uma “luz” no aprendizado da ciência: inserindo a prática

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34 Física na Escola, v. 11, n. 2, 2010 Uma “luz” no aprendizado da ciência tecnologias ou, como bem mencionado por Marie Geneviève e cols. [5], estabelecer relações entre referencial empírico (realidade), conceitos, leis e teorias. Mas devemos estar cientes de que não há necessidade de um laboratório com equipamentos sofisticados para que uma aula prática de ciências seja bem sucedida. O trunfo de uma aula não está na estru- turação física da mesma, mas na apren- dizagem do aluno. Como o professor do ensino fundamental e médio poderia então trabalhar os recursos próprios da ciência como observação, formulação de hipóte- ses, experimentação, análise, etc, para explorar o desejo de conhecer e interagir inerentes dos alunos nestes níveis de ensino? Partindo da concepção de que a apren- dizagem no ensino de ciências não é ape- nas aprender sobre as ciências, mas tam- bém fazer ciências [6], podemos explorar o mundo a nossa volta de uma maneira rica e simples mesmo nas séries iniciais. Quando olhamos para um objeto de uma maneira cuidadosa é fácil perceber que qualquer objeto pode ser explorado cienti- ficamente. Neste tipo de desenvolvimento, o professor é a peça principal para sua consolidação, deixando de executar aulas instrucionais e transformando o livro em uma ferramenta de consulta, de forma que este não seja uti- lizado como objeto obrigatoriamente norteador com argu- mentos de autoridade. Neste trabalho explo- raremos o que pode- mos abstrair em ter- mos da prática inves- tigativa da ciência uti- lizando apenas uma vela. Não pretende- mos mostrar como o ensino de ciência deve ser desenvolvido em sala de aula do ponto de vista pedagógico, apenas ofer- Este trabalho mostra como é possível explorar em sala de aula diversos fenômenos e conceitos científicos de forma interessante e eficiente a partir de simples experimentos utilizando-se como principal ingrediente uma vela. O objetivo é mostrar que é possível introduzir o ensino de ciências em qualquer nível de ensino de maneira fácil e divertida, explorando a prática investi- gativa inerente da ciência independentemente se a escola dispõe ou não de muitos recursos. James A. Souza Departamento de Física, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil E-mail: [email protected] Cleidson S. de Oliveira Mestrando do Programa de Pós- Graduação em Ensino de Ciências Exatas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil Escola Estadual Profª Leonor Fernandes da Silva, Salto, SP, Brasil E-mail: [email protected] U ltimamente, em muitos países, várias discussões e reformas curriculares têm dado destaque à importância da prática experimental para o ensino de ciências desde as séries iniciais [1, 2]. O crédito a estas práticas é dado, em grande parte, ao fascínio que a de- monstração de alguns fenômenos traz às pessoas por meio da mídia ou feiras de ciências. Geralmente os professores de ciências atribuem a dificuldade da implementação de aulas práticas à falta de tempo para preparação das atividades, falta de recur- sos para manutenção dos laboratórios da escola e à carência dos livros didáticos para a orientação das práticas. Outro fator importante para o não sucesso destas ati- vidades é a aplicação do método tradi- cional de ensino decorrente de materiais e instalações já existentes, onde os alunos são conduzidos passo a passo de maneira mecânica, sem qualquer questionamento ou reflexão, do começo ao fim da atividade proposta. Uma das preocupações atuais é a explicação de fenômenos a partir de materiais didáticos que ofereçam mais espaço para a ação independente e criadora dos estudantes [3, 4]. Temos então um grande desafio no ensino de ciências que reside em como e quando inserir a aná- lise de experimentos científicos na escola. Seria mesmo esta prática imprescindível para aprender ciênci- as? Certamente, para estabelecer a aprendi- zagem em ciências, a prática experimental pode ser um comple- mento essencial desde que seja bem articulada para as questões colocadas. Esta pode facilitar o contraste da abstração científica com a realidade, manter o aluno em contato com novas Os professores de ciências atribuem a dificuldade da implementação de aulas práticas à falta de tempo para preparação das atividades, falta de recursos para manutenção dos laboratórios da escola e à carência dos livros didáticos para a orientação das práticas

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34 Física na Escola, v. 11, n. 2, 2010Uma “luz” no aprendizado da ciência

tecnologias ou, como bem mencionadopor Marie Geneviève e cols. [5], estabelecerrelações entre referencial empírico(realidade), conceitos, leis e teorias. Masdevemos estar cientes de que não hánecessidade de um laboratório comequipamentos sofisticados para que umaaula prática de ciências seja bem sucedida.O trunfo de uma aula não está na estru-turação física da mesma, mas na apren-dizagem do aluno. Como o professor doensino fundamental e médio poderia entãotrabalhar os recursos próprios da ciênciacomo observação, formulação de hipóte-ses, experimentação, análise, etc, paraexplorar o desejo de conhecer e interagirinerentes dos alunos nestes níveis deensino?

