uma leitura comparativa dos contos le chat … · judite, susana, a história do filho pródigo e a...

14
IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 UMA LEITURA COMPARATIVA DOS CONTOS LE CHAT BOTTE E LE PETIT POUCET DE CHARLES PERRAULT Aline aparecida da SILVA (G-UEM) Margarida da Silveira CORSI (UEM) Natália GODOY (G-UEM) Nilda Aparecida da BARBOSA (UEM) Introdução Este artigo, vinculado ao Grupo de pesquisa Interação e Escrita (UEM/CNPq www.escrita.uem.br) e ao Projeto de pesquisa “A narrativa francesa como suporte para a aprendizagem de língua e literatura francesas. É possível encontrar novos caminhos?”, à luz da Linguística Aplicada, propõe um estudo comparativo dos contos Le Chat Botté e Le Petit Poucet de Charles Perrault, dentro da perspectiva sócio-histórico-ideológica de Bakhtin, centrado nos três pilares constitutivos de gêneros discursivos conteúdo temático, estilo e estrutura composicional . Para tanto abordamos o conceito de gênero, de gênero do discurso e do gênero conto, em especial o conto maravilhoso, assim como alguns apontamentos sobre o autor dos contos analisados, Charles Perrault. Iniciamos a análise abordando a origem do termo gênero e suas definições a partir do ponto de vista de alguns estudiosos como Aristóteles e Bakhtin. Verificamos para tanto os pontos em comum entre os contos, como os personagens e suas características, a temática, a estrutura composicional e o estilo de escrita do autor, assim como as semelhanças e as diferenças entre os dois contos. 1.Gênero e gênero do discurso De acordo com Soares (2007), o termo gênero vem do latim genus-eris que significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. Ao longo dos anos, o que vem se fazendo é agrupar cada obra literária de acordo com uma classe ou espécie, mostrando como certa origem pode se classificar em determinada modalidade literária. Conforme Soares (2007), acredita-se que para uma obra se adequar a certo gênero é preciso que ela

Upload: truongngoc

Post on 30-Nov-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

UMA LEITURA COMPARATIVA DOS CONTOS LE CHAT BOTTE E LE PETIT

POUCET DE CHARLES PERRAULT

Aline aparecida da SILVA (G-UEM)

Margarida da Silveira CORSI (UEM)

Natália GODOY (G-UEM)

Nilda Aparecida da BARBOSA (UEM)

Introdução

Este artigo, vinculado ao Grupo de pesquisa Interação e Escrita (UEM/CNPq –

www.escrita.uem.br) e ao Projeto de pesquisa “A narrativa francesa como suporte para a

aprendizagem de língua e literatura francesas. É possível encontrar novos caminhos?”, à luz

da Linguística Aplicada, propõe um estudo comparativo dos contos Le Chat Botté e Le

Petit Poucet de Charles Perrault, dentro da perspectiva sócio-histórico-ideológica de

Bakhtin, centrado nos três pilares constitutivos de gêneros discursivos – conteúdo temático,

estilo e estrutura composicional –. Para tanto abordamos o conceito de gênero, de gênero do

discurso e do gênero conto, em especial o conto maravilhoso, assim como alguns

apontamentos sobre o autor dos contos analisados, Charles Perrault.

Iniciamos a análise abordando a origem do termo gênero e suas definições a partir

do ponto de vista de alguns estudiosos como Aristóteles e Bakhtin. Verificamos para tanto

os pontos em comum entre os contos, como os personagens e suas características, a

temática, a estrutura composicional e o estilo de escrita do autor, assim como as

semelhanças e as diferenças entre os dois contos.

1.Gênero e gênero do discurso

De acordo com Soares (2007), o termo gênero vem do latim genus-eris que significa

tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. Ao longo dos anos, o que vem se

fazendo é agrupar cada obra literária de acordo com uma classe ou espécie, mostrando

como certa origem pode se classificar em determinada modalidade literária. Conforme

Soares (2007), acredita-se que para uma obra se adequar a certo gênero é preciso que ela

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

obedeça a uma série de regras, que são as características principais desse suposto gênero.

