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UMA MÃO LAVA A OUTRA E AS DUAS PROTEGEM A NASCENTE D’ÁGUA: ADEQUAÇÃO AMBIENTAL EM ASSENTAMENTOS, BRASIL RESUMO A legislação ambiental vigente no Brasil impõe restrições ao manejo de remanescentes florestais, mesmo em áreas excedentes às legalmente destinadas à preservação. Assim, faz-se necessário estimular o desenvolvimento de sistemas produtivos sustentáveis unindo ações de ensino, pesquisa e extensão. E os estudos de casos justificam-se por auxiliarem técnicos e agricultores nas tomadas de decisões, considerando condições topográficas, de fertilidade natural do solo e histórico da ocupação das regiões, diferentes graus de antropização em remanescentes florestais e legislações ambientais pertinentes. O objetivo do artigo é apresentar e discutir ações realizadas no Projeto de Assentamento Etiene, Bituruna, Paraná, Brasil. O Etiene foi implantado há 21 anos, sendo 24 famílias em 1.058 ha. Na ocasião não houve demarcação e averbação de áreas destinadas à preservação ambiental por parte dos órgãos governamentais. No entanto, em 2008 o assentamento foi pioneiro no cadastro do Sistema de Manutenção, Recuperação e Proteção da Reserva Florestal Legal. Neste sentido, ações desenvolvidas pelos agricultores e Assessoria Técnica, Social e Ambiental compreenderam recuperação de áreas degradadas, preservação de remanescentes florestais, implantação de Sistemas Agroflorestais, proteção de fontes através de metodologias participativas e técnicas de visitas aos lotes, reuniões, mutirões de trabalho, curso de extensão, dias de campo. Para potencializar as ações, também foram realizadas parcerias com a Universidade Federal do Paraná e com o Instituto de Colonização e Reforma Agrária. PALAVRAS-CHAVE reforma agrária; proteção de fontes; Assessoria Técnica, Social e Ambiental O presente trabalho tem como objetivo relatar e discutir ações voltadas à gestão de recursos hídricos e florestais no Projeto de Assentamento Etiene, município de Bituruna, Paraná, Brasil. As ações aconteceram ao longo de 2008 e início de 2009, durante a segunda etapa do projeto Águas em Movimento, patrocinado pelo Programa Petrobrás Ambiental. O caso é abordado por tratar-se de um dos primeiros projetos de assentamento no estado a ser cadastrado no Sistema de Manutenção, Recuperação e Proteção da Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente (SISLEG). O SISLEG é um mecanismo criado no Paraná que visa propiciar maior eficiência e agilidade nos processos cadastro de áreas de Reserva Legal (RL). Tem como diretrizes básicas manutenção dos remanescentes florestais nativos, ampliação da cobertura florestal mínima, uso dos recursos florestais e estabelecimento das zonas prioritárias para a conservação e recuperação da biodiversidade, com base no Código Florestal Brasileiro (CREA, 2010). Suas etapas consistem em levantamento georreferenciado dos imóveis rurais, confecção de mapa de uso e ocupação atual do solo locando as RL e as Áreas de Preservação Permanente (APP) (1) , cadastro no Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e averbação do termo de compromisso na matrícula dos imóveis. Todavia, de acordo com Santos (2009) a legislação ambiental vigente impede ou impõe restrições severas ao manejo das áreas de remanescentes de florestas, mesmo àquelas que excedem APPs e RLs, o que faz com que os proprietários percebam os remanescentes mais como um problema a ser eliminado do que uma oportunidade. Para a autora, preservação somente pela força da lei e da fiscalização não são suficientes, sendo necessária a conscientização por parte dos gestores dos órgãos oficiais competentes para que possibilitem caracterizar o manejo racional das florestas como uma alternativa viável. O trabalho divide-se em seis partes. A primeira trás um breve resgate histórico da implantação dos projetos de assentamentos no Paraná. A segunda faz uma caracterização da região centro-sul do estado e do município de Bituruna. Enquanto a terceira descreve algumas das ações de adequação ambiental nos assentamentos. Na quarta são apresentadas características do SISLEG do Etiene e na quinta discutem-se trabalhos realizados para tornar o assentamento uma unidade de referência em adequação ambiental no estado. A sexta trás considerações finais sobre o caso e outras considerações que possam ser relevantes para continuar as pesquisas sobre o tema. 1. A implantação de assentamentos no Paraná (1) Conforme a legislação ambiental brasileira vigente na época, APPs compreendem florestas e demais formas de vegetação naturais situadas ao longo de corpos hídricos, lagoas, nascentes, topos de morros, encostas, restingas, mangues, bordas de tabuleiros e chapadas, além de outras áreas declaradas de interesse pelo Poder Público, como dunas, sítios de valor histórico ou científico, margens de rodovias e ferrovias, entre outras.

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UMA MÃO LAVA A OUTRA E AS DUAS PROTEGEM A NASCENTE D’ÁGUA: ADEQUAÇÃO AMBIENTAL EM ASSENTAMENTOS, BRASIL

RESUMO A legislação ambiental vigente no Brasil impõe restrições ao manejo de remanescentes florestais, mesmo em áreas excedentes às legalmente destinadas à preservação. Assim, faz-se necessário estimular o desenvolvimento de sistemas produtivos sustentáveis unindo ações de ensino, pesquisa e extensão. E os estudos de casos justificam-se por auxiliarem técnicos e agricultores nas tomadas de decisões, considerando condições topográficas, de fertilidade natural do solo e histórico da ocupação das regiões, diferentes graus de antropização em remanescentes florestais e legislações ambientais pertinentes. O objetivo do artigo é apresentar e discutir ações realizadas no Projeto de Assentamento Etiene, Bituruna, Paraná, Brasil. O Etiene foi implantado há 21 anos, sendo 24 famílias em 1.058 ha. Na ocasião não houve demarcação e averbação de áreas destinadas à preservação ambiental por parte dos órgãos governamentais. No entanto, em 2008 o assentamento foi pioneiro no cadastro do Sistema de Manutenção, Recuperação e Proteção da Reserva Florestal Legal. Neste sentido, ações desenvolvidas pelos agricultores e Assessoria Técnica, Social e Ambiental compreenderam recuperação de áreas degradadas, preservação de remanescentes florestais, implantação de Sistemas Agroflorestais, proteção de fontes através de metodologias participativas e técnicas de visitas aos lotes, reuniões, mutirões de trabalho, curso de extensão, dias de campo. Para potencializar as ações, também foram realizadas parcerias com a Universidade Federal do Paraná e com o Instituto de Colonização e Reforma Agrária.

