum serem

pontos transitórios. Do mesmo modo de funcionamento das relações de poder, as resistências

provocam reagrupamentos, introduzem clivagens e decorrem de estratégias. Foucault (2003)

elabora ainda um instigante e sugestivo apontamento acerca do ponto mais intensivo da vida,

sua capacidade de resistência estaria em estado mais latente justamente quando colidem com

o poder:

Afinal, não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade o fato de que nela o destino tome a força de uma relação com o poder? O ponto mais intenso das vidas, aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas. (FOUCAULT, 2003, P. 207).

Mas há no pensamento de Deleuze um contraponto em relação as assertivas de

Foucault com relação aos dispositivos de poder. Enquanto que para Foucault esses

dispositivos normalizam e disciplinam a vida, para Deleuze (2006) os poderes acabam

funcionando de forma repressiva já que “esmagam não o desejo como dado natural, mas as

pontas dos agenciamentos de desejo” como bem coloca o autor (2006, p.17). Logo Deleuze

evoca o aspecto mais interessante de se pensar a resistência. Muito menos a noção de uma

contradição e muito mais a como um campo social que busca fugir por todos os lados,

buscando suas linhas de fuga, de desterritorialização. Essas linhas não são necessariamente

revolucionárias no sentido mais amplo da palavra, mas é a elas que os dispositivos de poder

vão a todo custo tentar apreender.

Os dispositivos funcionam assim como uma linha de segmentaridade constituída de

conjuntos molares - Estado e suas instituições normatizadoras. Por linha molar, conceito

importante que tornará posteriormente, Deleuze e Guattari (2012) consideram ser uma linha

com poucas perturbações e se constitui de territórios organizados. Enquanto que a linha

molecular representa o fluxo que escapa pelos lados na busca por constituir outros territórios,

que não estão necessariamente livres das linhas molares ao passo que essa forma molar nunca

está também livre dos segmentos moleculares.

O desafio lançado por Deleuze e Guattari (2012) é então pensar a resistência ao lado

de uma linha molecular, composta de fluxos e intensidades presentes. A resistência é tomada,

desde então, enquanto fluxo desterritorializante e não enquanto mero contra aos mecanismos

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de poder, pois em certa medida, são os próprios mecanismos de poder que apresentam

resistência aos movimentos desterritorializantes que por suas singularidades desestabilizam

esses mecanismos.

Resistência evoca desde logo a possibilidade de criar o novo, já que a criação é a

mais intensa energia apresentada pela resistência. Michel Hardt (2014) em entrevista “A

resistência Antecede o Poder”, considera que o momento de criatividade latente é aquele

presente nos movimentos e nas lutas cotidianas, enquanto que o poder realiza tentativas de se

apropriar e absorver a criatividade da multidão. Quando se abre mão da criação e se passa a

querer o poder, pairando o desejo de dominar, existe a sobreposição das forças do poder sobre

os desejos de resistência.

A concepção de resistência em Deleuze se liga assim a uma nova forma de resistir

que busca a superação de uma sociedade disciplinar. Assim, a ação do Coletivo em espaços

diversos implica no que Foucault (1996) reconhece nos trabalhos de Deleuze e Guattari, como

a possibilidade de expulsar de nós e do nosso cotidiano, o encantamento pelo poder e tudo

que carrega consigo, sobretudo a negação da vida e suas intensidades. Essa resistência que, ao

invés de anteceder ao poder, deve produzir modos de vida que necessariamente não

perpassem pelo poder.

A resistência no Coletivo Aparecidos Políticos é a possibilidade de criação da

existência dos mortos e desaparecidos políticos nos espaços da cidade, criando também novos

espaços de vida e pensamento. O verdadeiro ato criativo e de resistência, se apresenta quando

as imagens ampliadas dos corpos se conectam ao devir e cria uma espécie de ponte que

conduz ao acontecimento histórico e à eclosão do novo em uma estrutura marcada pelas

continuidades.

Na colagem dos lambe-lambes a resistência é possibilidade de lutar, com todas as

forças e armas pela vida, por mais que não haja uma vida material, um corpo organizado que

se materializa diante de nós. No entanto a vida se apresenta de outro modo, evocando a

existência por meio da arte. Para isso Deleuze e Guattari (2012, p.63) apontam que:

São necessários, sem dúvida, todos os recursos da arte, e da mais elevada arte. É necessário toda uma linha de escrita, toda uma linha de picturalidade [...] Mas a arte nunca é um fim, é apenas um instrumento para traçar as linhas de vida, isto é, todos esses devires reais que não se produzem simplesmente na arte, todas essas fugas ativas, que não consistem em fugir na arte, em se refugiar na arte, essas desterritorializações positivas que não irão se reterritorializar na arte [...].

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Como indica Feitosa (2007, p. 29), “todo ato de resistência é uma resistência à

morte”. Logo, ao trabalhar as imagens desses corpos, o Coletivo os afirma enquanto sujeitos,

atirando-nos ao inesperado dos espaços e a todo e qualquer modo de existência. Resistem

porque criam e inventam o próximo instante, inventam memórias e posições desses mortos e

desaparecidos na certeza de que nada está pronto e de que as posições podem ser refeitas.

Resistem porque persistem e insistem, mesmo que a morte seja certa, que o espaço, já

abarrotado por tantas outras imagens, pareça não acolher essas imagens e memórias, mesmo

que os contratos já estejam feitos e que esses continuem a ocupar o lugar de mortos e

desaparecidos pela ditadura.

4.4 Segmentos molares e moleculares: atravessamentos imanentes

Linhas molares e moleculares, dois fluxos distintos, mas que nos atravessam

simultaneamente. Como afirmam Deleuze e Guattari (2012, p.99) “todo indivíduo e toda

sociedade, são, pois atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e

outra molecular”. Distinguem-se por não terem a mesma natureza, por não operar os mesmo

termos, nem as mesmas intensidades. São inseparáveis e nesse fluxo de coexistência passam

uma para a outra sempre em pressuposições. Assim também opera o Coletivo Aparecidos

Políticos, constituído não só pelas linhas moleculares, mas também pelas linhas molares que

se intensificaram na medida em que o Coletivo foi ganhando certa notoriedade nos espaços da

cidade.

Pensar esses movimentos é também pensar como o Coletivo se constitui em meio ao

embate entre forças e as formas que são na verdade, fluxos moleculares e molares. A

intervenção do Coletivo na Avenida Aguanambi marca esse momento de retorno aos espaços

da cidade, tornando a operar nas forças, o que realmente interessa quando se propõe pensar

enquanto coletivo que não se deixa capturar e que representa o entre, arte política.

Esse momento evidencia a passagem, ou na verdade o retorno aos fluxos moleculares

que constituem o Coletivo. É importante assinalar como Escóssia e Tedesco (2012) afirmam,

que uma atuação nas formas é quando confundimos o coletivo com o conceito social a partir

de organizações formais da sociedade e que trazem a clara oposição coletivo indivíduo. O que

interessa é pensar dois planos distintos nos quais operam o Coletivo Aparecidos Políticos – o

plano das forças e o plano das formas.

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De acordo com Escóssia e Tedesco (2012), o plano das formas corresponde ao plano

do instituído, com contornos bem definidos concernentes a figuras que já possuem certa

estabilidade, enquanto que o plano das forças corresponde ao plano de relação das forças e

que desconhece grupos, regras fixas e estabilidade das posições evocando a pluralidade e o

contato entre singularidades.