Ela também afirma que alguns estudiosos defendem a mistura dos gêneros, mostrando as

diferentes possibilidades de combinações em uma mesma obra, muito embora, alguns

estudiosos, em seus primórdios não admitissem essas combinações, defendendo a pureza

dos gêneros.

Machado (2005) relembra que o filósofo Platão inicialmente propôs uma classificação

binária para os gêneros, na qual a epopeia e a tragédia se enquadrariam no gênero sério, e o

burlesco e a sátira pertenceriam à comédia. Posteriormente, em sua obra “A República”, ele

elabora a tríade proveniente das relações entre realidade e representação. Nela, Platão funde

no gênero mimético ou dramático a tragédia e a comédia, no gênero expositivo ou narrativo

a poesia lírica e no gênero misto a epopeia. A autora ainda afirma que o filósofo Aristóteles

em sua obra “Poética” classifica os gêneros por meio de uma forma mimética de

representação, na qual considera como poesia de primeira voz a representação do lírico, a

poesia de segunda voz a épica e a poesia de terceira voz é a representação do drama.

Machado mostra que a pesquisa de Bakhtin sobre dialogismo tornou possível a

observação do hibridismo, da heteroglossia e das pluralidades de signos, como observamos

no seguinte excerto: “Mais do que reverter o quadro tipológico das criações estéticas, o

dialogismo, ao valorizar o estudo dos gêneros, descobriu um excelente recurso para

“radiografar” o hibridismo, a heteroglossia e a pluralidade de sistemas de signos na

cultura.” (MACHADO, 2005, p. 153).

Machado afirma que para Bakhtin, os gêneros do discurso são esferas de comunicação

que por sua vez se unem no enunciado e são compostas pelos três pilares por ele

defendidos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Essas esferas se

desenvolvem ficando mais complexas devido à ampliação e diferenciação do gênero do

discurso de cada esfera da atividade humana, mostrando que os diversos gêneros sofrem

modificações constantes.

Na visão de Bakhtin (1992), os gêneros do discurso possuem uma heterogeneidade que

comporta inúmeras esferas da comunicação que possibilitam a transição dos gêneros do

discurso para outras esferas como aquelas presentes nos gêneros literários. Como

observamos abaixo:

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

[...] a heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) que incluem indiferentemente: a curta réplica do diálogo cotidiano (com a

diversidade que este pode apresentar conforme os temas, as situações e a

composição de seus protagonistas), o relato familiar, a carta (com suas variadas formas), a ordem militar padronizada, em sua forma lacônica e

em sua forma de ordem circunstanciada, o repertório bastante

diversificado dos documentos oficiais (em sua maioria padronizados), o

universo das declarações públicas (num sentido amplo, as sociais, as políticas). E é também com os gêneros do discurso que relacionaremos as

variadas formas de exposição científica e todos os modos literários (desde

o ditado até o romance volumoso). (BAKHTIN, 1992, p. 279-280).

Bakhtin ainda afirma que na antiguidade, os gêneros literários sempre foram observados

apenas como expressão artístico-literária sem que fossem desvencilhados dos limites

literários, porém, esse modo de ver o gênero não incluía os diferentes tipos de enunciados,

visto que se observava apenas o gênero no âmbito do que se considerava literatura da

época.

1.1 Conto e conto maravilhoso

Em relação à origem da palavra conto, Massaud Moisés (1983) afirma que ela pode ter

sua origem em várias acepções. A primeira seria de origem numérica, exemplo: “um conto

de réis, ou um sem conto de soldados” (MOISÉS, 1983, p. 15). A segunda remete a

história, narração, fábula, que são empregadas em Literatura. A terceira se trata de uma

rede de pesca em forma de saco.

Para acepção da Literatura há outra hipótese, nela, Moisés aponta que o termo conto

teria sua origem na palavra latina commentu, que significa “invenção”. Outra possível

hipótese seria de o termo ser um substantivo derivado do verbo contar, que por sua vez

decorreria de computare, inicialmente com o significado de “enumerar os objetos”. Porém,

com o passar do tempo, especificamente durante a Idade Média, o verbo contar teve um

novo sentido atribuído, além de “enumerar”, teria também o sentido de “relatar”, dessa

forma, a palavra conto adquiriu o significado de “enumerar os fatos”, “relato”, “narrativa”.