PALAVRAS-CHAVE reforma agrária; proteção de fontes; Assessoria Técnica, Social e Ambiental

O presente trabalho tem como objetivo relatar e discutir ações voltadas à gestão de recursos hídricos e florestais no Projeto de Assentamento Etiene, município de Bituruna, Paraná, Brasil. As ações aconteceram ao longo de 2008 e início de 2009, durante a segunda etapa do projeto Águas em Movimento, patrocinado pelo Programa Petrobrás Ambiental. O caso é abordado por tratar-se de um dos primeiros projetos de assentamento no estado a ser cadastrado no Sistema de Manutenção, Recuperação e Proteção da Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente (SISLEG).

O SISLEG é um mecanismo criado no Paraná que visa propiciar maior eficiência e agilidade nos processos cadastro de áreas de Reserva Legal (RL). Tem como diretrizes básicas manutenção dos remanescentes florestais nativos, ampliação da cobertura florestal mínima, uso dos recursos florestais e estabelecimento das zonas prioritárias para a conservação e recuperação da biodiversidade, com base no Código Florestal Brasileiro (CREA, 2010). Suas etapas consistem em levantamento georreferenciado dos imóveis rurais, confecção de mapa de uso e ocupação atual do solo locando as RL e as Áreas de Preservação Permanente (APP)(1), cadastro no Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e averbação do termo de compromisso na matrícula dos imóveis.

Todavia, de acordo com Santos (2009) a legislação ambiental vigente impede ou impõe restrições severas ao manejo das áreas de remanescentes de florestas, mesmo àquelas que excedem APPs e RLs, o que faz com que os proprietários percebam os remanescentes mais como um problema a ser eliminado do que uma oportunidade. Para a autora, preservação somente pela força da lei e da fiscalização não são suficientes, sendo necessária a conscientização por parte dos gestores dos órgãos oficiais competentes para que possibilitem caracterizar o manejo racional das florestas como uma alternativa viável.

O trabalho divide-se em seis partes. A primeira trás um breve resgate histórico da implantação dos projetos de assentamentos no Paraná. A segunda faz uma caracterização da região centro-sul do estado e do município de Bituruna. Enquanto a terceira descreve algumas das ações de adequação ambiental nos assentamentos. Na quarta são apresentadas características do SISLEG do Etiene e na quinta discutem-se trabalhos realizados para tornar o assentamento uma unidade de referência em adequação ambiental no estado. A sexta trás considerações finais sobre o caso e outras considerações que possam ser relevantes para continuar as pesquisas sobre o tema.

1. A implantação de assentamentos no Paraná

(1) Conforme a legislação ambiental brasileira vigente na época, APPs compreendem florestas e demais formas de vegetação naturais situadas ao longo de corpos hídricos, lagoas, nascentes, topos de morros, encostas, restingas, mangues, bordas de tabuleiros e chapadas, além de outras áreas declaradas de interesse pelo Poder Público, como dunas, sítios de valor histórico ou científico, margens de rodovias e ferrovias, entre outras.

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Para contextualizar as ações faz-se um breve resgate da história da implantação de assentamentos no Paraná, através de uma síntese do artigo de Margit Hauer, publicado no livro “Reforma Agrária e Meio Ambiente: teoria e prática no estado do Paraná” em 2010.

De acordo com Hauer (2010), durante a década de 80 destacaram-se no Paraná a reorganização de movimentos sociais de luta pelo acesso à terra, a elaboração e execução de políticas fundiárias e a implantação de assentamentos de reforma agrária. A autora também apresenta que até 1988, ano da criação do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), as indicações, vistorias e demarcações das áreas que seriam destinadas aos assentamentos eram realizadas por uma parceria entre o Instituto de Terras, Cartografia e Florestas (ITCF), a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA/PR). A presença do ITCF garantia um atendimento da política fundiária atrelada a política ambiental e “o cumprimento da legislação ambiental era condição sine qua non para a implantação de um projeto” (HAUER, 2010, p. 131, grifo da autora).

No entanto, a dificuldade em obter terras agricultáveis direcionou a política fundiária para terras de baixa aptidão agrícola, declividades acentuadas e grande cobertura florestal, o que, para Hauer (2010), emperrou o PNRA e desmontou as equipes criadas para as vistorias, ocasionando a desapropriação de imóveis sem o parecer do órgão ambiental. Assim, inúmeros danos ambientais agravaram o processo de degradação, por conseqüência, a irregularidade das áreas, impedindo aos assentados acessar diversos benefícios. E os órgãos ambientais, antes parceiros, iniciaram um círculo vicioso de autuações e restrições que implicaram em precarização das condições nos assentamentos e consequente aumento da pressão sobre os recursos naturais.