Até o momento da intervenção na Avenida Aguanambi, o Coletivo foi atravessado

por um longo período em que operou seguramente no plano das formas, voltando-se para

ambientes que categoricamente tentam enquadrar o Coletivo reduzindo ao social. Até 2012,

as intervenções do Coletivo nos espaços da cidade de Fortaleza, como também produzindo

interferências em outras cidades do país, foram intensos.

Nesse percurso o Coletivo ganhou visibilidade, chamou atenção como produzia suas

intervenções e como o trabalho mexia com o sensível de um modo muito peculiar, somente

possível nos processos artísticos do contemporâneo que nos desestabilizam e nos tiram de

nossas posições passivas. Havia no Coletivo a noção de um agenciamento de que fala Deleuze

e Parnet (1998) e que se coloca como mais apropriada na definição do seu funcionamento

nesse momento. Nesse processo de agenciamento nos colocamos em uma linha de encontro

entre dois mundos, um plano de criação e coengendramento dos seres, de criação de mundos.

Desse momento em diante percebe-se a intensificação do desejo de grupos e

instituições de se aproximarem do Coletivo que naquele período já se tornara referência no

sentido de sua atuação: aquele tem como propósito resistir ao apagamento da memória pelo

que evoca como potência da arte política. O tempo de criação é então sucumbido pela

participação em outros espaços que o Coletivo também desejou estar. Começa assim a operar

no plano das formas, inconscientemente se deixando capturar por esses momentos que

roubam esse tempo.

Ao mesmo tempo, e de modo contraditório, é preciso enxergar nesses espaços a

possibilidade de construir desterritorializações, espaços de enunciações capazes de apresentar

o que se constrói nos espaços urbanos. No entanto vale pensar como o Coletivo vai se

deixando conduzir e como os desejos que surge vão dando conta de uma forma, de uma linha

segmentar dura, que passa a sobrepor o fluxo molecular que atravessa o Coletivo.

No mesmo período surge a proposição de que o Coletivo possa se desterritorializar

geograficamente, que seja capaz de ganhar outros espaços, já que as vistas de muitos grupos,

o Coletivo já se tornara “referência” na atuação da arte política no sentido produzir sensíveis

sobre o período ditatorial evocando a presença e mortos e desaparecidos nos espaços urbanos.

Ao primeiro momento houve a proposição de que se pensasse, articulado com outros

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espalhados pelo país, a criação de células do Coletivo que seriam regidos pelos membros

situados em Fortaleza, uma espécie de institucionalização do Coletivo. Isso nos fez perceber e

também olhar com desconfiança essas proposições e desejos, se não passavam essencialmente

por uma questão de poder ao invés de resistência, exatamente como Hardt (2014) colocava a

respeito da relação resistência/poder.

A conversa no Coletivo tomou outros rumos e afirmamos o desejo de seguir

enquanto coletivo que deseja intervir e que não precisa, necessariamente, se localizar e

afirmar sua atuação a partir das linhas duras, mas atuando pela flexibilidade tão potente e tão

presente nos coletivos que buscam construir proposições artísticas que fogem as posições

fixadas.

Propomos assim, operar articulados à coletivos diversos espalhados pelo país, mas

que não necessariamente necessitassem passar pelos movimentos de institucionalização,

modelos de homogeneização tão recorrentes nas estruturas sociais do contemporâneo. Desse

modo, propomos como aponta Faro (2014, p.234) atuar “em redes e movimentos não

localizados, mas espraiados, múltiplos e colaborativos” em posições de horizontalidade que

chamam à criação contínua de outros modos de vida.

O momento operou evidenciando ao Coletivo do quão a captura é passível de ocorrer

mesmo em nós, que nos propomos outros modos de operar. Talvez por entender que mesmo

nas linhas duras é possível haver outros fluxos de vida. Passamos então a filtrar os espaços de

fala, se seriam importantes de fato para o Coletivo, e pensar cada vez mais em articulações

que fossem capazes de dar maior visibilidade para os movimentos em torno dos mortos e

desaparecidos políticos. Ocupar espaços e planos, sejam eles molares ou moleculares, se faz

necessário quando fazemos isso não em nome de desejos particulares, mas em nome de

desejos comuns. A intervenção na Avenida Aguanambi é então o momento de afirmar a

invenção de mundos, “um plano imanente e concreto de práticas e de relações ético-políticas”

(ESCÓSSIA E TEDESCO, 2012, p.98). O desejo e as ações são, portanto, no sentido de que

as singularidades possam encontrar, entrar em contato com as formas propondo novas

direções, novas possibilidades de invenção.

A arte sempre correu e sempre correrá o risco de ser veementemente cooptada pelo

sistema, não só pelo sistema da arte, mas pelo econômico, pelo político e todos os sistemas

que operam na centralização de um mundo único, sem repartições ou fraturas. Subverter esses

sistemas faz da ação do Coletivo Aparecidos Políticos, um desvio no condicionamento da arte

tomando enquanto ação política. Recorro assim as palavras de Rancière (2007, p.129) para

pensar que “a resistência da obra não é o socorro que a arte presta à política. Ela não é a

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imitação ou antecipação da política pela arte, mas propriamente a identidade de ambas (idem,

p.129)”. A definição de Rancière retira qualquer interpretação de uma função política que a

arte possa desempenhar, pois como afirma Adorno (1997), “a função da arte é não ter função”

dando a ver a existência de um poder estético e de sensibilização que compõe sua resistência.

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5. QUANDO A INTERVENÇÃO URBANA EVIDENCIA O PODER DO ESTADO FRENTE AÇÕES CONTRA HEGEMÔNICAS: RELATOS DA INTERVENÇÃO OPERAÇÃO CARCARÁ

Criar situações que nos conduzam a um bom encontro e nele procurar quais

elementos, sujeitos, matérias, ideias que ao entrarem em contágio com nossas potências são

capazes de formar uma potência maior, capazes de resultar em alegrias e afetos muito

maiores. Com o passar do tempo, criamos sensores corporais e uma certa sagacidade que nos

coloca diante do processo de aprender a selecionar e produzir nossos encontros. Aprendemos

a fazer uso do que aparentemente se apresenta “contra” nós, desestabilizando nossas forças,

para produzir potências de agir, evidenciando os jogos de poder, relações de força que se

estabelecem na sociedade.

Pensar nas intervenções do Coletivo é também pensar que a arte se aproxima do

campo de disputas pela democracia em meio ao cenário contemporâneo, marcado por

profundas transformações. Práticas artísticas que se apresentam não só enquanto aquilo que

segue as linhas de fuga de uma invenção política e confrontação da hegemonia dominante,

mas propriamente enquanto amplo movimento capaz de construir uma democracia radical, de

que fala Mouffe (2007) onde além de reconhecer a pluralidade humana, a partir de seus

movimentos diversos, conceba a convivência dos distintos grupos, frentes de atuação e seus

modos de vida - mesmo que de modo não harmonioso - ao invés de sua exclusão.

A Operação Carcará, performance desenvolvida pelo Coletivo Aparecidos Políticos

dentro do Salão de Abril, em Fortaleza, evidenciou os jogos de força que operam no campo

social, nas linhas molares (campo da macropolítica) como indica Guattari (1980), onde se

enfrenta o poder do Estado que insisti em produzir a institucionalização de nossas vidas.

Linhas duras, no entanto passíveis de sofrerem pequenas fissuras por meio das linhas

moleculares, onde, entretanto, se produz vida, ordem “dos fluxos, dos devires, das transições

de fases, das intensidades. Essa travessia molecular dos estratos e dos níveis, operada pelas

diferentes espécies de agenciamento, será chamada de transversalidade.” (GUATTARI;

ROLNIK, 1996, p.321).

