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UNIMAR – UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
MESTRADO EM LETRAS
ANTONIA APARECIDA FLORES SAGGIORO
OS DISFARCES DO DISCURSO POLÍTICO:
UMA LEITURA DAS OBRAS DE JOSÉ CARDOSO PIRES E JOSÉ J. VEIGA
MARÍLIA
2011
ANTONIA APARECIDA FLORES SAGGIORO
OS DISFARCES DO DISCURSO POLÍTICO:
UMA LEITURA DAS OBRAS DE JOSÉ CARDOSO PIRES E JOSÉ J. VEIGA
Dissertação apresentada à Universidade de
Marília (UNIMAR), Faculdade de
Comunicação, Educação e Turismo, para
obtenção do Título de Mestre em Letras, Área
de concentração em Literatura Comparada.
Orientadora: Profa Dra. Ana Maria Gottardi.
MARÍLIA
2011
Saggioro, Antonia Aparecida Flores
Os disfarces do discurso político: uma leitura das obras de José
Cardoso Pires e José J. Veiga -- Marília: UNIMAR, 2011.
186p.
Dissertação (Mestrado em Letras) -- Curso de Letras da Universidade
de Marília, Marília, 2011.
1. Literatura Comparada 2. Realismo Mágico 3. Ironia 4. Paródia
I. Saggioro, Antonia Aparecida.
CDD -- 800
Página Institucional
Universidade de Marília - UNIMAR
Reitor Dr. Márcio Mesquita Serva
Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação
Pró-reitora Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory
Faculdade de Ciências da Saúde
Diretor Prof. Dr. Armando Castello Branco Junior
Programa de Pós-graduação em Letras
Coordenadora Dra. Suely Fadul Villibor Flory
Orientadora: Dra. Ana Maria Gottardi
UNIMAR – UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
NOTAS DA BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
ANTONIA APARECIDA FLORES SAGGIORO
OS DISFARCES DO DISCURSO POLÍTICO:
UMA LEITURA DAS OBRAS DE JOSÉ CARDOSO PIRES E JOSÉ J. VEIGA
Data da Defesa: 17 de março de 2011.
Banca Examinadora
Prof. Dr. Ana Maria Gottardi
Avaliação: nota 10,0 (dez) Assinatura: ___________________
Prof. Dr. Márcia Valéria Zamboni Gobbi
Avaliação: nota 10,0 (dez) Assinatura: ___________________
Prof. Dr. Suely Fadul Villibor Flory
Avaliação: nota 10,0 (dez) Assinatura: ____________________
AGRADECIMENTOS
Primeiro agradeço a Deus porque criou todas as coisas e as sustenta. Sua presença nesses dias,
foi determinante. Obrigada Senhor.
A meu marido Valter. Um legítimo companheiro que também me sustentou e suportou neste
período, e posso dizer que não foi uma tarefa fácil. Obrigada. Você é o amor da minha vida.
A meus filhos Pietro e Luigi, tudo na minha vida. Foram privados do convívio, dos passeios e
também suportaram com bravura todo o período de minha dedicação ao trabalho. Grata. Amo
vocês.
A Dra. Ana Maria Gottardi minha orientadora que realizou muito mais que sua função, diria
que concebeu comigo o sonho que se transformou em projeto de aproximar Veiga e Cardoso
Pires, e a quatro mãos deu vida a um trabalho especial que agora compartilhamos com os
leitores.
À Claudia Martha amiga sempre, com afinidade de irmã, imprescindível ajuda.
A todos que de alguma forma contribuíram, os meus sinceros agradecimentos: família
ouvindo lamúrias e não entendendo nada, em especial à Ana Saggioro ouvindo sempre com
infinita paciência, à tia Raquel Flores aceitando as desculpas de não poder ficar mais tempo
com meus sobrinhos, à Márcia Nabeiro amiga para toda a vida, à minha mãe e minha irmã
Bárbara que mesmo longe, torceram sempre por mim, à Hicléa companheira de viagem,
amizade verdadeira, à Magda desabafos e conhecimentos compartilhados, à professora
Eleusis jamais esquecida, ao pessoal da secretaria da Unimar a simpatia.
Se porventura tiver me esquecido de mencionar alguém ou de dar a alguém o crédito que lhe é
de direito, foi porque a ―Máquina de Torturar Palavras‖ de Salazar, certamente, não permitiria
a divulgação do nome nem da verdadeira história sem sanções ou reprimendas, tampouco os
fiscais de Taitara permitiriam tal insubordinação, mas, se vocês olharem lá fora, para os
muros, verão escrito em letras garrafais simplesmente a verdade... aquela que vocês já
sabem...
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê tudo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive
Fernando Pessoa
RESUMO
Esta dissertação faz uma análise comparativa entre o conto ―Dinossauro Excelentíssimo‖, do
escritor português José Cardoso Pires, e o romance Sombras de Reis Barbudos, do brasileiro
José J. Veiga. Nosso objetivo foi confrontar os discursos dos dois autores, estabelecendo as
correspondências entre as obras, suas semelhanças e as diferenças. Aproximamos os dois
textos por apresentarem ambos um discurso cifrado, encoberto, típico de uma época de
ausência de liberdade de expressão, que caracteriza o momento histórico em que ambos foram
escritos. A análise da estrutura linguística revela o uso de recursos estilísticos que favorecem
uma leitura pelo avesso, como a ironia, a paródia, a sátira, a literatura fantástica ou o realismo
mágico, ou seja, os textos lançam mão de estruturas intertextuais. Faz-se a análise do texto de
Cardoso Pires, observando como acontecem as ironias, seu processo paródico e satírico da
ditadura salazarista, seguida da análise do romance brasileiro, salientando, além da ironia, da
paródia e da sátira, o parentesco com o realismo mágico latino-americano. Pautada nos
princípios da Literatura Comparada, esta pesquisa evidenciou o diálogo intertextual entre as
obras, objetivando atingir o escopo do trabalho, qual seja, desvendar os recursos de que
lançam mão os autores para encobrir e disfarçar suas mensagens; para narrar, numa
linguagem às avessas, os períodos críticos pelos quais passavam suas pátrias (Brasil e
Portugal) no momento de escrita de seus textos.
Palavras-chave: José Cardoso Pires. José J. Veiga. Ironia. Paródia. Sátira. Literatura
Comparada. Realismo Mágico.
Abstract
This dissertation analyzes comparatively the short story ―Dinossauro Excelentíssimo‖,
written by the Portuguese author José Cardoso Pires and the novel ―Sombras de Reis
Barbudos‖, written by the Brazilian author José J. Veiga. Our main objective was to
compare both authors´ discourse and establish similarities and differences. Both texts bring
a coded discourse, full of concealed information, typical of a time when there was lack of
freedom to express opinions – a characteristic of the period when both texts were written.
The analysis of the linguistic structure reveals the use of stylistics resources which lead to a
contrary reading with resources such as irony, parody, satire, fantastic literature or magical
realism. In other words, the texts contain intertextual structures. Cardoso Pires´ text is
studied by observing how the ironies happen, the parodic and satiric process of mentioning
Salazar´s dictatorship, followed by the analysis of the Brazilian novel, which emphasizes
not only irony, parody and satire, but also its relationship with the magical realism in
Latin America. Based on the principles of the comparative literature, the intertextual
dialogue between the texts was shown, aiming to reach the purpose of this research, which
is to unveil the resources used by the authors to hide and disguise their messages: to narrate,
in an inverted language, the critical moment experienced by their own countries (Brazil and
Portugal).
Key words: José Cardoso Pires, José J. Veiga, Irony, Parody, Satire, Comparative
Literature, Magical realism
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 10
CAPÍTULO 1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS ............................................................................. 13
1.1 JOSÉ CARDOSO PIRES .............................................................................................. 14
1.1.2 JOSÉ J. VEIGA ........................................................................................................... 18
1.2 LITERATURA COMPARADA .................................................................................... 21
1.2.1 INTERTEXTUALIDADE .......................................................................................... 24
1.2.2 PARÓDIA ................................................................................................................... 31
1.2.3 IRONIA ...................................................................................................................... 36
1.2.4 SÁTIRA ...................................................................................................................... 45
CAPÍTULO 2 "DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO‖ .............................................................. 49
2.2 RECURSOS DO DISCURSO – IRONIA, PARÓDIA, SÁTIRA .................................. 54
2.2.1 MEXILHÕES NO REINO DO DINOSSAURO ......................................................... 56
2.2.2 INTERTEXTUALIDADE COM CONTOS DE FADAS .......................................... 60
2.2.3 O INTERTEXTO COM A CULTURA POPULAR .................................................... 64
2.2.4 DÊ ERRES / PIDE / CENSURA ................................................................................. 71
2.2.5 SALAZAR E AS PALAVRAS / CÂMARA DE TORTURAR PALAVRAS ............ 75
2.2.6 EUFEMISMOS DO DISCURSO OU MANEIRAS DE ENGANAR O POVO ........ 81
2.2.7 DINOSSAURO X IGREJA ........................................................................................ 91
2.2.8 DINOSSAURO MORTE PRIMEIRA / MORTE SEGUNDA ................................. 101
2.2.9 ESTÁTUA ................................................................................................................. 105
2.3 DAS IRONIAS MAIS SIGNIFICATIVAS EM ―DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO‖
............................................................................................................................................ 110
CAPÍTULO 3 SOMBRAS DE REIS BARBUDOS ...................................................................... 114
3.1 DAS IRONIAS EM SOMBRAS DE REIS BARBUDOS ............................................... 121
3.2 O INTERTEXTO COM OS DITADOS POPULARES .............................................. 129
3.3 DIMINUTIVOS IRÔNICOS ....................................................................................... 134
3.4 O MÁGICO UZK ........................................................................................................ 136
3.5 OS FISCAIS E A REPRESSÃO / MUROS ................................................................ 142
3.6 PESSOAS VOANDO ................................................................................................... 151
3.7 SOMBRAS DE REIS BARBUDOS: HIPÓTESES SOBRE O TÍTULO ....................... 155
CAPÍTULO 4 DINOSSAURO E REIS BARBUDOS OS DISFARCES DO DISCURSO . 159
4.1 TÍTULOS ..................................................................................................................... 159
4.2 NARRADOR E NARRATÁRIO ................................................................................ 161
4.3 REVELANDO O DISCURSO ENCOBERTO ........................................................... 172
4.4 DITADOS POPULARES ............................................................................................ 179
4.5 MANEIRAS DE DISTRAIR E ENGANAR O POVO ............................................... 181
4.6 OUTROS RECURSOS DE LINGUAGEM ................................................................ 182
4.7 INTERTEXTO BÍBLICO ............................................................................................ 183
4.8 OS REINOS E AS CIDADES ..................................................................................... 184
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................... 186
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................... 190
10
INTRODUÇÃO
O nome do autor português José Cardoso Pires foi mencionado durante uma aula para
cumprimento dos créditos obrigatórios do curso de Mestrado, ministrada pela professora Dra.
Ana Maria Gottardi, que versava sobre narrativas portuguesas de autores modernos.
Entretanto, José Cardoso Pires não era um desconhecido para nós, pois durante um curso de
Especialização, estudamos uma de suas obras mais conhecidas, O Delfim. Por outro lado, a
indicação da professora fez com que iniciássemos a leitura de alguns contos da coletânea
Jogos de Azar; em seguida, lemos A República dos Corvos: veio logo o encantamento pela
linguagem extremamente singular desse autor e a curiosidade analítica de estudar em
profundidade ―Dinossauro Excelentíssimo‖. Vimos que o texto nos ofereceria um rico
material para uma análise dos recursos da ironia, da sátira e da paródia.
Uma vez que o foco da pesquisa do Mestrado em Letras da Unimar é Literatura
Comparada, pensamos em outro autor que também denunciasse as atrocidades dos governos
autoritários; lembramos então de Cavalinhos de Platiplanto e A Hora dos Ruminantes, do
brasileiro José J. Veiga, para finalmente constatar que Sombras de Reis Barbudos, do mesmo
autor, encaixava-se melhor em nosso objetivo, porque trabalha com questões de opressão e de
violência contra os seres humanos. Estava assim completo o dueto de autores e estabelecido
nosso objetivo principal, que era comparar as duas obras para tentar definir a estrutura de
textos que se disfarçam para driblar os rigores da censura.
Essa nossa proposta de análise será detalhada no 1º Capítulo, Fundamentos Teóricos,
em que procuraremos estabelecer com clareza nossas metas e definir as leituras teóricas que
servirão de base para nossas análises, evidenciando o viés textual chamado de literatura de
resistência, pelo qual os textos focalizados bem podem ser pautados. Com o objetivo de
contextualizar os autores, faremos um breve comentário sobre sua biografia e bibliografia,
enfatizando como estiveram sempre engajados com as causas de seu tempo, por meio de uma
ficção que, ou direta ou indiretamente, lançando mão da ironia, da sátira, do fantástico,
sempre teve como cerne o contexto social circundante.
Entre as leituras teóricas, salientaremos os objetivos e métodos dos estudos
comparados, bem como as atuais tendências desses estudos, privilegiando teóricos como
11
Sandra Nitrini, em Literatura Comparada – História, Teoria e Crítica (1997) e também Tânia
Franco Carvalhal, com o livro Literatura Comparada (2006). Enfocaremos ainda Linda
Hutcheon, autora norte-americana, cujos estudos a respeito da paródia e da ironia, em Uma
Teoria da Paródia (1985), foram essenciais ao nosso trabalho; o crítico brasileiro Affonso
Romano de Sant‘Anna e sua bem estruturada teoria sobre a paródia, a paráfrase e a
estilização, revelada no livro Paródia, Paráfrase & Cia. (2008); Gérard Genette, com
Palimpsestes (La Littérature au Second Degré) (1982), com a base teórica a respeito da
intertextualidade, paratextualidade, transcendência textual, hipertextualidade e
arquitextualidade; e finalmente, de grande valia para nosso estudo, um artigo de Laurent
Jenny, ―A Estratégia da Forma‖, publicado na Revista Poétique (1979).
Dedicaremos um item para o esclarecimento do conceito de paródia, ainda baseados
em Gérard Genette e nas valiosas considerações de Linda Hutcheon, que vê a paródia como o
gênero por excelência da literatura atual, devido a seu caráter de autorreflexividade, de
repetição com diferença crítica.
Também discutiremos o conceito de ironia, pois, como um discurso disfarçado, a
ironia serve muito bem aos propósitos dos autores estudados. Para isto, utilizaremos o texto
de Muecke, Ironia e o Irônico (1995), bem como dois outros de Linda Hutcheon, que
fornecem um amplo aparato teórico para sistematizar as questões e nuances da ironia, Teoria
e Política da Ironia (2000) e Poética do Pós-Modernismo (1991).
Finalmente, definiremos o recurso da sátira, estabelecendo seu parentesco com a
ironia. Para isso, utilizaremos o livro O Resgate da Dissonância (1981), de Ângela Maria
Dias, e o esclarecedor artigo ―Sobre a Sátira: Contribuições da Teoria Literária Alemã na
Década de 60‖, de Paulo Astor Soethe (1998).
O capítulo 2 será dedicado a ―Dinossauro Excelentíssimo‖, com uma breve explanação
a respeito do conto e do curioso episódio que possibilitou sua passagem livre pela ditadura da
época, bem como uma contextualização do momento histórico português. O capítulo será
dedicado, principalmente, à análise dos recursos da ironia, da paródia e da sátira, utilizados na
estrutura narrativa do conto, dando ênfase ainda à intertextualidade com contos de fadas e
com a cultura popular.
No capítulo 3 analisaremos Sombras de Reis Barbudos, delineando seu contexto
histórico e situando o texto na esteira da literatura fantástica e do realismo mágico da
12
literatura latino-americana, valendo-nos de um autor de referência no assunto, Tzvetan
Todorov, em Introdução à Literatura Fantástica (1975); Filipe Furtado, no livro A
Construção do Fantástico (1980), também servirá de referência, e finalmente, Selma Calasans
Rodrigues, em O Fantástico (1988), que muito elucida a respeito do realismo mágico de
origem latino-americana, vertente que melhor norteia o estilo de José J. Veiga. Em seguida,
analisaremos a questão da ironia na obra, principalmente a questão dos diminutivos irônicos,
além da intertextualidade com os ditados populares.
O capítulo 4 fará uma comparação entre os textos dos autores português e brasileiro,
procurando descobrir correspondências entre eles, suas semelhanças e peculiaridades,
objetivando atingir o escopo de nossa análise, qual seja, desvendar os recursos de que lançam
mão Cardoso Pires e J. J. Veiga para encobrir e disfarçar suas mensagens; para narrar, numa
linguagem às avessas, o momento crítico pelo qual passavam seus países no momento da
escrita de seus textos.
Desse modo, procuraremos estruturar nossa análise objetivando desconstruir, de modo
gradual e minucioso, os textos dos autores focalizados, a fim de tentar uma leitura crítica
detalhada, que evidencie os recursos linguísticos e retóricos mobilizados para realizar uma
mensagem cifrada, que iluda os censores e esclareça os leitores.
13
CAPÍTULO 1
FUNDAMENTOS TEÓRICOS
A boa prosa tem três estágios: o
musical, em que é composta; o
arquitetônico, em que é construída;
e o têxtil, em que é tramada.
Walter Benjamin, apud Revista
Língua Portuguesa, nº 52, p.7
Este trabalho tem por objetivo realizar uma leitura comparativa entre o conto
―Dinossauro Excelentíssimo‖1, de José Cardoso Pires, autor que, embora se enquadre no Neo-
Realismo português da década de 1950, possui um traço distintivo importante: o escritor
adaptou as técnicas das narrativas norte-americanas à situação histórico-cultural portuguesa, e
por esse motivo inovou a literatura neo-realista naquele país, e o romance Sombras de Reis
Barbudos, de José J. Veiga, que estreou na literatura brasileira em 1959, com a publicação de
Os cavalinhos de Platiplanto, e é apontado como um dos introdutores do realismo mágico na
literatura brasileira.
Nosso objetivo é, por meio da análise das narrativas, estabelecer as semelhanças entre
os autores: temática, comprometimento político revelado através da denúncia dos abusos e das
opressões sofridas pelas minorias, uso de alegorias; bem como as diferenças: estilo de
escritura, recursos literários utilizados na construção do texto, gênero narrativo predominante.
É interessante notar como a denúncia da opressão está presente nas obras dos dois
autores ainda que de forma diferente. Cardoso Pires apresenta uma fábula irônica satírica para
contar os horrores e absurdos da ditadura Salazarista em Portugal; compara o ditador
português a um dinossauro decrépito, vaidoso e opressor, utilizando-se da ironia e do
sarcasmo para fazer sua denúncia social. Já José J. Veiga, em estilo menos ácido, trata da
1 Neste trabalho os títulos de contos serão sinalizados com aspas duplas e os títulos de livros serão
escritos em itálico.
14
opressão do regime militar no Brasil, enveredando pela literatura fantástica, para mostrar
como o governo vai tirando nossa liberdade de escolha e como aceitamos tudo passivamente.
Já os animais presentes nas obras dos dois autores são alegorias que nos revelam muito do
caráter das personagens ou das situações de opressão vividas por elas. Estilos e discursos
diferentes com a mesma intenção: denunciar uma realidade social opressiva e absurdamente
autoritária.
Além de denúncias, os textos de ambos possuem ainda outra função, talvez a mais
importante e que somente a intertextualidade pode exercer ou despertar, que é a capacidade de
nos fazer rir ironicamente de um ditador dinossauro e decrépito e de seus delírios despóticos
ou nos encantar com a possibilidade de, por exemplo, literalmente sair voando de nossas
situações difíceis.
Esse tipo de literatura não aceita a situação vigente, pelo contrário, coloca-se como
instrumento de resistência às opressões e injustiças estabelecidas pelos sistemas políticos e
sociais. Literatura que exerce uma força contrária a algo que ela considera inadmissível
porque oprime, exclui ou promove a injustiça. Segundo Alfredo Bosi:
Resistência é um conceito ético, e não estético. O seu sentido mais profundo apela
para a força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor
força própria à força alheia. O cognato próprio é insistir; o antônimo familiar é
desistir. (BOSI, 2002, p. 118)
De acordo com o autor, a literatura e a arte de forma geral teriam um papel de
resistência porque revelam a vontade do artista de denunciar os problemas sociais, as
opressões e injustiças, enfim, os horrores que por vezes o ser humano é capaz de cometer.
1.1 JOSÉ CARDOSO PIRES
Se o sonho é já por si uma
memória, sem memória poderá o
indivíduo sonhar?
15
Cardoso Pires, 1997, p. 66
José Augusto Neves Cardoso Pires nasceu a 2 de outubro de 1925, na aldeia de Peso,
no distrito de Castelo Branco. Fixa residência em Lisboa, morando nesta cidade a maior parte
de sua vida, é aí morrendo a 26 de outubro de 1998.
O escritor inicia seus estudos no Liceu Camões e frequenta Matemáticas Superiores na
Faculdade de Ciências de Lisboa, curso que não chega a concluir. Dedica-se, então, à
tradução e ao jornalismo, iniciando sua carreira na revista Eva, em 1949; depois irá dirigir
também a revista Almanaque.
Os Caminheiros e Outros Contos é o primeiro livro do escritor, publicado e logo
retirado do mercado devido à censura. Em 1952 publica Histórias de Amor, que nem mesmo o
título inocente livrou da censura da época; livro e autor foram apreendidos pela PIDE (Polícia
Interna de Defesa do Estado).
A morte do irmão, num acidente de aviação, quando trabalhava no serviço militar, deu
origem ao romance, a ele dedicado, Os Hóspedes de Job, declarado protesto contra a guerra
fria e a colonização militar. Com este romance Cardoso Pires ganha o prêmio Camilo Castelo
Branco, da Sociedade Portuguesa de Escritores.
De 1966 a 1968 dedica-se ao jornalismo, fundando e dirigindo suplementos do Jornal
do Fundão e do Diário de Lisboa. É também em 1968 que publica O Delfim, romance
geralmente considerado como sua obra-prima.
Em 1972 publica o conto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ pela Editora Arcádia, com
ilustrações e capa de João Abel Manta. A obra foi posteriormente incluída no livro A
República dos Corvos (1988), cuja temática é a crítica ao governo de Salazar e a expectativa
de uma Revolução que marcaria o recomeço da História de Portugal.
Após a queda da ditadura em 1974, Cardoso Pires volta-se para analisar o submundo
da PIDE e os efeitos psicológicos de terror causados por ela. Assim, em 1983 recebe pelo
romance A Balada da Praia dos Cães (1982), o Grande Prêmio do Romance e Novela, da
Associação Portuguesa de Escritores; o romance é apontado como o livro do ano pelo jornal
16
Sunday Times.2 Alexandra Alpha, romance de (1987), também focalizando a Revolução dos
Cravos, é premiado pela Associação Brasileira de Críticos.
Em 1996, José Cardoso Pires sofre um acidente vascular-cerebral e relata essa
angustiante experiência no emocionante De Profundis, Valsa Lenta (1997). Recebe dois
prêmios, dentre eles o Prêmio Pessoa. Seu último livro é Lisboa, Livro de Bordo (1997).
Reconhecido como um dos mais importantes escritores portugueses da segunda
metade de século XX, caracteriza-se pela diversidade e inovação de sua obra, pois cada novo
projeto literário inaugura uma fase e um ciclo diferentes em sua trajetória de escritor.
Identifica-se com o movimento neorrealista português, porque vivencia a ditadura salazarista,
influência marcante que determina sua preocupação social, revelando uma postura política de
resistência ao regime autoritário vigente. Cardoso Pires revela e desvenda, de forma precisa,
as questões da contingência humana de seu tempo, construindo seus textos com uma
linguagem ao mesmo tempo simples, irônica, sofisticada e principalmente bem humorada.
Atuante e preocupado com as questões de seu tempo, questionou o próprio fazer
literário, rompeu com linearidades estabelecidas por séculos de tradição, admitiu, por
exemplo, vários focos narrativos em suas histórias, defendendo que não há uma única visão
dos fatos. Inovou na questão do narrador, já não mais previsível, e principalmente foi um
defensor da ―obra aberta‖, ou melhor, o leitor é que tem que construir o sentido do texto,
presumir o final da história, ao escritor cabe o recorte crítico do real. O escritor revela um
pouco de sua produção em entrevista ao Diário de Notícia de Lisboa: ―(...) prefiro, em
literatura, pecar por defeito a pecar por excesso. Prefiro dizer de menos do que dizer de mais,
porque, se digo de mais, mato o leitor, o leitor apaga-se. Apaga-se a sua suspeita". (DNA,
21/12/1996).
Ou ainda: ―(...) a ficção só cai bem quando o leitor sente uma força criativa que o
ultrapassa. Enquanto o autor está dentro dele e ele está a dominar a situação, [...] o leitor não
vai lá. O leitor, de repente, tem de se render..." (DNA, 21/12/1996).
Assim, o texto de Cardoso Pires caracteriza-se por uma forma simples e enxuta de
escrever, o que o aproxima de uma narrativa cinematográfica. Estilo conciso, porém,
meticuloso, sua meta é a economia e sua maior preocupação, limpar o texto deixando somente
2 As informações sobre os prêmios recebidos pelo autor foram extraídas do site (acessado em
18/05/2010): http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/cardoso_pires/
17
o essencial: ―por isso é que sempre procurei não uma máquina de escrever, mas uma
"máquina de apagar‖, como diz no documentário realizado para a RTP, em 1998.
Com relação às temáticas, frequentemente se valendo da ironia, trata de Portugal e dos
portugueses. Transita do político ao existencial, em busca do autoconhecimento, sempre com
um discurso forte, crítico, irônico, da sociedade e de si mesmo. Maria Lúcia Lepecki observa
que:
(...) descodificar bem o romance cardosiano é sempre conhecer mais um pouco da
história nacional, tanto na sua objetividade – isto é, naquilo que podemos encontrar
em historiadores encartados - como, sobretudo, na sua subjetividade: quer dizer, no
modo como uma comunidade vive, entende e mitifica o seu percurso. (in:
MACHADO, org, 1996, p.387)
O escritor, além de ter vivenciado toda a ditadura salazarista, também foi influenciado
pelo movimento pós-moderno, época de grandes transformações sociais promovidas pelas
ideias de filósofos como Sartre e Simone de Beauvoir. Testemunhou a mudança social
ocasionada pelo existencialismo francês que salientava a importância do outro para a
realização do ser e também a bombástica constatação de que o ‗inferno‘ são os outros.
Cardoso Pires também presenciou as transformações ocorridas no foco de importância das
coisas, a súbita e crescente valorização dos objetos e do possuir em detrimento do ser. A
coisificação do homem, preso ao cotidiano e as suas ninharias, perdendo a sua essência
humana, interiormente fragmentado e caótico. Como afirma Linda Hutcheon em seu livro
Poética do Pós-Modernismo:
(...) o romance pós-modernista questiona toda aquela série de conceitos
interrelacionados (...) de humanismo liberal: autonomia, transcendência, certeza,
autoridade, unidade, totalização, sistema, universalização, centro, continuidade,
teleologia, fechamento, hierarquia, homogeneidade, exclusividade, origem.
(HUTCHEON, 1991, p. 84)
Essa fragmentação também é retratada na literatura, na maneira de escrever, inspirada
pelo Nouveau Roman francês: narração sem linearidade, sequência ou ordem, aparentemente
18
inacabada, e, principalmente, consciente de que tudo pode ser questionado: instituições,
religião, filosofias, ciências, psicologias. Enfim, a consciência relativista de que a verdade
depende do ponto de vista de cada um. Lemos ainda no estudo acima citado: ―O pós-
modernismo caracteriza um desafio às idéias que são admitidas como certas, mas também
reconhece o poder dessas idéias e se dispõe a explorar esse poder com o objetivo de realizar
sua própria crítica.‖ (HUTCHEON, 1991, p. 264)
E para fazer sua crítica, o pós-modernismo usa frequentemente da paródia, forma de
expressão recorrente nesta época. A autorreflexividade promovida pela paródia possibilita um
duplo movimento de referência, ou seja, permite ao texto ser contemporâneo e também
estabelecer relações complexas e imprescindíveis com o contexto social do qual emergiu.
Podemos dizer que essa estética diminuiu a distância entre a arte da elite e a arte
popular, uma vez que, com ela, veio o reconhecimento das diferenças e das contradições, bem
como a possibilidade de dar uma ‗voz‘ às minorias oprimidas.
1.1.2 JOSÉ J. VEIGA
É por isso que os meus livros têm
sido assim nesse tom, que até se
convencionou chamar de realismo
mágico, dizem uns, „realismo
fantástico‟, dizem outros. Eu vejo
nisso uma contradição,
principalmente na expressão
“realismo fantástico”, porque se é
real, como é que pode ser
fantástico?
Armoni Prado, 1989, p. 28
José Jacintho Pereira Veiga (nascido em 1915 e morto em 1999) atribuía a escolha de
seu nome ‗artístico‘ ou literário a Guimarães Rosa que, adepto da numerologia e também
embasado em motivos estilísticos, sugeriu José J. Veiga para a publicação do livro de estréia
19
Os Cavalinhos de Platiplanto, em 1959. José J. Veiga tinha então 44 anos; os outros 40 anos
de vida consolidaram uma carreira literária de mais de 15 títulos.3
Sua segunda publicação foi a novela A Hora dos Ruminantes, reescrita sete vezes, até
sua edição final, em 1966. Em 1972, dá-se a publicação do livro que será objeto de estudo
deste trabalho, Sombras de Reis Barbudos, no período político que se iniciava em 1969,
quando uma Junta Militar escolhe o general Emílio Garrastazu Medici para governar o Brasil.
São os chamados ―anos de chumbo‖, os mais duros e repressivos da história do país.
CAMPEDELLI (1982) nos diz que é muito curioso observar que na obra de J. J. Veiga
o Brasil rural sempre aparece; suas histórias, na maioria das vezes, são ambientadas no campo
ou em cidades muito pequenas, por vezes bastante atrasadas, que sequer ouviram falar de
modernidade ou civilização moderna; e é sempre muito agradável a vida nestes lugares a
princípio. Porém, no caso de Sombras de Reis Barbudos, a vida pacata e tranquila é
surpreendida pela chegada de uma empresa que acenava com a possibilidade de progresso,
mas, que acaba por instaurar um regime de opressão na cidade. A respeito do estilo do autor
lemos:
O mundo que J. J. Veiga traz para as páginas de seus livros retrata bem esse povo
das ―cidades miúdas‖, como ele fala. Povo que ainda não foi atingido em cheio pela
dita civilização moderna e sequer ouviu falar em capitalismo. E, paradoxalmente,
trabalha para ele: é esse povo que toca os latifúndios, planta a terra, tange o gado.
(CAMPEDELLI, 1982 p. 95)
Veiga usa uma linguagem enxuta e rica para retratar essa gente simples. Escreve com a
naturalidade de quem conta uma história em uma roda de amigos. O ritmo de seu texto segue
a calmaria do ambiente da maioria de seus romances e contos, ou seja, o ritmo tranquilo e
pacato da vida do interior, nas cidades pequenas, segundo CAMPEDELLI (1982). Usa
palavras simples, porém exatas, para dizer grandes coisas; uma simplicidade complexa, só
alcançada por escritores de destaque, acreditava estar no mais simples a essência maior.
Atrás dessa simplicidade aparente da linguagem instaura-se, em suas obras, um certo
clima de tensão ou de opressão causada pela violência física ou moral que subjuga a todos,
cidades inteiras, que são cenários de suas histórias. Essa forma própria de denunciar situações
3 As informações foram extraídas da biografia escrita por Moacir Amâncio e publicadas no livro José
J. Veiga- Literatura Comparada.
20
opressivas, principalmente em se tratando do sertão, é percebida também nas obras de
Guimarães Rosa, para citar um brasileiro. Mas podemos perceber também, segundo
CAMPEDELLI (1982), certa afinidade com o tcheco Franz Kafka (romance do absurdo) e
com o inglês Aldous Huxley. J. J. Veiga, porém, possui um jeito muito próprio e pessoal de
denunciar realidades absurdas e opressivas vividas pelo homem e parece buscar inspiração em
sua infância rural e no mundo a sua volta.
A autora observa, ainda, na obra de J. J. Veiga, algumas situações onde o
‗estranhamento‘ se instaura, uma atmosfera de pesadelo que se revela para denunciar a
opressão política e social. O fantástico de Veiga serve para denunciar as situações dolorosas
em que os indivíduos sofrem algum tipo de opressão; o fantástico serve ao autor como recurso
para revelar a verdade.
Alucinação ou realidade, certo é que J. J. Veiga coloca suas personagens diante de
fatos totalmente inusitados e situações incompreensíveis impostas por sistemas estabelecidos
alheios à vontade delas. Se isso não fosse suficiente, esse mundo insólito está ainda dividido
em dois polos: o do opressor e o do oprimido. Em Sombras de Reis Barbudos, a Companhia
que se instaura na cidade oprime os habitantes que aceitam tudo passivamente; não há um
confronto, um questionamento da situação, há somente a fuga através do elemento
maravilhoso ou fantástico, que é a possibilidade de voar.
O narrador é outro aspecto significativo na obra de J. J. Veiga, predominando o
autodiegético, segundo Gérard Genette4, aquele narrador que narra sua própria história. Esse
modo de narrar favorece o envolvimento do leitor com a história pelo tom confessional do
relato; diminuindo consideravelmente a distância entre quem narra e quem lê o escrito, tendo-
se a impressão de que o narrador fala diretamente ao leitor: ―Se estou aqui para contar a
verdade, não posso esconder o meu desapontamento quando vi o tio Baltazar descendo em
nossa porta‖ (VEIGA, 1983 p. 3).
J. J. Veiga escreve de uma forma próxima da oralidade, sem rebuscamento, buscando
sempre a economia da linguagem direta e objetiva mas com significado profundo. Essa
simplicidade linguística aparentemente displicente e fácil de ser conseguida, esconde um
labor inacreditável, pois, segundo lemos em CAMPEDELLI (1982), Veiga reescrevia várias
vezes seus textos, até alcançar a forma desejada. Essa recusa do autor à linguagem acadêmica
4 Em nosso trabalho utilizaremos a nomenclatura de Genette no livro Dicionário de Teoria da Narrativa de Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, para os elementos da estrutura da narrativa: narrador, tempo, espaço, personagem.
21
e à metáfora, longe de tornar seus textos banais, torna-os mais ainda significativos, pertinentes
e extremamente reflexivos.
1.2 LITERATURA COMPARADA
“Polimorfa por sua natureza e seu
desenvolvimento”, a literatura
comparada acena para um
cruzamento de metodologias e de
sua negação, mas nem por isso
deixa de ocupar um espaço próprio
dentro dos estudos literários, seja
como objeto de discussão, seja
como perspectiva de aproximação
da literatura como tal e de sua
relação com outras artes e com
outros domínios do saber.
Sandra Nitrini, 1997, p. 123
A literatura comparada, segundo Sandra Nitrini, fundamenta-se basicamente em três
tendências: a francesa, a americana e a dos países do Leste europeu. O campo de estudo da
literatura comparada é amplo, igualmente extensas são as opiniões dos especialistas e dos
críticos a respeito do assunto, a variação se dá pela definição do próprio objeto, do método e
da finalidade dos estudos comparados. Diante do ecletismo que cerca os estudos
comparatistas, entendemos que esta é uma questão complexa; portanto, neste estudo
abordaremos apenas os aspectos que julgarmos relevantes para a nossa análise.
O ato de comparar não é um procedimento exclusivo da literatura comparada, é
inerente ao ser humano que a todo momento procura organizar o mundo em que vive;
portanto, comparar é um meio de organizar a própria vida e, por conseguinte, a literatura. Daí
a dificuldade para definir o objeto de estudo desta disciplina. Mas tentaremos, ao menos,
definir o objetivo da literatura comparada que é examinar a cultura e o contexto histórico-
social de um texto e de seu autor, estabelecendo relações com outros autores e obras, muitas
22
vezes esse diálogo comparativo é realizado com outras formas de arte, tais como o cinema, a
pintura, a escultura, etc. Nas palavras de Sandra Nitrini:
E, como disciplina autônoma, a literatura comparada tem seu objetivo e método
próprios. O objetivo é essencialmente o estudo das diversas literaturas nas suas
relações entre si, isto é, em que medida umas estão ligadas às outras na inspiração,
no conteúdo, na forma, no estilo. Propõe-se a estudar tudo o que passou de uma
literatura para outra, exercendo uma ação, de variada natureza. (NITRINI, 1997
p. 24)
Portanto, a literatura comparada servirá de método a nosso propósito de cotejar os
textos de Cardoso Pires e de J. J. Veiga, a fim de entender como ambos os autores,
pertencentes a comunidades geográficas diferentes, vivenciaram tipos de opressão
semelhantes, organizaram e estruturaram seus textos para retratarem e denunciarem a falta de
liberdade em que viviam.
As noções de intertextualidade e de paródia são as que nos interessam diretamente nos
estudos comparativos porque afirmam que a literatura nasce do diálogo constante entre os
textos e também por meio de retomadas, empréstimos e trocas. Em outras palavras, o sentido
de um texto e sua gênese dão-se em relação aos outros textos já produzidos. Nesta
perspectiva, escrever é um eterno dialogar de texto, entretextos e metatextos em obras do
passado e contemporâneas.
O termo ‗intertextualidade‘ foi usado primeiramente por Julia Kristeva; portanto, a ela
é atribuída a terminologia e a inovação dos conceitos das relações que se estabelecem entre os
textos, como observamos no artigo de Laurent Jenny publicado na revista Poétique:
Se se estender esta ideia de série extra-literária aos sistemas simbólicos não verbais,
chega-se à noção de intertextualidade, tal como a define Júlia Kristeva, a quem se
deve a invenção do termo. Se, com efeito, para Júlia Kristeva, <<qualquer texto se
constrói como um mosaico de citações e é absorção e transformação dum outro
texto>>, a noção de texto é seriamente alargada pela autora. É sinônimo de
<<sistema de signos>>, quer se trate de obras literárias, de linguagens orais, de
sistemas simbólicos sociais ou inconscientes. (JENNY, 1979, p. 13)
23
O conceito de intertextualidade inovou os estudos comparativos porque organizou e
renovou de forma eficiente os conceitos de fonte e de influência. Uma vez que a similaridade
entre textos não era mais vista como dependência ou dívida com relação ao texto original,
mas compreendida agora como um movimento natural da literatura. Com essa inovação, a
postura do comparatista passou da simples identificação de relações para uma análise em
profundidade a respeito dos motivos que levaram ao estabelecimento dessas relações.
Perguntas como: ―por que um texto resgata outro?‖ ―Com que intenção?‖ ―De que
forma?‖, são algumas indagações que o comparatista literário deve fazer, ou seja, analisar se
um texto retoma outro de forma passiva ou agressiva, com a intenção de destruí-lo ou
perpetuá-lo e como ele realiza esse feito. Cabe ainda a pergunta do porquê de determinado
texto (ou textos) ser retomado num momento específico por outro texto; determinar, por
exemplo, as razões que motivaram o autor recente a ler e resgatar um autor anterior; e o mais
importante, determinar o novo sentido que certamente este texto, deslocado de seu contexto
de origem e modificado, terá. As inúmeras questões levantadas demonstram o quanto se
ampliaram, com relação à antiga definição binária de fontes e influência, os conceitos
comparatistas.
Portanto, os conceitos de paródia e intertextualidade são extremamente relevantes para
nossa análise comparativa, uma vez que a paródia é, segundo Linda Hutcheon, repetição com
diferença crítica. O estudo e a sistematização de sua teoria possibilitam-nos os subsídios
necessários à análise comparativa.
Visto que todo discurso jamais é desprovido de ideologia, principalmente o literário, é
dever do comparatista investigar os porquês da repetição paródica ou intertextual, uma vez
que certamente esse ato está repleto de intencionalidade, seja para promover seja para criticar
o discurso anterior. A repetição acaba por realizar invariavelmente uma renovação, uma
atualização que abre um leque de possibilidades de reflexões para o novo texto:
Talvez a paródia tenha chegado a ser uma modalidade privilegiada da auto-
reflexividade formal do pós-modernismo porque sua incorporação paradoxal do
passado em suas próprias estruturas muitas vezes aponta para esses contextos
ideológicos de maneira um pouco mais óbvia, mais didática, do que as outras
formas. A paródia parece oferecer, em relação ao presente e ao passado, uma
perspectiva que permite ao artista falar para um discurso a partir de dentro desse
discurso, mas sem ser totalmente recuperado por ele. Por esse motivo, a paródia
parece ter se tornado a categoria daquilo que chamei de ―ex-cêntrico‖, daquele que
são marginalizados por uma ideologia dominante. (HUTCHEON, 1991 p. 58)
24
Talvez seja por esse motivo que Cardoso Pires tenha escolhido realizar uma paródia de
Salazar e de seu governo como uma forma de retomar um passado sombrio e sofrido de
maneira distanciada e promover uma crítica austera por meio da paródia satírica.
J. J. Veiga, de forma diferenciada, também retomou uma situação de opressão
pertencente a outro contexto histórico e a seu modo construiu seu texto. Nosso objetivo neste
trabalho é analisar como cada autor atualiza o período histórico que corresponde nos dois
países a ditaduras severas. Estabelecer as diferenças e as semelhanças e entender os motivos
que os levaram a escrever, qual a intenção de cada um e principalmente os efeitos e
possibilidades de reflexão e interpretação que os textos atualizados tornam possíveis.
Enfim, os autores que nortearão a nossa análise são, principalmente, Affonso Romano
de Sant‘Anna, que sistematizou muito bem algumas questões intertextuais já propostas por
Mikail Bakhtin e I. Tynianov, acrescentando ao binômio ―paródia / paráfrase‖ as noções de
estilização e de apropriação; Gérard Genette, que esclarece noções de transtextualidade e
Linda Hutcheon, que nos deu subsídios para desenvolver os conceitos de ironia, paródia e
intertextualidade.
1.2.1 INTERTEXTUALIDADE
De uma maneira ampla pode-se
dizer que as linguagens são
formuladas em espaços diversos
dentro do cotidiano. Há uma
linguagem burocrática, uma
linguagem jornalística, outra
linguagem informal nas ruas, etc.
Pois bem. A literatura tem a sem-
cerimônia de se apropriar dessas
linguagens todas. E, ao se apropriar
delas, cria um espaço novo a partir
do qual elas podem ser relidas.
Relidas, parafrásica ou
parodisticamente.
Romano Sant‟Anna, 2008, p. 72
25
O texto de Genette que servirá de base teórica para o conceito de intertextualidade é o
livro Palimpsestes (La Littérature au Second Degré), de Gérard Genette, que discute a
transtextualidade, ou seja, as relações estabelecidas entre os textos. O título consiste numa
metáfora da prática transtextual, uma vez que palimpsesto era um pergaminho feito de couro
de animais, utilizado e reutilizado para escrever; como era um material de difícil preparação,
o processo de reciclagem e reaproveitamento era fundamental. Assim, removia-se
seguidamente a escrita anterior para reutilizar o pergaminho, de modo que os textos acabavam
por ser compostos por diversas camadas que, mesmo raspadas, apareciam sob o novo texto.
Portanto, um palimpsesto era um texto cuja escrita anterior deixava-se entrever na nova
escrita. Desta forma, em sentido figurado, palimpsestos seriam hipertextos ou todas as obras
oriundas de uma outra obra anterior, seja por influência, imitação ou transformação.
Genette destaca cinco tipos de transtextualidade, nomenclatura criada por ele para
indicar tudo aquilo que coloca um texto em relação, manifesta ou secreta, com outros textos.
São eles: intertextualidade, paratextualidade, transcendência textual, hipertextualidade e
arquitextualidade. Cada um dos cinco tipos de transtextualidade foi conceituado por Genette e
passaremos a defini-los neste trabalho. Assim, segundo o crítico, a intertextualidade é o
primeiro tipo de relação entre textos:
[…] d‘intertextualité, et cette nomination nouns fournit évidemment notre
paradigme terminologique. Je le définis pour ma part, d‘une manière sans doute
restrictive, par une relation de coprésence entre deux ou plusieurs textes, c‘est-à-
dire, eidétiquement et le plus souvent, par la présence effective d‘un texte dans un
autre. Sous sa forme la plus explicite et la plus littérale, c‘este la pratique
traditionnelle de la citation (avec guillemets, avec ou sans référence précise); sous
une forme moins explicite et moins canonique, celle du plagiat chez Lautréamont,
par exemple), qui est un emprunt non déclaré, mais encore littéral; sous forme
encore moins explicite et moins littérale, celle de l‘allusion, c‘est-à-dire d‘un énoncé
dont la pleine intelligence suppose la perception d‘un rapport entre lui et un autre
auquel renvoie nécessairement telle ou telle de ses inflexions, autrement non
recevable: (GENETTE, 1982, p. 8)5
5intertextualidade, e esta nomeação nos fornece evidentemente nosso paradigma terminológico.
Quanto a mim, defino-o de maneira sem dúvida restritiva, como uma relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um texto em um outro. Sua forma mais explícita e mais literal é a prática tradicional da citação (com aspas, com ou sem referência precisa); sua forma menos explícita e menos canônica é a do plágio (em Lautréaumont, por exemplo), que é um empréstimo não declarado, mas ainda literal; sua forma ainda menos explícita e menos literal é a alusão, isto é, um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro, ao qual necessariamente uma de suas inflexões remete. (tradução nossa)
26
No texto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ de José Cardoso Pires, nosso objeto de estudo,
observamos a intertextualidade por meio dos ditados populares que são inseridos pelo
narrador no corpo da narrativa. Além de um recurso intertextual é também dialógico:
É uma forma de diálogo com a cultura popular: ―... a intertextualidade realiza-se no
interior do texto ficcional, pelo aproveitamento, transformação e incorporação de
alusões, montagens, citações, referências, imitações, paródias, reproduções de outros
textos, inseridos no próprio discurso, que revelam o ―velho‖ de um novo ângulo... (FLORY, Suely. 1997 p. 39)
Seguem abaixo alguns exemplos retirados do texto:
Quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão (DE, p. 129)
Mais vale um rico na mão que dois pobres a voar. (DE, p. 138)
Com palavras e com moscas povoa a miséria do Reino. (DE, p. 162)
Já ensinavam os mexilhões-avós que fingir de cego é virtude de quem vê demais, e o
Mestre devia ser desses. (DE, p. 165)
Burro que aprende línguas esquece o coice e perde o dono. (DE, p. 164)
Ora como o surdo que muito canta acredita que tem boa voz (ditado dos Pedintes
Voadores) (DE, p. 190)
Contavam o conto e acrescentavam o ponto sem mais aquelas ... (DE, p. 196)
O aproveitamento de expressões latinas também se configura como um recurso
intertextual, estabelecendo um diálogo intercultural. No caso específico do texto em questão,
dialoga-se com a Igreja, com o Cristianismo ou Catolicismo. Constitui-se igualmente, uma
forma irônica de questionar o sistema e a tradição. Alguns exemplos do texto de Cardoso
Pires:
Pecatorum Orbi /Quod erat demonstrandum (DE, p. 115)
Códico-Codex-Abrenuntio (DE, p. 115)
Et nunc et semper (DE, p. 122)
Universitas Sapientia Omnium (DE, p. 125)
27
AD GLORIAM DEI (DE, p. 127)
<<IN HOC SIGNO VINCES!>> (DE, p. 131)
Dinossauro, pax perpetua, Dies iraes ... (DE, p. 193)
O segundo tipo de relação transtextual elencado por Genette é a paratextualidade, ou
seja, o fenômeno que se refere a todos os elementos que estão ao lado do texto, explicações
necessárias que também fazem parte do texto, tudo o que cerca o texto:
[...] paratexte: titre, sous-titre, intertitres; préfaces, postfaces, avertissements, avant-
propos, etc; notes marginales, infrapaginales, terminales; épigraphes; illustrations;
prière d‘insérer, bande, jaquette, et bien d‘autres types de signaux accessoires,
autographes ou allographes, qui procurent au texte un entourage (variable) et parfois
un commentaire, officiel ou officieux, dont le lecteur le plus puriste et le moins
porté à l‘érudition externe ne peut pas toujours disposer aussi facilement qu‘il le
voudrait et le prétend. (GENETTE, 1982, p. 10)6
A dedicatória do livro, “Para Ana e para Rita”, filhas de Cardoso Pires, que na época
em que o livro foi escrito, ainda eram pequenas, nos remete para o universo infantil da fábula,
ou pelo menos para a dupla leitura que se pode fazer do texto. Uma leitura ingênua e fabulosa
(quase impossível) e a leitura crítica do Dinossauro como alegoria da opressão da ditadura.
Essa mesma Rita aparecerá no diminutivo como Ritinha, na última frase do livro, também
como elemento extratextual.
O livro no qual se encontra o conto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ chama-se A
República dos Corvos e possui uma epígrafe: ―<<Cada homem transporta dentro de si o seu
bestiário privado>> ─ disse o Juiz.‖ (Pires, 1988, p. 8). Essa epígrafe configura-se como
elemento extratextual e sinaliza para a bestialidade humana e também para a animalização do
ser humano, traço comum aos demais textos reunidos neste livro.
6 paratexto: título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas
marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende. (tradução nossa)
28
Na realidade, ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é recheado de elementos extratextuais que
compõem seu significado; antes mesmo de iniciar-se a história, somos apresentados a outra
epígrafe: ―Hoje em dia pode roubar-se tudo a um homem, até a morte ─ disse o contador de
estórias à sua filha Ritinha.‖ (PIRES, 1988, p. 109). Somente depois dela começa a narrativa
da saga do Imperador Dinossauro. A vida desse Imperador desde seu nascimento é contada
por um narrador heterodiegético, tomando a nomenclatura de Gérard Genette, mais
precisamente por um contador de estórias que começa a narração da história do Imperador
diabo e ladrão, relatando os acontecimentos à filha, que é o narratário mencionado.
A frase que encerra o livro também não faz parte da saga do Dinossauro, pois, se
iniciamos essa história com uma epígrafe, terminamos com o fechamento de um livro que se
estava lendo, sinalizando uma mudança de assunto do contador de história ou narrador, que
refere-se a um fruto que está maduro. Assim, início e fim são ambos elementos extratextuais,
de certa forma caracterizando a narração como conto de ―moldura‘.
Ocorre também, em vários momentos da narrativa, a presença de pequenos títulos ou
palavras e expressões colocadas em destaque no corpo do texto, chamando a atenção.
Citaremos, para ilustrar, apenas uma ocorrência escolhida entre muitas que o texto traz:
<<NÃO POSSO MAIS, EXCELÊNCIA.
OS EXCELENTÍSSIMOS MENDIGOS TIRAM-ME
O SONO COM AS LAMENTAÇÕES.>>
[...]
<<INADAPTADOS SEMPRE EXISTIRAM
E CONTINUARÃO A EXISTIR
ATÉ NOS REINOS MAIS PRÓSPEROS.
DURMA EM PAZ.>>
[...]
<<SENHOR MESTRE EXCELENTÍSSIMO
PERDEMOS MAIS UMA BATALHA
NÃO CONHECEMOS AS LEIS DE GUERRA
DOS INFIÉIS NEM O CAMPO
QUE ESCOLHERAM POSSO-ME RETIRAR?>> (DE, pp. 140-141)
Os caracteres colocados com letra maiúscula para indicar a fala das personagens
concedem grande ênfase ao enunciado. São feitos para chamar a atenção do receptor para a
disposição irreverente das palavras no papel, parecem versos e não prosa, pois a distribuição
29
assemelha-se a estrofes, contribuindo para a ironia uma vez que de poética essa narrativa não
tem absolutamente nada.
A transcendência textual é a metatextualidade, ou melhor, a relação de comentário que
une um texto a outro texto sem, contudo, nomear necessariamente este outro texto. Aqui se
configura a relação de crítica textual; é o terceiro tipo de relação entre os textos, nomeado
pelo teórico francês. Alguns exemplos seriam textos de história da literatura ou de crítica
literária. Uma observação: normalmente os textos de crítica literária são nomeados.
Le troisième type de transcendance textuelle, que jê nomme métatextualité, est la
relation, on dit plus couramment de <<commentaire>>, qui unit un texte à un autre
texte dont il parle, sans nécessairement le citer (le convoquer), voire, à la limite, sans
le nommer: (GENETTE, 1982, p. 11)7
O quarto tipo de relação esquematizado por Genette é chamado de hipertextualidade
ou qualquer relação que une um determinado texto a outro, salvo a relação de comentário que
já foi anteriormente explicitada. Neste item evidenciam-se os conceitos de hipertexto e
hipotexto: o hipertexto é o texto que resulta de outro, ou seja, o texto construído: a paráfrase,
a paródia, a apropriação, etc.; o hipotexto é a fonte, o modelo, a inspiração, a influência, o
texto que é referido e serve de referência para a construção do hipertexto. Assim lemos em
Genette:
C‘est donc lui que je rebaptise désormais hypertextualité. J‘entends par là toute
relation unissant un texte B (que j‘appellerai hypertexte) à un texte antérieur A (que
j‘appellerai, bien sûr, hypotexte) sur lequel il se greffe d‘une manière qui n‘est pas
celle du commentaire. (GENETTE, 1982, p. 13)8
7 O terceiro tipo de transcendência textual, que eu chamo de metatextualidade, é a relação, chamada
mais correntemente de “comentário", que une um texto a outro texto do qual ele fala, sem necessariamente citá-lo (convocá-lo), até mesmo, em último caso, sem nomeá-lo. (tradução nossa) 8 Entendo por hipertextualidade toda relação que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto
anterior A (que, naturalmente, chamarei hipotexto) do qual ele brota, de uma forma que não é a do comentário. (tradução nossa)
30
Portanto, o hipertexto seria, segundo Genette, um texto de segundo grau ou texto
derivado de outro texto pré-existente. Muitas vezes o hipertexto não se refere ao hipotexto,
mas o hipertexto não poderia existir sem o hipotexto. Um hipertexto pode ser derivado de
transformação simples ou por transformação indireta, o que Genette chama de imitação. O
hipotexto é chamado pelo teórico de texto de primeiro grau porque serve de referência para o
hipertexto.