Partindo da concepção de que a apren-dizagem no ensino de ciências não é ape-nas aprender sobre as ciências, mas tam-bém fazer ciências [6], podemos exploraro mundo a nossa volta de uma maneirarica e simples mesmo nas séries iniciais.Quando olhamos para um objeto de umamaneira cuidadosa é fácil perceber quequalquer objeto pode ser explorado cienti-ficamente. Neste tipo de desenvolvimento,o professor é a peça principal para suaconsolidação, deixando de executar aulasinstrucionais e transformando o livro em

uma ferramenta deconsulta, de formaque este não seja uti-lizado como objetoobr igator iamentenorteador com argu-mentos de autoridade.Neste trabalho explo-raremos o que pode-mos abstrair em ter-mos da prática inves-tigativa da ciência uti-

lizando apenas uma vela. Não pretende-mos mostrar como o ensino de ciênciadeve ser desenvolvido em sala de aula doponto de vista pedagógico, apenas ofer-

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Este trabalho mostra como é possível explorarem sala de aula diversos fenômenos e conceitoscientíficos de forma interessante e eficiente apartir de simples experimentos utilizando-secomo principal ingrediente uma vela. O objetivoé mostrar que é possível introduzir o ensino deciências em qualquer nível de ensino de maneirafácil e divertida, explorando a prática investi-gativa inerente da ciência independentementese a escola dispõe ou não de muitos recursos.

James A. SouzaDepartamento de Física, UniversidadeFederal de São Carlos, São Carlos, SP,BrasilE-mail: [email protected]

Cleidson S. de OliveiraMestrando do Programa de Pós-Graduação em Ensino de CiênciasExatas, Universidade Federal de SãoCarlos, São Carlos, SP, BrasilEscola Estadual Profª LeonorFernandes da Silva, Salto, SP, BrasilE-mail: [email protected]

Ultimamente, em muitos países,várias discussões e reformascurriculares têm dado destaque à

importância da prática experimental parao ensino de ciências desde as séries iniciais[1, 2]. O crédito a estas práticas é dado,em grande parte, ao fascínio que a de-monstração de alguns fenômenos traz àspessoas por meio da mídia ou feiras deciências.

Geralmente os professores de ciênciasatribuem a dificuldade da implementaçãode aulas práticas à falta de tempo parapreparação das atividades, falta de recur-sos para manutenção dos laboratórios daescola e à carência dos livros didáticos paraa orientação das práticas. Outro fatorimportante para o não sucesso destas ati-vidades é a aplicação do método tradi-cional de ensino decorrente de materiais einstalações já existentes, onde os alunossão conduzidos passo a passo de maneiramecânica, sem qualquer questionamentoou reflexão, do começo ao fim da atividadeproposta. Uma das preocupações atuais éa explicação de fenômenos a partir demateriais didáticos que ofereçam maisespaço para a ação independente e criadorados estudantes [3, 4].

Temos então um grande desafio noensino de ciências que reside em como equando inserir a aná-lise de experimentoscientíficos na escola.Seria mesmo estaprática imprescindívelpara aprender ciênci-as? Certamente, paraestabelecer a aprendi-zagem em ciências, aprática experimentalpode ser um comple-mento essencial desdeque seja bem articulada para as questõescolocadas. Esta pode facilitar o contrasteda abstração científica com a realidade,manter o aluno em contato com novas

Os professores de ciênciasatribuem a dificuldade daimplementação de aulas

práticas à falta de tempo parapreparação das atividades,

falta de recursos paramanutenção dos laboratórios

da escola e à carência doslivros didáticos para aorientação das práticas

35Física na Escola, v. 11, n. 2, 2010 Uma “luz” no aprendizado da ciência

tamos um exemplo de como a inserçãoda ciência nas séries iniciais pode ser fácile divertida.

