uma outra globalizaÇÃo: a soberania condicionada … · 2019. 11. 25. · uma outra...
TRANSCRIPT
-
UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO: A SOBERANIA CONDICIONADA DOS
ESTADOS-NAÇÃO, A EXAUSTÃO DOS SISTEMAS JURÍDICOS E O
ESVAZIAMENTO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
ANOTHER GLOBALIZATION: CONDITIONAL NATION-STATE SOVEREIGNTY,
EXHAUSTION OF LEGAL SYSTEMS AND DECREASE OF FUNDAMENTAL RIGHTS
Alex Maciel de Oliveira1
RESUMO
Um traço essencial da globalização é seu caráter contraditório, pois simultaneamente em que
ela permite incríveis avanços em diversas áreas - econômica, social, científica, etc. - também
rompe com modelos postos. Sob o prisma das rupturas, a integração dos mercados de capitais
permite que forças econômicas ingiram na política interna de nações vulneráveis e imponham,
como condição para investimento, a adoção de agendas ultraliberais que anulem o Estado-
providência, melhorem condições de competividade, reduzam impostos, esgotem direitos, etc.
Os efeitos desse processo se materializam no enfraquecimento da soberania dos Estados, no
esvaziamento de direitos e desestabilização da ordem democrática. Além disso, o surgimento
caótico de novos fenômenos, excitados pela mundialização, tem causado o exaurimento dos
sistemas legais tradicionais. Mostrando-se estes obsoletos e limitados, ao tentar regular tais
fatos, sofrem um descrédito social e, como resposta, há uma intensa produção legislativa, que
causa uma desfiguração e inchaço nesses ordenamentos. Este trabalho visa analisar a relação
entre a globalização e as citadas rupturas. O método usado é descritivo e exploratório quanto
ao objetivo, qualitativo quanto à abordagem e bibliográfico quanto ao procedimento.
Palavras-chave: Globalização. Estado-nação. Soberania. Democracia. Direitos fundamentais.
ABSTRACT
An essential feature of globalization is its contradictory character, since at the same time it
allows incredible advances in various areas - economic, social, scientific, etc. - also breaks
with models put. In the light of disruptions, the integration of capital markets allows
economic forces to engage the domestic politics of vulnerable nations and impose, as a
condition for investment, the adoption of ultraliberal agendas that nullify the welfare state,
improve competitive conditions, reduce taxes, exhaust rights, etc. The effects of this process
materialize in the weakening of state sovereignty, the depletion of rights and the
destabilization of the democratic order. Moreover, the chaotic emergence of new phenomena,
excited by globalization, has caused the exhaustion of traditional legal systems. Showing
these obsolete and limited, when trying to regulate these facts, they suffer social discredit and,
in response, there is an intense legislative production, which causes disfigurement and
swelling in these ordinances. This paper aims to analyze the relationship between
globalization and the aforementioned ruptures. The method used is descriptive and
exploratory as to the objective, qualitative as the approach and bibliographic as the procedure.
Keywords: Globalization. Nation-state. Sovereignty. Democracy. Fundamentals rights.
1 Aluno Especial do Programa de Mestrado em Relações Negociais da UEL. E-mail: [email protected]
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
2
1 INTRODUÇÃO
A relevância da globalização se evidencia pela assimilação de que mesmo sendo um
fenômeno inacabado, em poucas décadas ela ressignificou, em escala global, diversas áreas da
vida humana - econômica, jurídica, política, social, etc. Justamente por isso, tem se mostrado
um complexo fenômeno, em razão do seu caráter multifacetado e polissêmico.
As acepções mais usadas para defini-la remetem às noções de encolhimento de tempo-
espaço, relativização de fronteiras e soberanias, fluxo de dados, comércio global, inovações
tecnológicas, multiculturalismo, etc. Porém, além dessas noções, também pode ser entendida
como sinônimo de contradição, pois simultaneamente em que ela possibilita vários avanços à
humanidade também provoca tensões, rupturas e crises.
Ao mesmo tempo que encurta distâncias, desgasta soberanias nacionais; ao passo que
facilita o desenvolvimento de certos grupos sociais, aumenta desigualdades e a concentração
de riqueza; na mesma medida que propicia avanços tecnológicos, estimula o uso da mão de
obra escrava para suprir a lógica capitalista de consumo, etc. É nessa ordem de contradições
que os reflexos da mundialização têm representado uma ameaça à soberania dos Estados, à
ordem democrática, à coesão dos ordenamentos jurídicos e aos direitos fundamentais.
Quanto à corrosão da soberania dos Estados, desestabilização da ordem democrática e
esvaziamento de direitos, a integração dos mercados globais possibilita que forças financeiras
adentrem em economias frágeis e imponham, como condição de investimento, a adoção de
políticas liberalizatórias, que reduzam a atuação do Estado-garantia, melhorem condições de
concorrência para bens e serviços estrangeiros, esgotem direitos sociais, concedam isenções
fiscais, etc. Nesse sentido, sem poder se opor à tais forças, os administradores públicos gozam
de uma autonomia decisória só aparente, pois suas decisões estão condicionadas aos interesses
desses organismos, o que gera uma crise de legitimidade e fere de morte a ordem democrática.
Já sobre os ordenamentos jurídicos tradicionais, a mundialização, de um lado, redefine
axiomas legais já sedimentados nesses sistemas - como as ideias de trabalho, empresa, bens,
direitos, etc. - e, de outro, excita a eclosão alucinada de novos fenômenos sociais complexos.