Ainda de acordo com Moisés, a origem do gênero conto é desconhecida, mas alguns

estudiosos apontam algumas hipóteses, entre elas a de que o conto surgiu antes de Cristo,

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

tendo o conflito de Caim e Abel como um primeiro exemplo de conto. Eles ainda

consideram vários episódios da Bíblia como conto, tais como os episódios de Salomé, Rute,

Judite, Susana, a história do filho pródigo e a ressurreição de Lázaro. Além da Bíblia, eles

também sugerem que no Egito antigo, as histórias Os dois Irmãos e Setna e O Livro

Mágico, ambas de autor desconhecido, do século XIV a.C., seriam verdadeiramente contos.

Como vimos, o conto sempre esteve presente na história da humanidade e ainda hoje,

continua sendo, pois sua estrutura é de fácil assimilação e permite a abordagem de assuntos

diferentes de maneira rápida e agradável, dessa maneira, é visto como promissor por

facilitar a leitura cotidiana. Nesse sentido, segundo Soares (SOARES, 2007, p.54), o conto

se diferencia das outras formas de narrativa por ter estruturas próprias tendo como uma de

suas principais características o tamanho. De menor extensão, o gênero conto, “dispensa”

as análises minuciosas e complicações no enredo. Assim, o tempo e o espaço são

delimitados e com mais intensidade. Soares explica que: “o conto aparece como uma

amostragem, como um flagrante pelo que vemos registrado literalmente, um episódio

singular e representativo”. Deixa claro também que o caráter poético se sobressai no gênero

conto, sobretudo pelo fato de sua pequena extensão.

O primeiro autor a publicar contos destinados às crianças foi Charles Perrault, sua obra

se originou a partir de uma coletânea de contos populares que se propagaram por meio da

oralidade. Ele reuniu essas histórias e as adaptou, trazendo sempre uma moralidade que

transmite ensinamentos para as crianças.

1.2 Charles Perrault e seu estilo

Charles Perrault, autor dos contos analisados, é considerado um grande nome da

literatura infantil e, além de escritor, era formado em direito e exerceu alguns cargos na

corte do Rei Luís XIV. No ano de 1671, ele entra para Academia Francesa de Letras e no

ano seguinte se casa com Marie Guichon, com quem tem uma filha e três filhos. Foi

tentando educar um dos filhos mais rebelde que procurou recontar as velhas histórias

populares de forma lúdica e agradável às crianças.

Perrault publica ainda Le Siècle de Louis le Grand (1687) e Parallèle des Anciens et des

Modernes (1688–1692). Essas publicações são um marco na literatura, pois as discussões

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

dessas obras que defendem a valorização da nação francesa em detrimento da imitação dos

modelos antigos propiciam o surgimento de um novo gênero, o conto de fadas. Sua obra

mais conhecida, Contes de Ma Mère l’Oye, consiste na coletânea de histórias que tiveram

um grande reconhecimento, o que lhe rendeu o título de Pai da Literatura Infantil, pois ao

final de cada conto havia sempre uma moral.

Essas moralidades estão relacionadas com a temática do conto. Em Le Petit Poucet, a

moralidade retoma os valores familiares, enfatizando que os pais não devem sofrer por ter

muitos filhos ou por ter filhos com algum problema aparente, pois a salvação da família

poderá vir de onde eles menos esperam. No caso do conto, quem salva a família é o

Pequeno Polegar, ou seja, quem eles menos esperavam devido a seu tamanho, como se

observa na moralidade do conto Le Petit Poucet:

On ne s’afflige point d’avoir beaucoup d’enfants, Quand ils sont tous beaux, bien faits et bien grands,

Et d’un extérieur qui brille;

Mais si l’un d’eux est faible, ou ne dit mot, On le méprise, on le raille, on le pille:

Quelquefois, cependant, c’est ce petit marmot

Qui fera le bonheur de toute la famille. (PERRAULT, 1995, p. 79).

