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GEOFFREY BLAINEY

UMA BREVEHISTÓRIA DO

MUNDO

Tradução: Editora Fundamento

www.editorafundamento.com.br

Digitalização: Argo

www.portaldocriador.org

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SumárioPARTE 1

CAPÍTULO 1 - Vindos da África

CAPÍTULO 2 - Quando os marescomeçaram a subir

CAPÍTULO 3 - A Primeira RevoluçãoVerde

CAPÍTULO 4 - A cúpula da noite

CAPÍTULO 5 - As Cidades dos Vales

CAPÍTULO 6 - Maravilhoso mar

CAPÍTULO 7 - Senhor do Amarelo - Reido Ganges

CAPÍTULO 8 - A ascensão de Roma

CAPÍTULO 9 - Israel e "O Ungido"

CAPÍTULO 10 - Depois de Cristo

CAPÍTULO 11 - O sinal da Lua crescente

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CAPÍTULO 12 - Os gansos selvagenscruzam as montanhas

CAPÍTULO 13 - Em direção à Polinésia

PARTE 2

CAPÍTULO 14 - Os mongóis

CAPÍTULO 15 - Os perigos do clima edas doenças

CAPÍTULO 16 - Novos mensageiros

CAPÍTULO 18 - Os Incas e os Andes

CAPÍTULO 19 - A Reforma

CAPÍTULO 20 - Viagem à Índia

CAPÍTULO 21 - Os presentes que o NovoMundo escondia

CAPÍTULO 22 - O olho de vidro daciência

CAPÍTULO 23 - Destronando a colheita

PARTE 3

CAPÍTULO 24 - A queda das cartas dobaralho

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PARTE 1

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CAPÍTULO 1 - Vindos daÁfrica

Há 2 milhões de anos, eles viviam naÁfrica e eram poucos. Eram seres quase hu-manos, embora tendessem a ser menores que seusdescendentes que hoje povoam o planeta. An-davam eretos e subiam montanhas com enormehabilidade. Alimentavam-se principalmente defrutas, nozes, sementes e outras plantas comestí-veis, mas começavam a consumir carne. Seus im-plementos eram primitivos. Se eram bem-suce-didos em dar forma a uma pedra, não iam muitolonge com a modelagem. É provável que usassemum pedaço de pau para defesa ou ataque, ou atémesmo para escavar, caso surpreendessem umroedor escondendo-se em um buraco. Não sesabe se construíam abrigos feitos de arbustos e depedaços de pau para se protegerem do vento friono inverno. Não há dúvida de que alguns

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moravam em cavernas - quando podiam ser en-contradas -, mas uma residência permanente teriarestringido bastante a necessária mobilidade paraencontrar alimento suficiente. Para viver do que aterra oferecia, precisavam fazer longas caminha-das a lugares onde sementes e frutas pudessemser encontradas. Sua dieta era resultado de umasérie de descobertas, feitas ao longo de centenasde milhares de anos. Uma das mais importantesestava em saber se uma planta, aparentementecomestível, não era venenosa; explorando novoslugares à procura de novos alimentos em temposde seca e carestia, alguns devem ter morrido porenvenenamento. Há 2 milhões de anos, essesseres humanos, conhecidos como hominídeos,viviam principalmente nas regiões dos atuaisQuênia, Tanzânia e Etiópia. Se dividirmos aÁfrica em três zonas horizontais, a raça humanaocupava a zona central, ou zona tropical, con-stituída principalmente de pastos. Uma mudançano clima, cerca de um ou dois milhões de anosantes, que fez com que em certas regiões os

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pastos tenham substituído boa parte das florestas,pode ter incentivado esses hominídeos a, gradual-mente, descendo das árvores, deixar a companhiade seus parentes, os macacos, e passar maistempo no chão. Eles já acumulavam uma longahistória, embora não tivessem nenhuma memóriaou registro disso. Falamos hoje do grande espaçode tempo que se passou desde a construção daspirâmides do Egito, mas esse período representaum simples piscar de olhos se comparado à longahistória que a raça humana já viveu. NaTanzânia, descobriu-se um registro primitivopelo qual se conclui que dois adultos e uma cri-ança caminhavam sobre cinza vulcânica amol-ecida por uma chuva recente. A seguir, suaspegadas foram cozidas pelo sol e, aos poucos, fo-ram cobertas por camadas de terra; as pegadas,definitivamente humanas, têm pelo menos 3,6milhões de anos. Até mesmo isso é consideradoum fato recente na história do mundo contem-porâneo: os últimos dinossauros foram extintoshá cerca de 64 milhões de anos.

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No leste da África, os primeiros humanoscostumavam acampar às margens dos lagos e dosleitos arenosos de rios ou em campinas: nesseslocais, foram encontrados alguns restos deixadospor eles. Conseguiam adaptar-se a climas maisfrios e, na Etiópia, preferiam os planaltos abertos,a uma altitude de 1.600 ou 2.000 metros acimado nível do mar. Nas florestas sempre verdes dasregiões montanhosas, também sentiam-se emcasa; sua adaptabilidade era impressionante. Demodo geral, na impiedosa competição por sobre-viver e multiplicar-se, os humanos tiveram su-cesso. Nas regiões da África que habitavam,eram em número bem menor que as espécies degrandes animais, alguns deles agressivos; aindaassim, os humanos prosperaram. Talvez as popu-lações tenham se tornado muito numerosas paraos recursos disponíveis na região ou tenha havidoum longo período de seca, e isso os tenha levadopara o norte. Há forte indício de que, em algummomento dos últimos dois milhões de anos, elestenham começado a migrar mais para o norte. O

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maior deserto do mundo, que se estende donoroeste da África para além da Arábia, pode,por algum tempo, ter impedido seu avanço. A es-treita faixa de terra entre a África e a Ásia Men-or, contudo, podia ser facilmente atravessada.Moviam-se em pequenos grupos: eram explor-adores e colonizadores. Em cada região descon-hecida, tinham de adaptar-se a novos alimentos eprecaver-se contra animais selvagens, cobras einsetos venenosos. Os que abriam caminho con-seguiam uma certa vantagem, pois os seres hu-manos, adversários implacáveis dos invasores deterritório, não estavam lá para atrapalhar seucaminho.

Era mais uma corrida de revezamento doque uma longa caminhada. É possível que umgrupo de talvez 6 ou 12 pessoas avançasse umapequena distância e decidisse se estabelecernaquele lugar. Outros vinham, passavam porcima delas ou impeliam-nas para outro lugar. Oavanço pela Ásia pode ter levado de 10 mil a 200mil anos. Montanhas tinham de ser escaladas;

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pântanos, vencidos. Rios largos, gelados e deforte correnteza tinham de ser atravessados. Seráque eles atravessavam esses rios em seus pontosmais rasos, nas estações muito secas, ou nos pon-tos mais próximos às nascentes, antes que o leitose tornasse largo demais? Será que os explor-adores sabiam nadar? Não sabemos as respostas.A noite, em terreno desconhecido, era preciso se-lecionar um abrigo ou um lugar com um mínimode segurança. Sem a ajuda de cães de guarda, ca-bia a eles manter vigilância sobre animaisselvagens que vinham caçar durante a noite. Nodecorrer dessa longa e lenta migração, a primeirade muitas na história da raça humana, esses pov-os originários dos trópicos avançaram para ter-ritórios bem mais frios, jamais conhecidos porqualquer de seus ancestrais. Não se sabe ao certose conseguiam aquecer-se ao fogo nas noites fri-as. É provável que quando um raio caía nas prox-imidades, ateando fogo à vegetação, eles apan-hassem um galho em chamas e o transportassempara outro lugar. Quando o galho estava quase

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todo queimado e o fogo por se extinguir,juntavam-lhe outro galho. O fogo era tão valiosoque, uma vez obtido, era tratado com desvelo;ainda assim, o fogo podia extinguir-se pordescuido, apagar-se sob uma chuva forte ou porfalta de madeira seca ou gravetos. Enquanto con-seguiam manter o fogo, devem tê-lo levado emsuas viagens como um objeto precioso, comofaziam os primeiros nômades australianos. A ha-bilidade de produzir fogo, em vez de obtê-lo aoacaso, veio bem mais tarde na história humana.Com o tempo, os humanos conseguiram produziruma chama através do atrito e do calor provoca-dos ao esfregarem-se dois pedaços de madeiraseca. Podiam, também, triscar um pedaço de pir-ita ou outra rocha adequada e, assim, provocaruma faísca. Em ambos os processos, eram ne-cessários gravetos muito secos e o domínio daarte de soprar delicadamente sobre os gravetosem chamas. O emprego habilidoso do fogo, res-ultado de muitas idéias e experiências durantemilhares de anos, é uma das conquistas da raça

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humana. A genialidade da maneira com que eraempregado pode ser vista na forma de vida quesobreviveu até o século 20, em algumas regiõesremotas da Austrália. Nas planícies desanuviadasdo interior, os aborígines acendiam pequenasfogueiras para enviar sinais de fumaça, umaforma inteligente de telégrafo. Usavam o fogotambém para cozinhar, para se aquecer e paraforçar os animais a sair das tocas (enchendo-as defumaça). O fogo era a única iluminação à noite,exceto quando uma lua cheia lhes dava luz parasuas cerimônias de dança. Era usado para endure-cer os pedaços de pau usados para cavar, paramodelar madeira com a qual eram feitas as lançase para cremar os mortos. Era usado, ainda, paragravar marcas cerimoniais na pele humana e paraafastar as cobras do capim perto dos acampamen-tos. Era um eficaz repelente de insetos e erausado por caçadores para queimar o capim emsistema de mosaicos em certas ocasiões do ano e,assim, incentivar novo crescimento, quandoviessem as chuvas. Eram tão numerosos os usos

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do fogo que, até recentemente, foi a ferramentade maior utilidade da raça humana.

Hoje, os humanos possuem armas quefazem com que as garras e os dentes de um anim-al pareçam insignificantes. Por muito tempo, en-tretanto, foi a raça humana que esteve em des-vantagem: fisicamente, era menor e mais leveque muitos dos animais que habitavam as redon-dezas e incomparavelmente menos numerosa quecada rebanho de grandes animais. Todo o contin-gente humano de cada região era pequeno, secomparado ao das outras espécies. Na Ásia, ogrande mamute de chifres recurvos, uma espéciede elefante, deve ter excedido em muito onúmero de humanos, que eles viam ocasional-mente, enquanto pastavam. O perigo de ataque deanimais selvagens era constante. Há poucos anos,em 1996, 33 crianças foram fatalmente atacadaspor lobos, em um Estado da Índia. Na África, osleopardos e os leões devem ter sido temidos peloshumanos. Obviamente, cada pequeno avanço nacapacidade de organização humana foi uma ajuda

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vital para a autodefesa, principalmente à noite.Sem a habilidade de cooperação contra o in-imigo, é possível que os primeiros humanos a searriscarem em novas áreas tropicais tenham sidofacilmente eliminados por predadores. Em certoslugares, é possível que o pelotão de frente, com-posto por menos de uma dúzia de indivíduos,tenha sido logo dizimado. Há cerca de 1,8 milhãode anos, o pelotão de frente desse movimentochegou à China e ao Sudeste Asiático. Pouco sesabe sobre a longa série de viagens feitas pelaraça humana, embora muito ainda possa ser des-vendado por arqueólogos e pré-historiadores nopróximo século. Habitantes do interior em sua es-sência, esses humanos provavelmente tardaramem estabelecer-se ao longo do litoral, levandoainda mais tempo para dominar as águas, mesmoas mais rasas.

Em escavação recente, feita numa ilha maisafastada do arquipélago da Indonésia, revelaram-se resquícios de habitação humana, remontando amais de 800 mil anos. Os resquícios descobertos

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no antigo leito de um lago na ilha montanhosa deFlores provaram, sem qualquer sombra dedúvida, que os humanos tinham aprendido a con-struir embarcações e a conduzi-las mar adentro:as embarcações a vela ainda levariam muitotempo para aparecer. Para chegar à ilha de Flores,tiveram de fazer uma travessia marítima ousadarumo ao leste, partindo da ilha mais próxima.Mesmo que o nível do mar estivesse em seuponto mais baixo, a distância percorrida em barcoou bote pequeno, partindo dessa ilha mais próx-ima, deve ter sido de pelo menos 19 quilômetros.Talvez essa tenha sido a viagem marítima maislonga até então. Algo como a primeira viagem àLua no século 20, no sentido de que excedia to-das as viagens anteriores.

Aqui e ali ainda podem ser encontradostraços da vida cotidiana desses exploradores ecolonizadores pioneiros. Perto de Pequim, em umacampamento humano, camadas de cinza ecarvão vegetal foram recentemente descobertasatravés de cuidadosas escavações. Essas

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fogueiras de acampamento permaneceram in-tactas por talvez 400 mil anos e continham osrestos de uma refeição: o osso calcinado de umveado e cascas de nozes de árvores encontradasnaquela região.

Um despertar

No espaço de vários milhões de anos, oshumanos tinham se tornado mais adaptáveis, mu-nidos de mais recursos. O cérebro humano estavacrescendo em volume. Enquanto ocupava cercade 500 centímetros cúbicos nos primeiros hu-manos, chegou a 900 na espécie humana cha-mada Homo erectus, que levou a cabo a longamigração. Em algum ponto entre os últimos 500mil e 200 mil anos, o cérebro sofreu novamenteum crescimento notável em volume; esseaumento foi um dos grandes acontecimentos nahistória das mudanças biológicas.

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A estrutura do cérebro também vinhamudando e caracterizava-se por uma "área mo-tora e uma área da fala". Um cérebro maior pare-cia estar associado a uma crescente habilidadeem usar as mãos e os braços e ao lento surgi-mento de uma linguagem falada. Um crescimentotão substancial no tamanho do cérebro dequalquer espécie é um acontecimento de grandeimportância. Como isso aconteceu, porém, é umgrande mistério; uma das possíveis causas foi ouso cada vez maior da carne na alimentação. Épouco provável que a raça humana, nesse estágio,possuísse as armas ou as habilidades necessáriaspara matar animais selvagens de qualquertamanho. Possivelmente, as refeições de carneprovinham da crescente coragem de revirar ascarcaças de animais recém-abatidos, enquanto orebanho ou a manada principal pastava não muitolonge do local, ou provinham da crescente habil-idade de caçar animais menores que não ap-resentavam perigo, mas que não eram fáceis decapturar. É provável que, no decorrer do tempo,

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os ácidos graxos encontrados na carne tenhamsofisticado o cérebro e seu funcionamento; alongo prazo, essa vantagem possibilitou aos hu-manos vislumbrar melhores maneiras de caçaranimais. Tudo isso, porém, é apenas especulação.

A linguagem falada adquiria mais palavrase mais precisão. As belas-artes surgiam junta-mente com o ato de comunicar-se através da fala,apoiando-se no uso de símbolos que podiam serdetectados pelo ouvido e pela visão. A habilidadede inventar símbolos e de reconhecê-los foi res-ultado do lento desenvolvimento do cérebro;talvez um desenvolvimento da laringe humanatambém tenha ajudado a expressar esses símbolosna forma de sons.

Apesar dos avanços obtidos no estudo damente nos últimos 50 anos, ainda há muito queexplorar sobre o cérebro e a fala humanos. Naspalavras de um médico especialista, em umaatividade complexa como a fala "a interação daspartes do cérebro não se assemelha ao sistema de

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uma máquina, mas, sim, a uma colcha de retal-hos". Seja qual for sua origem, a fala é a maior detodas as invenções.