Diante de fatos novo e complexos, os ordenamentos se mostram obsoletos e ineficazes
a solucionar questões que surgem deles. E, uma vez que isso ocorre, as instituições jurídicas
passam a perder legitimidade frente à comunidade, que passa a não mais enxergá-las como
totalmente aptas para solução de suas lides, passando a surgir polos alternativos de jurisdição.
Há, portanto, um enfraquecimento sistêmico das instituições públicas, pela incompatibilidade
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
3
de sua atuação usual como as novas práticas impostas pela globalização.
Como resposta à sociedade, o Direito atua em várias frentes: os Tribunais são levados
a formar uma vasta jurisprudência sobre novos temas; doutrinadores são obrigados a produzir
mais e mais obras; o legislativo é obrigado a editar leis esparsas, imprecisas e em cizânia com
os princípios do sistema, causando uma desfiguração e exaustão dos ordenamentos jurídicos.
Portanto, o artigo almeja entender como os reflexos da globalização atuam na corrosão
da soberania dos Estado, na crise democrática, na exaustão de sistemas jurídicos e na redução
de direitos fundamentais. Para atender ao objetivo geral da pesquisa, a metodologia adotada é
descritiva e exploratória quanto ao objetivo, qualitativa quanto a abordagem e bibliográfica
quanto ao procedimento, tendo seu referencial teórico na literatura especializada sobre o tema.
2 A SOBERANIA FORMAL DO ESTADO-NAÇÃO, A EXAUSTÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS E A CRISE DA DEMOCRACIA NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
O surgimento e consolidação do Estado moderno não se dá de modo linear e tranquilo.
Ao contrário, ao longo dos séculos o fenômeno tem sido marcado por contínuos avanços e
retrocessos, rupturas e crises. Ao analisarmos a evolução do Estado achamos pontos comuns
de tensões em suas bases jurídicas e políticas e, ainda, fenômenos sociais de diferentes épocas
que colocaram em xeque sua coesão e estabilidade. Porém, nas últimas décadas a globalização
tem chamado atenção pelo modo como tem rearranjado as armações do Estado. A questão tem
sido tão séria que alguns teóricos já põem em dúvida o futuro do modelo atual de Estado.
Sobre os reflexos da globalização, o teórico Ulrich Beck evidencia que ela possibilita
o surgimento de novos riscos sociais globais, ideia que ele sintetiza na expressão sociedade de
risco, afirmando que “o desenvolvimento tecnológico da sociedade contemporânea demonstra
uma nova dinâmica política que autoameaça a civilização” (BECK, 2010).
Embora a mundialização seja recente e inacabada, não deve ser desprezada, pois tem
se mostrado um fenômeno extremamente poderoso na formatação da sociedade e das relações
sociais à nível global. Especificamente em relação ao Estado-nação, o fenômeno tem exercido
tamanha pressão sobre ele a ponto de alterar suas bases primárias. Nesse sentido, de todos os
elementos do Estado moderno aquele que parece ser o mais relativizado pela globalização é,
num primeiro plano, sua soberania e, como consequência, sua autonomia decisória.
Havendo usualmente na ordem internacional respeito à soberania nacional, as relações
internacionais quase sempre fluíram numa dinâmica de tomadas de decisões que ocorriam de
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
4
plano interno para o externo, cabendo uma decisão somente aos Estado quais interessam. Isto
é, ações externas dentro de países soberanos sempre foram mecanismos secundários no plano
global, sendo tal possibilidade reservada só à órgãos supranacionais legítimos e para solução
de casos excepcionais, tal como entraves diplomáticos graves, guerras, fatos que envolvessem
vários países, crimes contra a humanidade, questões humanitárias e outros (MELLO, 2000).
Porém, mesmo em casos excepcionais, sempre houve a precisão de prévia deliberação
da comunidade internacional sobre a possibilidade, ou não, da ingerência externa, em evidente
busca pelo respeito aos costumes, princípios e regras do Direito Internacional. Além disso,
quase sempre em que ocorreram, foram usados como última medida, ou seja, após já haverem
se desenrolado negociações diplomáticas ou terem sido adotadas meios que não se mostraram
eficazes, como embargos e sanções econômicos, por exemplo.
Ocorre que com a intensificação do processo globalizatório, especialmente nas últimas
décadas, essa realidade tem sido profundamente alterada, vez que novas forças financeiras
têm desgastado fortemente os alicerces elementares do Estado, dinâmica na qual há a perda,
sobretudo, de sua soberania e autonomia em relação a questões internas de interesse nacional.
Num mundo altamente transnacionalizado, o palco e atores das relações internacionais
são completamente cambiáveis. A globalização fez surgir novos atores internacionais. Assim,
um dos predicados dessa marcha é a reestruturação das dinâmicas nas relações internacionais,
criando um novo quadro de atores, que não mais corresponde aquele usualmente conhecido, a
saber: Estados-nação, Organismos Internacionais e indivíduos (RESTREPO VELEZ, 2013).
Tais forças econômicas, por sua vez, fazem emergir um novo sistema de tomadas de
decisões à nível global. Esse aparelho de poder não reconhece quaisquer leis que não sejam
por ele criadas e que não sigam a lógica do lucro e da acumulação de riquezas. Assim, ele se
autorregula, autoregulamenta e autodisciplina, caracterizando-se como um modelo autocrático
e autoritário, não considerando qualquer possibilidade de discussão acerca de suas ações em
âmbito democrático e representativo, vez que isso representaria entraves às suas ações.