O mesmo ocorre com o conto Le Chat Botté. Sua moralidade, como vemos abaixo,

também retoma o tema da narrativa no qual o autor enfatiza questões de valorização

pessoal, em que o leitor deve refletir também sobre os valores morais e materiais:

« Quelque grand que soit l’avantage De jouir d’un riche héritage

Venant jeunes gens pour l’ordinaire,

L’industrie et le savoir-faire

Valent mieux que des biens acquis. » « Si le fils d’un Meunier, avec tant de vitesse,

Gagne le coeur d’une Princesse,

Et s’en fait regarder avec des yeux mourants, C’est que l’habit, la mine et la jeunesse,

N’en sont pas des moyens toujours indifférents. » (PERRAULT, 1997, p.

62 - 63).

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

Com a criação de personagens lúdicos, algumas vezes animais personificados, Perrault

nos deixou uma grande herança que passamos de geração em geração. No conto La barbe

bleue, por exemplo, encontramos vários elementos que caracterizam o gênero conto e,

sobretudo, as narrativas de Perrault. Temos a barba azul do antagonista que originou o

nome do conto, a chave manchada de sangue que não pode ser lavada, representações de

condutas morais das personagens. Em Le Chat Botté também encontramos transformações

e a personificação do gato, além da presença das botas de sete léguas, representando o

maravilhoso da história. Podemos falar ainda do conto Le Petit Poucet, que tem como

protagonista o corajoso Pequeno Polegar enfrentando o temível e gigante Ogro malvado.

Assim se constroem as histórias de Perrault, cada uma enfoca uma lição de moral

metaforizada em elementos maravilhosos.

2 Le chat Botté e Le petit Poucet: um percurso analítico-comparativo do conto

maravilhoso de Charles Perrault

Sobre os contos selecionados para nossa análise, podemos dizer que tanto Le Chat Botté

quanto Le Petit Poucet são narrativas maravilhosas, pois, embora as obras se aproximem da

realidade social da época, representando as dificuldades das famílias de moleiros e os

desafios de um herdeiro, no conto Le Chat Botté, e as dificuldades de uma família de

lenhadores, em Le Petit Poucet, as obras apresentam elementos que as definem como

maravilhosas.

Há diversos elementos que caracterizam composicionalmente o conto maravilhoso. Em

O Pequeno Polegar, por exemplo, um elemento que caracteriza sua estrutura

composicional é o fantástico, pois o protagonista é do tamanho de um polegar, de onde

advém seu nome, além disso, existem as botas de sete léguas que permitem ao Pequeno

Polegar o poder de se tornar veloz. O ogro malvado que era o dono das botas mágicas, em

um momento de descanso, durante sua perseguição ao Pequeno Polegar e seus irmãos, teve

suas botas roubadas pelo pequenino, que as utiliza para fugir. Em geral, o fantástico agrega

simbologias, que associadas a outros elementos da narrativa, podem levar a entender a

dimensão e o porquê de cada elemento presente na trama. No conto em questão, por

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

exemplo, encontramos a sequência numérica como a inserção dos sete irmãos e das sete

filhas do Ogro (que era casado e tinha sete filhas); há as grandes forças da natureza, com a

apresentação das crianças na floresta; os comportamentos das personagens como a

esperteza e a tolice; os suportes de ação que colocam o mais jovem como o herói da

narrativa; e por fim os espaços de ser e de agir tais quais a floresta e o castelo (LURKER,

2003, p.150).

O número sete é representado nesta narrativa com o intuito de designar a totalidade da

ordem moral, a totalidade das energias e, sobretudo a espiritualidade representando um

ciclo completo. Segundo o dicionário de símbolos, o número sete simboliza a totalidade do

espaço e a totalidade do tempo. Dessa maneira, esse fato corrobora para que se atribua à

narrativa características de cunho mítico e maravilhoso, como, por exemplo, o termo « Il

était une fois un bûcheron et une bûcheronne qui avaient sept enfants... » (PERRAULT,

1995, p. 57), que mergulha o leitor em um mundo imaginário.