Há cerca de 60 mil anos, surgiram sinais deum despertar da humanidade. Recuando notempo, os pré-historiadores e arqueólogos col-heram evidências de uma lenta sucessão demudanças que, nos 30 mil anos seguintes,chegaram a merecer descrições, tais como "OGrande Salto" ou "A Explosão Cultural". Hámuita controvérsia sobre quem teria dado essesalto e quem teria provocado essa explosão.Provavelmente, as mudanças estiveram a cargode um novo grupo humano que surgiu na África edepois emigrou para a Ásia e a Europa, onde co-existiu com o homem de Neanderthal, uma es-pécie que mais tarde viria a desaparecer. O que édigno de nota é a existência da criatividade hu-mana em várias frentes. A fala de centenas degerações de pessoas que viveram durante essedespertar está adormecida e perdida no tempo,mas parte de suas artes e ofícios sobrevive em

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fragmentos ou intacta. As artes floresceram naEuropa durante a longa era glacial, que teve iní-cio cerca de 75 mil anos atrás. Evidências quechegaram até nossos dias sugerem que muitoshumanos esperavam renovar sua existência emuma vida após a morte; a viagem para essa novavida requeria acessórios ou indicativos do statusde cada um, e os itens escolhidos eram arranjadosao redor do corpo no túmulo. Em Sunghir, naRússia, cerca de 28 mil anos atrás, um homem deaproximadamente 60 anos de idade teve seucorpo adornado com mais de dois mil fragmentosde marfim e de outros ornamentos. Atingir 60anos de idade deve ter sido algo digno de vener-ação, pois a maioria dos adultos morria muitomais cedo.

Em outro túmulo, enterrada ao lado de umhomem, uma adolescente fora vestida com umchapéu de contas e um provável manto, do qual oúnico vestígio é um alfinete de marfim que o ter-ia prendido ao pescoço da menina. Seu corpo es-tava coberto com mais de cinco mil contas e

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outros enfeites. O longo tempo que os amigos oua tribo inteira levaram para preparar essas decor-ações e o cuidado que tiveram para arrumar otúmulo são um sinal de que a morte era tão im-portante quanto a vida.

Não raro, as pessoas desse mundo nômadedevem ter vivido uma grande incerteza. Estavamà mercê das estações climáticas, pois nãoarmazenavam grãos, nozes ou outros alimentoscom os quais pudessem enfrentar a fase inicial deum período de carestia. Em sua maioria, os abri-gos eram frágeis. Em algumas regiões, viviamlado a lado com tigres, leões, ursos, panteras, ele-fantes e outros animais de grande força e ferocid-ade. Deviam ansiar por segurança e consolação.Começaram, então, a criar religiões e objetos dedevoção e homenagem, assim como repres-entações do mundo a seu redor. As técnicas decaça foram aos poucos se desenvolvendo. Lascasde pedra em forma de pontas de lança, lâminas eoutros instrumentos de corte e de perfuração, su-periores a tudo o que já havia sido usado até

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então, eram produzidos às centenas de milharesno espaço de apenas um ano. Em vez de ir ao en-calço só de animais pequenos, os caçadores pas-saram a atacar animais de maior porte. NaAlemanha, caçavam-se elefantes; na França, oleopardo, por sua pele e por sua carne; na Itália,caçava-se o javali. O desenvolvimento das armasparece ter ensejado maior habilidade de organiza-ção. As armas e a habilidade humana de cooper-ação fizeram parte do mesmo despertar intelectu-al. Rebanhos de animais eram caçados e encur-ralados ou levados à morte em um precipício, oque dava lugar a grandes festas de carne. Écomum, hoje em dia, afirmar que os seres hu-manos naquela época viviam em harmonia com omeio ambiente e não matavam sem necessidadeou com imprudência, mas essa afirmação tem deser tratada com cuidado, devido à falta de provase conclusões.

Na Europa e na Ásia, onde quer que osuprimento de alimentos fosse favorável, acam-pamentos e vilas adquiriam feição mais

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permanente. As casas eram geralmente construí-das em encostas que ofereciam proteção contraos ventos gelados. Uma pequena escavação cir-cular criava um espaço plano que servia de chãofeito de ardósia, e troncos de madeira sustinhamo telhado, que era recoberto com pele de cavalosselvagens e de outros animais. Vinda da fogueira,no centro do único e amplo cômodo, a fumaçasaía por uma pequena abertura no telhado.

No mundo inteiro, as pessoas viviam umavida seminômade. Cada pequeno grupo de pess-oas, raramente chegando a 20, ocupava umgrande território. No decorrer de um ano, mu-davam sistematicamente de lugar, sem carregarnenhum pertence e fazendo uso da variedade dosalimentos da estação: uma uva madura aqui, umaplantação de tubérculos ali, um ninho com ovosde pássaros mais adiante, uma noz que amadure-cia acolá. Desde que a população fosse pequena eos recursos naturais fossem muitos, as pessoasviviam em relativa abundância.

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É possível que, às vezes, vários grupos seencontrassem a cada ano em lugares com farturade alimentos, mas as grandes reuniões devem tersido uma raridade. No mundo inteiro, é possívelque em nenhuma época, por exemplo, antes de20000 a.C, mais de 500 pessoas tenham se re-unido em um mesmo local. Até mesmo suas re-uniões deviam ser temporárias. Como não cul-tivavam e não criavam animais, não podiamprover com alimentos uma grande reunião depessoas por muito tempo.

Uma tribo ou grupo de pessoas que estavaconstantemente em movimento não podia tratarcom eficácia dos doentes e dos que nãoaguentavam realizar longas caminhadas. Até be-bês gêmeos eram um grande transtorno e,provavelmente, um dos dois era morto. Os maisidosos, que já não podiam andar, eram deixadospara trás para morrer. Uma sociedade em movi-mento não tinha outra alternativa.

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O colombo negro

Todas as manhãs, quando o sol aparecia noLeste Asiático, as pessoas podiam ser vistas ematividade: colocando lenha no fogo, amament-ando as crianças, saindo para colher nozes oucapturar animais selvagens, raspando a parte in-terna da pele dos animais para com ela fazeremvestimentas ou tirando lascas das rochas paracom elas modelarem suas ferramentas. As mes-mas cenas, provavelmente, podiam ser testemun-hadas em dezenas de milhares de locais à medidaque os primeiros raios de sol se moviam paraoeste, por toda a Ásia e depois por toda a Europaaté o Atlântico. Atividades semelhantes podiamainda ser vistas na África, onde os humanos ocu-pavam uma área cada vez maior. Cerca de 100mil anos atrás, a área ocupada pela raça humanaera extensa, mas uma grande parte do globo per-manecia desabitada pelo homem. Os animais dasAméricas nunca tinham ouvido a voz humana ouvisto uma lança. Na Austrália e na Nova Guiné,

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que formavam um continente único, não haviapegadas humanas. As ilhas mais distantes eraminacessíveis. No Oceano Pacífico, a maioria dasilhas hoje habitadas era desconhecida dos sereshumanos: Havaí e Ilha de Páscoa, Taiti e Samoa,Tonga e Fiji, além das grandes ilhas da NovaZelândia. No Oceano Indico, a grande ilha deMadagáscar, de clima relativamente quente,nunca vira uma fogueira e, nas remotas ilhas vul-cânicas de Maurício e Reunião, o estranho pás-saro dodó, que não voava, não era ainda perturb-ado pelos seres humanos. No Oceano Atlântico,ao norte do Equador, os Açores e a Ilha daMadeira eram desabitados. A Groenlândia e aIslândia estavam permanentemente cobertas degelo, e os pássaros das Antilhas estavam total-mente a salvo dos caçadores humanos.

A raça humana, na verdade, estava con-finada a apenas uma massa de terra, cuja áreatotal desocupada era imensa. A área dessas terrashabitáveis, mas desocupadas, era equivalente àÁsia, ao deserto do Saara e ao norte da África,

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juntos. Várias viagens de descobrimentocomeçavam a ser realizadas. Os humanos es-tavam assumindo a tarefa de uma segunda longamigração. Entre as margens mais próximas doSudeste Asiático, que na época incluía Java, e olitoral mais próximo da Nova Guiné Austrália,havia oito barreiras marítimas. A maioria delaseram pequenas passagens ou estreitos, com amargem oposta visível do ponto de partida. Apassagem mais larga teria cerca de 80 quilômet-ros. Os pioneiros, usando botes ou pequenascanoas, ocasionalmente se aventuravam a ir deuma ilha a outra mais próxima - desde que amargem oposta fosse visível. Mas, se o ventosoprasse muito forte, sua frágil embarcaçãoficaria alagada e todos a bordo pereceriamafogados. A travessia desse mosaico de mares eilhas situados entre a Ásia, a oeste, e a NovaGuiné Austrália, a leste, se estendeu por milharesde anos. Em algumas ocasiões, ela foi suspensapor até 10 mil anos. Uma ilha era descoberta epovoada e, logo em seguida, outro barco ou bote

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encontrava, acidental ou intencionalmente, outrailha. Finalmente, sem a mínima idéia da im-portância da descoberta, a raça humana atracouna Nova Guiné

Austrália. Não havia motivo para imaginarque um novo continente tivesse sido descoberto.Não se sabe quando o descobridor, com extremadificuldade, chegou à nova terra, mas é quasecerto que tenha sido há mais de 52 mil anos.

O novo continente era uma surpresa, umenigma e, às vezes, um terror. Não havia animaisperigosos, mas muitas das cobras e algumas dasaranhas eram extremamente venenosas. Aos pou-cos, os recém-chegados foram explorando o con-tinente: cada estuário, cada montanha, cadaplanície e cada deserto. Caminhando por terra atéa Tasmânia, eles cozinhavam em cavernas aolongo das margens dos rios no que era, na época,uma tundra e que é hoje uma floresta tropical.Esses novos habitantes da Tasmânia eram os queviviam mais ao sul do globo. Foi um verdadeiro

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testemunho da adaptabilidade do ser humano,que havia se originado nos trópicos, mudado parao norte, seguido para leste e estava agora a meiocaminho do Pólo Sul.

Na última fase desse lento movimento depovos, originado na África e estendendo-se muitoalém, o desenvolvimento da linguagem foi umdos triunfos. Os dialetos e as línguas se multipli-caram. Mesmo em uma vasta região, onde todos,na época da colonização inicial, provavelmenteemitiam sons semelhantes, as línguas divergiram.Os grupos viviam em relativo isolamento e, as-sim, suas línguas evoluíram de acordo compadrões diversos. Provavelmente, já existiammilhares de línguas diferentes quando teve inícioum novo evento geográfico que, separando per-manentemente diversos povos uns dos outros,multiplicou ainda mais o número de línguas.

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CAPÍTULO 2 - Quandoos mares começaram asubir

Em 20000 a.C, a raça humana estava con-finada a um continente maciço. Europa e África,Ásia e América não eram separadas por mares, eessa única massa de terra era palco de quase to-das as atividades humanas. A Austrália e a NovaGuiné juntas formavam uma segunda massa deterra habitada, mas contavam com menos de 5%da população mundial. Havia outra característicacuriosa dessa população: estava quase inteira-mente confinada às zonas tropical e temperadas;as áreas mais frias do mundo eram praticamentedesabitadas. Nessa época, as temperaturas em to-dos os lugares eram muito mais baixas do que asde hoje. As geleiras eram ativas e muito extensas,mesmo no sul da Austrália, enquanto no Hemis-fério Norte uma enorme área era coberta de gelo

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durante quase todo o ano. A Finlândia, a Suécia euma boa parte da Irlanda, que na época não erauma ilha, eram terras sem proveito. Nas partesaltas da Europa Central, havia uma área bemmaior que a da atual Suíça completamente re-coberta de gelo. Alguns dos atuais balneários daEuropa Ocidental, em cujas praias multidões depessoas hoje se banham durante o verão, eramuma paisagem desolada, com gelo flutuandosobre a água, mesmo em alto verão. A maioriados atuais balneários ficava longe do mar. AAmérica do Norte era praticamente uma terra degelo. Quase todo o atual Canadá ficava debaixode uma camada compacta de neve. Uma enormeextensão do que hoje são os Estados Unidos, umaárea talvez equivalente à metade da área ocupadapor sua população atual, ficava debaixo de geloquase permanente. Partes da América Central,que no século 20 nunca viram neve, eram atingi-das por nevascas. Nos pontos mais altos do ladooeste da América do Sul, a neve cobria umaenorme área, mesmo durante o verão. Na maioria

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das regiões desabitadas do mundo, o calor doverão era menos intenso e os níveis de chuvas ede evaporação eram diferentes dos atuais. Para osseres humanos como um todo, entretanto, esseclima oferecia uma vantagem, pois terras secas seestendiam por vastos territórios que atualmentese encontram submersos. Como os oceanos tin-ham níveis muito baixos de água, era possível aum homem caminhar do sul da Inglaterra até aFrança e continuar andando, se não fosse impe-dido por outros humanos, até chegar a Java. Umjavanês fisicamente preparado poderia ir andandopor uma rota incerta rumo ao norte da Ásia e at-ravessar um istmo de terra para chegar ao inex-plorado Alasca. Naquele período, Java não erauma ilha, mas parte da Ásia. Lugares que são ho-je os portos marítimos mais movimentados domundo situavam-se sobre terra seca ou nas mar-gens de rios que ficavam distantes do mar aberto.Naquela época, os locais onde hoje estão as cid-ades de São Francisco, Nova York e Rio deJaneiro não podiam ser alcançados por mar. As

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pessoas viviam próximas a Xangai e Calcutá,Cingapura e Sydney sem nunca terem visto omar, que se achava a enorme distância dessespontos.

Muitos estreitos marítimos, hoje consid-erados estratégicos e que dia e noite movimentamnavios cargueiros e petroleiros, eram simples-mente extensões de campinas ou florestas. Os es-treitos de Dardanelos e de Bósforo, de Gibraltar ede Málaca, de Sunda e de Torres são apenas al-guns dos caminhos marítimos, hoje movimenta-dos, que não existiam na época. Certos mares dehoje e muitos dos grandes golfos tampouco exis-tiam ou seus formatos eram muito diferentes. OMar Negro era um lago profundo sem saída parao Mediterrâneo. O Mar Báltico não desembocavano Mar do Norte; grandes braços de mar, como oatual Golfo Pérsico, eram terra seca.