Somente a partir de 2000 o Instituto Ambiental do Paraná (IAP) (criado em 1992 a partir do ITCF) e o INCRA/PR retomaram a parceria na vistoria de áreas a serem desapropriadas e assentamentos a serem licenciados (HAUER, 2010). Sendo que as vistorias constataram que:

“Os assentamentos não estavam em condições de serem licenciados, bem como frisou-se que a metodologia para tratar de questões básicas e indispensáveis para o licenciamento, como saúde/higiene/saneamento e conservação dos solos e recuperação das áreas de preservação permanente, deveria ser revista. Outras atividades que mereciam especial atenção eram a suinocultura e a bovinocultura de leite, no tocante ao destino dos dejetos. Também foram detectados problemas com produtores de carvão e uso de agrotóxicos e outros agroquímicos, desconsiderando critérios técnicos de uso e destinação de embalagens.” (HAUER, 2010, p. 133)

Enquanto isto, a preocupação com o tema na esfera federal resultou na criação do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em 2003, pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (IBAMA) (HAUER, 2010). Este TAC previa levantamento de dados e adequação às normas, cooperação entre INCRA, IBAMA e órgão ambientais estaduais para diminuir custos e acelerar licenciamentos, Planos de Desenvolvimento de Assentamentos (para assentamentos já criados) e Projetos Básicos (para assentamentos em fase de implantação), seminários de capacitação, potencializar recursos para regularização ambiental e estruturação de um Grupo de Trabalho para cumprimento dos objetivos do Termo. O prazo máximo estipulado para solicitar os licenciamentos ambientais era de três anos.

Na esfera estadual, Hauer (2010) apresenta que o IAP propôs um TAC visando ações de adequação ambiental e destinação dos recursos gerados através das multas ambientais, em parte, para recuperar e manter APPs e RLs nos assentamentos do estado e, em parte, para capacitação de técnicos e assentados. Deste modo, entre março e outubro de 2004 houveram cinco cursos e quatro oficinas para 50 técnicos e 400 famílias de 77 assentamentos. Em Bituruna ocorreu o curso “Adequação ambiental e alternativas de produção sustentáveis para os assentamentos de reforma agrária do centro-sul do Paraná”.

Com isto, a autora argumenta que, embora o INCRA não tenha conseguido atender todas as ações previstas nos TACs federal e estadual, alguns resultados foram obtidos no estado do Paraná, como levantamento topográfico e demarcação de RLs em dezesseis projetos de assentamentos, cadastro de seis assentamentos no SISLEG, com registro em cartório de títulos e documentos, e elaboração de sete Planos de Desenvolvimento do Assentamento.

2. Conhecendo Bituruna-PR

Bituruna situa-se na região centro-sul do Paraná a 317 km da capital, Curitiba. A área do

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município é de 121.765 ha(2), dos quais 20.990 ha estão cobertos por remanescentes florestais (SOSMA, 2011). A população total é de 15.883 habitantes, distribuídos em 9.902 no meio urbano e 5.981 no rural (IBGE, 2010). O bioma é Mata Atlântica e a vegetação original é a Floresta Ombrófila Mista, também conhecida por Mata de Araucárias. O clima é caracterizado por invernos rigorosos e ocorrência de fortes geadas. A região tem topografia forte ondulada a montanhosa com elevadas restrições à mecanização, limitando áreas planas a várzeas e planícies isoladas. E apresenta solos rasos e de baixa fertilidade.

Possui 1.736 estabelecimentos agropecuários (IPARDES, 2011). Nos seis projetos de assentamentos federais, implantados no município entre 1991 e 2001, residem 416 famílias que ocupam 14.448,33 ha (INCRA, 2011). Estas áreas onde hoje estão os assentamentos foram compradas ou desapropriadas pelo INCRA de empresas do ramo madeireiro que exploravam, principalmente, madeiras nobres como a imbuia (Ocotea porosa), a araucária (Araucaria angustifolia), ambas em extinção, e o cedro (Cedrela fissilis), gerando grandes impactos ambientais.

O Projeto de Assentamento Etiene, por sua vez, criado em 1991 por desapropriação do imóvel de uma empresa, possui 24 famílias em 1.058 ha (INCRA, 2011). Na ocasião da implantação não foram realizadas nem discussões nem demarcação e averbação de áreas destinadas a preservação ambiental por parte dos órgãos governamentais competentes.

Todos estes fatores, do clima, declividade, tipo de solo, irregularidades perante a legislação, somam-se para dificultar o desenvolvimento de atividades agrícolas no município. As principais atividades agropecuárias desenvolvidas pelas famílias assentadas são voltadas ao autoconsumo, como a produção de milho, tanto para alimentação humana quanto de suínos, aves e gado, e de feijão, arroz, mandioca, hortaliças, leite. Enquanto o extrativismo e o manejo florestal são importantes fontes de renda, destacando-se a exploração da bracatinga (Mimosa scabrella), para a produção de lenha e carvão vegetal, e da erva-mate (Ilex paraguaiensis).

As famílias assentadas acessam créditos agrícolas tanto de investimento quanto de custeio. Entretanto, diante da própria estrutura financeira e da falta de orientação técnica, investem seus recursos na implantação de atividades agrícolas com baixo ou nenhum retorno, o que acarreta em inadimplência ou compensação de pagamento do custeio de atividades não rentáveis com as rentáveis. Ou seja, acabam extraindo recursos florestais para custear suas lavouras anuais, principalmente de milho.

A consolidação de uma Assessoria Técnica comprometida com o desenvolvimento social, ambiental e econômico das famílias assentadas também se configura como um forte limitante. Em geral, os técnicos são contratados através de convênios de curta duração com órgãos governamentais e que, não raro, são encerrados antes do prazo estabelecido por razões burocráticas. Um exemplo é o convênio entre a Cooperativa dos Trabalhadores em Reforma Agrária (COTRARA) e o INCRA que, iniciado em janeiro de 2005 com previsão para terminar em dezembro de 2007, foi interrompido em maio de 2006.

Outra forma de contratação de técnicos e aplicação de recursos nos assentamentos é através de projetos financiados com recursos não reembolsáveis (isto é, que não necessitam ser devolvidos ao agente financiador) disponibilizados por instituições públicas, privadas ou, ainda, organizações sem fins lucrativos. São direcionados por chamadas públicas que visam selecionar iniciativas de projetos de organizações da sociedade civil em áreas de interesse das instituições. O repasse é feito mediante contratos, convênios ou termos de cooperação.