Neste sentido, a descrição do herói dentro do conto também pode ser vista como de

característica fantástica, « Il était fort petit, et quand il vint au monde, il n’était guère plus

gros que le pouce» (PERRAULT, 1995, p. 56). Assim, além de o personagem Pequeno

Polegar trazer características irreais, há também a simbologia numérica que apresenta os

sete irmãos como a representação do amor profano e divino, sendo melhor apresentado nas

considerações de Loeffler que demonstra essa simbologia por meio de sete etapas. Assim,

Le premier frère du Petit Poucet n’a conscience que de son corps

physique le plus grossier. Il mange, il boit, il cultive ses muscles. [...] Le

second frère ajoute à la vie des sens l’émotion. Il est enthousiaste, souvent zélé.[...] Le troisième frère acquiert en plus de ce que possèdent

les deux autres.[...] Le quatrième frère s’élève au-dessus de l’intelligence

vérificatrice par l’intuition. [...] Le cinquième frère, éduqué par l’intuition, se détache de la vie matérielle et acquiert la soiritualité.

[...] Le sixième frère qui possède le savoir de tous les précédents de fait

passer de l’état passif à l’átat actif au moyen de son acquisition propre:

La volonté. [...] Le dernier venu, Le Petit Poucet sauveur ( qui représente le principe immortel, l’étincelle divine jetée dans la matière) DIRIGE

l’action des six autres et les mène vers la Vie éternelle alors que tout

semblait les condamner à mourir. (LOEFFLER, 1949, p.197-198)

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

No conto, o surgimento da floresta como cenário do desenrolar da ação provoca novas

expectativas para o destino dos personagens: “je suis résolu de les mener perdre demain au

bois, ce qui sera bien aisé, car, tandis qu’ils s’amuseront à fagoter, nous n’avons qu’à nous

enfuir sans qu’ils nous voient” (PERRAULT, 1995, p.58). A floresta é o lugar onde os sete

filhos serão abandonados pelo lenhador, representando neste conto as grandes forças da

natureza e além de ser o espaço no qual o Pequeno Polegar se destacará por salvar seus seis

irmãos, a floresta é a representação entre o espaço conhecido e o desconhecido. Assim, “a

floresta sombria e misteriosa é uma espécie de terra de ninguém, o reino dos espíritos e das

bruxas, um espaço mágico”. (LURKER, 2003, p. 273).

Um personagem que faz parte da história do conto e não pode ser desconsiderado ao

falarmos da estrutura composicional da obra é o Gigante Ogro Malvado que aparece com

características fantásticas dentro do enredo e nos faz recordar do mito de Saturno que

devora suas próprias crianças enquanto Cibele (a Terra) as coloca no mundo. Nesta

situação, Saturno é considerado a personificação do tempo que gera os corpos psíquicos dos

seres. Assim, podemos perceber que características das personagens relacionadas a mitos

enquadram-se como elementos composicionais característicos do conto de fadas.

No momento em que o temível Ogro Malvado se encontra em desespero por ter matado

suas sete filhas por engano, fala para sua esposa: « Donne-moi vite mes bottes de sept

lieues, lui dit-il, afin que j’aille les attraper ». (PERRAULT, 1995, p. 78). O Malvado Ogro

queria encontrar os sete meninos para vingar-se, por isso as Botas de Sete Léguas

apareceram no conto, sendo encantadas, tinham o dom de aumentar e diminuir de tamanho

conforme as pernas e pés de quem as calçasse. Esse objeto, a bota, por ser encantado traz

uma característica fantástica para o conto, pois se trata de um objeto utilizado de maneira

corriqueira, mas que ao ser inserido no conto recebe características irreais. São as botas

encantadas que acolhem e salvam o Polegar que não abandona os seis irmãos e os protege

contra o gigante e dos perigos da floresta. A bota os traz de volta à casa com a fortuna,

garantindo a sobrevivência da família. Dessa maneira, as botas além de serem um elemento

que caracteriza o maravilhoso no conto são também um elemento fundamental para o

desfecho feliz da história.

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

O tempo na narrativa ocorre cronologicamente, havendo uma sequência de fatos que

fazem com que a narrativa ocorra linearmente, isto é, se organiza segundo a concepção

dominante de tempo (passado, presente e futuro). Ao retomar a narrativa fica claro que o

conflito dramático acontece quando os sete irmãos são deixados pelos pais (casal de

lenhadores) em uma floresta. A ação de abandonar os filhos por não terem condições de

cuidar deles adequadamente, faz com que surjam diversos conflitos com o personagem

principal (Le Petit Poucet) e os obstáculos que ele encontra para salvar os irmãos e retornar

a sua casa, assim como a fuga do temível Ogro que comia crianças, são considerados

aspectos que englobam a totalidade da intriga de maneira que a inteligência, a ousadia, a

astúcia, a coragem, a miséria, a covardia e a esperteza se destaquem no decorrer da

narrativa.