Esses novos agentes, num primeiro momento, passam a atuar ao lado dos Estados e,
pouco a pouco, passam a ingerir na tomada de decisões acerca de questões domésticas que
possam, de algum modo, impactar negativamente nos seus interesses; uma vez que o país
invadido, pela sua fragilidade econômica, não consegue fazer frente às primeiras intromissões
dessas forças, passa a ser pressionados, cada vez mais, a atender inúmeras exigências; num
momento final desse injusto embate, as forças econômicas acabam por suprimir a soberania
nacional e do poder decisório dessas nações, que acabam por ceder às pressões externas.
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
5
Sendo esse novo aparelho decisório formado exclusivamente por empresas, que detêm
grande parte do mercado econômico global e sozinhos representam a economia de vários
países juntos, Estados em desenvolvimento e de baixo poder econômico - em regra, africanos
ou latino-americanos - e que não possuem qualquer poder de barganha, são pressionados à
adotarem inúmeras políticas públicas de cunho extremamente liberais, que vão ao encontro ao
modelo liberalista transnacional, tais como privatizações, redução de políticas pública para
redução de desigualdades, abertura de mercado, diminuição do Estado, reformas trabalhistas e
previdenciárias, isenções fiscais, etc. (BRESSER PEREIRA, 1998).
Nesse cenário, os Estados afetados não deixam de ser soberanos, vez que a completa
falta de soberania implicaria no fim de sua própria existência e ruiria com a estrutura política
de poder já estabelecida, que mantêm estável o status quo das forças financeiras dentro desses
países. Ao contrário, para que essa dinâmica se mantenha ativa é preciso que os Estados sob
ingerência permaneçam soberanos e que seus governantes continuem formalmente no poder,
porém as escolhas do país, em grande parte, não mais seguirão a lógica do bem comum, e sim
à lógica do quanto essas forças conseguirão lucrar com a extração dos seus recursos naturais,
quais serão as isenções fiscais concedidas às suas empresas ou quais de seus produtos e
serviços poderão ser importados e colocados no mercado nacional a um preço competitivo.
Porém, a corrosão do poder dos Estados nem sempre ocorre de forma apática e sem
resistência. Os Estados podem se opor a interferência do mercado e não se ceder às exigências
dos setores econômicos. Porém, essa atitude é combatida por meio de embargos econômicos e
pressões externas, que se materializam pela saída em massa de empresas pertencentes a um
mesmo conglomerado financeiro, fim de relações comerciais com o país, entre outras práticas.
Em países de economia primária tais medidas ocasionam graves crises econômicas,
abalam as estruturas sociais, e, ainda, causam um isolamento econômico internacional, fatos
que farão com que, cedo ou tarde, os novos governantes repensem e cedam às exigências.
Então, quanto maior a força econômica de um Estado - tamanho da economia, capacidade de
investimento em capitais, desenvolvimento tecnológico, etc. - maior será a sua capacidade de
oposição frente à tais agentes e, logo, mais protegida estará a sua soberania de tais práticas.
Em razão da disparidade na concentração de rendas, intrínseca ao neoliberalismo, a
maioria da riqueza do globo está sob o domínio dos grandes conglomerados financeiros. Essa
realidade é potencializada pela transnacionalização do capital. O resultado é a incapacidade
dos países pobres em resistir às demandas liberalizatórias e à agenda econômica imposta pelo
mercado, não podendo implementar políticas em desacordo com os interesses do mercado.
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
6
Usando de seu poder econômico, as forças de mercado impõem a adoção de políticas
que tragam total abertura de mercado, melhorem as condições de concorrência entre produtos
nacionais e importados, promovam reformas trabalhistas, previdenciárias e tributárias, deem a
isenções fiscais a tais empresas, privatizem de empresas e bens públicos, e outras.
Sobre essa conjuntura trazida pela globalização, Octávio Ianni explica que:
[...] as corporações transnacionais pressionam Estados a promoverem reformas políticas, econômicas e socioculturais, envolvendo instituições jurídico-políticas
destinadas a favorecer a dinâmica das forças produtivas e relações capitalistas de
produção. São diversas, diferentes e insistentes as pressões externas e internas
destinadas a provocar a reestruturação do Estado. Trata-se de promover a
desestatização e desregulação da economia nacional; simultaneamente, promover a
privatização de empresas produtivas estatais e dos sistemas de saúde, educação e
previdência. Além disso, abrem-se os mercados [...]. Muitas conquistas sociais de
diferentes categorias operárias e outros assalariados já foram ou estão sendo
redefinidas, reduzidas ou eliminadas [...] (IANNI, 1999, p. 13).
Em síntese, desse modo, a atuação de setores econômicos nos Estados-nação gera uma
gradual corrosão na soberania interna dos países, elemento outrora visto como indispensável à
caracterização de um Estado. Trata-se, como observado, não de sua aniquilação total, mas de
um mero jogo de aparências, no qual resta a esses países tão somente uma soberania formal e
aparente, pois no plano fático as decisões dos governos, desde o início, já estão condicionadas
às regras impostas pelas forças de mercado (RAPOPORT, 1997). Trata-se, portanto, de uma
nova tipologia de soberania, uma soberania estatal somente residual e mitigada, configurando-
se como um estrito conjunto de decisões políticas que restam aos governantes nacionais que,
em regra, são de caráter meramente burocráticas e simbólico, pois as decisões que, de fato,
impactariam a vida da população geral já foram tomadas pelas forças econômicas.