Uma iniciativa a ser destacada, no começo da década de 90, foi parceria entre o Instituto Agronômico do Paraná (IAPAR), o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) e a Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA) visando estimular a organização de agricultores familiares para desenvolver formas mais regionalizadas de agricultura e comercialização de produtos. Esta iniciativa culminou com a criação do Fórum Regional das Organizações dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Centro-Sul do Paraná, agrupando Sindicatos, organizações de produtores, associações e a Pastoral da Juventude Rural (AHRENS, 2006).

O objetivo era discutir e experimentar técnicas mais sustentáveis para a região, de modo que os agricultores familiares desenvolvessem conhecimentos para utilizar e administrar seus recursos de forma competente e eficiente (AHRENS, 2006). Assim, em 1998, grupos de agricultores iniciaram experiências de Sistemas Agroflorestais (SAFs) com erva-mate, cultura historicamente explorada na

(2) 1 hectare (ha) = 10.000 m2.

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região (SANTOS, 2009). E de 1999 a 2004 o IAPAR coordenou o projeto Promoção e Participação de Agricultores-Experimentadores no Processo de Desenvolvimento Tecnológico, tendo o Fórum e a AS-PTA como parceiros, e cujos resultados foram apresentados em um encontro em Bituruna em 2004 (AHRENS, 2006, grifo nosso).

Apesar de propor metodologias e técnicas que poderiam referenciar um sistema produtivo agroecológico para todo o município e região, as metas do IAPAR e ASPTA foram direcionadas a propriedades rurais de comunidades que não pertenciam aos assentamentos, logo, a maior parte das famílias assentadas não participou diretamente do Fórum e do projeto. No entanto, alguns assentados familiares de agricultores beneficiários do projeto sentiram-se motivados pela proposta e implantaram em seus lotes importantes experiências, que se tornaram referência em SAF neste tipo de floresta. Porém, ainda era necessário atender as demandas da maior parte das famílias assentadas.

A seguir, serão apresentados alguns projetos financiados com recursos não reembolsáveis visando atender demandas específicas das famílias assentadas e considerando a legislação ambiental vigente, bem como voltados a desenvolver nos assentamentos sistemas produtivos mais adequados às características naturais da região.

3. As experiências ambientais nos assentamentos de Bituruna

Os assentados em Bituruna organizam-se a partir do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). E para o MST a Agroecologia é uma premissa. Ela configura-se como uma agricultura que deve ser tanto sustentável quanto altamente produtiva e requer uma nova abordagem valorizando os aspectos conservacionistas da agricultura tradicional local utilizando, ao mesmo tempo, conhecimentos e métodos ecológicos modernos (GLIESSMAN, 2005).

Os SAFs, por sua vez, são complexos sistemas agropecuários cuja estrutura e funcionamento podem ser muito similares aos ecossistemas naturais locais e aliar, ao mesmo tempo, a produção à conservação dos recursos naturais. Em estudo realizado por Santos (2009), a autora aponta que, após uma década da implantação de experiências para a exploração de erva-mate nas regiões centro-sul e sudeste do Paraná, os SAFs mostram-se produtivos e lucrativos, mas faltam sistematizações adequadas e os resultados são pouco precisos quantitativa e qualitativamente.

Para atender as demandas dos assentamentos, a Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia (AOPA) propôs parceria para Cooperativa Central de Reforma Agrária do Paraná (CCA), Federação dos Agricultores da Agricultura Familiar da Região Sul (FETRAF/SUL) e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Florestas (EMBRAPA) para realizar o projeto Florestando a Agricultura Familiar no Paraná, patrocinado pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). O projeto foi desenvolvido entre 2004 e 2006, abrangendo cerca de 400 famílias das regiões centro-sul e sudeste do estado e região metropolitana de Curitiba. O objetivo era aplicar técnicas de manejo e conservação dos recursos hídricos com enfoque na preservação dos recursos florestais.

Firmadas as parcerias, em 2005 a AOPA propôs o projeto Iguatú: Redesenhando a Gestão dos Recursos Hídricos na Agricultura Familiar do Paraná através da Agroecologia, somando-se as parcerias anteriores a Associação dos Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR (COOPERAFLORESTA) e a Universidade Federal do Paraná (UFPR). Desta vez o projeto foi patrocinado pelo Programa Petrobrás Ambiental, da empresa Petrobrás S.A.. O Iguatú seguiu a mesma linha do projeto anterior, reforçando as ações desenvolvidas e incorporando aos métodos e técnicas utilizados conceitos da Agroecologia. Agregou, também, novas regiões do estado: norte pioneiro e vale do Ribeira.

Durante o Iguatú foram desenvolvidas atividades como implantação de viveiros florestais, adubação verde, Sistemas Agroflorestais e Agrossilvipastoris, proteções de fontes, cisternas, chiqueiros e esterqueiras, banheiros secos, biofossas e biodigestores. Bem como formação, pesquisa, educação ambiental, experimentação, fomento à Agroecologia, cooperação e diversificação da produção de alimentos saudáveis. As ações beneficiaram diretamente 675 famílias de agricultores nas cinco regiões de abrangidas pelo projeto.

Seguindo a mesma linha de ação, em 2007 a Associação Regional de Cooperação Agrícola do Contestado (ARCAC), representante dos assentamentos de Bituruna, aprovou o projeto Águas em Movimento, junto ao Programa Petrobras Ambiental. Tendo como parceiros a Associação das Famílias de Trabalhadores Rurais de Pinhão (AFATRUP), a Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais (AMTR-PR), o Instituto Equipe de Educação Popular (IEEP), a Cooperativa Agrícola dos

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Reassentados do Sul (COOPERARSUL) e o Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar de Porto Vitória-PR (SINTRAF-PR). Foram beneficiadas 1.785 famílias, entre elas 650 assentadas, 600 de agricultores posseiros, 300 faxinalenses e 235 pequenos agricultores, em 12 municípios (Fig. 1).

Fig. 1. Municípios abrangidos pelo projeto Águas em Movimento e localização do estado do Paraná.

Fonte: ARCAC, 2008.