De certa forma, a hipertextualidade é um aspecto universal da literatura porque não
existe uma obra que, de uma forma ou de outra, não evoque outra obra literária.
A última categoria transtextual proposta por Genette é a arquitextualidade ou
caracterização do texto. A determinação do arquitexto é tarefa do leitor e da crítica:
Le cinquième type (je sais), le plus abstrait et le plus implicite, est l‘architextualité,
définie plus haut. Il s‘agit ici d‘une relation tout à fait muette, que n‘articule, au plus,
qu‘une mention paratextuelle (titulaire, comme dans Poésies, Essais, le Roman de la
Rose, etc.; ou, le plus souvent, infratitulaire: I‘indication Roman, Récit, Poèmes,
etc., qui accompagne le titre sur la couverture), de pure appartenance taxinomique.
(GENETTE, 1982, p. 12)9
Devemos esclarecer que a divisão em tipos é benéfica porque facilita a compreensão e
a classificação das relações intertextuais; porém, não podemos esquecer que os conceitos
propostos não são estanques e os diversos tipos de realizações linguísticas entrelaçam-se
muitas vezes. A relação efetiva-se ainda entre o texto e seu leitor como uma prática
consciente e organizada, como nos diz a estética da recepção, explorada posteriormente por
outros teóricos.
A consciência da transtextualidade amplia a significação de um texto, multiplicando-
lhe as possibilidades de interpretação. De qualquer modo, a visão e interpretação intertextual é
um componente do entendimento do texto, porque sempre permanece em nossa mente um
9 O quinto tipo, (eu sei), o mais abstrato e o mais implícito, é a arquitextualidade, definida acima.
Trata-se aqui de uma relação completamente silenciosa, que, no máximo, articula apenas uma menção paratextual (titular, como em Poesias, Ensaios, o Roman de la Rose, etc., ou mais frequentemente, infratitular: a indicação Romance, Narrativa, Poemas, etc., que acompanha o título, na capa), de caráter puramente taxonômico. Essa relação pode ser silenciosa, por recusa de sublinhar uma evidência, ou, ao contrário, para recusar ou escamotear qualquer taxonomia. (tradução nossa)
31
substrato de leituras anteriormente feitas, que num momento ou outro emergem. Portanto, em
maior ou menor grau, nossas experiências com textos sempre sofrerão influências implícitas
ou explícitas de nossa bagagem cultural. Na verdade, a intertextualidade sempre existiu, mas
o que é próprio da época representada por Genette é a consciência crítica do fenômeno, o seu
estudo e a criação de nomenclaturas para as práticas transtextuais.
1.2.2 PARÓDIA
Ora, o que o texto parodístico faz é
exatamente uma re-apresentação
daquilo que havia sido recalcado.
Uma nova e diferente maneira de
ler o convencional. É um processo
de liberação do discurso. É uma
tomada de consciência crítica.
Romano Sant‟Anna, 2008, p. 31
A paródia é uma modalidade discursiva tão antiga quanto a própria literatura. Pode ser
considerada uma repetição, porém com certa diferença e distanciamento crítico. Geralmente
são parodiados textos conhecidos e consagrados, parodiando-se o todo ou alguns de seus
elementos, como sua temática, sua estrutura, nome das personagens, ambiente, espaço,
estrutura, etc. A paródia sempre pressupõe a existência de um texto que transforma (imita) e
outro que é transformado (imitado), ou seja, um texto que parodia e outro que é parodiado.
Segundo Genette, respectivamente, um hipertexto e um hipotexto. Todas as formas de artes,
no entanto, são passíveis de serem parodiadas, como uma pintura ou uma escultura, por
exemplo.
A paródia é um tipo de texto que exige do leitor certa competência e conhecimento de
literatura, uma vez que o leitor, para realizar uma leitura adequada, tem que reconhecer que se
trata de uma paródia e conhecer o texto a que ela se refere, do contrário poderá decodificar
erradamente, caso em que a paródia não funciona, não atinge seu objetivo, que é fazer
referência ao texto parodiado.
32
A exigência de um leitor astuto e com competência cultural e literária tornaria a
paródia um texto elitizado, dirigido a um leitor ideal, o que se torna uma das maiores críticas a
esta forma moderna de literatura, ambígua por natureza, que pode tanto prestar uma
homenagem quanto ironizar ou satirizar a obra referida. Porém, realmente, não há paródia
sem o leitor que a reconheça, o leitor tem que acionar seu conhecimento de mundo para
entender as vozes dissonantes presentes no texto, e isso somente ocorre no ato da leitura. Daí
a importância do interpretador que tem que reconhecer, por meio das pistas deixadas no texto,
que se trata de uma paródia.
A paródia é um contracanto, um contraponto, um canto em outro tom, que deforma a
melodia original, por isso mesmo, segundo Genette, é uma prática transtextual, que recria um
texto num registro mais vulgar. Portanto, a paródia é marcada por uma oposição de vozes
dissonantes que estão em permanente contraste, voz que repete de forma crítica o objeto
parodiado, assinalando, desta maneira, a diferença em vez da semelhança.
Assim, o eixo parodístico promove uma tomada de consciência crítica, é a
intertextualidade das diferenças, libera a crítica, dá liberdade ao discurso. Por outro lado,
possibilitando a revisão crítica tanto de discursos históricos quanto literários, ao mesmo
tempo promove a manutenção desses discursos, daí seu caráter paradoxal, pois coloca em
xeque modelos e dogmas estabelecidos, mas, ao transgredi-los, acaba por legitimá-los
também. Nesse duplo movimento de transgressão das normas vigentes e recriação crítica dos
textos parodiados, porque sempre há vestígios do texto parodiado na paródia, ela acaba
promovendo a continuidade do texto parodiado, ressaltando também sua importância.
Como modo de construção formal do nosso tempo, a paródia não tem somente na
crítica negativa seu principal objetivo; pelo contrário, no sentido ampliado das possibilidades
de significação encontra-se sua essência: apresentar alternativas, questionar para entender
melhor, com distanciamento crítico. Como pode tanto exaltar quanto desmoralizar ou
denunciar uma realidade cruel, opressiva, é uma forma de resistência, de protesto e denúncia
da realidade.
O que a paródia promove, de fato, é a desconstrução, a desmistificação, uma releitura
contextualizada de algo pré-existente; essa repetição distanciada e crítica lança mão de muitos
recursos retóricos, dentre eles a ironia e a sátira, como iremos ressaltar ao longo de nosso
estudo.
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Muitos estudiosos da literatura têm suas teorias sobre a paródia, ficaremos aqui com o
sentido de paródia de Linda Hutcheon: ―A paródia é, pois, na sua irônica
‗transcontextualização‘ e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação
crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância
geralmente assinalada pela ironia.‖ (HUTCHEON, 1985, p. 48)
Para a autora, a paródia é o ícone da literatura atual, caracterizada pela
autorreflexividade e pela intertextualidade ou transtextualidade. Ao problematizar, inverter e
questionar, a paródia não traz respostas prontas; ao contrário, com seu método de subverter os
estados das coisas, de inverter a estrutura ideológica e os modelos sociais, acaba por provocar
questionamentos. A paródia sugere novas ideias, por isso mesmo é um canto paralelo, porque
deslocado dos padrões.
No caráter autorreflexivo da paródia reside sua tentativa de entender a cultura
tradicional, a história anterior, dar sentido às situações vividas. A paródia tornou possível a
ideia de que as coisas podem perder sua aura sagrada e de que a perfeição é uma ilusão que
pode, a qualquer momento, ser desfeita.
O artista moderno usa a paródia para, além de desfazer esses mitos sagrados, promover
uma reflexão profunda e também uma crítica por vezes severa dos costumes humanos.
A auto-reflexividade das formas de arte modernas toma muitas vezes a forma de
paródia e, quando o faz, fornece um novo modelo para os processos artísticos. Num
esforço para desmistificar o << nome sacrossanto do autor >> e para <<
dessacralizar a origem do texto >> (HUTCHEON, 1985, p. 16)
Percebemos que modernamente a paródia não é apenas imitação ridicularizadora como
pensávamos, e sim, repetição com diferença crítica e acréscimo do elemento irônico,
marcando, principalmente, a diferença e não a semelhança. ―É a este jogo irônico com
convenções múltiplas, a esta repetição alargada com diferença crítica, que me refiro quando
falo de paródia moderna‖ (HUTCHEON, 1985, p. 19)
No sentido que a autora atribui à paródia, realiza-se um duplo movimento de inversão
e transcontextualização dos textos parodiados. Inversão, porque é imitação com diferença e
tranconstextualização, porque está inserida numa nova realidade enunciativa.
34
Esse duplo movimento paródico dá aos textos que utilizam tal recurso, nuances
diversas, que variam de divertidas formas humorísticas até uma crítica mordaz, passando por
zombarias em diferentes graus, revelando-se desse modo a flexibilidade do texto paródico.
Como afirma Hutcheon:
a paródia pode, obviamente, ser toda uma série de coisas. Pode ser uma crítica séria
não necessariamente ao texto parodiado; pode ser uma alegre e genial zombaria de
formas codificáveis. O seu âmbito intencional vai da admiração respeitosa ao
ridículo mordaz. (HUTCHEON, 1985, p. 28)
Quando a paródia é agressiva e mordaz ela adquire nuances satíricas. Quanto mais
agressiva a crítica paródica, mais o texto se vale da ironia e da sátira para construir seu
significado. O que a ironia possibilita à paródia é o distanciamento crítico.
A paródia é, pois, na sua irônica << transcontextualização >> e inversão, repetição
com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser
parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia.
Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa;
tanto pode ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva. O prazer da ironia
da paródia não provém do humor em particular, mas do grau de empenhamento do
leitor no << vai-vém >> intertextual (HUTCHEON, 1985, p. 48)
Desta forma, segundo a autora, a paródia, como síntese de uma contradição, prioriza a
antítese, dilata o alcance do signo literário e acaba tornando a escrita transgressora e
discordante. Como funciona como reflexão crítica, tem o dom de subverter as temáticas e suas
essências.
Outro autor que servirá de referência teórica para esta análise será o crítico brasileiro
Affonso Romano de Sant‘Anna, que amplia os conceitos de paródia e estilização instituídos
por Tynianov e Bakhtin e acaba por desdobrá-los em quatro elementos em gradação: paródia,
paráfrase, estilização e apropriação.
Segundo o autor, a paródia se liga ao antagonismo e à crítica, haja vista a formação da
palavra ―contracanto‘ ou ‗contraponto‘, marcada pelo prefixo ―contra‖: é um canto em outro
tom, que deforma o objeto representado. Além disso, a palavra paródia significa,
35
originalmente, uma ode que vem ao lado de outra, caracterizando-se como uma prática
transtextual, que transporta para um registro mais vulgar textos de cunho nobre ou elevado, o
mais das vezes acionando o registro cômico.
No extremo oposto ao eixo parodístico temos a paráfrase, que seria a réplica fiel ao
espírito do texto:
... paráfrase... ―é a reafirmação, em palavras diferentes, do mesmo sentido de uma
obra escrita. Uma paráfrase pode ser uma afirmação geral da ideia de uma obra
como esclarecimento de uma passagem difícil. Em geral ela se aproxima do original
em extensão‖ (BECKSON, Karl & GANZ, 2008, p. 17 APUD
SANT‘ANNA)
Ao contrário da paródia, a paráfrase liga-se ao eixo das semelhanças, procurando
reproduzir o discurso sem contestá-lo ou criticá-lo. As traduções de textos são um bom
exemplo de paráfrase, assim como a citação, a alusão, a transcrição direta e até o resumo, em
certa medida.
A inovação trazida pelo crítico está na noção de ‗desvio‘:
Consideremos que os jogos estabelecidos nas relações intra e extratextuais são
desvios maiores ou menores em relação a um original. Desse modo, a paráfrase
surge como um desvio mínimo, a estilização como um desvio tolerável, e a paródia
como um desvio total. (SANT‘ANNA, 2008, p. 38)
Se tomarmos como base os dois extremos: de um lado a paródia e de outro a paráfrase,
poderemos encaixar os conceitos de estilização e apropriação pela noção de maior ou menor
desvio em relação a esses dois polos.
A paráfrase, segundo o crítico, é o desvio mínimo, quase imperceptível; já a
estilização caracteriza-se por um desvio tolerável em relação ao texto original. De seu lado, a
paródia configura-se por um desvio total.
Como na estilização o desvio é tolerável, permanecem as características essenciais da
obra e não há perdas significativas de seus caracteres originais, não há, como na paródia, uma
‗traição‘ ou inversão do sentido original, mas sim transformações que não atingem o
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significado essencial do texto. Assim, a estilização está mais próxima da paráfrase e mais
longe da paródia, e podemos dizer que as duas se opõem à paródia porque fazem parte de um
mesmo conjunto de textos que objetiva mostrar as semelhanças, a reafirmação de algo, a
continuidade, a imitação, a repetição.
A paródia junta-se à apropriação no outro extremo: são textos que se caracterizam por
desvios significativos do texto original, integram o chamado conjunto das diferenças. A
paródia já foi aqui conceituada, vamos agora enfocar a apropriação, que é, segundo o crítico,
o grau máximo de inversão de significado. É a paródia elevada à potencialidade máxima de
contestação, de crítica e negação do texto original. ―Já a apropriação propriamente dita, por se
situar não no conjunto das similaridades, mas no conjunto das diferenças, é uma variante da
paródia e tem uma força crítica. É uma interferência no circuito. Não pretende re-produzir,
mas produzir algo diferente.‖ (SANT‘ANNA, 2008, p. 48)
A apropriação apodera-se de diversos materiais disponíveis para confeccionar seu
objeto de arte, ou seja, é uma espécie de colagem, de mistura de objetos que são retirados de
seu contexto original, transformados e inseridos num novo contexto, adquirindo, desta forma,
um sentido diferente e novo.
1.2.3 IRONIA
Com certeza, a ironia tem sido
chamada de “filha de Janus, deus
dos começos, e sem dúvida o mais
malcomportado de todos os tropos
literários”
Linda Hutcheon, 2000, p. 25
O discurso irônico é um discurso disfarçado ou marcado pelo contraste entre uma
realidade e uma aparência. Na ironia afirma-se para negar ou nega-se para afirmar. E neste
jogo, entre a realidade e a aparência, de dizer uma coisa intencionando dizer outra, é que se
efetiva a ironia. Nas palavras de Muecke: ―A velha definição de ironia ─ dizer uma coisa e
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dar a entender o contrário ─ é substituída; a ironia é dizer alguma coisa de uma forma que
ative não uma mas uma série infindável de interpretações subversivas.‖ (MUECKE, 1995, p.
48)
Portanto, segundo o autor, quem usa da ironia simula dizer algo, e o diz literalmente,
porém espera que a compreensão da mensagem seja outra. Desta forma a ironia caracteriza-se
por uma antífrase.
Muecke divide a ironia em dois grandes grupos: a situacional ou observável e a verbal
ou instrumental. A ironia observável, segundo o autor, é aquela que pode ser visualizada por
meio de uma situação que deve ser percebida pelo observador e julgada por ele como irônica.
Já na ironia verbal existe um sujeito que promove o discurso irônico porque há uma atitude
irônica expressa que se vale de uma inversão semântica para transmitir uma mensagem
cifrada.
Ao fazer essa diferenciação, Muecke adverte que nem sempre é possível uma distinção
entre os dois tipos de ironia estabelecidos por ele, porque a ironia situacional, por exemplo, é
descrita por meio da linguagem. Diz o autor:
Nem sempre é possível distinguir entre a ironia instrumental e a apresentação da
ironia observável, mas geralmente a distinção é clara: na ironia instrumental, o
ironista diz alguma coisa para vê-la rejeitada como falsa, unilateral, etc.; quando
exibe uma ironia observável, o ironista apresenta algo irônico – uma situação, uma
sequência de eventos, uma personagem, uma crença, etc. – que existe ou pensa que
existe independentemente da apresentação. (MUECKE, 1995, p.77)
Tanto a ironia observável quanto a instrumental tem em comum, de acordo com o
autor, o contraste entre uma aparência e uma realidade e guardam consigo uma oposição, uma
contradição, que se traduz numa incongruência e numa incompatibilidade, que fazem dos
textos irônicos um desafio instigante de interpretação.
O teórico assinala ainda os elementos imprescindíveis a todo discurso irônico: o
reconhecimento de um sentido literal e de um sentido figurado; a presença de um ironista e de
uma tensão irônica; uma estrutura, ou seja, um jogo para dois jogadores, um ironista que
motiva o leitor a rejeitar o seu sentido literal em favor de um significado implícito e
contrastante.
38
Acentua-se, desta forma, o caráter contraditório do discurso irônico que deve ser
percebido, na realidade, como o inverso do que está sendo dito.
A ironia provoca, segundo Muecke, duas sensações; a primeira, é a sensação de
paradoxo ou dupla realidade contraditória; a segunda, é a de libertação, um sentimento de
superioridade e divertimento, tanto do ironista quanto de quem interpreta: o primeiro, pela
capacidade de criação de um texto cifrado e ambíguo; o segundo, por conseguir desvendar e
interpretar as pistas desse texto intrigante e chegar ao sentido irônico. Assim teoriza ele:
A autoconsciência do observador irônico enquanto observador tende a acentuar sua
sensação de liberdade e induz um estado de satisfação, serenidade, alegria ou mesmo
de exultação. Sua consciência da inconsciência da vítima leva-o a ver a vítima como
se estivesse amarrada ou presa numa armadilha onde ele se sente livre;
comprometida onde ele se sente descompromissado, agitada por emoções, fustigada,
ou miserável onde ele está indiferente, sereno, ou mesmo movido ao riso; confiante,
crédula ou ingênua, onde ele é crítico, cético, ou disposto a parar o julgamento.
Onde sua própria atitude é a de um homem cujo mundo parece real e significativo,
ele considerará o mundo da vítima ilusório ou absurdo. (MUECKE, 1995, p.68)
O conceito de ironia é complexo, sofreu grande variação de sentido através dos tempos
e muitos foram os autores que se atreveram a estudá-la e sistematizá-la. Como não é nosso
propósito realizar um histórico do termo, ressaltaremos como base teórica o estudo Teoria e
Política da Ironia, da crítica Linda Hutcheon. Seguindo a linha da autora, nosso enfoque
limitar-se-á a estudar a ironia em um contexto específico, ou seja, como ela se manifesta no
discurso literário, mais precisamente nas obras de José J. Veiga e José Cardoso Pires.
Para isso, gostaríamos primeiramente de observar como Hutcheon estabelece uma
ligação entre a ironia e a política, explícita no próprio título do seu livro Teoria e Política da
Ironia; chega mesmo a dizer que a ironia atua no político, defendendo ou denunciando
posições:
A ironia tem sido sempre usada para reforçar ao invés de questionar atitudes
estabelecidas (cf. Moser, 1984: 414), como a história da sátira ilustra tão bem. E
isso, a natureza ―transideológica‖ (White, 1973: 38) da ironia, é o foco deste livro: a
ironia consegue funcionar taticamente a serviço de uma vasta gama de posições
políticas, legitimando ou solapando uma grande variedade de interesses. Foi esse
foco que determinou o que, na Introdução, eu chamei de ―cena‖ da ironia neste
estudo em particular. (Hutcheon, 2000, pp. 26-27)
39
Portanto, como ambos os textos que analisamos neste trabalho têm como cenário a
política, com todas as suas implicações históricas e sociais, justifica-se a nossa escolha pela
autora. No contexto político, a ironia é uma forma de combate e oposição contra formas
dominantes e repressoras; a ironia seria, então, uma voz contestadora. Pela sua peculiaridade
de ‗dizer sem na verdade dizer‘, ela acaba ou ganhando tempo ou fazendo com que o discurso
seja ouvido, o que sem ironia seria impossível ou não permitido. O ouvinte ou leitor é
surpreendido pelo discurso e só percebe seu conteúdo depois, como aconteceu no ato da
publicação do conto de Cardoso Pires, ―Dinossauro Excelentíssimo‖, que, sem a roupagem da
ironia e da fábula, jamais passaria pelo crivo da censura salazarista por seu conteúdo de
afronta e denúncia da ditadura militar.
Uma outra observação é esclarecer como a autora desenvolve seus estudos a respeito
da ironia. Segundo suas palavras:
Como uma resposta à extensa literatura — em vários campos, de lingüística a
psicologia, de retórica a crítica literária — que vê a ironia como uma inversão
semântica direta (antífrase — ou dizer uma coisa e querer dizer o oposto) e logo
como um instrumento retórico estático para ser usado, este capítulo expande a
sugestão feita antes neste livro que a ironia é, em vez disso, um processo
comunicativo. É nessa perspectiva, então, que eu argumento que o significado
irônico possui três características semânticas principais: ele é relacional, inclusivo e
diferencial. (HUTCHEON, 2000, p. 90)
Assim, Hutcheon propõe um conceito de ironia dinâmico e contextualizado, jamais
estático, ao afirmar que a ironia deve ser relacional, inclusiva e diferencial.
Relacional porque o significado irônico sempre acontece em relação, seja entre o dito
e o não dito, ou entre as pessoas envolvidas no processo de comunicação da ironia (quem
escreve, quem recebe e os alvos da ironia). A depreensão do significado irônico sempre
ocorre em consequência de uma interação, ou seja, algo dinâmico.
Inclusiva, segundo a autora, devido à sua característica de ser uma antífrase, onde o
dito e o não dito operam ao mesmo tempo, havendo sempre uma superposição de significados
que ocorrem concomitantemente.
E finalmente diferencial, porque o significado irônico nasce da junção de dois
conceitos diferentes, ou seja, há um signo que sinaliza para algo diferente de seu sentido
literal. Considera Hutcheon que o signo irônico sempre marca uma diferença, porque tem-se
40
apenas um significante para no mínimo dois significados diversos, ainda que não
necessariamente opostos.
Um efeito que podemos observar numa narrativa irônica, por exemplo, é o
distanciamento assumido pelo narrador diante do narrado; ele não se envolve emotivamente
com a diegese, ainda que às vezes ela seja trágica e triste; além disso, esse distanciamento não
permite ao leitor uma identificação ou uma empatia maior com a personagem. Portanto, o
distanciamento é condição imprescindível à ironia e à sátira, pois do contrário, a aproximação
do narrador seria outra, de identificação emocional. Enfim, recurso de cunho paradoxal, tem
que ser muito bem manejado pelo escritor, pois, se não for bem compreendido, pode tornar-se
um ruído de comunicação, uma vez que estão envolvidos no jogo da interpretação não só a
competência do receptor do texto como também suas referências culturais e valorativas.
Deste modo, o que entra em jogo na correta interpretação ou percepção da ironia é a
proximidade entre as bagagens culturais do emissor e do receptor da mensagem, a sintonia de
percepção e os valores morais compartilhados por ambos. Mesmo assim, não há garantias de
que quem irá interpretar vá perceber a ironia da mesma forma como ela foi idealizada.
Segundo Linda Hutcheon:
(...) a ironia acontece (...) no espaço entre o dito e o não dito (e que os inclui).
Sentido irônico é inclusivo e relacional: o dito e o não dito coexistem para o
interpretador, e cada um faz sentido em relação ao outro porque eles literalmente
interagem para criar o verdadeiro sentido irônico. (HUTCHEON, 2000, p. 30)
Se a ironia é o modo do não dito, do não ouvido ou do não visto, a rigor ela não existe
literalmente, ela somente se tornará realidade a partir da correta interpretação, da percepção e
da leitura do receptor. Por vezes torna-se difícil estabelecer com precisão num texto as
passagens irônicas; é quase impossível afirmar com certeza nesse jogo de construção e
desconstrução de sentidos. Uma vez que a ironia é uma forma ambígua, o significado
superficial do texto ou se anula ou se confunde e multiplica, já não podemos confiar na
relação entre significante e significado, e a atribuição de sentido irônico só poderá acontecer,
como salientou a autora, de forma inclusiva, complexa, relacional e diferencial. Desta forma,
a ironia não é apenas uma mera substituição de sentido pelo seu oposto, mas ela se constitui
de ambos: o dito e o não dito, operando juntos para criar um sentido novo.
41
Assim, revela-se a importância do receptor, como elemento criador da ironia, a cujo
respeito lemos:
Interpretadores têm intenção tanto quanto os ironistas e frequentemente em oposição
a eles: atribuir ironia onde ela é intencional e onde ela não é ou recusar-se a atribuir
ironia onde ela poderia ser intencional é também o ato de um agente consciente.
Esse agente está engajado num processo interpretativo complexo que envolve não
apenas a criação de sentido, mas também a construção de um sentido da atitude
avaliadora exibida pelo texto em relação ao que é dito e ao que não é dito.
(HUTCHEON, 2000, p. 29)
Hutcheon diz que os dois participantes do jogo irônico são os interpretadores e os
ironistas. Ao interpretador ou destinatário cabe interpretar a ironia. Alguns elementos
presentes no texto, somados ao contexto, fazem com que o interpretante perceba que se trata
de uma ironia. Porém, não há garantias de que esse destinatário irá atribuir sentido irônico ao
enunciado, uma vez que a criação ou inferência de um significado, que na verdade não foi
literalmente dito, é algo difícil de ser controlado. É por isso que a autora afirma ser a ironia
um negócio arriscado.
Há sempre duas intencionalidades por parte do ironista: ironizar e avaliar, ou seja,
quem escreve espera que quem interprete faça um juízo de valor sobre o assunto, tome
partido, assuma um posicionamento. Entretanto, nem sempre o ironista obtém sucesso em
estabelecer a relação irônica, pois o interpretador poderá não entender nem a atitude irônica
nem a avaliadora.
Assim, segundo Linda Hutcheon, a ironia possui duas funções: uma semântica
contrastiva e outra pragmática avaliadora. A função semântica contrastiva estabelece a
diferença de sentidos ou a sobreposição de conteúdos semânticos entre o que é afirmado e
aquilo que é intencionado pelo produtor daquele discurso. Já a função pragmática avaliadora
tem por ofício julgar, estabelecer juízos de valor, fazer com que o interpretador irônico se
posicione diante do texto. Afirma a teórica:
A função pragmática da ironia é, pois, a de sinalizar uma avaliação, muito
frequentemente de natureza pejorativa. O seu escárnio pode, embora não
necessariamente, tomar a forma de expressões laudatórias, empregues para implicar
um julgamento negativo; ao nível semântico, isto implica a multiplicação de elogios
42
manifestos para esconder a censura escarnecedora latente. (HUTCHEON, 1985,
p.73)
Tentaremos traçar algumas diretrizes para a percepção da ironia e reconhecer o que
Linda Hutcheon chama de marcadores irônicos ou pistas que nos fazem identificar a ironia em
textos escritos. A autora identifica pelo menos cinco tipos de marcadores, alguns deles
indicados pelo próprio autor tais como: título, epígrafes, declarações, sinais gráficos, mudança
de registro, exagero ou abrandamento nas figuras da hipérbole, do eufemismo, etc. Outro
indicativo consistente, segundo a autora, é a violação de conhecimento partilhado levando a
erros propositais de fatos ou julgamentos. Contradições no interior da obra, choques de estilo
e conflitos de crenças entre autor e leitor, também são fortes marcadores irônicos, de acordo
com Hutcheon.
A ironia poderá ter um tom levemente provocativo ou ameaçador e grosseiro, a
intenção poderá ser uma brincadeira inconsequente, daí ter um caráter humorístico e lúdico,
mas também transformar-se em uma crítica sarcástica e feroz. A ironia pode zombar, atacar
corrosivamente seu alvo, porque ela quase sempre intenciona ridicularizar, irritar, humilhar,
excluir, denunciar, embaraçar, expor, etc. Apesar de transitar pelo campo da ambiguidade, ela
sempre tem um objetivo e uma direção: ―(...) a ironia sempre tem um ―alvo‖; ela às vezes tem
o que alguns chamam de ―vítima‖. (HUTCHEON, 2000, p. 33)
Para uma correta leitura irônica temos que identificar essa ―vítima‖, o alvo de crítica
da ironia, pois certamente ela é usada para denunciar, reforçar, alertar ou desmascarar uma
posição, seja ela conservadora ou radical. Considerando as obras analisadas, sabemos que, no
caso de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, o alvo é Salazar e seu governo ditatorial; já o alvo do
brasileiro, é a ditadura militar brasileira da época.
A ironia quase sempre é polêmica, pois é filha da ambiguidade, da controvérsia; é por
sua própria natureza conflitante. Ela sempre tem um alvo a atacar, como já mencionamos, e o
ataque é preciso e geralmente bem humorado. O humor vem para suavizar ou, quem sabe,
intensificar a ironia satírica, aquela que beira o escárnio e o desprezo, o ridículo e o absurdo
das situações: ―A tendenciosidade e a depreciação que frequentemente se encontram na base
do humor também têm sido empregadas nas teorias da ironia pelos satíricos ao longo dos
tempos no ocidente.‖ (HUTCHEON, 2000, p. 68)
43
Há nuances ou graus na ironia, que vão desde as ironias mais amenas até as mais
sarcásticas, fato que Linda Hutcheon sistematizou em uma tabela bastante icônica e útil, que
estabelece as gradações irônicas. Partindo do pressuposto de que num extremo temos as
ironias com carga afetiva mínima e no outro extremo as ironias com carga afetiva máxima,
temos, no polo das ironias de afetividade mínima, a primeira função classificada por
Hutcheon que é a reforçadora, usada apenas para destacar algo, dar maior ênfase ou precisão a
uma questão, às vezes meramente decorativa.
Em seguida temos a função complicadora, tipicamente ambígua, é a ironia enganadora
e por isso mesmo imprecisa, sendo seu elemento negativo justamente os equívocos que pode
provocar.
A função lúdica é classificada pela autora como uma ironia de caráter provocativo e
afetuoso, seu tom muitas vezes jocoso e humorístico beira a irresponsabilidade, podendo
beirar um discurso vazio e tolo.
Distanciadora é a função, segundo a autora, nada comprometida e indiferente, mas que
aponta sempre para uma nova perspectiva. Entretanto, o excessivo sentimento de
superioridade pode levá-la à prepotência.
Na ironia autoprotetora, o grau de afetividade aumenta, bem como o de distanciamento
irônico. É um tipo de ironia auto-depreciadora, insinuante, defensiva e arrogante, que
funciona como um mecanismo de defesa porque, mesmo assumindo uma atitude auto-
depreciativa, pode trazer disfarçado o desejo da auto-promoção.
Na função provisória da ironia, segundo Hutcheon, o ironista é mais evasivo, mais
hipócrita e ambíguo, caracteriza-se por desacreditar e não obedecer a nenhum dogma, por isso
mesmo acaba por desmistificá-lo. O ironista que objetiva manifestar-se por meio desta função
intenta questionar verdades absolutas e acaba por estabelecer posicionamentos opostos
relacionados ao mesmo objeto, ou seja, gera grande ambiguidade.
A próxima função classificada pela autora é a de oposição: mais agressiva que a
anterior, utiliza-se do insulto e da ofensa para atingir seus alvos. Pelo seu caráter, é também
chamada de transgressora e subversiva.
A ironia atacante é extremamente agressiva e destrutiva e sua representante maior é a
sátira. Se, por um lado, é considerada positiva por possuir uma motivação corretiva dos vícios
e loucuras da humanidade, tem, por outro lado, a face do ataque destrutivo e da humilhação
agressiva, da necessidade de registrar o desprezo e a zombaria.
44
Finalmente, a agregadora, no extremo oposto da escala, com carga afetiva máxima: é
uma ironia excludente, no sentido de formar grupos fechados que se ironizam uns aos outros.
Ao mesmo tempo que, esse tipo de ironia cria comunidades excludentes, gera também um
círculo de comunidades que se relacionam de modo amigável.
Todos os envolvidos no processo irônico, sejam eles ironistas, alvos e interpretadores,
possuem sua carga afetiva: o alvo, por ser a mira do ironista e receber todo seu potencial
irônico, pode ter sentimentos que vão da irritação leve, passando pela chateação mais
acentuada até a raiva incontida; os interpretadores sentem-se ou incomodados e com sensação
de exclusão de um determinado grupo, quando não conseguem captar a ironia, ou com um
sentimento de satisfação e prazer quando conseguem decifrar o sentido irônico de um texto; o
ironista passa do prazer à dor, por vezes à raiva, dependendo de sua posição em relação ao
alvo de sua ironia, devido a sua postura julgadora, geralmente, negativa, ou seja, suas críticas
são pejorativas, mordazes ou até satíricas.
Enfim, tanto ironia como paródia são conceitos e práticas essenciais para o
entendimento das obras analisadas neste trabalho; na realidade, são recursos que se
aproximam, ambos são marcados pela dissonância e pela contradição e exigem a participação
ativa do leitor para que o sentido seja revelado e completado. Vejamos o que diz Linda
Hutcheon:
A ironia é, por assim dizer, uma forma sofisticada de expressão. A paródia é
igualmente um gênero sofisticado nas exigências que faz aos seus praticantes e
intérpretes. O codificador e, depois, o descodificador, têm de efetuar uma
sobreposição estrutural de textos que incorpore o antigo no novo. A paródia é uma
síntese bitextual, ao contrário de formas mais monotextuais, como o pastiche, que
acentuam a semelhança e não a diferença. (HUTCHEON 1985, p.50)
Igualmente, paródia e ironia possuem dois níveis de leitura, marcados pela
sobreposição de textos e de contextos, com uma voz explícita, de superfície, e outra voz
implícita, subjacente. Ainda segundo Hutcheon:
Dada a estrutura formal da paródia, [...] a ironia pode ser vista em operação a um
nível microcósmico (semântico) da mesma maneira que a paródia a um nível
macrocósmico (textual), porque também a paródia é um assinalar da diferença, e
45
igualmente por meio de sobreposição (desta vez de contextos textuais, em vez de
semânticos). (HUTCHEON 1985, p.74)
Portanto, paródia e ironia são categorias da linguagem complexas e intrigantes que
intermedeiam o contato do ser humano consigo mesmo, com sua cultura, com os outros e até
com aquilo que ele não espera e não conhece. Para desvendar a ironia o receptor tem que
compreender a tensão entre o sentido literal e o sentido implícito, porque a ironia exige o
reconhecimento dos dois sentidos, ou seja, da contradição entre eles, como também ocorre no
caso da paródia, em que é necessário o reconhecimento do contraste opositivo entre os textos,
entre o hipertexto e o hipotexto.
1.2.4 SÁTIRA
... a forma satírica pelo aguçamento
da dissonância, pela concretização
artística do desafinado, do desigual,
do desarmônico, funda
artisticamente a consciência de um
real múltiplo, desordenado,
imprevisível. E constrói,
metaforicamente, o estatuto de uma
ambivalente supra-realidade.
Ângela Dias, 1981, p. 55
Não há consenso entre os teóricos sobre a definição do termo ‗sátira‘. Sabe-se, em
termos bastante genéricos, que há duas vertentes: a lucílica, de origem romana, cuja finalidade
maior era moralizadora, visando o riso como meio de denúncia dos vícios da humanidade, e
uma vertente menipéia ou luciânica, de origem grega, que foi introduzida na literatura latina
por Varrão e cujo propagador maior foi o grego Menipo, donde a origem do nome: mais
46
democrática, caracteriza-se por uma miscelânea de diferentes metros e versos e seu riso não
tem caráter exclusivamente moralista.
A sátira tem a intenção de atingir determinados objetivos e para tanto critica aquilo
que considera errado ou contrário à norma vigente. Seria como a punição ou a ridicularização
de um objeto através da troça e da crítica direta e agressiva. ―Ora, como já se viu, a realização
formal da dissonância constitui o termômetro da sátira, oscilante entre a burla mais explícita,
a farsa mais grosseira e a ironia mais refinada‖ (DIAS, 1981, p. 54)
O gênero satírico pode apresentar-se em verso ou em prosa, possuir um conteúdo tanto
objetivo quanto subjetivo ou os dois, e sua composição pode ser expositiva, mista ou
representativa. O traço distintivo da sátira, porém, é seu objetivo de ridicularizar ou zombar
dos vícios e das pessoas ou das situações vividas por elas, sendo os políticos o seu alvo
preferido.
Temos então, uma sátira moralizante, que deseja aprimorar o mundo e outra que, pelo
contrário, intenciona provocar o questionamento e promover o riso a partir de uma gozação
irônica, de uma raiva incontida, desmascarando comportamentos hipócritas. Frequentemente
observa-se neste tipo de sátira o subterfúgio da máscara, do fingimento, princípio da paródia,
da caricatura, da brincadeira, da gozação ou macaquice, também ingredientes do grotesco, que
na sua melancolia e tom sombrio torna-se a expressão maior do humor destrutivo.
Outra aliada da narrativa satírica é a ironia e o tom jocoso, que joga com a
ambiguidade dos sentidos e mobiliza o riso, ainda que muitas vezes amargo. Alguns traços
frequentes na sátira são: avidez, agressividade, egoísmo, humor, zombaria, malícia, inveja,
vingança, misoneísmo.
A sátira é um texto feito especificamente para fazer a crítica de uma situação, como é
o caso, por exemplo, de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, que reproduz a época da ditadura
salazarista com todas as nuances, as personagens, os aspectos históricos vivenciados, de
forma paródica, mas também, satírica, humorística e crítica. No conto, a crítica é bastante
agressiva porque Salazar, o chefe do governo português, por exemplo, é representado por um
dinossauro decrépito, ladrão, vaidoso e louco, que comete grandes arbitrariedades só para
manter-se no poder. Percebemos claramente o alvo, Salazar. Sendo assim, ―Dinossauro
Excelentíssimo‖ é uma sátira da época salazarista porque é um texto feito para criticar e
ridicularizar uma situação real.
47
Como vimos, o autor satírico vale-se de uma realidade para realizar sua crítica e
mediante seu juízo de valor, revelado através do texto, percebemos seu ideal de conduta para
aquela determinada situação. Aqui se estabelecem dois elementos sempre presentes na sátira:
sua ligação com a realidade e seu caráter de agressão.
Para mostrar esse real que incomoda tanto o autor satírico, é necessário reduzir,
deformar, atenuar, exagerar, usar de diversos recursos linguísticos e estilísticos na construção
da sátira. Em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ ocorre a deformação do real por meio da fábula,
um expediente que o autor utiliza para mascarar a real situação, e assim, passar pela censura
da época. Ao colocar animais como personagens, Cardoso Pires deforma o real, desfigura-o,
para então, recontextualizá-lo; assim, constrói sua sátira na forma de uma grande alegoria
sobre a vida política da ditadura salazarista.
O texto satírico, além de deformar o real, para revelar uma realidade ameaçadora ou
que o satirista deseja criticar, precisa da participação do leitor que irá construir o sentido do
texto a partir de uma leitura contextualizada; ou seja, é o discurso do satirista que faz com o
leitor construa os significados, mas não somente o discurso, adicionemos a esse elemento o
leitor, como indivíduo provido de uma bagagem cultural e também o contexto no qual ele está
inserido. Segundo o artigo de Paulo Astor Soethe, publicado na Revista Fragmentos, v. 7,
cuja referência completa encontra-se no item Referências deste trabalho:
O escritor seleciona arbitrariamente uma parte do real, ―mutila-o‖ em sua totalidade
e apresenta-o ao leitor. O leitor, então, é levado a tomar parte no processo de
significação, pois o recurso de linguagem utilizado pressupõe a retransposição da
designação imediata a uma realidade suposta mais ampla. (SOETHE, 1986,
p.20)
A deturpação do real é conseguida por meio do uso de recursos estilísticos tais como a
sinédoque, a metáfora, a comparação e a própria alegoria já mencionada anteriormente.
Uma vez que a sátira precisa de que o leitor compreenda o posicionamento do satirista
em relação ao seu alvo, para que haja uma compreensão efetiva de seu conteúdo e para atingir
seu objetivo, o satirista tem que adotar, também, um distanciamento daquilo que está sendo
narrado. O distanciamento permite uma análise mais profunda, criteriosa e livre, ou menos
sujeita a juízos de valor. De acordo com Soethe:
48
O satirista afasta-se de seu objeto de ataque, que pode se constituir em uma postura
ideológica ou um código mais amplo, rechaçando-o através do comportamento
específico que ―analisa‖. Tal combinação constitui um recurso formal bastante
comum naquelas sátiras em que a voz do satirista expõe-se mais. (SOETHE,
1986, p.21)
Finalmente, note-se que ao escrever a fábula satírica ―Dinossauro Excelentíssimo‖,
Cardoso Pires reafirma a tradição satírica da Literatura Portuguesa, acentuada desde a poesia
medieval, com suas cantigas de escárnio e maldizer, muito forte nas peças de Gil Vicente e na
poesia do neoclássico Bocage, que muito influenciará o brasileiro Gregório de Matos, o ―Boca
do Inferno‖.
49
CAPÍTULO 2
―DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO‖
<<Cada homem transporta dentro
de si o seu bestiário privado>>
─ disse o juiz.
Cardoso Pires, 1988, p. 8
O conto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ insere-se numa linhagem satírica própria da
época, marcada por regimes autoritários em diversos países europeus, em particular na
Península Ibérica, com as longas ditaduras de Franco e Salazar. ―Dinossauro Excelentíssimo‖
foi escrito por Cardoso Pires quando morava em Londres, entre 1969 e 1971, ano em que
regressa a Portugal. O conto foi publicado pela primeira vez em 1972, e relançado na
coletânea A República dos Corvos (1989). Apresentamos, a seguir, algumas curiosidades
sobre a publicação do livro ―Dinossauro Excelentíssimo‖ porque são inusitadas e também
porque possibilitaram ou facilitaram sua publicação.
─ O Dinossauro foi escrito em Londres no Natal de 1970. Entreguei-o à Arcádia,
que era uma editora falida, porque naquele momento publicar um retrato grotesco de
Salazar era coisa que nenhuma casa ousaria. João Abel Manta aceitou fazer as
ilustrações sem hesitação, a Arcádia planeou com alguns livreiros certas precauções
na distribuição do livro, mas a grande dificuldade foi descobrir uma tipografia que
entrasse na aventura. Descobriu-se, vá lá. Quando o Dinossauro saiu; regressei de
Londres para estar presente ao lado do editor e do ilustrador no que viesse a
acontecer mas, para assombro de todos nós, em vez da excomunhão que era de
esperar, o livro ultrapassou a Censura e teve um acolhimento indescritível. Digo
«ultrapassou» porque aconteceu aquele escândalo monumental na Assembleia
Nacional, quando o professor Miller Guerra teve a coragem de afirmar que não
havia liberdade em Portugal. Foi uma sessão histórica, um berro de heresia! O
deputado ultrafascista Casal Ribeiro correu para Miller Guerra a espumar de raiva e
para o desmentir citou como prova o infame Dinossauro Excelentíssimo que acabava
de ser posto à venda em toda a parte. E, pronto, a partir daí a Censura ficou de mãos
atadas. Já não podia apreender o livro que o deputado salazarista tinha citado
estupidamente como demonstração da liberdade do regime, e, menos ainda,
promover a prisão do autor. Simplesmente, e isso foi realmente um carnaval
50
repugnante, uma vez que a censura oficial se viu impedida de actuar, apareceram as
censuras voluntárias de alguns particulares.
- Particulares?
- Um general Câmara Pina, que era combatente medalhado nas heróicas tertúlias do
Chiado, foi um deles. Andou pelas livrarias da Baixa mais os velhinhos do chá das
cinco, em operação de intimidação, para que o livro fosse retirado das montras. Um
industrial (de Santarém, salvo erro) retirou todas as suas encomendas da tipografia
que o estava a reimprimir e um administrador da Bertrand, Luiz Forjaz Trigueiros,
impediu que o livro fosse reeditado naquela empresa, apesar de já estar assinado o
respectivo contrato. Trigueiros era frequentador da Literatura, homem de lobbies
financeiros e suponho que sócio da Academia. (Cardoso Pires por Cardoso
Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote,
1991, 124 p., pp. 36 – 37)
Como podemos constatar pelas próprias palavras do autor, o ato de publicação do livro
já foi um episódio irônico, que começou desmascarando o governo autoritário e anti-
democrático, de modo que ―Dinossauro Excelentíssimo‖ revelou os disfarces do discurso
político mesmo antes de ser lido.
A longa ditadura de Salazar originou-se de conjunturas da situação portuguesa do
início do século xx, que podem ser assim delineadas:
O ano é 1926 e o poder ficou inteiramente nas mãos de militares em Portugal. Toda a
divergência política era uma afronta ao governo, bem como todo contato com governantes
anteriores ao período ditatorial era considerado suspeito. A censura prévia foi estabelecida à
imprensa e era exercida por comissões militares.
O Professor de Economia Política Antonio de Oliveira Salazar conseguiu equilibrar as
finanças portuguesas e começou a tornar-se importante e indispensável. Em 1929 foi nomeado
presidente do Conselho de Ministros e escolheu um ministério com maioria absoluta de
professores da Universidade. Durante os 40 anos da ditadura portuguesa, a Universidade de
Coimbra forneceu-lhe políticos. Salazar ficou com a pasta das Finanças e consequentemente
com a incumbência de supervisionar todas as despesas dos Ministérios do governo. Obteve
sucesso em sua empreitada para sanear as despesas governamentais e em 1932 tornou-se
chefe de governo.
A transição de Portugal da situação revolucionária da ditadura para uma constituição
institucionalizada foi a primeira medida de Salazar que através de uma manobra inteligente
conseguiu terminar com a ditadura e instaurar a nova Constituição, nasce o Estado Novo.
51
A despolitização reflectui-se na votação: 5505 votos não, 580.379 votos sim,
427.686 abstenções. O total dos eleitores recenseados foi de 1.014.150 (números do
Diário de Notícias de 23-3-33). Prevendo o desinteresse geral, o Governo tinha
decretado que as abstenções se considerassem aprovações tácitas, embora se
discriminassem os votos expressos dos votos tácitos. Com a entrada em vigor da
nova Constituição terminou a ditadura e começou o Estado Novo (1933-1974)
(SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal, 1991, p.
357)
Outras medidas, porém, foram tomadas para a instauração do Estado Novo, tais como:
a criação de um partido oficial, a União Nacional, que logicamente expressava as aspirações e
necessidades do povo português; o corporativismo imperou nas relações sociais e econômicas,
dificultando a organização de Sindicatos; Igreja e Estado fizeram uma aliança marcada pelo
conservadorismo tradicional (Deus, Pátria, Autoridade, Hierarquia, Moralidade, Família, Paz
Social e Austeridade eram as palavras de ordem); a censura sempre muito eficaz, barrando
qualquer manifestação contrária ao regime; uma polícia política que perseguia todo e qualquer
opositor do regime de Salazar (PVDE, PIDE, DGS); permanência de uma política
colonialista, mas que terminaria com a Guerra Colonial em 1961; uma política nacionalista
que jamais procurou contatos com o exterior, além das suas colônias, tinha por slogan a frase
―estamos orgulhosamente sós‖ tencionava, com isso, adquirir o apoio da massa popular
portuguesa; criação da Legião Portuguesa, milícia incumbida da defesa do regime e do
combate ao comunismo e da Mocidade Portuguesa, entidade destinada a imprimir nos jovens
os valores do regime vigente.
A oposição ao regime foi protagonizada principalmente pelo Partido Comunista
Português (PCP), pelo movimento estudantil e por outras figuras marcantes do cenário
político, social e cultural português. Segmentos ligados à cultura ofereciam oposição ao
regime salazarista, principalmente quanto à falta de liberdade de expressão. Salazar adotou
medidas severas de repressão contra os que ousavam discordar de sua maneira de conduzir o
país. A censura prévia controlava a imprensa, o teatro, o rádio, o cinema e, posteriormente, a
TV (1957). A ação da censura evitava que a população tivesse conhecimento do que
realmente acontecia, uma vez que todas as mídias e mecanismos de transmissão de
informação davam a ideia de paz, tranquilidade e ordem.
52
Em 1968 Salazar é afastado do governo por motivo de saúde, uma hemorragia cerebral
não se sabe se provocada pela queda que teve de uma cadeira. Ele é então substituído por
Marcelo Caetano. Vem a falecer em Lisboa em 27 de julho de 1970.
Como pudemos observar, o Estado Novo garantia os principais direitos dos cidadãos,
desde que não ferissem os interesses do Estado. Apesar do Presidente do Conselho ser
subordinado ao da República, isto nunca ocorreu em Portugal, pois, a autoridade incontestável
sempre foi de Salazar, sendo seu poder superior ao do Presidente da República.
Com o intuito de subverter e discutir esse período histórico, o autor busca, por meio do
discurso literário e contando com a percepção do leitor, revelar um outro discurso, discurso
este que possa questionar a versão oficial que circula na sociedade, questionar também uma
autoridade imposta pela força que usa a censura da palavra alheia como instrumento de
opressão e repressão.
Num evidente recurso para burlar o estado de censura vigente, ao mesmo tempo em
que aciona a capacidade de ridicularização crítica da sátira, ―Dinossauro Excelentíssimo‖ faz
uma crítica irônica à repressão imposta durante a ditadura militar ocorrida em Portugal; deste
modo, o narrador relata uma verdade mascarada na roupagem duma fábula, para questionar e
denunciar os mecanismos com os quais a esfera política exerce seu poder: a realidade do
poder ditatorial de Salazar é satiricamente reproduzida no governo do Imperador-Dinossauro
no Reino dos Mexilhões, em que as personagens reais do momento histórico português são
representadas por animais: ―De pai para filho e de filho para neto nunca nenhum mexilhão se
esquecia de apontar o Dinossauro nos seus vários pedestais e avisar:
<<ANDA LÁ DENTRO, É ESTE>> (DE, p. 196)
A história começa num certo Reino onde vivia um Imperador ‗astuto, diabo e ladrão‘,
que, numa evidente referência à biografia do ditador português, faz uma retrospectiva desde
sua origem humilde em uma pequena aldeia, e delineando sua trajetória ascendente para o
poder supremo. Na verdade, Cardoso Pires cria uma personagem ditadora que, por meio do
saber e da autoridade, manipula e tortura palavras com a intenção de censurar os discursos
que contrariam suas ―ideias‖, pretendendo, através desse processo, criar nova mentalidade nas
pessoas.
Num sentido mais amplo, o nome genérico de Imperador talvez se deva ao fato de ele
representar, com esse título, todos aqueles que exercem de modo autoritário e repressor o
poder que têm nas mãos. De acordo com a estrutura da fábula, a personagem coisifica-se na
53
figura de um Dinossauro, animal pré-histórico, imenso, desajeitado, que passa por cima de
tudo e de todos e, sobretudo, vive durante muito tempo, de certo modo ultrapassava sua
época. Há, assim, nesse uso do animal dinossauro, uma crítica ridicularizadora da longevidade
de Salazar, que provoca anacronicamente um imenso atraso no desenvolvimento da sociedade
portuguesa, levando o país à ruína econômica e cultural.
Clara Rocha, argumentando sobre os recursos expressivos da fábula, revela que:
No regime da sátira, outro caso paradigmático é a novela Dinossauro Excelentíssimo
[...] uma charge ao velho tirano eternizando-se na sua torre de marfim. O recurso a
um bestiário carregado de intencionalidade alusiva [...] é nestes textos uma forma de
minar a imagem mítica do ditador, reencenando-a ironicamente e contrapondo ao
arquétipo do ―soberano terrível‖ a figura caricatural de um totem decrépito.
(ROCHA, Clara 2003, p. 30)
Pela descrição do reino desse Imperador percebemos que é um lugar muito semelhante
a Portugal, pela pobreza e pela miséria que o assolavam; ali o povo era representado pelos
mexilhões, animais insignificantes, que se contrapõem ao Dinossauro, configurando assim, a
clássica dicotomia das ditaduras: o frágil oprimido de um lado e o poderoso opressor de outro.
A escolha de ―mexilhões‖, certamente reporta-se à situação geográfica de Portugal, estreita
faixa de terra litorânea, ―agarrada‖ à beira da Península Ibérica, como um gigantesco
mexilhão.
O ―Lema Imperial: Saber e Autoridade, Saber e Autoridade, Dinossauro‖ (DE, p. 112)
que é repetido como um mantra, tem a intenção de reforçar essa dicotomia: povo / governo,
em que ao governo é classificado como sábio e poderoso a quem o povo deve obedecer
cegamente, porque é uma autoridade inquestionável por natureza.