Subsidiariamente, porém de igual relevância, há também a desestabilização da ordem
das instituições democráticas locais que, em tese, deveriam tomar decisões visando o interesse
coletivo e o bem comum de seus nacionais, mas que, na realidade, acabam tendo o seu caráter
solidário e participativo amplamente mitigado, uma vez que tais instituições continuam a ser
formalmente democráticas, pois obedecem a certos requisitos - como a representação do povo
através de agentes políticos e de eleições periódicas - porém, tem a sua atuação restringida à
chancela das decisões tomadas pelos setores econômicos, dinâmica que estreita ainda mais o
fosso existente entre as instituições democráticas e o social (BALLESTRIN, 2018).
As instituições internas dos Estados também se mostrado fracas e ineficientes frente ao
fato por várias razões. O Poder Legislativo deveria controlar e fiscalizar as medidas tomadas
pelo Executivo, pois na maioria dos sistemas democráticos atuais as decisões deste precisam
da chancela do Legislativo para serem efetivadas. Porém, a articulação das forças econômicas
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
7
tem sido tamanha, que elas têm conseguido entranhar dentro dos Congressos nacionais. Nesse
viés, tais forças financiam a entrada de membros nas Casas Legislativas. Uma vez que contam
com um grande número de políticos favoráveis aos seus interesses, criam uma forte base, a
qual lutará pela aprovação de leis que garantam que seus interesses naquele país.
De igual modo, ao Judiciário também caberia a intervir a fim de coibir tais práticas.
Neste Poder, em regra, o financiamento de Juízes, Promotores e demais membros da Justiça
não é tão corriqueiro como no Legislativo, porém quanto mais frágil for a economia nacional,
mais ameaçada estão as suas instituições democráticas. Em países pobres e em que há um alto
índice de corrupção do Judiciário, a atuação desses grupos é mais incisiva e direta.
Em países com instituições democráticas mais sólidas o modo de atuação é diferente,
mas igualmente eficaz. Não é segredo que conglomerados financeiros contam com corpos de
advogados e assistência jurídica da mais alta qualidade. Então, valendo-se dos serviços desses
profissionais, essas forças exploram a fragilidade e morosidade das justiças desses países que,
como todo ordenamento possuem brechas e lacunas. Assim, por meio de recursos e medidas
protelatórias de todos os tipos, uma ação judicial que possa vir a prejudicar seus negócios
acaba se arrastando por anos sem resolução, dando tempo hábil para que esses grupos possam
lucrar o máximo que puderem com os seus negócios sem serem sequer incomodados.
Seguindo essa estratégia, mesmo que tenham decisões judiciais desfavoráveis, quando
tais sentenças são por fim prolatadas esses grupos, muitas vezes, nem mais estão naquele país.
Ou, se uma decisão sair em tempo hábil para atrapalhar seus interesses - fato raro -, retomam
seus negócios com outra empresa. Este ciclo permanece até que lucrem o máximo possível,
ficando a conta da corrosão de suas instituições e os prejuízos financeiros para o país violado.
Sobre a corrosão de instituições democráticas causada pelo mercado, Faria aponta que:
Estruturas administrativas, políticas, jurídicas do Estado - deixam de ser um locus de
direção, deliberação e imposição de comportamentos, limitando-se a atuar como
mecanismos de coordenação, adequação de interesses. São mecanismos cada vez
mais delimitados pelos imperativos dos sistemas produtivos [...]. Longe de
representarem um critério orientador para decisões do Estado e para sua produção legislativa, esses imperativos são princípios normativos destinados a estabelecer
limitações as intervenções governamentais reguladoras [...] (FARIA, 2004, p. 12).
Após a constatação de que o poder decisório dos chefes dos Executivos tem sido cada
vez mais limitado e, ainda, que os Poderes Legislativo e Judiciário, não conseguem cumprir
seu papel de fiscalizar decisões tomadas em prol de interesses econômicos particulares em
detrimento do interesse nacional, torna-se pertinente fazer a seguinte pergunta: se as decisões
impostas pelas forças econômica não se submetem ao crivo de um amplo debate democrático
e à fiscalização das instituições públicas, teriam legitimidade, nos planos da democracia e da
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
8
soberania, para guiar os rumos político-econômico e jurídico de um Estado-nação?
Habermas mostrou apreensão em como a globalização poderia afetar a capacidade de
uma Estado quanto à sua autocondução democrática e legitimidade democrática, pois “uma
vez que são destruídos os pressupostos sociais para uma participação ampla, mesmo decisões
democráticas corretas em termos formais perdem a sua confiança” (HABERMAS, 2001).
Ante à realidade trazida pela globalização, aclara-se a contínua erosão da configuração
clássica do Estado, baseada, entre outras, na soberania, democracia e tutela de direitos, a qual
é excitada por um mercado global que não reconhece fronteiras e nega a exclusividade do
Estado como forma centralizadora do poder decisório, atuando de modo paralelo a ele, como
se fosse um agente legítimo para tomada de decisões que impactam as nações internamente.