4. Características do SISLEG do Etiene

Paralelamente aos projetos, os Conselhos Gestores dos assentamentos de Bituruna realizaram reuniões periódicas com o INCRA e o IAP para tentar regularizar a situação das áreas e licenciar os PAs. De modo que os assentados pudessem acessar os benefícios legais advindos das adequações ambientais que já estavam em andamento, como registro dos fornos de carvão, áreas de manejo de bracatinga, comercialização de produtos e sub-produtos com documentos de origem florestal, entre outros.

Assim, no ano de 2007, a partir das metas dos TACs federal e estadual, o INCRA iniciou o SISLEG de três dos seis assentamentos de Bituruna: Etiene, 12 de Abril e Rondon III. Os profissionais do INCRA realizaram o levantamento georreferenciado e a locação de APPs e RLs lote a lote, acompanhados pelos respectivos assentados beneficiários. No entanto, o único processo concluído foi o do Etiene, finalizado em agosto de 2008, com a emissão do Termo de Compromisso de Proteção de Reserva Legal pelo IAP. Os outros pararam na etapa de levantamento, na confecção de mapa de uso do solo ou, como no caso dos outros três, nem foram iniciados.

No termo de compromisso do Etiene consta a área total levantada do imóvel, de 1.052,6142(3) ha, e os 210,5228 ha destinados à compor a RL, em cumprimento ao mínimo de 20% previsto para o bioma na legislação vigente. Bem como consta o compromisso do proprietário e/ou seu representante legal, seus herdeiros e sucessores, em restaurar 32,8954 ha, para atender a área mínima indicada. Cabe ressaltar que, como os assentados não possuíam o título de propriedade dos lotes, o termo qualifica o INCRA como proprietário do imóvel e nomeia como responsável para assinar o superintendente regional da instituição à época.

Esta questão referente à documentação dos imóveis implica em constantes autuações, tanto pelo IAP quanto pelo IBAMA, ao INCRA por crimes ambientais cometidos em assentamentos. O que torna este órgão público um grande devedor de multas no Brasil por geração de passivos ambientais. E extensas disputas judiciais entre as instituições são comuns, tendo em vista que o INCRA constantemente recorre do pagamento.

Para locar e caracterizar as áreas preservadas e a recuperar foram confeccionados dois mapas do imóvel. Um apresenta os usos e ocupações do solo na época do levantamento, situando lavouras, pastagens, reflorestamentos, remanescentes florestais, nascentes e corpos hídricos, açudes, banhados, edificações e estradas. O outro consiste na locação das RLs e APPs.

(3) O mapeamento de imóveis utilizando o Global Positioning System (GPS) acarreta em diferentes medidas entre a área que consta na escritura do imóvel e a área georreferenciada, devido, em geral, as diferenças de tecnologias e metodologias empregadas nos procedimentos atualmente.

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Um aspecto a ser destacado é que o Etiene possui a área total de RL dividida nos lotes individuais(4). Ou seja, se cada lote possui a fração de 20% a ser destinada à preservação, considerando que eles variam de 26 a 58 ha, as reservas tem entre 5 e 11 ha. Mas, para garantir a manutenção da fauna e da flora nos fragmentos, a área total da reserva pode ser descrita como um mosaico interligado ao longo de todo assentamento, que forma corredores de vegetação nativa compostos, também, pelas APPs.

Também foram levantados 274,9498 ha de APPs e na ocasião 136,8583 ha estavam preservados e 138,0935 ha degradados. Como as APPs não possuem fração mínima e são locadas conforme características naturais dos terrenos, ocupam proporções diferentes em cada lote, pois alguns possuem mais nascentes, outros divisam rios mais largos, outros possuem áreas úmidas em baixadas ou platôs, outros se situam em pontos de maior altitude ou de declividade acentuada, entre outras.

Por conta destes fatores, a intensidade da degradação acaba aumentando ou diminuindo, seja em função das características naturais ou do sistema de produção utilizado por cada família assentada. Sanquetta (2006) argumenta que diferentes condições de topografia, fertilidade natural do solo e histórico de ocupação das regiões geográficas do Paraná determinaram diferentes graus de antropização dos remanescentes florestais na Floresta Ombrófila Mista, como é o caso de relevos acidentados e solos com baixa fertilidade, onde ainda predominam atividades como extração da erva-mate e pastoreio sob cobertura florestal.

Para exemplificar a situação, o mapa de uso e ocupação de solo apresenta que a proporção das APPs preservadas é distribuída em 40,0860 ha por florestas em estágio médio/avançado e 96,7903 ha por floresta em estágio inicial. Enquanto as degradadas estavam ocupadas por: 0,3047 ha reflorestamento com espécies nativas, 84,8557 ha pastagens, 25,0956 ha agricultura, 13,6674 ha reflorestamento com espécies exóticas, 13,5128 ha construções e instalações e 0,7031 ha estradas rurais.

5. Adequações ambientais no Etiene

Se a confecção do SISLEG nos assentamentos compete ao INCRA, compete aos núcleos operacionais vinculados ao serviço de Assessoria Técnica, Social e Ambiental (ATES) elaborar projetos técnicos para recuperação de RLs e APPs, remanescentes florestais e recursos hídricos. E a equipe de ATES em Bituruna, em 2008, era composta por profissionais contratados tanto por convênio com o INCRA quanto pelo projeto Águas em Movimento.

Diesel et.al. (2004), afirmam que uma das premissas centrais do desenvolvimento territorial é a necessidade de promover a cooperação dos atores em torno de um plano comum, para tal, as “metodologias participativas” têm sido valorizadas. Para articular as premissas do MST, as demandas das famílias assentadas e as metas estabelecidas pelos agentes financiadores, os técnicos planejavam as atividades de forma participativa junto ao Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do MST. O ‘Setor de Produção’ era composto por assentados, técnicos e representantes da ARCAC. Deste modo, as discussões que já vinham ocorrendo fizeram com que as próprias metas estivessem de acordo com demandas levantadas in loco, facilitando o planejamento das atividades.