5.1 O contar de uma experiência estética política – Operação Carcará

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O medo, tensão, incerteza, adrenalina e ao mesmo tempo uma alegria indescritível de

mais uma vez construir um modo sensível de falar dos mortos e desaparecidos do regime

militar. Foram esses os sentimentos atravessados pelos integrantes do Coletivo Aparecidos

Políticos que dias anteriores, haviam realizado a intervenção na Avenida Aguanambi com as

imagens retiradas dos arquivos familiares dos desaparecidos políticos, o que nos dava um

novo ânimo e reascendia o desejo de estar nos espaços da cidade.

Operação Carcará. Carcará, pássaro do sertão cearense e que também se constituiu

enquanto símbolo da Aliança Libertadora Nacional (ALN)56 no Ceará. O nome sugestivo já

fornecia pistas para pensar no que poderia consistir a intervenção proposta pelo Coletivo

Aparecidos Políticos para a 65ª edição do Salão de Abril, ocorrido em 2014. Uma proposta

que se apresenta ousada, uma vez que propunha a criação de uma situação em torno do mês

de rememoração dos 50 anos da ditadura no país. A ação se apresentou enquanto modo mais

enérgico, audacioso e de embate direto contra as forças molares que regem a organicidade do

país.

O que nos produziu certo espanto foi sem dúvida, a sugestão do Salão em 2014,

apresentando a urgência de abarcar trabalhos que tinham como proposta nessa edição, a

urgência de pensar a produção artística ligada aos movimentos da vida, apontando a

emergência desse movimento frente ao que se vivia naquele momento exatamente: ano de

eleição, Copa do Mundo e de diversos acontecimentos que eclodiam em diferentes partes do

país. Trago aqui o texto curatorial para dimensionar também a heterogeneidade dos trabalhos

apresentados ao Salão, mas principalmente apresentar o olhar sensível da equipe curatorial

sobre esses trabalhos. Ao que se coloca, um olhar que percebe os entres de cada trabalho.

Alerta Laranja!

O Clima da 65ª edição do Salão de Abril é de urgência. Urgência em relação ao contexto social de violência urbana e indiferença das instituições políticas, em relação ao passado e ao presente que não se colocam como contingentes, contra a arte que aspira estabilidade. Mas atenção: nenhuma obra aqui pensa estar inventando a roda. Engajar-se crítica e esteticamente, ainda que nem sempre esteja em voga, não é novidade e seguramente os artistas sabem e investigam suas próprias genealogias. No entanto, acredito que o modo como esses artistas articulam tais questões indicam possíveis chaves de leitura sobre a produção contemporânea de artes visuais. Logo de saída, em face à seleção final das obras, é preciso notar a reincidência de um procedimento: a apropriação de imagens com conteúdo

56 Organização política que sob a ideologia socialista participou da luta armada contra a ditadura militar no Brasil.

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manifestadamente político. Moldadas de acordo com as intenções dos diferentes artistas, essas cenas aparecem recontextualizadas, comentam e apontam para os problemas que hoje enfrentamos. Esse posicionamento crítico em relação à organização social aparece também de forma explícita, através de apropriações de mobiliário urbano ou burocrático, em performances, em fotografias, em pinturas. Cada obra, à sua maneira, coloca-se diante do espectador incitando-o às bandeiras, sejam elas quais forem. Outro grupo de artistas parece estar preocupado com (ou pelo menos me faz perceber) questões do próprio sujeito criador, voyer ou protagonista de situações abismais, invariavelmente solitárias. Daqueles que infligem alguma tarefa hercúlea – raspar, esvaziar, colecionar, sustentar, sempre no limite do quase impossível - , à técnica exaustiva da gravura ou da pintura, todos expõem-se em situações que fazem nossas atenções gravitar entre o que se vê e o sujeito que se propôs a fazê-lo. Há ainda um conjunto de obras que não se subordinam tão explicitamente a esse olhar do curador, que insiste em agrupar e visualizar aproximações. Nesse não-grupo encontram-se por um lado, trabalhos que criam uma atmosfera de absurdo e resistência. Por outro, trabalhos que desafiam o crítico, que escarnecem das regras e convenções pré-estabelecidas ao se submeterem religiosamente a elas. Conceituais sim, por vezes irônicos, todos trazem consigo ventos fortes diante dos quais não podemos ficar indiferentes.

Porto Alegre – Fortaleza, Abril de 2014. Gabriela Motta, curadora do 65º Salão de Abril

Como o texto indica, são trabalhos que sopram ventos fortes e nos convoca a pensar

que carregamos o estranhamento em nós, no entanto, é preciso que estejamos dispostos diante

das situações, e aqui insisto em dizer, que sejam capazes de violar o pensar e nos desperte

para outros significações da vida, mesmo diante da ausência da vida. Há a necessidade de

convocar o movimento constante de um inventar-se e perceber que resistência da vida se

encontra também nos movimentos da arte.

Nesse jogo, o mundo não está dado como certo e os lugares não são estáticos, por

isso cabe aos processos artísticos romper o que se apresenta como evidência e alcançar, na

arte o próprio plano da imanência. “A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à

infâmia, à vergonha” (DELEUZE, 1992, p.219). O gesto artístico-político se abre ao mundo

buscando, com efeito, uma imersão nas intensidades e no que é capaz de mover a vida

cotidiana. Deleuze (1992) nos diz então:

Acreditar no mundo é o que nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou

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engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. [...] É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (DELEUZE, 1992, p.222).

Desse modo o Coletivo Aparecidos Políticos enxerga na proposta do Salão a

possibilidade de produzir o desmanche da polarização arte e vida, passado e presente para

trazer a tona o pensamento de que, no momento em que criamos, seja uma situação, objeto,

imagem e principalmente a performance, estamos também nos criando, um processo de

criação de modos de existência que escapam aos dispositivos de controle, criando assim

resistência.

Mais uma vez, não interessa para o presente trabalho pensar e trazer abordagens

diversas a cerca da performance. No entanto é imprescindível a busca de concepções que a

localizem enquanto processo, não correspondendo a um objeto acabado ou qualquer outra

concepção siga nesse sentido, mas como apresenta Schechner (2006) a performance se inclui

nos muitos domínios da vida social, não se restringindo apenas ao campo artístico.

Para MeLlim (2008) o termo performance também necessita ser compreendido a

partir de um sentido ampliado, pois há um número variado de concepções. Podem ser gestos,

mas também a criação de situações que convocam a experiência coletiva:

Nas artes visuais, sempre que ouvimos a palavra “performance”, é comum nos remetermos de imediato à utilização do corpo como parte constitutiva da obra, e nossas principais referências têm sido frequentemente os anos 1960 e 1970. Muitas vezes, também, somo levados a pensar em um único formato, baseado no artista em uma ação ao vivo, visto por um público, num tempo e espaço específicos. (MELLIM, 2008, p.57)

É a partir da criação de modos que não fujam aos domínios da vida cotidiana que o

Coletivo Aparecidos Políticos busca por meio de equivalentes sensíveis, encobrir a

indiferença por meio do peso das imagens e da memória dos que durante muito tempo foram

invisibilisados, que não cabiam na memória do país, ou mesmo que não integram o cálculo

produtivista. É importante situar que não cabe aqui refletir sobre parcelas de culpa, apontar

certo ou errado, no entanto, pensando nos fluxos que regem a democracia radical, reside a

necessidade de reconhecer todos dentro do sistema de evidências visíveis e dizíveis. Como

Mouffe (2007) aponta, o pluralismo é fundamental para a definição de uma democracia

moderna, o que inclui adotar formas difusas que conduzam ao pluralismo na esfera pública e

as possibilidades de reconhecimento das partes que a conformam.