Por volta de 50000 a.C, uma grandemudança começou a ocorrer, ainda que de formalenta. Os verões e invernos tornaram-se

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gradativamente mais quentes. As geleiras recuar-am um pouco. As pessoas mais idosas, cujasmemórias serviam como repositório de inform-ações, devem ter comentado com os mais jovensque alguns tipos de flores e árvores da primaverapareciam estar brotando um pouco mais cedo quede costume. O degelo acelerou-se entre 12000a.C. e 9000 a.C. Em muitas partes habitáveis domundo, a mudança climática deve ter sidonotável, mesmo para o período de vida de umlongevo. As pessoas que viviam no litoral not-aram mais uma mudança: o mar estava subindo, eisso vinha ocorrendo antes mesmo de o clima setornar nitidamente mais quente. Muitos habit-antes das vilas próximas ao mar temiam que suascasas fossem alagadas um dia; alguns viviam soba expectativa desse dia. Ninguém entendia acausa desse estranho acontecimento, emboraprovavelmente tivesse as próprias explicações.Não tinham meios de saber que as grandes áreasgeladas em ambas as extremidades do globo es-tavam lentamente derretendo e que o degelo

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estava fazendo subir o nível dos mares. Com amudança climática, vieram as alterações na vazãodos grandes rios. Na África, por volta de 10000a.C, a água do Lago Vitória começou a correrpara o Rio Nilo e, a partir de então, o Nilotornou-se o rio mais longo do mundo. No leste eno oeste da Ásia, o aumento na vazão dosgrandes rios deve ter tido efeitos profundos. Amaioria dos longos rios asiáticos dependia do de-gelo no alto das montanhas da Ásia Central e,como o verão tornou-se mais acentuado, a vazãode alguns rios deve ter aumentado substancial-mente. O fluxo de sedimentos finos depositadosao longo de rios, como o Ganges, o Amarelo eoutros, era, em parte, resultado do aumento novolume dessa água de degelo. As planícies doentorno, cobertas de sedimentos, acabariam portornar-se o berço do que hoje chamamos decivilização.

Durante algum tempo, o norte da África at-raiu colonizadores humanos. Em parte das terrasáridas, por volta de 7000 a.C, a precipitação

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anual de chuvas era três vezes mais acentuada doque a de hoje. Lagos e pântanos pontilhavam oSaara. As pessoas podiam percorrer váriostrechos da região e não ver nada além de campi-nas ou espécies de bosques, onde inúmerasárvores ofereciam sombra. A população do norteda África deve ter aumentado rapidamente dur-ante os séculos mais favoráveis. Em seguida,sobreveio um período de seca e, a partir de 3000a.C, aproximadamente, o homem começou a fu-gir dos desertos que se expandiam cada vez mais.

A elevação do nível dos mares estava quasecompleta por volta de 8000 a.C. Ao todo, osmares tinham subido até 140 metros: uma alturade 116 metros é uma avaliação frequente. Essefoi o evento mais extraordinário na história hu-mana durante os últimos 100 mil anos - muitomais decisivo do que a invenção da máquina avapor, a descoberta das bactérias, a ida à Lua ou,na verdade, do que o somatório de todos os even-tos do século 20. A elevação do nível dos mares

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desencadeou uma grande transformação na vidahumana e uma explosão populacional.

No Sudeste Asiático, à medida que osmares subiram, o antigo litoral, na maioria doslugares, tornou-se irreconhecível e deixou de serlitoral. No entanto, nenhum litoral foi tão al-terado quanto o do continente que abrangia aNova Guiné e a Austrália. O clima tropical daNova Guiné, com suas altas montanhas, foiafetado de modo marcante. Nessas montanhas, alinha de neve durante o inverno costumava des-cer até 3.600 metros. Com a elevação das temper-aturas, entretanto, a linha de neve recuou mais demil metros sobre as encostas das montanhas. Nasterras mais altas, o clima se tornou muito mais fa-vorável à agricultura. A Nova Guiné não perdeupelo fato de os mares terem se elevado: a porçãode terra que foi submersa pelas águas foi com-pensada pela terra que surgiu com o degelo e peladiminuição dos ventos frios. Com a elevaçãocontínua do nível dos mares, a Nova Guiné

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finalmente se separou da Austrália, formando-se,assim, o Estreito de Torres.

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A Austrália foi particularmente remodeladapela elevação do nível dos mares, pois era o maisplano dos continentes. Talvez um sétimo de suasterras secas foi, aos poucos, sendo submergido,enquanto os habitantes do litoral observavam,sem muito que fazer. Ao final desses notáveisacontecimentos, as tribos australianas que um diaviveram a até 500 quilômetros do oceano podiamouvir, em noites de tempestade, um som descon-hecido e lúgubre, o barulho das ondas. No ex-tremo sul do continente australiano, o mar invas-or criou uma fenda, e a Tasmânia acabou por setornar uma ilha. Esse estreito divisor tornou-secada vez mais largo e mais chuvoso, e as pessoasda ilha ficaram totalmente isoladas no que setornou talvez a mais longa segregação de que setem notícia. De fato, as características dos tas-manianos foram bastante alteradas durante olongo período de isolamento; passaram a ap-resentar cabelos crespos e se tornaram geral-mente menores do que os aborígines dos quaisdescendiam.

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A Austrália continental, ao contrário daTasmânia, não estava completamente isolada.Um conjunto de ilhas bem próximas umas dasoutras a ligavam à Nova Guiné e, de tempos emtempos, os dois povos separados pelo estreitomar engajavam-se no comércio. Mas, na verdade,esse estreito espaço, por razões não esclarecidas,serviu de grande vala ou barreira por milhares deanos. Do lado da Nova Guiné, surgiu uma formade vida baseada em grandes plantações, cultivode alimentos, uma população muito mais densa euma organização política e social diferente. Dooutro lado, os australianos permaneceram col-hendo e caçando, organizados em pequenosgrupos nômades e vivendo sistematicamente daterra. Não há dúvida de que, se os mares nãotivessem subido e se a Austrália e a Nova Guinétivessem continuado parte do mesmo continente,com ligações ao longo de uma vasta extensão, ahistória recente da Austrália teria mais a ver coma história da Nova Guiné. Quando o isolamentofoi finalmente rompido com a chegada dos

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ingleses a Sydney, em 1788, o choque e a desor-dem causados ao modo de vida peculiar dos aus-tralianos foram muito marcantes.

As Américas esquecidas

O continente americano havia sido recém-descoberto pela raça humana quando os marescomeçaram a subir. Os primeiros humanosprovavelmente atravessaram o espaço entre aSibéria e o Alasca em algum momento antes de22000 a.C. Os dois continentes eram unidos porum frio corredor de terra e, no verão, a travessianão pode ter sido tão difícil. Na verdade, é pos-sível que caçadores e suas famílias simplesmentetenham atravessado esse corredor à procura deanimais, achado o outro lado mais atraente e de-cidido ficar. De fato, eles foram os descobridoresde um novo continente e com direito a um lugarespecial na história, mas - até onde sabiam - es-tavam simplesmente realizando seu trabalho

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normal de cada dia. Certamente, várias levas depessoas atravessaram esse corredor e desceram acosta oeste até chegar ao México, de clima maisquente. Sua presença no México, por volta de22000 a.C, pode ser comprovada pelos preciososartefatos feitos de pedras de obsidiana deixadasem seus acampamentos. Grandes animais pas-tavam nas campinas, fazendo delas o paraíso doscaçadores. Bisões, mamutes, mastodontes,cavalos e camelos dividiam a paisagem e nãosabiam que caçadores habilidosos estavam acaminho. Caças pequenas, como coelhos e vea-dos, podiam ser capturadas aos milhões, e novasplantas comestíveis eram encontradas emabundância. Quando o inverno se aproximava, osnovos habitantes tinham acesso a mais peles ecouros de animais do que poderiam usar.

A população da América aumentava, emuitas escavações de acampamentos humanosapontam para uma rápida disseminação dos po-voamentos por volta de 11000 a.C. Atravessandoo istmo do Panamá, o homem primitivo chegou à

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América do Sul, com poucas barreiras impedindoo seu movimento, até que o gelo permanente noextremo sul fosse avistado. Aí, então, os maresque subiam sem aviso começaram a separar asAméricas do restante do mundo. Por volta de10000 a.C, o corredor de terra que ia da Ásia aoAlasca, o único portão de entrada para asAméricas, foi cortado pela elevação dos mares.Formava-se o Estreito de Bering e, durante algumtempo, o mar no novo estreito se congelava, per-mitindo caminhar sobre o gelo; ainda assim, esseponto de travessia era perigoso quando o clima setornava mais ameno. Quase todo o contato entreas Américas e o mundo externo foi interrompidoe, talvez por mais de 10 mil anos, reinou o silên-cio. Pássaros migratórios viajavam entre os doiscontinentes, mas as pessoas viviam isoladas. Porfim, os habitantes das Américas acabaram pordesconhecer o lugar de suas origens. Em seu pro-longado isolamento da Ásia, contudo, asAméricas não ficaram estagnadas. Os humanosrapidamente penetraram cada pedaço de terra

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habitável. Aos poucos, ramificaram-se em váriosmodos de vida: os caçadores inuítes no norte ge-lado, caçadores e extratores vagando pelo tam-bém gelado extremo sul, vários povos combin-ando atividades de caça e lavoura em diversaspartes da América do Norte e do Sul, enquantoalgumas tribos viviam com abundância de salmãoe do trabalho escravo, ao longo dos rios Fraser eColúmbia, no Noroeste. Mesmo antes de 2000a.C, as Américas possuíam uma enorme diversid-ade de atividades econômicas e de culturas.

No fim do século 20, surgiu a idéia de que,de alguma forma, a Floresta Amazônica, isoladae impenetrável, havia praticamente escapado dainterferência humana. Com o respeito cada vezmaior pela natureza em muitos cantos do mundoocidental, a Floresta Amazônica em geral é con-siderada um prodígio. Ali, a natureza primitiva sepreserva em toda a sua glória vulnerável: umaenorme bacia verde banhada por um majestosorio silencioso. Até mesmo o Rio Amazonas é ho-je conhecido por sua extraordinária história

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humana durante o longo período em que asAméricas foram separadas da Europa e da Ásia.Os trabalhos de cerâmica mais antigos em todasas Américas foram feitos não na América Centralou do Norte, mas na floresta tropical da BaciaAmazônica, antes de 5000 a.C. Há também evid-ências de que o milho, o cereal milagroso, foiprimeiramente cultivado pelos plantadores da re-gião. Curiosamente, a diversidade biológicadessa região é geralmente mais impressionante,não na floresta virgem, mas nas áreas que foramcultivadas pelos plantadores pioneiros daAmazônia e que, agora, estão camufladas pornova vegetação.

Como as Américas, o Japão também foilançado num isolamento prolongado. Sua históriahumana era muito mais extensa do que a dasAméricas. O país havia sido ocupado há dezenasde milhares de anos antes de os mares começar-em a subir. Uma das regiões habitadas mais friasdo mundo, seus picos cobertos de neve há muitose sobrepunham a imensas áreas de florestas.

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Com os texugos, lebres e javalis estavam ostigres, panteras, ursos pardos, bisões, uma es-pécie de elefante e outros animais de porte, em-bora seu número estivesse diminuindo. A medidaque os mares começaram a subir, eles separaramas áreas povoadas do Japão, mais ao sul, e asconverteram em ilhas. O Estreito de Tsushima,que separa o Japão da Coréia, formou-se desdelogo. Quando afinal o Japão foi totalmente isol-ado, sua população era muito pequena, poucomenos de 30 mil pessoas, a maioria provavel-mente vivendo no litoral ou próximo dele, com omar fornecendo-lhes peixes, os vales e planíciesdando-lhes vegetais no verão. Pequenos gruposde pessoas mudavam de lugar para tirar melhorproveito das estações que, quando eram prolifer-as, causavam grande júbilo, mas tempos de es-cassez estavam por vir.

Para os japoneses, no que eles chamam deperíodo Jomon, a expectativa de vida era baixa,como para a maioria dos povos. Viver 45 anosera uma raridade e chegar aos 70, um milagre. A

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ossada de um homem de Yokohama, escavadaem 1949, foi estudada através de raio X,mostrando que, quando criança, ele às vezes pas-sou fome. Seus dentes, como o de tantas outraspessoas nômades, estavam desgastados e os mol-ares inferiores de um lado da boca estavam quasenivelados com a gengiva superior. O desgaste dosdentes foi acelerado pela prática de assar carnesobre pedras quentes ou a fogo aberto sobre aareia e, portanto, uma porção de carne geral-mente vinha salpicada de grãos.

Os japoneses da Ilha de Kyushu já faziamtrabalhos de grande beleza em cerâmica. Umapeça datada de 10500 a.C. é provavelmente maisantiga que qualquer cerâmica da China e, talvez,do mundo inteiro. Cerâmicas ainda mais antigasforam descobertas recentemente. No decorrer demilhares de anos, suas formas tornaram-se tão or-namentadas quanto as peças das civilizaçõesegípcia, grega e chinesa, das quais o Japão,devido ao seu isolamento e distância, não poderiater conhecimento.

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Por volta de 5000 a.C, algumas das casasou cabanas japonesas impressionavam quandocomparadas aos padrões da maioria das regiõesdo globo. Cavava-se um buraco, e as paredes dapequena casa de cerca de 4 metros quadradosficavam parcialmente dentro dele e parcialmenteacima da superfície do chão. Traves verticaissustentavam o telhado de sapé, feito com grama ejunco. Dentro de um espaço em que era possívelescutar um ao outro, podiam ser encontradasquatro ou cinco casas que, ao todo, abrigavamtalvez 15 pessoas. Em noites frias, o calor docorpo das pessoas amontoadas umas junto dasoutras provavelmente era responsável pela maiorparte do aquecimento, pois a fogueira era localiz-ada do lado de fora da casa. Cães pequenos erammantidos para caça e também para servirem decompanhia. Próximo ao local das casas, foramescavadas pequenas figuras de barro mostrandoseios e nádegas desproporcionais, possivelmenterepresentando estátuas sagradas que protegiam asmulheres nos trabalhos de parto. Os japoneses já

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cultivavam alimentos em alguns distritos. Muitosgrupos viviam parte do ano perto das florestas,onde se podia colher uma grande quantidade denozes, parte das quais era consumida e parte cul-tivada. Setembro, outubro e novembro eram osmeses para colher frutos secos, sendo os dacastanheira os primeiros a cair. Embora ascastanhas sejam menos nutritivas que os frutos danogueira, elas eram mais fáceis de conservarentre camadas de folhas colocadas em covas dearmazenagem nas proximidades ou dentro das ca-sas. Em contraste, os frutos do carvalho que sedesprendiam da árvore precisavam de tratamentocom água corrente para remover o ácido tânico;reduzidos a farinha fina pela ação de pedras trit-uradoras, os frutos do carvalho eram altamentesaborosos. A tarefa de socar e de moer essesfrutos - e de amassar barro para fazer potes - emgeral ficava com as mulheres. O constante exercí-cio tinha o curioso efeito de alongar suasclavículas.

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Com uma engenhosidade crescente naprodução de alimentos, a população do Japão em2000 a.C. devia exceder os 200 mil, fazendo daregião uma das mais densamente povoadas domundo. Nos padrões atuais, no entanto, o Japãoera uma selva esparsamente habitada.