Em janeiro e março de 2008 o ‘Setor de Produção’ realizou encontros que definiram por novas negociações com o INCRA e o IAP. Para isto, em abril foi convocada uma reunião do Conselho Gestor dos assentamentos com a presença do INCRA. Nesta reunião o representante do INCRA informou a finalização do SISLEG do Etiene e a suspensão dos processos do Rondon III e do 12 de Abril, por falta de recursos. Nesta perspectiva, o ‘Setor de Produção’ definiu consolidar o Etiene como uma unidade de referência em adequação ambiental, compreendendo diversos aspectos da gestão de recursos hídricos, desde recuperação e preservação de florestas, conservação de solo, proteção de nascentes, saneamento básico, manejo de SAFs, entre outras. Diversas ações e recursos previstos pelo Águas e pela ATES foram direcionados para executar visitas individuais, reuniões, mutirões de trabalho, curso de extensão e dias de campo no assentamento.

Para recompor áreas degradadas o projeto Águas previa a construção de um viveiro para produzir mudas de espécies florestais nativas, a serem distribuídas gratuitamente aos assentados. O

(4) A RL coletiva consiste em maciços de vegetação situados em lotes comunitários do assentamento e não nos lotes individuais, cuja recuperação e manejo são de responsabilidade de todos os assentados

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viveiro foi construído em maio no lote comunitário do Etiene através de um mutirão(5). Na mesma ocasião foram discutidas técnicas de coleta e quebra de dormência das sementes de erva-mate e bracatinga, também foram semeadas espécies de importância ambiental para a região, dentre elas o cedro, o butiá, a uvaia, a erva-mate e a bracatinga.

No entanto, nem outros assentados e nem mesmo aqueles que participaram do mutirão continuaram produzindo mudas. Distintos motivos podem ser atribuídos para isto, seja a dificuldade em gerir um viveiro comunitário, seja porque nem todas as espécies possuem interesse econômico ou, ainda, porque as que possuem podem ser produzidas pelas famílias em seus próprios lotes, em estruturas de menor custo e/ou manejo mais simples. Porém, nenhuma avaliação sobre este assunto foi feita pelo ‘Setor de Produção’ e o viveiro, já desativado, foi desmontado em 2012.

Em geral, existem famílias assentadas que se interessam em participar de organizações (MST, associações, cooperativa, centros comunitários, entre outras), no entanto, uma parte ainda oferece resistência e mantêm-se como espectadora. Mas para planejar o projeto de recuperação do Etiene não bastava apenas encaminhar metas no ‘Setor de Produção’, era necessário envolver todas as famílias do assentamento. Para isto, a ATES encaminhou um curso de capacitação com o tema “Legislação Ambiental e Agrofloresta”. A divulgação foi feita enfocando aspectos ditos favoráveis ou desfavoráveis da legislação e a finalização do SISLEG. Buscou-se demonstrar aos assentados a importância de conhecerem os resultados do levantamento que eles haviam acompanhado. Foram feitos anúncio na rádio da região, que veicula comunicados de interesse público, e entregues convites impressos.

O curso ocorreu em junho de 2008 no centro comunitário do Etiene. A participação dos assentados foi positiva tanto em público como em qualidade de debate. Estiveram presentes 30 pessoas, dentre elas representantes dos 24 lotes do Etiene, além de outras que escutaram a divulgação pelo rádio e interessaram-se pelo tema.

Para atender o objetivo principal, o curso foi dividido em duas partes. A primeira consistiu em explanação e debate sobre as legislações vigentes no país relativas a florestas e recursos hídricos. Foi assessorada pelo Eng. Florestal e Advogado, Profº. Dr. Paulo de Tarso de Lara Pires, da Universidade Federal do Paraná (Fig. 2). O assessor apresentou os principais pontos de legislações que se referem às florestas e às águas, passando pela Constituição Federal Brasileira, a Política Nacional para o Meio Ambiente, a Lei da Mata Atlântica, a Lei de Crimes Ambientais e o Código Florestal Brasileiro.

Fig. 2. Assessoria do Profº. Dr. Paulo de Tarso de Lara Pires no curso “Legislação Ambiental e Agrofloresta”, Bituruna.

Fonte: ARCAC, 2008.

Após a explanação os participantes puderam comentar, questionar e esclarecer dúvidas

sobre os pontos específicos das leis que afetam o quotidiano. Houve questionamentos sobre extração e coleta de sementes de espécies nativas, manejo de espécies nativas, espécies em risco de extinção, reflorestamentos com espécies exóticas associadas às nativas. Foram abordados, ainda,

(5) Palavra originária da língua tupi que significa: iniciativa coletiva para auxiliar alguém, para ajuda mútua ou serviço comunitário. É uma metodologia de trabalho bastante utilizada pelo MST em Bituruna.

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etapas, prazos e exigências para a regularização ambiental dos imóveis rurais.

Foi bastante discutida a proibição legal do corte de araucárias. Dentre os fatores limitantes apontados pelos assentados está sua incompatibilidade com o sistema tradicional de pastejo utilizado na região, chamado “invernada” ou “potreiro”, pois suas folhas pontiagudas ferem os animais. E está a importância econômica e ambiental que poderia decorrer do manejo desta espécie, pois ela possui madeira de grande valor econômico. Os assentados argumentaram que a impossibilidade de cortar faz com que poucas pessoas tenham interesse em plantar a araucária, agravando seu processo de extinção. Este tema também gerou debates sobre quais espécies arbóreas possuem potencial para compor sistemas agrossilvipastoris com a bovinocultura de leite, atividade bastante desenvolvida no município.

Outro ponto discutido intensamente foi acerca dos usos, restrições e proibições em diferentes estágios sucessionais da vegetação, nas APPs e nas RLs. Isto porque, conforme apresentado anteriormente, características naturais da região fizeram com que uma porção considerável esteja coberta por remanescentes florestais. Parte dos remanescentes foi convertida em reserva, de modo que a área de RL a recuperar pode ser considerada relativamente pequena quando comparada a outras regiões do estado. Porém, outra parte excedente está em áreas que não possuem aptidão para agricultura, mas que são exploradas como pasto e extração de recursos florestais. Neste sentido, os assentados esclareceram dúvidas, argumentaram dificuldades e potenciais de uso em função das dinâmicas de trabalho desenvolvidas em seus lotes.