Introduzindo o assunto

Uma maneira interessante de intro-duzir um determinado assunto relacio-nado à ciências para séries iniciais é explo-rando a curiosidade dos alunos, eviden-ciada pelas diversas perguntas e pelointeresse em como as coisas funcionam.No caso da vela, po-deríamos apresentá-la em sua utilidadecomo fonte de luz queilumina de maneiraagradável e singela oambiente quandoacaba a energia denossas residências, por exemplo, iniciandocom alguns questionamentos: Do que sãofeitas as velas? Como elas funcionam? Porque sua chama tem diferentes tonali-dades? Por que sua chama tem aqueledeterminado formato? O que alimenta achama de uma vela? Ela tem um com-bustível? Por que seu pavio não queimarapidamente? Estas e outras são questõesque a princípio parecem ser muito simplesde serem respondidas, mas que na verdadepodem nos conduzir a diversas dúvidasdemandando uma análise cuidadosa paraconseguir as respostas.

Mãos à obra

Vamos iniciar nossa investigação fa-lando sobre o que ocorre com o ar em vol-ta da vela para mantê-la acesa. Duranteesta discussão vamos tentar introduziralguns conceitos científicos de maneirasimples, para não frustrar a descrição dosfenômenos envolvidos no funcionamentoda vela. Devido às diferenças existentes en-tre as escolas da rede pública em confrontocom a rede particular, no que diz respeitoà estrutura e até mesmo ao nível de esco-laridade dos alunos, é inevitável que oprofessor forneça maiores detalhes oudiferentes abordagens para a descrição dealguns conceitos.

Quando acendemos uma vela, é co-mum passarmos a mão sobre sua chamae verificarmos que há um fluxo de ar as-cendente bastante aquecido. Este fato estárelacionado à transmissão de calor porconvecção. A convecção ocorre tipicamen-te em um fluido, como o ar ou a água, ese caracteriza pelo fato de que o calor étransferido pelo movimento do própriofluido, constituindo as chamadas corren-tes de convecção. Este tipo de transmissãode calor pode ser classificado a partir dacausa que dá origem ao escoamento dofluido. Se as correntes de convecção são

causadas por diferenças de densidadeprovocadas por gradientes de temperaturadentro do fluido sob o efeito gravitacional(forças de empuxo), diz-se que a convec-ção é natural ou livre. Se o escoamento émantido por algum dispositivo mecânico,como uma bomba ou um ventilador, ascorrentes de convecção são forçadas.

Note a quantidade de conceitos queintroduzimos apenas neste parágrafo co-mo transmissão de calor, convecção, flui-

do, densidade, gradi-entes de temperaturae empuxo, sem contarque poderíamos falarsobre o processo decombustão do siste-ma. Tudo isso foi pos-sível ser introduzido e

poderá ser analisado apenas com umavela. Vamos tratar agora da convecçãonatural e mostrar que este fenômeno éessencial para manter a vela acesa. Paraisto vamos fazer um experimento, no qualutilizaremos os seguintes materiais:

• Velas;• Fósforos;• Tubos de vidro de extremidades

abertas em diferentes comprimen-tos e diâmetro de aproximadamente3 cm;

• Pequenas bases de metal, madeira,nylon ou PVC (opcional);

• Lâminas de metal em forma de T;• Incenso.Antes de iniciar o experimento vamos

nos atentar à seguinte curiosidade, que écomumente observada. Quando acende-mos uma vela e a tapamos com um copo,observa-se que a vela se apaga em poucotempo. Muitas pessoas desvendam o se-gredo facilmente, dizendo que para man-ter a chama “viva” ou acesa é necessáriooxigênio, portanto, quando o oxigêniodentro do copo acaba a vela se apaga. Mas

e se colocarmos um tubo de vidro abertosobre a vela, o que acontece? Outros po-deriam responder, a vela se manterá acesaporque desde tempos remotos tubos aber-tos eram utilizados para proteger a chamade velas contra o vento, por exemplo. Masserá que para qualquer tamanho de tuboa vela se mantém acesa? E o que isto teriaa ver com a quantidade de oxigênio dis-ponível para a combustão e as correntesde convecção citadas anteriormente? Va-mos ao experimento.

Nesta demonstração utilizamos trêstubos de vidro de diferentes comprimen-tos, 20, 25 e 30 cm, para tentar descobrirse há alguma influência da altura do tubocom a eficiência da convecção. Uma alter-nativa para os tubos é o uso de vasos paraflores artificiais. Neste caso, é necessárioque a base do vaso seja cortada para queo tubo fique aberto. Nunca utilize tubosde lâmpadas fluorescentes, pois, além depossuir vapor de mercúrio, que é alta-mente tóxico, possuem paredes muitofinas o que inviabiliza um corte preciso.Outro cuidado interessante é isolar oscortes do tubo de vidro com fita isolante(Fig. 1a) ou outro material compatível.