O paradoxo do isolamento

Por milhares de anos, as pessoas queviviam nos territórios dos atuais Japão e EstadosUnidos eram bastante ou totalmente isoladas domundo externo. Sua experiência era poucocomum. Pode parecer que essas terras tenhamficado permanentemente afetadas por esse longoisolamento, ao mesmo tempo em que a Europa ea Ásia continuavam mudando rapidamente. Noentanto, as duas áreas, que uma vez estiveram tãoisoladas, são as grandes potências econômicas domundo de hoje. Talvez esse paradoxo tenha umaexplicação. O isolamento geográfico, mais cedo

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ou mais tarde, era um grande problema para to-dos os povos; mas, nos últimos 150 anos, o isola-mento geográfico se tornou um misto de bênção ede patrimônio. Em um mundo que encolhe cadavez mais, idéias, bens e pessoas podem facil-mente atravessar barreiras marítimas que eramimpenetráveis há 10 mil anos. Mas o mar ainda éuma barreira para os exércitos invasores. Para oJapão e os Estados Unidos, as barreiras marítimasdeixaram de ser uma desvantagem e se tornaramuma das principais forças, salvando-os de muitasinvasões e fazendo-os relutar em envolver-se emguerras dispendiosas que ocorriam longe de casa.A Europa chegou a se enfraquecer várias vezescom as guerras ocorridas em seu solo e nos maresnos últimos 150 anos. Conseguiu se recuperar,mas sua recuperação e influência global foramprejudicadas por divisões. Em contraste, duranteo mesmo período, nos Estados Unidos uma sóguerra eclodiu em seu solo; ainda assim, umaguerra civil, e não contra invasores. Se os Esta-dos Unidos, em 1800, estivessem situados na

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Europa, provavelmente nunca teriam se alçado aseu atual poder; nunca teriam tido sucesso numapolítica de isolamento. Da mesma forma, as prin-cipais ilhas do Japão, deparando-se com umasituação militar desesperadora durante os últimosmeses da Segunda Guerra Mundial, tampouco fo-ram invadidas naquela época. Na verdade, recon-hecendo a grande dificuldade de invadir o Japão,os Estados Unidos, em 1945, não tiveram quasenenhuma alternativa senão jogar as primeirasbombas atômicas na esperança de amedrontar osjaponeses, levando-os à rendição. Em essência,os fatores geográficos que tinham penalizado eisolado o Japão e a América do Norte após a el-evação do nível dos mares acabaram sendo umavantagem em certas situações.

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CAPÍTULO 3 - APrimeira RevoluçãoVerde

Na Síria e na Palestina, logo após os maresterem chegado a seu novo nível, uma pequena re-volução parecia estar começando. Ao contrárioda bem conhecida Revolução Industrial, ela foiincrivelmente lenta, e a força de seu impacto nãoseria sentida durante milhares de anos. Mas avida humana tomara um rumo do qual não haviacomo escapar. O vilarejo de Jericó era a vitrineda revolução por volta de 8000 a.C. Consistia depequenas casas de tijolos de barro, lá cultivandotrigo e cevada em minúsculos pedaços de terra.Esses cereais, que originalmente cresciam aermo, foram selecionados para cultivo porqueseus grãos eram grandes em comparação aos out-ros cereais silvestres e um grão maior era maisfácil de colher e de moer, sendo transformado em

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farinha integral rudimentar. Provavelmente, oshabitantes dos vilarejos preparavam a terra, sele-cionavam um tipo firme de semente que não sedespedaçava quando madura e plantavam as se-mentes de forma mais concentrada que a naturezao fazia. O grão, colhido com facas e foices depedra, era armazenado no vilarejo. Hoje, metadedas calorias do mundo vem de uma pequena var-iedade de cereais, os primeiros dos quais eramcultivados pelos habitantes desses vilarejos doOriente Médio. A princípio, os habitantes de Jer-icó e de outros vilarejos semelhantes não pos-suíam nenhum animal doméstico. A maior parteda carne que consumiam ainda vinha de gazelasselvagens e de outros animais e aves que eles di-ligentemente caçavam. Mas, nos cerca de 500anos que passaram tentando dominar o trigo, acevada e certas ervilhas e grãos de leguminosas,começaram também a criar cabras e ovelhas empequenos rebanhos, provavelmente nas proximid-ades dos vilarejos. Aí estava mais uma forma deprovisão de alimentos, pois o rebanho é um

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alimento. Evidências sugerem que as primeirasespécies de animais foram domesticadas inicial-mente em regiões distintas - ovelhas nas fronteir-as da atual Turquia e Iraque, cabras nas montan-has do Irã, gado no planalto da Anatólia. Ovelhase cabras viviam principalmente em rebanhos e,portanto, eram mais fáceis de domesticar, poisdomesticar um indivíduo da espécie significavadomesticar todos. Os primeiros humanos a do-mesticar ovelhas, cabras e bois e a mantê-los jun-tos em rebanhos provavelmente não foram osmesmos que iniciaram as primeiras plantações.Plantar trigo ou domesticar cabras requeria pelomenos uma dúzia de observadores, homens oumulheres com olhos bem atentos. É provável queos homens, que em geral eram os caçadores, ten-ham sido os domesticadores dos animais e que asmulheres tenham cultivado os primeiros cereais.Os cereais e o gado não coexistiam em harmoniainicialmente. Os primeiros lavradores não queri-am animais pastando perto de suas plantações,alimentando-se delas ou pisoteando-as. Nas

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pequenas fazendas e plantações, o trabalho diáriotinha de seguir uma programação mais rígida quenos dias de vida nômade. Se era hora de capinar,de cavar ou de semear, a oportunidade tinha deser aproveitada - ou poderia ser perdida. A novaforma de vida exigia uma disciplina e uma su-cessão de obrigações que contrastavam com aliberdade dos trabalhadores da colheita e doscaçadores. Não se sabe ao certo por que esse du-plo avanço teve lugar no mesmo ponto do Medi-terrâneo, mas a região realmente oferecia vant-agens. Mais para o interior, abundavam doiscereais que davam grãos particularmente grandese ali também habitavam ovelhas e cabras que, porserem pequenas e viverem em rebanhos, erammais fáceis de ser domesticadas que a maioriados grandes animais selvagens. Mas essas vant-agens e essa sorte, em si, não são suficientes paraexplicar as mudanças. Na história do mundo,oportunidades e sorte foram relativamente abund-antes, mas poucos foram aqueles que souberamaproveitá-las.

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Outros fatores moldaram o início dessanova forma de vida. A elevação dos maresalagando o litoral levou os povos para o interior,onde, como resultado, uma mistura de povos,idéias e hábitos se impôs. Além disso, o clima es-tava se tornando mais quente, fazendo com quecertas plantas e animais proliferassem. Os cereaiscertamente cresciam numa área maior que até en-tão. Os animais de porte, tradicionalmente umafonte vital de alimentos, estavam se tornandomais escassos e isso serviu de incentivo para quese domassem animais selvagens.

Por longos períodos, as tribos pioneiras queestavam ocupando plantações e criando rebanhostiveram de coexistir com os povos nômades. Essaconvivência impunha certa tensão. Em tempos defome, os nômades famintos eram tentados a ata-car os vilarejos vizinhos que mantinham estoquesde grãos e rebanhos de animais. Os habitantesdos vilarejos, por sua vez, fortificavam-se emantinham vigilância constante. Em maiornúmero e mais bem organizados - trabalhar na

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lavoura implicava organização -, estes geral-mente eram páreo para os nômades em qualquerluta.

O futuro estava com os novos fazendeiros epastores de rebanhos; ter acesso ao celeiro emtempos de fome era possuir um patrimônio quenenhuma outra tribo na era nômade poderia pos-suir. Durante a seca, o vilarejo que tivesse umbom estoque de grãos e um rebanho de ovelhasou cabras poderia sobreviver por mais tempo. Aspessoas podiam possuir ovelhas, mas, de certaforma, as ovelhas é que possuíam as pessoas,praticamente fixando-as ao vilarejo. Por isso, aforma de vida tradicional - a busca por alimentos,o saque e as alegrias das caçadas bem-sucedidas -ainda tinha um certo encanto. Era também umafonte segura de alimentos, principalmente naprimavera. Assim, milhares de anos depois dosurgimento da lavoura e da criação de animais,muitos vilarejos ainda dependiam mais da caça eda coleta de alimentos em pântanos, florestas eplanícies do que da nova fonte, proveniente de

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cereais, do leite e da carne. A disseminação dessanova forma de vida pelas margens do Mediter-râneo seria muito lenta. Em 7000 a.C, já seplantava, e as ovelhas e cabras se alimentavamsob a vigilância de seus donos na Grécia, na Sér-via e nos pequenos vales italianos, descendopelas encostas até o Mar Adriático. Em 5400a.C., os fazendeiros com seus paus de escavar es-tavam presentes no oeste da Escócia e no Ulster,província da atual Irlanda do Norte. Em 3000a.C, na Escandinávia, podiam ser vistos pequenostrechos de terra com plantações e rebanhos. Pelomenos 2 mil anos separaram as primeiras fazen-das da Grécia das primeiras fazendas próximasao Mar Báltico. Ao nos surpreendermos com esseavanço tão lento das fazendas e dos rebanhos portoda a Europa, um obstáculo deve ser lembrado.Florestas densas ou espaçadas cobriam 80% daEuropa; derrubar boa parte dessas florestas commachados de pedra - uma vez que o ferro eraainda desconhecido - e valendo-se de milhares de

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pequenas fogueiras exigia paciência e muito suor.Sair à procura de alimentos era muito mais fácil.

Enquanto isso, o gado havia sido levadopara várias partes do norte da África, indo desdeo Egito e Líbia até a Argélia. Enquanto a Áfricapraticamente importou seus primeiros animaisdomesticados e o cultivo de alimentos, ela do-mesticou o burro, um animal de carga, e apequena galinha-d'angola, que acabou sendo umdos pratos favoritos nas mesas do Egito Antigo e,mais tarde, de Roma. Os primeiros gatosdomésticos eram africanos e, mais tarde,tornaram-se guardiães fiéis dos estoques de grãosque atraíam os roedores. Os africanos também fo-ram os primeiros a cultivar o painço, tambémchamado de milho-miúdo, que era geralmentevisto como um grão inferior, e os primeiros aplantarem o sorgo, com seus grãos viçosos, juntocom arroz, inhame e azeite de dendê. Em todosos lugares, o cultivo do solo começou de formamuito rudimentar. A principal ferramenta de es-cavação era um pedaço de pau com a

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extremidade afiada e endurecida ao fogo. Essepedaço de pau enrijecido ao fogo figura entre asinvenções fundamentais na história da raça hu-mana - mais importante que o trator - e serviu aoslavradores em várias partes do mundo por mil-hares de anos.

Para semear, era necessário fazer experiên-cias. É fácil presumir que os primeiros fazendeir-os carregavam consigo uma bolsa tecida deforma rudimentar, cheia de sementes, lançando-as e espalhando-as à sua volta com um movi-mento amplo da mão, à medida que iam andandopelo solo recém-escavado, mas, em muitoslugares, essa forma de espalhar as sementes eradesconhecida. Em algumas regiões da África, asmulheres cavavam milhares de buracos com umpedaço de pau ou enxada, ou até mesmo com umrápido movimento dos dedos do pé em solo ma-cio, e jogavam alguns grãos de painço em cadaburaco, fechando-os em seguida. Outros enchiama boca de grãos e os cuspiam, um pouco por vez,depois de cada buraco ter sido cavado. Em

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algumas partes do sul da África, o grão era, naverdade, espalhado sobre a grama e sobre o soloantes mesmo de acontecer a lavra da terra.

A Grécia, não muito depois de 3000 a.C,desenvolveu um tipo diferente de lavoura,voltado para a oliveira e a videira. Nas encostasíngremes que até então tinham sido utilizadassomente pelas ovelhas e cabras, proliferaram osvinhedos e as plantações de oliveiras, aument-ando as calorias anuais disponíveis em cada vil-arejo em até 40%. O azeite de oliva era usadonão só para cozinhar, mas para encher oslampiões e limpar o corpo. O vinho e o azeite deoliva alteraram a dieta alimentar no leste doMediterrâneo. Enquanto todo nômade passava amaior parte do dia na colheita e na caça de ali-mentos, a nova ordem criava especialistas, comofabricantes de tijolos, pedreiros, padeiros, fabric-antes de cerveja, oleiros, tecelões, alfaiates e cos-tureiras, soldados, sapateiros, escavadores devalas de irrigação, cuidadores de celeiros e, ob-viamente, fazendeiros e pastores de rebanhos.

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Talvez 90 de cada 100 pessoas de uma regiãoainda estivessem voltadas para o cultivo de ali-mentos, para a caça e tarefas afins, mas as outras10 assumiam uma grande variedade de profis-sões. Os novos especialistas moravam em vilare-jos, e os maiores desses vilarejos tornaram-secidades; as cidades teriam sido inviáveis sem odesenvolvimento da lavoura.

A capacidade de um distrito de alimentar aspessoas passava a ser multiplicado por três, seisou talvez até mais vezes, com o uso mais efi-ciente do solo e das pastagens, dos minerais e dapesca: um conjunto de conquistas que estavaalém das habilidades dos povos nômades. A pop-ulação do mundo, até então reduzida, aumentoudrasticamente. Talvez somente 10 milhões depessoas habitassem o mundo inteiro na época emque as primeiras experiências com lavoura e cri-ação de rebanhos foram feitas. Mas é provávelque por volta de 2000 a.C. a população do mundose aproximasse dos 90 milhões; 2 mil anos maistarde, na época de Cristo, estava próxima dos 300

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milhões. Às vezes o crescimento contínuo dapopulação era refreado por epidemias. Osnômades, sem saber, levaram vantagens em ter-mos de saúde. Por estarem em constantemudança, deixavam para trás os dejetos queproduziam. Por usarem pouca roupa ou atémesmo nenhuma, em climas tropicais , ficavammais expostos à luz solar, que impedia a prolifer-ação de germes. Por não possuírem animais,eram alvo de menor número de doenças. Poroutro lado, na nova ordem, a aglomeração depessoas nas cidades aumentava o risco deinfecção.

Portanto, enquanto a nova forma de vidaproporcionava mais alimentos e, assim,aumentava a população do mundo, também fo-mentava vírus, que periodicamente diminuíam apopulação. O trato diário com os novos rebanhosdomesticados provavelmente expôs as pessoas adoenças que, até então, estavam confinadas aesses animais. Uma forma de tuberculose veiocom o leite das vacas e das cabras; o sarampo e a

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varíola foram transmitidos do gado para as pess-oas que cuidavam dele, pela ordenha ou ingestãode sua carne; uma forma de malária provavel-mente veio das aves, e a gripe veio dos porcos edos patos.

O sacrifício humano

Uma nova forma de organização políticaestava surgindo. Enquanto nas sociedadesnômades o poder tinha sido dividido principal-mente entre homens mais velhos, a nova ordemdos fazendeiros era cada vez mais controlada poruma elite de governantes ou por um chefe, geral-mente do sexo masculino. Ao mesmo tempo emque defendia sua cidade e suas terras aráveis, ochefe aproveitava a oportunidade para descontarem seus inimigos antigos desafetos e mágoas,capturando alguns deles e escravizando-os. Osnômades raramente usavam escravos, ao passoque um governante sedentário poderia empregar

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escravos ou trabalho forçado para construircanais de irrigação, templos, fortificações e out-ros projetos. Os novos governantes podiam ar-recadar impostos na forma de grão, carne ou out-ros bens, enquanto as terras dos nômades haviamsido áreas livres de impostos.

Os novos governantes ordenavam sacer-dotes que, por sua vez, davam legitimidade eapoio moral aos governantes. Enquanto a religiãoem si era uma velha aliada da raça humana, sa-cerdotes e sacerdotisas eram uma novidade. Elesajudavam a trazer a chuva que punha fim à seca,abriam caminho para uma colheita farta, aju-davam a derrotar o inimigo na guerra e, provavel-mente, davam uma sensação de paz interior paraaqueles que, caso contrário, poderiam ter-se sen-tido aflitos. Por volta de 3500 a.C, muitos dosvilarejos rurais e pequenas cidades da Europa edo Oriente Médio estavam construindo monu-mentos religiosos de tamanho impressionante.