Portanto, a figura jurídica do Estado-nação não desaparece, porém estamos diante de
um forte esvaziamento de alguns de seus princípios basilares. Nesse horizonte, não estamos
prevendo o fim do Estado e o começo de uma ordem mundial empresarial, porém, talvez,
devêssemos nos indagar se não estamos presenciando a reestruturação do Estado-nação como
conhecemos, ou mesmo, se não estamos diante do surgimento de um novo modelo de Estado.
3 O DIREITO E OS SISTEMAS JURÍDICOS DIANTE OS REFLEXOS NEGATIVOS
DA GLOBALIZAÇÃO
No ano passado uma notícia chocou o mundo: um carro da empresa americana Uber
atropelou e matou uma mulher nos EUA. Porém, ao contrário dos acidentes de trânsito usuais,
o carro causador do acidente era um modelo autônomo, guiado por câmeras e sinais de GPS e
operado remotamente por um funcionário. O caso ganhou moderada repercussão na mídia.
Podemos extrair duas reflexões desse trágico evento: talvez, a relação entre homem e
inovação não ocorra de forma tão calma como previmos e ainda como as leis têm se mostrado
frágeis diante a eclosão caótica de novos e complexos fenômenos numa sociedade globalizada
e altamente tecnológica.
No caso, os relatórios das investigações policiais apontaram falhas no software da
direção, que não freou o carro em tempo hábil. Diante disso, o caso se arrastaria por anos nas
cortes norte-americanas até que se desse um desfecho. Porém, a família da vítima e a empresa
fizeram um acordo para evitar um prélio judicial. Embora o caso não tenha ido a julgamento,
a tecnologia continuará evoluindo e casos análogos poderão surgir no futuro. Se isso ocorrer,
estará o Direito preparado para enfrentar o problema e a dar uma resposta justa a sociedade?
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
9
Imaginemos que o caso tivesse sido levado à Justiça norte-americana. Caso ocorresse,
por se tratar da primeira morte envolvendo tais circunstâncias, a sua resolução dependeria de
um forte exercício de interpretações extensivas e principiológicas por parte dos juristas locais,
para harmonizar o caso às leis nacionais, pois se trataria de uma hipótese ainda não tipificada.
É verdade que em países que possuem um sistema jurídico oriundo do commom law,
como os EUA, o uso da interpretação, dos princípios e da jurisprudência minimizaria muito a
falta de positivação de um fato. Ocorre que apenas a minoria dos sistemas tem as suas bases
firmadas no direito costumeiro e, logo, a prática não pode ser encarada como regra. A maioria
dos sistemas tem origem no direito romano-germânico e, para boa operacionalidade, precisam
de uma mínima produção legislativa, para que haja a subsunção do direito ao fato concreto.
Também é verdade que mesmo nos sistemas romano-germânicos, nos casos em que há
lacunas, obscuridade ou omissão sobre certo assunto, é possível o uso de técnicas para saná-
los, como interpretação, analogia e princípios gerais. Porém, o uso desses métodos é restrito e,
por vezes, barrado pelo próprio ordenamento, não sendo aplicáveis a toda e qualquer hipótese.
O exercício de suposição proposto é pertinente, pois clareia a dinâmica complexa que
envolve o surgimento de novos fenômenos e a dificuldade do Direito encontra para discipliná-
los. Ainda, a importância da reflexão também se mostra na constatação de que na ocorrência
de caso análogo, na maioria dos ordenamentos jurídicos, haveria um vazio legal sobre o tema.
Nesse viés, embora a legislação norte-americana tenha sido pioneira na regulação de como os
testes de veículos autônomos deveriam ser realizados, só tal previsão foi insuficiente, porque,
apesar dessa tecnologia ainda ser uma realidade distante, já produziu efeitos mais complexos
que aqueles positivados, exigindo do ordenamento nacional a segurança da sua previsão legal.
E, é aqui que mora o cerne da questão. As inovações tecnológicas pipocam num ritmo
acelerado, exigindo uma disciplina legal antes mesmo de produzirem efeitos no mundo fático.
Nessa injusta dinâmica, ou as leis teriam que prever quais tecnologias seriam criadas e quais
efeitos elas produziriam - o que é impossível - ou, tentar regular seus efeitos o mais rápido
possível, quando surgissem. E, é exatamente isso que as normas têm tentado fazer. Porém, tal
escolha tem cobrado um alto preço e feito com que o direito sofra um processo de exaustão.
Ante esse quadro de incertezas vividas pelo Direito, deveriam ser apreensões daqueles
se propõem a estudar esse tema: as estruturas dos sistemas jurídicos suportarão uma demanda
jurisdicional e normativa tão pesada? Os ordenamentos sofrerão uma reestruturação sistêmica,
para se adequar às exigências paradigmáticas impostas pela globalização? Antecipadamente,
alertarmos que em razão do caráter jovem e inacabado da globalização é impossível responder
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
10
com precisão tais indagações. Porém, desde logo, é possível notar a crescente pressão que o
fenômeno tem exercido sobre os sistemas legais, levando-os aos limites de suas possibilidades
operacionais e causando uma dinâmica progressiva de debilidade de suas instituições.
A constrição infligida pela globalização sobre os aparelhos normativos pode ser vista
sob diferentes enfoques. Porém, sem a pretensão de exaurir o tema, trataremos dos reflexos
que têm trazido os efeitos mais negativos a esses sistemas legais. Nesse sentido, o principal
efeito é a crescente dificuldade das normas em acompanhar o ritmo acelerado do surgimento
de novos fenômenos sociais e discipliná-los. Este óbice se mostra mais grave quando acarreta
o esgotamento estrutural dos aparelhos legais, quando estes tentam minimizar os seus efeitos.