Como mostra a Fig. 1a, as três basespara as velas foram feitas com materiaisdiferentes: madeira, PVC e metal, paramostrar a variedade de materiais quepodem ser utilizados para a realização doexperimento. Para evitar acidentes, nãoutilize materiais que possam queimarcomo isopor e papelão. Note que a basedeve encaixar na parte inferior do tubo(Fig. 1b) para evitar a entrada de qualquerfluxo de ar que possibilite a alimentaçãoda chama por esta região. O tubo que uti-lizamos tem precisamente 3,2 cm de diâ-metro interno e o encaixe da base foi feitocom 3 cm de diâmetro de modo que sejapossível remover o tubo com facilidade.A altura do encaixe pode ser de aproxi-

A convecção ocorre tipicamenteem um fluido, como o ar ou a

água, e se caracteriza pelo fatode que o calor é transferidopelo movimento do próprio

fluido

Figura 1 - (a) Materiais utilizados para a realização do experimento sobre convecção. A fitaisolante colocada nas extremidades dos tubos é para isolar o corte do vidro. (b) Configuraçãodo experimento.

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madamente 2 cm.Para as lâminas de metal podem-se

utilizar sobras de calha de zinco, destascolocadas em telhados de residências. Estasdevem ser cortadas em forma de T paraque seja possível apoiá-las na parte supe-rior do tubo sem encostar-se à vela. Aextremidade inferior da lâmina pode ficar4 cm acima da superfície da base. Nestes4 cm será colocada a vela que pode teruns 2 cm de altura, já que o comprimentoda chama é de aproximadamente 2 a2,5 cm. Se a extremidade superior dachama encostar-se à lâmina não háproblema, o único inconveniente é o aque-cimento da mesma, mas atenção nestedetalhe: a lâmina não pode encostar-se aopavio da vela. Quando algum material degrande porte, como a lâmina, mantémcontato com o pavio, a vela se apaga, poiso material “rouba” calor da chama. Se omaterial for um metal, como neste caso,o processo ocorre mais rapidamente já queos metais são bons condutores de calor.Você pode verificar isto! Após efetuar todoo trabalho a configuração do experimentodeve ser parecida com a mostrada naFig. 1b. Agora a curiosidade deve estar fo-cada na utilidade da lâmina de metal, queficará clara à medida que formos descre-vendo o experimento e entendendo oprocesso de convecção.

Primeiramente fixe as velas nas basese em seguida acenda todas. Coloque os tu-bos sobre as velas do menor para o maior.Verifica-se que a vela do tubo maior(30 cm) se apaga rapidamente enquantoque a do tubo médio (25 cm) se mantémpor um tempo razoável de cerca de 1 mi-nuto. Já a vela do tubo menor (20 cm)não se apaga, veja Fig. 2. Este último tuboé muito interessante, porque nos dá a im-pressão de que a chama da vela desaparececomo se tivesse apaga-do, mas a mesma vol-ta a brilhar com viva-cidade. Podemos perce-ber claramente a cha-ma aumentando e di-minuindo com o tem-po.

Vamos entender oque está acontecendo.Sem o tubo, o processode convecção naturalna vela ilustra clara-mente o princípio de Arquimedes, pois co-mo a mistura de ar aquecido pela chamae os produtos da combustão se expandem,estes possuem menor densidade que o arque ocupa toda a vizinhança da vela. Pelainfluência da gravidade, o gás de menordensidade é deslocado para cima pelo arde maior densidade que desce, fornecendo

o oxigênio necessário para continuar oprocesso de combustão da vela. Este pro-cesso pode ser ilustrado colocando umabolinha de isopor imersa em uma vasilhacom água: quando a abandonamos nós avemos subir, pois esta possui menor den-sidade que a água. No momento em queo tubo é colocado a mistura de ar ascen-dente interfere com o ar descendente pró-ximo ao topo do tubo devido à sua própriaviscosidade. Sendo assim, a convecçãonatural não alcança o nível da chama davela para o tubo de 30 cm, diferentementedo tubo de 20 cm. Para tornar esta expli-cação convincente, vamos visualizar esteprocesso de escoamento do ar (convecção)utilizando a lâmina de metal e o incenso.