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As novas religiões refletiam um sentimentode admiração em relação ao universo e às suasobras, bem como os temores e as esperanças emrelação ao imenso poder da natureza. Esta tinhade ser adorada e apaziguada; a população de umaregião podia ser dizimada por uma tempestade degranizo que destruía as plantações, doenças quematavam os rebanhos, pragas de insetos ou fun-gos que atacavam a colheita, uma primavera quepassava sem chuvas, a diminuição do número deanimais selvagens devido a doenças, à seca ou auma enchente inesperada. Para garantir que osolo se mantivesse fértil ou que a colheita anualfosse abundante, presentes poderiam ser ofere-cidos aos deuses. O maior presente era o sacrifí-cio de uma vida humana, que podia abrir osportões através dos quais a abundânciaadentraria.

O enigma da nova guiné edas Américas

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As áreas mais altas da Nova Guiné pare-ciam tão remotas que permaneceram inexplora-das pelos europeus até o século 20. Por outrolado, elas foram um dos pivôs da revoluçãoverde. Já em 7000 a.C, quando a agriculturaainda não havia chegado à Europa, os habitantesda Nova Guiné cultivavam vários tipos de in-hame e outras raízes, o taro (tipo de inhame quegosta de sombra), a cana-de-açúcar e a banananativa. Valas cavadas à mão melhoravam a qual-idade do solo e ajudavam essa forma simples delavoura. Não é impossível, ainda que seja poucoprovável, que a idéia de lavrar a terra tenhachegado à Nova Guiné proveniente do SudesteAsiático.

Na Nova Guiné, as árvores eram cortadascom machados de pedra, com os quais o lenhadordava golpes curtos e bruscos, característicos dosmachados de guerra dos índios norte-americanos,em vez dos movimentos típicos dos atuaismachados de cabo longo. Por fim, a lenha e a ve-getação rasteira eram queimadas, construía-se

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uma cerca e plantavam-se raízes comestíveisusando as cinzas recentes da fogueira como nutri-ente. A capina era uma tarefa fundamental e, ger-almente, era praticada pelas mulheres. Após algu-mas safras, o solo se tornava temporariamenteempobrecido e, a alguma distância dali, um novopedaço de terra da floresta era arduamente cul-tivado. Era uma forma de pioneirismo que exigiamuito músculo, resistência e suor. Tal mudançana forma de cultivo requeria grandes áreas defloresta, das quais só uma fração era lavrada eplantada durante o ano.

As Américas, assim como a Nova Guiné,desenvolveram suas próprias áreas de lavoura.Plantas, como a abóbora, o algodão e a pimentamalagueta, eram cultivadas no México antes doano 6000 a.C. e, mais tarde, surgiram o milho e ofeijão. Na costa leste do que hoje são os EstadosUnidos, as terras lavradas apareceram por voltade 2500 a.C. No tempo devido, a agricultura setornou a base das civilizações americanas que osespanhóis vieram a descobrir. A visão

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predominante é de que a agricultura americana esuas civilizações características surgiram pratica-mente isoladas. Há um consenso de que a elev-ação do nível dos mares isolou permanentementeos novos colonizadores que atravessaram da Ásiapara as Américas; contudo, a possibilidade deuma influência cultural recorrente do leste daÁsia, África ou Europa não pode ser eliminadapor completo. Talvez uma nova leva de coloniz-adores tenha ocasionalmente chegado ao contin-ente americano. Algumas evidências favorecem ateoria de que a Ásia e as Américas tenham per-manecido em contato. Assim, a galinha pig-mentada da China, com seus ossos pretos e carneescura, existiu nas Américas, onde era tratada damesma forma que na China, sendo sacrificada emrituais de magia e de cura, mas evitada nas re-feições. Será que essa galinha teria chegado daChina em barcos de colonizadores que vierammais tarde, em outras levas? Da mesma forma,alguns estudiosos argumentam que o caracter-ístico calendário dos maias, que viviam na

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América tropical, provavelmente se originou emTaxila, no atual Paquistão, e que quatro dos 20nomes dados aos dias desse calendário foramemprestados diretamente das divindades hindus.O fluxo de idéias, de plantas e de animais peloPacífico talvez tenha se dado em ambas asdireções. Não obstante, uma região de lavourassurgiu antes das outras e foi mais dinâmica emtodos os seus efeitos. O Oriente Médio era comoum fogo que, uma vez aceso, propiciava cada vezmais luz.

Vasos feitos à mão, cozidos ao sol ou sobrebrasas eram uma parte fundamental da novaforma de vida. Enquanto os vasos não tinhamutilidade para os povos nômades, pois estes es-tavam em constante movimento, os povos queviviam no mesmo lugar boa parte do ano gan-haram muito com a invenção da cerâmica. Nomundo ocidental, hoje é difícil compreender porque os vasos cerâmicos foram tão importantes, jáque são tão pouco usados atualmente, excetocomo enfeite. Os vasos eram principalmente

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valiosos para fornecer luz e para cozinhar, sendotambém extremamente eficientes para queimarcombustíveis. Havia lampiões de cerâmica evasilhas nas quais colocavam-se velas; vasosmaiores, alguns com tampas e alças, guardavamágua e cerveja dentro de casa. Um vaso não vitri-ficado servia de moringa, pois aparentementemantinha a água fresca. Nas pastagens daRepública dos Camarões, grandes vasos eramusados para a fabricação de vinho de palma, en-quanto outros guardavam noz-de-cola. Os nigeri-anos tocavam bumbos de cerâmica em funerais.As mulheres encarregavam-se dos trabalhos emcerâmica em algumas regiões, administrando, as-sim, o que era a principal indústria de manufaturana época.

Uma sociedade sedentária que sabia fazervasos de cerâmica conseguiu evoluir mais, cri-ando novos cardápios de comida e bebida, poistinha muito mais chance do que os nômades defazer as próprias bebidas fermentadas - já que es-tas exigiam grandes vasos para armazená-las.

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Uma sociedade que possuía vasos conseguiaproduzir lêvedo e empregá-lo no preparo de pãesem fornos de cerâmica; uma sociedade que co-zinhava sua carne em vasos, em vez de aquecê-laem fogo aberto ou pedra quente, tinha, curi-osamente, mais probabilidade de gostar de sal.Na verdade, o sal foi o primeiro alimento atornar-se um item regular de comércio.

Os fabricantes de cerâmica foram os pre-cursores dos metalúrgicos e, com seu barro,acabaram precedendo o trabalhado com metal eminério. Embora a fabricação de cerâmica sobcalor intenso não tenha levado automaticamente àfundição de minério, serviu como passo funda-mental para isso. Como fazer o melhor uso doscombustíveis, como aumentar o calor com umgolpe de ar frio, como manejar as laterais dosvasos cerâmicos sob o fogo, quanto tempo deixá-los esfriar: respostas a tais perguntas serviram dediretrizes e indicadores para o tratamento dosminérios metálicos sob calor intenso. Um dosmarcos mais importantes da história do mundo

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foi a extração, pela primeira vez, de metais quasepuros de pedaços de pedra dura e rica em cobre,utilizando-se o fogo ardente e em brasa. Asprimeiras fornalhas e oficinas de fundição decobre foram desenterradas em Timna, no sul deIsrael, à vista das montanhas secas da Jordânia. Afornalha, operada pela primeira vez por volta de4200 a.C, consistia de um pequeno buraco nochão, em formato oval e escavado até a pro-fundidade aproximada da mão de um adulto. Paraevitar que grande quantidade de calor escapasse,uma cunha simples de pedra era colocada porcima do fogo como uma tampa solta. Era umempreendimento de fundo de quintal: dizer issonão deixa de ser um exagero.

A fundição do cobre, finalmente, levou àdescoberta de como obter o bronze. É provávelque tenha sido um acidente, mas só a mentealerta é capaz de ver o significado daquilo queacontece por acidente. O bronze foi obtido aofundir-se grande quantidade de cobre puro (90%)com uma pequena parcela de estanho (10%), a

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liga resultante era mais dura que o cobre e maisfácil de moldar. Por volta de 3500 a.C, o bronzejá era produzido por ferreiros nas cidades-Estadoda Mesopotâmia. Onde encontravam estanho, umingrediente essencial, não se sabe ao certo até ho-je. Como por milagre, um homem da era docobre, em carne e osso, foi recentemente encon-trado. Seu corpo - a carne ainda sobre os ossos -foi descoberto mais ou menos 5 mil anos depoisde ele ter saído para uma caminhada arriscadapelos Alpes tiroleses, próximo à atual fronteiraentre Áustria e Itália. Ele atravessava um desfil-adeiro a 3.200 metros de altura, muito acima dasmais altas estradas que cruzam essas montanhasatualmente. A estação era provavelmente ooutono, e ele usava roupas quentes. Para cobrir acabeça, usava um chapéu que consistia de váriosretalhos de peles de animais costurados juntos.Seus ombros estavam protegidos da neve e dofrio por uma capa cuidadosamente tecida comjunco ou uma gramínea resistente; seu casaco,feito de pele de veado, provavelmente mantinha

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parte de seu corpo aquecido enquanto caminhava,mas não é certo que tivesse mangas. Certamente,suas pernas estavam protegidas por meias decouro, enquanto os pés vestiam calçados feitos decouro de bezerro. A julgar pelo equipamento queo homem carregava, não se tratava de uma cam-inhada, mas de uma longa viagem: um machadocom lâmina de cobre, uma faca de gume feita depedra resistente e com cabo de madeira, uma al-java com 14 flechas quebradas ou usadas, umarco rudimentar para atirar as flechas. Impre-scindível para um homem das montanhas, numaárea onde combustíveis e fogo para as fogueirastão necessárias nas noites frias não eram encon-trados facilmente, ele carregava um recipiente in-teligente, feito com casca de vidoeiro, capaz demanter acesa a brasa de um fogo extinto; dessemodo, ele podia acender o próprio fogo semmaiores problemas.

Ele desapareceu na neve. É possível que,passado longo tempo da época prevista para seuretorno, seus amigos e sua família o tenham

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procurado. Poderia ser facilmente identificado,pois sua pele apresentava várias tatuagens e seuprecioso machado de cobre devia ser conhecidodos amigos. As buscas terminaram, e o tapete degelo o cobriu, século após século. Somente em1991, o derretimento da neve conseguiu exporseu corpo.

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CAPÍTULO 4 - Acúpula da noite

Nas grandes cidades iluminadas, o centrodas atividades do mundo de hoje, a força do céunoturno mal pode ser apreciada por causa doofuscamento que as luzes artificiais provocam nocéu. Além disso, novas explicações para os fenô-menos humanos, tanto profanos quanto reli-giosos, têm praticamente suplantado as ex-plicações baseadas nas estrelas, na Lua e no Sol.No entanto, durante a maior parte dos anos da ex-periência humana, com registros históricos ounão, o céu noturno conteve um certo esplendor euma certa magia. Quando as primeiras civiliza-ções começaram a evoluir, os "objetos celestes"passaram cada vez mais a ganhar um poderososimbolismo.

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O mistério dos raios e dasestrelas cadentes

Nas tribos nômades e nos vilarejos rurais,os fenômenos meteorológicos causavam grandemedo. Na Tasmânia, muitos aborígines ficavamamedrontados com as grandes tempestades."Chuva forte durante a noite", escreveu um ob-servador branco em 1831, "seguida de trovoadasensurdecedoras e o lampejo vivido de raios, dosquais os nativos demonstravam um enormemedo". Na noite seguinte, a visão de uma "faíscaelétrica" no céu escuro inspirou sentimentos deaflição. Talvez só o pensamento de ser atingidopor um raio aumentasse o medo. Lançando umolhar de nervosismo para uma árvore que haviasido despedaçada por um raio, eles se recusavam- como os alemães do outro lado do mundo, nasáreas rurais - a tocar a madeira exposta.

O céu noturno foi um teto em forma decúpula durante todos aqueles anos em que as

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pessoas praticamente dormiam sob as estrelas. Ascrianças eram ensinadas a observar a marcha reg-ular das estrelas pelo céu noturno. Em rarasocasiões, eles viam o céu escuro ser cruzado porluzes que passavam com grande velocidade. Al-gumas dessas luzes eram estrelas cadentes visí-veis por um ou dois segundos somente e outrasmostravam uma impressionante cauda de fogo.Os nômades caçadores e que viviam da coleta dealimentos eram grandes observadores do céunoturno e, assim, possivelmente aprenderam pormeio da observação constante que as estrelas ca-dentes eram em número duas vezes maior dur-ante as primeiras horas da manhã do que nasprimeiras horas da noite. Quando um fenômenoestranho acontecia e era visível, acreditava-seque o céu noturno estivesse falando. Em todo omundo, as pessoas se preocupavam com oscometas e as estrelas. Poucos fenômenos erammais excitantes para eles do que a visão noturnade um meteoro em chamas. A maioria dos met-eoros se desintegrava ao cair, e grande parte dos

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que atingiam o globo caía no mar; somente al-guns deles alcançaram a terra. Um meteorito éum meteoro que chega a seu destino geralmenteem forma de um pedaço negro de rocha, e taisrochas, aparentemente caindo da morada dosdeuses, eram tratadas com assombro quando en-contradas. No México, a pedra preciosa dapirâmide de Cholula e, na Síria, a pedra adoradade Ermesa provavelmente eram meteoritos. Nosantuário de Meca, havia uma pedra sagrada que,segundo dizem, caiu dos céus. Era adorada portribos árabes e até por Maomé.

A idéia de que um meteorito ou uma estrelacadente era uma mensagem dos deuses pareciaconfirmar-se por seu estrondo - bem como porseu brilho incandescente - quando mergulhava naterra. Soava para alguns com o estrondo de umtrovão; para outros, na era do vapor, parecia apassagem de um trem barulhento. Em algumassociedades, uma estrela cadente era vista comosorte; em outras, como azar. Os povos nômades,que viviam sob as estrelas, e os povos já

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estabelecidos em lugares fixos, que viviam sob oscéus sem nuvens das primeiras civilizações doOriente Médio, tinham toda a razão em observaro céu noturno. Numa noite sem lua, o céu era umtapete maravilhoso estendido sobre eles. Seu as-pecto mudava de hora em hora, e os padrões dasalterações eram observados e comentados. Noclima seco da Austrália Central, onde não existi-am rios permanentes, alguns grupos aboríginesviam a Via Láctea como um grande rio correndopelo céu. Aos olhos de muitos povos, criaturaspoderosas viviam no Armamento. Para outros,um buraco escuro na Via Láctea era a casa do de-mônio. As primeiras civilizações a floresceremao longo dos Rios Tigre e Eufrates prosseguiramno endeusamento das estrelas. Com prática emastronomia, seus povos conseguiam prever mui-tos dos movimentos dos principais planetas econstelações e, por sua vez, acreditavam que taismovimentos lhes possibilitavam prever fenô-menos humanos. Os babilônios chegaram até

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mesmo a aprender como prever um eclipse lunarbem antes de o eclipse acontecer.

O avanço da astrologia e o estudo da pos-sível influência das estrelas e dos planetas sobreos fenômenos humanos são hoje em dia repudia-dos nos círculos intelectuais como uma simu-lação, mas havia uma lógica experimental nessadisciplina intelectual que acabou atraindo as mel-hores mentes das primeiras civilizações da Chinae do Oriente Médio. Se o Sol podia moldar o ver-ão e o inverno, e se a Lua podia determinar asaltas marés e moldar o calendário, por que todasessas forças tão poderosas não poderiam tambémmoldar os destinos dos seres humanos? Essa per-gunta intrigou os estudiosos durante milhares deanos. Os médicos também seguiram essa linha e,até o século 20, as pessoas que sofriam dedoenças mentais eram chamadas de lunáticas, oque significava que sua doença era influenciadapela Lua.