A proposta da performance foi ainda um modo de instaurar fissuras no modelo

contemporâneo de produção artística, que em determinados momentos parece relegar as

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manifestações artísticas impregnadas de um teor político que ultrapassa os limites físicos dos

espaços concebidos à arte, para se expandir nos espaços da cidade e atingir o corpo que “é um

modo de relação com o mundo; o corpo é a casa, a casa é o mundo, um corpo e um mundo

que se confundem nas práticas do cotidiano” (Silva in Galeno, 2003, p.125).

Ao contrário, o Salão de Abril se mostrou aberto não apenas aos objetos e imagens,

mas a criação de situações, mesmo que claramente não estivessem sujeitas a serem

classificadas como arte. No entanto as potências de visibilidade das produções da arte nos

mostram aquilo que é e encoberto pelos sistemas hegemônicos e nesse intermédio,

visualizamos a arte política em seu estado latente.

A maneira como a arte que não se parece com arte se relaciona com a sociedade passa pela atenção a qualquer aspecto das formas, dos meios e situações de vida dessa sociedade. A atuação desse tipo de arte produz-se através da vida social. (FERVENZA, 2005, p.81. Grifos do autor).

É a própria ideia da antiarte, conceito formulado por Oiticica, que o coloca como via

de resistência da arte em direção a constituição de novas formas de vida. Não há, assim, a

distinção de maneiras de fazer ou mesmo encarar a existência de um papel próprio do artista,

separado dos contextos com os quais esteja implicado. No mergulho da afirmação de que arte

é política, a preocupação primeira será sempre de centrar-se na vida e nos constantes embates

existente ente arte e mundo.

Nesse sentido, o Coletivo Aparecidos Políticos apresentou ao Salão não a proposta

de um objeto pronto e acabado, mas uma situação vivida, contada e recontada além de

acompanhada pelos curadores. Foi o momento de acolhida da diferença na produção artística

visual que também colocou o Coletivo diante do que se apresenta como um dos poderes

hegemônicos, e mesmo diante da perda de forças perante o regime “democrático de direito”,

carrega na sua essência a exclusão e o confinamento da memória.

Enquanto proposta, a performance Operação Carcará, consistia em lançar de uma

aeronave, que inicialmente se pensou na possibilidade de ser um helicóptero, cerca de 140

miniparaquedas confeccionados pelos integrantes do próprio Coletivo. O objeto carregava na

sua fragilidade estrutural, o peso descomunal da dor e da ausência dos mortos e desaparecidos

pelo regime ditatorial.

O objeto, elaborado a partir de sacola plástica, para produzir o que em um

paraquedas normal recebe a denominação de velame - parte que se abre e diminui a

velocidade do corpo em queda; linha encerada e uma pequena garrafa de aproximadamente

9cm de altura, contendo água adicionada de corante para produzir o contrapeso.

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A partir das extremidades das sacolas, nas cores vermelhas, amarelas e pretas,

cortadas em formato circular e medindo aproximadamente 30cm de diâmetro, foram

amarradas as linhas finas de cor branca. As minigarrafas, transparentes com tampa de cor

vermelha, recebiam pelas tampas, as amarras de linha. Assim em uma extremidade das linhas

se tinha o velame preso e na outra, a garrafa responsável pelo contrapeso.

Mais uma vez a reincidência em um procedimento: o uso de imagens, os rostos dos

mortos e desaparecidos políticos, imagens de cerca de 140 nomes estampavam as sacolas e

também as garrafas. Para as sacolas foram criados stencils, moldes que a partir da aplicação

em spray deu forma aos rostos dos desaparecidos. Para as minigarrafas o mesmo rosto

impresso na sacola, porém impressos em cor preta e em escala reduzida, cumpriam a função

de rótulo. Dentro da garrafa água dissolvida a corante de cor amarelado realizava o contrapeso

da garrafa. Na imagem que segue (Figura 30) é possível visualizar o processo final após a

montagem dos miniparaquedas e na imagem seguinte (Figura 31), os 140 miniparaquedas

dobrados e organizados, prontos para serem lançados.

Figura Figura – 30: Paraquedas montados. Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.

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Figura Figura – 31: Paraquedas montados prontos para lançamento. Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.

A região do 23º Batalhão de Caçadores57, local de treinamento do Exército Brasileiro

no Ceará, situado em um dos bairros mais antigos de Fortaleza, foi a área escolhida para o

lançamento dos miniparaquedas. A escolha do local se deu por motivos simbólicos e também

concretos, pois durante a ditadura o local abrigou um centro clandestino para práticas de

tortura, constando inclusive no relatório entregue no final de 2014 pela Comissão Nacional da

Verdade58.

Após a preparação do material deu-se início ao momento mais poroso da ação e aqui

contar o processo parece interessante para que se possa compreender a trama da democracia

liberal que tem na sua base, a ordem policial, o que Rancière (1996, p.41) conceitua como

“conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das

coletividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares

e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição” que habitualmente é tomado

como política. A ordem policial vai determinar, nas palavras de Rancière (1996), não uma

disciplinarização dos corpos, mas se esses corpos podem ou não aparecer, logo é a ordem de

regulação da ocupação dos espaços.

Essa ordem se estabelecesse de modo consensual e nesse sentido é possível perceber

o quanto vivenciamos modulações e ocupações bem definidas. Logo o primeiro impasse do

Coletivo na realização da performance, se deu na tentativa de encontrar uma empresa que se

depusesse a realizar o sobrevôo na região do 23º BC. Defronte a desconfiança das empresas

57 Me reportarei posteriormente utilizando a abreviatura 23º BC. 58 Para mais informações acessar o link: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_pagina_593_a_958.pdf

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que poderiam realizar o sobrevôo, eram feitas diversas exigências para realizar o que nos

parecia, diante mão “simples”. Duas empresas se recusaram de pronto a realizar. Todas

alegavam diversos motivos que não se encadeavam em uma sequência lógica e fosse capaz de

explicar coerentemente a impossibilidade, mas o que se evidenciou em todas as falas, era a

“complicação” de ser especificamente naquela região. Mesmo o Coletivo estando disposto a

pagar um valor superior ao valor real pela hora de vôo as empresas se negavam.

Esse momento nos mostrou o temor generalizado daqueles que foram na história do

país, os maiores violadores dos direitos humanos e que mesmo após o fim do regime militar,

continuam a exercer um poder, uma espécie de dominação invisível sobre a sociedade que

continua a enxergar e a legitimar esse poder a partir do medo e do silêncio.

O desejo de realizar a ação no dia anterior a abertura do Salão se configurava como

impossível diante das inúmeras tentativas de conseguir uma aeronave que realizasse o vôo.

No final da tarde, após esgotar praticamente todas as possibilidades de que alguma empresa

aceitasse realizar o vôo, iniciamos novamente uma série de ligações, agora para o Aeroclube

do Ceará. Na primeira ligação conseguimos de pronto, que uma empresa que realiza cursos,

mas que também faz vôos aceitasse realizar.

Empregamos, naquele momento, estratégias. Explicamos em que região o vôo seria

realizado, mas já não citávamos a palavra exército. Tivemos todo o cuidado e atenção em

dizer que se tratava de um trabalho realizado por um coletivo de arte da cidade dentro de um

evento com abertura no mesmo dia, deixando aberta às diversas interpretações que pudessem

ser produzidas. Após o secretário do Aeroclube se certificar da possibilidade do vôo, fomos

avisados de que sim, seria possível, e que teríamos, portanto um monomotor disponível no dia

15 de abril aproximadamente as 16h da tarde.