Porém, frise-se que a questão não se trata do tempo natural que o Direito precisa para
assimilar o surgimento de um novo fato social até positivá-lo - condição intrínseca ao próprio
Direito (REALE, 2002). O problema vai além e está ligado à limitação resultante do volume
sem precedentes de novos tipos de relações sociais que passaram a surgir após a globalização.
No ciclo contínuo e histórico de positivações das práticas sociais acolhidas, ou não,
numa sociedade, a lei nunca acompanhará o ritmo no qual fatos os sociais surgem, nem suas
complexidades. Assim, o Direito não chegará à uma equação acabada, capaz de disciplinar e
resolver todas as difíceis relações existentes num corpo social. Disso, aclara-se a falibilidade
inata dos sistemas jurídicos frente à compreensão e regulamentação dos organismos sociais.
Em que pese as leis não possam regular todos os fenômenos sociais, para que o poder
centralizado assegure a coesão social e a ordem jurídica estabelecida, necessariamente, deverá
dar a sociedade respostas a, pelo menos, parte das questões levadas à sua apreciação, seja pela
edição de normas, pelos Tribunais, pela atuação política, enfim, pela atuação de seus órgãos.
Isso é preciso para que a crença social na existência de um sistema de justiça continue firme.
Porém, para que exista a crença social na efetividade das instituições jurídicas de uma
comunidade é preciso que haja um equilíbrio mínimo entre a falibilidade inata das leis e os
fatos sociais que elas podem tutelar. Havendo um desequilíbrio nessa equação, as instituições
jurídicas passam a enfrentar uma crise de legitimidade frente à comunidade, e não sendo ela
estancada, através de ações positivas pelo poder público, tende-se a um estado de insegurança
jurídica, no qual há um baixo poder coercitivo das leis e o alto descrédito social em relação a
tais instituições, podendo ocorrer, em um estágio final, até, o rompimento da coesão social.
Portanto, para que as leis possam exercer sua função de aparelhamento social, embora
não possam disciplinar todos os fatos sociais, nunca poderão deixar de ser a fonte precípua de
jurisdição, devendo positivar um mínimo de fatos, para que mantenha a sociedade coesa. Por
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
11
isso que historicamente há uma busca constante do Estado em manter o maior controle social
possível sobre seus cidadãos. O que muda, no tempo e espaço, é a intensidade e modo como
tal ingerência ocorre, a depender da solidez das instituições internas de cada Estado.
Ocorre que tal conjuntura ganha novos contornos quando os fatos sociais começam a
surgir de modo tão rápido e desordenado que os métodos de controle e coesão social até então
usados não mais se mostram eficazes (GIDDENS, 1991). É justamente esse panorama caótico
que a globalização tem imposto aos ordenamentos legais. Isso ocorre, porque a globalização,
ao alterar fortemente o modo como a sociedade até então se relacionava com o mundo fático,
provoca uma redefinição das estruturas sociais e, logo, do papel do Direito (FARIA, 2004).
Sendo usualmente as relações sociais disciplinadas por normas jurídicas ligadas à uma
ideia de domesticidade, sempre coube ao Direito reger precipuamente condutas inseridas num
território. Portanto, embora o direito das gentes, exista desde a concepção moderna do Estado,
sempre foi relegado à um papel subsidiário. Com a globalização, o caráter doméstico das leis
permanece, mas é altamente relativizado, pois passam a ser responsáveis por regular também
fenômenos supranacionais, que desconhecem fronteiras e soberanias. Portanto, a globalização
além de modificar o modo como as relações sociais ocorrem, ainda sobrecarrega os aparelhos
legais, pois expande os limites de atuação das leis e redefine máximas legais já consolidadas,
como as noções de trabalho, território, povo, tempo, espaço e outras (IANNI, 1999).
Nesse viés, vários axiomas são ressignificadas pela mundialização: as fronteiras são
reorganizadas, redefinidas e estreitadas; o conceito de soberania é relativizado; surgem novas
tipos de tratos sociais, que migram de meios físicos para os virtuais; novas relações mercantis
são implementadas; novas tecnologias em diversas áreas do conhecimento são criadas; antigas
relações trabalhistas cedem lugar à novas dinâmicas laborais; há a redefinição da percepção
do tempo e do espaço em escala mundial, entre muitas outras novidades (SANTOS, 2001).
Nesse curso de ressignificações, o Direito se vê diante de muitas perguntas e poucas
respostas. Uma vez que tantas noções são alteradas é preciso que diversas atualizações legais
sejam feitas. Porém, nem sempre isso ocorre. E, uma vez que as lides envolvendo esses novos
conceitos não podem ser respondidas de pronto ou no tempo esperado pela sociedade, seja em
pela falta de previsão legal, seja pela inexistência de jurisprudência ou mesmo pelo tempo que
demandam, o Direito sofre uma crise de legitimidade em suas instituições (BITTAR, 2009).
Ao ter suas falhas expostas por essa nova realidade, os sistemas legais tradicionais,
formados por estruturas de trabalho que atendem à lógica social de décadas atrás, sofrem um
descrédito social, no qual a comunidade local a não mais as enxerga como plenamente aptas
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
12
para solução de suas lides, podendo, até, eleger formas alternativas de jurisdição. Habermas
chama o fato de “crise de legitimação do Direito”, pois, para ele, o Direito só se legitima na
medida em que há reconhecimento social da autoridade da qual emana (HABERMAS, 2001).