Igualmente houve debate sobre a destinação dos dejetos da suinocultura e bovinocultura. Os participantes questionaram a técnica, difundida pela Extensão Rural oficial durante as décadas de 80 e 90, que consistia em combinar a suinocultura com a aqüicultura, construindo chiqueiros sobre açudes. Este sistema de produção causa contaminação ambiental, detectada durante as vistorias do IAP e do INCRA nos assentamentos, e atualmente é proibido pela legislação. Os assentados debateram sobre as contradições que permeiam os serviços estatais ao longo dos anos.

Outro fator relevante apontado pelos participantes foi a proibição legal de construir edificações e instalações rurais em APPs. Isto porque a maior parte das residências foi construída próxima a rios e nascentes para facilitar o abastecimento de água. Esclareceu-se que esta forma de ocupação de APP pode ser considerada um fato consolidado e, por conta disto, é improvável haver implicações legais.

Como apresentado no mapa de uso e ocupação do solo, parte das APPs considerada degradada é ocupada por estradas rurais e redes de energia elétrica, que atendem o assentamento e as comunidades no entorno. Os participantes relataram sobre os casos no Etiene em que estas construções provocaram o assoreamento de nascentes onde as famílias captavam água. No entanto, foi esclarecido que, por se tratarem de ocupações voltadas ao interesse público, não existe solução legal para tal assunto.

A documentação referente a propriedade do imóvel também foi colocada em discussão pelos participantes. Assim como o INCRA assume o ônus dos passivos ambientais gerados pelos assentados, estes argumentam que a falta dos títulos de propriedade também os prejudica, pois impede que os responsáveis sejam punidos individualmente. Os crimes cometidos em um lote inviabilizam a legalidade dos demais, ou seja, um dano ambiental cometido por um assentado prejudica todos os outros no acesso aos seus benefícios.

Já a segunda etapa do curso consistiu em estudar mais detalhadamente alguns casos no assentamento. A metodologia utilizada foi dividir aleatoriamente os participantes em grupos, que escolheram o lote de um dos integrantes para estudar no mapa de uso e ocupação do solo. Os participantes foram orientados a observar a situação do lote perante todo assentamento, visualizando as áreas degradadas e preservadas em acordo com as interligadas nos lotes vizinho.

Posteriormente, eles desenharam os lotes localizando as RL e APP preservadas e a recuperar e os demais remanescentes florestais existentes (Fig. 3). O objetivo era que discutissem e identificassem, a partir das perspectivas de cada assentado, dos sistemas de produção viáveis, dos objetivos e da compreensão da legislação após a explanação, quais limites e potencialidades poderiam ser apontados para o referido lote. Ao final, os grupos apresentaram seus estudos a todos os participantes, para que pudessem todos pudessem opinar e esclarecer dúvidas.

Fig. 3. Estudo em grupo do mapa de uso e ocupação do solo no do curso “Legislação Ambiental e Agrofloresta”, assentamento Etiene, Bituruna.

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Fonte: ARCAC, 2008.

A última etapa do curso foi planejar a continuidade da regularização ambiental do assentamento. Os participantes também propuseram novos espaços de capacitação em SAFs, compreendendo-os como alternativas viáveis para a exploração e conservação de recursos naturais perante a legislação ambiental vigente.

A partir das propostas, a ATES iniciou uma rodada de visitas técnicas em cada lote do Etiene, para orientar e discutir as etapas de recuperação em cada área junto com o respectivo assentado. Os enfoques principais das visitas seriam recuperação de áreas degradadas, preservação remanescentes florestais, implantação de Sistemas Agroflorestais e proteção das nascentes de água que abastecem as residências. A intenção era que cada assentado assumisse sua parte na adequação ambiental do assentamento.

A metodologia utilizada pela ATES foi visitas de meio período em cada lote. O objetivo era estudar novamente o mapa de uso e ocupação, nesta oportunidade junto com toda a família, e percorrer o lote discutindo quais técnicas e tecnologias poderiam ser adequadas ao sistema de produção utilizado por ela. Pretendia-se, ainda, observar as particularidades relacionadas às unidades familiares, as condições econômicas, culturais, ambientais e organizacionais. A intenção era inserir no planejamento da recuperação ambiental do assentamento aspectos objetivos e subjetivos das famílias, desde as principais atividades econômicas, disponibilidade de mão-de-obra, até trajetória, perspectivas, interesses e sonhos dos assentados, interligando estes aspectos a legislação ambiental. Ao final de cada visita as famílias ficaram com uma cópia do mapa de uso e ocupação de seu lote, para que continuassem planejando suas ações.

É interessante ressaltar que, à medida que as visitas eram realizadas, aumentavam as expectativas, críticas, questionamentos e curiosidades das famílias que seriam visitadas. Os assentados compartilharam informações e conhecimentos entre si, tornando o momento propício para debates além dos oficiais. A rodada de visitas foi finalizada em novembro.

Mesmo antes de visitar todos os lotes, a equipe de ATES teve que marcar uma reunião para cumprir os prazos de execução do projeto Águas. Nesta reunião, realizada já em agosto, os assentados apresentaram propostas de trabalho, definindo que os recursos previstos no Águas seriam utilizados, prioritariamente, para recuperar as nascentes que abasteciam as residências e adequar os sistemas de abastecimento. Ficou acordado um prazo para que as famílias interessadas levassem até a sede da ARCAC uma listagem prévia de materiais necessários para as adequações das nascentes. Outra proposta, apresentada pela ATES, aceita pelos assentados foi coletar amostras de água destas nascentes para verificar, através de análise físico-química, parâmetros relativos à qualidade das águas. Na reunião também foi apresentado o recém-finalizado Termo de Compromisso do SISLEG, emitido pelo IAP, para conhecimento dos participantes. Ao final do prazo, 14 famílias haviam levado as listagens até a ARCAC. Foram realizados ajustes técnicos e os materiais, como tijolos, arame farpado, caixas d’água, bombas hidráulicas, mangueiras, eletrificador de cerca, entre outros, foram adquiridos e distribuídos no assentamento.