Coloque o tubo maior sobre a velaacesa e introduza rapidamente a lâmina.Verifica-se que a chama não se apaga

como antes, mos-trando que a lâminarestabeleceu o proces-so de convecção. A in-trodução da lâminadividiu o tubo emduas partições, com ogás aquecido (menordensidade) subindo deum lado e o ar demaior densidade des-cendo do outro, pro-porcionando o fluxo

de oxigênio na vela. Acenda agora o in-censo e aproxime-o das partições no topodo tubo. Verifica-se que de um lado a fu-maça irá subir, mostrando que de fato háum fluxo ascendente, e do outro a fumaçairá penetrar no tubo sendo sugada emdireção à chama como se o tubo fosse umatrompa. Na Fig. 3 utilizamos um pedaço

de estopa embebido em nitrogênio líquidopara obtermos um volume maior de fu-maça e sua visualização foi melhoradacom uma ponteira laser de cor verde. Avisualização do fenômeno com a fumaçaproduzida pelo incenso é totalmentesatisfatória para demonstrações em salade aula.

Agora poderia surgir a pergunta:quando a lâmina é introduzida em quesentido a convecção é estabelecida, horárioou anti-horário? O sentido da convecçãodepende de pequenas assimetrias em tornoda extremidade da partição próxima àchama da vela, mesmo quando esta é co-locada exatamente no meio do tubo [7].Uma vez que a convecção se dá no sentidohorário (anti-horário), a mesma se man-terá neste sentido até a vela se extinguir,portanto o sentido é completamente in-determinado. Semelhantemente a isto,não podemos determinar o sentido em quea água irá escoar em uma pia ou banheiraquando seu dreno for aberto. Neste casoo sentido é determinado por imperfeiçõesna superfície da pia que provocampequenos vórtices na água no momentode seu escoamento. Muitas pessoas con-fundem este fenômeno creditando-o àsforças de Coriolis dizendo que a águaespirala por um dreno no sentido horárioem um hemisfério, Norte ou Sul, e nosentido anti-horário em outro, mas isto éum mito.

A força de Coriolis é uma força deinércia que atua em um corpo em movi-mento em relação a um referencial giran-te. A Terra é um referencial deste tipo de-vido à sua rotação. Os desvios produzidospelas forças de Coriolis em relação aosentido do movimento nos hemisfériosNorte e Sul são observados em fenômenosde grande magnitude, tais como a erosãodas margens de rios, correntes oceânicas,desgastes mais rápidos dos trilhos direitoou esquerdo de estradas férreas, desloca-mento de massas de ar, entre outros [8].Um exemplo clássico e que pode ser acausa da confusão sobre as consequênciasdestas forças é a tendência de ciclones gira-rem no sentido anti-horário no hemisférioNorte e no sentido horário no hemisférioSul. Em uma pia ou banheira estes efeitossão completamente desprezíveis. Agora oleitor, professor ou aluno, deve estar pen-sando o que este parágrafo tem a ver coma vela. Na verdade colocamos este trechopara mostrar que podemos utilizar o as-sunto que está sendo tratado como basepara outras curiosidades como a desmis-tificação do escoamento da água em umabanheira. Pode-se aproveitar a discussãopara inserção de novos conceitos e assun-tos curiosos como a força de Coriolis que,

Figura 2 - Observação da influência daaltura do tubo no funcionamento da vela.

O sentido da convecção dependede pequenas assimetrias em

torno da extremidade dapartição próxima à chama davela, mesmo quando esta é

colocada exatamente no meio dotubo. Uma vez que a convecção

se dê em um sentido, ela semanterá neste sentido até a velase extinguir; seu sentido inicial écompletamente indeterminado

37Física na Escola, v. 11, n. 2, 2010 Uma “luz” no aprendizado da ciência

de certa forma, está presente no nosso diaa dia. Quando ensinamos ciências não énecessário seguirmos uma ordem rigorosade tópicos como é mostrado nos livros ouapostilas didáticas. Mesmo que determi-nados assuntos sejam tratados em outromomento do curso de ciências podemosir acostumando os alunos, pois as de-monstrações podem nos ajudar a pensare enxergar analogias em diferentes situa-ções.

Voltando à vela, vimos que para o esta-belecimento de fluxos convectivos naturaisé necessária a existência de gravidade. Esteprocesso explica também o porquê do for-mato alongado e as diferentes tonalidadesda chama da vela. A combustão se dá nabase da chama onde a mesma é abastecidacom oxigênio apresentando uma corbranco-azulada e uma temperatura T >1250 °C [9]. Logo acima desta regiãoobservamos uma cor castanha-avermelha-da próximo à extremidade superior do pa-vio. Esta é a região de menor temperaturada chama, T ≈ 520 °C a 1050 °C [9]. Final-mente na região superior da chama temosuma cor amarelada cuja temperatura estáentre T ≈ 1050 °C e 1250 °C [9]. Veja astonalidades da chama da vela na Fig. 4.Se a combustão for incompleta haveráprodução de monóxido de carbono (CO),além de CO2 e H2O, sendo possível obser-var ainda a presença de fuligem (fumaçapreta) na ascensão da mistura de gásaquecido. Se a presença de gravidade éfundamental para a existência de con-vecção natural, o que aconteceria com achama de uma vela em uma nave espacialno estado de imponderabilidade (g = 0)?