Nesse sentido, ao perder força no meio social, o Direito pode começar a dividir espaço
jurisdicional com polos de poder decisórios alternativos, criados pelos setores econômicos.
Esses meios alternativos têm uma estrutura mais complexa, especializada e apta a solucionar
lides oriundas de novos fenômenos globalizatórios, de modo mais eficiente, menos oneroso e
burocrático e com maior previsibilidade de decisões que atendam interesses financeiros.
Sobre o tema leciona José Eduardo Faria:
Outra limitação estrutural do direito positivo e suas instituições judiciais diz respeito
à incompatibilidade entre seu perfil arquitetônico e a já mencionada complexidade
da sociedade contemporânea. Suas normas tradicionalmente padronizadoras,
editadas com base nos princípios da impessoalidade, da generalidade, da abstração e
do rigor semântico e organizadas sob a forma de um sistema unitário, lógico,
fechado, hierarquizado, coerente e postulado como isento de lacunas e antinomias,
são singelas demais para dar conta de uma pluralidade de situações sociais,
econômicas, políticas e culturais cada vez mais diferenciadas (FARIA, 2004, p. 05).
Porém, o Direito não assiste ao enfraquecimento sistêmico de suas instituições inerte.
Como a estabilidade do Estado depende do monopólio da força e de ser a fonte precípua de
Direito, tentará minimizar, ao máximo, os reflexos nocivos do processo. Como revide à perda
de legitimidade e ao surgimento de polos de poder paralelos, que ameaçam a supremacia do
Estado e suas instituições, novas áreas do Direito são criadas, novos temas são pesquisados,
os juristas são, cada vez mais, pressionados a se especializarem em áreas que vão ao encontro
das tendências globais e se distanciam de sistemas legais tradicionais, teóricos criam inúmeras
obras, tribunais são forçados a jurisprudencializar questões até então nebulosas e outros.
Nota-se ainda uma desenfreada produção legislativa por parte do aparelho estatal, que
passa a produzir normas, mais e mais, esparsas e específicas, que disciplinam casos de baixa
incidência. Ocorre que a complexidade dos fenômenos, exige noções especializadas daqueles
que irão positivá-los. E, sendo temas muito distantes daqueles usualmente tratados nas casas
de leis, e, por vezes, editados só para suprir anseios de grupos específicas, as leis são editadas
em cizânia com princípios e o restante do ordenamento, com imprecisões, conflitam entre si,
trazem inseguranças e acabam por tirar toda a efetividade do ordenamento (FARIA, 2004).
Como resultado lógico dessa dinâmica, há uma desfiguração e inchaço nas estruturas
dos ordenamentos legais. Como a produção legislativa exagerada tenta, sobretudo, dar uma
resposta frente ao vazio legal existente sobre certos temas, em detrimento de uma perfeição
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
13
técnica e aplicabilidade, nem sempre há a preocupação por parte do legislador em criar leis
que respeitem a estrutura principiológica e o sistema lógico do ordenamento do qual integram.
Sobre esse problema enfrentado pelos ordenamentos leciona José Eduardo Faria:
[...] como o Estado não pode deixá-los sem algum tipo de controle, se vê obrigado a
editar normas ad hoc para casos altamente específicos e singulares. E quanto mais
sua produção normativa caminha nessa linha, aumentando o número de textos legais
com um potencial de aplicação bastante circunscrito no tempo e no espaço, mais o
direito positivo vai se expandindo de maneira confusa e desordenada. [...] o direito
positivo já não conta mais com uma hierarquia de normas e leis minimamente articulada e com princípios integradores compatíveis entre si. Deste modo, face à
sua pretensão de abarcar uma intrincada e contraditória pluralidade de interesses,
disciplinar comportamentos altamente particularísticos e balizar a ação de uma
enorme multiplicidade de operadores e atores jurídicos, ela acaba perdendo sua
organicidade programática, sua racionalidade sistêmica [...] (FARIA, 2004, p. 08).
Embora tais tentativas, num primeiro momento, pareçam dar uma resposta ao desgaste
sofrido pelos ordenamentos ante as pressões impostas pela globalização, elas têm se mostrado
ineficazes e confusas, atuando em sentido contrário ao esperado, pois potencializam o decurso
da descrença social e exaustão sofrido pelas instituições jurídicas. Nesse viés, a globalização
atua em várias frentes na desestabilização dos sistemas legais. Simultaneamente em que excita
o surgimento de novos fenômenos sociais, impõe aos corpos legais um ritmo instantâneo de
positivação, julgamento e jurisprudencialização daqueles. Ao tentar regular esses novos fatos,
as estruturas jurídicas tão exigidas que passam por um processo de exaurimento.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante o exposto, se aclara quão poderosa é a globalização e o quanto os seus reflexos
têm exercido intensa compressão sobre as estruturas estatais, jurídicas e sociais. No cerne do
problema estão, de um lado, os sistemas legais nacionais, que são levados à uma desfiguração
e exaustão sistêmica ao tentarem amenizar o vazio jurídico existente em relação aos novos e
complexos fenômenos sociais trazidas pela mundialização. De outro, a mundialização ainda
propicia o surgimento de novos polos de poder paralelos, os quais, através de forte ingerência
política, passam a ameaçar a soberania, os direitos e a democracia dos Estados-nação.