No conto Le Chat Botté, há também elementos que marcam o maravilhoso na narrativa,

como a presença do Ogro capaz de se transmorfizar em animal, as botas que levam o gato

de um lugar a outro com rapidez e a personificação do Gato, que para não ser comido pelo

pobre Moleiro, utiliza sua inteligência para manipular o jovem, que obedece todas as suas

ordens sem questionar. Sua coragem e astúcia se intensificam a partir do momento em que

seu amo (o Moleiro) lhe dá o que havia solicitado, que são as botas e o saco. Dessa forma, o

Gato de Botas sai à procura de um coelho para presentear o Rei em nome de seu amo, que

agora passa a se chamar Marquês de Carabás, para que Rei acredite que se tratava de um

nobre rico.

No decorrer da narrativa percebemos que o Gato em diversas situações precisou utilizar

de sua grande astúcia, que marca o maravilhoso no conto, para enganar o Rei na tentativa

de inserir seu amo, e a si mesmo, em meio à realeza casando-o com a Princesa. Assim

ambos seriam ricos e fugiriam da miséria. Para tanto, foi preciso ultrapassar vários

obstáculos, como destruir o Ogro que possuía poderes de se transmorfizar em qualquer

animal – também um elemento maravilhoso dentro do conto – para roubar seu castelo e

convencer o Rei de que esse castelo pertencia ao Marques de Carabás.

Neste conto, não há a presença da floresta, mas os campos são a representação dos

obstáculos que o Gato deveria percorrer até o castelo do Ogro. Trata-se de um

entrelaçamento de obstáculos que direcionarão o Gato ao desfecho feliz da narrativa.

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

O enredo dos contos de fadas é constituído pelas provas, ou obstáculos que precisam ser

vencidos, tudo isso para que o herói alcance sua realização existencial. Com isso, quando o

Pequeno Polegar salva os seis irmãos das garras do temível Ogro, e o Gato de Botas

alcança o objetivo de casar seu amo com a Princesa para assim salvar sua pele, podemos

perceber que há a conquista de um objetivo por parte do herói ou do anti-herói.

Outro ponto em comum entre os contos é a ausência de nomes dos personagens. Em Le

Petit Poucet, há os personagens Pequeno Polegar, seus irmãos, o Ogro, a esposa do Ogro e

as filhas do Ogro; em Le Chat Botté, há os personagens Gato de Botas, o Moleiro, os

irmãos, filhos do Moleiro, o Rei, a Princesa e o Ogro. Esse fenômeno ocorre para

diferenciar os personagens mais importantes e intensificar o maravilhoso dentro da

narrativa, como o personagem Pequeno Polegar, que apesar de não ter nome possui um

apelido que traduz sua principal característica maravilhosa e o Gato de Botas que mesmo

não tendo um nome humano, se refere a sua personificação que também é uma

característica do maravilhoso dentro do conto.

Conforme todos esses fragmentos, percebemos que tais elementos da estrutura

composicional atribuem ao conto subsídios que o caracterizam de maneira que tudo o que é

transmitido ao leitor tenha seu valor elevado. Assim, espaço, tempo, personagens devem ser

vistos como estruturantes dentro do conto e, detalhes como o número sete que representa os

irmãos; a floresta, o espaço em que se passa a maior parte da história; e até mesmo as botas

de sete léguas, estas sendo um elemento mais visível dentro dos dois contos, são elementos

que intensificam a composição da narrativa de maneira que, ao serem analisados, são

considerados imprescindíveis na estrutura do conto.

Além das botas mágicas, há outros elementos em comum entre os contos, como a figura

do Rei, o Ogro, a miséria, a luta do bem contra o mal, a astúcia e a inteligência dos

protagonistas, estes, os únicos a serem nomeados com apelidos que representam suas

características físicas.