Neste reino havia ainda os Dê-erres, filhos de camponeses que foram ensinados e
treinados nas cidades dos doutores, para tolherem a liberdade dos mexilhões. Uma clara
alusão a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), órgão governamental,
diretamente ligado ao mandatário supremo, que controlava toda a censura e punia as pessoas
que eram consideradas subversivas.
Há muitas outras semelhanças desse reino com o Portugal da época, tais como o
grande poder da Igreja Católica, a pobreza extrema da maior parte da população, e o pior, um
sentimento de honra incutido nas pessoas por esse fato, ou seja, ser miserável e sobreviver a
54
despeito de todas as privações e dificuldades, era uma virtude cultivada e estimulada pelas
autoridades. Para conseguir tal abnegação, o cerceamento da expressão do povo era algo vital,
a palavra precisava ser controlada, as mais perigosas suprimidas das bocas das pessoas. Então,
além da ação dos Dê-erres, temos também ―A Câmara de Torturar Palavras‖, instrumento que
literalmente acaba com as palavras consideradas subversivas pelo governo.
Cada vez mais imerso em sua própria realidade e recluso em sua torre de marfim, o
Imperador acaba por se tornar um mito, o do Imperador Dinossauro, mergulhando numa
obsessiva ânsia de proibições e de controle em seu governo. Dessa forma, deixa de governar
efetivamente, afastando-se do povo e da própria realidade, trazendo uma geral insatisfação
para a parte fraca desse dueto, os mexilhões/povo, que acabam cada vez mais massacrados
pela parte forte, ou polo opressor.
A fábula, reproduzindo os métodos do imperador, mobiliza narrativas simples, de
caráter popular, como provérbios, contos exemplares, com a intenção de retomar o saber
popular e utilizar, com propósitos de doutrinação ideológica, os ensinamentos que povoam
esses ditos populares, receitas e fórmulas cristalizadas, estereótipos, todos ligados às
experiências universais.
Portanto, José Cardoso Pires, por meio de sua fábula, inventa uma maneira inusitada e
criativa de reflexão, fazendo vir à tona questões cruciais para a construção do sentido de sua
narrativa, sejam elas: como o poder se constrói em cada esfera social, como o próprio poder
escolhe seus representantes, como esse poder se propaga e se impõe.
2.2 RECURSOS DO DISCURSO – IRONIA, PARÓDIA, SÁTIRA
Justamente a dimensão alegórica
da obra literária, enquanto
sugestão da voz do outro, vai
acentuar-se e prevalecer na
estrutura da paródia, entendida
etimologicamente com “canto
paralelo”.
Ângela Dias, 1981, p. 51
55
O narrador de ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é heterodiegético, narrando uma história à
filha chamada Ritinha, todas essas informações são encontradas na epígrafe que abre o conto.
Portanto, há uma breve introdução ao texto do conto, feita por esse narrador que não participa
da história narrada e estabelece uma situação em que um contador de histórias conta a fábula
a sua filha Ritinha. A personagem Ritinha será retomada no final do conto, num adendo que
diz: ―... Ritinha, fecha o livro, é mais que tempo.‖ (DE, p. 196).
Poderíamos dizer que Cardoso Pires insinua-se na diegese como esse contador de
histórias, já que Ritinha é realmente o nome de sua filha; mais um dado a explicitar a projeção
da situação real de Portugal na fábula contada.
Por contar uma história que aconteceu há muito tempo num Reino distante, como
acontece nos Contos de Fadas, o narrador consegue o distanciamento necessário para a análise
crítica da situação, obtendo sucesso também em mostrar a história ocorrida de forma irônica e
muitas vezes satírica.
A presença desse narrador ‗contador de estória‘ caracteriza um narrador que se faz
presente na narrativa, muitas vezes emitindo seus juízos de valor e conferindo ao relato o tom
suave da oralidade; assim, interfere o tempo todo na narrativa através das perguntas diretas
que faz. Como a narrativa é em 3ª pessoa, o foco narrativo desses questionamentos às vezes
está com o narrador, outras vezes se desloca para as personagens, dando-lhes voz.
Esse diálogo narrativo faz-se também por meio de falas colocadas entre parênteses,
estabelecendo uma conversa com o leitor, aproximando-o do texto e incitando-o à reflexão:
Mas quem tem razão? Quem garante? (DE, p. 111)
Teria tido infância? (DE, p. 112)
Ou seria muito simplesmente a saudade do jumento que tinha trocado pelo curso de
imperador? (DE, p. 118)
... e não sei se me faço compreender. (DE, p. 132)
(por causa das Sagradas Escrituras) (DE, p. 115)
Usando esse recurso, o narrador ‗contador de estória‘ de que fala o texto, consegue o
efeito paradoxal necessário à ironia e à paródia. Por um lado, ele, narrador, dono da voz
56
narrativa, ao conversar com o leitor, coloca em dúvida certos fatos da história narrada, numa
atitude que deixa o interpretante indeciso de seu domínio sobre a história e revelando também
que se trata de uma ficção, uma vez que se coloca no texto. Por outro lado, ao fazer tais
indagações, acaba também por dar maior veracidade aos fatos narrados, porque os
questionamentos e devaneios do narrador enriquecem o texto, tornando-o mais verossímil.
2.2.1 MEXILHÕES NO REINO DO DINOSSAURO
Da humana Condição
Custa o rico a entrar no Céu
(Afirma o povo e não erra).
Porém muito mais difícil
É um pobre ficar na terra...
Mário Quintana, 2006, p. 41
Como ―Dinossauro Excelentíssimo‖ constitui uma fábula, suas personagens são
animais, cuja escolha não é aleatória: o Dinossauro para representar o Ditador e o mexilhão
para representar o povo.
Dinossauro, uma espécie de réptil terrestre que viveu na era mesozóica e que se
extinguiu no final da era cretácea, há cerca de 65 milhões de anos, segundo o Dicionário
Eletrônico Aurélio. Animal de dimensões gigantescas se compararmos ao tamanho de um
mexilhão, classificado como pré-histórico, viveu na terra há milhões de anos, hoje está
extinto. O mexilhão, ao contrário, é um animal pequeno, nem tão antigo e habitante do mar,
ambos pertencem a lugares diferentes.
O dinossauro simboliza o imutável, o perpétuo e o já apagado da face da Terra, já o
mexilhão, se fizermos uma rápida aproximação sonora com o verbo mexer, teremos
dinamismo e mudança, e são exatamente essas características, aliadas à flexibilidade e ao
poder de adaptação, que os fazem sobreviver no Reino do Dinossauro. Os mexilhões são
também chamados de ―Pedintes Voadores‖, lembrando a miséria na qual se encontram, mas
57
também, a esperteza e a agilidade que não lhes podem faltar para sobreviver neste Reino
Cretáceo.
Dinossauro e mexilhão estão separados definitivamente, pertencem a mundos
diferentes, o primeiro é um predador, bicho de grande porte, literalmente devora os bichos
menores, sua cadeia alimentar é vasta, em virtude de seu porte avantajado; já o mexilhão,
muitas vezes no livro colocado no plural como sinônimo de povo, coletividade, está nos
primeiros degraus da cadeia alimentar, bicho pequeno que é, um molusco de duas conchas,
talvez desenvolvidas para se proteger dos predadores, serve de alimento, com ele se prepara
um delicioso prato, parte de muitos cardápios de restaurantes. Na fábula analisada, o
mexilhão serve de comida ao Dinossauro, o Dinossauro manda no mexilhão e engana-o, fala
numa língua empolada que o pobre mexilhão desconhece.
Mexilhão é a representação alegórica do povo oprimido, enganado e sofrido e o
Dinossauro, do Governante Ditador, autoritário que oprime e governa com mãos de ferro.
Tanto que no livro, mexilhão é chamado de: ―na luta contra a maioria dos mexilhões vulgaris
Sp, o dê-erre fazia barreira ao lado dos restantes irmãos da espécie, espadeirando com o
canudo do diploma e entoando decretos até à confusão‖(DE, p. 155).
Desta forma, na fábula, o mexilhão é o legítimo representante do povo, vulgar até no
nome, opondo-se a ele temos o genuíno representante do poder autoritário na figura do
Dinossauro, figura singular e com letra maiúscula indicativa de seu poder.
O Imperador de que o texto fala nem sempre foi Dinossauro. Antes de se
metamorfosear em bicho, o Dinossauro era um ser humano normal, sua metamorfose, porém,
foi rápida e assustadora. Para ilustrar como o Dinossauro é apresentado como um animal
grotesco, observamos sua deformação desprezível e ridícula, própria da narrativa satírica: ―...
o Dinossauro, atrás da secretária dourada, sua varanda, suas patas leoninas, parecia um
sonâmbulo pousado num sonho desértico. Não dormia há séculos, dizia-se dele; outros
garantiam: repousa vivo à margem da morte, que é a linha donde se vê mais claro." (DE, p.
172)
Mais um exemplo:
Dobrado anos a fio à secretária, o Mestre tinha criado corcova que lhe ondulavam o
dorso de cima a baixo e ganhara um andar curvado e vigilante; e como escrevia com
ódio às palavras, murmurando-as e roendo-as ao correr do aparo, os lábios foram-lhe
58
desaparecendo. A boca não passava de uma cicatriz, salvo seja, e os dentes
estalavam em escamas. Um bicho. (DE, p. 176)
Ocorre uma deformação do real por meio da animalização do ser humano; a sátira,
assim como a ironia, possui um alvo, neste caso é ridicularizar e escarnecer de forma
extremamente agressiva o Imperador (Salazar), tornando-o um monstro grotesco.
Os traços e as atitudes animalizadas são muito acentuados no Dinossauro, fala-se ainda
que era muito solitário e vivia isolado, fato este que coincide com a história verídica de
Salazar, sempre recluso e muito bem protegido em sua ‗torre de marfim‘. O Dinossauro tinha
mania de grandeza e muitas vezes julgava desperdiçar seu latim com os mexilhões,
resolvendo, por esse motivo, oferecer seus discursos ao universo. Como podemos constatar:
―Ofereceu desinteressadamente o melhor da sua sabedoria às nações e aos mundos em redor‖
(DE, p. 17). Que ofereceu não há dúvida, o adjunto adverbial de modo ‗desinteressadamente‘
é que não combina com a personalidade do Imperador, certamente é irônico, jamais faria algo
sem interesse, por filantropia apenas. Aguardava uma resposta do universo que, ingrato, nem
se dava conta desse favor; o Imperador Dinossauro, porém, sabia esperar.
Os mexilhões, por sua vez, são retratados sempre como criaturas dos mares, não
deixando de ressaltar sua natureza insignificante, de indivíduo que sobrevive não se sabe
como, uma vez que alimento e condições de vidas não são fatos inerentes de sua espécie. O
mexilhão, no texto, é retratado como o bicho, ou criatura extremamente sofrida, que sobrevive
à custa de milagre, todas as forças naturais e não naturais estão contra ele. Talvez seja por isso
que o mexilhão tenha virado as costas à terra, finca o pé na rocha, o último lugar, não há para
onde fugir, a sua frente, somente o oceano:
Criatura (porque o é), criatura à margem e mirrada, coisa pequena; bicho que se
alimenta de água e sal, do sumo da pedra ou de milagres ─ o mexilhão, vida negra,
tem a ciência certa dos anônimos: pensa e não fala, sabe por ele. Se virou costas à
terra foi por culpa dos doutores ditos dê-erres e da conversa em bacharel com que o
enrolavam; unicamente por cansaço, desinteresse. (DE, p. 130)
O mexilhão representa o povo português nos tempos difíceis da ditadura salazarista,
povo sem perspectivas econômicas ou sociais, marcado pela opressão e falta de liberdade de
59
expressão. Cardoso Pires faz a relação explícita entre o mexilhão e o povo português,
percebemos claramente este vínculo pelo trecho: ―Ao cabo de largos anos de experiência estes
camponeses pendurados nas falésias, mexilhões no legítimo sentido da palavra, tinham criado
raízes de limo,‖ (DE, p. 130)
A respeito da escassez de alimento e das condições precárias de vida, diz o texto: ―À
falta de comida mastigavam os beiços e os pensamentos que lhes trazia a brisa marítima e
esse morder em seco e as rugas de tanto fitarem o além faziam-nos velhos antes do tempo.
Nasciam já velhos, parece impossível.‖ (DE, pp. 130-131)
Nestas linhas, evidencia-se também o grotesco da situação vivida nos respectivos
Reinos, miséria absoluta no Reino do Mexilhão e Mentira e abuso de poder no Reino do
Dinossauro, salientando-se, desta forma, os contrastes.
A questão de voltar-se para o mar é algo recorrente na literatura e também na cultura
portuguesa. Todas as conquistas territoriais portuguesas foram realizadas por caminhos
marítimos, uma vez que o território português é pequeno e parece estar como um adendo entre
o mar e a Península Ibérica. Foi por meio do mar que os portugueses chegaram a dominar
outros continentes, chegaram à África, ao Brasil. Os mexilhões; de igual modo, esperavam
que a libertação viesse do oceano, numa analogia também à doutrina Sebastianista, recriada
por Fernando Pessoa no livro Mensagem, mais um intertexto, como podemos observar nesta
passagem do conto: ―Estavam, (mexilhões) pois, assim, a mirar as nuvens, a estrela da Índia
ou a onda libertadora, e eis senão quando‖ (DE, p. 131)
Outro exemplo:
... apanhando-os (mexilhões) de costas para o Reino em posição de a ver o mar,
afirmavam que a conversa era outra e que estavam simplesmente de sentinela às
brumas, na esperança de verem regressar o Dinossauro que Deus tinha numa onda
de prata. Contavam o conto e acrescentavam o ponto sem mais aquelas, escrevendo
que o Imperador apareceria na desejada onda da lenda empunhando o último
discurso e que o mar o deixaria depositado nos cumes dum rochedo. (DE, p. 196)
O segundo comentário é feito pelos ‗cornetas‘ do Reino, espécie de espiões, e embora
haja referência ao Sebastianismo, ao salvador da Pátria, ao Desejado, é uma passagem
extremamente irônica, porque a última coisa que os mexilhões queriam era outro Imperador e
muito menos empunhando mais discursos vazios. Os mexilhões miravam o mar por outro
60
motivo, talvez por desolação, por falta do que ver na terra. Depreende-se isso ao desvelar-se a
ironia presente na narrativa, ou seja, percebemos o sentido oculto do texto, contrário ao
sentido literal, e por isso mesmo irônico.
O desânimo e o conformismo com a situação opressiva vivida reflete-se no ditado
popular perpetuado no Reino dos Mexilhões: ―Quando o mar bate na rocha / quem se lixa é o
mexilhão‖ (DE, p. 129), ou seja, aconteça o que acontecer, a história tome o rumo que tomar,
quem sempre pagará a conta, será o mexilhão.
Este ditado também irônico, porque, somente entendido pelos mexilhões, seus
criadores, é completamente incompreensível ao Dinossauro e aos Dê-erres, porque eles
somente entendem o texto em sua superficialidade, não atingindo seu outro nível de
interpretação, o irônico. Os mexilhões aproveitavam essa incapacidade do Dinossauro e dos
Dê-erres para se comunicarem, criavam assim, o que Linda Hutcheon chama de ‗ironia
agregadora‘, aquela que cria comunidades excludentes.
2.2.2 INTERTEXTUALIDADE COM CONTOS DE FADAS
“O que queres que te leia, querido?
„As fadas‟?”
Perguntei, incrédulo:
“As fadas estão aí dentro?”
Sartre, apud Nasponi, 1996, p. 23
Podemos perceber a alusão aos Contos de Fadas pelo trecho do livro: ―... certo Reino
onde nos velhos outroras vivia um imperador astuto, diabo e ladrão.‖ (DE, p. 109).
Percebemos também a ironia do narrador porque de fadas e de fábulas, esta história não tem
nada, muito menos um final feliz, pelo contrário, é um triste relato de opressão e abuso de
poder.
Percebemos nesta parte tanto a ironia situacional quanto a instrumental, pois temos
além das referências intertextuais aos contos de fadas, a descrição de uma cena que ilustra
essa modalidade narrativa: coloca-se um ―narrador de estórias‖ e um ―receptor‖, representado
61
por uma criança. E a grande ironia é justamente o texto dirigir-se aos adultos e não às
crianças; e mais, a adultos com capacidade intelectual e crítica para ler e entender o texto,
fazendo as necessárias relações interpretativas.
Operação semelhante é realizada, no texto, pela paródia; a intertextualidade com os
contos de fadas acaba dando origem a pequenas paródias no interior do conto, uma vez que
essas micro-paródias dos contos de fadas são a voz da dissonância porque invertem,
questionam e destroem o sentido do texto parodiado, para então reconstruí-lo com diferença
crítica.
No conto há referências a Contos de Fadas conhecidos como ‗Pinóquio‘ e ‗Branca de
Neve‘; sempre, porém, de forma irônica e por vezes satírica, caracterizando também o que
Genette chama de intertextualidade.
Quando o narrador descreve a transformação de Salazar no Imperador Dinossauro,
verdadeira animalização do ser humano, descreve a corcova, a boca, que praticamente
desaparecera, e o nariz, que não parava de crescer, a visão que se forma em nossa mente é a
de um monstro medonho, a esse respeito lemos:
A boca, também, era o menos, já que com a idade foi ficando escondida atrás dum
nariz em perpétuo crescimento. Porquê? ... o nariz foi pendendo, pendendo, até dar
naquilo. Já não era nariz, era monco e depois nem monco era: uma crista a meia cara
ou coisa assim. (DE, p. 176)
Arriscamos a responder a pergunta do narrador embasados no conteúdo da história do
boneco de madeira a quem, quando dizia uma mentira, crescia-lhe o nariz. O Imperador
Dinossauro, representante máximo da mentira, astuto na arte de enganar o povo, assim como a
personagem Pinóquio, possuía um nariz que crescia indefinidamente, deformando-lhe a
aparência humana, e denunciando sua natureza enganosa.
O toque satírico, de cunho grotesco, transformando o Imperador num monstro
repugnante e assustador e desumanizando-o, também fica por conta desse nariz crescer tanto,
a ponto de se descaracterizar como tal e perder as referências humanas, como podemos
observar pela passagem:
62
Entretanto o Mestre, pata arrastada, monco pendido, avançava assustadoramente
pelos desastres dos anos com os olhos postos na estátua da sua primeira encarnação.
Nunca alguém lhe diria que há muito tinha perdido o traço humano e que já
projectava para longe uma sombra de monstro de solidão, dorso ondulante, a errar
por paisagens crepusculares de cinza e metal. (DE, p. 177)
Observamos o caráter agressivo da sátira que ridiculariza e ataca ferozmente o alvo,
utilizando-se do recurso da caricatura ao selecionar um detalhe do ser, no caso o nariz, e
deformá-lo de maneira caricata.
O Conto de Fadas de Branca de Neve é referenciado no episódio dos espelhos
ensinados do Imperador, alusão aos espelhos da megera do Conto de Fadas e do conhecido
diálogo entre eles. Para que o Imperador não tomasse conhecimento de sua aparência de
Dinossauro, seus conselheiros encomendaram a um mágico os tais espelhos da beleza, que só
refletiam coisas belas. O Imperador Dinossauro, vaidoso por natureza, dava bom dia a si
mesmo, olhando-se nos espelhos e lhes perguntava também:―<<ESPELHO, FIEL ESPELHO,
ONDE É QUE ALGUÉM DESAFIOU O TEMPO COMO EU?>> <<NINGUÉM, SENHOR,
NINGUÉM. PALAVRA E VIDA REGRADA FAZEM O SÁBIO IMORTAL>>, respondiam
os espelhos ensinados.‖ (DE, p. 179)
Ao contrário do espelho da Branca de Neve que falava a verdade, os espelhos da nossa
história, inversão paródica daqueles, eram programados para mentir, para distorcer a verdade,
exatamente como seu dono, o Imperador Dinossauro. A ironia aqui se manifesta na
sobreposição de contextos semânticos. O Dinossauro é ludibriado pelos espelhos que ocultam
a verdade e simulam um mundo ideal, porém, irreal, o que é muito irônico, porque o que se
espera do Dinossauro é que ele engane as pessoas, não que seja enganado por elas, ou seja, o
maior mentiroso foi vítima de uma grande mentira também. Houve uma quebra de
expectativa, uma inversão marcada pela incongruência. Como fala o texto:
Realmente, qual não seria o desgosto dele (e do Reino) se um dia se visse
dinossauro-dino-saurus nos retratos dos jornais e na moldura da televisão?
[...]
Estavam neste engonhar de cautelosos quando chegou a notícia dum mágico que
fabricava espelhos de formosura e sonhava a cores, com borboletas. Não foi tarde
nem foi cedo, encomendaram-lhe uma boa dúzia deles que transformassem a
imagem do Dinossauro em imperador novo. (DE, pp.177, 178)
63
Os espelhos ensinados, porém, não enganavam apenas o Dinossauro; com eles, os
conselheiros do Reino podiam manter as aparências, manipulando a TV, os jornais, a mídia de
maneira geral. Os espelhos representam ainda uma grande ironia, principalmente para quem
os criou. A primeira versão dos espelhos foi uma brincadeira de distorcer pessoas e coisas
para deixá-las grotescas, era para ser uma espécie de entretenimento divertido e leve, deu
muito certo e rendeu muito dinheiro para seu inventor. Porém, ele teve a infeliz ideia de
realizar a brincadeira às avessas, não foi bem compreendido pelo povo acostumado com outro
tipo de distorção, pois, o feio diverte, o belo enfurece: ―Éramos felizes e escorreitos quando
nos punha aquelas caratonhas à nossa frente e agora atiras-nos com a imagem do impossível.
Some-te, Satanás dos olhos de anjo.‖ (DE, p. 178) Justamente os espelhos tiram do povo a
felicidade da inconsciência, despertando neles a inquietação e ânsia por um mundo melhor e
mais justo, entrevisto em utópicas visões nos espelhos.
Como todos os grandes inventos da humanidade, que servem tanto para fazer o bem
quanto para realizar o mal, dependendo de quem os usa, como usa e com qual intenção, com
os espelhos da formosura ocorreu o mesmo; uma pequena modificação, que o inventor julgou
que fosse para o bem, não foi interpretada dessa forma pelas pessoas que utilizavam os
espelhos. Aqui fica muito claro o valor do interpretante, daquele que recebe o texto. É por isso
que Hutcheon afirma que a ironia é um negócio arriscado, porque se quem estiver recebendo
o texto não conseguir decifrar as marcas irônicas, não conseguirá interpretá-lo da forma que o
ironista idealizou, portanto, seu sentido irônico será anulado.
A ignorância, às vezes, pode trazer felicidade, aquele povo era feliz, se divertia com a
brincadeira da distorção que os deixavam feios e engraçados, mas, ao perceberem o quanto
belos poderiam ser, acabavam por descobrir o quanto imperfeitos eram, e por se depararem
com essa realidade até então desconhecida, escorraçaram o inventor que depois disso viveu
miseravelmente. Mais uma vez há a quebra de expectativa, porque pensamos que aquele povo
iria gostar da novidade, o que não acontece realmente. Existe talvez uma auto-ironia do autor,
uma meta-ironia, pois de certa forma o objetivo de seu conto é conscientizar o povo da
terrível situação em que se encontram, possivelmente tirá-los de uma ignorância satisfeita.
Anos depois, o inventor dos espelhos foi descoberto pelos conselheiros do Dinossauro,
o valor de seus espelhos da formosura foi finalmente reconhecido pelo Reino da mentira.
Sempre a questão da inversão presente no texto, a quebra dos paradigmas, o questionamento
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que acaba por problematizar o texto e fazer com que o leitor procure respostas e tome uma
posição.
2.2.3 O INTERTEXTO COM A CULTURA POPULAR
Os provérbios são sempre chavões
até você experimentar a verdade
contida neles.
Aldous Huxley, apud Revista
Língua Portuguesa, nº 45, p. 11
Os ditados ou máximas, os ditos populares, são fortes elementos intertextuais do conto
analisado, estabelecendo relações, principalmente, com a cultura popular.
Os ditados são sempre invenção dos mexilhões, e não poderia ser de outra forma, pois,
como legítimos representantes da cultura popular, essa classe social oprimida produzia sua
fala própria e peculiar. Um exemplo dessa linguagem é o seguinte ditado: ―Mais vale um rico
na mão que dois pobres a voar‖ (DE, p. 138). Essa máxima passou a circular pelo Reino por
ocasião do Imperador reforçar a ideia da difícil vida dos ricos e da alegria de ser pobre. Esse
provérbio, muito irônico, acaba por revelar a esperteza dos mexilhões que não acreditavam
naquela farsa que exaltava a miséria, muito pelo contrário. O Imperador Dinossauro, porém,
não compreendia o ditado, achando-o um absurdo. Segundo as palavras do próprio Imperador
Dinossauro: ―Os pobres não voam, tinha respondido o Imperador quando lhe vieram contar a
estupidez do provérbio. Ou se voam é porque têm dinheiro para o bilhete de avião e são falsos
pobres.‖ (DE, p.138).
A ironia revela-se nesta incomunicabilidade entre Dinossauro e mexilhão, ou melhor,
na incapacidade do Dinossauro entender o sentido figurado, conotativo do ditado popular, era
somente capaz de entender o provérbio ao pé da letra, em seu sentido literal, concreto. A
linguagem polissêmica usada pelos mexilhões por meio do ditado popular acabava excluindo
o Dinossauro que não era capaz de compreendê-la, e acabava por criar o que Linda Hutcheon
chama de ironia agregadora, aquela em que há interpretações contraditórias e que, portanto,
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cria comunidades excludentes. A intenção dos mexilhões era exatamente a de excluir o
dinossauro, usando um código cifrado de linguagem. Não eram somente os mexilhões que
utilizavam a linguagem como um código excludente, mas também o Imperador: nem
Dinossauro nem mexilhão compreendiam a linguagem um do outro.
O mexilhão não entendia a linguagem acadêmica dos Mestres Doutores, falada pelos
Dê-erres e pelo Dinossauro, linguagem empolada e prolixa, feita para enrolar, ludibriar e
ocultar a verdade. Daí outro ditado mal compreendido pelo Reino do Dinossauro: ―Com
palavras e com moscas povoa a miséria o Reino‖ (DE, p. 162). As moscas simbolizam a
miséria e a pobreza do povo e as palavras representam os discursos vazios com que o
Imperador enganava o povo; mas a esse sentido conotativo somente os mexilhões tinham
acesso.
Nota-se que a sabedoria popular se mostra através dos ditados populares, sem contar
que este era o único meio dos mexilhões se expressarem, uma das poucas formas de expressão
que ainda restava ao mexilhão oprimido, uma espécie de código entre eles; os do Reino do
Dinossauro não entendiam essa linguagem cifrada, achavam-na ridícula. Os mexilhões
usavam essa linguagem cifrada para terem um pouco de liberdade de expressão e como defesa
daquela situação de repressão, já o Dinossauro e os Dê-erres usavam a sua linguagem
codificada para oprimir e enganar os mexilhões, como forma de ataque.
Aqui se mostra também a questão da variação linguística como ruído de comunicação.
A norma culta padrão, acadêmica, falada por aqueles que detinham o poder, e a norma
popular ou vulgar, falada pelo povo, a língua como instrumento de desentendimento, não
cumprindo seu principal papel que é tornar o pensamento comum. Acaba mostrando também
como Dinossauro e mexilhão pertenciam a mundos diferentes e estavam separados pelas
condições sociais, culturais e econômicas.
Portanto, os provérbios, sendo linguagem cifrada, só entendida pelos mexilhões,
servem tanto como forma de comunicação entre eles, quanto como uma maneira de protestar
veladamente contra o governo autoritário do Dinossauro; entretanto, são também
conhecimentos e preceitos passados de geração a geração, ensinamentos de pai para filho,
como diz o texto: ―Já ensinavam os mexilhões-avós que fingir é virtude de quem vê demais, e
o Mestre devia ser desses‖. (DE, p. 165). Sábios mexilhões, não subestimavam a esperteza do
adversário Dinossauro e, muitas vezes, calavam-se para sobreviver, ou segundo outra máxima
perpetuada pelo Reino do Mexilhão e seguida até pelos conselheiros do Reino: ―Ora como o
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surdo que muito canta acredita que tem voz (ditado dos Pedintes Voadores) os velhinhos, que
além de surdos se alimentavam a pilha portátil, ao fim de muito reunirem convenceram-se de
que eram mesmo conselheiros.‖ (DE, p. 190).
Porém, a fala recorrente entre os mexilhões ou a única certeza passada de geração em
geração era a presença do Dinossauro, sempre a pesar sob suas cabeças:
De pai para filho e de filho para neto nunca nenhum mexilhão se esquecia de apontar
o Dinossauro nos seus vários pedestais e avisar:
<<ANDA LÁ DENTRO, É ESTE>>
passando a palavra a quem viesse depois, e daí a outros, depois e mais depois e...
(DE, p. 196)
As reticências e a repetição do advérbio de tempo ‗depois‘ sugerem uma continuidade,
sempre haverá um Dinossauro opressor porque também sempre haverá um povo que se deixa
oprimir.
Outro tipo de expressão popular não menos significativa e recorrente no texto são
expressões com o número 7. Sete é um número bastante significativo e simbólico se levarmos
em consideração que sete são os dias da semana, sete são as cores do arco-íris, sete são as
notas musicais, sete são as maravilhas do mundo antigo e que Deus fez o mundo em seis dias
e descansou no sétimo dia. Popularmente falando, sete é conta de mentiroso, o que combinaria
muito com a personalidade do nosso Dinossauro.
Mas há ainda muitos dados interessantes a respeito do número sete, considerado o
número da perfeição para muitas designações religiosas e, já que estamos falando de fábula e
Contos de Fadas, sete são os anões da história da Branca de Neve. Sete são as cabeças de
Hidra de Lerna, sete são os mares, sete são as virtudes humanas segundo Pitágoras,
coincidência ou não, o número sete em nossa cultura envolve muitos aspectos misteriosos, se
não curiosos. Segundo o Dicionário de Símbolos de Juan-Eduardo Cirlot:
Sete ─ Ordem completa, período, ciclo. É composto pela união do ternário e do
quaternário, pelo que se lhe atribui excepcional valor (43). Corresponde às sete
direções do espaço (às seis existentes mais o centro) (7). Corresponde à estrela de
sete pontas, à conexão do quadrado e do triângulo, pela superposição deste (céu
sobre a terra) ou pela inscrição em seu interior. Gama essencial dos sons, das cores e
das esferas planetárias (55). Número dos planetas e suas divindades, dos pecados
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capitais e de seus oponentes (41). Corresponde à cruz tridimensional (38). Símbolo
da dor (50). (CIRLOT, 1984, pp. 413-414)
No conto, há referências a ―General de Sete Estrelas‖ (pp. 113 e 114) feitas pelo
pároco no batismo do futuro Imperador, dizendo que o pequeno haveria de ser um General,
porém, com 7 estrelas, numa expressão exagerada, pois é sabido que o maior grau na
hierarquia dessa categoria são as quatro estrelas.
O episódio que narra os soldados portugueses batendo em retirada das terras africanas,
justamente quando esses mesmos soldados encontram a estátua do Imperador sem o braço,
diz: ―Os soldados atravessavam a floresta a sete pés na direcção da costa quando esbarraram
com ela‖ (a estátua) (DE, p. 145). A expressão ‗a sete pés‘ significa muito rápido, a toda a
velocidade. Curioso observar como as expressões com o número sete adquirem significados
diversos, tantos positivos quanto negativos: sete palmos abaixo da terra, sete léguas, viajar
pelos sete mares, sete pecados capitais, guardado a sete chaves.
Esta última expressão aparece bastante no texto de DE e uma explicação possível para
a origem dessa máxima é o fato de que, no século XIII, os reis de Portugal guardavam joias e
documentos importantes da corte num baú que possuía quatro fechaduras, sendo que cada
chave era distribuída a um alto funcionário do reino. Eram apenas quatro chaves. O número
sete passou a ser utilizado devido ao valor místico atribuído a ele, desde a época das religiões
primitivas. A partir daí começou-se a utilizar o termo ―guardar a sete chaves‖ para designar
algo muito bem guardado.
O intertexto com a cultura popular manifesta-se na utilização de um subtítulo de
capítulo com essa expressão: ―Passaporte em sete chaves‖ (p. 160). Neste momento do conto
fala-se sobre o principal ofício do Dinossauro, que era perseguir e destruir toda e qualquer
palavra que ele julgasse subversiva; fala também do isolamento do Imperador e dos poucos
felizardos que têm acesso ao seu ‗covil‘. A esse respeito diz o narrador: ―Poucos, raríssimos
cidadãos podiam entrar na torrezinha onde ele se tinha fechado a sete chaves, todas de
segredo e cada qual com o seu nome:‖ (DE, p. 160) Esse expediente é explicitado em seguida,
ao mesmo tempo em que o narrador enfatiza o quadro de um Reino burocrático e cheio de
segredos muito bem guardados; assim, enumera as sete chaves, cada uma com uma função
diferente: 1ª Chave, da força; 2ª Chave, da Bênção; 3ª Chave, do Comércio; 4ª Chave, dos
Espiões; 5ª Chave, das Alianças; 6ª Chave, do Suborno, e 7ª Chave, dos Caprichos e Acasos.
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Diz o texto que: ―Conforme a pessoa, assim a chave que lhe dava entrada na torre.‖ (DE, p.
161) Tudo muito secreto e recluso; tal prática era reproduzida por todos aqueles que faziam
parte do Reino do Dinossauro, transformando o Reino num imenso segredar. Em trechos
como esse, percebe-se claramente o alvo da ironia e da sátira do narrador, Salazar e seu
governo burocrático e cheio de segredos.
A ocorrência de expressões latinas no texto caracteriza, além do intertexto com a
cultura e a tradição, o preciosismo e o pedantismo do Reino do Dinossauro, que faz questão
de exibir uma linguagem culta, própria de uma parcela mínima da população, extremamente
privilegiada. Quem usa o latim são geralmente personagens ligados à Igreja, os Mestres
Doutores, os Dê-erres, Cirurgiões, jamais um mexilhão falou neste dialeto elitista, utilizado
como instrumento de exclusão. O uso de uma língua morta que já foi, porém, símbolo de
grande poder político, juntamente com o apoio da Igreja Católica, principal responsável pela
manutenção do uso do latim, é muito significativo no texto, pois revela como tanto a religião
quanto a linguagem podem servir de instrumento de dominação e alienação. Abaixo seguem
alguns exemplos retirados do texto:
Silêncio à volta. Bem, nesse caso o prior sentia-se melhor do que qualquer um,
melhor do que ninguém, fosse quem fosse, para afirmar o que convinha à Santa
Madre Igreja e ao mundo Pecatorum Orbi e que era: Doutor. A criança estava
destinada às leis por muitas e muitíssimas razões, quod erat demonstrandum.
<<ÁMEN>> (DE, p. 115)
Pecatorum Orbi /Quod erat demonstrandum - ―terra dos pecados‖, ―como queríamos
demonstrar‖, esta última expressão é usada na matemática, como encerramento da solução
de um problema, de uma equação matemática.
As expressões foram utilizadas pelo pároco no batismo da criança que viria a ser o
Imperador Dinossauro. O pároco tentava convencer os presentes de que tinha autoridade e
sabedoria suficientes para saber com precisão o destino da criança. As expressões em latim
denotam sua autoridade como representante de Deus na Terra e também sua prepotência e
arrogância. O pároco elege-se como o mais capacitado para decidir o destino do menino, e
isto perante a Igreja e também ao mundo que em latim chama de pecador. O autoritarismo fica
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ainda mais forte porque a fala é concluída com um ‗amém‘ também em latim, expressão de
concordância que significa, ‗assim seja‘.
Ao juntar uma expressão aparentemente religiosa com uma científica percebemos a
sátira que tem como alvo de sua crítica a Igreja Católica.
Mais adiante o pároco sempre tentando persuadir as pessoas de que seu palpite era o
melhor, diz:
O prior, como a sua paciência não tivesse limites (por causa das Sagradas
Escrituras), o prior repetia e tornava a repetir o seu palpite bem intencionado,
explicando a beleza dos doutores de leis. Apresentava-os como eminências que se
passeavam apoiadas no parágrafo de ouro e que era tão solene como o obstáculo dos
bispos mas com mais voltas. Depois, também eles tinham a sua bíblia, acrescentava,
o seu Código-Codex-Abrenuntio onde mergulhavam a todo o instante para
acertarem o relógio do castigo, razão por que estavam sempre tão estudiosos e
meditabundos. (DE, p. 115)
Códico-Codex-Abrenuntio - tanto códico como codex, referem-se aos códices (livros)
medievais, e abrenuntio era uma exclamação de repúdio ao diabo e suas formas, como
―Meu Deus‖, ―Ave Maria‖, de hoje.
O pároco para sustentar sua posição de que o menino deveria dedicar-se às leis, usa do
recurso argumentativo da comparação, colocando os Códigos das Leis no mesmo grau de
importância da Bíblia como o guia de conduta de vida a ser seguido.
O uso da expressão ―acertar o relógio do castigo‖ para ilustrar a consulta ao Código
das leis em busca de orientação para julgar e castigar as pessoas, evidencia a crítica à Igreja
Católica, pois esse Código é comparado à Bíblia com a intenção de desmascarar
comportamentos hipócritas, a comparação também deixa claro o caráter punitivo tanto da
Igreja quanto das Leis, e mostra também o poder que têm as pessoas por detrás dessas
instituições. Mais uma vez há a mistura entre elementos religiosos e seculares, na palavra
‗abrenuntio‘, por significar uma rejeição às diversas formas do maligno.
Mais uma evidência satírica, segundo Paulo A. Soethe, é a conexão com a realidade,
aquela que incomoda deveras o autor da sátira e o faz ridicularizar o alvo da crítica para
intensificar sua denúncia-agressão. Lemos no conto:
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Ocuparam, como se diz, os pontos estratégicos para de repente, a eles, a eles, que é
uma pressa, caírem em cima dos mexilhões, brandindo os seus canudos de
bacharéis:
<<IN HOC SIGNO VINCES!>>
<<IN HOC SIGNO VINCES!>>
Apanhados de costas, os da beira-mar renderam-se sem discussão tanto mais que não
compreendiam a língua dos invasores. (DE, p. 131)
‗Sob esse signo venceremos‘ é o que significa a expressão latina e remete ao
pedantismo daquele Reino burocrático. Os Dê-erres se referiam ao palavreado difícil e
preciosista do Reino que intimidava o mexilhão porque este não conseguia decifrá-lo.
Apanhados de surpresa e de forma covarde pelas costas, o mexilhão não esboçava reação
diante daquela linguagem feita para enganar e excluir.
O narrador também utiliza de expressões em latim para compor a ironia em seu texto.
Ao falar da grande quantidade de padres na cidade dos doutores, diz:
Havia-os das mais variadas formas e feitios, à paisana ou em oficial ─ dependia do
lugar e da estação. Padres em rústico encontravam-se quase sempre à mesa do
lavrador ou a correr atrás das lebres; de bicicleta passavam os curas ditos operários a
tilintarem as encíclicas; de motoreta, os desportivos de paróquia agitada. Alguns, de
unha de verniz e boquilha nos dentes, patinavam nas avenidas de asfalto; outros
instalavam-se no écran da televisão, e assim por diante et nunc et semper. (DE, p.
122)
A ironia permeia todo o relato a respeito da imensa variedade de padres existentes na
cidade, julgando de forma pejorativa o alvo, porque ao terminar o parágrafo com a expressão
em latim que significa ‗agora e sempre‘, dá a exata dimensão do que pensa a respeito, de que
padres são como pragas ou ervas daninhas, que sempre existiram e existirão para azar da
humanidade. A figura do padre é ridicularizada e, portanto, deformada por meio da ironia
atacante, segundo Hutcheon, configurando a sátira.
A união de elementos dissonantes parece ser a tônica das expressões em latim, e as
incongruências, as antífrases, as ambiguidades, são também o que caracteriza os discursos
paródicos, irônicos e satíricos. Quando o Imperador Dinossauro finalmente morreu, lemos:
―Dinossauro, paz perpetua, Dies irae, faleceu com suores de santidade na hora mais alta do
século, ano da Comemoração‖. (DE, p. 193) Que significa ‗paz perpétua, da ira de Deus‘,
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temos elementos que se excluem: ‗paz‘ e ‗ira‘. Percebemos a sátira mais uma vez, na
ridicularização da morte do Dinossauro por meio da ironia atacante altamente agressiva. A
expressão ‗suores de santidade‘ é a responsável pela antífrase irônica porque sabemos que
aquele Imperador Dinossauro não era nada santo.
2.2.4 DÊ ERRES / PIDE / CENSURA
Os governos suspeitam da
literatura porque é uma força que
lhes escapa.
Émile Zola, apud Revista Língua
Portuguesa, nº 43, p. 11
A censura no Reino do Dinossauro coube aos Dê-erres, numa alusão à PIDE (Polícia
Internacional e de Defesa do Estado) de Salazar, assim descritos no conto: ―DECLARA-SE A
INVASÃO DOS DÊ-ERRES. Eram cidadãos do interior, filhos ricos de montanheses, que
avançavam, friamente treinados pelos mestres da cidade dos doutores.‖ (DE, p. 131)
Os Dê-erres, segundo o texto, eram pessoas abastadas economicamente e vindos do
interior do país, cuja função era vigiar o mexilhão; para isso haviam sido treinados pelos
mestres doutores, caracterizando-se, pela instabilidade e desconfiança, qualidades
imprescindíveis à função de fiscais da lei. Diz o texto que eles estavam em toda a parte e que
sua conversa ou dialeto atordoava qualquer mexilhão.
Dê-erre pode significar tanto ―próprio de ‗erres‖, ―aqueles que detém os erres‖, ou
seja, os títulos de Doutores e outras designações, desde que sejam nobres, como exemplifica
o texto:
Naquele Reino da Comarca dos Doutores, o dê-erre, Dr, R-D, Herr D, Senhor D ou
Senhor Dom, distinguia-se à léguas dos restantes mexilhões pelo porte de todo
contentinho com a sua pessoa, pelos tons escuros com que revestia o corpo e pelo
cantar inconfundível, que era esdrúxulo e gargarejado. (DE, p. 154)
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Percebemos que todos os Dê-erres possuem essa letra no nome como um diferencial,
um traço distintivo que enobrece a função dos fiscais, que objetiva manter a ordem e fazer
cumprir a lei estabelecida pelo Dinossauro ditador.
Dê-erre, ironicamente, poderia também significar ―aquele que erra‖, derivando de erro;
nesse caso, simbolizaria, alegoricamente, a repressão em Portugal. Como suas principais
armas de coerção eram a língua dos Mestres-doutores, incompreensível para aquela espécie, o
próprio diploma de Doutor empunhado como espada e muita tapeação, aos Dê-erres também
são atribuídas características grotescas ou animalescas, como constatamos pelo texto:
Deslocava-se com solenidade difusa à custa do canudo de bacharel que manobrava
como um apêndice perfurador para abrir caminho nos subterrâneos dos decretos e
que ao mesmo tempo lhe servia de membrana extensora do aparelho bucal. Ávido e
depredador, nisso ninguém o batia. Contudo, dotado de apreciável sentido colectivo,
observam os especialistas ─ (DE, p. 155)
Nota-se que o diploma faz parte do Dê-erre como extensão de seu próprio corpo e
possui uma dupla função: realiza o trabalho burocrático e intrincado da Polícia de Repressão,
ao mesmo tempo em que funciona como ampliação de sua boca, talvez para torná-lo mais
voraz na caça ao mexilhão subversivo ou para abrir caminhos por decretos. Nesses traços
caricaturais, evidencia-se o recurso ao grotesco e à coisificação, próprio da sátira.
Uma classe tão instruída como a dos Dê-erres deveria agir de forma mais civilizada;
ironicamente, porém, os Dê-erres não respeitavam nem aos da sua própria espécie, um queria
mandar mais que o outro, e usavam o poder do diploma, não somente com os mexilhões, mas
também com os seus:
[...] e como em toda a coroa imperial não havia senão 1-Único Mestre que tudo lo
podia e tudo lo mandava, cada dê-erre andava a enganar os outros, fingindo que era
o mais importante a seguir ao Chefe, conforme se pode ver pelo conhecido
parêntesis
<< O VOSSA EXCELÊNCIA NÃO SABE
COM QUEM ESTÁ A FALAR>> (DE, p. 155)
73
Essa última expressão é característica da soberba conferida pelo cargo e pelo diploma,
a famosa prepotência do poder que tudo compra e tudo corrompe.
Fica muito claro com os Dê-erres, quem é o alvo da ironia e qual é a paródia. O
narrador retrata muito bem a PIDE:
Mais para o finalmente, quando pouco havia que aprender, os dê-erres deram-se por
afinados e foi um varrer de feira. Lançaram-se à rédea solta pela escrita do país,
levantaram poeira e cascalho nos terreiros da televisão, praças públicas, academias,
caíram em cima dos jornais da cidade e de toda a folha de couve da província. (DE,
p. 165)
Neste trecho evidencia-se que não havia liberdade de expressão naquele Reino, toda a
mídia impressa era controlada pela Polícia de Repressão, pelos Dê-erres, e num toque irônico
do narrador, ressaltando o absurdo da situação; toda folha, até a vegetal, era considerada uma
ameaça ao poder central. A expressão ‗toda folha de couve‘ bastante usada pelos portugueses,
no texto seria uma metáfora para indicar as pessoas comuns, ou seja, todos os mexilhões do
Reino do Dinossauro. Portanto, o narrador, assim como os mexilhões, usa a linguagem
figurada para contar sua história; equiparando-se aos mexilhões, o narrador também tem que
se utilizar de formas alegóricas, da fábula, para se expressar, ele também não pode usar a
linguagem direta, tem que usar a linguagem cifrada, aquela que nem Dinossauro nem Dê-erre
é capaz de compreender. ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é uma sátira da ditadura salazarista,
recriando de forma diferenciada e crítica tudo que aconteceu naquela época, usando do
disfarce e da dissimulação em seu discurso para poder ser publicado.
O trabalho de espionagem realizado pelos Dê-erres assim é narrado: ―Um a um, todos
os jardins foram ocupados por espiões com o ar de quem não quer a coisa e as bandas de
domingo e coreto, muito em piano, pianíssimo, foram-se afastando, afastando, e, andante,
sumiram-se sem dar nas vistas. As noites calaram-se, os pobres também.‖ (DE, p. 133)
O narrador utiliza ‗jardins‘, termo de extensão menor, para se referir a todos os
espaços ocupados pela polícia de repressão e que certamente não se limitavam aos jardins,
num recurso sinedóquico. Do mesmo modo que não foram somente as ‗bandas‘ e os ‗coretos‘
que se calaram, mas todo o povo que se viu obrigado a silenciar.
74
O narrador, para nos falar da repressão, e ao usar este recurso, aumenta a sensação de
invasão de privacidade que aquele povo sofreu. Os espiões estavam em toda parte e todas as
vozes, especialmente a do mexilhão, calaram-se. A principal arma do Dinossauro para oprimir
o povo era promover a privação das vozes.
Neste Reino do Dinossauro, em que se valorizava a sabedoria cristalizada dos mestres
doutores e a burocracia de todo o tipo, o vigiar constante dos súditos era o trabalho dos Dê-
erres. O narrador revela de forma irônica e satírica o quando a repressão e a censura foram
ativas neste Reino:
Tinham obrigado os mexilhões a vestir de escuro porque a vida não estava para
graças, e decretaram que de futuro o riso seria a máscara do desdém, o falar a capa
dos ignorantes e a alegria o fumo da inconsciência. Assim, sem mais conversa. Que
se passasse aviso e se cumprisse, soma e segue, Reino da Comarca, tantos de tal.
(DE, pp. 132, 133)
O sentido de imposição fica muito claro na fala do narrador, também é explícito que a
imposição se dirige aos mexilhões, especificamente o alvo da repressão e da censura.
Muito mais que mandar no ser social do cidadão, a censura e a repressão estendiam-se
ao controle do sentimento do indivíduo. Era punida toda manifestação genuína de alegria e
contentamento e a palavra na boca do povo seria sinônima de ignorância. Desde modo,
achavam eles que conseguiriam anular os mexilhões, tanto é verdade que o narrador nos
informa desta falta de liberdade transformando a silhueta de seu texto em uma ata, documento
ou decreto que deve ser cumprido, percebemos a mudança no estilo pelo uso das expressões
‗soma e segue‘, ‗Reino da Comarca‘, ‗tantos de tal‘, indicativos do preenchimento de um
documento oficial.
Mas como acontece nos governos ditadores e repressores, sempre há aqueles que têm a
coragem de contrariá-los, seja de forma ostensiva ou silenciosa, como no caso dos mexilhões
do texto, que sabiam das artimanhas para enganá-los e se fechavam no sofrimento: ―Os
mexilhões sabiam muito bem que era assim e fechavam-se na casca, segredando apesar de
tudo palavras que logo apareciam espalmadas nos muros (mesmo nos muros mais
frequentados pelas varejeiras do Paço) e que faziam perder a cabeça dos dê-erres.‖ (DE, p.
139) Nesta parte percebemos que por mais que o Dinossauro tentasse, não conseguiria calar
75
totalmente os mexilhões, sempre houve e haveria resistência, seja ela mais ou menos evidente
ou significativa. As ‗varejeiras do Paço‘, espécie de mosca repugnante que cerca tudo e todos,
poderiam ser comparadas à PIDE portuguesa, que de igual modo agiam como moscas em
cima dos pobres mexilhões.
2.2.5 SALAZAR E AS PALAVRAS / CÂMARA DE TORTURAR PALAVRAS
Certas palavras são como granadas.
Usadas com imperícia, explodem na
boca.
Graham Greene, apud Revista
Língua Portuguesa, nº 2, p. 7
Uma característica do Dinossauro era ser devorador de palavras. Que ironia, a criança
que trocara o burro por um curso de Imperador, para exatamente aprender palavras, agora
perseguia essa infame categoria da linguagem até à exaustão, na intenção de destruí-la. Mal
sabia o Imperador o seu destino, que nesse intento louco de exterminar as palavras, acabaria
arruinado por elas, como lemos no conto:
O que os viajantes trotamundo não sabiam era que, na cegueira de perseguir as
palavras, Sua Alteza iria cair
PRISIONEIRO
Encerrado no casulo. (DE, p. 163)
Como os mexilhões sabiam dessa obsessão do Imperador pelas palavras, espertos que
eram, simulavam ser as criaturas mais desprovidas delas. A bem da verdade, os mexilhões
eram desprovidos de tudo, habituados a passar fome, magros por natureza, agarravam-se às
rochas como podiam e ficavam a observar o mar, sobreviviam com muito pouco, quase nada,
como descreve o narrador: ―... o mexilhão: Pé na rocha e força contra a maré. Daí o nome de
76
Reino do Mexilhão que lhe pôs a geografia em homenagem a esse marisco mais que todos
humilde, só tripa e casca.‖ (DE, p. 129)
Portanto, se nem as necessidades básicas do mexilhão eram sanadas, quanto mais as
superficiais; assim, a arte das palavras era uma dádiva reservada a poucos privilegiados, leia-
se Dinossauro e Dê-erres.
O que acontece de interessante no conto é o tratamento dados às palavras pelos Dê-
erres e pelo Dinossauro, é como se as palavras fossem pessoas reais, por isso, ganham status
de personagem nesta fábula. E igualmente como qualquer personagem, tanto podem servir à
verdade como à mentira. As palavras que o Imperador julgasse subversivas e que, portanto,
segundo seu juízo de valor serviam para enganar e subverter a ordem vigente, eram
perseguidas até à extinção.
Observamos o caráter polissêmico do signo linguístico, as mesmas palavras julgadas e
condenadas pelo Dinossauro e pelos Dê-erres, eram sinônimas da expressão da mais pura
verdade e retratavam com exatidão e justeza a realidade; desse modo, se julgadas pelos
mexilhões, seriam absolvidas e deixadas em liberdade para cumprirem seu papel. Para cada
personagem, uma interpretação diferente do código, de acordo com sua bagagem, cultura e
interesses pessoais, como constatamos pela passagem do texto:
Quanto tempo gastou o Imperador a perseguir as palavras que empestavam, dizia
ele, o Reino? Meses e meses. Anos. O melhor da vida, o suor da insônia.‖ ―Bandos
de espiões batiam as ruas atrás da frase solta e do dito por dito, confrarias de
mafarricos adejavam pelas entrelinhas dos compêndios, sacudiam a letra de forma e
se fosse preciso esmagavam-na, davam-lhe jeitos, maneiras. (DE, p. 142)
É interessante observar a linguagem de duplo sentido utilizada pelo narrador, cheia de
trocadilhos, que deixa o texto irônico com um tom bem humorado, como por exemplo: ―atrás
da frase solta”, ou seja, possivelmente aquela que está livre nas ruas ou perdida no meio de
outras. A palavra “entrelinhas”, que nos conduz a diversos níveis de leitura, ao sentido literal
e a outros sentidos possíveis. Ou ainda a expressão corrente “o dito pelo não dito”, recriada
pelo narrador “o dito por dito”, ou seja, a palavra imposta, evidenciando a impossibilidade de
um diálogo democrático. E o mais interessante é o tratamento humano dado às palavras,
concentrado nos verbos: sacudir, esmagar e dar jeito, geralmente utilizados em relação às
77
pessoas, no texto literalmente se sacudia e esmagava letras como a polícia de inteligência
fazia com as pessoas, para tentar descobrir alguma insubordinação, a isso chamavam ‗dar
jeito‘ ou ‗maneira‘ às palavras, da mesma forma brutal que coagiam as pessoas.