Após a distribuição dos materiais as famílias que pretendiam fazer as proteções de fontes solicitaram orientação à ATES, que realizou dias de campo para demonstrar a técnica de permacultura chamada “proteção de fonte com solo-cimento”, proposta pelo projeto Águas. Com isto,

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foram coletadas amostras de água em 10 lotes do assentamento, antes e depois da proteção, para comparar a qualidade da água (Fig.4).

Fig. 4. A esquerda coleta da amostra de água antes da proteção, a direita a nascente com a proteção de solo-cimento e abaixo a coleta da amostra depois da proteção de fonte, Bituruna, Paraná.

Fonte: ARCAC, 2008.

Os resultados das análises foram apresentados e discutidos em uma reunião com os assentados no Etiene. Sendo um ponto relevante nos resultados a presença de coliformes totais em duas nascentes de dois lotes vizinhos. As nascentes situavam-se em meia encosta e eram abastecidas pela mesma área de infiltração e captação de água, esta situada em um terceiro lote. Como uma delas possuía proteção de fonte e a outra não, os assentados puderam discutir a importância de executar ações combinadas, pois a gestão dos recursos hídricos e a adequação ambiental compreendem recursos naturais que vão além dos limites do imóvel.

Outras atividades realizadas foram estruturação de piquetes de pastagem em lotes que necessitavam isolar APPs do acesso de criações, para evitar processos erosivos. Construção de estufas e hortas para compensar APPs abandonadas para recomposição, aproveitando áreas dos lotes e mão-de-obra disponível com atividades mais intensivas e rentáveis. E, ainda, fomento da apicultura como atividade de retornos econômico e ambiental. Todas as ações foram desenvolvidas entre novembro e janeiro de 2009, prazo de encerramento do projeto Águas.

Em paralelo a estas ações, a equipe de ATES orientou a adequação do saneamento básico de três assentamentos que receberam, na época, uma parcela do recurso para construção e reforma de residências. Parte da contaminação do solo e dos recursos hídricos ocorre por conta do destino impróprio dado aos dejetos humanos e animais no meio rural. Em geral, as residências e instalações rurais despejam seus esgotos, sem qualquer tipo de tratamento prévio, diretamente nos rios ou nas fossas negras e sumidouros, que são buracos sem qualquer revestimento cavados no solo.

Assim, o projeto Águas realizou cursos e distribuiu materiais didáticos, o INCRA e o Ministério do Desenvolvimento Agrário disponibilizaram os recursos para materiais e os assentados custearam a mão-de-obra para a construção. Para abordar este aspecto, os assentados fizeram cursos de capacitação na técnica de permacultura chamada “biofossa”. A “biofossa” é um sistema de tratamento do esgoto das residências que diminui teores de matéria orgânica antes de liberar as águas para infiltrarem no solo. Em geral, na saída de água tratada são plantados pomares ou jardins, aproveitando a construção como sistema de irrigação.

Os resultados alcançaram dimensões importantes, pois cerca de 85 famílias do Etiene, do

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Criciuminha e do Santa Bárbara substituíram as fossas e sumidouros por “biofossas”. O êxito da ação deve-se, em grande parte, a metodologia empregada e as parcerias realizadas. Com a utilização de recursos públicos para tal, a fiscalização garantiu a execução. Mesmo que alguns assentados tenham avaliado a “biofossa” como uma técnica de custo elevado, por conta dos materiais de construção utilizados, como tijolos, cimento e canos, em comparação ao custo praticamente inexistente da fossa ou do sumidouro.

6. Considerações finais e questões de pesquisa sobre o tema

A reforma agrária é uma política que tem como objetivo promover a desconcentração fundiária e diminuir desigualdades sociais. Para tal, envolve um conjunto de medidas que vão além da simples divisão e distribuição de terras. Da mesma forma, a dimensão ambiental dos assentamentos não pode ser considerada de forma isolada, é necessário envolver, também, dimensões políticas, econômicas, sociais, culturais, organizacionais, entre outras. Para que a política esteja vinculada a vida dos assentados e a dinâmica do território, considerando as adaptações, capacidades, escolhas, relações e perspectivas das famílias participantes, ativa ou passivamente.

Neste sentido, cabe apresentar que em 2012 houve no Etiene, por conta do SISLEG e das adequações ambientais, a primeira liberação de plano corte de espécies de nativas, primeira liberação de área de manejo de bracatinga e o primeiro registro de forno de carvão pelo IAP. Por iniciativa da própria família assentada há, no estado do Paraná, um exemplo de que o cumprimento da legislação ambiental aliado ao planejamento das atividades agrossilvipastoris pode gerar renda aos beneficiários da reforma agrária.

O caso em questão apresenta o planejamento de um sistema de produção ambientalmente sustentável e integrado ao desenvolvimento municipal, regional e territorial para os assentamentos de Bituruna. Doravante, a temática aqui apresentada também se mostra relevante por contribuir para a pesquisa sobre o reconhecimento social dos assentados no desenvolvimento rural, tendo em vista que reforma agrária não se resume a quantidade de famílias assentadas, mas compreende todas as possibilidades de promoção de qualidade de vida e equidade social. E demonstra que as políticas voltadas ao espaço agrário brasileiro precisam apreender as situações e perspectivas dos agricultores, verificando como ocorre a sua manutenção e reprodução social.

Assim, as metas desenvolvidas pela ATES não podem resumir-se a planejamento, execução e avaliação como sinônimos de início, meio e fim, mais ainda quando se considera o fato de que há alta rotatividade de técnicos contratados por conta da descontinuidade de convênios e projetos de financiamento. Este trabalho relata o caso de um projeto ambiental executado em um assentamento brasileiro e apresenta-o para que pesquisadores possam analisá-lo e interpretá-lo a luz das teorias.

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