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A Lua, pequena ou grande, era umapresença dominadora. O maior objeto do céunoturno, aparecendo e sumindo mais ou menos50 minutos mais tarde em dias sucessivos, ela semovia majestosamente. A Lua nova era invisível,pois marchava pelo céu diurno, em compassocom o Sol. Já a Lua cheia podia ser vista a noitetoda. Viva, poderosa e pessoal, a Lua era umafigura feminina para alguns povos e uma figuramasculina, para outros; era um símbolo de vida ede morte, e muitos diziam que determinavaquando as chuvas cairiam. Acreditava-se que in-fluenciava o crescimento da vegetação e por mil-hares de anos foi uma regra, na área rural, osfazendeiros fazerem o plantio sempre durante alua nova. Mais tarde, na Índia, no Irã e na Grécia,acreditava-se que, após a morte, as pessoasviajavam para a Lua. Os ciclos lunares acabaramconstituindo os primeiros calendários, depois dosurgimento da arte da astronomia.

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"Tive um sonho?"

A noite era o período em que as pessoastinham sonhos - cheios de alegria, apavorantes,calmos, familiares ou estranhos. A noite era vistapor várias tribos como um reino misterioso aoqual os humanos eram admitidos enquantodormiam. O sonho era a evidência dessa visita.Os povos nativos do norte do Canadá, próximo àBaía de Hudson, acreditavam que, quandodormiam, suas almas saíam de seus corpos e tem-porariamente entravam em outro mundo. NaAustrália Central, os arrerntes acreditavam quecada pessoa tinha duas almas e que, durante osono, a segunda alma de fato deixava o corpo.Entendiam que seus sonhos eram, na verdade,eles próprios observando as atividades simul-tâneas dessa segunda alma, que aconteciam forado corpo. O sonho era quase uma forma sobren-atural de televisão. Se um fenômeno terrívelacontecesse com a alma que havia deixado o

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corpo, o terror era imediatamente transferido paraa pessoa que estava dormindo e sonhando.

Dezenas de milhares de anos antes do sur-gimento dos sacerdotes e dos videntes, os sonhosvividos devem ter sido recontados com admir-ação. A importância dos sonhos era um reflexoda importância da noite, quando os sonhosaconteciam. Em um acampamento simples, numasociedade nômade, a presença da noite e a inten-sidade da escuridão praticamente dominavam.Hoje, uma grande cidade iluminada com muitasluzes brilhantes praticamente domina a noite. Naera moderna, o sonho silenciosamente mudou designificado e deixou de ser interpretado simples-mente como uma antecipação dos acontecimen-tos. O médico e psicanalista austríaco SigmundFreud via o sonho não como uma visão do futuro,mas como um espelho da personalidade e do pas-sado do sonhador.

É impossível dizer quando os seres hu-manos viram, pela primeira vez, significado na

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Lua, no Sol, nas estrelas e nos cometas. Mas ig-norar a noite e o céu noturno porque os registrosexistentes são escassos e transitórios seria negli-genciar uma parte fundamental e intrigante dahistória humana.

Os monumentosescondidos

Os nômades não construíam grandes monu-mentos, não tinham pirâmides, nem colunas depedra imponentes, nem templos e nem faróisperto do mar. Eram incapazes de cortar blocospesados de pedra e carregá-los para longe, mas,de certa forma, eles não precisavam de monu-mentos. Um monumento é uma proclamação doque é importante e, para as pessoas que viveramhá 15 mil anos, o céu e a terra estavam repletosde monumentos, alguns visíveis somente paraaqueles com olhos treinados. Para algumas so-ciedades nômades, o céu era um monumento

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criado por seus ancestrais, e sua terra tinha sidocriada da mesma forma. Cada colina e serrarochosa, cada detalhe da paisagem tinham sidocriados por esses seres quando começaram aviver na Terra. Aos olhos dos primeiros australi-anos, as colinas, os penhascos, os animais e tudoo mais que fosse fundamental no próprio ter-ritório da tribo eram quase monumentos sagradospara o culto aos ancestrais, e o ato original da cri-ação tinha de ser repetido periodicamente atravésdas danças, das cerimônias e dos rituais reli-giosos herdados desses criadores. Assim, as pess-oas vivas mantinham seu contato com aquelesque há muito tinham criado essa paisagem ter-restre e celeste responsável pela vida. Mesmoadiantando um pouco a história, deve-se dizerque as religiões posteriores foram também pro-fundamente afetadas pelo céu noturno. Ocalendário judeu era baseado na Lua; o início doano religioso era determinado pela justaposiçãode dois fenômenos distintos - o sinal das espigasaparecendo nas plantações de cevada e o

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primeiro sinal da nova meia-lua. Buda nasceunum ponto especial do ciclo da Lua, enquantouma estrela brilhante no céu apontou para ondeJesus tinha nascido. No hinduísmo e no jainismo,um dos fenômenos sagrados é um festival delampiões que acontece no dia de Lua cheia de umdeterminado mês. O dia mais santo do calendáriocristão é determinado pela Lua. No Islã, ocalendário ainda é baseado na Lua, e o ramadã, omês do jejum, oficialmente começa no momentoem que a Lua nova é visível a olho nu. A civiliza-ção chinesa venerava a Lua e as estrelas. Atémesmo as primeiras universidades, que surgiramna Idade Média, davam ênfase à astrologia. Serprofessor de astrologia em uma dessas universid-ades ou ser um consultor em astrologia de um reicristão ou de um general do século 12 era possuirpoder de verdade. Foi Copérnico quem, 4 séculosmais tarde, acabou fazendo a astrologia cair doscéus acadêmicos - mas não do céu particular decada pessoa, onde permanece com bastante força.

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CAPÍTULO 5 - AsCidades dos Vales

Se um viajante incansável tivesse vivido noOriente Médio em 4000 a.C. e tivesse realizado ofeito pouco comum - e talvez impossível - decruzar por terra toda a extensão que vai das mar-gens do Mar Negro ao alto Rio Nilo, não teria en-contrado nenhum monumento de maior vulto.Não teria encontrado nenhuma cidade, não teriaencontrado nenhum templo do conhecimento enenhum palácio real de grande luxo. Se, aprox-imadamente 1.500 anos mais tarde, suas pegadastivessem sido rastreadas por outro viajante,visões deslumbrantes teriam sido relativamentecomuns, principalmente ao longo dos grandes ri-os da região. Quatro volumosos rios desse cantodo mundo e vários outros importantes rios de out-ras terras mais afastadas tiveram um papel funda-mental no despertar da civilização.

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Os grandes rios do Oriente Médio atraves-savam planícies secas cujo solo era enriquecidopelas enchentes anuais. Dezenas de milhões detoneladas de sedimentos eram carregados cor-rente abaixo e espalhados em camadas finas porsobre o solo empobrecido, como se fossem umnovo fertilizante. Nas estações secas, os canaiscarregavam a água dos rios para irrigar as terrasaráveis queimadas pelo sol. Nas planícies alaga-das, as pessoas e as cidades podiam receber maisalimentos, dentro da mesma área, do que emqualquer outro lugar do mundo naquela época.Em um tempo em que o transporte por terra eraprimitivo, os rios largos eram também uma es-trada, ao longo da qual os barcos podiam trans-portar a partes longínquas do reino e a baixocusto grãos e pedras para construção.

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A vista das pirâmides

As margens do Nilo nutriram a civilizaçãodo Egito. O rio, que abria seu caminho ao longode vales estreitos, tinha somente dois quilômetrosde largura nas proximidades de Assuã, no altoEgito. A areia do deserto, na verdade, escorriapara dentro do rio em vários pontos. Mais abaixo,o vale, não raro, chegava a ter 30 ou mais quilô-metros de largura, enquanto, no delta, o mosaico

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de terras ricas em terrenos baixos e canais de riostinha mais de 200 quilômetros de largura. Naépoca das enchentes, o delta do interior, a prin-cipal fonte de riqueza egípcia, tornava-se umenorme lago que se sobrepunha às margens dosvilarejos permanentes, empoleirados em seuspequenos morros. Na verdade, os vilarejos dodelta eram conhecidos como "ilhas". A terra,coberta recentemente com uma nova camada desolo trazido pela enchente, estaria pronta parauma nova colheita de cevada e trigo depois queas águas baixassem. O rio nem sempre era umpatrimônio tão maravilhoso. Se a enchente fossemuito alta ou a vazão fosse muito rápida, todosos terrenos situados nas margens de arrecadaçãoe os canais de água eram destruídos; além disso,não era raro ver as águas invadindo os camposmais altos. A medida que as técnicas de agricul-tura se desenvolviam, pessoas ou animais amar-rados com cordas tinham de ser empregados paralevar água, em baldes ou cestos, da parte maisbaixa para a parte mais alta.

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O Egito teve uma longa linhagem de mon-arcas poderosos, cidades impressionantes, umavida econômica e religiosa de grande vigor,celeiros abarrotados de grãos nos anos de safrasfartas e túmulos reais nos quais grandes tesourospermaneciam na escuridão. Lá viveram generaisde exército, burocratas e sacerdotes que ap-resentavam considerável poder de organização ede manutenção de registros. Seus registros picto-gráficos, uma forma inicial de escrita, serviamcomo um método de comunicação ao longo dorio. Havia ali arquitetos começando a trabalharem seus esboços requintados, construtores capa-citados para a implementação de projetos empedra maciça e milhares de artistas trabalhandocom metais preciosos, cobre, madeira, tecidos epedras preciosas. Havia também projetistas decanais para transporte e irrigação. Um dessescanais ligava o Nilo ao Mar Vermelho. Viviamali cientistas que aumentaram o conhecimentosobre a Lua e as estrelas e inventaram ocalendário pioneiro que dividia o ano em 365

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dias. Ali desfilavam sacerdotes de grande in-fluência que formularam uma visão da vida apósa morte na qual princesas continuavam a ser ven-eradas como princesas e na qual até os homensdo povo poderiam "sentir o gostinho" da eternid-ade. O rei, por ser um deus escondido dentro deum corpo humano, merecia um túmulo à altura.

As enchentes anuais do Nilo não eram da-das por certas. Em todos os lugares, mesmo entreos oásis do deserto, templos suntuosos eram con-struídos em honra ao governante divino, sem cujabênção as águas do Nilo não poderiam subir anu-almente. Em troca, os tributos e impostos erampagos ao templo na forma de cevada e trigo oumesmo em terras.

Com o tempo, os templos chegaram a pos-suir cerca de um terço de todas as terras aráveisao longo do Nilo.

O junco, que crescia alto, balançando aovento, era uma imagem comum em diversas

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partes do Egito e também da Mesopotâmia, ondeos rios transbordavam em brejos ou se espal-havam por um delta. Grupos de trabalhadorescolhiam o junco para fazer os telhados de sapêdas casas. A extremidade pontiaguda do juncoservia também como caneta ou buril, com osquais os pictogramas e as sílabas eram entalhadosem placas de barro úmido. Por fim, o barro foiameaçado por outro material de escrita vindo dosrios. A planta do papiro crescia nos brejos doNilo - ou como coloca o Livro de Jó: "É possívelque o papiro cresça onde não haja brejo?" Logoem 2700 a.C, os egípcios, com seu talento, es-tavam convertendo papiro em uma forma de pa-pel grosso, ou pergaminho, pronto para receberas marcas da caneta feita de junco. O papel, que équase uma essência da burocracia, foi uma in-venção própria do Egito.

Talvez os egípcios tenham sido os primeir-os a tratar os cães e os gatos como animaisdomésticos. Os gatos eram pintados em túmulos;na morte, seus corpos eram mumificados,

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preparando-os para a vida após a morte, e eramaté velados pelas famílias, que demonstravam seusofrimento raspando as próprias sobrancelhas. Jáem 2000 a.C, criava-se um tipo de cão, chamadode galgo, cuja principal tarefa era participar doesporte de caça à lebre.

Na medicina, os antigos egípcios provavel-mente lideraram o mundo conhecido então. Amágica e o conhecimento se mesclavam: umamistura poderosa na mente dos que acreditavam.Boa parte do conhecimento do corpo humanovinha do costume de prepará-lo para a mumi-ficação. Em anatomia, cirurgia e farmácia, os an-tigos egípcios tiveram seus triunfos e, possivel-mente, foram os primeiros a usar ataduras e talas.Em suas curas, usavam a gordura de criaturascomo ratos e cobras, ervas e vegetais, pesando emedindo cada ingrediente cuidadosamente. Oclássico grego escrito por Homero, A odisseia,faz referência aos médicos do Egito como sendoos melhores e, já naquela época, sua reputaçãopela habilidade, perspicácia e desafio tinha

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aproximadamente 2 mil anos. Em 2600 a.C, osegípcios foram os primeiros padeiros conhecidosa fazer um tipo moderno de pão com fermento.Em sua forma, o pão que faziam parecia maiscom uma omelete fina do que com o pão maisfofo, feito nos tempos da Grécia. Outra invençãodos egípcios foi o forno de assar com uma for-nalha para a lenha embaixo e um forno no alto. Aplanície alagada do Nilo normalmente produziaum excedente de alimentos que alimentava osque trabalhavam no campo e também àqueledécimo da população que morava nas cidades eservia ao monarca, aos seus súditos e aos sacer-dotes. Foi esse excedente de alimentos, essepequeno excesso de riqueza, que possibilitou auma sucessão de reis planejarem cerca de 80pirâmides como túmulos reais.

Como o terreno ao longo do Nilo eramargeado só por escarpas e pequenas montanhasno sopé de outras maiores, as pirâmides at-ingiram um domínio que seria impossível numapaisagem montanhosa. A primeira pirâmide foi

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construída por volta de 2700 a.C. A GrandePirâmide, 200 anos mais tarde, foi projetada parater 146 metros de altura, equivalente moderno deum arranha-céu de 50 andares. Exigiu o esforçode aproximadamente 100 mil trabalhadores, in-cluindo escravos e os agricultores que ficavamsem trabalho quando as enchentes anuais estavamem seu ápice. Enormes blocos de calcário egranito tinham de ser cortados nas pedreiras etransportados ao local da obra sem a ajuda deroldanas ou de veículos com rodas. Era a estru-tura mais impressionante até então construída nomundo e, por ter sido construída num reino ondea população total mal passava de um milhão,tornava-se ainda mais impressionante. A popu-lação do Egito acabou crescendo e, na época doNovo Reinado, aproximadamente 1.500 anosmais tarde, chegou a atingir talvez 4 milhões.

O Egito, mais que qualquer outra das civil-izações do rio, contou com longos períodos deestabilidade. Sua continuidade na língua e culturafoi surpreendente. Sua monarquia durou

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aproximadamente 3 mil anos, uma das institu-ições de maior duração nos registros da história.Embora os defeitos do Egito fossem evidentes,assim também eram as suas virtudes.

Onde a roda rolou pelaprimeira vez

Uma civilização rival floresceu na Meso-potâmia. Lá, a par de sua burocracia religiosa eprofana, surgiu, em 3700 a.C, o primeiro Estadoconhecido do mundo. O Estado ocupava umaplanície quente entre dois rios, o Tigre e o Eu-frates. Na verdade, era um fruto do vale fértil.