Não deixa de ser irônica e satírica, porque ridícula, esta perseguição às palavras, como
se fosse delas a culpa e responsabilidade pelos atos das pessoas.
A obsessão do Imperador Dinossauro era tamanha que, usando de toda tecnologia
disponível, construiu ―a câmara de torturar palavras”, que poderemos considerar como uma
grande metáfora da censura. Contratou os melhores profissionais para construir esta máquina
infernal que possuía um complicado esquema de funcionamento em etapas que iam de A até
E. Sobre a construção desse artefato lê-se:
E ao ver o monstro a funcionar esfregou as mãos: agora sim, a música ia ser outra.
Seguidamente pagou aos engenhosos e despachou-os para o
OLHO DA RUA!
(Ou mandou-os matar, resta saber.)
Aquilo que até ali não passava de um gabinete de silêncio e mesa dourada iria ser
conhecido por
A CÂMARA DE TORTURAR PALAVRAS (DE, pp. 142, 143)
Este fato ressalta claramente o caráter violento do Governo Militar; há menção
explícita à prática de violência por parte desses governos. E violência em seu grau mais
elevado que tem como consequência a morte de pessoas.
O processo pelo qual as palavras passavam na tal câmara era muito semelhante a
qualquer processo pelo qual as pessoas investigadas e / ou torturadas passam. A sátira reside
nesta deformação da realidade, pois é muito ridículo e insano torturar as palavras, o normal
seria inquirir e atormentar quem as profere, mas em nosso conto, as palavras adquiriram status
de personagem, são tratadas como pessoas; o narrador deixa este fato muito claro quando
revela o nome da máquina: Câmara de Torturar Palavras.
No estágio A da Câmara de tortura de palavras, era feita uma espécie de triagem de
palavras. No estágio B havia uma seleção progressiva, tentava-se entender as intenções mais
ocultas de cada palavra. No estágio seguinte, cada palavra era esmiuçada em suas origens. No
estágio D, obtinha-se uma síntese da palavra por meio de sua compressão. Finalmente, no
último estágio, tudo era gravado numa fita de registro contínuo. O processo de torturar
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palavra é muito semelhante ao processo de tortura de pessoas, porque há uma investigação
somente das palavras suspeitas, depois pesquisam-se suas origens e intenções; já os estágios
da síntese e da compressão fazem alusão à tortura porque são processos de extração,
constituindo o registro a sentença final, a conclusão de culpa ou inocência.
Com o uso da Câmara de Torturar Palavras, a censura intensificou-se, como ilustra
essa passagem do texto:
Mas o Mestre tratava-lhes do desconversar, queimando diariamente uma boa porção
de palavras que lhes faziam falta. Queria o Reino lavado de termos menos legítimos
e da frase enviesada ou de dois bicos, e ia conseguindo. Não tardou muito os
dicionários estavam no nervo e os mexilhões já só falavam pela calada.
<<GENTE DISCRETA>> (DE, p. 162)
As palavras recebem tratamento humano, ou melhor, desumano, por parte do
Dinossauro; tanto é verdade que, à medida que o Imperador as destruía, elas faziam falta.
Assim, não era somente a questão da proibição de certos tipos de vocábulos ou frases que iam
contra o Governo, mas do extermínio das palavras como se fossem pessoas; elas, palavras
personagens, desapareciam de seu habitat natural que eram os dicionários, pela ação do
Dinossauro. E o mexilhão, gente discreta, falava cada vez menos e somente em segredo.
O alvo do Dinossauro, porém, não se restringia às palavras, estendia-se à pontuação,
forma eficaz de comunicação e expressão. Vejamos o que fala o texto: ―Mas, perguntou ele
um belo dia,
<<E A PONTUAÇÃO?>>
Bem perguntado: a pontuação nas mãos dos mexilhões anarquistas podia muito bem ser usada
como rasteira.‖ (DE, p. 173) E começa a discorrer a respeito da expressividade dos sinais de
pontuação e, principalmente, dos possíveis duplos sentidos que eles podem causar nas mãos
inimigas. Fala das perigosas reticências, das vírgulas mal colocadas, dos parênteses que
poderiam levar a erros. Usando um discurso metalinguístico, irônico e ambíguo, o narrador
expõe ao ridículo a atitude do Dinossauro, ressaltando suas características de animal pré-
histórico.
No exemplo que citaremos a seguir, o Imperador volta a censurar a pontuação, mas de
forma bastante original, utilizando uma metáfora que nos faz lembrar um decreto. Dizia
79
assim: ―ORDEM!!!‖ (DE, p. 174), justificando os três pontos de exclamação comparando-os
à uma escolta de baionetas e dizendo que, desta forma, o decreto a respeito da pontuação,
seria digno de quem detinha o poder e a autoridade. É a forma, a silhueta do texto, seu
aspecto gráfico reforçando o conteúdo, que alude para a hierarquia estabelecida naquele
Reino, no qual até as palavras eram tidas como soldados e recebiam o mesmo tratamento
militar, severo e autoritário.
Mais adiante, ainda falando a respeito da pontuação, encontramos uma passagem
irônica que salienta o ridículo dessa prática de se perseguir até a pontuação do discurso
linguístico: ―Lá ia o tempo em que os jardins da escrita eram um paraíso em lantejoulas de
tremas e de reticências e em que o til, essa borboleta, andava em liberdade beijando as vogais
da infância. Tempo bom? Tempo mau?‖ (DE, p. 174)
A humanização da linguagem torna-se muito clara porque vemos que, assim como
acontecia com as pessoas, antes de se instaurar a ditadura e com ela a repressão do governo do
Dinossauro, tinham elas liberdade de expressão e viviam inocentes e soltas, da mesma forma
que a escrita gozava seus dias em liberdade sem coerção; com a ditadura tudo muda, tanto
para as pessoas como para as palavras. A ironia consiste na forma com que o narrador coloca
a metáfora da linguagem, idealizando a felicidade vivida anteriormente nas expressões:
‗paraíso em lantejoulas‘, o til como uma ‗borboleta‘ beijando as ‗vogais da infância‘. O
questionamento final acerca do tempo, se ele foi bom ou ruim, denota ainda a ironia, é óbvio
que são tempos maus. Mas como afirma Muecke, a ironia nos deixa a sensação de paradoxo
de uma dupla realidade contraditória.
As questões linguísticas são ainda tema de um estranho sonho do Imperador
Dinossauro, pois parágrafos, vírgulas e pontos de exclamação povoavam a fantasia noturna do
ditador, porém, a comparação mais contundente ainda seria feita e seria também a derrocada
do Imperador, sua primeira queda, ou morte, aquela que o deixou mais debilitado do que já
estava; o delírio imperial de ver serpentes no lugar de tiras de papel elevaria sua obsessão pelo
controle das palavras.
Em sua fantasia onírica, palavras são comparadas com serpentes traiçoeiras, no
episódio da famosa queda do Imperador, dia também em que a Câmara de Torturar Palavras e
os computadores do Reino trabalhavam sem cessar. Tiras e mais tiras de papel com palavras,
saiam das máquinas em movimento contínuo e enchiam o gabinete do Imperador, deixando-o
ensandecido:
80
SERPENTES, as palavras rastejavam-lhe aos pés; continuavam a cair na teia uma
por uma, amontoando-se no chão em tiras perfuradas que escorriam dos
computadores e que se revolviam, ondulavam,
ERAM SERPENTES
crescendo, crescendo sempre. (...) já iam nos joelhos do Dinossauro, marinhando por
aquela sonolência feroz e embalando-a com o farfalhar dos seus corpos de papel.
Não paravam, alongavam-se e reproduziam-se, salpicadas de furos, de pintas quero
eu dizer, e nesses furos, nessas pintas, vinha todo o código venenoso das palavras
proscritas. (DE, p. 182)
As tiras de papel que saem das máquinas ganham vida, rastejam, mexem-se e
multiplicam-se, são verdadeiras serpentes; há uma comparação direta entre palavras e seres
vivos quando lemos que o farfalhar dos ‗corpos‘ de papel embalavam a sonolência do
Imperador.
A serpente, desde a bíblia, teve sua história ligada à traição e ao pecado, foi a serpente
que enganou a mulher e a fez comer do fruto proibido. Ela sempre esteve ligada à ideia de
engano, de ardil, daí as ‗palavras serpentes‘ serem, segundo o Imperador, os indivíduos mais
subversivos e perigosos do Reino, os que mais deveriam ser destruídos. Quase sufocado pelas
palavras, o Imperador: ―Tentava alcançar os fusíveis, parar de vez as máquinas e os sons, mas
as tiras malignas, as danadas, tolhiam-lhe os passos. Começou a estrangulá-las, a parti-las‖
(DE, p. 182) Estabelece-se uma verdadeira luta entre o Imperador e as serpentes, cujo
desfecho será a queda do Dinossauro.
A ruína do gigante Dinossauro foi provocada pela pequenina palavra, por uma
infinidade delas, é verdade. Mas, de forma semelhante à história bíblica de Davi, que com
uma funda derrubou o gigante Golias, vencendo uma grande batalha, o Dinossauro dessa
história também foi derrotado por um inimigo bem menor em tamanho. Ainda que, ao
contrário da história bíblica, o Imperador Dinossauro jamais tenha menosprezado o poder de
destruição do inimigo.
Havia palavras muito especiais neste Reino, que eram indispensáveis a seus
governantes e principalmente ao Dinossauro. Eram palavras que serviam como verdadeiras
chaves, pois abriam portas e discursos, eram curingas, funcionando em todas essas situações;
leia-se o exemplo do texto:
Não menos importantes eram certas palavras que se usavam para abrir portas e
discursos. Bem manobradas, valiam como gazuas de ouro, feliz de quem as soubesse
81
usar. Ordem, nem se discutia, era infalível; Destino, Mortos, Heróis, obrigavam a
tirar chapéu; Fidelidade salvava a frase mais comprometida. (DE, pp. 161, 162)
É válido lembrar que tais palavras mágicas só funcionavam na boca das pessoas certas,
ou seja, dos Dê-erres e do Imperador Dinossauro. Não é de se estranhar que a palavra
‗Ordem‘ esteja entre as mais eficazes nesse sistema autoritário de governar. ‗Destino‘ também
é bastante conveniente, porque faz com que o povo permaneça conformado com a sua
situação e com quem a providência divina escolheu para governar.
2.2.6 EUFEMISMOS DO DISCURSO OU MANEIRAS DE ENGANAR O POVO
As palavras verdadeiras não são
agradáveis, e as agradáveis não são
verdadeiras.
Lao Tsé, apud Revista Língua
Portuguesa, nº 55, p. 7
O Imperador Dinossauro sabia muito bem o poder das palavras, tanto que queria
destruir essa verdadeira arma. Na verdade, o que ele desejava destruir era a palavra na boca
do mexilhão ou daquele que se opusesse ao seu governo, e manter bem viva a palavra em sua
própria boca, principalmente aquelas que serviam a seus interesses.
Como bem disse o narrador no início de sua narrativa: ―falando de certo Reino onde
nos velhos outroras vivia um imperador astuto, diabo e ladrão‖ (DE, p. 109); Imperador
ladrão de palavras e de sonhos e, semelhante ao diabo, se não era o pai da mentira, talvez
fosse um parente bem próximo dela. No seu Reino imperava o engano, tanto para os súditos
quanto para os que o ajudavam a governar. E essa fraude estendia-se para a vida privada do
Imperador, que mentia para si mesmo. Podemos dizer que era o Reino da enganação ou o
Reino do faz-de-conta, às avessas é claro, porque nada de mágico ou de virtuoso combinava
com aquele Reino desencantado, no qual reinavam a fome, a miséria, a injustiça e a falta de
liberdade de expressão.
82
O imperador jamais se dava por vencido, mesmo contra a evidência da realidade. Por
ocasião de perder uma batalha nas Colônias da África, ao ser informado da derrota, não se
deixou abater, disse que o inimigo nem possuía um exército organizado, com patente
reconhecida, portanto, não se poderia considerar como batalha perdida uma vez que nem
houvera batalha nenhuma, como podemos constatar pelo fragmento do texto: ―Ora, tanto
quanto era do conhecimento dele, Excelentíssimo, não acontecia assim com os infiéis, que
não passavam de uma tropa-fandanga sem capelão nem uniforme. Conclusão: não tinha
havido batalha nenhuma. Militarmente, pelo menos.‖ (DE, p. 141) O Imperador Dinossauro
manejava habilmente as palavras para distorcer as situações e os fatos a seu favor,
propiciando o surgimento de vozes dissonantes, característica essencial da paródia, e
suscitando também o humor satírico, porque a prepotência do Imperador não permitia que ele
admitisse a derrota embora ela fosse um fato. O Imperador preferia viver a mentira de que sua
autoridade não fora violada e a batalha jamais perdida.
Portanto, distorce ele os fatos a seu favor, minimiza suas derrotas, muda a ordem das
coisas para manter seu poderio. É a questão da mentira para os outros, e para si mesmo, base
de sustentação de todo seu governo, e ai daquele que o contestasse. Encontramos mais um
marcador irônico, a aparência da verdade, quando a realidade é bem outra.
Depois de perder aquela batalha na colônia, que sabemos ser uma referência ao
Continente Africano, onde Portugal colonizou muitas regiões, há a revolta de uma ilha que
não aceita mais o domínio português. Com essa menção ‗da ilha fora do mapa‘, como o
narrador a chama, de tão longínqua, o Imperador Dinossauro achou solução ou mentira
melhor, a mais ridícula e mais estapafúrdia possível.
Para não admitir a derrota perante todos, transferiu o governo da ilha para Portugal,
mudou a geografia e a história, a partir daquele momento a ilha foi reconstruída em todas as
suas especificidades: um prédio foi transformado em ambiente selvagem, foi colocada
bastante vegetação, a mata artificial foi decorada com pássaros de porcelana e plumagem de
nylon, animais embalsamados foram colocados nas árvores, as paredes foram ornamentadas
com insetos fluorescentes. Havia até a reprodução dos sons dos animais selvagens, sem contar
o sistema de governo, a moeda, tudo foi minuciosamente pensado e reproduzido com grande
fidelidade.
Tudo era muito bem encenado, tudo num faz-de-conta, digno dos melhores contos de
fadas, ironicamente falando: ―<<A ILHA NÃO SE PERDEU>> (...) <<QUE TODOS
83
TOMASSEM NOTA.>> Todos tomaram nota e a ilha passou a ser na cidade e não onde
queria a geografia.‖ (DE, pp. 156, 157)
Observamos a ironia semântica contrastiva, uma vez que sabemos que a afirmação de
que a ilha não se perdeu é falsa; o imperativo ‗tome nota‘ dirige de forma ostensiva a
interpretação do leitor para o sentido literal do enunciado; porém, por meio das marcas
irônicas já mencionadas e do contexto, evidencia-se a ironia. Ocorre então uma dupla
orientação irônica: somos levados a inferir que a ilha não se perdeu, mas devemos agir como
se isto tivesse acontecido.
A mentira era tão bem elaborada nesta ‗ilha fora do mapa‘, literalmente fora, porque
para ser ilha tem que ser cercada por água, pelo mar ou rio, o que não acontecia com aquela,
plantada bem no meio da cidade. E todos viviam aquela mentira, os habitantes e todos os do
Reino que exerciam alguma função administrativa na ilha, pois havia porteiro, uma alfândega,
até polícia de fronteira nesta ilha da fantasia. Sem contar a reprodução da monção:
―<<AMANHÃ HÁ MONÇÃO>>, avisava o porteiro, e era infalível porque já tinha topado os
engenheiros da mangueira a rondarem o bairro.‖ (DE, p. 159)
Tanto trabalho e dinheiro gastos para sustentar uma mentira era ridículo, mas não nos
esqueçamos de que naquele Reino a mentira era a Rainha, por falta de uma de carne e osso. O
Imperador Dinossauro parecia viver tão intensamente as mentiras que elas, paradoxalmente,
tornavam-se reais; ao menos, todos os habitantes do Reino aceitavam e agiam de acordo com
o que ditava o Dinossauro.
Nem mesmo os habitantes da ilha escapavam da censura e da vigilância desse
Dinossauro com manias de grandeza, como podemos observar pelo trecho: ―Fugas de divisas
só trariam prejuízos a ambas as partes e por isso os indígenas deviam ser revistados quando
saíam para as compras ou para irem ao cinema.‖ (DE, p. 160)
A ilha era a segurança do Imperador de que o povo do Reino e os indígenas o
respeitariam, mesmo sendo uma farsa, uma mentira sem precedentes; ainda assim, ela
significava que o poder estava nas mãos do Dinossauro, que a ilha verdadeira, aquela da
revolta, não havia se perdido de verdade.
É sabido que o território português é formado também pela Ilha da Madeira, apelidada
por sua beleza de ―Ilha das Flores‖ e pelo arquipélago dos Açores, conjunto de nove ilhas
localizadas no extremo oeste da Europa. Talvez este seja mais um indicativo de que Cardoso
Pires falava em seu texto de Portugal e de seu povo.
84
Outro ardil utilizado pelo Imperador para enganar o povo eram as loterias, forma
eficaz de contenção do descontentamento dos mexilhões.
É fato histórico que Salazar foi chamado para a pasta das finanças com o intuito de
sanear a dívida pública portuguesa, equilibrar as contas do Governo era seu maior objetivo,
alcançado graças a muito sacrifício do povo português que viveu uma época de grandes
privações. Desde o início de sua gestão seus discursos revestiam-se da roupagem da
humildade, pois ele não escondia sua origem modesta de camponês que estudou e tornou-se
professor, doutor, e finalmente, chefe supremo da nação. No conhecido discurso realizado no
Palácio da Bolsa do Porto, em 7 de Janeiro de 1949, começou por dizer assim:
«Devo à Providência a graça de ser pobre; sem bens que valham, por muito pouco
estou preso à roda da fortuna, nem falta me fizeram nunca lugares rendosos,
riquezas, sustentações. E para ganhar, na modéstia a que me habituei e em que posso
viver, o pão de cada dia, não tenho de enredar-me na trama dos negócios ou em
comprometedoras solidariedades. Sou um homem independente.
(http://www.reocities.com/CapitolHill/lobby/6559/perfil11.html)
acessado em 14/07/2010
Esse discurso de Salazar tem sua versão paródica no texto de Cardoso Pires, quando o
Imperador ainda mestre-doutor cita: ―a conhecida história da <<Camisa do Homem Feliz>>,
que é aquela que descreve a alegria de ser-se pobre e a difícil vida dos ricos.‖ (DE, pp. 137,
138)
E inicia-se, com este discurso, sua empreitada para tentar convencer o povo de que ter
pouco é muito mais honrado do que ter muito. Esse valor é perpetuado não somente em seus
discursos, mas nas escolas, segundo o texto: ―As cartilhas escolares salpicaram-se de histórias
de muito exemplo acerca da honra da pobreza e das desgraças que acontecem fatalmente aos
ricos, no outro mundo.‖ (DE, p. 138)
Temos alguns marcadores irônicos que nos permitem ler o texto não apenas em seu
sentido literal, mas direcionando para outras possibilidades de interpretação. A intenção
sistemática de incutir no povo as virtudes da pobreza por meio da instituição escolar é um
marcador irônico, porque, além de sinalizar a intenção de manipulação desse governo
autoritário, não são mencionadas quais desgraças eram as que poderiam acontecer com o
pobre rico, perdoem-me pelo trocadilho; e além do mais, elas só aconteciam em outra vida.
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Nota-se aqui a estreita relação entre o poder político e o poder da Igreja Católica, ambos
imbuídos da mesma filosofia do sofrimento presente a ser recompensado em outra vida, e
vice-versa, o castigo dos privilégios do rico também numa vida futura.
Os mexilhões, porém, não se deixavam enganar por essa ‗conversinha mole‘, e
pensavam que pobres, efetivamente eram, mas honrados ou respeitados, jamais. A partir desse
episódio, começou a circular o famoso ditado dos mexilhões, absurdo para o Imperador,
anteriormente citado, de grande carga satírica ―<<mais vale um rico na mão que dois pobres a
voar>>‖ (DE, p. 138)
Sempre que havia oportunidade, o Dinossauro exaltava as virtudes do pobre e a
desgraça do rico. Começou pela troca de adjetivos atribuídos a certos indivíduos indesejáveis
do Reino: ―De agora em diante onde se lia pobreza devia ler-se modéstia, ditavam os dê-erres
marcando o compasso, e essa era uma das regras para o Reino andar em frente.‖ (DE, p. 133)
O próprio Dinossauro neste trecho propõe de forma explícita a ironia que deveria ser
implícita, ao dirigir a leitura do enunciado. O efeito que esse recurso causa no leitor, além de
potencializar o humor e, por conseguinte, a ironia, enfatiza o que Linda Hutcheon chama de
ironia avaliadora, aquela que julga, porque faz com que o leitor tenha uma visão negativa do
Dinossauro. A ironia avaliadora presentifica-se em todo o conto, dirigindo a leitura para as
qualidades sempre negativas do opressor Dinossauro e provocando simpatia pelo mexilhão
oprimido.
O astuto Imperador sabia manejar muito bem as palavras, a seu favor, é claro;
trocando pobreza por modéstia, alterou o conceito subjacente: pessoas que não têm o
necessário para sua própria sobrevivência, são percebidas como pessoas desprovidas de
vaidade e ambição. Com essa medida, em seu Reino, não haveria desigualdades sociais, tudo
estaria perfeitamente bem e, principalmente, todos ficariam felizes e satisfeitos.
O Dinossauro sabia que a chave do sucesso do seu reinado estava nas palavras, por
isso, até elas deveriam obedecê-lo. Sabia também que qualquer mudança ou rebelião somente
seria possível por meio delas, daí sua obsessão em persegui-las, em destruí-las, tinha
consciência de que uma linguagem coesa, comum, seria fundamental para estabelecer e
manter a sua tão sonhada ordem. A linguagem comum, à qual o Dinossauro se refere, de
comunitária logicamente não tinha nada, porque era, unilateralmente, a sua linguagem, como
ilustra a passagem irônica do texto: ―magicava um plano que pusesse o Reino a falar numa
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linguagem pura e severa, sal e estopa, uma linguagem que unisse o jovem ao velho, o rico ao
necessitado, o caneta ao militar ─ ou seja, a dos dê-erres.‖ (DE, p. 139)
Na palavra ‗magicava‘ encontra-se o desejo utópico do Imperador de conseguir uma
linguagem na qual todos se entendessem, segundo seus parâmetros, certamente. E na
interpretação metalinguística do narrador encontra-se a ironia, principalmente a julgadora,
pois ao afirmar o nobre desejo do Imperador por uma linguagem comum, as qualidades
atribuídas a esta linguagem já denunciam seu caráter irônico: ‗pura, severa, sal e estopa‘,
predicativos que não combinam com uma linguagem que se quer fazer de todos. A explicação
metalinguística ‗ou seja‘ a linguagem dos Dê-erres, julga e denuncia a verdadeira intenção,
nada nobre, de instaurar essa linguagem. Reforça a carga negativa do Imperador e seu desejo
permanente de oprimir o povo.
É sabido que Portugal passou por um período extremamente difícil durante a ditadura
salazarista, de recessão e até de miséria. O narrador de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, ao se
referir aos mexilhões, muitas vezes os chama de ‗pedintes voadores‘, referência direta às
pessoas em pobreza extrema que têm que mendigar o pão de cada dia. No texto, aparece
sempre a palavra Reino, como nos contos de fadas, num claro jogo irônico, pois é um Reino
onde impera o terror, a miséria e a opressão. O Reino é descrito de forma bastante
significativa, como se adquirisse vida com o uso da personificação: ―O Reino naquela época
tremia de frio e desconfiança. Tinha-se deslocado mais para a beira-mar, não se sabe porquê
mas calcula-se: fome. A fome vinha do interior e varria tudo para o oceano.‖ (DE, p. 128-129)
Percebemos a desolação desse Reino, assolado pela miséria, ocasionando o deslocamento para
o mar, pela necessidade dos mexilhões que não tinham para onde ir; o mar era o último
refúgio desse povo castigado.
Na tentativa de atenuar esse quadro desesperador, o recurso utilizado pelo Imperador é
a substituição da palavra ‗mendigos‘ por ‗inadaptados‘; assim, num passe de mágica, um
grave problema social é solucionado. Palavras ditas na hora certa, do modo correto, fazem
coisas inimagináveis. Desta forma, expandia-se o Reino da mentira:
O imperador encolheu os ombros e deu o problema por resolvido: quais mendigos,
inadaptados é que o cavalheiro do alto comércio queria dizer. E <<INADAPTADOS
SEMPRE EXISTIRAM E CONTINUARÃO A EXISTIR ATÉ NOS REINOS
MAIS PRÓSPEROS. DURMA EM PAZ.>> (DE, p. 141)
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A ironia, bastante contundente, revela-se também na expressão ‗durma em paz‘, ou
seja, há a negação de um fato, em seguida a desobrigação de se tomar uma atitude, e o pior, a
convicção da consciência limpa, de que não há nada a ser feito, porque o problema enfrentado
é corriqueiro e banal, nem merece atenção. Naquele Reino da mentira, tudo está sempre bem,
e o argumento principal é de que em todo lugar existem inadaptados, e ser inadaptado é uma
deficiência leve.
É interessante observar que, nos casos citados, o Imperador Dinossauro orienta a
interpretação das situações que se apresentam em seu Reino para outro sentido, um sentido
que seja conveniente para o seu governo e que sirva para seus interesses. O leitor que capta a
ironia percebe essa manipulação do Dinossauro e entende sua tentativa de enganar,
constatando que o sentido é bem outro, acaba por ter uma avaliação bastante negativa do
Imperador Dinossauro. Os mexilhões, assim com o leitor, captam a ironia, sabem dos enganos
e mentiras contados pelo Dinossauro, porém, aceitam a manipulação, pouquíssimas são as
manifestações contrárias a seu Governo. Os Dê-erres, conselheiros e outros que fazem parte
do governo, também aceitam passivamente as mudanças e mentiras do Imperador, mas, de seu
lado, pois é de seu interesse, julgam o Dinossauro de forma positiva, como um líder que sabe
sair de qualquer situação difícil.
Mesmo com a pobreza extrema que reinava no país, o povo passando fome e outras
necessidades e já sobrecarregado de encargos, o Imperador Dinossauro manejava as palavras
a seu favor, e conseguia um feito impossível, oprimir e dificultar ainda mais a vida do
mexilhão. Trocando impostos por donativos, resolvia o problema de caixa do Reino e, numa
distorção ainda maior de sentidos e valores, não deixava brechas para os mexilhões se
esquivarem, incitando o espírito patriótico de auxiliar a pátria num momento difícil, deixando
bem claro que quem não o fizesse, seria considerado inimigo dela. Como se observa no
trecho:
Impostos ou donativos? Perguntou o Imperador, insistindo na diferença. (...) Não via
inconveniente em que fossem decretados donativos que só os indivíduos de maus
sentimentos ou inimigos da pátria se recusariam a pagar. E com gente dessa nada de
contemplações. (DE, pp. 141, 142)
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Neste trecho nota-se a ironia pela maneira como a questão é colocada. A começar pela
pergunta que, democrática por natureza, tira o caráter de imposição da palavra ‗imposto‘,
trocada rapidamente por ‗donativo‘. A polidez e a naturalidade da expressão ‗não via
inconveniente em que fossem decretados donativos‘, é traída pela ironia do verbo decretar,
ordenar por meio de lei, o que não combina com donativo, doação com finalidade beneficente,
causando um paradoxo semântico. Donativos não precisariam de decretos para ser cumpridos,
deveriam ser doados espontaneamente.
As loterias também serviram como artifício para deixar o povo feliz e desviar sua
atenção dos problemas. Como era quase impossível enriquecer por meio do trabalho, a
fortuna, quando vinha, o que era raro, vinha por sorteio, e aquele povo que não tinha dinheiro
nem para seu sustento, gastava-o com jogos de azar. Um Reino que vivia da ilusão, do sonho
e da mentira.
Somente por meio da loteria é que um mexilhão poderia ascender à classe dos ricos.
Essa prática era estimulada, a esse respeito lemos: ―metade da nação vendia lotaria à outra
metade. Em conclusão: era um reino a vender o abstracto, a negociar o talvez.‖ (DE, p. 134)
Depreendemos a posição julgadora do narrador por meio da ironia; o objetivo de distrair e
elevar de forma enganosa a autoestima do povo foi atingido com as loterias, porém, na
avaliação do narrador, tal fato era algo terrível de acontecer, porque mascarava a realidade de
miséria vivenciada pelo povo que se alimentava de ilusão, da possibilidade de um lance de
sorte que, se chegasse a acontecer, contemplava uma minoria dos pobres, praticamente nada.
No entanto, era uma medida eficaz para deixar o pobre mexilhão feliz, e de quebra,
fazia também com que todos se tratassem bem: vislumbrando a esperança de enriquecer,
todos eram muitos cordiais e educados uns com os outros, porque o pobre de hoje poderia ser
o feliz rico de amanhã. Como se observa no texto: ―Não ignores o teu semelhante porque pode
estar ali o Sorte-Grande de amanhã segredava-lhes o bichinho do ouvido e só isso já era
cultivar a dignidade, o tão apreciado respeitinho que existe nas nações asseadas.‖ (DE, pp.
136, 137) Neste artifício, os mexilhões acreditavam sem pestanejar, deixavam-se envolver
pela ganância da riqueza fácil. A ironia é marcada pelo diminutivo ‗respeitinho‘ com valor
pejorativo, relegado apenas à convenção social, e da palavra ‗asseada‘, remetendo e uma
nação pobre, mas correta e esmerada; mais uma vez a questão do conformismo com relação à
pobreza, atenuado, porém, com a possibilidade remota de enriquecimento.
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Juntamente com as loterias, outra campanha foi lançada para produzir felicidade
naquele povo, chamava-se ―A Cada Rico, Seu Pobre‖. A campanha foi lançada numa
tentativa de reduzir a quantidade de pobres no Reino, cada rico ficando responsável por
alegrar a vida de um pobre infeliz, fornecendo-lhe comida e, é claro, discurso político.
A campanha foi chamada ironicamente pelo narrador de ‗Golpe de Misericórdia‘, ou
seja, aquela pancada dada de forma violenta para matar, normalmente aplicada quando uma
pessoa ou animal já está quase morto, a fim de terminar com seu sofrimento. Portanto, o nome
da campanha revela o grau de carência do povo a quem ela era destinada, revela também que
a ajuda era pequena demais diante das necessidades. Apesar de ser um conjunto de ações que
deveriam revelar o altruísmo e o desejo de ajudar do rico, as marcas irônicas e a avaliação
negativa do narrador sinalizam para outra leitura, uma leitura que vê essa ‗boa ação‘ como
mais uma enganação, como se percebe nesta passagem do texto:
Para ajudar a reduzir os pobres os ilustríssimos mais dedicados combinaram o
chamado Golpe de Misericórdia, sorteando entre si um dado número de infelizes.
Cara ou coroa, a cada um coube o seu protegido e todos os domingos, chovesse ou
fizesse sol, lá iam os benfeitores nos automóveis brasonados a caminho da santa
miséria. Cada um levava ao seu protegido sustento e boa-vontade e discurso para o
resto da semana.
ERAM INCANSÁVEIS. (DE, p. 134).
Há um evidente tom irônico nesse uso de ‗ilustríssimos‘ e ‗dedicados‘ para se referir
aos ricos, porque na verdade a leitura conduzida pelo ironista orienta o entendimento do leitor
para o contrário, uma vez que a escolha dos pobres é feita aleatoriamente por meio da sorte e
além do alimento, os benfeitores aproveitavam para fazer propaganda de si e do sistema que
representavam, sem contar da exaltação da pobreza, algo que a classe dominante da época não
se cansava de promover: a ‗santa miséria‘.
Um episódio sobre essa adoção assistencialista dos pobres ilustra de forma clara a
verdadeira motivação dos ricos, ou seja, somente cumprir um papel social e fazer com que os
pobres permanecessem miseráveis e, principalmente, calados. Nenhum rico estava
preocupado efetivamente com seus assistidos, tudo era somente fachada, aparências. Quando
um rico percebeu que se enganou de pobre, ao chegar a seu leito de morte, deu meia volta e
foi embora, porque aquele pobre não era o que ele assistia. Há uma certa ambiguidade no
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modo como avisa ao respectivo rico que o seu pobre é que estava precisando de ajuda, como
se passasse um encargo desagradável. Como podemos observar pelo trecho: ―Excelência,
disse, lamento muito mas não era o meu pobre, era o seu. <<PASSE BEM>>‖ (DE, p. 136)
O narrador expõe o absurdo e o ridículo dessa situação, na qual a carga afetiva é
grande, e somos obrigados, como interpretantes, tomando um termo de Linda Hutcheon, a
tomar uma posição, a julgar, a tomar um partido nesta paródia. Se o interpretante entende a
ironia que permeia todo o texto, ele tenderá a ver o Dinossauro e todo seu sistema de governo
como opressor e desumano.
Ainda sobre a frieza dos ricos, neste mesmo episódio, quando o benfeitor sai para
ajudar seu pobre, numa noite de inverno, há uma descrição do que acontecia no ambiente
físico e no psicológico daquele Reino, muito revelador: ―EM PLENA NOITE DE INVERNO,
gemia o frio pelas ruas e nevava nos corações, um determinado notável da Comarca, ao ser
acordado por outro notável para ir assistir já, já, ao último suspiro do protegido, tirou-se dos
seus lençóis e foi.‖ (DE, p. 135) A frieza era total tanto externa quanto interna. O frio,
humanizado (‗gemia‘), poderia ser ouvido pelas ruas, e a neve gelada sentida nos corações
petrificados.
Até a chamada ajuda humanitária era cumprida como um decreto, uma lei, que tinha
que ser executada à risca, porque os Dê-erres estavam atentos a tudo. Como os pobres eram
escolhidos por sorteio, pensavam que não se podia mudar esse princípio estabelecido pela
providência divina; no seu entendimento, Deus escolhia o pobre e o respectivo rico para
ampará-lo, e burlar esse princípio sublime seria uma heresia. Como se confirma pelo trecho:
―e ai do dê-erre que não cumprisse. O menos que se poderia dizer era que estava a atraiçoar a
vontade divina, visto que no amparo por sorteio há sempre a mão do altíssimo a comandar à
distância.‖ (DE, p. 136)
Colocando a responsabilidade da escolha na providência divina, a culpa dos
benfeitores era imediatamente extinta, pois, com esse sistema, era Deus quem escolhia, quem
e quantos pobres seriam beneficiados. Nada mais providencial para os ricos. O que está por
trás do enunciado irônico é a isenção da culpa e o não questionar. São os desígnios de Deus,
todas as coisas acontecem porque Deus permite e determina, qual mortal teria a ousadia de
questionar Suas decisões?
As Campanhas do Golpe de Misericórdia e das Loterias aconteceram antes da vinda do
Imperador Dinossauro. As loterias foram cortadas subitamente, porque daquele momento em
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diante tudo mudaria com a entrada em cena do nosso tão conhecido Dinossauro. Fato
semelhante ao que aconteceu com Portugal, que na época nomeou Salazar para sanear as
finanças do país. Na fábula de Cardoso Pires, o governo do Reino foi buscar o Imperador que
ainda viria a transformar-se em dinossauro, como podemos observar pelo trecho: ―Então,
aproveitando a surpresa, uma embaixada de casaca e risca ao meio foi num instantinho às
montanhas e trouxe de lá um imperador. Trata-se, nem mais nem menos, do camponês nosso
conhecido, o dito,‖ (DE, p. 137).
2.2.7 DINOSSAURO X IGREJA
Lembrava a aliança que sempre
havia entre a espada e o crucifixo
nos reinos da cristandade, sem
esquecer o papel dos audazes
capitães no desbravar da selva dos
infiéis. Sendo assim, militar é que
convinha. Militar, insistia, porque
servia a Cristo e ao Rei.
Cardoso Pires, 1988, pp. 113-114
Em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ há muitas alusões à Igreja Católica, estabelecendo
uma intertextualidade com a Bíblia. Questões a respeito da predestinação do Imperador
Dinossauro também são importantes no texto. O predestinado é aquele que é destinado de
antemão, fadado, eleito de Deus para ser ou realizar algo, portanto, Jesus já estava
predestinado a morrer por nós na cruz e o menino, protagonista dessa história, igualmente fora
eleito para ser o Imperador Dinossauro. Como revelam passagens do conto:
Dinossauro, criatura solitária desde o berço, estava escrito que iria subir altíssimo na
asa da compostura por cima do casebre mais pobre e do palácio mais louco e que
teria de tirar um curso que lhe desse para governar toda a gente. Leis, decidiu o
padre local, (DE, pp. 112, 113) Trabalhos. Desgraças que acontecem a quem se vê obrigado a suportar a ignorância
do próximo para cumprir um destino. (DE, p. 117)
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Conta-se, não há provas, conta-se apenas, que o rapazito que amanhã viria a ser
imperador não se mostrou muito satisfeito com a jornada, embora a tivesse escrita
no signo. (DE, p. 117)
O nosso Imperador, porém, é um Jesus às avessas, porque não veio para dar vida nem
restabelecer a paz, muito pelo contrário, pois dedicou sua vida e também deu sua vida para
oprimir e tiranizar a existência das pessoas. Por isso, o Imperador Dinossauro é a versão
paródica de Jesus.
Encontramos algumas semelhanças entre a trajetória do nosso Imperador e a de Jesus;
uma delas, por exemplo, é que os dois exerceram a função de salvador da pátria. Jesus,
conforme acreditamos, dispensa comentários, seu ato de amor salvou toda a humanidade do
pecado. Já Salazar foi escalado para restaurar as finanças de Portugal e reerguer o país, foi
considerado aquele que livrou o país da ruína total. Nosso personagem Imperador, que se
transformou em Dinossauro, também veio como uma solução para aquela pátria tão carente de
ordem.
Outra similaridade é que ambos, Imperador e Jesus, tiveram origem humilde, filhos de
gente muito pobre, ligada ao campo, como comprova o texto: ―filho de gente-ninguém ou
pouca-coisa, camponeses ao desabrigo.‖ (DE, p. 111)
No batismo do menino, futuro Imperador, observa-se a revelação de sua verdadeira
aptidão na fala do pároco, que profetiza que a criança deveria seguir a carreira das leis. O
padre compara o código das leis como sendo a bíblia dos legisladores, ressaltando a
importância dessa função.
No episódio do batismo fala-se também da força da palavra, e nós nos lembramos de
uma referência bíblica conhecida: ―No princípio era o verbo”, que exalta o poder da palavra
como criadora de todas as coisas. Nesta passagem, Deus falou e tudo se fez, por intermédio do
verbo. Portanto, o pároco fundamentou sua argumentação a favor da carreira de juiz,
justificando que é por meio de leis e decretos que tudo acontece, e leis e decretos são feitos de
palavras, e que as palavras têm o poder, por exemplo, de mandar executar todas as coisas. O
princípio de Imperador estava formado, discurso (palavra) e ordem (execução). O argumento
convenceu os pais do menino, que venderam o burro e partiram para a cidade dos doutores.
A aliança entre a Igreja e o Exército fica por conta da opinião do regedor, que
palpitava que o menino nascera para ser militar, segundo o texto: ―Tinha futurado para a
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criança um ofício em que o divino e o profano se servissem de mãos dadas. Militar.‖ (DE, p.
113)
O narrador revela-se também irônico porque apresenta uma contradição, o divino
jamais poderia andar em concordância com o profano. Percebemos a ironia com que o
narrador se dirige à Igreja, criticando a hipocrisia que reina nesta instituição e também a forte
influência que ela exerce sobre os governos, acabando também por se deixar influenciar por
eles. Como notamos em outra passagem do texto: ―Lembrava a aliança que sempre tinha
havido entre a espada e o crucifixo nos reinos da cristandade,‖ (DE, p. 113, 114) A palavra
‗sempre‘, referindo-se à aliança entre as instituições, denota que a parceria é antiga e
permanente.
A Igreja genuína deveria estabelecer apenas uma aliança com Deus e executar seus
desígnios, tudo o mais são interesses pessoais e não deveriam ser considerados. Mas,
interpretando a ironia, chegamos à conclusão de que a Igreja serve aos interesses do Estado e
este aos da Igreja, numa relação de ajuda mútua que, na verdade, esconde interesses e
vantagens individuais.
A questão acerca do nome da criança que viria a ser Imperador também é levantada.
Não há um nome específico para esse opressor, então, o narrador cogita nomes de outras
figuras perversas da história, que poderiam servir de inspiração para o nome de batismo do
menino. Vejamos o trecho: ―Nomes são safiras ao preço da água-benta, é só mergulhar e
escolher e Maximino ou Fulgêncio, Teobaldo ou Adolfo, Adolfo Hirto, Benito Bendito ou
Sebastião Desejado, embora nomes para fazer destino, naquela altura ainda não davam nas
vistas.‖ (DE, pp. 111, 112)
Podemos ver que os nomes são muito significativos, Adolfo Hirto é o anagrama de
Adolf Hitler, protagonista de uma das páginas mais tristes da história ocidental, a do massacre
do povo judeu pelo nazismo alemão. Maximino foi um Imperador romano de origem bárbara
que padecia de gigantismo, chegou a medir 2,59m. Fulgêncio Batista foi ditador em Cuba
entre 1933 a 1944; deposto por Fidel Castro, exilou-se em Portugal e depois em Espanha. E o
fascista italiano ―Benito‖ Mussolini é a antífrase de qualquer santo que se possa chamar de
bendito, porque foi um ditador dos mais cruéis que instaurou um regime militar na Itália por
volta de 1922 com a famosa marcha sobre Roma, protesto que culminaria com um golpe
militar e consequente estabelecimento do fascismo naquele país. Há ainda a menção a Dom
Sebastião, referindo-se à corrente sebastianista, recuperada pelo poeta português Fernando
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Pessoa no poema Mensagem; Dom Sebastião, o desejado, aquele que viria devolver ao povo
português seu passado de glórias, fazer daquela nação o Quinto Império espiritual.
Portanto, o que o narrador nos diz, através de sua ironia, é que não importava se àquele
menino fossem atribuídos nomes de pessoas virtuosas ou perversas, seu destino já estava
determinado, não era o nome que iria mudá-lo. Mais adiante, porém, admite, com ironia e
humor satíricos, que o mal já fazia parte daquele menino, já quase se via, porque já o era, o
Imperador Dinossauro:
este pequeno cristão era dos tais que nascem à flor do maldivino e, com tal, nome, se
o teve, deixou-o na pedra do baptismo porque quando o mundo deu pela sua pessoa
já ele tinha o corpo e a idade da morte e só respondia por
IMPERADOR
Dinossauro Um, Imperador e Mestre. (DE, p. 112)
Em nenhum momento da narrativa o narrador dá um nome ao menino, nem mais
adiante ao Imperador, talvez porque todos nós sabemos que se trata de Salazar, e quem sabe
para deixar clara a importância que aquele Reino dava aos títulos, principalmente de nobreza
e titulação acadêmica, ou seja, a valorização de um aspecto social de aparência e privilégio de
poucos, em detrimento da essência dos seres humanos.
Outra semelhança entre a história do nosso candidato a Imperador e a história de Jesus
é que eles tiveram que fugir. Jesus teve de fugir para o Egito com seus pais, porque o Rei
Herodes queria matá-lo, uma vez que ele era o Rei dos cristãos. A passagem aparece neste
excerto: (Mateus 2.13-15):
¹³Tendo eles partido, eis que apareceu um anjo do Senhor a José, em sonho, e disse:
Dispõe-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egito e permanece lá até que eu te
avise; por que Herodes há de procurar o menino para o matar. 14
Dispondo-se ele, tomou de noite o menino e sua mãe e partiu para o Egito; 15
e lá ficou até à morte de Herodes, para que se cumprisse o que fora dito pelo
Senhor, por intermédio do profeta: Do Egito chamei o meu filho. (BÍBLIA,
1996)
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Nosso futuro Imperador também saiu às pressas de sua aldeia, sem que ninguém
soubesse, rumo à cidade dos doutores, para fazer o curso de Imperador. Principalmente sua
mãe temia que os habitantes da cidade viessem atrás da família, por desaprovarem o ato:
Por estas e por outras, os pais do mocinho venderam o burro e o quintal e com o
dinheiro apurado levaram-no para uma universidade que ficava no alto duma
montanha,
ENTRE NUVENS.
[...]
Mas como diz o outro, o amor dos pais só dá meças ao perdão e um belo dia os dois
camponeses, apanhando a aldeia a dormir a sesta, pisgaram-se com o filho na
camioneta da carreira. (DE, pp. 116- 117
Volta não volta, a mãe estremecia debruçava-se à janela, receosa de ver levantar-se
no horizonte um enxame de camponeses a galope de burros poeirentos. Esperava-os
a todo o instante, disparados pelos montes abaixo, catapum, catapum, de punho no ar
e aos uivos: Avante, avante, contra a família desertora. (DE, p. 119)
Há outra passagem bíblica que podemos comparar com essa empreitada do menino
Imperador. Na época de Jesus, era costume os judeus levarem os meninos ao Templo de
Jerusalém, por volta dos 11 ou 12 anos, onde eram apresentados e recebidos pela comunidade
judaica. Os pais de Jesus seguiram essa tradição, e diz a história que quando Jesus esteve no
templo, conversou com os doutores da lei, ouvindo-os e interrogando-os, demonstrando
grande sabedoria, o que deixou a todos maravilhados. Podemos ler essa passagem em (Lucas
2. 41-52):
41Ora, anualmente iam seus pais a Jerusalém, para a Festa da Páscoa.
42Quando ele atingiu os doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume da festa.
43Terminados os dias da festa, ao regressarem, permaneceu o menino Jesus em
Jerusalém, sem que seus pais o soubessem. 44
Pensando, porém, estar ele entre os companheiros de viagem, foram caminho de
um dia e, então, passaram a procurá-lo entre os parentes e os conhecidos; 45
e, não o tendo encontrado, voltaram a Jerusalém à sua procura. 46
Três dias depois, o acharam no templo, assentado no meio dos doutores, ouvindo-
os e interrogando-os. 47
E todos os que o ouviram muito se admiravam da sua inteligência e das suas
respostas. 48
Logo que seus pais o viram, ficaram maravilhados; e sua mãe lhe disse: Filho, por
que fizeste assim conosco? Teu pai e eu, aflitos, estamos à tua procura. 49
Ele lhes respondeu: Por que me procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na
casa de meu Pai?
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50Não compreenderam, porém, as palavras que lhes dissera.
51E desceu com eles para Nazaré; e era-lhes submisso. Sua mãe, porém, guardava
todas estas coisas no coração. 52
E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens.
(BÍBLIA, 1996)
É possível comparar essa passagem bíblica com a chegada do nosso Imperador à
Cidade dos Doutores que também eram os representantes do saber e receberam o menino,
candidato a Imperador, na Universidade dos Doutores, espécie de templo moderno da
sabedoria:
Sempre no denso, trepando a brancura, a marcha agora era cega e por passagens
desesperadas. De repente, céu aberto ─ e deram de caras com um grande mosteiro
ou coisa assim, pousado nas nuvens. Mosteiro, tinha todo o ar disso. Lá estava a
torre, o sino; lá estavam os claustros de pedra, fria paz da eternidade. Mosteiro, diria
qualquer um. Mas o rapaz não se deixou iludir: tinha chegado à Universidade dos
Doutores.
Os mestres receberam-no com dureza
<<QUEM É ESTE?>>
pareciam perguntar, pairando em sombrio cadeirões. Somente não se lhes ouvia a
mínima palavra e nem era de esperar que se ouvisse porque aqueles mestres estavam
no alto. Não diziam senão o que vinha dito nos livros antigos e nunca se dignavam
nomear pessoas que não tivessem sido nomeadas pelos mestres, seus defuntos ─ e
com o devido respeito. (DE, pp. 126-127)
Na página 121 de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, encontramos uma ‗nota‘ do narrador,
um elemento transtextual, onde se questiona se a história registraria o burro como sendo o
animal que levaria nosso Imperador e sua família ao templo dos doutores. A passagem é a
seguinte: ―(Nota: Seria realmente de burro que os cronistas descreveriam a subida ao templo
dos doutores. O filho e a mãe em cima da albarda, o pai à frente abrindo caminho com um
ramo de esteva em flor).‖ (DE, p. 121)
A ironia que se coloca aqui é com relação à palavra ‗burro‘, por não ser um animal
nobre, sinaliza pobreza ou humildade do indivíduo que utiliza esse meio de transporte. O
burro é um animal muito desvalorizado em nossa cultura atual, e pode adquirir outro sentido,
o do indivíduo desprovido de inteligência, estúpido, asno; nas duas acepções, o sentido é
pejorativo e impróprio para um Imperador, principalmente o nosso, com aspirações
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megalomaníacas; daí a dúvida do narrador com relação ao registro dos historiadores, dúvida
que marca também sua ironia. Certamente que se o Imperador estivesse montado em um
cavalo de raça ficaria bem mais elegante.
O episódio do burro é, ainda, a versão paródica da passagem bíblica que narra a
entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Essa foi a última semana da vida de Jesus e de seu
ministério terreno. Ele entrou em Jerusalém montado em um jumentinho e foi aclamado por
uma multidão que, com ramos de palmeiras nas mãos, dava glórias ao Rei de Israel, enviado
por Deus.
Diferentemente de Jesus, que escolheu o burro ou jumento em virtude de seu caráter
humilde e para mostrar que, apesar de ser o filho do próprio Deus, cultivava a modéstia e a
simplicidade, nosso Imperador desejava ir de burro por falta de opção ou para parecer
humilde como Jesus, mas sabemos que de modesto ele não tinha nada. Mas essa cena é a
inversão paródica do episódio bíblico que se comemora até hoje no Domingo de Ramos, que
antecede a comemoração da Páscoa cristã.
Na cidade dos doutores havia muitos padres, o narrador fala que havia montes deles, é
bastante irônico e satírico o comentário acerca dos inúmeros e diversificados padres na cidade
dos doutores. Havia padres para todos os gostos e para todas as ocasiões. Nesta cidade, além
da superpopulação de padres, havia doutores e candidatos a doutores, todos representantes do
sexo masculino; curiosamente, o que faltava efetivamente eram exemplares femininos, talvez
pelo celibato dos padres ou pelas horas de estudo que os doutores eram obrigados a realizar.
Fato é que mulheres eram raridade naquela cidade, o que, além de dar um ar de tristeza ao
lugar, ainda limitava as opções de diversão. Observemos o texto: ―E padres, sobretudo. Padres
e mais padres, o que ali ia de padres só contado. (...) Levantara-se uma pedra saltava um,
acendia-se uma luz voava outro e logo outro e outro e mais outro, padres a dar com um pau.
Pareciam gatos a espirrar das sombras.‖ (DE, p. 121)
A fala dos padres também se revela irônica, pois sendo propagadores do evangelho de
Deus na Terra, deveriam ter um discurso dominado pela esperança; entretanto a música que
saía de seus lábios, segundo o texto, contrariava sua função de anunciantes das boas novas:
―<<MISERERE... MISERERE...>>‖ (DE, p. 122) A ladainha ou refrão dos padres é um tipo
de ironia contrastiva, porque inverte os valores e acaba sendo também uma ironia avaliadora,
pois leva o interpretante irônico a ter uma ideia negativa a respeito dos padres e de sua
atuação como religiosos. A crítica do narrador coloca-os como praticantes de uma profissão
98
como outra qualquer e, por isso mesmo, participando igualmente das misérias do povo, tanto
materiais como espirituais.
Quando o menino, futuro Imperador, e seus pais chegam à cidade dos doutores, além
dos inúmeros padres que encontram, deparam-se também com uma intensa movimentação
comercial. Naquela cidade, todos, mesmo os sem títulos, eram chamados de doutores, e para
ilustrar nossa afirmação, reproduzimos a passagem do texto: ―<<DOUTORES: VENHAM
CÁ, DOUTORES!>> que não percebiam que se estavam a dirigir a uma trindade de
camponeses em romagem, pai, mãe e filho secreto.‖ (DE, p. 124)
As palavras ‗trindade‘ e ‗romagem‘ nos fazem estabelecer relações, mais uma vez,
com o discurso religioso. A palavra trindade não aparece na bíblia, mas para o cristão, as três
pessoas que compõem a trindade santa são: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, são os três seres
que constituem Deus; se quisermos ler a esse respeito, podemos consultar a Bíblia em
(Mateus 28:19, ou 2ª Coríntios 13:13): ―19
Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações,
batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo‖ / ―13
A graça do Senhor Jesus
Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós.‖ (BÍBLIA,
1996).