A globalização é um fato do qual não podemos surgir. Por se tratar de um fenômeno
inacabado, ela poderá ganhar mais força nas próximas décadas e, logo, continuar conduzindo,
arte com maior ardor, um processo de decomposição das bases do Estado e suas instituições
sociais, até que surja outro fenômeno que a substitua. Portanto, aos estudiosos cabe a correta
assimilação da atual dinâmica de corrosão dos modelos postos, para se determinar quais serão
os resultados desse processo e seus respectivos danos, que incidirão sobre à sociedade.
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
-
14
Nesse viés, evidencia-se a urgência de criação de mecanismos eficazes na proteção da
soberania, coesão dos ordenamentos jurídicos, tutela de direitos e salvaguarda das instituições
democráticas. Em termos práticos, o caminho que parece ser mais o próspero para tal fim é a
cooperação internacional e a transnacionalidade, a ser instrumentalizada pela adoção de novas
formas de governança global, que permitam a criação de espaços transnacionais democráticos,
que atuem na busca do bem coletivo global e, ainda, que sirvam como unidades de coalizão e
órgãos de garantia das instituições estatais e sociais frente às forças econômicas.
Tal proposta há muito já vem sendo delineada e defendida por vários teóricos, porém o
seu caráter aparentemente utópico parece ter sido um dificultador de sua implementação. Para
além do plano somente teórico, embora a proposta exija certa maturidade e consciência global
e, também, um esforço mútuo do cenário internacional, ela se prestaria muito ao fim proposto.
Primeiramente, uma vez que vários países se unissem, na forma de blocos regionais ou
de órgãos supranacionais, teriam maior poder de negociação para fazer frente à imposição das
forças globais, através da deliberação de interesses comuns e de demandas partilhadas. Nesse
viés, muitas poderiam ser as formas usadas para a implantação do modelo, a saber: rodadas
econômicas, conferências, acordos multilaterais; enfim, muitas são as possibilidades.
Igualmente, a cooperação poderia ser transferida ainda para o campo normativo. Desse
modo, nações que tivessem em seu ordenamento uma sólida jurisprudência e uma produção
normativa mais avançada sobre um tema que, em outros países, ainda se mostra problemático
e ainda não pacificado em suas legislações, poderiam conduzir reuniões entre órgãos dessas
Estados, para apresentar sua experiencia e os resultados alcançados. Essa simples medida, que
demanda apenas um exercício de Direito comparado e o diálogo, pouparia grande esforço de
uma produção normativa futura. O modelo alienígena apenas seria implementado se estivesse
em plena harmonia com ordenamento recepcionador.
5 REFERÊNCIAS
BALLESTRIN, Luciana. O debate pós-democrático no século XXI. Revista Sul-Americana
de Ciência Política, Pelotas, v. 4, n. 2, p. 149-164, 2018. Disponível em:
. Acesso em:
05 jul. 2019.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. de Sebastião
Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2010.
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós modernidade e reflexões
frankfurtianas. São Paulo: Forense Universitária, 2009.
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rsulacp/article/view/14824/9146
-
15
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. A Reforma do Estado dos anos 90: lógica e
mecanismos de controle. Lua Nova, São Paulo, n. 45, p. 49-95, 1998. Disponível em:
. Acesso em: 05 jul. 2019.
CASTRO, Carol. Carro semiautônomo da Uber atropela e mata mulher no Arizona.
Super Interessante. São Paulo, 19 mar. 2018. Caderno tecnologia. Disponível em:
. Acesso em: 20 jun. 2019.
FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004.
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado
nacional. Trad. de Carlo Coccioli. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. de Raul Fiker. São Paulo:
UNESP, 1991.
HABBERMAS, Jürgen. A Constelação pós-nacional: ensaios Políticos. Trad. de Márcio
Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.
IANNI, Octávio. O estado-nação na época da globalização. Econômica, Rio de Janeiro, v.
1, n. 1, p. 105-117, jun. 1999. Disponível em:
. Acesso
em: 20 jul. 2019.
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 12. ed.
rev. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
RAPOPORT, Mario. Os estados nacionais frente à globalização. Revista Brasileira de
Política Internacional, Brasília, vol. 40, n. 02, p. 165-171, jul./dez. 1997. Disponível em:
. Acesso em: 20 jul. 2019.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. ajustada ao novo código civil. São
Paulo: Saraiva, 2002.
RESTREPO VELEZ, Juan Camilo. La globalización en las relaciones internacionales:
Actores internacionales y sistema internacional contemporâneo. Revista de la Facultad de
Derecho y Ciencias Políticas. vol. 43, n.119, p. 625-654, Ene./Jun. 2013. Disponível em:
. Acesso em: 15 jun. 2019.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-
modernidade. 7. ed. Porto: Edições Afrontamento, 1999.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal. 6. ed. São Paulo: Ed. RECORD, 2001.
Anais do X
VI C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
https://super.abril.com.br/tecnologia/carro-semiautonomo-da-uber-atropela-e-mata-mulher-no-arizona/https://super.abril.com.br/tecnologia/carro-semiautonomo-da-uber-atropela-e-mata-mulher-no-arizona/http://www.scielo.org.co/pdf/rfdcp/v43n119/v43n119a05.pdf