Como na ausência de gravidade nãohá um movimento relativo entre a vela eo ar circundante para que haja um forne-cimento contínuo de oxigênio, os gasesaquecidos provenientes da combustão irão

se expandir e empurrar o ar próximo àchama radialmente em todas as direçõespara longe da mesma, fazendo com queesta se apague imediatamente. Note a im-portância do conhecimento deste fenôme-no. Se imaginarmos que o sistema de cir-culação de ar de uma espaçonave quebras-se repentinamente e um astronauta esti-vesse dormindo preso em sua cama, emvez de estar à deriva pela nave, este estariacorrendo sério perigo de vida. Ele poderiamorrer por asfixia pelo mesmo processodescrito acima, pois tal como a vela, o as-tronauta utiliza o oxigênio do ar circun-dante e o substitui pela liberação de va-por de água e gás carbônico aquecidos.Por isso não devemos tentar respirar em-baixo d’água através de um tubo simples,pois rapidamente o oxigênio do tubo seriaconsumido sendo ocupado por gás carbô-nico. Existem técnicas iniciais de mergulhocomo o snorkel, que possibilita a respira-ção da pessoa através de um tubo emforma de L ou J, mas estes tubos contemválvulas para viabilizar a respiração eevitar a entrada deágua quando a pessoasubmerge completa-mente.

Uma das grandesutilidades da EstaçãoEspacial Internacional(ISS – InternationalSpace Station) é a ins-talação de laboratóriosque permitem estudarprocessos físicos emum ambiente de mi-crogravidade, já quemuitos fenômenosbásicos podem ser mascarados pela pre-sença da gravidade terrestre. A Fig. 4mostra a imagem de uma vela queimandoem microgravidade. Note que a chamatem um comportamento diferente daqueleque observamos na Terra, pelofato do transporte de oxigênio edos produtos da combustão ocor-rer através de processos de difu-são molecular que são bem maislentos que aqueles por convecção.Em decorrência disto é possívelestudar com maior facilidade oprocesso de combustão, já queeste é retardado, tornando-o maiseficiente diminuindo efeitos pre-judiciais ao ser humano, como apoluição.

Então podemos alterar a for-ma da chama de uma vela se con-seguirmos modificar o movimen-to relativo do ar na convecçãonatural, por meio de uma convec-ção forçada, por exemplo. Vamos

mostrar agora como podemos fazer istocolocando a vela em movimento retilíneoacelerado. Este experimento pode ser feito

de diversas maneiras.Para torná-lo visível econvincente, nestetrabalho utilizamos otubo de vidro maior(30 cm) com umavela inteira presa asua base e encaixa-mos a base (madeira)na parte de baixo deum carrinho comum.Para colocar o sistemaem movimento o car-rinho foi puxado porum barbante preso a

uma massa de m = 50 g abandonada soba ação da gravidade, veja o esquemailustrativo na Fig. 5. Muita atenção nesteexperimento, pois é imprescindível colocaro tubo em torno da vela para isolarmos o

Figura 3 - Pedaço de estopa embebido emnitrogênio líquido e fumaça iluminadacom uma ponteira laser de cor verde paramelhorar a visualização da convecção queé restabelecida quando a lâmina de metalé introduzida no tubo de 30 cm. À esquer-da temos a sucção do ar de maior densida-de e à direita observa-se que há um fluxode ar ascendente.

Figura 4 - À esquerda temos uma velaqueimando sob o efeito da gravidade ter-restre, exibindo um formato alongado ediferentes tonalidades em sua chama. Àdireita temos uma imagem de uma velaqueimando em um ambiente de micro-gravidade (na ISS) mostrando a alteraçãono formato e cor da chama devido à mu-dança no processo de transporte de gasespara a combustão [10].

Figura 5 - Esquema ilustrativo mostrando o apa-rato utilizado para colocar a vela em movimentoretilíneo acelerado através da queda de uma massade m = 50 g.

Quando ensinamos ciênciasnão é necessário seguirmos

uma ordem rigorosa de tópicoscomo é mostrado nos livros ouapostilas didáticas. Mesmo quedeterminados assuntos sejam

tratados em outro momento docurso de ciências podemos ir

acostumando os alunos, pois asdemonstrações podem nosajudar a pensar e enxergar

analogias em diferentessituações

38 Física na Escola, v. 11, n. 2, 2010Uma “luz” no aprendizado da ciência

sistema do movimento relativo do ar, ouseja, aquele vento que sentimos contranosso movimento quando andamos debicicleta.