Romagem é sinônimo de peregrinação ou romaria a lugares santos, onde acontece
reunião de devotos, práticas próprias do universo cristão. Ao referir-se a nosso Imperador e
sua família como uma ‗trindade em romagem‘ o narrador ironicamente junta o divino e o
maligno, porque essa trindade não veio para libertar, veio para oprimir. Mas já sabemos, pelas
tantas marcas irônicas presentes no texto, que essa trindade santa é falsa, é uma imitação
paródica da verdadeira.
Mais uma referência ao cristianismo encontra-se na página 125, leia-se: ―Andou,
andou, até que foi dar a um largozinho recatado onde o esperava um enorme crucifixo. Aí,
pausa: primeira estação. Ajoelhou como era seu dever, pedindo muitos triunfos para o estudo,
memória e disciplina.‖ (DE, p. 125)
O gigantesco crucifixo nos faz pensar na cruz que Jesus carregou até o Calvário e nas
estações da ―Via Crucis‖. O trajeto da cruz seguido por Jesus Cristo carregando uma cruz, vai
do Pretório até o Calvário, onde Jesus foi crucificado. São 14 as estações da ‗via crucis‘, a
saber:
1ª estação – Jesus é condenado à morte.
2ª estação – Jesus carrega a sua cruz.
99
3ª estação – Jesus cai pela primeira vez.
3ª estação – Jesus encontra Maria, sua mãe.
4ª estação – Jesus recebe ajuda de Simão Cirineu para carregar a cruz.
5ª estação – Verônica enxuga a face de Jesus.
6ª estação – Jesus cai pela segunda vez.
7ª estação – Jesus fala às mulheres de Jerusalém.
8ª estação – Jesus cai pela terceira vez.
9ª estação – Jesus é despojado de suas vestes.
10ª estação – Jesus é pregado na cruz.
11ª estação – Jesus morre na cruz.
12ª estação – Jesus é retirado da cruz.
13ª estação – Jesus é sepultado.
14ª estação – A ressurreição.
A primeira estação pela qual passou o futuro Imperador é a versão paródica dos passos
de Jesus em direção ao seu Calvário. É irônico porque um assunto tão sério, a base da fé
cristã, é tratado de forma banal. O pedido do Imperador não é nada altruísta, consiste em êxito
e sucesso para si mesmo, ao contrário de Jesus que morreu por amor a toda a humanidade.
De igual modo acontece na menção à segunda estação: ―Fez sinal aos pais para que
não se assustassem, avançou um passo, e humildemente baixou a cabeça. Raparam-lha.
Segunda estação.‖ (DE, p. 126) O menino parecia saber o que tinha que fazer, tudo pelo que
havia de passar para tornar-se Imperador; como Jesus, era esse seu destino, por isso
demonstrava segurança e humildade calculadas.
O ato de raspar a cabeça está ligado a rituais de iniciação, remete aos ritos iniciais de
alguma sagração ou acontecimento simbólico; no caso do nosso Imperador, sua entrada na
Universidade dos Doutores. Também significa ascensão de um nível de existência para outro
nível superior, deixando para trás o passado sem valor.
Mais uma referência à trindade bíblica e ao verbo também no sentido bíblico, acontece
na página 163, da seguinte maneira: ―Seguia-se com o ouvido diurno e nocturno, com o ar do
Mestre que segue o Discípulo e o Discípulo continha o Mestre e o Mestre estava no Discípulo
e eram uma única e só pessoa representada pelo Verbo, com letra grande.‖ (DE, p. 163)
Como o Imperador foi perdendo o contato, primeiro com o povo, depois com os
conselheiros do governo e fechou-se para todo tipo de contato social; assim, falava consigo
100
mesmo, fazia discursos para ele mesmo, numa demonstração de total egocentrismo. Esta
passagem do texto ilustra bem o ostracismo no qual caiu o Imperador, e revela mais, declara
que, num desdobramento metafórico, dentro do Imperador existiam o Mestre e o Discípulo,
duas pessoas em uma, mediadas pelo Verbo com letra maiúscula. Segundo o cristianismo, há
uma Trindade Santa composta por Deus, Jesus e o Espírito Santo, todos num só Deus, é o
mistério maior do Cristianismo, o Deus trino. De semelhante modo, em nosso Imperador há
uma espécie de Dualidade Santa, representada pelo Mestre e pelo Discípulo; esse fato reforça,
mais uma vez, os delírios de grandeza do Imperador, que na escala de comparação hierárquica
só poderia se equiparar com a mais alta, ou seja, com o ser divino.
Também são significativas as atribuições de Mestres e Discípulos, porque na Bíblia
Jesus é chamado sempre de Mestre, aquele que ensina e traz as boas novas e os Discípulos
são, além dos doze mais próximos de Jesus, também chamados de Apóstolos, aqueles que
aprendem com o Mestre.
O verbo remete às palavras, as vilãs dessa história, as mais subversivas e traiçoeiras de
todas as personagens. Isto pode ser também considerado um intertexto bíblico, está no
evangelho de João 1:1 ―No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
Deus.‖ (BÍBLIA, 2006)
Uma menção ao Juízo final encontra-se no trecho: ―O mais estranho é que revelava
uma memória poderosa e, mais que isso, uma memória de Juízo Final, pois só se referia a
falecidos ou a gente desaparecida. E Fulano?, perguntava. E Sicrano?‖ (DE, pp. 192, 193)
O Juízo Final acontecerá, segundo os cristãos, com a segunda vinda de Jesus, para
julgar os vivos e os mortos, daí a alusão do narrador a essa profecia bíblica: fixava-se o
Imperador na memória do Juízo Final porque se lembrava de pessoas já falecidas. Nesta
época, o acidente que deixou o Imperador quase morto já havia acontecido e o Dinossauro,
num faz-de-conta nada mágico, achava que ainda governava seu Reino, mesmo de mentirinha
e a despeito de sua loucura.
A décima quarta estação da ‗via crucis‘ que é a ressurreição de Jesus, acontece no
conto de forma paródica, não por milagre divino, como se dá com Jesus, mas por obra dos
mais renomados médicos, cirurgiões plásticos e até curandeiros que havia no Reino. Esses
obstinados profissionais trabalharam sem cessar por um longo período de tempo para que o
Imperador voltasse à vida e também para que sua aparência permanecesse igual. Tanto
empenho foi recompensado porque o Dinossauro, dado como morto, foi literalmente
101
reconstruído pelos doutores e ressuscitou, como observamos pela passagem:
―<<RESSUSCITOU!>> bradaram os frades na capela do palácio.‖ (DE, p. 187)
Sabemos, de acordo com a fé cristã, que somente Jesus, em toda a história da
humanidade, morreu e voltou à vida, mas esse feito conseguiu-o também o nosso Imperador
Dinossauro, e essa morte foi chamada de Morte Primeira, porque houve a segunda, esta então,
definitiva.
Essa retomada paródica por meio do resgate da cultura e das tradições populares é,
segundo Linda Hutcheon, muito próprio do texto moderno: ―Além de serem indagações
―fronteiriças‖, a maioria desses textos pós-modernistas contraditórios também é
especialmente paródica em sua relação intertextual com as tradições e as convenções dos
gêneros envolvidos‖. (HUTTCHEON, 1991, p. 28)
2.2.8 DINOSSAURO MORTE PRIMEIRA / MORTE SEGUNDA
Então é que ele deu a última volta à
chave que o separa dos vivalmas,
foi então.
Cardoso Pires, 1988, p. 180
A primeira morte do Imperador Dinossauro aconteceu em seu gabinete em virtude de
uma queda que o deixou praticamente morto. Na verdade, seu processo de separação da vida
havia começado bem antes, quando resolvera viver recluso e isolado e a cada dia perdia mais
as feições humanas e se animalizava. O início do capítulo intitulado: ―Dinossauro, morte
primeira‖, começa assim: ―Então é que ele deu a última volta à chave que o separava dos
vivalmas, foi então.‖ (DE, p. 180)
Entre as inúmeras chaves desse Reino, cheio de segredos guardados, nosso Imperador
cortou definitivamente qualquer vínculo ou semelhança que ainda possuía com o humano.
Inclusive a capacidade, especificamente humana, que é a de usar a linguagem para se
comunicar, porque diz o texto que foi perdendo até as palavras dos discursos.
102
Falava com dificuldade, porque as palavras não o obedeciam, a ele que estudou tanto
para dominá-las e manipulá-las, e também não podia ouvir, porque estava surdo; ele que só
ouvia a si mesmo, nem desse prazer podia desfrutar agora. Culpava o ouvido pelo defeito, a
memória também e a infidelidade das máquinas, que não cumpriam seu papel e tentavam
desorientá-lo.
As ações praticadas pelo Imperador Dinossauro a partir desse momento são puramente
as de uma fera que urra, que fica possessa, na qual não cabe mais nenhum traço de
racionalidade. A descrição do Dinossauro preso à mesa do gabinete é extremamente grotesca,
caracterizando a sátira: ―Amarrado à secretária, a escorrer baba esquecida. Fedendo de sujo. À
deriva, entre a sonolência e o desespero.‖ (DE, p. 181) Percebemos aqui a ironia observável a
que Muecke se refere, aquela visível por meio da cena visualizada.
Era um completo animal que, além de irracional, apresentava-se senil e insano. O
narrador descreve o Imperador Dinossauro sempre ressaltando suas características grotescas, a
começar pela ausência do nome, somente aparece o cargo ostensivo de Imperador, seguido
pelo adjetivo que o qualifica: Dinossauro, com letra maiúscula. As características
animalizadas do Dinossauro vão se intensificando no decorrer da narrativa, tornando-se mais
grotescas, mais horrendas, mais tenebrosas. Essa ridicularização do alvo da crítica satírica
pela sua deformação, acaba dirigindo o julgamento do interpretante para avaliar o Dinossauro
de forma extremante negativa, digno de zombaria e de escárnio.
Como o Imperador Dinossauro não podia ouvir, ligava os aparelhos de alto-falantes no
volume máximo. O narrador, ironicamente, constrói um neologismo para nos dar a dimensão
do som proferido pelo Dinossauro, inventa a palavra ‗altissimofalante‘ e explica num
paradoxo o inferno que virou aquele Reino: ‗a surdez do Dinossauro podia ser ouvida‘.
E como o Mestre é quem dá o tom dos trabalhos, todos os conselheiros viviam a gritar,
comunicando-se também por meio de sinais, algo grotesco, uma regressão à barbárie, a
animalização do ser humano.
Com a primeira morte do Dinossauro, pelo menos dois problemas se instauraram: o
primeiro era quem iria governar o Reino; o segundo dizia respeito à desconfiança dos
mexilhões quando vissem o Imperador morto, muito diferente das fotografias dos jornais, da
TV, das estátuas; certamente iriam desconfiar de que não se tratava da mesma pessoa, fato
que poderia ocasionar uma revolução popular.
103
Assim, a preocupação, principalmente do Guarda-Mor, era a de que o Imperador
ficasse, acima de tudo, igual ao retrato, para passar uma imagem de unidade, de algo que não
muda, nem com o passar do tempo. Diz o conto: ―ninguém lhe garantia a ele, Guarda-Mor,
que essa gente boa e ingênua não desconfiasse que iam sepultar um desconhecido em vez do
seu amado protector.‖ (DE, p. 185)
É extremamente irônica esta frase porque os mexilhões poderiam ser bons mas bobos
certamente não eram, e ‗amado protetor‘ era uma denominação que jamais nenhum mexilhão
atribuiria ao Imperador Dinossauro; temido sim, e protetor dos direitos próprios talvez.
Portanto, a fala do Guarda-Mor deve ser interpretada de forma inversa do seu enunciado; onde
lia-se amado, leia-se detestado; onde lia-se protetor, leia-se opressor.
A intenção de perpetuar a imagem do Dinossauro, de estagná-la num rosto imutável,
em que a ação do tempo não deixa marcas, era compartilhada não só pelo Guarda-Mor, como
também pelos Conselheiros e demais autoridades daquele Reino. A imutabilidade e a rigidez
estavam tão presentes no Reino do Dinossauro que ditavam a forma de governar e moldavam
a própria face do ditador, que literalmente permanecia a mesma, a despeito do tempo. E como
num conto de fadas às avessas, a imagem do Imperador Dinossauro não envelhecia,
alcançando o sonho de quase toda a humanidade, a imortalidade ou juventude eterna.
As cenas dos médicos trabalhando no cadáver do Dinossauro são, ao mesmo tempo,
ridículas e grotescas. Os médicos ‗formigavam‘ em cima do corpo e havia muitas ‗moscas‘,
sinal de que algo muito malcheiroso e apodrecido as atraía. Diz o texto que os médicos
reconstruíram o Dinossauro, trabalharam 100 dias e 100 noites, no centésimo dia houve uma
pausa, mas nada de o Dinossauro se recuperar, então, mais 100 dias e outros 100 e então
ocorre o milagre da ressurreição.
Como Deus descansou ao sétimo dia da construção do mundo, os médicos fizeram o
mesmo na versão paródica da criação, porque a tarefa não era fácil. A palavra que o narrador
usa é ‗ressuscitou‘, pois é o que aconteceu: quando todo o Reino, inclusive os conselheiros, já
se preparava para o funeral do Dinossauro, ele voltou à vida, causando um sério problema,
porque outro governante já assumira o poder.
Como falamos de um Reino fictício, de faz-de-conta, onde a mentira é o discurso de
cada dia, com medo da reação do Dinossauro, todos resolveram fingir que nada havia
acontecido e que o Dinossauro ainda era Imperador. Assim diz o texto: ―Tudo em faz de
conta, numa palavra.‖ (DE, p. 189)
104
Os conselheiros estavam divididos entre ‗Reino do Dinossauro‘ e ‗Reino Real‘. Como
acontece com quem muito mente, um dia não sabiam mais distinguir entre o que era falso e o
que era verdadeiro, começaram a confundir os dois Reinos: ―Os a-fingir movimentavam-se
numa zona confusa, e tão turvada pelo mistério das suas pessoas que, hoje Reino do
Dinossauro, amanhã Reino Real, acabaram por não distinguir.‖ (DE, p. 191)
O Dinossauro continuou a governar de mentirinha, as reuniões governamentais eram
ridículas, em virtude tanto da saúde decrépita do Imperador como também por culpa dos
conselheiros que acabaram por se confundirem pelas mentiras. A situação foi ficando
insustentável, pois, a bem da verdade, o Imperador já estava nas garras da morte, talvez
apenas, por conta de tanto mentir, pensava que estivesse vivo. Como evidencia o narrador: ―E
então nesse vulto carregado de tempestade os velhos encontraram um rosto liso, de cera, e
perceberam que tudo nele, pele e cabelo, tinha as tintas dos mortos de museu.‖ (DE, p. 192)
A morte chegou para o Dinossauro muito tempo depois, diz o narrador: ―Dinossauro,
pax perpetua, Deis irae, faleceu com suores de santidade na hora mais alta do século, ano da
Comemoração.‖ (DE, p. 193)
A ironia consiste na antítese entre a paz e a ira, a paz viria não somente para o
Dinossauro, mas principalmente, para o povo oprimido descansar dos dias de cólera sofridos
naquele Reino. ‗Deis irae‘ pode fazer referência também ao dia do ‗Julgamento Final‘, destino
de todo ser humano, segundo a fé cristã, ser julgado por Deus após a morte. Pelos indicadores
irônicos textuais, porém, percebemos que a paz eterna ficou comprometida pelos dias de ira
vivenciados pelo Imperador.
Também a expressão ‗suores de santidade‘ é totalmente irônica: o adjetivo ―santidade‖
não se encaixa, de forma alguma, no retrato que o interpretante vem montando do Imperador,
fornecido pelos dados do narrador, ao longo da narrativa. Do mesmo modo, a referência ao
ano da Comemoração não é específica, mas irônica, porque o que se comemora,
provavelmente, é a morte do monstro, ou seja, do Dinossauro.
O medo do Guarda-Mor confirma-se, mas ao contrário; a desconfiança dos mexilhões
se estabelece exatamente porque acham o Imperador muito igual ao retrato e perguntam-se
como poderia não ter envelhecido? A esse respeito diz o texto: ―Os mexilhões comuns quando
o foram espreitar à urna de cristal abanaram a cabeça: acharam-no demasiado igual ao retrato
para ser verdade.‖ (DE, p. 193)
105
Ninguém conseguia convencer os mexilhões de que aquele corpo que estavam velando
era do Dinossauro, achavam que haviam trocado o Imperador, que aquilo que viam só podia
ser uma máscara, um disfarce, jamais um ancião de séculos. Não se conformavam, estavam
tão acostumados com a mentira que mal reconheciam a verdade, e vindo da parte de quem
vinha, ficava difícil de acreditar. Os mexilhões já haviam sido tão enganados pelos
governantes, havia tantos mistérios naquele Reino de faz-de-conta, que se calaram mais uma
vez.
Certeza, os mexilhões tinham somente uma, a de que se realmente havia morrido
aquele Dinossauro, logo haveria outro para substituí-lo: ―<<ANDA LÁ DENTRO, É ESTE>>
passando a palavra a quem viesse depois, e daí a outros depois, e aos depois e mais depois
e...‖ (DE, p. 196) e assim sucessivamente.
2.2.9 ESTÁTUA
Nenhuma das estátuas do
Imperador espalhadas na
imensidão da selva e das capitanias
tinha resistido à vingança dos
rebeldes, só aquela.
Cardoso Pires, 1988, p. 145
Uma estátua é uma obra criada para fazer uma representação. Os santos e anjos
católicos são representados por estátuas, são imagens divinizadas.
Representar um corpo em forma de estátua, como fizeram no conto, com a figura do
Imperador, é perpetuar sua imagem e consequentemente seu governo e poder. A estátua
impõe respeito e fica para sempre, porque é feita de material resistente. Segundo o conto, as
estátuas do Imperador foram espalhadas por toda parte, inclusive nas Colônias africanas. Era
uma maneira de tornar o Imperador presente mesmo estando ausente, sua representação estava
lá, imponente, a despertar respeito e medo nos súditos daquele Reino.
A estátua acaba por constituir-se a única amizade verdadeira do Imperador, exerce a
dupla função de manter o poder do Imperador junto a seus súditos e ainda faz as vezes de um
106
amigo fiel e confidente. No capítulo intitulado ―A estátua‖, observarmos que esse amigo do
Imperador começa por selecionar as pessoas que vão conversar com o Ditador; sua posição
estratégica, instalado na antessala do gabinete do Governo, permite-lhe fazer essa seleção.
É curiosa a explicação de como essa estátua foi encontrada: essa estátua, espécie de
secretário, amigo, confidente, discípulo do Imperador, fora encontrada numa colônia africana,
toda envolta em trepadeiras e por cima dela havia lacraus e excrementos de morcegos,
faltando-lhe ainda um braço, o direito.
Os soldados do Reino, em debandada, depararam-se com ela, e o magnetismo de sua
presença era tão intenso que não conseguiram deixá-la para trás, nem o braço que lhe faltava,
procuraram-no e o acharam. Leiamos o trecho:
Nenhum deles, retirantes em desordem, pôde resistir a uma tão súbita presença e
principalmente à soberania que comandava aquela figura de bronze, apesar de já
amarrada de pés e mãos pelas ervas trepadeiras, apesar dos lacraus que se passeavam
por cima dela e da merda dos morcegos. Apesar de, como notaram com estranheza,
lhe ter sido arrancado um braço e, param mais, o direito ─ repararam a seguir ─ o da
mão que assinava as sentenças. Aí perceberam
A LIÇÃO DA VINGANÇA.
Aquele sinal de punição aparecia como um aviso, uma profanação calculada, na
serenidade de um corpo que a morte tinha em seu poder. (DE, pp. 145, 146)
É grotesca a descrição da estátua desse Imperador tão imponente, naquelas
circunstâncias degradantes, a utilização do substantivo ‗merda‘, bastante vulgar, de cunho
escatológico, confere ao texto um tom agressivamente satírico. A estátua desse Imperador
Dinossauro estava, afinal de contas, no lugar apropriado para ela, ou seja, abandonada em
meio a dejetos.
Grotesca também é a falta de um braço, observa-se a questão de deformação, própria
da narrativa satírica. Por se tratar do braço direito, aquele que escreve os decretos e assina as
leis, a deformidade torna-se mais grave, além de ser também o braço que faz o sinal da cruz;
os soldados pensaram logo que fosse vingança dos nativos contra o Imperador. Ainda mais, as
condições nas quais encontraram o braço agravam a maldosa sátira do narrador; estava ele
estrategicamente enfiado numa fenda à beira-mar, não conseguiram saber ao certo se aquele
gesto significava um adeus ou uma chacota do inimigo. Fato é que não conseguiram fugir sem
ele, porque parecia acenar para eles ordenando que o pegassem: ―O braço foram encontrá-lo,
107
parece, espetado numa falésia como um adeus (ou como uma gargalhada do inimigo,
pensaram alguns) quando estavam já à vista do mar com milhares de selvagens às canelas‖
(DE, p. 147)
Então, numa tentativa de reconstrução da estátua, fundiram o braço faltante com o
material e os equipamentos de que dispunham, o resultado tornou a estátua mais estranha
ainda, como lemos no texto: ―A bordo soldaram-no (o braço) ao resto do corpo com pedaços
fundidos das inúteis bocas de fogo (...) não se pode dizer que tenham feito obra asseada, pois
enganaram-se nos cálculos da liga e quando deram pela coisa nada a fazer: o braço tinha
ficado maior do que o outro.‖ (DE, p. 147)
Portanto, se antes a estátua era ridícula e grotesca sem braço, continuou medonha com
aquele braço disforme colado a ela: ―Era um tanto ridículo com aquele braço da palavra
escrita e do sinal da cruz a sair como um enxerto, como uma veemência desmesurada. Mas
não importava, isto só a tornava mais arcaica e mais terrível.‖ (DE, p. 148)
Ironicamente, o que seria um demérito para a imagem do Imperador, o braço colado de
forma grosseira, acabou contribuindo para reforçar sua fama de arcaico, antiquado e opressor,
fazendo com que fosse temido e obedecido ainda mais.
Nota-se que há uma deformação generalizada da figura do Imperador Dinossauro,
tanto que até sua estátua é deturpada e ridicularizada. Percebemos a ironia observável na
figura da estátua cuja forma foi alterada para combinar com a deformidade de quem serviu de
inspiração para ela. O Imperador, que no decorrer da narrativa vai adquirindo mais e mais as
feições de dinossauro, ao final dela já está metamorfoseado no réptil pré-histórico e até sua
estátua sofre as deformações, para representar de maneira mais real a figura grotesca do
Imperador Dinossauro.
E mais, a estátua igualmente havia adquirido as características desprezíveis do ser que
representava, e, semelhantemente a ele, já carregava consigo as feições da morte. Como lemos
no conto:
E a morte, no parecer de um dos capelães da expedição, protegera a imagem
mutilada revestindo-a de um sal verde, de floresta, vómito ou fel de bronze, que a
tornava mais antiga e com manchas que faziam lembrar as chagas dos cadáveres
sagrados. E além da mortalha de azebre havia um perfume funerário de sândalo e de
hibisco a flutuar sobre o corpo e era um incenso, onda ou qualquer coisa muito
nobre que (cf. Relatório Militar) (DE, p. 146)
108
A expressão ‗(cf. Relatório Militar)‘ é uma nota transtextual, segundo Genette, que
revela a fonte da informação fornecida pelo narrador. O que não é comum é encontrar em um
relatório militar descrição tão minuciosa das impressões que a estátua causava nas pessoas,
tais como o cheiro e algumas nuances de cores bastante precisas. Trata-se de uma ironia do
narrador, porque o relatório militar acaba por se configurar numa visão muito particular e
avaliadora do narrador a respeito da estátua, com a tentativa de imprimir-lhe um caráter
fantasmagórico, apresentando-a já ligada à morte, salientando seu poder de divindade
cultuada e perpetuada através dos tempos.
Já a descrição da coloração verde que adquirira pela exposição ao sal, remete ao
caráter amargo e terrível do Imperador Dinossauro, não deixando de ser também um elemento
ridicularizante da figura do grande Imperador.
Portanto, essa estátua descomunal era a imagem e a semelhança do nosso Imperador
Dinossauro, poderíamos dizer que eram irmãos gêmeos. Na antessala do Imperador causava
arrepios a todos que lá passavam e as histórias a respeito de que tinha vida, podia ouvir, ver e
se mexer, viraram lenda naquele Reino.
Mais adiante, há a mobilização de uma conhecida história bíblica, que diz que Deus,
quando destrói as cidades de Sodoma e Gomorra, pelos pecados lá cometidos pelo povo,
poupa a família de Ló da morte. Porém, a mulher de Ló olha para trás, desobedecendo a uma
instrução de Deus e imediatamente torna-se uma estátua de sal, (Gn. 18. 20-21; 19.24-26-28):
20 Disse mais o SENHOR: Como efeito, o clamor de Sodoma e Gomorra tem-se
multiplicado, e o seu pecado se tem agravado muito. 21
Descerei e verei se, de fato o que têm praticado corresponde a esse clamor que é
vindo até mim; e, se assim não é, sabê-lo-ei. 24
Então, fez o Senhor chover enxofre e fogo, da parte do Senhor, sobre Sodoma e
Gomorra. 26
E a mulher de Ló olhou para trás e converteu-se numa estátua de sal. (BÍBLIA,
1996)
A passagem do texto que remete ao episódio bíblico é a seguinte:
mas também não constituía surpresa de maior para um conhecedor da História antiga
como ele. Estátuas de carne, não seria aquela a primeira: que se lembrasse, havia
109
pelo menos a do fugitivo que noutros tempos ficara empedernido em sal para todo o
sempre. Ou era confusão dele? (DE, p. 149)
Muitos eram os que conversavam com a estátua, ensaiavam o discurso com ela, para
depois o proferirem com o Imperador de Verdade. Até crimes foram confessados a ela. A esse
respeito diz o texto: ―De tanto fixar os olhos na estátua, jurou ter-lhe visto movimentos
secretos nos lábios e no braço descomunal, breves sinais talvez, coisas minúsculas mas
reveladoras como todos os avisos enviados por Deus.‖ (DE, p. 148)
O episódio mais hilariante aconteceu com o General cornetas, nome bastante
sugestivo, porque o general conspirador confessou todo o plano para a estátua. Não se sabe se
foi a espera excessiva, fato é que, às vezes, a estátua se revelava mais eficaz que os Dê-erres
na arte de fazer um subversivo confessar seus crimes. O general foi ficando tão amedrontado
e delirante diante dela, que passou a confundir tudo, e num ato tresloucado deu detalhes do
plano ao irmão de bronze do Imperador. Como lemos no conto: ―A CONFISSÃO: Eu,
cavaleiro de primeiro grau, declaro por minha honra que tomei parte com animus conspirandi
em reuniões de charuto e mascarilha com vista à transformação da ordem do Reino.‖ (DE, p.
152)
A amizade entre Imperador e estátua fortaleceu-se à medida em que o Dinossauro se
afastava da forma humana e dos humanos. A estátua era sua companheira e com ela assumia
atitudes de amizade como: ―Nessas ocasiões (diz-se também) tinha o costume, muito dele, de
passar o braço pelos ombros da estátua e ficarem ambos, irmão com irmão, voltados para a
mesa das reuniões.‖ (DE, p. 175)
É triste e ao mesmo tempo cômico ter por amigo e irmão uma estátua, mais um forte
elemento satírico da história. Tanto poder, tanta prepotência, tanta mania de grandeza,
jogados por terra porque aquele Imperador era extremamente solitário; é um toque tristonho
mas ao mesmo tempo cômico; tanta pompa e ser amigo de um ser inanimado. Por outro lado,
como era a cópia fiel do Imperador, revela seu lado narcisista e egocêntrico.
Nas piores horas da vida, quando precisamos de amizades sinceras, a estátua estava ao
lado do Imperador, seu irmão para consolá-lo. O Imperador, na ânsia de perseguir as palavras
e por ter se afastado do convívio humano, tornando-se um Dinossauro, já bastante debilitado,
encontra conforto em seu semelhante, a estátua: ―Desesperado, o Imperador corria para os
braços do irmão de bronze, outro surdo.‖ (DE, p. 180)
110
No horrendo episódio de sua queda, no qual seu gabinete fora invadido pelas
serpentinas de palavras que saíam das máquinas, o Imperador Dinossauro também procurou
refúgio no irmão de bronze: ―E quando alcançou a estátua e estendeu o braço à procura de
socorro é que percebeu como era antigo esse braço e como por dentro dele só havia fibras
secas, a estalar.‖ (DE, p. 183)
Ironicamente, seu único amigo deu-lhe o golpe de misericórdia, a estátua na qual o
Imperador pensava apoiar-se para evitar sua queda, caiu-lhe em cima da cabeça para aumentar
o impacto do tombo: ―Num último esforço começou a içar-se: foi nesse momento que a
estátua estremeceu um instante e, gentilmente, quase num segredar, inclinou-se sobre ele. Na
lenta oscilação de um segundo, Dinossauro, de olhos apavorados, viu-se hesitar, baixar-se,
baixar-se ainda mais, e desabar-lhe em cima. TCHAP!‖ (DE, pp. 183, 184)
É uma verdadeira tragicomédia, os dois Imperadores foram encontrados um sobre o
outro, caídos no chão, ambos muito pesados e verdes. A coloração esverdeada se deve ao
verde da estátua que ficou estampada no Dinossauro.
Segundo o conto, havia muitas estátuas espalhadas pelo Reino, elas serviam para
lembrar o povo da presença do Dinossauro, como um Deus que está em toda parte,
onipresente. Os mexilhões conheciam bem o sentido e o valor das estátuas, pois, sentiam o
seu jugo perpétuo: ―OUTRA ESTÁTUA concluíram os mexilhões, com um sorriso cansado.
Sabiam como ninguém o peso e o frio desses monumentos e da sombra que espalhavam a
toda a curva do Sol‖ (DE, p. 196)
Os espertos e sofridos mexilhões sabiam da opressão que elas simbolizavam, por isso
passavam esses ensinamentos de geração em geração para que nenhum de sua espécie se
esquecesse da sucessão das estátuas que funcionavam como uma alegoria dos governantes
que oprimem e exploram o povo e que se sucedem, estão sempre lá, permanecem, morre um,
mas já há outro na escala da sucessão.
2.3 DAS IRONIAS MAIS SIGNIFICATIVAS EM ―DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO‖
A mentira é uma verdade que se
esqueceu de acontecer
111
Mário Quintana, 2006, p. 60
O texto de Cardoso Pires é repleto de ironias, difícil é escolher, dentre tantas, as mais
significativas ou marcantes. Abordaremos nesta parte as que julgamos mais pertinentes e que
ainda não foram contempladas nos itens anteriores.
A respeito do título: ―Dinossauro Excelentíssimo‖, o segundo elemento é um adjetivo
superlativo usado como tratamento para certos indivíduos de alta hierarquia social, que são
considerados pessoas extraordinárias, magníficas e notáveis. Trata-se de uma ironia do
narrador chamar um dinossauro, um animal pré-histórico, primeiro de Imperador, depois de
Excelentíssimo, uma vez que as virtudes de um Excelentíssimo não condizem com a natureza
de um Dinossauro. Mas sabemos que o dinossauro do qual o texto trata é Salazar, o
Imperador Ditador, alvo da sátira do narrador, que é chamado assim em virtude de suas
atitudes arcaicas e por governar com mãos-de-ferro.
Outro elemento que nos chamou a atenção foi um recurso transtextual utilizado pelo
autor: A República dos Corvos é o livro de contos no qual se encontra o texto, objeto de nossa
análise e nele há uma epígrafe, informação transtextual, segundo Genette, que nos fornece
subsídios importantes para a leitura do conto. A epígrafe diz o seguinte: ―<<Cada homem
transporta dentro de si o seu bestiário privado ─ disse o Juiz.‖ (Pires, 1998)
Bestiário é um termo que se refere aos manuscritos medievais, eram descrições
detalhadas do mundo natural e essencialmente animal. Descreviam-se e inventariavam-se os
animais, pássaros e peixes, desde os mais comuns e facilmente reconhecíveis, como o leão, o
corvo e o golfinho, até os imaginários e fantásticos como o unicórnio, a fênix e a sereia. As
descrições dos animais não se baseavam em sua observação, mas sim nas informações
retiradas de outras obras. Os bestiários funcionavam como um livro de notas de um
naturalista, e estavam em permanente revisão. Seu objetivo fundamental era revelar o mundo
natural conhecido, mais do que documentá-lo ou explicar o seu funcionamento.
Outro objetivo do bestiário era instruir o homem, porque seus autores acreditavam que
para tudo que Deus criou havia uma função e uma intenção; então, os bestiários ajudariam na
edificação do homem pecador, pois o conhecimento da natureza e dos hábitos dos animais
poderia ensinar aos homens o caminho da redenção. Assim, a cada animal era atribuído um
significado místico, tendo como base as Sagradas Escrituras. Não era tarefa fácil, pois um ser
112
poderia representar o bem e o mal simultaneamente, de modo que alguns animais possuíam
uma duplicidade de sentido. Com o desenvolvimento científico, os bestiários iriam perder a
sua importância, mas influenciaram a Literatura (fábulas e alegorias), a Arte e até a Biologia
(na enumeração e estudo das espécies).10
―Dinossauro Excelentíssimo‖ representa um
bestiário, pois, do mesmo modo, os outros contos que compõem o livro são fábulas alegóricas
da vida humana. No conto analisado pudemos observar os diversos papéis representados pelos
animais, funções que nos levam a pensar no sentido da vida, das relações sociais, enfim, como
pretendia o bestiário, na própria redenção humana. De todo modo, a noção de que ‗todo
homem carrega dentro de si o seu bestiário privado‘ é o mote dos textos do livro.
Uma outra ironia evidente é a crítica ao excesso de burocracia do reino, numa clara
menção ao excesso de burocracia da cultura portuguesa, que foi legada, como uma herança
maldita, à sociedade brasileira.
Tudo se inicia com a formação do futuro Imperador, que é educado na fala rebuscada,
difícil, inacessível às pessoas comuns; carregada de latim, tão requintada e por isso mesmo
tão inacessível:
Os doutores, no trono da sua gravidade, acenavam que sim: tratava-se de um falar
muito próximo dos alfarrábios por onde tinham estudado, logo, o mais perfeito. (...)
gostavam daquela maneira encarreirada de complicar. (...) frases de longo ornato,
como iluminuras de breviário, quem a podia recusar? (...) De modo que foi chamado
para imperador. (DE, p. 128)
Originou-se assim o reino da enganação e das aparências, um reino de linguagem tão
rebuscada e tão apegado às tradições acadêmicas e religiosas que tinha que ser, igualmente,
burocrático. Assim, burocracia ou a arte de complicar e tornar moroso o desempenho do
serviço administrativo, não faltava àquele Reino:
Entretanto o Reino foi-se embandeirando em decretos e assinaturas. Esvoaçavam
papéis de amanuense, alegria das repartições, e no azul celeste deslizavam frases
difíceis através duma poeira dourada de louvores e oratórias. Não tardou muito a
10
Os dados foram consultados no Dicionário de Termos Literários, o endereço eletrônico encontra-se nas referências da dissertação.
113
nação estava toda dita e arquivada num imenso livro de decretos e castigos, ameaças
e mais que também (DE, p. 132)
Percebe-se, de forma clara, o clima que imperava naquele Reino, principalmente nas
palavras: decretos, assinaturas, oratórias e castigos. Reino de muitas regras que deveriam ser
cumpridas com rigor. O que realmente tinha valor era o papel escrito, assinado e depois
arquivado. Outra menção à burocracia: ―O reino desdobrava-se num imenso arquivo de
gavetas a abrirem-se umas às outras.‖ (p.161)
Toda essa preocupação excessiva com a documentação burocrática do Reino tornava-
se uma ironia diante das necessidades da população. Num Reino tão rico de regras e leis
escritas, o pobre estava cada vez mais miserável, tanto de bens materiais quanto de cultura
(palavras).
Enfim, para realizar o jogo irônico, um recurso utilizado pelo narrador é o
distanciamento, o narrador jamais tem certeza dos fatos narrados e com este artifício, obtêm o
efeito irônico, envolve o leitor na história e deixa a interpretação aberta, deixando para o leitor
a tarefa de preencher os vazios, as lacunas do texto, para construir o sentido da leitura.
Podemos observar esta tentativa de diálogo com o leitor pelo uso das expressões: ―dizem,
sabe-se, tudo leva a crer, supõe-se, etc.”
Ainda mais, o distanciamento evita o envolvimento e, por conseguinte, o surgimento
das emoções, que turvam a capacidade de realizar a crítica e de analisar de forma racional a
história, essenciais para o efeito irônico e satírico.
114
CAPÍTULO 3
SOMBRAS DE REIS BARBUDOS
Tudo é a ponta de um mistério.
Inclusive, os fatos. Ou a ausência
deles. Duvida? Quando nada
acontece, há um milagre que não
estamos vendo.
Guimarães Rosa, 2008, p.76
Sombras de Reis Barbudos aparece geralmente ligado à Literatura Fantástica ou ao
Realismo Maravilhoso latino-americano do século XX. Apesar de serem vertentes muito
parecidas no modo de conceber a literatura, os críticos e teóricos literários apontam diferenças
entre elas.
O Fantástico teria nascido na Europa no século XVIII e o Realismo Maravilhoso,
também chamado de Realismo Mágico, seria de origem latino-americana e datado do século
XX. O ponto de contato entre as estéticas seria a criação de narrativas que apresentam
realidades que fogem aos padrões do verossímil.
A proposta do Realismo Mágico era que escritores e público leitor voltassem seu olhar
para a realidade latino-americana numa tentativa de descobrir, por meio de um olhar atento, a
riqueza cultural desses povos. Defendiam a valorização da cultura dos países latino-
americanos, cultura até então desconhecida e subjugada pela Europa. Desta forma,
propunham uma busca de identidade do próprio discurso ficcional por meio da literatura.
Houve grande curiosidade por parte do povo europeu a respeito da literatura dos países
latino-americanos, por conta do exotismo e do estranhamento que os hábitos e os costumes
destes povos despertavam. Vem deste fato o grande avanço da literatura desses países, o
chamado ‗boom‟ da literatura hispano-americana dos anos 60, muito lida e estudada por
críticos de literatura, com nomes de prestígio internacional como Garcia Márquez, Juan Rulfo,
Alejo Carpentier, Julio Cortázar.
115
O realismo maravilhoso afasta-se da literatura fantástica por permitir que o insólito se
instaure no real sem, contudo, desestruturar por completo essa realidade. Na verdade, o
realismo maravilhoso se propõe a apresentar a realidade a partir de uma perspectiva incomum
que acaba por transcendê-la e por isso mesmo faz com que o leitor conviva,
concomitantemente, com um mundo de um lado natural e lógico e, de outro, sobrenatural e
ilógico. Este efeito é alcançado graças à sensação de encantamento do discurso por meio da
incorporação do insólito ao real e pela desarticulação entre causa e efeito dos acontecimentos.
A esse respeito lemos:
O sintagma ―realismo maravilhoso‖, aparentemente paradoxal (porque realismo
pressupõe uma relação de verossimilhança com o referente e maravilhoso, de
inverossimilhança), define o tipo de narrativa que encontramos em García Máquez,
em Juan Rulfo e em Carpentier, por exemplo. São narrativas que não excluem os
realia (real, no baixo-latim); entretanto, os mirabilia (maravilha) ali se instauram,
sem solução de continuidade e sem criar tensão ou questionamento (como no
fantástico). (RODRIGUES, 1988, p. 59)
Outras características desse realismo são a abordagem dos grandes temas sociais e o
enfoque político, objetivando desvendar, de forma crítica, o processo histórico de construção
das identidades latino-americanas sob a ótica dos conflitos, ou seja, do ponto de vista da
nação colonizada, com o intuito de denunciar a exploração ou o nepotismo dos governos
autoritários ou da classe dominante, como acontece em Sombras de Reis Barbudos, em que
vivenciamos o conflito entre uma pequena cidade do interior com a modernidade insólita com
a qual é obrigada a dialogar. Há também no livro uma total falta de motivação e / ou de
explicação a respeito dos acontecimentos da diegese, tudo parece muito difuso, tanto os atos
das personagens como os acontecimentos que se passam naquela cidade, porque há a omissão
de dados importantes. Ficamos assim, como que sem elementos para estabelecer as conexões
necessárias à coerência textual. Além disso, tudo é relativizado, ao mesmo tempo em que nos
deparamos com uma narrativa aberta, cujo final deixa o leitor em meio a dúvidas.
Antonio Candido, falando da tendência de fugir ao real, diz:
Outra tendência é a ruptura, agora generalizada, do pacto realista (que dominou a
ficção por mais de duzentos anos), graças à injeção de um insólito que de recessivo
116
passou a predominante e, como vimos, teve nos contos do absurdo de Murilo Rubião
o seu precursor. Com certeza foi a voga da ficção hispano-americana que levou para
este rumo o gosto dos autores e do público. Os seus adeptos são legião, mas bem
antes de a moda se instalar José J. Veiga tinha publicado Os cavalinhos de
Platiplanto (1959) ─ contos marcados por uma espécie de tranqüilidade catastrófica.
(CANDIDO, 2000, p.211)
Mas em meio a esta realidade habitada pelo insólito e por isso mesmo desarticulada,
Sombras de Reis Barbudos não deixa de realizar uma releitura crítica da história, como fez
toda a literatura hispano-americana que também denunciou realidades opressivas e seus
ditadores. Sobre o caráter político-social desse tipo de literatura lemos na Dissertação de
Mestrado de Gregório F. Dantas, ―O Insólito na Ficção de José J. Veiga‖:
[...] ou o que outros preferem chamar de ―realismo mágico de 70‖. Este, se assim
podemos chamá-lo, seria mais adequado para a crítica social.
Esta chave interpretativa é amplamente difundida na fortuna crítica de J. J. Veiga.
Em interessante estudo sobre o regime de 64 e o romance brasileiro, Regina
Dalcastagnè situa Sombras de reis barbudos (1972) ao lado de Incidente em Antares,
de Érico Veríssimo, e Os tambores silenciosos (1976), de Josué Guimarães,
romances onde a ―alegorização política e a paródia do discurso do poder‖
(DALCASTAGNÈ, 1996, p. 80) nascem de representações irreais, fantásticas. De
modo semelhante, o brasilianista Malcolm Silverman, em seu Protesto e o novo
romance brasileiro, reuniu autores representativos de uma literatura nascida como
reação ao golpe militar de 1964 e seus subseqüentes anos de repressão. J. J. Veiga é
enquadrado na categoria ―o romance da sátira política surrealista‖ através dos
romances A hora dos ruminantes, Sombra de reis barbudos, Os pecados da tribo e
Aquele mundo de Vassabarros. (DANTAS, 2002, pp. 128-129)
Portando, Sombras de Reis Barbudos, por denunciar o absurdo com que as práticas
cotidianas podem apresentar-se às pessoas sem que essas se dêem conta ou compreendam
como o inusitado ou o insólito se instaurou em suas vidas, opera uma transfiguração do real,
criando uma realidade ficcional alegórica, na qual, por meio do estranhamento, coexistem
elementos reais e maravilhosos.
O Brasil, menos pródigo que os países de língua espanhola, teve entretanto um autor
que, no século XIX, já usava elementos fantásticos em sua narrativa: Machado de
Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas. Contemporaneamente, os autores que
mais se destacam nesse gênero são J. J. Veiga e Murilo Rubião. (RODRIGUES,
1988, p. 64)
117
Segundo Tzvetan Todorov no livro Introdução à Literatura Fantástica, todo e
qualquer elemento que cause estranheza numa narrativa pode aparecer de três principais
formas: por meio do estranho, do fantástico ou do maravilhoso. A incerteza do leitor,
provocada por acontecimentos estranhos ou irreais na narrativa, causa sensação de
ambiguidade; por outro lado, se esse paradoxo é resolvido, ou seja, tem uma explicação
plausível, a narrativa deixa de ser considerada fantástica para classificar-se como estranha. Se
o fato inusitado e insólito for plenamente aceito pelo leitor, estamos no domínio do
maravilhoso. Quando o fato estranho ou inusitado não pode ser explicado e permanece sem
esclarecimento, conservando-se sua hesitação, temos a categoria do fantástico:
O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa o
fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O
fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais,
face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (TODOVORV, 1975, p.
31)
O que caracteriza o fantástico é a ruptura da ordem do cotidiano e também a do
sobrenatural. Desse modo, tanto a natureza quanto a sobrenatureza são colocadas em xeque
pela literatura fantástica, pois o sobrenatural é um tema recorrente neste gênero literário. O
que ocorre é que o universo racional e o universo não racional convivem na literatura
fantástica, há um confronto entre essa duas ordens, sem que haja a destruição de uma das duas
lógicas, instaurando-se o questionamento e a ambiguidade.
O sonho também é uma motivação fantástica que compõe a narrativa e instaura o
insólito e o inverossímil. Por meio do sonho é possível a hesitação e o questionamento
necessários à narrativa fantástica e a ambiguidade é mantida em suspenso. Em vários
momentos da narrativa de Sombras de Reis Barbudos o narrador questiona se tudo não passou
de um sonho, o fato das pessoas estarem voando, a vinda do mágico à cidade e um momento
onírico é vivenciado pelo narrador por ocasião de uma visita à casa do tio Baltazar:
Ela me viu, eu voltei para o meu sofá no canto, comi os biscoitos e dormi.
Eu estive enganado o tempo todo. Tio Baltazar passava muito bem. A reunião era
uma festa para comemorar a torre que acabava de construir, obra nunca vista e muito
importante encomendada por uma comissão de reis barbudos. Como prêmio tio
118
Baltazar ia ser nomeado rei também, aquela gente toda esperava ali para ajudá-lo a
experimentar a roupa, a coroa e a barba postiça que ele ainda ia usar enquanto não
crescesse a verdadeira.
(...)
Quando tudo parecia perdido alguém me carregou nos braços, me deitou num jirau
macio e estendeu um cobertor por cima de mim. (SRB, pp. 81-82)
Somos introduzidos no sonho de Lu sem maiores esclarecimentos e convidados a sair
dele da mesma forma, por isso hesitamos se o episódio aconteceu ou não efetivamente na
narrativa; percebemos muito tempo depois, de forma bastante discreta, apenas sugerida, que
foi um sonho do narrador.
Dar vida a seres inanimados, ou seja, dar alma a eles, anima, fornecer-lhes
movimentos próprios é uma característica do maravilhoso, próprio dos contos de fadas, por
exemplo. Em Sombras de Reis Barbudos o mágico Uzk fez com que pedras voassem: ―Será
um mundo em que pedras e sapos voam, areia molha, fogo pode ser cortado e guardado no
bolso?‖ (SRB, p. 60)
A duplicidade dos seres é trabalhada pelo fantástico porque o desdobramento quebra o
equilíbrio por meio da ruptura com o mundo real. Como afirma Selma Calasans Rodrigues:
Variam as formas de representação do duplo: temos personagens que, além de
semelhantes fisicamente (ou iguais), têm sua relação acentuada por processos
mentais que saltam de um para outro (telepatia), de modo que um possui
conhecimento, sentimentos e experiências em comum com o outro. Ou o sujeito
identifica-se de tal modo com outra pessoa que fica em dúvida sobre quem é o seu
eu [...] Ou há o retorno ou repetição das mesmas características, das mesmas
vicissitudes e dos mesmos nomes através de diversas gerações (em Cem anos de
solidão, de Gabriel Garcia Márquez, os Aurelianos e os José Arcadios). Ou ainda,
um mesmo eu desdobra-se em pessoas distintas e opostas. (RODRIGUES, 1988,
p. 44)
O mágico Uzk é quem representa o duplo na narrativa porque ele é paradoxalmente
uma pessoa comum, marcada por um defeito físico, mas quando entra num palco transforma-
se no grande Uzk dos cartazes, tem sua estatura aumentada, o defeito não aparece, faz coisas
impossíveis.
O duplo representa também a perda da inocência, no caso de Lu houve um grande
impacto sinalizado pela decepção do menino ao conhecer o mágico real e compará-lo com o
119
mágico do cartaz. Instaura-se a dúvida, a ambiguidade e a dupla figura do mágico que parece
ser duas pessoas diferentes. A figura real que está à frente do narrador não coincide com a
figura dos cartazes nem posteriormente com o mágico em ação no palco.
A figura duplicada do mágico no cartaz aparece estilizada por meio dos olhos e de
todo o clima de mistério imprimido à propaganda: ―Até que apareceu esse mágico, o Grande
Uzk. Primeiro apenas o nome e a fama, o mágico nos olhando de cartazes em que os olhos
pareciam duas brasas queimando em um rosto apenas sugerido em fundo escuro.‖ (SRB, p.
52)
Em Sombras de Reis Barbudos há a presença dominante do fantástico e do
maravilhoso, uma vez que a pacata realidade cotidiana de uma cidade do interior é
atravessada por uma Companhia (que faz às vezes do estranho), criando uma atmosfera de
magia que subverte a ordem natural das coisas. Há uma incorporação do insólito (Companhia)
ao real cotidiano das pessoas que causa uma descontinuidade nas leis naturais e, por
conseguinte, gera a incerteza, condição para a instauração do fantástico. Lemos em Furtado:
[...] qualquer narrativa fantástica encena invariavelmente fenômenos ou seres
inexplicáveis e, na aparência, sobrenaturais. Por outro lado, tais manifestações não
irrompem de forma arbitrária num mundo já de si completamente transfigurado. Ao
contrário, surgem a dado momento no contexto de uma acção e de um
enquadramento espacial até então supostamente normais. (FURTADO, 2009, p.
19)
Essa ambiguidade ou hesitação presente neste tipo de literatura é reforçada pelo uso da
alegoria, no sentido de dizer uma coisa e significar outra diferente. Sendo a alegoria uma
figura que faz a proposição do duplo sentido, em Sombras de Reis Barbudos há um sentido
literal denotativo e outro conotativo possibilitado pelo uso da alegoria política e da paródia do
discurso do poder.
J. J. Veiga, cuja primeira obra data de 1959 (Cavalinhos de Platiplanto), situa seus
personagens num espaço rural, mas que acaba por ser um espaço alegórico que quer
falar sempre da relação entre opressor e oprimido ou da possibilidade de viver
apenas no sonho (o menino fica sabendo que os cavalinhos são seus, mas que ―levar
não pode. Eles só existem em Platiplanto‖). Seu fantástico, que começa leve, se
adensa, avizinhando-se do absurdo (cf. A hora dos ruminantes, A sombra dos reis
120
barbudos, A máquina extraviada), e a par das reflexões de caráter existencial, parece
ser a alegoria da sociedade brasileira dos anos de ditadura e opressão (...). O caráter
alegórico dessa literatura, longe de se esgotar em qualquer chave interpretativa, é
aberto e se oferece ao leitor em múltiplas possibilidades interpretativas.
(RODRIGUES, 1988, pp. 65- 66)
O livro é um relato em primeira pessoa do protagonista da história, um adolescente
que resolve escrever a respeito da instalação de uma Companhia na pequena cidade de
Taitara, onde mora, tarefa sugerida pela mãe do menino, numa tentativa de fazer o filho
permanecer em casa e ocupado, naqueles tempos difíceis.
Lucas inicia sua narrativa contando a chegada do tio Baltazar à cidade, o responsável
pela vinda e instalação da fábrica que viria a mudar a vida de todos, estendendo-se pelos
tempos de opressão e autoritarismo, até chegar ao momento atual da escrita.
Poderíamos dizer que, do mesmo modo que ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é uma
paródia da ditadura salazarista, Sombras de Reis Barbudos é igualmente uma paródia da
ditadura militar brasileira, uma vez que retrata os horrores cometidos pelos governantes dessa
época de opressão de forma alegórica. J. J. Veiga usa uma linguagem cifrada para estruturar
sua narrativa, mas pela semelhança que a história apresenta com a situação vivida no Brasil,
sabemos que se trata do período pós-golpe militar de 1964, quando se instaura a ditadura
militar e com ela os mecanismos de controle daqueles que não concordam com a ordem
estabelecida.
Assim, por meio das memórias do menino Lucas, ficamos sabendo das mudanças que
ocorrem com a instalação da Companhia de Melhoramentos de Taitara. A Companhia passou
a controlar tudo e todos na cidade, domínio parecido com aquele que acontecia nos anos 70 no
Brasil com a ditadura militar. Inicia-se, desta forma, em Taitara, uma luta entre os fiscais
(funcionários da Companhia), interessados em manter a ordem e o controle de tudo e os
habitantes daquela pacata cidade interiorana que lutavam pela liberdade de expressão.
O controle da Companhia, com o passar do tempo, torna-se absurdo, incoerente e
irracional, devido às proibições estapafúrdias que são decretadas pela empresa, que a cada dia
ressurge mais forte e influente na cidade. À Companhia são atribuídos poderes demiurgos
sobre a população, de tal maneira que, levando-se em consideração as características da
literatura fantástica, a Cia. representaria o elemento sobrenatural criador de tensão e
questionamento no interior da narrativa, fonte de todos os problemas e frustrações.