Alimentados pelo derretimento da neve nasmontanhas da Turquia, antes de chegarem ao lim-ite da planície e se aproximarem do mar (onde fi-nalmente se uniam e formavam um só), os riosgêmeos já tinham coberto quase dois terços desua viagem até o mar. Às vezes, mudavam de

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curso ou se enchiam de sedimentos, mas, duranteséculos, foram usados por pequenos barcos oubotes feitos de pele, que transportavam rio abaixoa tão necessária madeira originária das árvores dointerior. Os vales mais baixos dos rios gêmeoseram abundantes quando plantados com cevada etrigo. Enquanto, na maioria das regiões, os agri-cultores cavavam com pedaços de pau afiados epás rudimentares; eles realmente aravam a terra,possibilitando, assim, que uma grande área fossecultivada por um número pequeno de servos.Parte da cevada era fermentada e transformadaem cerveja, possivelmente a primeira cerveja domundo. No sul da Mesopotâmia, conhecido comoSuméria, belas cidades surgiram às margens dosrios e canais, e várias delas ficavam à vista umasdas outras. Por volta do ano 3000 a.C, dezoitocidades floresciam numa área não muito maiordo que a atual República da Irlanda. Diz-se queUruk, localizada no atual Iraque, chegou a ter 50mil pessoas, todas tirando seus alimentos das ter-ras aráveis das redondezas. As cidades tendiam a

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ser a capital de um pequeno território ou Estado aseu redor, mas as guerras reduziram o número deEstados. Ser conquistado era uma experiênciacomum para os povos do sul da Mesopotâmia.

Nessas cidades, o templo era tão funda-mental quanto a catedral veio a ser na Europa,mais de 3 mil anos depois. Os sacerdotes comseus rituais, sacrifícios e orações pediam que osventos que traziam as chuvas soprassem nadireção certa e molhassem o chão ressecado; im-ploravam também, quando suas orações eramatendidas prontamente, que a água das enchentesbaixasse. Proclamavam, assim, as maravilhas douniverso. Se essas cidades da Mesopotâmia erammais inovadoras que as do Egito, é uma questãode difícil resposta. Quase com certeza, a roda sól-ida, feita de madeira, foi inventada ali. Uma car-roça com rodas sólidas podia, se puxada por umboi, exceder a capacidade de carga de umapequena procissão de homens. Mais tarde, a in-venção de uma roda mais leve, com aros, trans-formou o transporte dos tempos de paz e levou ao

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uso extensivo de carroças puxadas a cavalo dur-ante as guerras. O veículo de rodas, na guerra ouna paz, era perfeito para as planícies.

As artes da escrita e da leitura surgiram emuma das cidades da Mesopotâmia por volta de3400 a.C, embora o Egito também seja um can-didato a essa honra. A escrita inicial tinha aforma pictográfica; essas figuras de escrita eramdesenhadas com um instrumento pontiagudosobre barro úmido, que era posto para secar e en-durecer. Um pomar era retratado como duasárvores dentro de um barril, um recipiente degrãos era simbolizado com uma espiga decevada, a cabeça de um boi acompanhada do nu-meral 3 significava 3 reses. Um dos propósitos daescrita era registrar gêneros alimentícios e os te-cidos levados aos templos, que também serviamcomo armazém.

A arte de contar também trouxe progresso.A mais avançada das cidades ao longo dos doisrios inventou dois sistemas numéricos distintos,

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um usando o 60 e outro usando o 10 como bases.O método decimal acabou prevalecendo, mas ométodo que usava o 60 teve uma vitóriaduradoura. Como resultado dos cálculos dosmatemáticos da Babilônia, o 60 sobrevive nacontagem dos 60 segundos que constituem ominuto e nos 60 minutos que constituem a hora.

Nessas terras dos rios gêmeos, as cidades eos impérios rivais lutavam pelo direito de existir.Com o tempo, os impérios próximos ao GolfoPérsico foram suplantados por aqueles cujasbases ficavam nas montanhas menores. Um dosimpérios dessas montanhas foi o assírio. Seunome ecoa na atual nação da Síria, mas sua terranatal ficava no atual Iraque, e a primeira capital,a cidade de Assur, situava-se nas planícies férteisdo sinuoso Rio Tigre. Já tarde no curso de umalonga história, os assírios foram fortes o sufi-ciente para capturar seus rivais, os babilônios, eaudazes o suficiente para tentar conquistar oEgito. Sendo o império mais poderoso do mundoocidental, seu domínio se estendia à distância de

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alguns dias a cavalo do Mar Cáspio e do GolfoPérsico. Membros da família real eram caçadoresentusiastas, tanto nas regiões selvagens quantonos parques de caça e jardins zoológicos man-tidos para seu bel-prazer. O rei ia à caça em car-ruagens puxadas por três cavalos, os quaisusavam antolhos para evitar que se distraíssemdurante a corrida. O condutor ficava numa cabinesem teto e um ou dois caçadores ficavam atrásdele, prontos para atirar flechas.

O leão da Mesopotâmia, que era menor queo leão africano, era alvo de inúmeras caçadas. Éfácil adivinhar por que essa espécie de leãotornou-se extinta. Uma placa de barro cozidodatada de 11000 a.C. registra que um caçador darealeza, a pé, matou um total de 120 leões.Quando caçava com relativa segurança, de dentroda carruagem, matou mais 800 leões. Na Assíria,as ciências, principalmente a astronomia, e asartes visuais floresceram juntamente com a en-genharia. Lá, os mestres da irrigação projetaramcanais para levar água pelas planícies até as

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grandes cidades para, assim, criar um tapeteverde de campos irrigados. Havia belos paláciose templos em suas cidades. Na arte da guerra,também não ficavam para trás. Os primeirosvidreiros trabalharam ali por volta de 1500 a.C.Durante séculos, fizeram vasilhas de vidro en-volvendo com líquido derretido uma peça central,de superfície lisa, e removendo-a depois, res-ultando no vidro moldado. No Museu Britânico,o delicado vaso de Sargon, de cor verde-clara,ainda responde a diferentes tipos de luz. Se foicriado na Assíria ou se chegou lá por meio docomércio ou de conquistas, não se sabe. O vidroera só para os ricos.

As casas, as campinas e os pomares deNínive, a mais deslumbrante das capitais daAssíria, eram abastecidas com água que corriapor um canal vindo das cadeias de montanhas.Como o canal tinha de atravessar um vale, umaponte de cinco arcos pontiagudos foi projetadapara sustentá-lo. Equipes, provavelmente forma-das por milhares de prisioneiros de guerra, foram

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montadas e começaram a extrair pedras de cal-cário e, com muito capricho, moldá-las emgrandes e pesados blocos. Dois milhões de blocosforam cortados e levados por carroças até o localda extensa ponte ou aqueduto. Se essa ponte,construída por volta de 700 a.C, tivesse duradoaté a época das ferrovias, teria permitido que trêstrens passassem por ela, lado a lado, tal era sualargura. Nas vastas planícies que os dois rios gi-gantescos atravessavam, várias cidades nasceramdurante um período de 2 mil anos, deixandoplacas oblongas feitas de barro, nas quais foramregistradas listas com os nomes de seus reis e osprimeiros dicionários. Deixaram para tráspequenos barris cozidos ao sol ou ao forno, con-tendo à sua volta vários escritos, dispostos emlinhas, umas sobre as outras. O texto é sur-preendentemente feito com grande capricho, comlinhas retas levemente marcadas no barro mol-hado para guiar a escrita.

Com que avidez muitas dessas mensagens,em caligrafia minúscula, devem ter sido lidas!

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Havia uma placa, escrita por um astrônomo ouastrólogo, advertindo o rei de que a aproximação,ao nascer do Sol, de uma Lua crescente signi-ficava que seus soldados estavam em luta longede casa. Foi achada ali uma previsão de eclipselunar feita em barro queimado e cozido em 667a.C. Os assírios acreditavam que os movimentosno céu afetavam profundamente os fenômenoshumanos; até as atividades dos ladrões eramafetadas dessa forma. O império rival da Bab-ilônia não era menos avançado em astronomia.Seu calendário era baseado na Lua, estando adeusa-lua encarregada da noite, assim como odeus sol era encarregado do dia e de todos osseus fenômenos. Desses deuses concorrentes, aLua era a mais poderosa. Acreditava-se que aLua nova fosse um barco no qual a deusa-luaviajava, de forma vagarosa e imponente, pelaimensidão do céu noturno. Essa mesma Lua cres-cente acabou sendo ressuscitada muitos séculosmais tarde pela nova religião do Islã.

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A Lua determinava o calendário; a Luanova marcava o início do mês. Com o passar dotempo, os astrônomos da Babilônia conseguiramprever, com precisão de minutos, quando a Luanova seria vista no horizonte. Essa previsão eramuito importante, porque o mês do calendáriocomeçava formalmente não à meia-noite, mas nomomento em que a Lua nova apontava no hori-zonte. No calendário babilônico, doze meses lun-ares equivaliam a 354 dias, faltando, portanto,onze dias e um quarto para cada ano; essa faltafoi solucionada adicionando-se um décimo ter-ceiro mês ao calendário a cada três anos. Passosousados no avanço do conhecimento foram dadosnesses grandes vales de rios e suas regiões maiselevadas, às vezes chamados de Crescente Fértil.Com o tempo, esses mesmos vales vieram a con-hecer a decadência. O desenvolvimento e o de-clínio são processos normais na história humanae, nesse caso, o ambiente ferido também acelerouo declínio. É um milagre que a terra verde arávelda parte baixa do Rio Eufrates e do Rio Tigre

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tenha durado tanto tempo assim. Em seu interiormontanhoso, cada vez mais árvores eram corta-das para fornecer lenha e material de construção.Enquanto isso, o solo sofria erosão, os vales seenchiam de sedimentos e os rios tendiam a trans-bordar. Em partes das planícies, a irrigação con-stante do solo e a destruição das árvores com suarede profunda de raízes forçavam o sal subja-cente a subir até a superfície. Lagos de água docetornaram-se salgados. Observou-se que asplantações de trigo, ao contrário das de cevada,não podiam tolerar o sal no solo e, em algumasregiões, o trigo tornou-se uma raridade. As planí-cies eram uma prova antecipada do que acabariaacontecendo nas zonas irrigadas de várias terrasáridas, estendendo-se da Austrália à Califórnia.Nos doze ou mais séculos após 2000 a.C, a popu-lação de certas regiões da Mesopotâmia, aos pou-cos, começou a diminuir. As cidades-Estado, tãopoderosas em seus dias, também enfraqueceramcom as guerras periódicas. Com arcos, lanças edardos, elas transformaram a guerra em uma

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forma de arte. Muitos dos soldados traziam con-sigo estilingues, talvez tão compridos quantoseus braços, e os usavam para arremessar pedrasao inimigo a cem metros de distância. Para seprotegerem, usavam capacetes que vinham até asorelhas e uma armadura leve na parte superior docorpo. Os assírios tornaram-se mestres em umapoderosa arma chamada terror. Quando final-mente entravam numa cidade que havia recusadoa oportunidade de render-se pacificamente, elesassassinavam, torturavam e mutilavam as pessoasem larga escala como advertência para outrascidades. Ser derrotado na guerra era uma exper-iência dolorosa em praticamente todas as primeir-as civilizações, mas era principalmente dolorosopara aqueles derrotados pela Assíria. Ainda as-sim, a Assíria também podia ser construtiva;mandou grandes quantidades de povos rebeldes ederrotados para regiões distantes para lá cultivar-em o solo, construírem monumentos e desen-volverem trabalhos públicos.

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Da abundância de árvoresà exaustão do solo

O Egito e a Mesopotâmia vinham flores-cendo há mil anos quando outra civilização dovale surgiu no lado leste, não muito longe dali. Ogrande Vale do Indo era banhado por rios quedesciam das neves do Himalaia e deslizavam atéo Mar das Arábias. Praticamente todo o valeficava fora da zona tropical. Embora o Rio Indotenha dado à Índia o seu nome, a maior parte desuas águas ficam hoje dentro da República do Pa-quistão. O Vale do Indo era generosamente priv-ilegiado pela natureza. Uma floresta brotava aolongo de suas margens férteis e, quando des-matada, revelou um solo rico. O rio era excelentepara a agricultura, pois as enchentes anuais,maiores que as do Nilo, inundavam as áreas maisbaixas, desde junho até setembro. A cada ano,elas espalhavam uma camada de sedimento queenriquecia o solo. As evidências sugerem que amonção, ou estação chuvosa, avançava mais para

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o interior e que o clima era extraordinariamenteúmido pelos padrões de hoje. Tão grande era avazão das águas barrentas que, hoje, alguns doslocais dessa civilização são cobertos por 10 met-ros de sedimentos. Os agricultores já trabalhavamno vale em 6000 a.C. De tempos em tempos, esteera invadido por pessoas que, vindas do Irã, tin-ham visto ou ouvido falar sobre uma ou outra dascivilizações do vale. Começaram a criar umacivilização única, que, surgindo por volta de2500 a.C, acabou florescendo por 7 séculos oumais. Cobrindo uma área de talvez cinco vezes otamanho da Grã-Bretanha e governada porsacerdotes-reis, deu início a grandes cidades.Uma dessas cidades, Mohenjo-Daro, possivel-mente tinha 40 mil pessoas e era, portanto, umadas maiores cidades do mundo. Dominada poruma cidadela em uma das extremidades e dis-tribuída por ruas retangulares, era muito bemdrenada e amplamente abastecida com águafresca; até as casas particulares eram providas debanheiros com chão de tijolos. Com prática em

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artes, o povo das cidades do Indo deixaram paratrás imagens de sua vida cotidiana. Muitos doshabitantes, assim representados, tinham um portealto e distinto, cabeça grande e cupuliforme enariz bastante largo. As mulheres usavam umtipo de minissaia com um cinto ao redor da cin-tura e o busto nu. Gostavam de ver o própriorosto em espelhos de cobre, de modelar os ca-belos em forma de coque com a ajuda de umpente feito de marfim e de decorar os lábios e osolhos com pigmentos vermelhos. À noite,lampiões ou velas de óleo vegetal iluminavam ascasas.