Paralelamente, circulava nos veículos de comunicação da cidade e no próprio site da

Secretaria de Cultura de Fortaleza (ver ANEXOS), responsável por promover o Salão, uma

nota informando que a performance desenvolvida pelo Coletivo Aparecidos Políticos, lançaria

de uma aeronave, paraquedas com imagens de mortos e desaparecidos políticos, dando

inclusive detalhes do local e horário onde ocorreria. Aqui incide a inserção de informações

que seriam veiculadas pelo próprio circuito de comunicação, logo o que o Coletivo

Aparecidos Políticos faz é “utilizar o próprio sistema de distribuição como veículo de outras

proposições que o abram a uma percepção e a uma atuação crítica”. (FERVENZA, 2005,

p.81). Assim o Coletivo age pelas brechas no sentido de produzir a afirmação do litígio e

acreditando na potência dos gestos e ações.

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A caminho do ateliê do Coletivo, ponto de encontro e de onde partiríamos para a

performance, já era possível notar uma movimentação atípica nos arredores do 23º BC. Havia

no pátio do quartel caminhões com homens fortemente armados e que a todo o momento

entravam e saiam do espaço. Além disso, vários soldados posicionados nas guaritas e no pátio

principal, todos atentos, como quem se preparava para receber o “inimigo”.

No horário marcado com o Aeroclube, seguimos acompanhados de um amigo

advogado para o local de decolagem. Após o acerto financeiro fomos convocados pelo

presidente do Aeroclube para sua sala, que deu início a uma série de perguntas. Começamos a

esclarecer e a falar de que se tratava aquele vôo. Iniciamos a conversa falando que era uma

performance artística dentro do Salão de Abril e com os paraquedas em mãos o Coletivo

apresentava o que seria lançado. O então presidente informa que para conseguirmos realizar o

lançamento seria necessária a liberação da torre de comando e que dificilmente a mesma

autorizaria lançar qualquer objeto naquela região. No sentido de evitar desconfiança, a partir

daquele momento já não citávamos que o lançamento seria sobre o 23º BC, mas sim nas

imediações do Instituto Federal de Educação - IFCE, situado geograficamente bem próximo

ao quartel.

Depois de muita tensão e um bom tempo tentando negociar e muito nervosismo de

ambas as partes, a torre então libera o vôo. No entanto, os pilotos que entravam na sala se

recusavam de imediato a realizá-lo temendo represália, mesmo o advogado assegurando todo

aparo judicial caso ocorresse algo. Na insistência e tentativa de convencimento, por parte do

Coletivo, eis que adentra a sala um piloto, aparentemente mais um que se recusaria diante da

proposta. Explicamos toda a situação e do que se tratava. O piloto prontamente diz que vai

realizar o vôo sim. Aparentemente emocionado com os paraquedas em mãos e achando a ação

“audaciosa demais”, nas palavras dele, o piloto passa a nos contar o que conhece sobre o

período, de quanto aquele momento marcou “a vida de muita gente”. Parecia alguém que teve

um parente ou familiar morto ou desaparecido pelo regime, ou apenas alguém com o senso de

justiça aflorado. Por um instante não acreditávamos que o acaso havia nos agraciado.

Passamos a chamá-lo de Piloto Carcará, para preservar sua imagem.

A atitude do piloto nos faz perceber o que Deleuze e Guattari (2012) aponta como

sendo um fluxo molecular que escapa, que mesmo as segmentaridades duras não estão imunes

aos microperceptos, de afetos, operando de outro modo. No entanto essa fuga molecular, esse

ato micropolítico não seria nada se não atravessasse essa organização molar. É logo o ponto

máximo de evidência de que molar e molecular se distinguem, mas que não são inseparáveis,

podendo coexistir.

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A ação do piloto muito de aproximava de nós e dos nossos desejos. Desejos esses de

encontrar e fazer com que mais pessoas possam agir em nome dessas singularidades negadas,

independente de ter vivenciado ou não o período. Um processo onde se produz em nome

daqueles que caíram sem palavras, para que não sejam mais entendidos como ruídos do

passado, mas enquanto discurso sempre presente.

Eis que o piloto chama o Coletivo em uma sala e instrui para que seja separado

apenas alguns paraquedas que devem ser levados em uma mochila. A estratégia adotada é

para que a torre de comando, que visualiza o deslocamento até a aeronave, não desconfie. Por

conta do tamanho da aeronave é possível que apenas uma pessoa embarque com o piloto. Um

dos integrantes, Marquinhos, embarca com a mochila contendo apenas alguns paraquedas,

uma câmera pequena e o celular para contato.

Ao decolar, o piloto repassa para a torre de comando o mapa de vôo. Inicialmente o

retorno é de que é impossível sobrevoar a região do Benfica, pois houve o fechamento do

espaço aéreo que compreende a região do 23º BC. Com o desejo de seguir com a ação, o

piloto insisti e pede autorização para sobrevoar próximo aquela região, nas imediações do

Castelão. Depois de um tempo de espera piloto e tripulante são informados de que na verdade

a aeronave se quer poderia ter decolado, uma vez que o espaço aéreo de Fortaleza esteve

fechado durante todo o dia para vôos particulares. A aeronave é então obrigada a retornar.

Enquanto isso o piloto comenta que aquela ação mexe “com coisas pesadas” e que aquilo para

muita gente seria uma afronta, o que já sabíamos, mas que nos afetava perceber que no mar

imenso de invisibilidade, encontramos outros que também percebem o jogo de posições.

Em solo, um bom número de pessoas aguardava na praça do Preso e Desaparecido

Político, situada em frente ao 23º BC, a mesma praça rebatizada em 2011 pelo Coletivo

Aparecidos Políticos. Aguardávamos acontecer algo, o lançamento ou não dos paraquedas.

No local a presença de algumas pessoas dentre elas curiosos, pessoas que haviam lido a

matéria no jornal, ex-presos políticos, integrantes do Coletivo, curadores do Salão e também a

imprensa, mobilizada pelo release lançado.

No momento em que aguardávamos algum sinal da aeronave, éramos vigiados

atentamente pelos soldados que se amontoavam nas guaritas e também no pátio do 23º BC. É

então que recebemos a ligação de Marquinhos, ainda sobrevoando a região do Aeroclube,

informando que não seria possível realizar o sobrevôo naquela região. A informação recebida

dava conta de que o fechamento do espaço aéreo havia sido deliberado pelo comando da 10ª

Região Militar.

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Avisamos à todos presentes na praça que a aeronave havia recebido ordens para

aterrissar. Diante da ordem nos deslocamos para o Aeroclube, indo ao encontro de

Marquinhos, pois não sabíamos muito bem o que o aguardava após a aterrissagem da

aeronave. Quando chegamos, encontramos Marquinhos, visivelmente nervoso e apreensível.

E nos contava do momento em que a aeronave aterrissou. Os funcionários do Aeroclube,

também visivelmente nervosos, se dirigiram ao piloto e tripulante afirmando que aquilo não

poderia ter sido feito e de que havíamos (o Coletivo) os enganado. Imediatamente a aeronave

foi lacrada e a chave tomada das mãos do piloto. Na fala do funcionário a revelação de que as

ordens eram expressas da 10ª Região Militar.

Saindo do Aeroclube do Ceará seguimos diretamente para a cerimônia de abertura do

Salão de Abril. Alguns presentes já haviam tomado conhecimento do ocorrido e queriam mais

detalhes. Passamos a contar o acontecido e carregávamos conosco a caixa contendo os

paraquedas que deveriam ser lançados, produzindo um bombardeio de memória no espaço

físico do 23º BC. As pessoas, atentas, ouviam estarrecidas ao relato e ficavam sem acreditar

que o anúncio de uma intervenção que faria uso daquele objeto tão pequeno e ao mesmo

tempo tão potente, produziria o fechamento do espaço aéreo de uma cidade como Fortaleza.