121
Baltazar, o fundador e idealizador dessa grande empresa, parte sem explicação,
desvinculando-se da Companhia, e o que se segue é um período de crescente tensão na cidade,
em virtude das proibições e das fiscalizações constantes. O ápice do controle e do
cerceamento exercidos pela Companhia é a aparição repentina de muros cercando toda a
cidade e fazendo com que a população, para se deslocar de um lugar para outro, percorra
verdadeiros labirintos, sem contar a redução drástica do campo visual das pessoas, agora
reduzido e fechado por paredões de concreto.
Outro absurdo é a invasão dos urubus que infestam a cidade, fazendo às vezes de
animais de estimação. Esses animais, que não nasceram para serem criados dentro de casa,
logo se tornam inconvenientes, permanecem por um tempo nas casas e depois vão embora.
O momento mágico ou lúdico, e também ambíguo, surge por conta do mágico Uzk,
que encanta os habitantes da cidade, é uma pausa para aqueles indivíduos tão cansados de
inúmeras proibições e regras severas.
As proibições e decretos da Companhia, por mais absurdos que possam ser, jamais são
contestados pela população, que aceita tudo muito conformada. Percebemos um
questionamento discreto por parte de Lucas, assim mesmo apenas em alguns momentos da
narrativa.
Podemos dizer que Sombras de Reis Barbudos é uma narrativa cujo final fica em
aberto, porque ela é suspensa enquanto Lu conversa com o senhor Chamun, dono de um
estabelecimento comercial na cidade. Também não ficamos sabendo sobre o destino do pai de
Lu que fora preso pela Companhia. A vida é uma incógnita para Lu e para todos os habitantes
de Taitara, fato que fica bem claro no final do livro, que nada conclui.
3.1 DAS IRONIAS EM SOMBRAS DE REIS BARBUDOS
O ataque de uma borboleta agrada
mais do que todos os beijos de um
cavalo.
Mário Quintana, 2006, p. 69
122
Companhia de Melhoramentos de Taitara, nome pomposo para uma empresa que se
propunha a trazer o progresso para a cidade. À medida que tomamos conhecimento dos fatos,
esse nome revela-se também irônico, por sinalizar para uma inversão semântica, uma
antífrase. Na contramão da promessa de melhoria na qualidade de vida e de geração de
empregos, o que se abateu sobre a cidade foi o controle extremo da Companhia em todas as
esferas da vida de seus habitantes; onde se lia ‗melhoramentos‘, passou-se a entender
‗opressão‘, ‗controle‘, ‗regime autoritário‘ e, consequentemente, piora na qualidade de vida
das pessoas. Como lemos no texto: ―Mas a história que vou contar começa mesmo é com a
chegada do tio Baltazar. Quem podia imaginar naquele tempo de alegria e festa que um sonho
tão bonito ia degenerar nessa calamitosa Companhia Melhoramentos de Taitara?‖ (SRB, p. 2)
O adjetivo feminino ‗calamitosa‘ referindo-se à Companhia, opõe-se à palavra
‗Melhoramentos‘ que faz parte do nome da empresa e sugere progresso e bem estar social.
Toda essa expectativa de uma vida melhor gerada pela instalação da Companhia é quebrada, e
o narrador deixa claro, por meio da qualificação de catástrofe atribuída à Companhia, que esse
sonho de progresso tornou-se um pesadelo.
Os habitantes da cidade acreditavam que a Companhia iria trazer realmente
melhoramentos para o Município, aquela gente simples valorizava uma novidade,
principalmente quando era importada. Por exemplo, tio Baltazar era uma figura famosa na
cidade, não somente pelo investimento na Companhia, mas também por ter vindo de fora,
possuir carro e outros bens, e ter o hábito de tirar fotografias, fato nada comum naquele lugar;
diz o texto que as fotos do tio Baltazar eram muito valorizadas pela população, mesmo antes
de ele ser presidente da Companhia:
Essa fotografia, com dedicatória para mamãe, fez o maior sucesso entre nossos
amigos, além de vê-la muitos queriam mostrar a outros. Entre zelosa e vaidosa
mamãe emprestava; mas se a pessoa demorava a devolver, eu recebia a missão de ir
buscá-la, um documento daquela importância não podia passar muito tempo em
mãos profanas. (SRB, p. 3)
Nota-se certa idolatria pela figura de Baltazar, uma vez que a população da cidade
demonstrava grande interesse em apenas ver e possuir por momentos sua fotografia, que era
generosamente cedida pela mãe de Lu, logo resgatada, porém, quando exageravam na posse
123
do documento importante, como era nomeado.
Como presidente da Companhia, o prestígio de Baltazar cresceu, todos gostavam
muito dele na cidade, era uma verdadeira celebridade. No núcleo familiar era bastante amado
pela irmã, mãe de Lu, e admirado pelo sobrinho. No início houve certa decepção da parte de
Lu em constatar que faltava um braço a Baltazar: aquele homem tão imponente e atlético das
fotografias tinha um defeito físico! Esse episódio foi logo superado pela convivência familiar,
dando lugar a uma admiração profunda. Esse laço entre tio e sobrinho nunca foi bem visto
pelo pai de Lu, Horácio, personagem que mais sofre mudanças segundo depreendemos da
narrativa. A princípio parece não gostar do tio Baltazar, mas depois planeja com o cunhado a
instalação da Companhia e vai trabalhar com ele. Quando Baltazar deixa a presidência da
Companhia, Horácio permanece no emprego e se adapta às novas funções, passa a ser um
fiscal.
Como fiscal da Companhia Horácio sofre nova transformação em sua personalidade,
torna-se agressivo e arrogante em casa, e passa a usar uma farda para trabalhar. Dentre todos
os fiscais, somente Horácio usava farda; no decorrer da narrativa percebemos que foi por
vontade própria, dizia que impunha respeito. Percebe-se uma referência ao Militarismo, ao
Exército, representado metonimicamente pela farda, esse símbolo do poder da Ditadura
Militar brasileira que acaba por uniformizar procedimentos e posturas.
A farda torna-se também uma escravidão para a mãe de Lu, pois tem que lavá-la e
passá-la muito bem; se a vestimenta não estivesse impecável, Horácio certamente exigiria que
todo o serviço fosse refeito:
Além de não ser dispensado, meu pai ainda foi promovido a fiscal não sei de que, e
parecia tão feliz como nos primeiros tempos da Companhia. Agora ele andava para
cima e para baixo vestido com uma farda azul que mamãe penava para manter
impecável, se descobrisse nela uma ruga ou mancha meu pai não a vestia enquanto o
defeito não fosse corrigido, ele até arranjou uma lente grande para examinar a farda. (SRB, p. 27)
Essa obsessão do pai pela farda incomodava Lu porque já havia presenciado muitas
brigas e discussões dos pais por causa do uniforme. Em um dos comentários de Lu a esse
respeito podemos constatar a ironia observável e também avaliadora; leiamos a passagem:
124
A culpa só podia ser daquela farda. Eu conhecia outros fiscais da Companhia, de vez
em quando um grupo deles se reunia aqui para combinar serviço com meu pai e
trocar informações, e nunca vi nenhum outro fardado. Se meu pai era o chefe deles,
como às vezes parecia, porque só ele andava fardado? (...)
─ Sou obrigado não, Lu. Essa farda eu mesmo inventei. Impõe mais respeito. ─
Girou para mostrar a farda. ─ Bonita, não é? ─ Você precisa ver como a cambada
me trata. Só faltam se mijar. Um dia vamos dar uma volta juntos para você ver.
Pensei em tio Baltazar paisano e aleijado e assim mesmo respeitado limpamente.
Quando me chamava para um passeio, era um presente que eu nunca pensaria em
recusar. (SRB, p. 28)
O comentário de Lu mostra-se bastante perspicaz ao observar que o tio Baltazar não
necessitava de uma indumentária para ser respeitado e amado, e mesmo sua deformidade
física não tirava o mérito daquela figura querida e reverenciada. Percebemos a ironia
observável nas figuras do pai que necessitava da farda para ser respeitado e do tio que mesmo
deformado era venerado por todos. É também uma ironia avaliadora porque coloca Horácio
como uma pessoa que valoriza as aparências e que deseja impor-se pela força. No outro
extremo avalia o tio como possuidor de característica nobres, respeitado por aquilo que ele é
em essência, mesmo faltando-lhe um braço e uma farda.
A instalação da Companhia exigiu investimento de um capital considerável, e esse
dinheiro veio de investidores que não moravam na cidade. Baltazar fazia muitos contatos com
empresários que vinham visitar Taitara para estudar a viabilidade do projeto. Eram
investidores muito ricos, pois o texto assim os descreve:
Então começou aquela romaria de gente de fora, uns homens muito prosas no vestir
e no falar. Eles se hospedavam no Hotel Síria e Líbano por conta do tio Baltazar,
tratavam a gente como se fôssemos índios ou matutos (meu pai vivia encrespando
com eles por causa disso) e reclamavam dos quartos, da comida, da poeira, como se
fossem reis acostumados com o bom e o melhor. (SRB, p. 10)
Eram pessoas muito diferentes dos habitantes da cidade, possuíam outros hábitos,
muito refinados e sofisticados, incompatíveis com os costumes rudes e selvagens dos nativos
locais. Observamos aqui algo típico da narrativa de J. Veiga, a oposição entre o campo e a
cidade, ou entre o homem simples e o dito civilizado, com a clara valorização da simplicidade
e uma carga negativa atribuída ao elemento civilizador ou moderno.
125
Aquela gente detentora do poder e do dinheiro exigia ser tratada como ‗reis‘, a
primeira menção ao título do livro. A primeira sombra que se projeta sobre a cidade de
Taitara, porque a segunda sombra seria a Companhia, e essa iria projetar-se muita mais longe.
É interessante observar o julgamento que os investidores faziam dos habitantes de
Taitara, chegando mesmo a chamá-los de índios e matutos, reclamando dos serviços
oferecidos pelos hotéis e restaurantes da cidade.
Como dissemos anteriormente, muitos empresários interessados em investir na cidade,
vieram conhecer o projeto do tio Baltazar, até que um deles resolveu tornar prática a ideia. Os
candidatos a investidores da Companhia, apesar do ar de superioridade, eram muito bem
educados; segundo o texto, pareciam pessoas de bem, embora esnobes. Quando vieram
conhecer Taitara causaram um alvoroço na população não acostumada com tantos automóveis
diferentes.
Diz o texto que os investidores falavam de forma diferente dos habitantes da cidade e
percebemos aqui a questão da variação linguística, provavelmente aquelas pessoas falavam o
dialeto culto padrão próprio da região de origem, diferente do dialeto falado em Taitara. A
esse respeito lemos:
Felipe falava engraçado. Pare ele o que era bom demais era ímpar, o que era ruim
era abominável, o feio era hediondo, o bonito era refinado, essas palavras que a
gente só encontra em livro de escritor importante. Em pouco tempo a meninada aqui
estava falando como eles, as pessoas mais velhas achavam graça e diziam que antes
aprender isso do que outras coisas. (SRB, p. 11)
O comentário de Lu demonstra que Filipe usava outras palavras para nomear as
mesmas coisas, ou seja, usava outra variação linguística, somente diferente do linguajar
utilizado pelos habitantes da cidade, esse fato reforça a diferença entre aqueles que vivem nos
grandes centros e aqueles que vivem no interior.
As pessoas simples de Taitara acolhiam a novidade, achando tudo muito divertido e
até bonito. Horácio é a voz divergente, como personagem mutante de personalidade que é, a
alertar tio Baltazar a respeito dos forasteiros, como no trecho que reproduzimos:
126
Enquanto Dr. Marcondes esteve aqui tio Baltazar quase não tinha tempo de nos
visitar, quando aparecia era correndo, só para dizer bom dia ou boa-tarde, nem
esperava um café, não podia deixar Dr. Marcondes esperando. Meu pai aproveitava
essas rápidas visitas para recomendar esperteza e lembrar que quanto mais
simpáticos são esses homens de fora, mais perigoso, como se soubesse tudo sobre
negócios e tio Baltazar não soubesse nada. (SRB, p. 11)
Mais uma vez o comentário de Lu acaba julgando Horácio de forma irônica. Na
avaliação do menino, é um disparate o pai dar conselhos a respeito de negócios para Baltazar
que, no julgamento de Lu, é alguém preparado e experiente para realizar essa tarefa. O
decorrer dos fatos, porém, comprova que Horácio estava certo, a Companhia trouxe o caos
para a cidade.
O capítulo que conta a instalação da Companhia na cidade intitula-se “Um Homem
Correndo‖, mas sabemos que todos correram para que a empresa ficasse pronta, o texto não
precisa ao certo o tempo; porém, percebemos que foi bastante rápido. Lu comenta novamente
da correria do pai, como lemos: ―Meu pai vivia correndo naqueles dias; se ele soubesse para
onde estava correndo teria moderado o passo.‖ (SRB, p. 13) Essa fala encerra o capítulo e
mostra a ironia do narrador, que conta uma história da qual já sabe o desenrolar dos fatos, ou
seja, tanto empenho em instalar uma empresa que viria a oprimir a cidade inteira, poderia ter
sido mais demorada a instalação.
O início deste mesmo capítulo também é bastante interessante porque temos a reflexão
do narrador a respeito de um tema recorrente no livro: a imposição de regras e normas à vida
das pessoas sem que essas se dêem conta. Vejamos o trecho ilustrativo: ―É curioso como
certas coisas vão acontecendo em volta da gente sem a gente perceber, e quando vê já estão aí
firmes e antigas. Depois mudam, do mesmo jeito manso.‖ (SRB, p. 7) A Companhia vai
impondo regras e limitando a vida das pessoas de forma gradual, sem que elas percebam,
quando notam, já perderam o domínio e cederam o espaço sem contestar.
A Companhia passou a mandar na cidade, não há menção a nenhum tipo de
autoridade, a não ser a da própria Companhia e a dos fiscais instituídos por ela.
Alegoricamente, aponta-se para o Brasil no período pós-golpe militar de 1964, pela
semelhança situacional. A Companhia seria o Governo Militar que tomou o poder, Baltazar
poderia ser associado a João Goulart, o representante do Governo anterior, o próprio livro usa
a palavra ‗golpe‘ referindo-se ao episódio da partida de Baltazar. Horácio simboliza o SNI
(Serviço Nacional de Informação), metonimicamente representando aqueles que faziam
127
cumprir as ordens determinadas pela Companhia. Lu e os demais meninos citados no livro
representam a resistência, os estudantes da época da ditadura que escreviam em muros seus
protestos, da mesma forma que os intelectuais e artistas da época que também não
concordavam com o regime vigente.
Depois de uma gestão de sucesso na Companhia, Baltazar é sumariamente deposto do
cargo, como lemos no texto:
Sem tio Baltazar a Companhia deixou de existir para nós. Meu pai continuava
trabalhando lá, mas nem eu nem mamãe esperávamos que fosse por muito tempo.
Logo nos primeiros dias do golpe muita gente ligada a tio Baltazar foi demitida em
duas ou três penadas, e não havia motivo para meu pai ser poupado. (SRB, p. 25)
Há a menção literal da palavra ‗golpe‘, ou seja, tio Baltazar foi, assim como João
Goulart, deposto do cargo que exercia por meio de força, não saiu por vontade própria. Outros
assumiram o controle da Companhia, que representa o Governo Militar brasileiro, e o modo
de gerenciar foi se mostrando bem diferente da administração anterior, como percebemos
pelas inúmeras proibições e pelos fiscais nomeados para que elas fossem cumpridas.
As proibições eram, em sua maioria, ridículas; trataremos daquelas que nos pareceram
mais irônicas e satíricas. O narrador diz que a Companhia proibia por diversão, ou seja,
apenas para não perder o hábito, porque o conteúdo da interdição era demasiado ridículo: ―A
Companhia baixou novas proibições, umas inteiramente bobocas, só pelo prazer de proibir
(ninguém podia mais cuspir para cima, nem carregar água em jacá, nem tapar o sol com
peneira, como se todo mundo estivesse abusando dessas esquisitices);‖ (SRB, p. 46)
Nota-se nas proibições impostas pela Companhia um intertexto com a cultura popular,
uma vez que são expressões tomadas por empréstimo dos ditados do povo. Assim, as
proibições tinham que ser entendidas em seu sentido literal, denotativo, e igualmente
cumpridas neste sentido, daí parecerem tão ridículas ao narrador. Mas há embutido nesses
ditados populares outro sentido, o não literal, o conotativo. Visto por este viés, o dito popular
―não tapar o sol com peneira‖, por exemplo, depõe contra a Companhia, porque não tem
sucesso quem tenta encobrir o sol com a peneira, uma vez que esta é cheia de furos, o que
permite a passagem da luz; logo, é um trabalho em vão, uma bobagem, é negar uma
evidência. Se os cidadãos daquela cidade, porém, em sentido conotativo, não tapassem o sol
128
com a peneira, desconfiariam da Companhia e de suas proibições absurdas, e, portanto, não se
submeteriam a tais abusos.
Mais uma proibição cômica da Companhia:
De um dia para outro, sem nenhum aviso, ficou perigoso até perguntar ou informar
as horas a um desconhecido. Muita gente se complicou por se queixar inocentemente
do calor, ou dizer que não estava fazendo tanto calor; por responder a cumprimentos
ou não responder por distração; por se abaixar para apanhar um objeto qualquer na
rua, ou por ver um objeto e não se abaixar para apanhá-lo. (SRB, p. 66)
Como podemos constatar, a Companhia se preocupava com aspectos da vida
corriqueira dos cidadãos, totalmente irrelevantes e ridiculamente desnecessários. Mais uma
vez percebemos o alvo da sátira que é a Companhia e seu risível controle dos habitantes
daquela cidade. Por outro lado, as pessoas de Taitara aceitavam passivamente todas as
proibições por mais estapafúrdias que pudessem parecer, e viviam num clima angustiante,
pareciam presas àquela realidade estranha e, por vezes, irreal, àquela Companhia que
subvertia a ordem natural das coisas, e obrigava aquelas pessoas a viverem naquele mundo
invertido, inacreditável e sob constante tensão.
Nas proibições absurdas e sem sentido da Companhia notamos o elemento fantástico,
aquele que aniquila a lógica da realidade em favor de sua própria lógica absurda e mágica e
por mais incoerentes que fosses as proibições, eram cumpridas pela população sem
questionamentos.
Até mesmo o pai de Lu, que estranhamente se manteve no emprego após a saída de
Baltazar, tornando-se fiscal, ou seja, alegoricamente representando a Polícia de Repressão
brasileira, no final da narrativa abandona a farda, símbolo do poder militar, para tentar uma
vida nova. Entretanto, não consegue abrir seu próprio negócio porque é boicotado pela
Companhia e pela população, que jamais se esqueceu dos dias em que ele exerceu de forma
despótica sua função de fiscal. Horácio acaba sendo preso pela Companhia, da mesma forma
como viu e ajudou a prender muita gente. É uma ironia observável pelo contexto da narrativa
e confirmada pelo discurso da personagem; a esse respeito lemos:
129
Perguntei a meu pai o que era que elas queriam, e por que o tanto choro. Ele deu de
ombros e respondeu:
─ Querem que eu faça o impossível. Por que não conseguiram os maridos a andarem
na linha? Agora agüentem. (SRB, p. 32)
Quando Horácio, agora na condição de pessoa comum, sem a farda nem as regalias do
cargo, foi preso injustamente pela Companhia, seu próprio discurso voltou-se contra ele: ―Eu
fiz o que pude por você e por Lu, mas eles puderam mais.‖ (SRB, p. 107) Naquele mundo às
avessas, o imponderável poderia acontecer a qualquer momento, e aconteceu. Talvez fosse
possível resumir num ditado popular: ―um dia da caça, outro do caçador.‖
3.2 O INTERTEXTO COM OS DITADOS POPULARES
Sentenças latinas, ditos históricos,
versos célebres, brocados jurídicos,
máximas, é de bom aviso trazê-los
contigo para os discursos de
sobremesa, de felicitações ou de
agradecimento.
Machado de Assis, apud Revista
Língua Portuguesa, nº 45, p. 11
No livro há muitas expressões populares, talvez porque seu narrador seja uma criança
que mora numa cidade do interior, embora seja uma característica de J. J. Veiga a linguagem
simples, popular, sem rebuscamentos. Essa intertextualidade com a cultura popular perpassa
toda a narrativa de Sombras de Reis Barbudos, assim, arrolaremos apenas aquelas que
julgamos mais significativas para nosso tema.
Como Horácio tinha acesso à Companhia, Lu ficava sabendo de algumas coisas
antecipadamente, porém eram indícios extremamente vagos, porque não se sabia quais eram
exatamente as atividades da Companhia nem a dos fiscais. Antes da queda de Baltazar,
Horácio deixou escapar um sinal de que algo poderia acontecer com o cunhado, por meio de
um dito popular: ―Mas você não sabe o que eu sei. Estou lá todo dia, vejo e escuto muita
130
coisa. É bom a gente ir pondo as barbas de molho. Lu deve aprender um ofício, ou arranjar
um emprego.‖ (SRB, p. 19).
Na página seguinte, a mãe de Lu, cujo nome não ficamos sabendo porque é nomeada
pela sua função e representa talvez a família brasileira ou a mulher oprimida da época,
preocupa-se com o possível perigo de Baltazar ser traído na Companhia. Numa conversa com
tia Dulce, esposa de Baltazar, esta a tranquiliza utilizando um ditado popular, que acaba por
se revelar também uma ironia ou uma antífrase, como lemos:
O objetivo de mamãe, não era bisbilhotar, mas alertar, e tia Dulce logo a sossegou
dizendo que tio Baltazar estava acostumado a enfrentar intrigas na Companhia, e
nunca ninguém ia apanhá-lo desprevenido; ele sabia de tudo que se passava lá,
enquanto os inimigos estavam coalhando o leite ele já estava comendo o queijo.
(SRB, p. 20)
As previsões da tia Dulce revelaram-se totalmente contraditórias porque pouco tempo
depois os inimigos é que comiam o queijo enquanto Baltazar nem havia chegado a coalhar o
leite.
Já as previsões de Horácio só se confirmavam. Por exemplo, com a saída de Baltazar
houve boatos na cidade de que a Companhia estava por falir, comentário refutado por
Horácio, que disse: ―─ Olhe, Lu: é mais fácil um burro voar do que a Companhia acabar. Pare
de repetir bobagens.‖ (SRB, p. 26) O pai de Lu tinha razão, a Companhia não acabou e, se não
foram os burros que passaram a voar, foram as pessoas daquela cidade, como veremos mais
adiante.
Outro ditado popular que merece nossa atenção refere-se aos urubus que de repente
invadiram a cidade: ―Urubu de vigília, luto na família; urubu no telhado, choro dobrado ─
diziam com a careta correspondente os que se guiavam por ditados.‖ (SRB, p. 36)
Esse dito popular bastante sonoro, porque contém rima, revela em seu conteúdo
semântico a associação que a ave tem com a morte e a destruição. Os urubus estavam por toda
a parte, houve muita especulação a respeito do fenômeno, no início por falta do que fazer e
depois porque a Companhia proibiu, a população passou a adotá-los, tornaram-se bichos
caseiros, vivendo como animais de estimação nas casas.
131
A Companhia não podia deixar de exercer o controle sobre os urubus, então decretou
que quem desejasse permanecer com o bicho em casa, deveria registrá-lo. Os urubus que não
tivessem identificação e estivessem na rua seriam sacrificados e cremados; e mais, os custos
seriam rateados entre os moradores da rua onde o bicho fosse preso. Tais medidas
demonstram o absurdo da situação e a imposição autoritária dessa Companhia, que invadia a
vida das pessoas, determinando até suas afeições.
Poderíamos perguntar o porquê de o autor ter escolhido o urubu para compor sua
narrativa, ave devoradora de entranhas, que se alimenta de corpos em decomposição e de
imundícies, também nada agradável aos olhos ou aos ouvidos, ainda para piorar com fama de
trazer mau agouro, ligada à morte. O próprio texto nos fornece a resposta, a população adotou
os urubus porque ia contra a vontade da Companhia que passou a controlá-los, foi uma forma
de contestação, de afronta e também de resistência àquele órgão que queria pôr limites em
tudo. Domesticando aquelas aves a despeito das proibições da Companhia, a população tinha
a sensação tênue de que podia resistir e de que havia escolha. O texto apresenta a seguinte
reflexão:
No fundo já estávamos mesmo nos cansando deles. Afinal urubu nunca foi animal
doméstico, não canta, é feio, ajunta piolho, fede a carbureto e ainda carrega aquela
sombra agourenta. Nós os adulamos porque a Companhia implicou com eles, só
isso. Quando enjoamos da brincadeira, nós os empurramos porta afora. (SRB, p.
49)
Outra explicação possível para a escolha do urubu viria do estranhamento de tal ave
tornar-se de estimação, o fato de domesticar urubu é insólito o suficiente para afrontar a
lógica da realidade; portanto, a escolha do urubu reafirma a linha do fantástico presente em J.
J. Veiga. A escolha do urubu reafirma ainda a questão do isolamento vivido pelos habitantes
de Taitara, uma vez que, no simbolismo cristão, a ave é alegoria da solidão.11
Nenhum urubu sem identificação poderia andar nos espaços públicos, o animal que
fosse pego nesse delito era preso pelos fiscais. Os fiscais, por sua vez, viram-se muitas vezes
correndo atrás das aves e passando por situações ridículas que causavam o riso. O problema
maior, porém, foi justamente a proibição de não rir em público que acabava sendo
11
Dicionário de Símbolos de Juan-Eduardo Cirlot. Editora Moraes, 1984.
132
descumprida frequentemente em virtude da comicidade de se ver um fiscal tentando pegar um
urubu em fuga. Para não transgredir a lei nem sofrer as punições, a população arrumou um
mecanismo de estancar o riso, colocavam uma bola ou rolha na boca para evitar que a
gargalhada saísse:
Mas um fiscal, homem ligado à Companhia e representante dela cá fora, não podia
ser motivo de risadas na rua, e a proibição não demorou. Agora quem visse um fiscal
esparramado no chão e um urubu ao lado esperando o fiscal se levantar para
continuarem a brincadeira, se não tivesse muito cuidado podia perder para sempre a
vontade de rir. (SRB, p. 47)
O comentário do narrador é irônico porque desmoraliza tanto a figura do fiscal quanto
a da Companhia, ao falar sobre a importância do fiscal como representante externo daquela
empresa. Assim, um homem que ocupava um cargo tão importante para um órgão igualmente
importante, não poderia ser motivo de chacota da população. Ao falar que as pessoas estavam
proibidas de rir quando vissem ―... um fiscal esparramado no chão e um urubu ao lado
esperando o fiscal se levantar para continuarem a brincadeira...‖ o narrador está sendo irônico
porque para o fiscal aquela situação era muito séria, ele estava cumprindo sua função, seu
dever, porém, ao dizer que o urubu esperava para que eles continuassem a brincadeira,
demonstra que para a ave e para a população aquele procedimento não passava de uma
ridícula brincadeira infantil. O que se observava na cena era a figura patética de alguém
perseguindo uma ave que se esquivava, portanto, um passatempo para a ave, um espetáculo
cômico para a população, mas uma humilhação para os ficais e a Companhia.
―Cavalos na chuva” é o nome do capítulo em que Lu permite que dois cavalos sejam
recolhidos ao armazém do pai por ocasião de uma forte chuva que caia sobre a cidade. A
situação é muito estranha porque normalmente os cavalos ou são abrigados em lugares
próprios para eles ou deixados para fora dos estabelecimentos. Esses cavalos, porém,
contrariando a normalidade, entram no armazém e acabam por urinar e defecar no
estabelecimento, deixando Lu e depois seu pai muito irritados. Percebemos uma inversão de
valores, um mundo às avessas, próprio da literatura fantástica, no qual todos os disparates são
possíveis, até mesmo cavalos ocuparem os espaços dos seres humanos. A sensação que se tem
com a leitura do capítulo é a de que algo não está no seu devido lugar, não sabemos bem
133
porque aqueles cavalos são colocados para dentro do armazém, não faz sentido, não no
mundo como o conhecemos.
Observando os cavalos parados dentro do armazém, o narrador faz uma comparação
entre a tristeza dos cavalos e a das pessoas:
Na loja os cavalos cochilavam com o corpo fumegando, indiferentes à chuva e à
nossa tristeza porque já deviam ter a deles, cavalo arreado esperando o dono é bicho
triste, não tem vontade própria, só pode ir para onde é levado ─ exatamente como
nós em nossos caminhos entre muros. (SRB, p. 100)
Nesta comparação explícita entre cavalos e seres humanos, cada qual em sua
respectiva prisão, percebemos o quanto os habitantes daquela cidade sentiam-se tolhidos em
sua vontade e o quanto as proibições da Companhia afetavam os ânimos daquela população
que se sentia prisioneira em meio aos muros, verdadeiras muralhas intransponíveis. Para
ilustrar o caráter indestrutível dessas construções de concreto, o narrador utiliza um ditado
popular:
[...] se ao menos ela derrubasse ou derretesse os muros que nos cercavam, mas na
construção tinha entrado uma pasta inventada pelos técnicos da Companhia, aquilo
quando secava era mais duro do que cimento, do que pedra, os muros iam durar para
sempre, quem estivesse pensando em derrubá-lo podia tirar o cavalinho da chuva ─
pelos menos era o que diziam os fiscais quando viam alguém experimentando a
resistência deles com os nós dos dedos. (SRB, pp. 99 – 100)
O ditado serve como argumento poderoso para fazer com que as pessoas desistam de
derrubar os muros, numa tentativa de convencer a população da inutilidade de se tentar
destruir aqueles paredões de concreto resistente. Não se trata, porém, somente da destruição
dos muros no espaço físico, é também uma destruição psicológica dos muros mentais, muros
tomados como barreiras, imposições e proibições impostas pela Companhia.
134
3.3 DIMINUTIVOS IRÔNICOS
A simplicidade resulta sempre de
um violento esforço. Não se atinge
uma expressão fácil, concisa e
harmoniosa, sem longas e
tumultuárias lutas em que
arquejam juntos espírito e vontade.
Eça de Queiroz, apud Revista
Língua Portuguesa, nº 2, p. 7
Há uma ocorrência significativa de diminutivos em Sombras de Reis Barbudos,
muitas vezes indícios de ironia. Fizemos um levantamento de todas elas no livro e
constatamos que são usadas tanto pela classe oprimida quanto pela classe opressora, ou seja,
tanto a população quanto a Companhia e seus representantes as utilizam.
Um pouco antes do golpe que iria mudar os rumos da cidade, o narrador comenta o
relacionamento sempre difícil entre Horácio e Baltazar; neste comentário usa um diminutivo
para desqualificar as ações de Horácio, como evidencia a passagem do texto que ilustra esse
momento:
A trégua entre meu pai e tio Baltazar nunca chegou a ser completa. (...) Da parte do
tio Baltazar isso não era muito notado porque sendo ele um homem rico podia passar
por cima de muitas coisas e fingir que não percebia outras. Já meu pai, sempre às
voltas com probleminhas miúdos, era mais desconfiado, mais pronto a tomar o pião
na unha. (SRB, p. 17)
O diminutivo ‗probleminhas‘, seguido do adjetivo ‗miúdos‘, reforça a pequenez dos
problemas paternos na avaliação de Lu, em relação à altivez do tio Baltazar que, para manter
uma convivência amigável, é capaz de passar por cima de desafetos pessoais. Ao menosprezar
e diminuir a importância dos conflitos vividos pelo pai usando um diminutivo, Lu acaba
sendo irônico e avaliando negativamente Horácio; em contrapartida supervaloriza tio
Baltazar, atribuindo-lhe qualidades nobres.
135
Dois diminutivos também merecem nossa atenção, são eles: ‗lunetinha‘ e
‗binoculinho‘, usados por Horácio de forma irônica numa referência ao povo que estava
utilizando esses objetos para observar os urubus que sobrevoavam a cidade. Lu pediu ao pai
uma luneta para também espreitar as aves, a resposta de Horácio foi negativa e a justificativa
para a recusa não foi falta de dinheiro ou por ser a luneta ou o binóculo objetos frágeis que se
quebram facilmente, como Lu pensava. A justificativa apontou para o controle excessivo da
Companhia: ―─ Não é por isso. É que dentro de alguns dias não vai ter ninguém andando por
aí de lunetinha e binoculinho na mão. Já estamos de olho neles.‖ (SRB, p. 37)
Ao usar o diminutivo para se referir à luneta e ao binóculo, Horácio usa do cinismo e
abusa do poder que seu posto lhe confere, a mensagem implícita em sua fala nos leva a
entender a inutilidade de se ter um desses objetos num futuro muito próximo, bem como a
efemeridade da alegria das pessoas que estava prestes a acabar, pois a Companhia iria
confiscar os objetos e proibir seu uso. A intransigência fica bastante evidente na fala: ―Já
estamos de olho neles.” Esse ‗neles‘ tanto pode se referir à luneta e ao binóculo quanto às
pessoas que deles faziam uso. O trecho revela também a fiscalização excessiva da Companhia
e o impedimento de toda e qualquer forma de distração ou divertimento da população.
No inusitado episódio da conferência das plantas do quintal da casa de Lu, os fiscais se
deparam com uma situação inesperada: registrar ou não a presença de uns pés de fumo que
nasceram involuntariamente no quintal, uma vez que não constavam do formulário declarado
pelo proprietário da plantação. O fumo era considerado por Lu e sua mãe como uma praga,
um mato e que, portanto, poderia ser arrancado, dada a sua inutilidade; entretanto, os fiscais,
não podendo desvencilhar-se da burocracia do preenchimento do documento, divergiam se
aquele fato era ou não uma transgressão às leis da Companhia, segundo lemos:
O do papel me olhou feio e disse que arrancar não era com eles. A Companhia tinha
uma brigada especial para esse serviço, mas só depois de feita a parte e aberto o
processo é que ela agia. E perguntou ao companheiro:
─ Como é que fazemos? Arrolamos ou não?
─ Sempre aparece uma besteirinha pra atrapalhar ─ disse o outro coçando a cabeça. (SRB, p. 127)
O diminutivo ‗besteirinha‘ utilizado pelos fiscais revela a inutilidade da sua função por
meio da ironia, segundo o fiscal, sempre havia uma ‗insignificância‘ para atrapalhar o
136
andamento do trabalho. Pelo diálogo que se estabelece entre os fiscais e Lu, percebemos a
ironia observável na ridicularização das figuras do fiscal e da Companhia que contabilizam
até o mato que cresce nos quintais das pessoas, fiscalização ridícula que se torna mais risível
por conta da hesitação dos fiscais em arrolar ou não as plantas não arroladas. Lu argumenta
com os fiscais dizendo que se eles contabilizarem o fumo, teriam que fazer o mesmo com
todas as outras plantas da mesma categoria. A ignorância dos fiscais por acharem que todo
aquele mato havia sido plantado e não crescera involuntariamente, encerra a ironia observável
da cena.
3.4 O MÁGICO UZK
O mundo exterior existe como um
ator num palco: está lá, mas é outra
coisa.
Fernando Pessoa, apud Revista
Língua Portuguesa, nº 18, p. 7
O mágico Uzk serve aos interesses da Companhia pois promove distração para o povo,
tornando sua vida mais suportável e desviando sua atenção dos problemas e incômodos
causados pela empresa: ―Pois esse homem que nos distraiu tanto, a ponto de desviar
inteiramente a nossa atenção das dificuldades com a Companhia, está ameaçado de nunca ter
vindo aqui.‖ (SRB, p. 64)
Entretanto, o mágico exerce uma dupla função no texto, pois seu espetáculo favorece a
reflexão e leva os habitantes de Taitara a perceberem que existem outras possibilidades e
formas diferentes de viver, em liberdade, por exemplo.
Havia uma grande expectativa por parte da população com o anúncio da chegada do
mágico, pois todos queriam assistir ao espetáculo do grande artista. Como o mágico demora
demais para chegar à cidade, há especulações de que a Companhia tenha vetado sua presença.
A frustração da população volta-se contra a Companhia, alguns muros são pichados com
frases de protesto. O próprio Lu participou de um desses atos. E quando em casa questiona o
137
pai se foi realmente a Companhia que não permitiu a vinda do mágico, obtém a seguinte
resposta: ―Não me consta que tenha proibido. Se ele não vem é porque não quer. A
Companhia não se envolve com assuntos miúdos. E onde foi que o senhor ouviu isso?‖ (SRB,
p. 53)
Percebemos o menosprezo da parte de Horácio pelo artista; enquanto todos na cidade
desejavam ver o espetáculo, o pai de Lu parecia totalmente indiferente, respondendo com
ironia que a Companhia tinha assuntos mais sérios para se preocupar do que a simples vinda
de um mágico de segunda categoria. E quando finalmente surgiram novos cartazes
anunciando o espetáculo, Horácio aproveita para reafirmar que a Companhia jamais fora
contra sua vinda à cidade. Lu, porém, tem outras fontes de informações e elas dizem
exatamente o contrário: ―Mas pessoas que sabiam do que acontecia atrás dos panos
explicavam que para poder vir o mágico tinha se comprometido a só fazer as mágicas que a
Companhia aprovasse.‖ (SRB, p. 55)
Por meio da ironia observável ficamos sabendo que o pai de Lu, apesar de ser o
representante da Companhia, não dispunha de todas as informações ou não as queria
compartilhar; também que havia pessoas conscientes do que se passava nos bastidores da
Companhia, conscientes inclusive do domínio e da opressão exercidos por ela.
Enfim, o grande Uzk realmente cumpriu o papel de distrair o povo, mas certamente
não cumpriu o que prometeu à Companhia porque as mágicas que realizou incentivaram os
moradores daquela cidade a pensar no mundo de outra forma. Na verdade, foram elas,
verdadeiras metáforas da situação vivenciada pela população daquela cidade:
Naquela noite, e nas outras, o Grande UZK fez o que quis, virou o mundo pelo
avesso na nossa frente, desmanchou-o de novo de maneira diferente, nós vendo tudo
e não acreditando, ainda hoje não acredito. Ele voou como borboleta por cima da
platéia, pousando aqui e ali, subindo e baixando. Endureceu chamas de vela em
forma de cabacinhas avermelhadas e distribuiu as cabacinhas às senhoras. Mudou
uma bola de bilhar em cubo do mesmo peso, verificado em balança, e mostrou o
cubo, a quem quisesse ver e pegar. Transformou areia em água, muita gente lavou a
mão nessa água e precisou enxugá-la. Jogou uma bandeja de sapos para cima,
pareceu que eles iam cair como sapos mesmo, no meio da queda viraram beija-flores
e saíram voando com aquele vôozinho ora arisco ora parado dos beija-flores, alguns
encontraram a saída e se perderam na noite lá fora. Atravessou uma parede de tijolos
construída no palco na vista do público por dois pedreiros e depois examinada por
uma comissão escolhida a esmo na platéia, tudo gente daqui, conhecida e respeitada,
atravessou para um lado, para o outro, quantas vezes quis, o público pedindo bis, ele
passando para lá e para cá como se não existisse obstáculo. (SRB, pp. 59-60)
138
São muitas as metáforas utilizadas nas mágicas de Uzk que podemos atribuir à vida
daquelas pessoas. Em primeiro lugar, a própria essência da mágica que é fazer o impossível
acontecer na frente de nossos olhos. Talvez seja este o maior legado deixado por Uzk, mostrar
que é possível transformar a realidade, inverter a ordem das coisas por mais inacreditável e
insólito que esse ato possa parecer. De acordo com o narrador, Uzk virou o mundo pelo
avesso, ou seja, desconstruiu-o para então montá-lo de forma diferente; já estava, portanto,
ensinando o caminho àquele povo, a possibilidade de se edificar uma realidade totalmente
diferenciada da então vivida.
O voar como borboleta já é também uma alusão ao que acontece no final do livro,
quando as pessoas adquirem essa habilidade de voar para escapar daquela situação opressiva.
Assim como a mágica de atravessar uma parede é uma metáfora de que as pessoas também
poderiam atravessar aqueles muros que as cercavam, uma demonstração de que qualquer
obstáculo poderia ser transposto.
A função do mágico era provocar a discussão, abrir os horizontes tão limitados
daquele povo carente de liberdade, por isso, traz como essência de sua magia o
questionamento sobre a realidade aparente, mostra que essa realidade pode ser transformada
em nova realidade, por absurda que pareça, questionando assim o conceito de absurdo e
apresentando um mundo com possibilidades jamais pensadas por aquela gente. Esse
questionamento a respeito da realidade e do absurdo das coisas tem que ser apresentado em
linguagem cifrada e metafórica para não despertar a suspeita da Companhia. É um mecanismo
de resistência àquela situação de opressão que tem de ser manipulado de forma a que a
Companhia não perceba sua verdadeira função. Vemos aqui mais uma mobilização da
imagem do duplo: a mensagem do espetáculo é uma linguagem cifrada dentro de uma
narrativa que lança mão deste mesmo recurso.
O espetáculo de Uzk deixou toda a população desconcertada porque suscitou muitas
perguntas que ficaram sem respostas: era preciso dar coerência, tentar explicar o que não tinha
explicação, mas todos tinham visto acontecer diante dos olhos, e as mágicas-metáforas de Uzk
surtiram o efeito desejado porque, segundo o narrador, houve um movimento de reflexão de
todos acerca da metafísica desse mundo, como lemos no texto:
Saímos do teatro maravilhados e assustados, procurando explicações e não
encontrando. No meu caso quanto mais eu pensava menos entendia, e mais
139
assustado ficava. Não seria perigoso mexer com aquelas coisas, mostrar que o
mundo que conhecemos desde pequenos não passa de ilusão, ou não é o único?
Sendo assim, qual é o mundo real? Será um mundo em que pedras e sapos voam,
areia molha, fogo pode ser cortado e guardado no bolso? E será que para um mundo
assim este nosso é que é absurdo? Então o que não é absurdo? (SRB, p. 60)
A própria figura do mágico sofre uma transformação quando sobe ao palco. Nos
cartazes espalhados pela cidade o mágico parecia espetacular, os olhos eram penetrantes,
supunha-se que fosse alto e tivesse uma bela voz muito imponente. Sua fama o precedia,
vinha de muito longe, do Oriente e não fazia mágicas e sim verdadeiros milagres. Tanto a
propaganda boca a boca quando os cartazes espalhados pela cidade sinalizavam para um
artista ímpar, jamais visto na cidade.
Esta fama causa em Lu a maior decepção ao ver o mágico antes do espetáculo porque
todo aquele estereótipo do grande mágico dos cartazes e do falatório do povo não
correspondia à figura a sua frente. Na ironia observável vemos o grande Uzk como o oposto
de grandeza: era um homem pequeno cuja voz fina assemelhava-se a de um palhaço e não de
um mágico de sua estirpe. Assim diz a passagem do texto:
A voz também não correspondia à de um homem que olha o mundo com olhos de
brasa e faz as coisas obedecerem a sua vontade. Como poderia aquela vozinha fina e
tremida, mais própria de palhaço, mandar sapo virar borboleta, água virar areia,
esterco virar ouro, e ser obedecida? Era como a gente preparar os olhos para ver um
dinossauro e ver uma lagartixa. (SRB, p. 56)
Lu não podia acreditar que o grande Uzk estivesse a sua frente, a realidade não
correspondia à ideia que tinha formado em sua mente a respeito do mágico, a realidade
naquele momento parecia absurda. Não somente a figura do mágico não correspondia à
função como também suas ações, como aquela pessoa comum, com aquela ‗vozinha‘;
salientamos aqui o uso do diminutivo em sentido pejorativo: como poderia ordenar que fatos
maravilhosos e inusitados acontecessem somente por meio do comando daquela voz?
O comentário final do narrador é bastante interessante e irônico porque encerra uma
antífrase e uma ironia observável ao comparar a sensação de decepção que ele tivera ao
conhecer o mágico, diz que era como se preparar para ver um dinossauro e ver uma lagartixa.
140
O choque foi grande porque o grau de expectativa era alto e se esperava muito, Lu teve que
focar novamente sua visão para conseguir ver a insignificante e pequena lagartixa que era Uzk
fora do palco.
O que podemos inferir com esse episódio é que Uzk era uma pessoa comum, como
qualquer habitante da cidade, e, se ele podia transformar a realidade, fazer maravilhas, outras
pessoas comuns iguais a ele também podiam. Uzk também tinha um defeito físico como tio
Baltazar, era uma mancha avermelhada de um lado do rosto e diz o texto que ele a enxugava
constantemente. Mais um sinal de humanidade do mágico.
Mas, ao subir ao palco o mágico se transforma no grande Uzk dos cartazes, talvez pela
magia que envolve o espetáculo. A esse respeito lemos:
―É difícil explicar, mas no momento que a cortina se abriu eu senti qualquer coisa
diferente no ar, assim um arrepio vindo não sei se de dentro ou de fora de mim, uma
mudança na qualidade dos sons, como se meus ouvidos tivessem acabado de passar
por uma limpeza sensacional, e sei que todo mundo sentiu a mesma coisa. O homem
que estava no palco de braços abertos para a platéia ─ o mesmo que eu tinha visto
dias antes na sala de espera ─ era novamente o Grande UZK dos cartazes. (SRB, p.
59)
Portanto, a transformação do pequeno homem no grande mágico Uzk ocorre no
momento em que se abrem as cortinas e começa o espetáculo. Desse modo, sob outro aspecto,
Uzk representa o duplo, apontando para outros ‗eus‘ dentro de uma mesma pessoa, uma vez
que se apresenta em imagem duplicada: o grande mágico dos cartazes e dos palcos, cujos
olhos de brasas hipnotizam as pessoas, carrega o toque da magia, daquele que não faz parte
deste mundo e por isso mesmo está acima dele; já o Uzk longe dos holofotes e do marketing é
uma pessoa comum, desprovida de glamour e de qualquer atributo especial.
A questão do duplo na literatura fantástica corrobora para o estranhamento, porque há
uma identificação do sujeito com outra pessoa, postura que coloca em xeque a verdadeira
identidade do ‗eu‘; outras vezes, o ‗eu‘ é substituído por um estranho, ocasionando a divisão
do ser ou a duplicidade. Essa sensação de réplica do ser causa uma atmosfera de ambiguidade
que propicia o fantástico, pois contribui para a falta de coerência da narrativa.
O duplo pode ser criado por um princípio psíquico, ou seja, por uma projeção de um
desejo íntimo, pelo desejo de mudar uma realidade insuportável; fato é que o duplo é sempre
141
inquietante porque, ao mesmo tempo em que é idêntico ao original, é também diferente.
Assim argumenta Rodrigues:
No famoso trabalho sobre o estranho, Unheimlich (1919), Freud nos faz ver que a
idéia do duplo tem a ver com um retorno a determinadas fases na evolução do
sentimento de autoconsideração (sic), em que o ego não se distingue do externo e de
outras pessoas. [...]
O duplo, portanto, pertence a essa fase de indiscriminação entre o eu e o outro, o eu
e o mundo. A mesma indiscriminação retorna em certas patologias mentais, além de
ser explorada no domínio da ficção e da arte em geral, por ser rica em sugestões e
crítica do que somos, do que poderíamos ser, das fantasias de poder ser outro etc. (RODRIGUES, 1988, p.47)
Muitas narrativas usam o recurso dos espelhos para instaurar a duplicidade porque é
por meio deles que somos duplicados. Assim, em Sombras de Reis Barbudos, os cartazes do
mágico fazem às vezes de espelhos que refletem, ou deveriam refletir, o eu. No entanto, os
cartazes duplicam de forma ambígua a figura do mágico, lançando dúvida a respeito de sua
verdadeira identidade.
Qual seria então a função da duplicidade do mágico Uzk na narrativa? Seria talvez a
de fazer saber a todos que é possível mudar, que a realidade pode ser alterada e que a
aparência depende do contexto, ou seja, um homem comum, até com um defeito físico (uma
mancha no rosto) poderia se transformar no famoso mágico Uzk dos cartazes e realizar o
impossível (mágica).
O narrador depois de dedicar um capítulo ao mágico Uzk e a seus grandes feitos na
cidade, depois de descrever toda a polêmica em torno de sua figura, questiona-se sobre se
tudo não passou de um sonho:
Pois esse homem que nos distraiu tanto, a ponto de desviar inteiramente a nossa
atenção das dificuldades com a Companhia, está ameaçado de nunca ter vindo aqui.
Parece até que a lembrança dele, e de suas mágicas incríveis, se queimou no
incêndio do teatro. Ou o esquecimento é outra mágica que ele nos deixou? Mas se é
assim, como explicar que nem todo mundo esqueceu? Alguma manobra do mágico
para gerar discussão e aumentar a confusão?
Eu mesmo já não sei quanto tempo o Grande Uzk esteve aqui. (SRB, pp. 64-65)
142
A passagem do mágico pela cidade deixou muitas questões em aberto. Admitir a vinda
do mágico e relembrar sua magia significava repensar posturas e tomar atitudes para mudar a
vida e a realidade em que se vivia. Esquecer o mágico era fugir do problema e continuar
naquela vida, significava não tomar nenhuma atitude, portanto, também não sofrer com elas.
Daí tamanha imprecisão a respeito de sua estada ou não na cidade.
O mágico Uzk é também a presença do maravilhoso no texto devido as suas mágicas,
pois num comandar de sua voz coisas impossíveis de acontecer no mundo real aconteciam.
Era o mundo da fantasia tomando conta do mundo real, daí o nome do capítulo ―Pausa para
um Mágico”, ou seja, como um descanso daquele mundo que também não tinha muita lógica,
para viver um conto de fadas, no qual os maiores disparates seriam possíveis.
3.5 OS FISCAIS E A REPRESSÃO / MUROS
O que me preocupa não é o grito
dos maus. É o silêncio dos bons.
Martin Luther King, apud Revista
Língua Portuguesa, nº 9, p. 7
Com a nova administração da Companhia instaurou-se na cidade um clima de
desconfiança em que todo cidadão teria o que esconder e, portanto, todos são vigiados
permanentemente. Para controlar melhor a população, a Companhia corta os canais de
comunicação da população, primeiro por meio dos muros que impedem a interação e a
convivência, depois, por meio das sucessivas proibições que impedem ao indivíduo o
exercício da liberdade. A vigilância constante leva as pessoas a desconfiarem também umas
das outras e, consequentemente, ao afastamento, ao isolamento pessoal.
A impossibilidade de comunicação e de locomoção, além da vigilância permanente da
Companhia, causam uma espécie de amnésia coletiva na população, uma vez que a memória é
prejudicada devido à massificação produzida pelo sistema repressor. Daí o clima angustiante
da narrativa e de seus personagens que vivem naquele espaço sem perspectivas de mudança,
143
com a paralisação do tempo e a repetição constante das mesmas ações sem finalidade, que
acabam por aprisionar ainda mais as pessoas naquele círculo opressor. Lemos:
[...] a vida era uma estrada comprida sem margens nem marcos, estar aqui era o
mesmo que estar ali, o hoje se confundia com o ontem e o amanhã não existia nem
em sonho; nós esperávamos qualquer coisa mas já nem sabíamos se era para adiante
ou para trás. (SRB, pp. 51- 52)
O primeiro indício de que as coisas haviam mudado na cidade foi a censura artística: a
peça que Lu e seus colegas ensaiavam na escola foi impedida de ser apresentada,
repentinamente, sem nenhuma explicação. Portanto, a primeira medida da Companhia foi
reprimir o movimento artístico e cultural de Taitara. Depois foram os muros que apareceram
cercando as casas de um dia para o outro sem que ninguém testemunhasse sua construção:
De repente os muros, esses muros. Da noite para o dia eles brotaram assim retos,
curvos, quebrados, descendo, subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o
traçado, separando amigos, tapando vistas, escurecendo, abafando. Até hoje não
sabemos se eles foram construídos aí mesmo nos lugares ou trazidos de longe já
prontos e fincados aí. (SRB, p. 27)
Os muros representam separação, pois dividem as casas, as ruas, os bairros, isolando
as pessoas em suas casas, uma vez que era muito difícil se locomover por entre eles, porque
formavam verdadeiros labirintos, nos quais as pessoas se perdiam. Isso sem contar o tempo
que levavam para percorrer distâncias que, sem a presença dos muros, seriam percorridas
rapidamente. O fato é que os muros taparam a visão das pessoas com a projeção de suas
sombras, tornando o ambiente abafado. Os muros limitaram os espaços físicos e psicológicos
de Taitara, indicando a restrição da geografia da cidade e por extensão também do mundo
social, cultural e psicológico das pessoas, que preferiam ficar em suas casas porque as ruas
tornaram-se perigosas, lugares hostis pela presença dos fiscais. De acordo com o texto:
144
Com tanto muro por toda parte cansando e desanimando, era difícil saber o que
acontecia na cidade, o que o povo estava pensando e dizendo. Antigamente eu
chegava da escola cheio de novidades para mamãe, agora ia e vinha a bem dizer no
escuro, as poucas pessoas que encontrava também não sabiam de nada, nem tinham
disposição para falar. Em qualquer lugar só se via muro, a menos que se olhasse para
cima; mas o que era que a gente podia ver no céu a não ser nuvens e urubus? (SRB,
pp. 32-33)
Na realidade, dependendo do viés em que são considerados, muros podem ser
benéficos ou maléficos, pois se de um lado são barreiras erguidas com a função de impedir a
livre locomoção das pessoas, por outro, ajudam a defender a sua privacidade e segurança.