Note na sequência de fotos da Fig. 6que a chama da vela fica com uma formaquase esférica no início do movimento tor-nando-se oblata e inclinada no sentido domovimento à medidaque o sistema é acele-rado. O sentido domovimento é mostra-do pelo barbante ten-sionado, ou seja, ocarrinho é puxado daesquerda para a direi-ta. Note que temosum fato muito curio-so neste experimento. Quando estamossentados em um banco de um carro oude pé em um ônibus somos impulsionadoscontra o sentido do movimento do veí-culo quando o mesmo é acelerado, o queequivaleria a dizermos que somos incli-nados para trás, já que nossos pés ten-dem a ficar fixos pela força de atrito. Porque então a vela é inclinada para frente?Será que encontramos uma violação daprimeira lei de Newton e o princípio dainércia não vale para a chama da vela?Na verdade não, e a explicação é muitosimples. Lembre-se que no processo deconvecção temos dois gases de diferentesdensidades onde o de maior densidade édeslocado para a região inferior da chamae o de menor densidade para a região su-perior. Quando o sistema inicia seu mo-vimento o efeito da aceleração é maisintenso no gás de maior densidade, poiseste possui maior inércia. Portanto o gásda região inferior tem maior tendência depermanecer em repouso que o da regiãosuperior, fazendo com que o mesmo sejapressionado na parede esquerda do tubo

de vidro, contrário ao movimento, deslo-cando o ar de menor densidade para adireita do tubo no sentido do movimento.Em resumo, o que fizemos foi inclinar ascorrentes de convecção no sentido domovimento do sistema, como mostra oesquema ilustrativo da Fig. 7. A fronteiraentre os gases de diferentes densidades co-

locada na figura éapenas ilustrativa,pois esta não é bemdefinida na realidade,pois os gases estão emconstante movimen-to. Para tornar esseexperimento mais vi-sível utilize velas combarbantes espessos,

pois estas produzem uma chama maior.Para finalizarmos, vamos responder

o porquê do pavio da vela não queimarrapidamente. A resposta a essa perguntajustifica também a menor temperatura naregião próxima à extremidade superior dopavio, onde a chama apresenta uma corcastanha-avermelhada. O material de queé feito o pavio da vela apresenta umacaracterística muito importante chamadade capilaridade. Esta é responsável pelasubida ou descida de um líquido sobre umsólido quando o contato entre os dois éestabelecido, dependendo, é claro, das for-ças de coesão e adesão na interface dosmateriais. Você já deve ter observado estefenômeno ao encostar a ponta de umguardanapo de papel na superfície de umlíquido qualquer. Veja a analogia desteexperimento mostrando a capilaridade doguardanapo de papel e o pavio da vela nasfotos apresentadas na Fig. 8a. No caso davela, o sólido é o próprio pavio que absor-ve a cera líquida (parafina) puxando-a pa-ra cima enquanto a vela estiver queiman-do. Na Fig. 8b utilizamos uma vela colo-

Figura 6 - Da foto I a IV temos o movi-mento retilíneo e acelerado da vela pelaqueda de uma massa de m = 50 g. Note adeformação da chama da vela na direçãodo movimento. O sentido do movimentoé da esquerda para direita, evidenciadopelo barbante tensionado neste sentido. Afoto V foi obtida colocando-se uma veladentro de um frasco de vidro, utilizadopara acondicionar doce de leite, e aceleradomanualmente sobre uma mesa no mesmosentido do sistema anterior.

Figura 7 - Esquema ilustrativo do que ocorre com a chama da vela quando a mesma éacelerada da esquerda para a direita. A fronteira entre os gases de diferentes densidadesé apenas ilustrativa, pois esta não é bem definida na realidade.

A capilaridade é responsávelpela subida ou descida de um

líquido sobre um sólido quandoo contato entre os dois é

estabelecido, dependendo, éclaro, das forças de coesão e

adesão na interface dosmateriais

39Física na Escola, v. 11, n. 2, 2010 Uma “luz” no aprendizado da ciência

Referências

[1]. Y.L.N.S. Cerri e M.G.C. Tomazello, in:Quanta Ciência há no Ensino de Ciências,organizado por A.C. Pavão e D. Freitas(EdUFSCAR, São Carlos, 2008).

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[4] A.C. Pavão, in: Quanta Ciência há noEnsino de Ciências, organizado por A.C.Pavão e D. Freitas (EdUFSCAR, SãoCarlos, 2008).