Na imagem que segue (Figura 32) o Coletivo já presente no Salão de Abril reunido com

algumas pessoas a contar o processo. Ao fundo, dois dos paraquedas que seriam lançados

ficaram dispostos no espaço físico do Salão.

Figura Figura – 32: Abertura Salão de Abril. Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.

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De antemão nos tomava o sentimento de que a havia algo por terminar, de que a

intervenção não terminava daquela forma e que, mesmo diante do não lançamento dos

paraquedas, o Coletivo não considerava que a performance não tenha sido produzida ou

findado ali. Acho que de início, o desejo de ver os paraquedas descendo, produziram em nós o

sentimento de que a performance havia sido frustrada. Mas nos reelaboramos no sentido de

compreender que mais importante do que a queda dos paraquedas se deu o processo, toda a

movimentação da imprensa bem como do exército diante do que anunciamos.

Havia algo ainda mais potente que era pensar as reverberações, o contar a

experiência59 que se fazia necessário e a necessidade de produzir reflexões sobre esse

processo que inquietou esse sistema em repouso, onde ao menor sinal de desestabilização se

blinda e se mostra irredutível as práticas que buscam desestabilizá-lo. O que realmente

importa aqui é todo o processo ocorrido durante os dois dias, a intensa mobilização da

impressa diante da nota divulgada e a presença de pessoas na praça a espera do lançamento

dos paraquedas, que se quer o Coletivo tinha dimensão do que aconteceria e se seriam

realmente lançados.

5.1.1 O não como potência

O não lançamento dos paraquedas era em certa medida esperado. Nesse sentido,

trago a reflexão de que foi o “não realizar” que potencializou a ação, tornando-a ainda mais

visível. O “não” precisa ser visto na intervenção do Coletivo por outra perspectiva, uma vez

que quando nega consegue ao mesmo tempo potencializar o sensível e o invisível, dando à

nossa percepção o descortinamento de situações e modos de operar que repousam no campo

da imperceptível: as relações de força, modos não só de afetar, mas sobretudo de ser afetado,

diante de maneiras de fazer que desestabilizam um poder difuso. Nas palavras de Levy (2011,

p.81) são forças que afetam outras forças e forças que imanentemente não se fecham às

relações de forças, mas que se predispõe a esse embate estando assim suscetíveis de serem

afetadas por outras forças.

No momento em que se nega a possibilidade de realizar o lançamento dos

paraquedas, torna ainda mais visível e latente a memória do período, dos mortos e

desaparecidos pelo regime, deixando ver que há outro tipo de potência, a potência que

Georgio Agambem, como assinala Castro (2012), denomina de potência de não, potência essa

59 Com algumas das imagens feitas pelo Coletivo, montamos um vídeo contando o processo. Para assistir acessar: https://www.youtube.com/watch?v=_edGDDBpm3I

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que podendo passar ao ato pode também o suspender e não realizar. A potência perfaz outros

caminhos que não necessariamente o da ação, logo potente é aquilo que acolhe e deixa

acontecer e mesmo o “não” é tomado como potência de acontecimento.

Esse pensamento por mais paradoxal e contraditório que possa ser, nos força a

refletir que a potência de não é na verdade uma potência ativa, que interrompe o fluxo

exigindo da suspensão também uma ação capaz de dar a ver a potência imanente do que viria

a ser, do porvir. No cessar do que poderia ser, a intervenção se apresenta enquanto

experiência que nos coloca fora e no contato com essa força molar, nos tirando do campo da

recognição para nos fazer pensar dentre os muitos aspectos que regem a vida cotidiana.

Apresenta-nos ainda ao jogo e os limites entre público e privado, colocando em evidência a

democracia liberal para além de uma forma de governo, mas enquanto forma específica de

organizar politicamente a coexistência humana.

O não também nos coloca de modo mais evidente diante do jogo de posições que se

estabelece dentro desse modelo democrático liberal, mesmo diante da noção de uma esfera

pública onde os antagonismos deveriam ser reconhecidos para que dessa forma, fosse possível

a construção de uma concepção outra de democracia. No entanto a ação evidenciou o quanto

vivenciamos uma democracia que por sua vez não surge nos espaço público, o que nas

palavras de Deutsche (2001) deveria ser condição primeira. Uma vez que o espaço público é o

espaço social de negociações de diversas formas de ser/estar/fazer, logo o impedimento se

apresenta também como negação de uma subjetivação política, ao passo que nos dá em mãos

a negação de uma reconstrução da memória social e coletiva.

Negar nos coloca diante do poder de subjetivação política que permeia todo o

trabalho do Coletivo Aparecidos, arte que nos desloca na produção dessa subjetivação e nos

conduz a noção de uma democracia pluralista. Há assim não restritamente o estado de uma

relação de forças, mas constitui enquanto demonstração do direito de criação de uma

existência, uma manifestação do ausente que objetiva não mais ser compreendido enquanto

ruído, mas compreendido pela outra parte, enquanto agente da palavra, por mais que o que se

produza seja em determinado grau uma situação de desentendimento.

A arte que força o fechamento do espaço aéreo se mostra potente por evidenciar que

o espaço comum que a democracia pressupõe como espaço-tempo comum e mais, enquanto

lugar de exercício da liberdade é, por sua vez, suprimido, dando lugar ao enquadramento de

tempos e lugares específico nesse todo, produzindo o que é próprio a cada um desses corpos.

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5.2 Democracia: arte traçando outras formas de uma construção plural

Impossível não falar que a intervenção produz em nós a necessidade de olhar sempre

com desconfiança para o que se coloca enquanto democracia. Na verdade vale pensar que

como Rancière (1996, p.99) aponta “a democracia nunca deixou de estar sob suspeita até aos

olhos dos próprios democratas”, pois os direitos democráticos consistem em meras

formalidades pairando a sombra da verdadeira democracia.

Não pretendo aqui discutir a história da democracia ou realizar um levantamento

completo, mas apontar que há outros movimentos de construção de uma democracia que

reconhecem os modos de subjetivação política. Principalmente a subjetivação que ocorre por

meio dos processos artísticos contemporâneos, nesse processo de reconhecer o pluralismo

humano como aspecto fundamental perante uma democracia moderna, tem encarando a

inexistência de uma perfeita harmonia nas relações sociais como parte desse processo.

Mouffe (2007) elabora um interessante pensamento do quanto as práticas artísticas

tem desempenhado uma intervenção no sentido de construir uma democracia pluralista em

meio aos espaços. Pensa ainda na arte enquanto possibilidade de rompimento com os

consensos estabelecidos. É nesse sentido que interessa pensar não só a operação Carcará, mas

como todo o trabalho do Coletivo Aparecidos Políticos, que a proposta de intervenção tem na

sua essência a dimensão do político, logo nas palavras de Mouffe (2007, p.67) “no se debe

entender la relación entre arte y política como la de dos esferas constituídas por separado – el

arte, por um lado, y la política, por outro – y entre las cuales seria necessário estabelecer uma

relación. Em lo político hay uma dimensión estética y en el arte una dimensión política”.

Nessa aproximação entre arte e política, a intervenção Operação Carcará produz a

impugnação de uma ordem simbólica dada, essa é a razão de ser uma ação onde além da arte

evocar o caráter político, apresenta como possibilidade o rompimento das contradições

apresentadas pela democracia liberal.