Lemos no Dicionário de Símbolos as acepções ligadas à imagem ―muro‖ que refletem sua
duplicidade de sentido:
Como parede, que fecha o espaço, é o ―muro das lamentações‖, símbolo do
sentimento ―de caverna‖ do mundo, do imanentismo, da impossibilidade de transir
ao exterior (da metafísica). Expressa a idéia de impotência, detenção, resistência,
situação, limite. Pois bem, o muro em forma de cerca e considerado a partir de
dentro tem um caráter associado, que se pode tomar como principal ─ depende da
função e do sentimento ─ de proteção. (CIRLOT, 1984, p. 396)
De qualquer modo, no caso da narrativa analisada, os muros cercearam os espaços
físicos e psicológicos, restringindo o horizonte das pessoas e revelando a carga negativa da
imagem: impotência, detenção.
Os fiscais eram representantes diretos da Companhia de Melhoramentos de Taitara,
eram eles que promoviam a ordem e faziam cumprir todas as determinações da Companhia.
Exerciam suas funções de forma arbitrária e despótica refletindo a filosofia de governar
autoritária e repressora da Companhia; faziam com que as leis fossem cumpridas por mais
absurdas que pudessem parecer, e também aplicavam as punições cabíveis em caso de
descumprimento das normas. Fiscalizavam e investigavam a vida das pessoas chegando a
provocar o desespero da população, e, é claro, muitas desavenças e antipatias.
O controle da população estabelecido pela Companhia e executado pelos fiscais,
privando as pessoas de sua liberdade num ato de violência sem precedentes, torna inevitável
sua comparação com o momento histórico vivido pelo Brasil por ocasião do golpe militar de
1964, porque além da data da publicação do romance, 1972, coincidir com o período da
145
ditadura, há outras semelhanças que nos permitem tal comparação, tais como a perda da
liberdade de expressão, seguida pela violência contra o indivíduo que não cumprisse as regras
estabelecidas por um governo autoritário. Como observamos no texto: ―Eu não sabia o que
poderia acontecer a meu pai se a Companhia descobrisse quem tinha dado o aviso, eles agora
estavam com a mania de fazer inquérito para tudo, mais cedo ou mais tarde descobriam.‖
(SRB, p. 40)
Mesmo com tamanha falta de liberdade e inúmeras regras a seguir, os habitantes de
Taitara pareciam presos de forma definitiva àquela realidade e conformados, não acreditavam
na possibilidade de fazer alguma coisa para mudar aquela situação, viviam numa espécie de
letargia. Somente Lu em alguns momentos da narrativa e alguns de seus colegas projetam-se
como a voz da resistência, por meio das pichações de protesto, segundo lemos: ―No caminho
vi os avisos nos muros e fiquei orgulhoso, como se eu mesmo os tivesse escrito. Por uma
decisão minha ninguém ia perder sua luneta, a menos que fosse muito descrente.‖ (SRB, p.
43) Foi a primeira vez que Lu se posicionou contra a Companhia e consequentemente contra
Horácio que a representava, para defender os colegas que iriam perder as lunetas e os
binóculos que serviam para observar os urubus, já que a Cia iria confiscá-los.
Em outro episódio, Lu participa efetivamente da ação revolucionária, revoltado com a
Companhia por achar que ela proibira a vinda do mágico Uzk à cidade:
E a nossa frustração se voltava contra a Companhia. Uma noite eu e alguns colegas
saímos com umas bagas de tucum no bolso desabafando a nossa raiva nos muros,
enquanto dois vigiavam as pontas da rua outros escreviam ABAIXO A CIA
raspando o tucum no muro. (SRB, p. 53)
Percebemos claramente os mecanismos de repressão exercidos pela Companhia e
também a fraca resistência nas figuras de Lu e de seus colegas, que, por analogia, são os
estudantes, intelectuais e artistas da época da ditadura militar no Brasil, aqueles que não se
conformavam com a situação vigente.
As proibições impostas pela Companhia são absurdas e insólitas e acabam por
ridicularizar a empresa. O absurdo e o grotesco das regras estabelecidas pela Cia não deixam
dúvida de que ela é o alvo da sátira do narrador porque, além de ser a causadora de todos os
146
problemas da cidade, é também motivo de escárnio e comicidade. De um lado encontra-se a
população oprimida e de outro, a Companhia opressora.
A Companhia se preocupa com absolutamente tudo que o povo faz ou deixa de fazer,
o controle é total e por vezes impossível de ser estabelecido. Nesta situação tensa de domínio
absoluto, gerou-se um clima de desconfiança não somente entre população e fiscais, mas entre
as próprias pessoas da cidade, uma vez que havia muitos informantes. Se a Companhia apenas
desconfiasse que alguém havia burlado uma lei ou era subversivo, não havia maneira de o
cidadão provar sua inocência.
Portanto, as pessoas viviam um paradoxo sem precedentes, com o abuso de poder
estampado na falta de critério da Companhia para julgar quem era inocente e quem era
culpado. Na verdade a população andava às escuras porque qualquer ação sua poderia ser mal
interpretada e o que hoje parecia correto no minuto seguinte poderia não o ser.
Além das proibições já tratadas em itens anteriores, como a de observar os urubus, por
exemplo, há outras também inacreditáveis, como a de não se permitir o riso em público, nem
pular muro para cortar os longos caminhos desenhados pelos muros. A desobediência era
punida com rigor e então percebemos, além dos mecanismos de repressão, também os de
punição e de tortura física. Exatamente como acontecia no Brasil após 64, quem fosse contra
o regime militar ou era preso ou exilado, na pior das hipóteses era também torturado e morto.
O próprio Veiga, ao falar deste seu romance, relaciona-o com a situação política
brasileira:
[...] tive de fazer o meu terceiro livro, que foi Sombra de reis barbudos, em que
aquele clima [de sufoco] é levado ao auge, porque na vida, cá fora, a opressão estava
no auge. Assim, a minha literatura, (...) sempre esteve presa à atmosfera política do
país. (...) Então eu não tinha outro jeito senão continuar fazendo os livros que a
situação política, o clima político-social não só permitiam, mas acho que talvez
pediam que eu fizesse. (PRADO, 1989, pp. 27-28)
Mário da Silva Brito, na contra capa de Sombras de Reis Barbudos, faz suas
observações a respeito de Veiga e de sua obra, esclarecendo:
147
Apólogo, fábula, parábola, não importam as classificações, Sombras de reis
barbudos é uma opressiva história de terror e tensão logo fecundada por mais
amplos e profundos objetivos. O que nela há de delirante, de pesadelo angustioso,
em última análise não nasceu da imaginação do escritor. Promana do mundo em que
o homem vive sufocado, com seus passos seguidos e perseguidos por estranhas e
invisíveis forças. É o retrato de um tempo histórico universal. (BRITO, contra
capa SRB, 1983)
Portanto, segundo ele, apesar de Sombras de Reis Barbudos revelar uma situação
opressiva específica que foi a ditadura militar brasileira, sua leitura se faz atual porque
transcende este momento específico e atualiza-se como denúncia das muitas formas de
opressão sofridas pelos seres humanos.
Ainda refletindo o clima da época ditatorial, percebemos o caráter punitivo da
Companhia pelas descrições de tortura realizadas por ela, punições absurdas infligidas aos
habitantes de Taitara que ousassem desobedecer às ordens:
A Companhia devia saber o que estava fazendo porque apesar de todos os perigos
algumas pessoas tentaram pular muro e foram agarradas antes mesmo de porem os
pés do outro lado. Um menino gaguinho que sentava perto de mim na escola teve os
dedos da mão direita costurados um no outro no hospital da Companhia e passava o
tempo olhando para a mão como abobalhado. (Quem pensar que isso não incomoda
experimente agüentar meia hora que seja com os dedos colados ou amarrados.)
Outros voltaram do hospital com um aparelho de ferro atarrachado nas pernas para
impedi-las de se dobrarem, outros voltaram com a mão metida numa espécie de
sacola de couro presa no punho com um peso de muitos quilos dentro. Ainda bem
que eu acreditei na proibição. (SRB, pp. 46- 47)
É num tom inocente que Lu narra todas essas atrocidades cometidas pela Companhia,
são torturas e punições físicas impostas ao cidadão e mostradas sem pudor para servir de
exemplo aos outros habitantes caso pensassem em desobedecer às ordens. Agindo desta
maneira a Companhia queria desencorajar atos de rebeldia.
Mais uma alusão aos atos punitivos da época é feita quando numa conversa em que Lu
pergunta a Horácio sobre uns prédios construídos pela Companhia, afirmando que a
população dizia que seriam usados para laboratórios; a resposta de Horácio é dada de forma
irônica:
148
─ Laboratório. Vocês cá fora não sabem de nada mesmo, hein? ─ Sorriu, sacudindo
a cabeça para a nossa ignorância.
─ É o que estão dizendo ─ resmunguei desapontado.
─ Até que não ficava muito esquisito chamar cadeia de laboratório.
─ Cadeia? Pra que agora?
─ Pra que é que serve cadeia rapaz? Ficou bobo?
─ Eles vão prender mais gente? (SRB, p. 69)
Percebemos a ironia do pai de Lu ao avaliar de forma negativa a população tão mal
informada sobre as ações da Cia. e também ao julgar seu próprio filho que por meio de uma
pergunta retórica ―─ Cadeia? Pra que agora?” intencionava descobrir mais a esse respeito. O
uso irônico do eufemismo que sugere achar interessante chamar cadeia de laboratório
comprova o tom de desdém e cinismo de Horácio para com o filho e o restante da população,
ressaltando a superioridade e o autoritarismo da Companhia.
Outro episódio que mostra a desconfiança da Companhia é a menção a uma máquina
de pegar mentiroso, espécie de aparelho que detectava quando alguém estava faltando com a
verdade nos inquéritos da Cia. Os próprios fiscais se perguntavam se eles poderiam ser
submetidos a tal máquina por causa das pichações nos muros. Portanto, o clima de opressão e
desconfiança afetava até mesmo quem aparentemente estava do lado do sistema; a
instabilidade era tamanha que qualquer um, mesmo um fiscal, poderia ser considerado
subversivo:
─ Com certeza vão abrir inquérito ─ disse um fiscal arrancando pedacinhos das
unhas com os dentes e cuspindo para o lado.
─ Com certeza ─ disse meu pai.
(Ele já tinha curtido o medo dele, agora se divertia com o dos outros.)
─ Será que vão passar a gente pela máquina de pegar mentiroso? ─ indagou outro.
─ Em último caso sim. Mas não creio que seja necessário ─ disse meu pai. (SRB,
p. 43)
A Companhia não tolerava traidores nem admitia ser contestada em suas ordens e na
sua filosofia de governo; tanto é verdade que quando Horácio resolve sair da Companhia e
investir em negócio próprio é boicotado por ela e por todos os habitantes da cidade, estes
últimos por motivo de vingança, lembrando ainda os dias em que o pai de Lu era fiscal. A
149
esse respeito reproduzimos um diálogo entre um carpinteiro que se recusou a fazer as
prateleiras para o armazém de Horácio:
─ É? Olhe aqui rapaz. Já foi o tempo que você andava aí para cima e para baixo com
uma fardinha engomada amedrontando todo mundo. Fique sabendo que eu hoje
trabalho para a Companhia e não tenho medo de você. E é bom não me ameaçar com
processo e outras bobagens. (SRB, p 104)
Pode-se perceber a ironia observável e também a contrastiva, na qual a inversão
semântica é realizada mais uma vez pelo diminutivo irônico ‗fardinha‘. O termo é utilizado
em sentido pejorativo para lembrar a época em que Horácio tentava impor respeito por meio
daquela indumentária e se achava muito superior ao restante da população porque trabalhava
para a Companhia e tinha o poder de investigar e controlar as pessoas. O carpinteiro, agora
funcionário da Cia., se vingava de Horácio utilizando as regalias que o posto lhe oferecia.
Horácio estava em situação inversa, diante de um funcionário da Companhia que, embora não
estivesse fardado, ironicamente utilizou o mesmo argumento de autoridade que ele usava
naqueles tempos em que sentia prazer em ameaçar os outros.
Seria no mínimo ingênuo da parte de Horácio pensar que a Companhia iria permitir
toda essa liberdade de escolha, uma ilusão para alguém que trabalhara tantos anos para a
Companhia e por consequência deveria saber que ela jamais permitiria essa insubordinação.
Com a prisão de Horácio, denunciado como contrabandista, Lu e a mãe passaram por
muitas dificuldades financeiras, mas sobreviveram, assim como o restante da população. A
Companhia fechou o cerco ainda mais, chegando ao absurdo de fechar as estradas; nem cartas
recebiam, era o isolamento total.
A fiscalização aumentou, estavam registrando até as plantações de fundo de quintal
das pessoas, ou seja, a Companhia chegou ao ridículo de querer saber até quantos pés de
alface as pessoas tinham em suas hortas domésticas:
─ Sabe o que foi mais que eles inventaram? Agora quem tem plantação no quintal é
obrigado a se registrar na Companhia.
(...) ─ Você acha pouco? Declarar quantos pés a gente tem de cada planta! (SRB,
p. 120)
150
Na segunda visita dos fiscais à horta da mãe de Lu, a descrição da conferência da cada
planta é minuciosa, até os pés de matos que nascem a despeito da vontade de seus donos são
catalogados pelos fiscais:
Levei-os primeiro à horta, eles contaram e conferiram cada tomateiro, cada
quiabeiro, as pimenteiras, os jilozeiros, os pés de alface e de couve, anotando as
falhas abertas nos canteiros desde a remessa do formulário; a cebola, a salsa, o alho,
as abobreiras, tudo era examinado por cima, por baixo, cheirado, um contando, outro
marcando no papel. Eu ficava de lado olhando e pensando cá minhas coisas. Um
deles desconfiou que eu estivesse criticando e disse ajoelhado diante de uma
abóbora, a cabeça virada para mim:
─ É assim mesmo que se faz. Não pense que não gostamos desse trabalho.
Quando já estava tudo conferido e julgado conforme, e íamos passar às quadras de
batata e mandioca e às fruteiras, o fiscal que tomava conta do formulário apontou
uns pés de fumo no canto da cerca e disse:
─ Aquilo ali não foi arrolado.
─ Está vendo? Ia escapando ─ disse o outro. (SRB, p. 126)
O narrador descreve de forma irônica a cena dos fiscais vistoriando a horta de sua
mãe, diz que olhavam tudo, ‗cada‘ tomateiro, conferindo para ver se batia com o formulário
preenchido pelo proprietário. A ironia observável fica por conta da imagem do fiscal
ajoelhado em frente a um pé de abóbora: diante do ridículo da situação diz que gosta do que
faz. A cena consegue ficar ainda mais risível quando os fiscais questionam a respeito das
plantas que nascem involuntariamente na horta; a esse respeito lemos:
─ Como é que fazemos? Arrolamos ou não?
─ Sempre aparece uma besteirinha pra atrapalhar ─ disse o outro coçando a cabeça.
Vocês usam esse fumo? Perguntou para mim.
─ Pra que? Não serve para nada. Só pra passar no corpo quando a gente apanha
carrapato.
─ Então usa. Vamos anotar.
─ Então convém anotar também o fedegoso, o assapeixe, as moitas de bambu ─ eu
disse olhando em volta e citando ─ E lá mais no fundo tem muito melão-de-são-
caetano, taioba, capim-malícia, tanta coisa que o papel não vai caber.
─ Tudo plantado?
─ Tudo nascido contra a nossa vontade. (SRB, p. 127)
O controle obsessivo da Companhia é ridicularizado quando os fiscais ficam em
dúvida se contam ou não as plantas que nasceram involuntariamente. Quando um dos fiscais
151
pergunta a Lu se ele usa aquela planta e a resposta é positiva, imediatamente o fiscal conclui
que aquela planta deve ser declarada no formulário. Lu então diz que se eles declararem o
fumo, teriam que declarar todas as outras inúmeras plantas que inofensivamente cresciam nos
quintais das pessoas sem que elas por vezes se dessem conta e sem que conseguissem
controlar o mato. A resposta de Lu é irônica de uma maneira inocente porque todos que têm
horta parecem saber do fato, menos os fiscais que, indecisos, discutem o assunto que é digno
de riso.
3.6 PESSOAS VOANDO
... não existe dor insuportável; dor
insuportável ninguém sabe como é
porque ainda não sofreu.
J. J. Veiga, 1983, pp. 115-116
O último capítulo de Sombras de Reis Barbudos é chamado de “Das Profundezas do
Céu” nome bastante sugestivo porque é olhando para o alto que as pessoas começam a ver
algo impossível, algo que contraria a realidade tal qual a conhecemos, que desafia todas as
leis já existentes no mundo: as pessoas estão voando. No início são poucas, mas depois muitas
são vistas viajando pelo céu.
Há um questionamento por parte do narrador e também por parte de todos que vivem
em Taitara a respeito da veracidade desse fato. Será mesmo que as pessoas estão voando ou
todas sofrem de alucinação coletiva? Lu chega a pensar que é um truque, uma estratégia da
Cia. para enganar as pessoas. O objetivo de se fazer tal coisa, ninguém sabia: ―Voltei para
casa desapontado e apreensivo. Ou mamãe tinha razão em achar que eu estava doente ─
doença de ver gente voando? ─ ou aquilo era uma nova manobra da Companhia, e tão
perigosa que as pessoas preferiam fingir que não estavam vendo.‖ (SRB, p. 123)
O ato de voar significa, numa leitura metafórica, a busca da liberdade ou da harmonia
interior, voar não somente no contexto físico, mas também psicológico, ultrapassar aquela
situação de opressão e estreitamento dos horizontes. As pessoas começaram a voar porque
152
não aguentavam mais viver naquela redoma, sentiam-se sufocadas pelo ambiente opressivo
dos muros, somente o céu apresentava-se como uma chance de libertação.
O voo das pessoas também é um dos momentos da narrativa que mais caracterizam a
literatura fantástica, por conta da quebra que o fato promove na realidade tal qual a
conhecemos, uma vez que um ser humano voar, sem estar em um avião, contraria as leis da
física e da gravidade, segundo as quais os corpos tendem a ficar presos à terra caso seu peso
seja maior que o do ar. A esse respeito lemos o que diz Todorov:
Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o
nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um
acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar.
Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de
uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do
mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é
parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis
desconhecidas por nós. (1975, p. 30)
É o que ocorre em Sombras de Reis Barbudos com o advento do voo das pessoas, o
fato é aceito, mas é questionada sua veracidade. Uma das hipóteses é alucinação coletiva mas
a resposta é deixada em aberto, não se chega a uma conclusão, ou seja, algo bem próprio da
literatura fantástica: a coexistência do possível e do impossível.
Não tardou muito e a Companhia proibiu também o voo das pessoas, mas como não
obteve sucesso na proibição e a cada dia mais e mais pessoas voavam, tomou medidas de
contenção, primeiro proibiu os habitantes de olharem para cima, assim não podiam ver o mal
exemplo das outras pessoas voando como pássaros. Uma medida como essa, porém, além de
ser ridícula, é muito difícil de ser cumprida, porque não olhar para cima enquanto se realizava
afazeres diários era praticamente impossível; além do mais, como resistir à tentação de olhar
para o céu, única esperança de liberdade uma vez que não havia nada de bom para se olhar
para baixo, somente muro? A população achou por bem inventar um mecanismo para que as
pessoas não fossem punidas injustamente, criaram um aparelho que coibia as pessoas de
olharem para cima e desta forma elas não seriam castigadas pela Cia.:
153
Como é que os nossos netos ou bisnetos vão saber para que serviam esses blocos de
madeira formados de duas partes unidas por dobradiças de um lado e fechadas com
trinco de outro, tendo no meio um buraco da grossura de um pescoço, e numa das
metades um espeto com a ponta inclinada para o centro? Será que alguém vai
descobrir que isso é um aparelho que usávamos em volta do pescoço quando
saíamos à rua, e que o espeto servia para cutucar a nuca quando a pessoa se distraia
e erguia um pouco a cabeça? (SRB, p. 133)
A descrição do aparelho inventado pela população para não olhar para cima mais
parece a exposição de um objeto de tortura, o que na verdade era, uma verdadeira
materialização do poder indiscriminado da Cia.
O fato das pessoas voarem parece ter afetado bastante a Companhia porque as
providências que foram tomadas para coibir esse hábito revelam a gravidade do feito; são
medidas sofisticadas, surreais e cruéis, são objetos que caem do céu, coisas muito esquisitas
que causam mal estar às pessoas ou acabam por machucá-las:
Para convencer o povo de que nada de bom pode vir lá de cima a Companhia deu
para nos fazer advertências práticas. Frequentemente caem coisas esquisitas sobre a
cidade, um dia são pedaços de uma matéria pegajosa em forma de orelhas, caem em
lugares muito freqüentados, grudam onde batem e ficam exalando uma catinga
horrível, de repente pegam fogo e somem, deixando no lugar uma mancha vermelha;
outro dia são uns objetos difíceis de serem descritos porque caem a grande
velocidade e quando tocam o chão saem pulando em ziguezague guinchando,
roncando, gargalhando, e ainda têm um ferrão serrilhado que corta esgarçando: outro
dia baixam enxames de mutucas mecânicas que picam a torto e a direito, injetando
uma substância que produz inflamação e febre alta, e desaparecem com a mesma
rapidez.
Apesar de todas essas manobras a Companhia não está conseguindo amedrontar o
povo. Dia a dia aumenta o número de gente no ar, não é preciso olhar o céu para
saber, basta ver a quantidade de sombras no chão, principalmente ao meio-dia, e
notar a falta de tanta gente aqui embaixo. (SRB, p. 133)
É uma tentativa de desacreditar ou desvalorizar o espaço ‗céu‘, visto pela população
como o paraíso, assim, de lá é que passou a vir os castigos impostos pela Cia, portanto, não
poderia ser um lugar tão bom quanto a população acreditava que fosse. Mas não obtém
sucesso porque praticamente toda a população adquire a habilidade de voar e a usa, a despeito
das estranhas punições impostas pela Companhia.
A descrição das punições impostas pela Companhia reproduzidas na citação remete-
nos ainda ao que Todorov chama de „maravilhoso instrumental‟:
154
Aparecem aqui pequenos gadgets*, aperfeiçoamentos técnicos irrealizáveis na época
descrita, mas no final das contas perfeitamente possíveis. Na ―História do Príncipe
Ahmed‖ da Mil e uma noites, por exemplo, esses instrumentos maravilhosos são, no
início: um tapete voador, uma maçã que cura, um ―tubo‖ de longa visão; em nossos
dias, o helicóptero, os antibióticos ou o binóculo, dotados das mesmas qualidades,
não são absolutamente do domínio maravilhoso; o mesmo acontece com o cavalo
voador em ―A História do cavalo encantado‖. (TODOROV, 1975, p.62) *Em inglês no original. O gadget, palavra americana que significa ―artigo
engenhoso‖, a mechanical contrivance ordevice, da palavra francesa gachette, é um
pequeno objeto ou acessório de um objeto maior (gadgets de automóveis) e pertence
à classe dos diminutivos. Definição: ―Objeto artificioso destinado a satisfazer essas
pequenas funções particulares na vida diária‖. Abraham Moles, O Kitsch (―O que
é o gadget?‖, p. 206), tradução da Editora Perspectiva, Col. Debates.
(N. da T.)
Portanto, os objetos estranhos que caiam do céu não correspondiam às coisas que
sabíamos existir na realidade da época, pareciam ter vindo de um futuro ou de um livro de
ficção científica. O mesmo se aplica ao aparelho inventado para que as pessoas não olhassem
para cima, um verdadeiro „gadget‟, uma engenhoca mecânica inventada para satisfazer uma
necessidade da vida diária.
Com relação aos castigos aplicados pela Companhia, ocorre o que Todorov chama de
„maravilhoso científico‟, ou seja, o sobrenatural é explicado de uma maneira racional, mas a
partir de leis que a ciência contemporânea não reconhece. Não havia, na época, tecnologia
suficiente para a construção e operacionalização daqueles artefatos; eles tornam-se, porém,
parte integrante da narrativa. A tese do fantástico se fortalece porque as hipóteses
permanecem abertas, o fenômeno não é explicado nem pela vertente do ‗maravilho científico‘
nem pelo ‗maravilhoso instrumental‘ e muito menos pela racionalidade da lógica.
Nos momentos finais do livro há o intrigante diálogo entre o senhor Chamun e um
homem apenas chamado de professor, que defendia a ideia de que as pessoas na verdade não
voavam, estavam sofrendo de amnésia coletiva devido a um desejo intenso de liberdade. Mas
esclarece que amnésia coletiva não é doença e sim remédio, e adianta também que todos um
dia vão voltar e participar da festa dos reis barbudos. Lu espera que se esclareça quem são
esses reis barbudos, mas o homem vai embora sem que seja explicado o intrigante diálogo:
─ Alucinação coletiva. É uma doença então?
─ Não, não. Pelo contrário. É remédio.
─ Remédio. E serve para que?
155
─ Contra loucura, justamente.
Seu Chamun ficou calado, pensando ou simplesmente caprichando na apontação do
lápis. Depois perguntou:
─ E quando é que vamos parar de tomar esse remédio? Quero dizer, quando é que
aqueles lá em cima vão voltar? Ou não voltam nunca mais?
─ Voltam. Um dia voltam.
─ Mas quando vai ser?
─ Para a festa dos reis barbudos. (SRB, p. 135)
Uma explicação possível sobre quem seriam esses reis barbudos é que eles seriam as
próprias pessoas que estavam voando, e a sombra que faziam ao voar podia ser vista por quem
estava no chão para lembrar que era possível ascender para outra dimensão. Eram nomeados
reis porque a sua volta seria um sinal de que a Cia havia sucumbido e de que quem reinava
agora eram eles, haveria uma grande festa, uma grande comemoração pela vitória da
liberdade. Porém, essa é apenas uma leitura dentre as inúmeras possíveis, a própria narrativa
deixa a questão em aberto.
Essa grande festa dos reis barbudos já fora anunciada anteriormente por meio do sonho
de Lu, anteriormente referido, sem dúvida um momento onírico da narrativa que privilegia a
fuga da realidade cruel para uma realidade desejada.
3.7 SOMBRAS DE REIS BARBUDOS: HIPÓTESES SOBRE O TÍTULO
A reunião era uma festa para
comemorar a torre que ele acabava
de construir, obra nunca vista e
muito importante encomendada
por uma comissão de reis barbudos.
J. J. Veiga, 1983, pp. 81-82
Há algumas hipóteses para explicar o título do livro, são três palavras bastante
significativas para a narrativa: reis, sombras e barbudos.
156
Rei, segundo o Dicionário de Símbolos12
, pode ser considerado um símbolo do SELF.
Nas sociedades primitivas, ao rei ou ao chefe da tribo eram atribuídas qualidades mágicas.
Eles incorporavam um princípio divino do qual dependiam o bem-estar físico e psíquico de
toda a nação. Era o poder vital místico da nação. Se o Rei estava doente, o reino adoecia, os
rios secavam, as árvores não davam frutos, os animais morriam. O momento de coroação do
rei equivale à realização, à vitória e ao ponto culminante. Ao rei é atribuída também a ideia
de imortalidade vinda dos deuses e repassada diretamente ao monarca.
Ainda segundo o Dicionário de Símbolos, o rei e a rainha juntos constituem a imagem
perfeita da ‗hierogamia‘, ou seja, da união do céu e da terra, do sol e da lua, do ouro e da
prata. O título de rei se concede invariavelmente àquele que é considerado o melhor de cada
espécie e muitas vezes sua figura está ligada ao do pai ou herói, com fortes características
messiânicas.
Na Coreia, aos reis era atribuída também a responsabilidade pelas condições
atmosféricas e caso chovesse em excesso ou se houvesse uma seca prolongada, o povo ou
destronava ou matava o rei. Os suecos sempre atribuíram ao rei o fracasso ou o sucesso de
suas colheitas, tanto que o rei Olaf foi oferecido em sacrifício a Odin, em consequência da
escassez que houve durante seu reinado. Em todas as culturas, o rei era visto como sendo o
sucessor do mágico, dai a dignidade atribuída ao processo sucessório real. Portanto, quando
Lu vai visitar tio Baltazar depois que ocorre o golpe e tem um sonho, e neste sonho o tio seria
coroado rei por uma comissão de reis barbudos, ocorre exatamente o inverso do que
aconteceu na vida real, quando Baltazar foi deposto do cargo que exercia na Companhia.
Assim, no sonho do menino, o tio ainda detinha o poder e a majestade.
Os reis poderiam ser relacionados com os reis magos da bíblia ―Gaspar, Belchior e
Baltazar‖, este último homônimo do tio de Lu. Segundo a Bíblia, essa comissão de reis levou
presentes para Jesus, o salvador, por ocasião de seu nascimento. No sonho de Lu essa
comissão viria para restaurar a majestade do tio Baltazar, nome significativo porque indica
aquele que é iluminado, ou portador de boas notícias, como a do nascimento do Salvador; o
mesmo Baltazar também trouxe a Cia para a cidade, entidade que num primeiro momento
promoveu progresso e felicidade, mas depois, com a destituição de Baltazar, somente trouxe
tristezas à população.
12
CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984.
157
A palavra sombra se opõe a luz, as sombras são frequentemente identificadas com a
alma da pessoa e são consideradas entidades escuras com vida própria. Na perspectiva
junguiana, a sombra é o oposto do EGO. A sombra é sempre o "outro", são "eles", é o
contrário de tudo aquilo com o qual eu me identifico. Arquétipo do inconsciente, símbolo dos
aspectos obscuros, reprimidos e negligenciados da personalidade que não encontram
acolhimento em nossa vida consciente. É uma parte da nossa personalidade que, por não
considerarmos adaptáveis ao papel social que desejamos representar no mundo,
negligenciamos e, não a considerando como uma parte nossa, vamos perdendo nossa
espontaneidade. Esses aspectos reprimidos regridem o ser a um estado primitivo e quando
irrompem em nosso cotidiano, atuam de forma hostil e desintegrada.
Assim lemos no Dicionário de Símbolos:
Como o Sol é a luz espiritual, a sombra é o ―duplo‖ negativo do corpo, a imagem de
sua parte maligna e inferior. Entre os povos primitivos é geralmente arraigada a
ideia de que a sombra é um alter ego, uma alma, ideia que se reflete no folclore e na
literatura das culturas avançadas (35). Frazer já indicou que é frequente que o
primitivo considere sua sombra, ou sua imagem na água ou num espelho, como sua
alma ou uma parte vital de si mesmo (21). Jung denomina sombra à personificação
da parte primitiva e instintiva do indivíduo. (CIRLOT, 1984, p. 539)
Sombras poderiam ser, portanto, todas a coisas negativas na vida das pessoas, aquelas
que projetam escuridão, tais como os muros; sombra viria também do fato do narrador
conduzir a narrativa de forma apenas esboçada, ou seja, o mundo apresentado no livro seria
apenas uma sombra do mundo real, uma silhueta obscura em oposição ao mundo de luz.
Barba13
é um símbolo de virilidade, uma vez que só os homens a possuem, e de
sabedoria: na Antiguidade, os sábios deixavam suas barbas crescerem para simbolizar seu
saber. Também nesse período, as imagens de animais com barba sinalizavam que se tratava
de um animal cerimonial e simbólico, posto que a barba era considerada sagrada nessas
imagens.
Tradicionalmente, uma barba longa representa idade avançada, ‗insight‘ e sabedoria.
13
http://www.salves.com.br/dicsimb/dicsimbolon/barba.htm Acessado em 8/9/2010
158
O sonho de Lu com reis barbudos tem um significado positivo porque indica o
desejo do menino pela mudança e sua confiança em que o tio pudesse promover essa
mudança.
Por ser um texto que sinaliza para a representação alegórica das personagens e dos
fatos narrados, o significado do título aponta para muitas leituras possíveis.
O certo é que Sombras de Reis Barbudos, em linguagem simples e fluida, é o relato
do menino Lu sobre os estranhos acontecimentos em sua cidade, Taitara. Um relato de quem
participou da instalação da Companhia de Melhoramentos e também viveu a história de
terror e opressão imposta por essa empresa. As situações mais improváveis são apenas
relatadas por Lu, assistimos às personagens da diegese totalmente dominadas por um clima
insólito de pesadelo, para o qual não há uma explicação coerente.
Como a história é contada por meio de flash-backs, temos, em caráter memorialista,
a reconstrução dos fatos realizada sob a ótica do personagem Lu, que narra os
acontecimentos de acordo com sua perspectiva, o que favorece a literatura fantástica,
segundo Filipe Furtado (1980):
De facto, por motivos adiante discutidos, convém ao fantástico que o sujeito da
enunciação coincida com uma figura de certo relevo na acção. Por isso, este tipo de
narrador deve ser considerado um factor importante quando se pretender estabelecer
com clareza a delimitação do gênero, embora não se possa dizer que constitui um
traço distintivo dele pois não está presente na totalidade das narrativas que o
integram. (FURTADO, 1980, p. 107)
Portanto, a focalização do narrador personagem Lu, item que será abordado com maior
profundidade no próximo capítulo, em comparação com ―Dinossauro Excelentíssimo‖,
contribui para a instauração e manutenção do clima de estranhamento e pesadelo, da
ambiguidade necessária ao gênero em questão.
159
CAPÍTULO 4
UMA LEITURA COMPARATIVA: DINOSSAURO E REIS BARBUDOS
“Minha liberdade é escrever. A
palavra é o meu domínio sobre o
mundo.”
Clarice Lispector, apud Revista
Língua Portuguesa, nº 60, p. 7.
Neste capítulo iremos estabelecer pontos de contato entre duas narrativas que se
caracterizam por representarem, ambas, uma literatura de desafio a uma situação de opressão
e falta de liberdade de expressão, tendo, portanto, de lançar mão de recursos que encubram a
verdadeira mensagem dos textos: no caso de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, os recursos da
sátira e da ironia; no de Sombras de Reis Barbudos, o uso do realismo maravilhoso.
4.1 TÍTULOS
O título é um elemento indispensável para a compreensão da mensagem de um texto,
porque, além de chamar a atenção do leitor e despertar sua curiosidade para a leitura, auxilia
na interpretação da obra, revelando muitas nuances do texto.
Nossa leitura revelou que o título ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é irônico como todo o
texto de Cardoso Pires. O primeiro elemento do título é incompatível com o segundo
elemento, ou seja, ocorre o que Linda Hutcheon classifica de função semântica contrastiva da
ironia, aquela que estabelece a diferença de sentidos, ocasionando a sobreposição de
conteúdos semânticos entre o que é declarado e aquilo que é intencionado pelo produtor do
discurso. Pois, como pode um ‗dinossauro‘, animal pré-histórico, ser chamado de
160
‗excelentíssimo‘, uma qualidade somente atribuída àqueles que se destacam por serem
brilhantes, admiráveis, notáveis, excepcionais; certamente nenhum desses atributos é
compatível com um dinossauro. ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é, portanto, um título irônico,
porque o dinossauro representa Salazar e seu governo arcaico e atroz.
No título escolhido por Cardoso Pires ocorre também a função avaliadora da ironia,
aquela que Hutcheon afirma ter por missão julgar, estabelecer juízo de valor, fazer com que o
interpretante tome uma posição diante do texto. E o leitor presume que, a julgar pelo título, o
texto promete ser bastante irônico também.
Já o título Sombras de Reis Barbudos aponta para muitas leituras, porque é composto
por signos polissêmicos. As três palavras que compõem esse título são ricas em significados,
portanto, podemos interpretá-las de diferentes formas. Optamos por consultar um dicionário
de símbolos para nossa análise. Poderíamos ter nos pautado nos conhecimentos da psicologia,
por exemplo. Fato é que, nossa leitura é apenas uma possibilidade entre tantas outras.
Os reis têm a função e o dever de governar com dignidade seu povo. No livro, a
função de líder era por direito de Baltazar, por ter fundado a Cia. e pelo intertexto com os reis
magos que levaram presentes a Jesus, como descreve a Bíblia. Baltazar, contudo, é coroado
rei somente em sonho, uma vez que foi deposto do cargo de chefia que ocupava na
Companhia. A barba entra como elemento que indica a virilidade e a liderança do rei para
conduzir seu povo. O terceiro elemento são as sombras, elas relacionam-se a tudo que é
negativo na narrativa: a opressão sofrida pelo povo, a repressão, as punições. Nessa
perspectiva, o título Sombras de Reis Barbudos poderia indicar que apenas a escuridão e as
trevas desse governo de reis barbudos chegaram à cidade de Taitara.
O importante, porém, é que nos títulos das obras analisadas reside uma diferença
significativa, porque enquanto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ revela-se desde o início
extremamente irônico, Sombras de Reis Barbudos declara-se, desde o começo, polissêmico,
misterioso, inusitado, características muito próprias do realismo mágico latino-americano. Por
outro lado, ambos já apontam para o caráter ideológico e político das obras analisadas.
161
4.2 NARRADOR E NARRATÁRIO
O ponto que focalizaremos agora será o tipo de narrador presente em cada um dos
textos, visto que o narrador é a entidade que organiza os acontecimentos da história, de modo
que sua postura diante dos fatos narrados é de extrema importância para que o leitor interprete
e compreenda o verdadeiro significado do texto.
Já foi dito que em Sombras de Reis Barbudos o narrador é autodiegético14
, segundo a
nomenclatura de Genette: Lu narra a história da instalação da Companhia de Melhoramentos
em Taitara de forma retrospectiva, por meio da analepse15
, ou seja, algum tempo depois
resolve contar a história, segundo esclarece, a pedido da mãe. As datas não são muito claras,
mas infere-se que Lu inicia o relato com apenas 11 anos, terminando-o com aproximadamente
15 a 16 anos, como confirma a passagem do texto: ―Eu tinha onze anos quanto tio Baltazar
chegou da primeira vez. Estava casado de novo, mas veio sozinho e com fama de muito
Rico.‖ (SRB, p. 2)
A opção de Veiga por esse narrador autodiegético justifica-se pela intenção da
construção do fantástico, pois a tendência natural deste tipo de narração é deformar a
realidade que retrata, tendência intensificada também pelo fato do narrador ser um pré-
adolescente, em um momento confuso de plena transformação psico-somática e de
autoconhecimento. Assim, a instauração do fantástico é a função mais importante desse
narrador, porque permite a ocorrência de situações inexplicáveis que beiram as fronteiras do
sonho e da fantasia.
Esse narrador quer firmar-se também como testemunha dos fatos ocorridos. Como
personagem que vivenciou todos os acontecimentos, faz questão de tornar claro ao leitor que,
além de estar satisfazendo um pedido da mãe, escrevendo a história da cidade, também se
propõe a narrar somente a verdade, ou seja, o que realmente aconteceu. A esse respeito lemos:
14
REIS & LOPES, 1988, p. 118 – 1. A expressão narrador autodiegético, introduzida nos estudos
narratológicos por Genette (1972: 251 et seqs.) designa a entidade responsável por uma situação ou
atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências
como personagem central dessa história.
15 REIS & LOPES, 1988, p. 230 – 1. Corresponde genericamente ao conceito designado também pelo
termo flashback, entende-se por analepse todo o movimento temporal retrospectivo destinado a
relatar eventos anteriores ao presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores ao seu início.
162
―Estou aqui para falar do que aconteceu, e não do que deixou de acontecer. [...] Se estou aqui
para contar a verdade não posso esconder o meu desapontamento quando vi tio Baltazar
descendo do carro em nossa porta.‖ (SRB, p. 3)
Percebemos que o menino-narrador confirma seu compromisso em relatar somente a
verdade da mesma forma que um jornalista afirma o compromisso de divulgar ao público,
com total transparência, os fatos tal como eles aconteceram.
O relato do menino inicia-se de forma despretensiosa, mas apenas aparentemente,
porque há um jogo com o leitor virtual por meio dos questionamentos e das prolepses16
realizadas pelo narrador; essas antecipações, ao mesmo tempo, convidam e instigam a
curiosidade do leitor com relação à história que será contada.
Um exemplo desses artifícios utilizados para envolver e despertar a curiosidade do
leitor pela história é a insistência do narrador menino em deixar claro que os fatos narrados
não serão lidos por ninguém, nem mesmo pela mãe que pediu que a história fosse registrada.
O narrador, porém, não acredita que a mãe se privará do prazer da sua leitura e conjectura que
terá que guardar muito bem seus escritos para que nem a mãe nem ninguém os ache:
Mamãe diz que não vai ler os meus escritos porque não tem cabeça para leitura e
também porque já sabe tudo melhor do que eu. Está claro que é mais um truque para
me deixar à vontade. Ela é esperta, pensa em tudo. Preciso ter muito cuidado para
não deixar o caderno esquecido por aí, principalmente se eu resolver falar no meu
procedimento em casa de tio Baltazar. (SRB, p. 2)
O julgamento do narrador com relação à mãe é positivo no sentido de ressaltar a
astúcia na arte do convencimento: primeiramente, convencendo-o a registrar tudo o que se
passou na cidade de Taitara com a vinda da Companhia de Melhoramentos; em seguida,
deixando o narrador da história tranquilo para escrever livremente, sem preocupar-se com o
público leitor.
A mãe supunha que, sem a preocupação com um possível leitor, a escrita do filho
seria mais fluida e autêntica, mas este acaba percebendo as manobras por trás do discurso
materno; tanto é verdade que se mostra temeroso ao revelar os acontecimentos na casa do tio
16
REIS & LOPES, 1988, p. 283 – 1. Constituindo um signo temporal funcionalmente simétrico da analepse (v.), a prolepse corresponde a todo o movimento de antecipação, pelo discurso, de eventos cuja ocorrência, na história, é posterior ao presente da ação (cf. Genette, 1972: 82).
163
Baltazar. Lu refere-se ao episódio envolto em uma atmosfera onírica e também fantástica que
viveu com sua tia Dulce; neste episódio, tem-se a impressão de que Lu relacionou-se
amorosamente com sua própria tia; tudo, porém, é uma sugestão muito vaga: ―Ela, minha tia,
podendo ser minha mãe na idade? Mas se fosse tão absurdo porque ela também fazia aquelas
coisas comigo? Estava tudo muito confuso e perigoso, a solução era eu ir embora depressa,
antes que tio Baltazar morresse para aumentar o meu remorso.‖ (SRB, pp. 91-91)
As páginas iniciais de Sombras de Reis Barbudos são bastante esclarecedoras, pois,
nelas, o narrador acaba por revelar-se não tão ingênuo quanto quer se fazer parecer ao leitor,
uma vez que percebe as manobras da mãe para fazê-lo escrever a história da instalação da Cia
e reconhece a necessidade de ocultar o ocorrido na casa da tia. Além disso, seus
questionamentos, logo no início do relato, estimulam a curiosidade do interlocutor, por meio
do diálogo que se estabelece entre narrador e leitor. A partir da primeira linha da narrativa,
Veiga começa a ‗fisgar‘ o leitor com perguntas que o instigam a avançar na leitura do texto,
tais como:
Será que eu estaria aqui escrevendo se tio Baltazar não tivesse vindo para cá com a
idéia de fundar a Companhia? Não estou pensando que a culpa foi dele; a idéia era
boa e entusiasmou todo mundo. Mas a história que vou contar começa mesmo é com
a chegada de tio Baltazar. Quem podia imaginar naquele tempo de alegria e festa
que um sonho tão bonito ia degenerar nessa calamitosa Companhia Melhoramento
de Taitara? (SRB, p. 2)
Muito da história que será contada ao leitor revela-se por meio dos questionamentos
inseridos no relato; eles deixam entrever, por exemplo, que o tio Baltazar terá um papel
fundamental na história, porque foi ele quem implantou a Companhia na cidade; que a
Companhia em seu início foi algo positivo, mas depois tornou-se um instrumento de opressão,
fato enfatizado pelo contraste entre os expressões ‗calamitosa‘ e ‗melhoramento‘, ambas
referindo-se à Companhia.
Já que o narrador, na qualidade de testemunha, conta fatos já consumados, narra com
propriedade e segurança as antecipações, como a notícia da morte do tio Baltazar, por
exemplo: ―Pobre tio Baltazar, como estaria sofrendo se ainda vivesse. Acho que foi pensando
no sofrimento dele que mamãe não chorou muito quando finalmente recebemos a notícia.‖
164
(SRB, p. 2) É desta forma que ficamos sabendo, mesmo antes do narrador iniciar a narrativa
dos acontecimentos em Taitara, que tio Baltazar morre no decorrer do relato.
Com a narrativa já iniciada, ocorrem mais questionamentos do narrador, que se
pergunta, em dado momento, se tudo não teria sido diferente se o tio não tivesse insistido
tanto em construir a Companhia. Na realidade, faz isso menos para imaginar outras
decorrências possíveis para os acontecimentos e mais para reafirmar a importância daquela
personagem como estopim da saga narrada:
Agora eu pergunto de novo: se ele tivesse voltado naquela ocasião, será que ainda
estaria vivo? E se ele não tivesse fundado a Companhia, será que teríamos passado
por tudo o que passamos? Mas perguntar essas coisas agora é o mesmo que dizer
que se o bezerro da vizinha não tivesse morrido ainda estaria vivo. (SRB, p. 3)
Por outro lado, o efeito retórico é poderoso; admitir a inutilidade dos próprios
questionamentos, admitir a incapacidade de chegar a respostas significativas é um artifício
que aproxima o narrador do leitor, pois quem nunca se fez perguntas deste tipo? Quem nunca
pensou que escolhas diferentes resultariam em consequências igualmente diversas?
Em Sombras de Reis Barbudos há uma progressão temporal como em toda narrativa,
mas há também, e este fato é mais importante, o amadurecimento do menino Lu como
indivíduo e cidadão. É por meio desse narrador, inocente a princípio, praticamente uma
criança inexperiente, que tomamos ciência dos fatos. Os equívocos, a desinformação e a
imaturidade desse narrador infantil contribuem para a instauração do fantástico. Esse
narrador, como já dissemos acima, assume a autoria da história e estabelece também o
narratário que, de início, é a mãe, e, posteriormente, toda a população de Taitara, preocupada
em entender o que se passou desde a vinda de Companhia:
Está bem, mãe. Vou fazer a sua vontade. Vou escrever a história do que aconteceu
aqui desde a chegada do tio Baltazar. Sei que esse pedido insistente é um truque para
me prender em casa, a senhora acha perigoso eu ficar por aí mesmo hoje, quando os
fiscais já não fiscalizam com tanto rigor. (SRB, p. 1)
165
Lu deixa claro em seu discurso que desconfia das verdadeiras intenções de sua mãe ao
convencê-lo em escrever a história da instauração da Companhia na cidade, e de tudo que se
passou desde então; intui que a mãe quer vê-lo fora de perigo, no abrigo do lar. Também as
próprias intenções são questionadas, num exercício metalinguístico; nas reflexões em que se
assume como organizador dos fatos narrados, discute a dificuldade em relembrar e descrever
os acontecimentos, que, embora vivos na memória, são difíceis de serem enfrentados num
discurso coerente: ―Pensei que ia ser fácil escrever a nossa história, estando os
acontecimentos ainda vivos na minha lembrança. Mas foi só eu me sentar aqui, pegar o lápis e
o caderno, e ficar parado sem saber como começar.‖ (SRB, p. 2)
Desta forma, Lu, como um narrador-testemunha, que além disso traz a presença
corroborante de um narratário, conquista a credibilidade do leitor. A instauração do fantástico
é facilitada por meio destes artifícios narrativos, pois, segundo Filipe Furtado, representam
eles as condições essenciais para a criação do absurdo:
Em termos gerais, o narrador que é simultaneamente personagem está incumbido de
funções importantes no que respeita a vários planos da construção fantástica. De
facto, tendo supostamente presenciado ou acompanhado de perto os acontecimentos
narrados, vê reforçada a sua autoridade como testemunha, o que confere maior
credibilidade à acção. Essa função testemunhal do narrador-actor patenteia-se
frequentemente desde o início da história e, por vezes, antes de ela começar, com se
referiu atrás. (FURTADO, 1980, p. 114)
A respeito do papel também importante do narratário para a literatura fantástica lemos
ainda, conforme o mesmo autor:
A personagem torna-se, assim, um importante elemento de orientação na floresta dos
sinais erguidos ao longo do texto, indicando repetidas vezes ao leitor real
(diretamente ou por intermédio do narratário) o percurso de leitura a seguir. É tão
evidente, por vezes, a preocupação de criar para as personagens um papel em tudo
idêntico ao do narratário que, de onde em onde, mais parece transferir-se para
aquelas a função que em princípio deveria caber ao destinatário imediato da
narrativa. (FURTADO, 1980, p. 85)
166
Assim, a mãe de Lu, como narratária mencionada, ratifica a veracidade dos fatos
narrados pelo filho, contribuindo para o clima de ambiguidade, uma vez que compartilha e
ratifica igualmente as situações insólitas que se apresentam no decorrer da narrativa.
À medida que essas situações inusitadas e estranhas vão sendo descritas e apresentadas
por Lu, ocorre algo paradoxal no receptor: ao mesmo tempo em que ele se identifica com o
narrador-testemunha, duvida de sua percepção dos fatos por sua condição de criança; essa
desconfiança deriva também da percepção de que o narrador omite deliberadamente muita
explicações, deixando incoerentes determinados segmentos da narrativa. É exatamente desta
forma que o fantástico instaura-se na narrativa de Sombras de Reis Barbudos, insinuando-se
mesmo no dia-a-dia das pessoas, sem grandes feitos de magia, apenas por meio do cotidiano
desarticulado e fragmentado.
Esse dia a dia desordenado e caótico que nos é apresentado por Lu, deve-se, entre
outras coisas, às diferentes perspectivas adotadas por ele, que ora adota a sua visão a respeito
do mundo, ora fala pela família, ora pelos habitantes de Taitara, resultando numa
superposição de pontos de vista que confundem o quadro apresentado. Por exemplo, quando
Lu decidiu avisar os amigos de que as lunetas seriam apreendidas pela Cia., assumiu o viés do
grupo social em questão, como percebemos no trecho a seguir:
Ainda quente da decisão, fui avisando todo mundo pelo caminho, meninos e gente
grande. Mas como é difícil prestar um serviço desinteressado! Ninguém acreditava,
pensavam que era molecagem minha, imagine proibir luneta e binóculo, isso não é
arma, não mata nem fere ninguém (SRB, p. 39)
Percebemos que a atuação pronta e decisiva de Lu, na situação acima, foi favorável ao
seu grupo social, vivenciando os conflitos sociais dominantes; deste modo, ao dar ênfase ao
episódio, o narrador evidencia também as motivações sociais da narrativa.
Observamos, da mesma forma, no discurso do narrador, o uso da 1ª pessoa do plural e
não da 1ª do singular, como é o esperado de um narrador autodiegético, para se referir a fatos
ocorridos na cidade, adotando, desta maneira, o ponto de vista dos cidadãos de Taitara, como
ilustram as partes do texto que agora reproduzimos: ―Sem tio Baltazar a Companhia deixou de
existir para nós.‖ (SRB, p. 25) / ―Com tanto muro para encarar quando estávamos parados e
rodear quanto tínhamos de andar, a vida estava ficando cada dia mais difícil para todos,‖
167
(SRB. p. 27) / ―Nossa vida voltou à triste rotina de fitar muro, contornar, praguejar contra
muro‖ (SRB, p. 51) / ―No fundo já estávamos mesmo nos cansando deles.‖ (SRB, p. 49).
Em outras partes da narrativa, o narrador expõe o próprio olhar sobre as coisas, ou
seja, o olhar parcial do menino sobre o mundo adulto. Poderíamos elencar aqui uma porção de
elementos que Lu desconhece, tais como: o verdadeiro problema do relacionamento entre seu
pai e tio Baltazar; o porquê da antipatia da mãe por sua tia Dulce; porque Baltazar afastou-se
da Companhia; qual era a atividade de seu pai dentro da Cia.; porque Horácio não fora
despedido juntamente com tio Baltazar, pelo contrário, fora promovido a fiscal da Cia.; quais
eram as verdadeiras intenções da tia para com ele. São inúmeras as lacunas deixadas pelo
narrador menino, em virtude do mundo inacessível a ele, e por isso mesmo incompreensível.
Portanto, poderíamos pensar que uma das justificativas para a falta de explicação dos
absurdos ocorridos na história seria a ingenuidade do narrador, sua condição de criança que
não compreende determinadas coisas, principalmente do mundo adulto.
Outra justificativa possível seria a falta de conhecimento não somente de Lu, mas de
toda a cidade, a respeito da Cia. e de suas atividades. Em Sombras de Reis Barbudos ocorre
um ‗desconhecimento‘ coletivo, ou seja, a alienação dos fatos atinge toda a cidade de Taitara.
A última, e mais ambígua, é aquela que se instaura entre o narrador e o leitor, ou seja,
ficamos com a sensação de que Lu sabe mais do que nos diz, porque sua ingenuidade muitas
vezes é traída por atitudes articuladas; por exemplo, para conseguir uma informação do pai a
respeito da Cia. ou para esconder informações do pai com receio de punições. Portanto, a
ambiguidade que se instaura por meio das relações estabelecidas pelo narrador causa o efeito
do insólito.