O Rei representa a diferença social, sua posição social e sua riqueza se contrapõem com

a realidade dos protagonistas, que vivem em meio à miséria, precisando utilizar de artifícios

como a astúcia e a esperteza para ultrapassar os obstáculos. Em ambos os contos, há

recorrência da miséria dos personagens principais, fatores muito presentes na época em que

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

Perrault escreveu seus contos. Apesar de o autor ter vivido em um ambiente palaciano,

desfrutando dos benefícios da realeza, a população passava por grandes dificuldades, pois

vivia em absoluta miséria, fatos que foram refletidos em suas obras.

O personagem Ogro é outro elemento maravilhoso que se repete nos contos. A

malvadeza do Ogro de Le Petit Poucet é explícita, pois ele quer comer o Pequeno Polegar e

seus irmãos. O que torna o caráter desse Ogro mais malévolo é o fato de ele viver no meio

da floresta, pois a floresta representa um lugar em que tudo é permitido. Por isso é

concebível que o garoto usurpe as botas mágicas e todo o ouro que o Ogro guardava em

casa.

Dessa maneira, é possível entender que o personagem Ogro representa na ficção um ser

do mal, até mesmo quando sua maldade não está explícita, como é o caso do conto Le Chat

Botté. Neste conto, o Ogro é apresentado apenas como um ser que possui o poder de se

transformar em qualquer animal, fato que intensifica o efeito do maravilhoso. Por meio

dessa maldade implícita há uma isenção de qualquer julgamento quanto ao caráter do Gato

de Botas no momento em que ele engana o Ogro e rouba seu castelo e suas propriedades.

Ambos os protagonistas dos contos utilizam sua astúcia e inteligência para vencer os

obstáculos e se salvarem da miséria e morte. Em Le Petit Poucet, o pequenino utiliza sua

inteligência e perspicácia para se salvar e salvar seus irmãos do grande Ogro malvado. O

protagonista de Le Chat Botté também utiliza sua inteligência e astúcia para se salvar e

ultrapassar os obstáculos para sair da miséria.

O fato que diferencia os protagonistas é o objetivo nobre do Pequeno Polegar que era

salvar a si e a seus irmãos e também reunir sua família. Assim, apesar de ter usurpado as

riquezas do Ogro, conseguiu manter sua família por meio de seu trabalho com a ajuda das

botas de sete léguas. Já o Gato de Botas, desde o início da narrativa tenta se aproximar do

Rei para casar seu amo com a Princesa e ter uma vida de luxo no palácio. Para atingir esse

objetivo, ele engana o Ogro e rouba seu castelo, trapaceia o Rei para que este pense que seu

amo é um homem rico, ou seja, todos os seus esforços são para o único propósito, o de

fugir da miséria e ter uma vida de fartura no ambiente palaciano.

As botas de sete léguas são um elemento muito importante presente nos dois contos. O

Pequeno Polegar rouba as botas do Ogro malvado em um momento em que ele dormia.

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

Assim, o pequenino as utilizou para fugir do Ogro e quando o Rei ficou sabendo dos

poderes mágicos das botas, contratou o menino para trabalhar em seu reino e através do

trabalho o menino conseguiu reunir a família e manter sua riqueza.

Já o Gato de Botas, conseguiu suas botas por meio de seu amo, o jovem moleiro. O

Gato disse ao amo para lhe dar um par de botas e um saco, dessa forma ele lhe traria grande

fortuna. A partir do momento em que recebeu as botas e o saco, o Gato saiu em busca de

algo que pudesse tirar proveito, no caso, ele se aproximou do Rei, derrotou o Ogro mágico

e conseguiu casar seu amo com a bela Princesa.

Perrault utilizou diversos recursos linguísticos para enriquecer sua narrativa. Tendo em

vista esse aspecto, lembramos que o estilo de um texto consiste na “seleção de meios

lingüísticos” (FIORIN, 2006, p.62), isto é, escolha de estruturas sintáticas, sinais gráficos e

das palavras utilizadas para escrever e expressar o que se pretende, com uma intenção

maior: a de que o expresso seja entendido pelo leitor. Dessa maneira, o Estilo dentro de um

gênero é interpretado como uma seleção de meios linguísticos que podem ser derivados de

normas gramaticais, de características linguísticas do autor ou de uma adaptação ao

conteúdo temático e à estrutura composicional.