É importante situar desde logo que estética e política não estão separadas nas ações

do contemporâneo, ao mesmo tempo não se unem por completo, estando sempre presente a

tensão entre os campos, e para Rancière (2007, p.140) “elas não podem se unirem sem se

auto-suprimirem”. Estão imbricada não no sentido da instrumentalização, mas na própria

construção de rearranjos sociais a partir da desestabilização do poder quando produz o

rompimento da ordem, fazendo “ver o que não cabia ser visto” e ouvir um discurso que

durante muito tempo só tinha lugar o barulho (RANCIÈRE, 1996, p.42), assim os mortos e

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desaparecidos pelo regime também são incluídos nessa parcela marginalizada, que não é

contada e que não tem o direito a palavra.

Para Mouffe (2007) esse político pode adotar múltiplas formas e surgir a partir de

relações sociais diversas. O político é propriamente a dimensão do antagonismo, inerente a

toda sociedade humana e que emerge a partir dessas ações, indo de encontro ao que Rancière

(1996) elabora como dissenso e que deve ser tomado como caminho de resistência. Logo a

ação proposta pelo Coletivo evidencia a inexistência de uma conciliação nacional, expondo

que essa fratura da sociedade brasileira não são mais ignoradas, são agora evocadas por meios

próprios da arte.

São obras que afirmam na sua materialidade, as fissuras existente no corpo social,

dando a ver uma discordância artística que produz vibrações sensíveis e nos coloca diante da

democracia enquanto o que instaura a política ao passo que institui “sujeitos que não

coincidem com partes do Estado ou da sociedade, sujeitos flutuantes que transtornam toda

representação dos lugares e das parcelas” (RANCIÈRE, 1996, p.103).

Esse modo de recortar e criar equivalentes sensíveis da experiência de estar no

mundo, inclui essa parcela ao mesmo tempo em que evidencia o jogo de poder. Assim a

performance Operação Carcará evidenciou o quanto os espaços públicos estão estriados e

estruturados hegemonicamente. Nesse sentido, há a necessita de criar uma diferente

articulação entre espaços públicos no sentido de produzir uma luta contra hegemônica.

São ações como as propostas pelo Coletivo que podem contribuir de diversas formas

para a construção de novas subjetividades, capazes ainda de construir uma democracia onde o

político caminhe junto. Para isso é necessário que as práticas artísticas empreguem cada vez

mais um caráter radical, que surjam na esfera pública não só como modo de denúncia, mas

que instigue outras lutas e outros modos de evidenciar outros invisíveis, uma parcela

significativa que para a democracia liberal é reduzido ao nada.

Na busca pela democracia plural, há que ter claro que democracia não é entendida

como simples modo de governar, mas como próprio regime do político, um modo de

subjetivação política, “é a interrupção singular dessa ordem da distribuição dos corpos em

comunidade que nos propusemos conceituar sob o conceito ampliado de polícia. É o nome

daquilo que vem interromper o bom funcionamento dessa ordem por um dispositivo singular

de subjetivação” (RANCIÈRE, 1996, p.102). É nesse sentido que a Operação Carcará se

aproxima da democracia tal qual Rancière conceitual, pois o que faz é produzir um modo de

subjetivação política interrompendo a ordem, incorporando o litígio ao invés de dissimulá-lo.

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É propriamente na identificação da arte com a política que se torna possível pensar

em termos democráticos de interrupção da ordem das coisas e lugares do mundo. O próprio

Coletivo Aparecidos Políticos, se coloca não apartado do mundo e das coisas que acontecem

no mundo, mas agem desde logo nesse espaço, tornando visível a ideia de que a resistência da

arte está contida nela mesma. “A resistência da obra não é o socorro que a arte presta à

política. Ela não é a imitação ou antecipação da política pela arte, mas propriamente a

identidade de ambas. A arte é política” (RANCIÈRE, 2007, p.129).

O Caminho trilhado pelo Coletivo na Operação Carcará é apostar na arte como

estratégia de estar no mundo ao mesmo tempo em que se cria mundos, de propor outra relação

com a memória dos mortos e desaparecidos políticos. A ação foi capaz de desestabilizar e

produzir, nas estruturas do Estado, uma organização de resistência em torno de manifestação

em torno da memória.

Alcançar a democracia no seu verdadeiro sentido, ou seja, enquanto poder do povo,

como sugere Rancière, exige também a aproximação com a política em seu sentido radical.

Essa aproximação se apresenta como condição para a quebra da normalidade que atribui a

cada sujeito o seu lugar e a sua tarefa no corpo social e só a partir da ruptura e da quebra da

ordem policial, da instauração dos dissensos e fissuras é que se pode afirmar a existência da

política.

É possível perceber a potência política na performance, pelo fato de produzir o que

Rancière (1996) por deslocar a imagem do morto ou desaparecido de lugar que lhe era

designado, mudando sua destinação. O Coletivo arranca a naturalidade desse lugar. Reinventa

a condição do morto ou desaparecido, produzindo a abertura de um espaço de sujeito onde

“qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma contagem dos incontados, do

relacionamento entre uma parcela e uma ausência de parcela”. (RANCIÈRE, 1996, p.48).

Desde logo, a democracia, protagonizada a partir da prática artística realizadas pelo

Coletivo, ocupa o lugar de criticar o regime político estabelecido e, simultaneamente, de

impedir que a política seja aspirada pelo regime da polícia. A performance proposta, interfere

também nesse pensamento, o da existência de uma política que subverte o consenso e as

posições no jogo do poder, por mais localizada que tenha sido essa ação. Há a emergência de

pensar que não existe um consenso sobre a democracia, já que na prática o que

testemunhamos é justamente um distanciamento cada vez mais acentuado do Estado

“democrático” em relação ao sentido real de democracia, ou seja, como o poder do povo.

A democracia se origina, portanto na manifestação dos sujeitos, na ruptura

produzida. Na cena do dissenso, a política toma seu lugar enquanto subjetivação do

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rompimento do comum. É ainda o espaço do aparecimento de sujeitos políticos que ao

insurgirem contra o sistema estabelecido, podem também criar um espaço para liberdade. É a

partir dessa fratura na estrutura (a ordem e a instituição) que novas possibilidades são abertas

para redesenhar o que estava estabelecido.

É a partir dessa fissura a possibilidade dos sujeitos de apresentar o novo, que o

processo criativo tem lugar. Na estrutura a liberdade só pode ser alcançada por meio de sua

desestabilização. É nessa hora, e somente nessa hora, que faz sentido falarmos em

democracia, como a subversão da ordem estabelecida por um sujeito político que visa a sua

inserção na comunidade, que visa fazer com que a sua voz, até então inaudível, passe enfim a

ser ouvida. Por isso pensar que a performance nos fala apenas de mortos e desaparecidos é um

pensar limitado. Na verdade ela nos propõe pensar em muitas outras invisibilidades e de

muitos outros processos excludentes dentro da democracia liberal.

Democracia, como sustenta Laclau (1993) e Rancière (2010), não corresponde a um

regime político estabelecido, mas o seu contrario. Os regimes oferecem riscos eminentes, mas

que não por esse motivo, não possam ser minados, envelhecem e excluem. Transformam os

vícios em virtudes, enquanto a democracia tem o potencial de denunciá-los, de deslegitimar o

consenso e, literalmente, negar aquilo que parecia óbvio e natural.

É necessário atenção a todo esse sistema que cada vez mais nos impele ao consenso,

que é inevitavelmente o caminho mais fácil no sentido de evitar desgastes. Mas se queremos,

enquanto agentes democráticos, construirmos condições para criação de um espaço onde

todos possam ser vistos e ouvidos, precisamos ir de encontro ao tortuoso caminho da

liberdade e da promessa da democracia. O que se apresenta é que a arte tem ocupado lugar de

uma verdadeira “máquina de guerra” como apresenta Deleuze (2010).