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[6] M. Rodrigo, J.G. Morcillo, R.Borges,Mª.A. Calvo, N. Cordeiro, F. García yA. Raviolo, Revista Complutense deEducación 10, 261 (1999).

[7] J.C. Sprott, Physics Demonstrations – ASourcebook for Teachers of Physics (TheUniversity of Wisconsin Press, 2006).

[8] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica1 – Mecânica (Editora Edgard BlücherLTDA, 2002), 4ª edição revista.

[9] L.C. Menezes e Y. Hosoume et al., Leitu-ras de Física GREF – Física Térmica, ParaLer, Fazer e Pensar (Instituto de Físicada USP, São Paulo, 1998), versão preli-minar.

[10] Figura obtida no site http://ciencia.hsw.uol.com.br/estacoes-espaciais5.htm, acessado dia 10/7/2010.

rida para a melhor visualização deste pro-cesso. Note que quando a vela é apagadapode-se observar que parte do pavio estácolorido, devido à absorção de parafinapelo pavio através do efeito de capilari-dade. A parafina é um hidrocarbonetopesado proveniente do petróleo bruto, sen-do então o combustível da vela. Durantesua queima esta evapora e resfria a extre-midade superior do pavio retardando seudesgaste e justificando o porquê da chamaapresentar menor temperatura nesta re-gião. O pavio funciona como um suportede combustão para a queima da parafina.Você pode provar isto com um simplesexperimento.

Pegue uma vela e deixe-a acesa poralguns segundos. Tente apagá-la de ma-neira suave (coloque um copo sobre a vela)de modo que dê para visualizar a fumaçabranca que é emanada do pavio sem dis-persá-la. Esta fumaça é parafina conden-sada. Acenda um palito de fósforo e colo-que sua chama nesta fumaça e você veráque a vela se inflamará novamente, mes-mo que a chama do fósforo esteja distantedo pavio da vela. O processo deve ser rá-

pido, ao apagar a vela é bom estar com opalito de fósforo aceso. A Fig. 9 mostraeste experimento. Note como o fogo saltado palito de fósforos para o pavio da vela,através da parafina condensada, fumaçabranca. A distância entre a chama do pali-to de fósforo e o pavio da vela é em tornode 8 cm.

Conclusão

Note a infinidade de assuntos tratadosutilizando apenas uma vela, sendo possí-vel investigar os problemas com simplesexperimentos, questionando e fazendovárias analogias para explicação de diver-sos fenômenos interessantes.

Além do tratamento dado neste traba-lho, o professor pode citar várias outrasaplicações do dia a dia dos alunos queutilizam o fenômeno da convecção comoo porquê do congelador estar na parte su-perior de uma geladeira, assim como oporquê da instalação de um aparelho dear condicionado ser feita próximo ao tetode um cômodo. Poderia levar os alunos aaprender qual a maneira mais eficiente demanter alimentos resfriados em uma

Figura 8 - (a) Efeito da capilaridade de um guardanapo de papel, semelhante ao pavio davela por onde sobe a parafina (seta) durante o processo de combustão (b). Note quequando a vela se apaga pode-se notar a parafina solidificada no pavio, apresentando acor da vela.

Figura 9 - Sequência mostrando que a vela se ascende pela parafina condensada (fuma-ça branca) emanada pelo pavio quando a vela é apagada. Note a distância entre a chamado fósforo e o pavio (cerca de 8 cm). As setas indicam o rápido movimento do fogo atéo pavio. É um processo extremamente rápido da ordem de milissegundos.

caixa de isopor, ou seja, mantendo o gelosobre os alimentos, e também o porquêdo aquecimento dos alimentos ser maiseficiente pela sua parte inferior como nocaso do fogão, entre muitos outros.

Para tornar uma aula de ciências inte-ressante e eficiente não são necessárioslaboratórios sofisticados ou grandes de-monstrações em sala de aula, basta olharà nossa volta, pois a ciência está presenteno carro que dirigimos, nos aviões, no usode computadores e telefones, nos CD’s demúsicas que ouvimos ou nos DVD’s defilmes, no nosso simples caminhar, nomovimento de uma bicicleta, na admi-ração do céu azul ou na beleza de um arco-íris, ou seja, a ciência está presente emtudo que vemos, basta acender umapequena vela para enxergarmos isto.

Agradecimentos

Agradecemos à Professora CristianeS. de Oliveira pela leitura do trabalho esugestões e ao Professor José P. Rino pornos fornecer uma câmera fotográfica paraa filmagem de alguns experimentos.