Voltemos ao episódio da apreensão das lunetas; nele, Lu mostra todo o seu potencial
dissimulatório, e concluímos que, se ele é capaz de fingir, de encobrir com astúcia e disfarçar
os acontecimentos, pode muito bem jogar com a credibilidade do leitor. Portanto, a
confiabilidade do narrador fragiliza-se, porque o leitor percebe que, embora Lu seja um
menino ingênuo, também se apresenta capaz de manipular os fatos e escolher o que desejar
contar, conduzindo, desta forma, a narrativa. Vejamos essa passagem:
A bomba estourou logo na manhã seguinte. [...] Imediatamente me lembrei das
lunetas e fui armando minha defesa. Eu sabia o que era que eu tinha feito e estava
pronto para as conseqüências, mas também não ia me entregar voluntariamente.
Confessar era bonito, mas podia ser um desperdício. [...] Por que me apresentar
168
como culpado logo no começo? Melhor negar por enquanto. Mas muito cuidado
para não negar o que não for perguntado, muito mentiroso é apanhado por querer por
o carro adiante dos bois. O assunto pode até ser outro. Se for o caso das lunetas, eu
não disse nada a ninguém. Não disse porque esqueci. Esqueci porque não acreditei.
Não acreditei porque achei absurdo, luneta não é arma, não fere ninguém. E nada de
afobação ao falar. Pensar antes de responder. (SRB, pp. 40-41)
Fica clara a frieza de raciocínio do narrador para armar sua defesa e negar o ato
criminoso. Lu pensa nos detalhes que podem denunciar sua culpa, em não responder ao que
não for perguntado, lembrando um ditado popular: ‗não colocar a carroça na frente dos bois‘;
enfim, manter a aparente tranquilidade do inocente. Lu vai ainda além, prevê as perguntas que
lhes serão feitas e já ensaia as melhores respostas, atitude de um mentiroso profissional.
Dando segmento a seu plano, nega o crime, primeiro para a mãe e logo em seguida
para o pai:
O que foi que você andou fazendo Lu?
─ Fiz nada não. O que é que ele quer?
─ Está furioso com uns escritos nos muros.
─ Ah. Escrevi nada em muro não.
(Não desmentir o que não for perguntado)
─ Vai depressa antes que ele venha te buscar. Calce os chinelos.
Entrei inocente na sala, disse bença pai, ele não respondeu. Me olhou com raiva e
atacou:
─ Tem a língua grande demais, não é? [...]
─ Não senhor. Eu não fiz nada.
─ Não fez nada. [...]
Ele estava com medo. E o medo dele me mostrou um caminho melhor: confessar e
dividir a culpa com ele. Era uma maldade, mas ele precisava de uma lição. Fui
pensando e falando devagar.
─ Eu contei sem querer. E não foi a todo mundo. Foi só a uns meninos da rua que
vieram me fazer inveja. Fiquei com raiva e falei sem querer. E eles nem acreditaram,
pensaram que era despeito.
─ Eu não falei que ele podia não ter feito por mal? ─ disse mamãe, ansiosa por
provar a minha inocência.
Eu ia me envergonhando de vê-la tão enganada, me lembrei do que ela sofria por
causa da farda e tudo mais, e agüentei firme. Eu tinha contado de propósito, mas não
por mal. Se meu pai perdesse o emprego, nós todos íamos lucrar, até ele; todo fiscal
da Companhia já era olhado com ódio na rua. (SRB, pp. 41-42)
Portanto, Lu nega categoricamente que tenha dado alguma informação a respeito da
apreensão das lunetas; o uso da interjeição ‗ah‘ antes da segunda negativa sobre o crime,
denota sua tentativa dissimulada de parecer inocente. Em seguida temos uma observação
169
irônica entre parênteses, uma intervenção do narrador na diegese, evidenciando a diversidade
entre o Lu narrador e o Lu personagem; demonstrando ainda, neste distanciamento crítico,
uma certa ironia no discurso do narrador em relação à atitude dissimulada do menino .
A narração enfatiza a ideia de inocência do menino ao registrar o cumprimento filial
respeitoso: ―entrei inocente na sala, disse bença pai‖, o que, pelo contraste, acentua as
asserções inverídicas que virão a seguir. A ironia instaura-se porque narrador e receptor
compartilham um conhecimento, ambos sabem que o menino é culpado.
Ainda mais, percebemos que o menino não é tão ingênuo quanto pensávamos, pois
constatamos que ele percebe o medo estampado na face de seu pai e imediatamente traça
outra estratégia, muito mais elaborada que a primeira: resolve admitir a culpa, diz que deixou
escapar a informação sem intenção, porque não resistiu ao impulso de se vingar dos meninos
que tinham luneta e ele não. Caindo no engodo, a mãe é a primeira a acreditar que essa foi a
verdadeira motivação de Lu para contar sobre a apreensão das lunetas. O menino esboça ter
uma crise de consciência por enganar a mãe tão descaradamente, mas logo essa crise é
substituída pela possibilidade do ocorrido fazer o pai perder o emprego na Companhia e,
consequentemente, oprimir menos sua mãe e a ele próprio. De tudo isso, deduzimos que o
narrador, na verdade, escolhe o que contar e como contar ao leitor, para criar uma atmosfera
ambígua, de modo que o receptor sente-se pisando em falso e inseguro quanto á veracidade do
relato.
De seu lado, o narrador de ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é heterodiegético17
, aquele
que não participa da história narrada, diferentemente do que ocorre em Sombras de Reis
Barbudos, em que a própria personagem é ativa participante da ação:
[...] um determinado notável da Comarca, ao ser acordado por outro notável para ir
assistir já, já, ao último suspiro do protegido, tirou-se dos seus lençóis e foi. Foi (em
roupão estremunhado e a dar esporar no chauffeur) mas ao chegar à cabeceira do
moribundo, eis, que, graças ao Altíssimo, descobriu, FALSO ALARME, que estava
diante doutro pobre, não do dele. Coçou o queixo mas, regras são regras, deu meia
volta e regressou aos lençóis pelo caminho da vinda. (DE, p. 135)
17
REIS & LOPES, 1988, p. 121 - 1. A expressão narrador heterodiegético, introduzida no domínio da
narratologia por Genette (1972: 251 et seqs.), designa uma particular relação narrativa: aquela em
que o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como
personagem, o universo diegético em questão.
170
Esse narrador heterodiegético justifica-se pelo distanciamento necessário à crítica
satírica, uma vez que reconstrói de forma analítica o cenário ditatorial português. Assim, o
contador de história nomeado para revelar ao leitor os fatos que ocorreram há muito tempo
num Reino distante, alcança o distanciamento necessário para a análise crítica da situação
retratada. É um narrador que, por não participar dos fatos narrados, tenta atingir a
imparcialidade; porém, percebemos, por meio dos recursos da ironia, da paródia e da sátira
presentes em seu discurso, dos juízos de valor que emite em muitos momentos, a parcialidade
de sua posição e de sua intenção de criticar o governo autoritário do Imperador Dinossauro.
Teria tido infância? Mistério, neste ponto mesmo os cronistas mais cautelosos
tropeçam no aparo e vão estatelar-se na História, uns anos mais adiante. À falta de
melhor põem-se a escrever Saber e Autoridade, Dinossauro, copiando o lema
imperial gravado nas moedas, nas placas de rua e nos edifícios, e assim apuram a
caligrafia. (DE, p. 112)
Mesmo apoiando-se na história, as indagações do narrador promovem a reflexão
necessária à crítica almejada por ele e alcançada por meio do diálogo com o leitor. A conversa
com o interlocutor é estabelecida o tempo todo em ―Dinossauro Excelentíssimo‖,
principalmente por meio dos muitos questionamentos e da intromissão desse narrador.
Vejamos alguns exemplos da interferência desse narrador heterodiegético na narrativa:
―Criatura (porque o é), criatura à margem e mirrada, coisa pequena; bicho que se alimenta de
água e sal‖ (DE, pp. 129-130) / ―Mas as lotarias tinham mais que se dissesse porque, além de
serem uma receita de produzir felicidade (a mais sábia), eram também uma forma de despertar
a dignidade nos mexilhões adormecidos.‖ (DE, p. 136) / ―Chave que abre chave, discurso que
abre discurso, quando é que aquilo teria fim? Teve. O povo deixou de ouvir o Mestre, QUE
INGRATIDÃO! (DE, p. 166) / ―Até que um dia sentiu a saliva a incentivar-se perigosamente
na língua e antes que secasse de vez cortou o discurso. <<PRESCINDO>>, disse. (O que em
dê-erre elementar significava que se estava nas tintas).‖ (DE, p. 170)
O diálogo com o leitor é mantido pelo narrador por meio do uso do recurso do
questionamento constante, que faz com que o interlocutor, a todo o momento, também
formule respostas, mantendo-se, assim, atento ao texto. ―Quem mais faltava? Os pássaros,
faltavam os pássaros, esses mensageiros franciscanos que alegram a natureza e despertam a
171
inocência. Onde estavam eles, os pássaros? Resposta: no lugar que lhes competia ─ entre a
folhagem.‖ (DE, pp. 158-159). A obviedade da asserção evidencia a ironia do narrador.
Em outros dois momentos da narrativa, o narrador dirige-se especificamente ao leitor:
em ―A partir daqui, atenção escolas, atenção cartógrafos atenção navegantes, havia que
corrigir a população, que era de oitenta e três nativos, todos funcionários, o clima, menos
húmido que antigamente, e a divisão administrativa em dois distritos autônomos‖ (DE, pp.
157-158) / e no trecho ―Para quê igual? Pergunta a nossa curiosidade. Provavelmente para que
o povo ficasse com uma recordação digna do Chefe, é o que se depreende.‖ (DE, pp. 184-
185). No primeiro fragmento, existem vários interlocutores mencionados: escolas,
cartógrafos, navegantes, no segundo fragmento o narrador coloca-se como interlocutor, usa o
pronome ‗nossa‘ para referir-se à curiosidade do leitor e a sua própria, causando uma empatia
entre a figura do narrador e a do leitor, um artifício para envolver o leitor na história, levando-
o a adotar a perspectiva do narrador. Esse artifício é fundamental num texto de
posicionamento político e social, de crítica a uma situação ditatorial.
―Dinossauro Excelentíssimo‖ é uma fábula, possui uma dimensão moral ou
pedagógica por trás do enredo alegórico, e, como toda fábula, é um texto com altas doses de
oralidade em sua constituição. O narrador contador de história descreve os acontecimentos e
os pensamentos das personagens à medida em que eles vêm a sua mente; desta forma, como
narrador instituído para romper o silêncio e contar as atrocidades desse Imperador
Dinossauro, trava um diálogo com o leitor. Neste sentido o narrador heterodiegético de
―Dinossauro Excelentíssimo‖ é um mediador entre leitores e sociedade.
Ocorre também a figura do narratário especificado, pois o narrador, nomeado como
contador de história, narra os acontecimentos à filha Ritinha. Aparentemente a história está
contida num livro, porque ao final, o contador de história pede à filha que feche o livro. ―...
Ritinha, fecha o livro, é mais que tempo. Repara, há um riso acolá naquela romã em cima da
mesa. Verdade: estalou de sumo e de sol e agora parece que ri, não notas?‖ (DE, p. 196)
Em ambos os textos, portanto, ocorre a figura do narratário, recurso que denota o
desejo de que os fatos sejam perpetuados, ou melhor, de que as pessoas fiquem sabendo o que
aconteceu. Igualmente, nos dois textos são contadas histórias que já ocorreram, ou seja, é por
meio de flashbacks que os narradores organizam sua narrativa.
Outro recurso utilizado pelo narrador de ―Dinossauro Excelentíssimo‖ para envolver o
leitor é a prolepse, também utilizada em Sombras de Reis Barbudos; esse recurso permite que
172
sejam revelados, antecipadamente, acontecimentos que somente depois acontecerão na
narrativa, aguçando a curiosidade do leitor. Vejamos os exemplos do conto: ―Ora, estudo e
meditação era o que o padre encontrava à vista na maneira de ser da criança, não falando já
(como revelou anos depois) no vício de aprender palavras raras que ultimamente lhe tinha
notado. Um orador, era o que se estava ali a gerar.‖ (DE, pp. 115-116).
Ou ainda:
Conta-se, não há provas, conta-se apenas, que o rapazito que amanhã viria a ser
imperador não se mostrou muito satisfeito com a jornada, embora a tivesse escrita
no signo. Na sua infância sabedora conhecia todos os passos que lhe estavam
reservados mas havia qualquer coisa que o contrariava. O que era, o que não era, só
mais para diante se veio a descobrir: queria ir de burro, queixou-se ele e apenas mais
uma vez. (DE, p. 117)
Pelas antecipações do narrador ficamos sabendo da habilidade que o futuro Imperador
terá com as palavras, e de que aquele menino, cujo nascimento e batizado são descritos na
história, viria a tornar-se o Imperador Dinossauro opressor.
4.3 REVELANDO O DISCURSO ENCOBERTO
Pela análise dos dois textos pudemos constatar que ambos usam de um discurso
cifrado para atingir seu objetivo, que é a denúncia de uma situação opressora. Usando de
expedientes distintos, os autores codificaram seus discursos de forma que, ao sentido literal,
sobrepõem-se outros sentidos possíveis, ou seja, o leitor atento percebe, para além do sentido
denotativo, o sentido conotativo proporcionado por meio da ironia, da paródia, da sátira, da
intertextualidade e do fantástico.
Sabemos que tanto Cardoso Pires quanto J. J. Veiga, viveram ditaduras severas em
seus respectivos países, e que essa experiência dolorosa com o autoritarismo e com a injustiça
social fez com que surgisse o desejo da denúncia daquela forma horrenda de repressão, por
meio do instrumento de que dispunham: a literatura, recurso este não somente de denúncia
mas também de resistência diante daquela situação.
173
Cardoso Pires recriou a saga do Imperador Dinossauro por meio de uma fábula
satírica, num discurso permeado totalmente pela ironia em seu grau de afetividade máxima;
oscilando entre as ironias de oposição, atacante e agregadora, segundo a classificação cunhada
por Linda Hutcheon, criou ele a paródia da ditadura salazarista em Portugal.
Falaremos de dois casos de ironia que, julgamos, irão ilustrar bastante a fábula satírica
de Cardoso Pires: ironia à sabedoria dos mestres doutores e à burocracia do Reino do
Dinossauro.
Os mestres doutores habitavam a cidade do mesmo nome, que ficava, obviamente, nas
alturas. Neste lugar o futuro Imperador estudou para adquirir o manejo das palavras e o título
necessário ao cargo. O narrador assim descreve esses senhores renomados:
Vestiam paramentos negros e usavam estolas de grandes sacerdotes, mais ou menos.
Rostos rapados, cinzentos, olhos encovados, olhos de muita vigília, ali dormitavam
eles num friso de catedral como apóstolos da sabedoria. Cada qual empunhava o seu
diploma selado a ouro e púrpura e, à maneira de mitra, ... (DE, p. 127)
A descrição dos mestres doutores remete-nos a uma valorização do saber acadêmico e
da titulação, os doutores são tidos como seres superiores que habitam lugares elevados,
separados do restante dos mortais e fazem questão de que esta diferença seja marcada e
claramente percebida.
O narrador é irônico ao narrar a respeito desse templo da sabedoria, usa um recurso
linguístico conhecido, a onomatopeia ou imitação dos sons, para realizar seu intento, dizendo:
todos tinham sobre os joelhos o tal chapéu conhecido por capelo que só cabe na
cabeça dos muito eminentes e não na de qualquer dos colegiais que circulavam aos
pés deles, decorando a sebenta:
<<PATITI, PATITÁ... NOVES FORA, NADA.>>
Diga-me ainda que naquela casa havia muito latim pelos corredores, patiti, muitas
memórias pelas paredes, patitá, e que só se falava a pensar nos mortos, nossos
maiores,
AD GLORIAM DEI. (DE, p. 127)
174
As onomatopeias introduzidas no discurso pelo narrador quebram a solenidade e a
importância do que está sendo dito a respeito dos doutores. Diz-nos que tudo aquilo é uma
formalidade inútil.
O latim não poderia faltar, dá o toque arcaico, antiquado e tradicional próprio dos
doutores, assim como o costume de cultuar os mortos, hábito muito peculiar dos doutores, a
tendência acadêmica em valorizar os mestres falecidos e os ensinamentos deixados por eles
em livros seculares. Formavam, assim, uma sociedade fechada, ensimesmada e excludente.
O futuro Imperador viu na linguagem dos doutores uma forma de manipulação e diz o
narrador que sua dedicação foi incansável para tornar-se um deles: ―atirou-se aos livros para
aprender a maneira de pensar e de fazer que o havia de tornar doutor: seria uma língua
calculada e muito útil porque só a entenderiam os mestres e os defuntos, o quanto basta.‖ (DE,
p. 128)
Portanto, o que importava realmente no Reino do Dinossauro eram as aparências
sustentadas pelos títulos acadêmicos, e por um governo igualmente encoberto pela burocracia
que lhe conferia uma fachada de Reino que funcionava com destreza.
J. J. Veiga, por sua vez, menos ácido que seu contemporâneo português, recriou o
ambiente repressivo brasileiro pós-golpe militar utilizando de uma ironia com uma carga
afetiva menor; utilizou o realismo mágico para mostrar o absurdo da situação de opressão
depois da instalação de uma Companhia na cidade:
Quem tinha condições de viver fora estava largando tudo e fugindo. No princípio a
Companhia não se importou, talvez por achar que quanto menos gente houvesse na
cidade, mais fácil seria a fiscalização. Mamãe mesmo chegou a pensar em nos
mudarmos para outro lugar, porém mais como quem sonha, porque as dificuldades
eram muitas e tínhamos ainda o problema de meu pai. Depois a porta do sonho foi
fechada quando a Companhia cercou as estradas. Com isso ficamos isolados do
mundo, gente de fora não ia querer entrar sabendo que não podia sair. Nem carta
recebíamos porque os carteiros agora trabalhavam na fiscalização e ninguém era
bobo de ir buscar correspondência no correio: esperta como era a Companhia na
certa estava vigiando a agência; as cartas que ficassem lá mofando, coisas muito
mais importantes tínhamos perdido e estávamos perdendo todo dia. (SRB, p. 114)
A Companhia exercia seu controle sobre todos os habitantes da cidade, chegando ao
absurdo limite de fechar as estradas de acesso ao município e impedir toda comunicação com
o mundo exterior.
175
As ironias de Veiga, bem mais suaves que as de Cardoso Pires, são constituídas apenas
por incongruências que ratificam o inusitado das situações às quais as pessoas são submetidas;
na realidade, o escritor vai além de uma reflexão a respeito da situação política e social
brasileira, faz-nos ver como a vida por vezes parece inacreditável e como aceitamos
passivamente o absurdo. A esse respeito lemos: ―É curioso como certas coisas vão
acontecendo em volta da gente sem a gente perceber, e quando vê já estão aí firmes e antigas.
Depois mudam, do mesmo jeito manso.‖ (SRB, p. 7)
Observamos que o fantástico de Veiga nutre-se do insólito do cotidiano, são pequenos
fatos rotineiros da vida das pessoas que, de repente, apresentam-se como inabituais, anormais
mesmo, fora dos padrões aceitáveis pela realidade tal qual a conhecemos.
Ressaltamos aqui o veio característico do fantástico de J.J. Veiga, que segue a esteira
do realismo mágico latino-americano: por um lado, o fantástico invade a vida cotidiana dos
habitantes da cidade; por outro lado, a situação absurda oprime os habitantes, tolhendo sua
liberdade, adquirindo uma conotação política. Desta forma, a narrativa de Veiga desvela um
quadro subtendido, o da sociedade brasileira sob a ditadura militar, que, da mesma forma que
a Cia., oprimiu o povo brasileiro, inibindo, de forma repressora, toda e qualquer manifestação
de expressão, fosse artística, social, e, principalmente, política.
Nos dois textos analisados percebemos claramente o alvo da crítica e a figura do
opressor no âmbito da diegese; para além dela, a leitura paródica e satírica, aponta para os
alvos focados na projeção contextual. O Dinossauro é o alvo da crítica satírica de Cardoso
Pires e também o elemento opressor dentro da história; para além dela, há uma clara
referência ao ditador Salazar. Já no romance de J.J. Veiga, a Companhia é o alvo da crítica e
também o órgão opressor no espaço diegético, demonstrando o avanço científico e
tecnológico do mundo capitalista invadindo os espaços e destruindo a vida das pessoas; na
relação com o contexto, evoca alegoricamente a ditadura brasileira pós 64. A esse respeito
lemos:
Os personagens dessa ficção vivem num mundo dividido em dois grupos: de um
lado, o opressor; de outro lado, o oprimido. Um sistema assim formado poderia
expressar o caráter de confronto, passível de se estabelecer. Entretanto, o
questionamento nunca acontece com evidência. (CAMPEDELLI, 1982, p.
102)
176
É interessante observarmos também, que em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ a face do
opressor é conhecida, ou seja, o poder está nas mãos de um Imperador ladrão, arcaico e
mentiroso, cujas feições sãos bem conhecidas pelo mexilhão oprimido. Já em Sombras de
Reis Barbudos a face do opressor é desconhecida, sabemos que se trata de uma companhia, de
uma instituição, mas é somente esse o conhecimento que se tem a respeito. Não sabemos que
tipo de atividade a Companhia desenvolve, quem é o dono. Sabe-se tão somente que a Cia.
manda em tudo e em todos. Portanto, a face do opressor em Sombras de Reis Barbudos está
envolta em muito mistério, temos a marca do desconhecido, do estranho, própria do realismo
mágico de Veiga.
Outro dado significativo nos dois textos é a presença da repressão. Em ―Dinossauro
Excelentíssimo‖, são os Dê-erres os responsáveis pelo cerceamento da vida das pessoas,
espécie de versão paródica da PIDE portuguesa. Em Sombras de Reis Barbudos, são os fiscais
da Companhia de Melhoramentos de Taitara, que controlam tudo e todos na cidade, também
se configurando como uma representação alegórica da polícia brasileira de repressão da
época, o famoso DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social). Esses agentes repressivos
tolhem as pessoas, limitam suas ações e principalmente sua expressão, fazendo com que elas
fiquem apáticas e sem esperança.
O Dinossauro reprime o discurso das pessoas, pois com falta de palavras elas não
podem se articular e mudar a situação. A Companhia limita ao máximo a expressão da cidade
inteira de Taitara, por meio da falta de informação e pela restrição do espaço físico, com a
construção dos muros, assim dificultando a comunicação e a interação entre as pessoas,
provocando seu isolamento.
Interessante observar também os objetos criados pelo governo militar para garantir a
ordem: em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ foi inventada a ‗máquina de torturar palavras‘ para
que o mexilhão ficasse cada vez mais pobre dessa matéria prima poderosa. A esse respeito
lemos:
A CÂMARA DE TORTURAR PALAVRAS onde o verbo e o substantivo, a cedilha
e restante população dos dicionários sofreriam tratamentos de último grau.
Seguindo o esquema (que deve andar algures pelos arquivos ou nalgum microfilme
em código-espia) a máquina infernal devia resumir-se a (DE, p. 143)
177
Cardoso Pires concretiza os mecanismos de repressão do governo português ao criar
em seu texto uma máquina que literalmente devora palavras e, simbolicamente, cerceia ideias
e opiniões.
Em Sombras de Reis Barbudos há relato de uma ‗máquina para falar a verdade‘, o que
não deixa de ser também um instrumento torturador, porque somente imposto aos suspeitos de
subversão: ―─ Será que vão passar a gente pela máquina de pegar mentiroso? ─ indagou
outro.‖ (SRB, p. 43)
Ainda em Sombras de Reis Barbudos há descrições dos mecanismos de tortura e
relatos das punições às pessoas que se mostrassem resistentes ao governo e às suas ordens,
numa clara referência à tortura imposta pela ditadura militar brasileira. Os castigos aplicados
pela Companhia são descritos pelo narrador de maneira cômica e até ridícula, uma situação
humilhante que deveria ser repelida pela população da cidade, mas que é aceita por todos
como normal, caracterizando, mais uma vez, o realismo mágico.
Em ―Dinossauro Excelentíssimo‖, o opressor manipula as palavras de forma a servir a
seus interesses; portanto, há muitas mentiras sustentadas pelo Imperador e por seu governo
para manter o povo sob seu controle. Em Sombras de Reis Barbudos, não é a mentira a vilã,
mas a falta de informação: os habitantes de Taitara não sabem absolutamente nada a respeito
da Cia., somente obedecem cegamente; então, a falta de coerência ocasionada pela escassez
de informações é o grande mal da história.
Nossa vida voltou à triste rotina de fitar muro, contornar muro, praguejar muro ─ e
esperar por algum acontecimento indefinido que nos tirasse desse molde. Os dias se
emendavam iguais, de tão iguais se confundiam e pareciam um só. Tínhamos caído
em um desvio onde a ideia de tempo não entrava, a vida era uma estrada comprida
sem margens nem marcos, estar aqui era o mesmo que estar ali, o hoje se confundia
com o ontem e o amanhã não existia nem em sonho; nós esperávamos qualquer
coisa, mas já nem sabíamos se era para adiante ou para trás. (SRB, pp. 51-52)
Diante das situações absurdas que se apresentam às pessoas, não há, em nenhum dos
dois livros estudados, uma reação efetiva dos oprimidos, apenas algumas isoladas e tímidas
manifestações de protesto em Sombras de Reis Barbudos, por parte do protagonista Lu e dos
seus amigos estudantes, que representam parodicamente a resistência estudantil brasileira da
época da ditadura militar. Uma vez que a população de Taitara aceitava tudo pacificamente,
178
sem contestar, a Companhia via-se no direito de invadir os espaços sociais e até pessoais dos
habitantes da cidade que assimilavam essa invasão cotidiana da Cia. de forma natural. Em
―Dinossauro Excelentíssimo‖, um receoso protesto é disfarçado nos ditados populares falados
pelos mexilhões, como forma de resistência ao governo do Imperador Dinossauro.
Ambos os textos abordam, ainda, a miséria material e psicológica dos oprimidos: em
―Dinossauro Excelentíssimo‖ o ambiente narrativo é mais debochado por conta da crítica
satírica; já em Sombras de Reis Barbudos, predomina o clima de pesadelo e a sensação de
imutabilidade de tudo. O que se nota, porém, é o aspecto devastador do elemento opressor nas
duas narrativas. Neste último lemos: ―Retidos em casa, ignorando o que se passava lá fora,
vivíamos praticamente como prisioneiros. Chegar à janela não adiantava muito porque só
víamos muros, e ainda corríamos o risco de cometer alguma infração nova.‖ (SRB, p. 66)
Tanto em Cardoso Pires quanto em Veiga, ocorrem situações inusitadas e absurdas,
seja porque um dinossauro ditador quer a qualquer custo devorar palavras ou uma Companhia
quer se fazer de Deus para oprimir uma cidade inteira; fato é que em ambos temos muitas
situações que ferem as regras da lógica e da razão. Em Sombras de Reis Barbudos elas são
mais numerosas por conta do viés fantástico, podemos citar as mais disparatadas como os
muros que de uma hora para outra cercaram as casas, os urubus como animais de estimação, a
catalogação até das ervas daninhas das hortas dos habitantes, a proibição de olhar para cima,
pessoas voando. Também citamos os mecanismos de coerção, tais como objetos de aparência
estranha, que pareciam saídos de um livro de ficção científica, que caiam do céu para inibir as
pessoas.
As esquisitices em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ ficam por conta das excentricidades
do Dinossauro, da reprodução do ambiente físico, político e social de uma ilha, somente para
demonstrar o poderio político do Imperador (ilha fora do mapa); da existência de espelhos da
formosura que refletiam sempre a beleza, de um Imperador que na sua ânsia de enganar e
manipular o povo transformou-se em um dinossauro decrépito e secular.
Outro elemento comum decisivo na estrutura dos dois textos é a presença de elementos
alegóricos, mais especificamente de animais. Em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ os animais
representam o opressor e o oprimido nas figuras do dinossauro e do mexilhão. Já em Sombras
de Reis Barbudos quem faz às vezes do opressor é uma instituição, a ―Companhia de
Melhoramentos de Taitara‖, mas há a presença significativa do animal, como os urubus que
invadem a cidade e que, ou por falta de opção dos moradores ou por um ato de rebeldia,
179
acabam sendo adotados como animais de estimação.
A escolha das figuras do dinossauro e do urubu se justifica porque, sendo animais
grotescos, prestam-se melhor aos objetivos satíricos. O dinossauro, como já analisamos, por
suas características pré-históricas e ferocidade, é a representação perfeita para o Imperador da
narrativa de Cardoso Pires; já o urubu, animal de carga semântica sinistra, contribuiu para a
instauração do insólito e para o clima de pesadelo da narrativa veiguiana.
4.4 DITADOS POPULARES
Outra aproximação entre os textos é o fato de que os dois autores utilizam os ditados
populares para construir seus discursos, numa forma de diálogo intertextual com a cultura
popular, pois talvez aqueles sejam a única voz genuinamente do povo em meio ao discurso
elitizado do opressor. Essas vozes se fazem ouvir por meio das máximas, numa eclosão da
sabedoria popular.
No caso de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, são elas geralmente conselhos úteis aos
mexilhões que desejam sobreviver no Reino do Dinossauro; além disso, constituem-se
também num código excludente, porque somente o mexilhão consegue decifrá-lo, é
totalmente estranho para o Dinossauro ou para os Dê-erres, da mesma forma que os latinismos
ditos pelos opressores excluem o mexilhão, que não os compreende. Portanto, em
―Dinossauro Excelentíssimo‖, os ditados populares dos mexilhões, que em código cifrado
debocham do Reino, representam uma receosa forma de resistência ao poder despótico do
Dinossauro.
Como exemplo, citaremos um provérbio dito pelos Pedintes Voadores, quando a
palavra de ordem do Reino do Dinossauro era, exatamente, falar o ‗estilo Dinossauro‘. A
máxima era a seguinte: ―<<Burro que aprende línguas esquece o coice e perde o dono.>> Um
despropósito. O que vale é que vozes de pedintes não chegavam ao céu e os doutores já iam
muito alto para as poderem ouvir.‖ (DE, p. 164). Outra pérola da sabedoria popular dos
mexilhões. A palavra ‗pedinte‘ alude claramente a mendigo, aquele que precisa reivindicar o
pão, evidencia também a separação por classes sociais e o abismo linguístico que se instaurou
entre povo e governantes. O preconceito, por parte dos que detêm o poder, revela-se por meio
180
do comentário de que nem as preces dos mexilhões seriam ouvidas por Deus, porque
certamente não chegariam ao céu, mostrando a prepotência daqueles que mandavam.
O ditado popular foi modificado pelo narrador para servir aos interesses da história
contada, o fato dos governantes não conseguirem decifrar algo tão simples como um dito
popular, por si só já é irônico, uma vez que são tão instruídos. Poderia significar que tanta
instrução ao invés de clarear as ideias, pode até atrapalhar ou, quando a pessoa desvia-se de
suas origens ou características acaba perdendo-se, não sabendo quem é.
A ironia do provérbio, no entanto, concentra-se na sobreposição de contextos
semânticos, na polissemia do dito mobilizado, ―burro que aprende línguas esquece o coice e
perde o dono‖: encontramos algumas variações populares para esse ditado, como ―burro velho
não aprende línguas‖, ―burro velho não toma ensino‖ ―burro carregado de livros é doutor‖.
Em todas as máximas a palavra ‗burro‘ é tomada no sentido de alguém desprovido de
inteligência, incapaz de aprender, o que torna o ditado mais irônico, pois burro não deveria
aprender línguas, não é próprio de sua natureza, e quando o faz, acaba traindo seus princípios
e causando danos.
Portanto, o ditado popular torna-se uma maneira de protesto velada, de dizer à classe
dominante do Reino do Dinossauro, de forma disfarçada e irônica, que todo o esforço para
falar em ‗estilo Dinossauro‘ e submeter a linguagem àquela pátria solene, burocrática e
opressora, poderia trazer, a quem tentasse fazê-lo, consequências desastrosas e prejudiciais.
Já em Veiga, os ditados populares ratificam o conformismo das pessoas, ou seja, a
linguagem corrente expressa por meio deles denota a aceitação sem questionamento das
regras e dos valores sociais estabelecidos: ―[...] quando de repente a situação muda de água
para vinho.‖ (SRB, p. 8) / ―Ninguém sabe o dia de amanhã.‖ (SRB, p. 18) / ―[...] como meu
pai as vezes dizia, a minha também não era nenhum mar de rosas.‖ (SRB, p. 29) / ―[...] ─
tudo um dia passa, o bom e felizmente também o ruim [...]‖ (SRB, p. 112) Todos os exemplos
evidenciam como a população aceitava a situação insólita imposta pela Cia., de forma muito
natural, manifesta pela própria linguagem utilizada pelo habitantes de Taitara, ou seja, a
situação muda de repente, de água para vinho, mas ninguém se questiona ou toma uma
providência; a vida não estava nada boa, (uma mar de rosas) porém, nenhum habitante tomava
uma atitude para melhorá-la.
Como vemos, em Sombras de Reis Barbudos, as situações inusitadas são aceitas pelas
pessoas de forma natural, são assimiladas pelo cotidiano, tornam-se rotineiras. Entretanto, o
181
clima de opressão e pesadelo gera uma atmosfera estranha e denuncia a presença dessas
situações insólitas na vida cotidiana, o que acaba fazendo com que o leitor também se sinta
desconfortável.
Os ditados populares ainda são utilizados para indicar algumas proibições absurdas da
Cia., e a maioria deles é modificada, o que causa grande estranheza às personagens do livro;
esse discurso é usado pela Companhia para decretar suas proibições, e, proferidos por ela, os
ditados populares tornam-se estranhamente absurdos e inusitados, acabando por reforçar a
ideia do fantástico, ou melhor, da ambiguidade no seio do cotidiano. Por exemplo, um ditado
marcante em Sombras de Reis Barbudos foi a proibição de ‗tapar o sol com a peneira‘,
impedimento que beira a utopia porque inútil, acabando por ridicularizar a Cia.
Ainda discorrendo a respeito das expressões populares, porque permeiam toda a
narrativa de J. J. Veiga. Percebemos que elas conferem grande fluidez e oralidade ao texto,
cumprindo também sua função de convidar o leitor a refletir a respeito das atitudes das
personagens, de como suas ações enquadram-se no ambiente sócio-cultural do enredo de
Sombras de Reis Barbudos. Reproduzimos abaixo alguns exemplos: ―[...] muito amigos,
formavam uma espécie de corda-e-caçamba‖ (SRB, p. 8) / ―Mas o castigo veio a galope‖
(SRB, p. 49) / ―Você está cuspindo no prato em que come.‖ (SRB, p. 54) / ―Um mal que veio
para bem.‖ (SRB, p. 70) / ―quem estivesse pensando em derrubá-los podia tirar o cavalinho da
chuva‖ (SRB, p. 99) As falas acima são a representação da simplicidade do povo de Taitara, e
é nesse cotidiano pacato e simples que o fantástico de Veiga se instaura.
4.5 MANEIRAS DE DISTRAIR E ENGANAR O POVO
Também, nos dois textos, temos a presença de mecanismos que tentam distrair o povo,
evitando que as pessoas façam uma reflexão mais profunda sobre a realidade vivida ou
protestem contra a forma como o governo conduz sua pátria. Em ―Dinossauro
Excelentíssimo‖, eram as loterias e jogos de azar que ludibriavam o povo, deixando-o na
expectativa da felicidade futura; desta forma, esquecia-se do sofrimento presente. Em
Sombras de Reis Barbudos, é tarefa do mágico Uzk desviar a atenção da população de seus
problemas, dando-lhe um pouco de ânimo para aguentar mais cargas absurdas de proibições
182
insanas. Entretanto, neste caso, vimos que o mágico acaba assumindo uma outra função na
narrativa, qual seja a de promover a reflexão e o questionamento a respeito das mudanças.
Há também a questão do duplo: em ―Dinossauro Excelentíssimo‖, o duplo do
Imperador é sua estátua, réplica perfeita que o narrador chama de ‗irmão de bronze‘; em
Sombras de Reis Barbudos, o duplo está na figura do mágico Uzk, nos cartazes que propagam
a figura de um artista magnífico em contraposição ao mágico real fora dos palcos,
praticamente pessoas diferentes. De qualquer modo o conceito de duplicidade paira soberano
sobre textos que mobilizam recursos como a ironia, a paródia, a sátira, artifícios que se
pautam pela intertextualidade.
4.6 OUTROS RECURSOS DE LINGUAGEM
A personificação é uma característica presente tanto em ―Dinossauro Excelentíssimo‖
quanto em Sombras de Reis Barbudos. José Cardoso Pires dá vida às palavras, que recebem o
mesmo tratamento de uma pessoa, incluindo o direito à investigação e a tortura dos
vocábulos, levando à criação de uma máquina de torturas somente para eles: Câmara de
Torturar Palavras.
Como ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é uma fábula, um tipo de narrativa que possibilita
um intertexto com os contos de fadas, não é de se estranhar que ocorra a prosopopéia, figura
de linguagem que dá vida a seres inanimados. Na fábula, não são apenas as palavras que são
personificadas, mas todas as categorias a elas associadas, ou seja, toda forma de comunicação
e expressão: pontuação, acentuação, letras, dicionários. Cardoso Pires, além de dar vida à
categoria da linguagem, por meio da personificação, utiliza também uma metáfora quando
compara as palavras a serpentes traiçoeiras e perigosas.
Evidentemente, estruturado como uma fábula, o conto de Cardoso Pires tem a
personificação ou antropomorfização como um recurso fundamental, lançando mão de
animais-personagens para retratar os antagonistas do enredo, o tirânico imperador Dinossauro,
de um lado, e os mexilhões, de outro, figurativizando o povo oprimido.
Dar alma a seres que não a possuem, fornecer-lhes movimentos próprios é uma
característica inerente também ao realismo mágico e J. J. Veiga usa as mágicas de UZK para
183
dar ‗anima‘, movimento, ao que na realidade comum não possui movimento. O mágico UZK
apresentou à população de Taitara a possibilidade de enxergar o mundo de outra forma, ou
seja, lançou a possibilidade da mudança na vida daquelas pessoas. E lançou esse desafio por
meio das mágicas, transformando o que parecia impossível: fez sapos e pedras voarem; ele
próprio voou pelo palco, já um prenúncio do voo que ocorreria com os habitantes da cidade.
Duas figuras de linguagem muito interessantes ocorrem nos textos: diminutivos e
eufemismos. Os diminutivos são formas afetivas e carinhosas que revelam também o estágio
de intimidade entre os interlocutores. No caso de Sombras de Reis Barbudos, que é onde eles
ocorrem, o uso desse recurso justifica-se por ser o narrador um pré-adolescente, praticamente
uma criança, portanto, sua linguagem acompanha um ritmo infantil.
Mas em determinados momentos do texto, quando usados por outras personagens da
narrativa, como exemplo por Horácio, o pai do narrador, os diminutivos tornam-se irônicos,
como tão bem exemplificam os episódios da apreensão das ‗lunetinhas‘ e dos ‗binoculinhos‘;
ou da referência irônica de Lu aos ‗probleminhas‘ miúdos do pai, em oposição aos problemas
maiores enfrentados pelo Tio Baltazar. Sem contar que em ‗probleminhas miúdos‘ temos um
pleonasmo que intensifica a noção de pequenez.
No ―Dinossauro Excelentíssimo‖ são os eufemismos que disfarçam o verdadeiro
sentido do texto, funcionando também como marcadores irônicos. Como uma das maiores
armas do Imperador Dinossauro era manipular as palavras do discurso a seu favor, o uso do
eufemismo era fundamental, pois a troca da palavra verdadeira pela palavra atenuante
disfarçava ou acabava com os problemas no Reino do Dinossauro. Assim, ―pobreza‖ foi
trocada por ―modéstia‖, ―mendigos‖ por ―inadaptados‖, ―impostos‖ por ―donativos‖, etc.
Assim, eufemismos e diminutivos reforçam a ironia, ao servir de disfarce do discurso.
4.7 INTERTEXTO BÍBLICO
Percebemos a presença da questão messiânica, em ambos os textos. Em ―Dinossauro
Excelentíssimo‖, o Imperador parece a versão paródica de Jesus, aproximação sugerida pela
intertextualidade com a Bíblia. A semelhança entre o Imperador Dinossauro e Jesus começa
desde a origem humilde, passa pela migração (fuga) com os pais para outro território, chegada
184
à Cidade dos Doutores (Templo de Jerusalém), referencia as estações da Via Crucis, até
chegar ao evento mais importante para o Cristianismo, que é a ressurreição de Cristo.
Mas o Imperador Dinossauro é um messias às avessas, porque vem para roubar e
destruir, portanto, a versão antípoda de Jesus, o salvador.
Em Sombras de Reis Barbudos, cabe a Baltazar a função messiânica, por sua relação
com os Reis Magos, a começar pela coincidência do nome. Baltazar fazia parte da comissão
de reis que, segundo a Bíblia, levou presentes para Jesus por ocasião de seu nascimento. No
livro analisado, tio Baltazar traz prosperidade para a pequena cidade de Taitara, implantando a
Companhia no município. Ao menos enquanto ele esteve à frente da Cia., a cidade prosperou
e desenvolveu-se economicamente, mas, com sua saída da empresa, aos poucos esta revelou
sua faceta dominadora e foi ocupando todos os espaços da cidade.
Concluímos que nos dois textos, o que veio para salvar acabou por destruir, ou seja, o
que, aparentemente, iria contribuir para o bem-estar e progresso da população, mostrou-se um
instrumento de opressão e repressão.
4.8 OS REINOS E AS CIDADES
Percebemos nas obras analisadas uma dicotomia muito significativa, ou seja, Cardoso
Pires contrapõe o Reino do Dinossauro ao reino do mexilhão, são reinos completamente
opostos em todos os sentidos, um abismo os separa:
O povo lembrava-se dele pelos retratos oficiais e pelos bustos de jardim ou, mais
dificilmente, pelas notas de banco que traziam a cena histórica do <<Imperador
Entre os Doutores, Saber & Autoridade, moeda-ouro>>. Poucos, raríssimos cidadãos
podiam entrar na torrezinha onde ele se tinha fechado a sete chaves, todas de
segredo e cada qual com o seu nome: (DE, p. 160)
Diz o texto que o Imperador Dinossauro foi-se distanciando do povo e terminou
completamente recluso, solitário, surdo e senil. O Reino do Dinossauro, que representa o
poder despótico, é composto pelos cidadãos mais abastados tais como os doutores, os Dê-
185
erres, caracterizados pela riqueza e poder; o reino dos mexilhõe, formado pelo povo oprimido,
encontra-se no extremo oposto, miserável e desamparado.
De seu lado, Veiga também estabelece uma dicotomia entre a Cia. e a cidade de
Taitara. A Cia. representa a modernidade e o progresso que invadem, sem pedir licença, a
pequena cidade do interior, criando a oposição: evolução versus pacata vida interiorana, sendo
a primeira vista negativamente, trazendo malefícios para a segunda, como constatamos pela
passagem do texto:
Então começou aquela romaria de gente de fora, uns homens muito prosas no vestir
e no falar. Eles se hospedaram no Hotel Síria e Líbano por conta do tio Baltazar,
tratavam a gente como se fôssemos índios ou matutos (meu pai vivia encrespando
com eles por causa disso) e reclamavam dos quartos, da comida, da poeira, como se
fossem reis acostumados com o bom e o melhor. (SRB, p. 10)
Fato é que os dois textos analisados têm um final que sugere uma continuidade e abre
um leque de significados para o leitor. Em Sombras de Reis Barbudos, muitas perguntas
ficam por responder, o próprio narrador busca ao final uma explicação para as pessoas
voarem, surgindo especulações sobre uma ―alucinação coletiva‖; do mesmo passo, a menção
à ―festa dos reis barbudos‖ fica pairando no ar, sem qualquer esclarecimento do narrador.
Em ―Dinossauro Excelentíssimo, de igual forma, há uma espécie de sugestão de que
nada vai mudar, de que virão outros Imperadores Dinossauros, e por isso mesmo, a história é
cíclica. E a história que se inicia como um conto de fadas, num reino distante, não tem o final
feliz próprio desse tipo de narrativa; ao contrário, termina de forma imprecisa e infeliz.
Enfim, vemos que nos caminhos ora diversos, ora semelhantes, os autores buscam
―disfarçar‖ seu discurso para burlar a censura, pautando-se por uma intenção análoga, qual
seja, a de denunciar e criticar os governos autoritários, bem como refletir sobre seus
mecanismos de opressão.
186
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em uma visão retrospectiva de nosso trabalho, lembramos que a escolha das narrativas
de José Cardoso Pires e José J. Veiga foi motivada pelo fato dos dois autores terem retratado
nos textos a vivência, em seus respectivos países, de um terrível período de opressão
ditatorial: a ditadura salazarista, em Portugal, e a ditadura militar oriunda do golpe de 1964,
no Brasil; em consequência, presenciaram e sentiram na pele os horrores desses regimes e
suas sequelas para a nação e seus cidadãos. Assim, foi esse o ponto de contato crucial que nos
levou a aproximar Cardoso Pires e Veiga para uma análise comparativa de seus textos,
respectivamente, o conto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ e o romance Sombras de Reis
Barbudos.
Qual teria sido a intenção dos autores ao optarem pelo enfoque de regimes tirânicos?
Uma possível motivação seria o registro das atrocidades cometidas num momento histórico
deplorável, como um testemunho documental, como um alerta para as consciências e um
marco na memória dos cidadãos, na tentativa talvez de evitar a recorrência de situações
semelhantes. Evidentemente, enfoques como esse, em tempo real, pois lembramos que tanto o
conto português como o romance brasileiro foram publicados em plena vigência das ditaduras
que denunciavam, teriam que vir sob o manto do disfarce, em discursos repletos de
subtendidos, desvãos e ambiguidade, no afã de burlar a censura da época.
Justamente nessa questão focou-se nossa análise; tentamos realizar um exame
criterioso dos recursos estruturais dos discursos analisados, na tentativa de deslindar o
arcabouço que sustenta textos que primam pela dissimulação, pela linguagem encoberta, pelo
dizer não dizendo, pela mensagem às avessas. A análise evidenciou que para conseguir esse
intento, os autores privilegiaram a mobilização de expedientes discursivos como a
intertextualidade, a ironia, a paródia, a sátira, o maravilhoso, o fantástico. O rol de figuras
aparentemente díspares fundamenta-se num substrato comum, a busca da duplicidade, pois
todas transitam entre dois vetores ou universos paralelos: o dito e o não-dito, o hipertexto e o
hipotexto, a realidade e a supra-realidade, o verossímil e o inverossímil. Desse modo,
caminham ambas as narrativas numa fissura entre dois discursos, o aparente e o encoberto, o
inócuo e o crítico, o inocente e o perverso, escapando nas entrelinhas do olho obtuso e
pragmático do censor.
187
Evidentemente, como textos que trabalham com o duplo sentido irônico,
caracterizando-se pelos subtendidos e pelas lacunas, exercendo ao máximo o caráter lúdico do
fazer artístico, exigem, consequentemente, a participação ativa do receptor, sua capacidade de
decodificação dos vários estratos de leitura, bem como sua participação no preenchimento dos
‗vazios‘ do discurso. Como afirmamos ao longo da análise, apoiados em Hutcheon:
A natureza participativa da ironia envolve um ―conhecimento culturalmente
partilhado de regras, convenções e expectativas‖ (Pratt, 1977:86) interagindo num
contexto particular. Assim, deve existir uma comunidade discursiva ... o contexto
imediato e o próprio texto devem sinalizar ou provocar alguma noção de que a ironia
é possível. (HUTCHEON, 2000, p. 178)
Observamos, em relação aos elementos da narrativa, que tanto em ―Dinossauro
Excelentíssimo‖ quanto em Sombras de Reis Barbudos, há narradores nomeados e instituídos
para relatarem os fatos, como se cumprissem uma missão, qual seja, fazer conhecer ao leitor
todo o ocorrido naqueles tempos de tirania. A maneira como o fazem, entretanto, difere
significativamente. Assim, a fábula ácida de Cardoso Pires, pautada sobremaneira pela ironia
atacante, de intenção moralizante, distancia-se do discurso menos agressivo, mas não menos
crítico, de Veiga e seu realismo mágico.
Cardoso Pires, pendendo para a paródia satírica e para a fábula, criticou severamente
Salazar e seu governo autoritário, retratando de forma mais evidente o sofrimento e miséria do
povo português, na oposição metafórica entre um Dinossauro opressor e tiranizados
mexilhões.
Veiga, por sua vez, denuncia alegoricamente o governo brasileiro no autoritarismo da
Companhia, e, se parece menos contundente ao enveredar pelo fantástico e pelo maravilhoso,
em verdade promove um questionamento ainda mais amplo e abissal, levando a questionar as
circunstâncias do ser humano, a refletir na precariedade da sua contingência, fechado e
oprimido em sua experiência vital pelo insólito que há em todas as situações de um cotidiano
aparentemente corriqueiro.
Em ambos os textos ressalta o fato de que não importa a forma ou a face com que a
repressão e a censura se apresentem, se metamorfoseadas em um animal pré-histórico, ou
nomeadas por um neologismo (Dê-erre), ou exercidas por uma instituição (Cia.) ou praticadas
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por fiscais, de toda forma seu efeito é devastador sobre os oprimidos.
Com o olhar de hoje, em que vivemos um regime democrático, tanto no Brasil quanto
em Portugal, qual o sentido que os textos têm, assim fora de seu contexto original? De pronto,
parece-nos que constituem um alerta, como relatos históricos de uma época de ‗sombras‘
imposta por déspotas. Ressalvamos ainda que, segundo Johann Wolfgang Von Goethe (1749-
1832), escritor alemão, ―Escrever a história é um modo de livrar-se do passado.‖ (Revista
Língua Portuguesa, 2010, p.7). Ademais, são obras ficcionais; se de certo modo são engajadas
e refletem seu momento histórico, esse compromisso não invalida sua natureza e seu valor
literário.
De todo modo, esse tipo de literatura, narrativas que são metáforas e figurações da
resistência e da luta contra a opressão não são raras em países onde a situação social e política
é conturbada, onde os direitos dos cidadãos são desrespeitados e a liberdade política é, por
motivos diversos, restrita.
As considerações até aqui feitas, a modo de um derradeiro enfeixar de raios paralelos e
cruzados que tencionaram criar uma leitura de textos ambíguos, destacaram duas linhas
mestras: uma, a duplicidade na arquitetura textual; outra, o caráter crítico da mensagem.
Completam-se as duas no tom sério do texto, sob as aparências do humor e ludismo,
confluência que motiva o registro das considerações de Hutcheon sobre a seriedade da ironia,
principal diretriz da mensagem dupla:
Muitos dos adversários do pós-modernismo consideram a ironia como sendo
contrária à seriedade, mas isso é um equívoco e uma interpretação errônea sobre a
força crítica da dupla expressão. Conforme Umberto Eco disse a respeito de sua
própria metaficção historiográfica e de sua teorização semiótica, o ―jogo da ironia‖
está intrinsecamente envolvido na seriedade do objetivo e do tema. Na verdade,
talvez a ironia seja a única de podermos ser sérios nos dias de hoje. Em nosso
mundo não há inocência, ele dá a entender. Não podemos deixar de perceber os
discursos que precedem e contextualizam tudo aquilo que dizemos fazemos, e é por
meio da paródia irônica que indicamos nossa percepção sobre esse fato inevitável.
(HUTCHEON, 1985, p. 62)
Desta forma, como espécies de parábolas históricas, pendendo ou para sátira ou para o
fantástico, promovem os textos um repensar cuidadoso relativamente aos mecanismos, não
somente locais, mas universais, que fazem com que os sistemas opressivos se repitam no
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decorrer da história humana. Portanto, promovendo o questionamento sobre a conduta e as
motivações dos poderosos, suas aspirações megalômanas, enseja que não somente se
compreenda melhor os mecanismos e as tendências predominantes nos regimes autoritários e
opressores, como também alerta para as consequências e os perigos decorrentes de tal forma
de governo.
Finalmente, julgamos que sempre algo novo pode ser dito, sempre haverá um novo
ângulo para se perceber as coisas, sempre poderemos mudar o que parece eternamente igual,
mesmo que seja a História, já registrada e documentada nos livros. Nisto reside a grandeza do
escritor: sugerir novas comparações, sentidos, questionamentos e reflexões sobre o homem e
seu estar no mundo.
Encerramos com a consciência de que em nossa análise fizemos apenas uma leitura
possível, que muitos outros estratos significativos estão por ser desvendados, pois a natureza
da literatura é mesmo assim, polissêmica, permitindo-nos viajar em seu universo por
inúmeros caminhos, aventura cujo grande benefício é a própria viagem. Ou seja,
reconhecendo humildemente que todas e quaisquer conclusões são transitórias e mutáveis.
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