A situação produzida na performance do Coletivo Aparecidos Políticos é da ordem

de um imponderável, reunindo possibilidade para a criação de mundos. A movimentação

afetou e continua a afetar, os corpos dos que tomam conhecimento, que acessa aos registros,

assim é uma arte que busca instalar crises. Ela cria um ato de fuga ao controle, à ordem, às

regras. Operação Carcará é uma experiência de deslocamento, um gesto estético-político que

fratura a referida ordem. Não constitui um monumento a ser contemplado, mas um processo

vivo produzindo acontecimento puro. No Coletivo Aparecidos Políticos, a arte não fala sobre

política, ela é essencialmente a própria política, para retomar a proposição de Rancière. É na

referida instância que Operação Carcará corresponde a uma obra de resistência, de crença nas

potências do mundo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A arte pensa e realiza experimentando todos os possíveis contidos no regime do

visível, invisível e sensível. Pensa a partir da utilização de materiais, palavras, sons,

sensações, conceitos, objetos. Junta, separa, remonta os pedaços de um quebra-cabeçano no

intuito de analisar acontecimentos. Torna não só perceptível, mas abre o olho e aguça os

ouvidos, provoca sensações ao atiçar própria pele. A arte desassossega, escapa de todo e

qualquer enquadramento, inclusive de ser arte, relançando sempre a pergunta: o que é Arte?

No percurso da presente pesquisa, analisaram-se questões concernentes as potencias

da arte em meio ao espaço público, que, produzindo deslocamentos de espaços e tempos,

construiu “outras visibilidades” que só seriam capazes no campo da arte. Interessou analisar

esse modo perculiar de lidar com a arte, considerando as intervenções do Coletivo Aparecidos

políticos, que insistem, por meio da arte política, a construção de uma memória capaz de

desenhar os contornos das imagens de mortos e desaparecidos pelo regime militar.

O presente trabalho se apresentou como proposta que visa contribuir na produção de

conhecimento acerca dos fazeres contemporâneos em torno dos processos artísticos que visam

não mais estarem isolados do mundo, mas afirmando sua conexão com ele a partir de corpos

em fuga, atentos ao instante exato de se moverem nos espaços da cidade. Nesse sentindo, as

contribuições do presente trabalho se dão não apenas no campo da arte, mas, sobretudo no

campo da democracia, que afirma outros possíveis a partir da construção de espaços onde seja

possível reconhecer a pluralidade humana em contraposição a homogeneização da vida.

As imagens construídas pelo Coletivo nos espaços da cidade, afirmam a potência da

vida e convocam a possibilidade da existência, mesmo que por meio do papel e da tinta. Há a

insistência nessas imagens por conterem traços que nos falam não apenas de um tempo

passado, mas também de um tempo presente que nos convoca a reconhecer, nessas imagens,

muitos dos acontecimentos cotidianos encarados em muitas cidades brasileiras, um estado de

exceção silencioso que insiste em produzir números da invisibilidade social.

Na análise de uma intervenção e na vivência em duas intervenções produzidas pelo

Coletivo Aparecidos Políticos, foi possível perceber que são, de fato, um coletivo que resiste

por meio da criação e que por vezes se deixam escapar, sendo conduzidos ao imediatismo de

pensar e agir a resistência como contraposição. Esse caráter evidência que não estamos livres

das linhas segmentares que insistem em nós. É interessante perceber que há a necessidade é

combater, por meio de processos que chamem à vida, a constituição e afirmação dessas linhas

que na verdade já existem em nós.

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O Coletivo ao longo do percurso vem afirmando a arte política enquanto máquina de

guerra menor, capazes de traçar linhas de fuga para além do Estado e das hierarquias.

Recusam a invisibilidade de mortos e desaparecidos e ao esquecimento, constituindo-se

verdadeira máquina

“de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos: os movimentos revolucionários (não se leva em conta o suficiente, por exemplo, como a OLP teve que inventar um espaço-tempo no mundo árabe), mas também os movimentos artísticos são máquinas de guerra". (DELEUZE, 1992, p. 212).

A necessidade de perceber a cidade como espaço que potencializa vivências e

encontros, é também uma das afirmações que o Coletivo Aparecidos Políticos segue

produzindo. O que tornar-se visível é a afirmação da cidade enquanto museu, ao mesmo

tempo em que desmistificam a noção de um lugar de memória enquanto um lugar fechado.

Nessas possibilidades de intervenção apresentadas, tomam ainda a possibilidade de praticar os

espaços da cidade, de vivenciá-lo em toda sua intensidade ao invés de apenas recebermos as

intervenções que as imagens e construções produzem em nós.

Enquanto o Coletivo afirma as potências de criação nos muros e propriamente nos

espaços, afirmam também a tensão existente entre público e privado como modo de visibilizar

que é uma questão que toma todos que apostam na imersão da arte a partir dos elementos da

arte urbana, uma tensão que sempre será latente e sempre irá emergir no sentido de produzir

questionamentos e discussões.

Interessou perceber a potência da criação a partir de processos híbridos, imagens,

palavras, o recurso imagético e audiovisual são afirmados a cada intervenção como essa

potência que pode e faz com as intervenções produzam reverberações em outros espaços. São

afetos que se produzem a partir de cada detalhe da intervenção.

É importante dizer que os conflitos, as tensões existentes não se dão apenas entre

Coletivo Aparecidos Políticos e o meio externo, mas se dão também dentro do próprio

Coletivo, sendo negociados e agenciados no sentido de que se produza a partir das tensões

existentes ao invés de procurar dizimá-las.

É imprescindível falar que os momentos vivenciados com o Coletivo também

produziram afetos em mim e no modo como fui me constituindo ao longo do percurso.

Durante o processo e operando junto ao Coletivo, pude perceber o quanto nossas identidades

não são fixas e o quanto precisamos saber a hora de operar no plano das formas e no plano das

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forças. Nunca seremos exatamente um ou outro, mas a necessidade é de que possamos existir

e re-existir sabendo lidar com os dois planos.

Desestabilizar as forças para produzir outros mundos, essa é a concepção que carrego

ao final da escrita do presente trabalho. O que o Coletivo Aparecidos Políticos consegue

realizar é a criação de um mundo sensível, onde a memória de mortos e desaparecidos possa

caber, ser visualizada e sentida em meio ao concreto, as formas retas que padronizam a

cidade. O tempo construído nas intervenções é um tempo dos afetos, produzido a partir do

encontro entre o corpo desaparecido expresso por meio do papel e o corpo urbano.

O afeto produzido pelo Coletivo, potencializa esse corpo e mostra, que mesmo

contido no regime do invisível, as práticas permitem que se percebam, dentro das mais

diversas atividades artísticas, aquelas que trazem a força da existência. O Significado

existente nessas intervenções é propriamente o efeito dos afetos que ela produz. A capacidade

política das intervenções não é dado como certo, mas do quanto o outro vai processar essa

intervenção, do quanto aquilo vai forçar o pensar no sentido de produzir desmanches.

Portanto, para se chegar a essa arte é preciso ir com ela deslocando-se com a linha de

fuga que constrói, e com as problematizações que acarreta. É preciso pensar com a arte na

perspectiva propriamente de uma máquina de guerra. Assim, o Coletivo Aparecidos Políticos

expressam em suas obras, modos de existência e abrigam também o que se classificaria como

algo fora da arte, dissolvendo a separação de arte e vida, individual e coletivo, público e

privado para construir mundos e produzir visibilidades.

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ANEXOS

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