No conto Le Chat Botté, o autor utilizou diversos tempos verbais, mas a maioria dos

tempos está conjugada no passado, pois está narrando algo que aconteceu. Percebemos a

recorrência de vários tempos verbais como Imparfait du subjonctif: « Le Roi voulut qu’il

montât dans son Carrosse »(PERRAULT, 1997, p. 59); Passé du conditionnel: « Ils

auraient eu bientôt mangé tout le pauvre patrimoine; Lorsque j’aurai mangé mon

chat; »(PERRAULT, 1997. p. 56 e 57); Passé antérieur: « le Marquis de Carabas ne lui

eut pas jeté deux ou trois regards fort respectueux » (PERRAULT, 1997, p. 59 ); Plus-que-

parfait du subjonctif: « quoiqu’il eût crié au voleur de toute sa force » (PERRAULT, 1997.

p. 59); Gérondif présent: « pourront gagner leur vie honnêtement en se mettant ensemble »

(PERRAULT, 1997, p. 57). No entanto, o autor também utilizou os tempos do Futur

Simple e Présent, com aparições em diálogos: « Il faudra que je meure de faim »; « et vous

verrez que vous n’êtes pas si mal partagé que vous croyez » (PERRAULT, 1997, p. 57).

Outro elemento que o autor utiliza para enriquecer seu conto são as expressões

marcantes do seu estilo como ne...que, pois ele poderia ter optado pelo termo seulement,

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

por exemplo. Essa expressão surge em diversos momentos no decorrer da narrativa. Assim,

logo no início do conto temos : « Un Meunier ne laissa pour tous biens à trois enfants qu’il

avait, que son Moulin, son Âne, et son Chat. » (PERRAULT, 1997, p. 56); « L’aîné eut le

Moulin, le second eut l’Âne, et le plus jeune n’eut que le Chat. » (PERRAULT, 1997, p.

56); nestes trechos a utilização do ne...que como elemento de restrição causa um maior

sentimento de piedade, pois o jovem herdou somente um gato, nada mais que isso. Já na

fala do gato ao ameaçar os moradores do campo, ele exige que os camponeses digam que as

terras pertencem somente ao Marquês de Carabas e não digam nada mais que isso:

« Bonnes gens qui moissonnez, si vous ne dites que tous ces blés appartiennent à Monsieur

le Marquis de Carabas... » (PERRAULT, 1997, p.60).

Considerações finais

Após a análise dos contos, percebemos que não é possível dissociar os três pilares

constitutivos propostos por Bakhtin, pois não há como analisar separadamente a temática, o

estilo do autor e a estrutura composicional do gênero conto. Todos esses elementos estão

imbricados de tal forma que se condensam formando o conto como um todo. A partir do

momento em que o leitor toma consciência desses elementos na narrativa, ele se torna um

leitor mais crítico, pois consegue identificar a estrutura composicional presente no conto, o

perfil do estilo do autor e a temática, colaborando para a formação de um leitor capaz de

compreender o contexto sócio-histórico-ideológico da época e observar a estrutura do conto

maravilhoso, diagnosticando aspectos sobre o gênero conto, além de que ao assimilar certos

elementos, acaba desenvolvendo uma percepção mais consciente da riqueza linguístico-

cultural da narrativa literária francesa.

Referências

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

BRAIT, B. (org.) Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2007.

FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

GANCHO, C. V. Como analisar Narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 1999.

LOEFFLER, D. M. Le Simbolisme des Contes de Fées. Paris: L’arche, 1949.

LURKER, M. Dicionário de Simbologia. Tradução Mario Krauss, Vera Barkow. 2 . ed.

São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MACHADO, I. Gêneros discursivos. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed.

São Paulo: Contexto, 2007.

MOISÉS, M. A Criação Literária: Prosa – formas em prosa, conto, a novela, o romance, o

ensaio, a crônica, o teatro, outras expressões híbridas, a crítica literária. São Paulo: Cultrix,

1983.

PERRAULT, C. Contes. Paris: Flammarion, 1997.

PERRAULT, J. C. Contes. Paris : PML, 1995.

SOARES, A. Gêneros literários. 7. ed. São Paulo: Ática, 2007.