Cultivavam trigo e cevada de diferentesvariedades, ervilhas-do-campo e sementes degergelim e de mostarda. As frutas incluíam tâ-maras e melancias. É provável que a cana-de-açúcar e o algodão tenham sido inicialmente cul-tivados ali, mais tarde espalhando-se pelo OrienteMédio e, por fim, pelas Américas. Dois produtostão notáveis dessa civilização demonstram a im-portância dos hindus. Entre os animais que

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pastavam ao longo do vale estavam porcos, ovel-has, cabras, camelos, asnos e animais com corco-vas. Alguns deles eram usados para transporte, ecarroças puxadas por novilhos carregavam umacapota para proporcionar sombra aos passageiros.Criavam-se cães e gatos e possivelmente tambémas galinhas ali foram domesticadas. A cerâmicaera produzida em larga escala e os brinquedosfeitos para as crianças incluíam vacas e bois quebalançavam a cabeça. O rio e suas enchentesanuais serviam como artéria dessa civilização,mas essas mesmas artérias acabaram obstruídas.Aos poucos, as florestas foram eliminadas pelosagricultores e, mais tarde, árvores isoladas eramcortadas para fornecer lenha para os fornos quecoziam tijolos de barro. As enchentes provo-caram erosão em algumas áreas e encheram out-ras com sedimentos; as grandes cidades tinhamde se erguer sobre montes para escapar das en-chentes que, conforme o vale se sedimentava,subiam cada vez mais. A cidade de Mohenjo-Daro foi reconstruída aproximadamente nove

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vezes, geralmente após os danos e perigostrazidos pelas enchentes. A vida do Indo, comoum centro de poder, foi muito mais curta que ado Nilo ou dos rios da Mesopotâmia. Por volta de1000 a.C, muito antes da chegada das novas téc-nicas de trabalho em bronze e ferro, suas cidadesestavam começando a decair. O clima se tornavacada vez mais seco no vale, e mais determinantesforam as invasões pelos povos arianos que, dur-ante séculos, vinham aumentando seu domínio nonoroeste da Índia. A criação de grandes vilarejose a domesticação de plantas e animais tinhamsido um passo fundamental na história da raçahumana. As primeiras civilizações dos vales de-ram outro passo. Situadas nos vales ricos em sed-imentos do Oriente Médio e do Indo, elastrocavam experiências e serviam de estímuloumas às outras. Uma vantagem geográfica óbvia,excetuando o rio e os sedimentos, foi que umadas fronteiras de cada civilização era protegidaem parte pelo deserto, proporcionando assim umasegurança contra os atacantes. O clima dos vales

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dos rios era outro patrimônio, pois ali se podiamplantar cereais que, por sua vez, eram fáceis depreservar por longos períodos. O cultivo eficazde grãos era fundamental para a sobrevivênciadas suas cidades - as maiores que o mundo haviaconhecido. O fato de outra civilização asiática tersurgido nos vales quentes e sedimentados da Ch-ina é mais uma evidência da influência que osgrandes rios alimentados pela neve tiveram sobrea história humana.

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CAPÍTULO 6 -Maravilhoso mar

Nenhum outro mar exerceu uma influênciatão grande na ascensão do mundo que hoje con-hecemos quanto o Mediterrâneo. Sem esse mar,suas qualidades peculiares e posição incomum, avida política, econômica, social e cultural domundo teria tomado outro rumo. Em uma épocaem que o mar, desde que fosse calmo, era menosdispendioso e mais rápido do que a terra para otransporte de carga e de passageiros, o Mediter-râneo oferecia muitas vantagens. Estendia-sedesde o Oceano Atlântico, a oeste, até quase duasenseadas do Oceano Indico, a leste: o proemin-ente Mar Vermelho e o Golfo Pérsico. O grandebraço do Mediterrâneo, o Mar Negro, avançavapara o interior da Ásia. Dois braços menores,ladeando a península itálica, chegavam até quase

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o sopé das montanhas cobertas de neve dos Alpeseuropeus.

O mar unia África, Europa e Ásia. Uma viamarítima que ligava regiões diversas, cada umaproduzindo algo diferente - cobre, estanho, ouro,prata, chumbo, vinho, azeite de oliva, grãos,madeira, gado, corantes, roupas, armas, especiari-as, pedras de obsidiana e outros luxos. Esse marera um condutor veloz de idéias e de crenças reli-giosas. Se a Ásia e a África tivessem possuídoum mar tão vasto e central, a história desses con-tinentes teria sido profundamente diferente. Emessência, esse mar era um lago estratégico, com avantagem de que, no Estreito de Gibraltar, suagarganta estreita abria-se ao imenso oceano.

O Mediterrâneo, sendo quase todo cercadopor terra, podia permanecer surpreendentementecalmo por longos períodos; em alguns dias, eraum espelho plano e, no verão, era praticamentelivre de tempestades. Aqui, os grandes barcos aremo, conhecidos como galeras, eram

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privilegiados em parte pela ausência de vento emcertas épocas do ano. Sob tempo calmo, os remoseram as únicas forças motoras e possibilitavam àsgaleras entrarem nos portos estreitos que, sobvento contrário, eram muito arriscados para aaproximação de qualquer barco. Quando as rarastempestades chegavam e ondas de cristas brancassolapavam as praias de cascalho, essas galeraspodiam afundar em questão de minutos, es-quadras inteiras podiam desaparecer, e poucas vi-das seriam poupadas. Em 480 a.C, quando ospersas atacavam Atenas, o resultado da guerra foiparcialmente determinado pelo surgimento de umvento que jogou os navios persas contra a costarochosa da Grécia. Século após século, vidasfamosas acabaram influenciadas por essas tem-pestades ocasionais do Mediterrâneo.

O Mediterrâneo não apresentava grandesvariações de maré. O nível de suas águas mudavapouco durante o curso de 24 horas e, assim, osnavios podiam atracar no cais e nas docas e serdescarregados com relativa facilidade. Só em

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alguns portos rasos, os navios tinham de esperarpela maré alta antes de poder entrar ou partir. Acidade de Veneza, com canais em vez de ruas, sóera praticável porque a variação das marés eramínima.

As vantagens de um grande mar calmo eseus golfos profundos eram que uma grandepotência militar poderia comandar uma grandeárea. Sucessivamente, fenícios, gregos,cartagineses e romanos fizeram uso dele, e ali foivista pela primeira vez uma singular invenção: o

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barco a vela. O registro mais antigo de uma em-barcação a vela é uma decoração feita num vasoegípcio, por volta de 3100 a.C. A vela quadradaassemelhava-se a um grande quadro-negro sus-penso em um cavalete e, sem dúvida, foiempregada num navio que navegava pelo tumul-tuado Rio Nilo. Couro ou pele bem podem tersido usados para confeccionar as primeiras velas,mas já em 2000 a.C. estavam sendo substituídospor linho, extraído das fortes fibras da planta demesmo nome. O abastecimento garantido delinho continuou sendo um ingrediente essencialda força naval até o surgimento do barco a vapor.

O hasteamento das velas em mastros e ouso mais hábil das cordas andavam lado a ladocom um conhecimento cada vez maior dos vent-os. Na época do poeta Homero, os gregos jásabiam muito sobre os ventos e suas direções pre-valecentes; de fato, quando ao mar, o conheci-mento dos ventos e das estrelas era praticamentea única bússola existente. Assim, os marinheirosem alto-mar, numa noite escura, podiam verificar

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seu rumo, em parte, observando a direção da qualvinham os ventos úmidos, frios e sibilantes. Con-hecido como zéfiro, a origem desse vento geral-mente apontava o ocidente. As galeras eram dota-das de velas. Quando o vento soprava de umquadrante favorável, uma vela quadrada era le-vantada, porém, se o vento era brando, a tripu-lação usava os remos. Com o tempo, as pequenasgaleras deram espaço às galeras maiores, queeram especialmente feitas para combates no mar.Os remadores ficavam agora posicionados emdois conveses, em vez de em um só. Mais tarde,o trirreme surgiu com três conveses e, talvez, 170remadores. Os remadores, sentados no convés su-perior, tinham de manejar remos muito longospara que as pás pudessem alcançar a água bemmais abaixo. A combinação de velas e remos per-mitiu que os navios atingissem uma velocidadeque as velas sozinhas ou apenas os remos não ter-iam conseguido. Assim sendo, um leve vento depopa permitia que a galera, quando totalmentetripulada, aumentasse sua velocidade de 4 para 6

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nós, tornando desnecessários os remos; se asvelas fossem levantadas em dois mastros, o navioàs vezes se inclinava tanto que o uso de remos setornava impossível.

Em Atenas, as galeras navais dependiamprincipalmente do esforço de homens livres, masas galeras que transportavam carga dependiammais de escravos. Em um dia calmo qualquer,dezenas de milhares de escravos devem ter sidovistos trabalhando nos remos de navios de pro-priedade das cidades e colônias gregas. Seustornozelos eram presos por grilhões que os impe-diam de sair da posição ao lado do remo; se o na-vio em que estavam de repente afundasse duranteuma batalha ou tempestade, eles tinham poucaesperança de escapar. A região mediterrânea,principalmente sua margem norte, acabou se tor-nando o centro do poder e da criatividade. Suacrescente influência foi ajudada pelo lento e pau-latino domínio dos homens de terra sobre os na-vios e por outro fenômeno que aos poucos seacercava: o advento do ferro barato.

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Os artefatos de ferro sempre tinham sidoum luxo. O ferro, a princípio, não vinha dasrochas, onde era abundante, mas como uma dá-diva dos céus. Por muito tempo, o meteorito era aúnica fonte de ferro em uso; tendo origemceleste, frequentemente era reservado para rituaissagrados. Com o passar do tempo, o minério deferro foi encontrado nas rochas, cujos pedaçosmais pesados e mais ricos eram explorados deforma primitiva, fazendo-se tentativas de separaro ferro dos materiais improdutivos que per-meavam as rochas. A fundição de cobre funcion-ou como diretriz. Por volta de 1500 a.C, metalur-gistas desconhecidos, mas de grande inteligência,aprenderam a fundir minério de ferro aument-ando a temperatura do forno para mais de 1.500graus centígrados, que era 400 vezes mais alta(sic) que a temperatura necessária para a fun-dição do minério de cobre. Rapidamente, o ferrovindo da terra se tornou mais barato que o ferrovindo do céu; não obstante, o ferro metálicoainda era tão caro que a maioria dos europeus

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nem mesmo possuía um fragmento sequer dessemetal, que seria capaz de revolucionar o cultivoda terra e o corte de árvores.

Por volta de 1000 a.C, na parte central daGrécia, o ferro concorria com o bronze comometal precioso a ser enterrado com os mortos.Dois séculos depois, artefatos e armas feitas deferro estavam sendo amplamente usados ao longodo Mar Egeu. Embora a madeira permanecessemais importante, mesmo para a produção de fer-ramentas, a resistência e o poder de corte do ferroestavam mudando os conflitos de guerra, a agri-cultura e algumas outras artes.

A luz brilhante de Atenas

Em tempos mais recentes, períodos de al-guns poucos séculos têm sido marcados porbreves ciclos de vitalidade que, mesmo depois desuperados, parecem continuar brilhando como

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uma luz ao longo de uma costa solitária. Tais erasgeralmente têm sido confinadas a uma pequenaparte do mundo, embora o brilho de sua luzpudesse alcançar muito mais a seu redor. Os gre-gos acenderam esse tipo de luz: dia e noite, elabrilhava nos altos promontórios, dominandograndes extensões de mar e, por muitos séculos,podia ser vista de longe. Os colonizadores gregosse disseminaram. Hoje, no Mar Negro, os turistasnos barcos de passeio que contornam a costa doporto russo de Sukhumi são informados de quenavegam sobre um colchão de areia que cobre asruínas de uma antiga cidade grega. Já no século6º a.C, os colonizadores gregos ocupavam umafaixa de litoral no sul da França e da Espanha.Suas cidades eram espalhadas pelas costas do sulda Itália, da Sicília, do norte da África, das ilhasde Creta e de Chipre, bem como um grande cin-turão do que hoje é a costa da Turquia. Essas cid-ades eram pequenas, mas a maioria fervilhava devitalidade. Parte dessa vitalidade se refletia nasbrigas violentas que travavam entre si; se

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tivessem se unido, em vez de terem entrado emconflito, teriam conquistado a maior parte domundo ocidental.

Atenas emergiu como a mais impression-ante das cidades-Estado gregas. Seu território decolinas secas, conhecido como Ática, não eramaior que a atual área urbana da grande LosAngeles. Sua população total mal passava dos300 mil habitantes e, ainda assim, era o pedaçode terra mais influente que o mundo havia vistoaté então. Depois de ter sido queimada esaqueada pelos invasores persas em 480 a.C, seusmoradores revidaram e venceram o inimigo. Aderrota e a humilhação lhes deram oportunidadee incentivo; sonhos ousados foram erguidos sobrepedra. O Parthenon, cuja construção teve iníciopor volta de 447 a.C. e terminou em menos de 10anos, abrigava a elegante estátua da deusa Atena,esculpida por Fídias e adornada com ouro e mar-fim. Atenas e outras cidades-república da Grécialideraram um grande florescimento na história daarte. Aprendendo com os egípcios, os artistas

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gregos também lucraram com seu clima intelec-tual confiante e de grande empolgação. Possivel-mente, o período mais fértil foi entre 520 e 420a.C, quando a graça e a fluência marcaram tantasde suas construções, pinturas e esculturas. A ex-pansão do comércio exigiu algo mais organizadoe menos incômodo que o escambo de um con-junto de mercadorias por outro. Em 670 a.C, ailha grega de Egina foi uma das primeiras a cun-har moedas. Feitas de prata, eram reconhecíveispela figura de uma tartaruga marinha cunhada emuma das faces. O dinheiro facilitou o comércio debens, já que os mercadores aceitavam as moedasquando não havia outro artigo que elesdesejassem.

De minúsculos objetos a templosmajestosos, não havia limites para a habilidadedos artistas gregos. Dois diminutos amuletos es-carabeídeos, esculpidos em cristal de rocha nofim do século 6º, podem ser vistos no Getty Mu-seum, na Califórnia. Um representa um cavalobalançando o rabo enquanto é conduzido por um

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jovem; o outro é um pequeno anel, quase da corde groselha madura, representando um jovem nuraspando óleo, sujeira e suor de sua perna comuma lâmina curva. Na arte de viverluxuosamente, a elite das cidades gregas, espe-cialmente na Sicília e no sul da Itália, era perfec-cionista. As iguarias vinham de longe; peixesfrescos, incluindo espécies pequenas, como a as-cídia, eram um espetáculo e um cheiro comunsnos mercados. As aves foram introduzidas porvolta de 600 a.C, vindas da Índia, mas a ave pop-ular dos terreiros de fazenda gregos era apequena codorna.

Para os escravos e cidadãos mais pobres, osprincipais alimentos eram o trigo, a cevada, ofeijão e os frutos do carvalho que caíam no chão.A carne bovina era uma raridade. Às vezes, até oazeite de oliva, usado como "manteiga" no pão ecomo óleo para cozinhar, tornava-se muito caropara os lares de nível médio e, na verdade, amaioria das olivas cultivadas nas cercanias deAtenas era amassada, espremida e seu óleo

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despachado para portos distantes em grandes jar-ros de cerâmica. Para os pobres, beber vinho,sempre diluído em água, não era um prazer dodia-a-dia.

O lutador de Crotona

Os gregos foram os primeiros a se tornarobcecados por uma atividade muito característicada atual era: esportes competitivos. Seus JogosOlímpicos, abertos somente a cidadãos do mundogrego, tornaram-se um evento e data especial docalendário a cada quatro anos. Segundo se diz,começaram em 776 a.C. e, de início, eram umafesta de menores proporções. Competindo comocorredores, arremessadores, lutadores ou con-dutores de carruagens, os atletas gregos inicial-mente usavam roupas; mais tarde, porém, quasetodos preferiam ficar nus na arena abarrotada degente.

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Algumas cidades mais ambiciosas re-crutavam atletas e lhes pagavam bem se gan-hassem. Silenciosamente, o profissionalismo per-meou um festival que, mais tarde, foi aclamadopelos europeus como o coração do amadorismo,ao ressuscitarem os Jogos Olímpicos, em 1896.Uma cidade grega chamada Crotona, no extremosul da Itália, criou o desejo atual de ganhar aqualquer custo. Rica e gigantesca - andar emtorno de sua muralha requeria uma jornada dequase duas horas -, Crotona conseguiu atrair at-letas de outras cidades. Nos cem anos quecomeçaram em 588 a.C, os corredores de Cro-tona foram várias vezes vitoriosos.

Um de seus atletas, Milo, trouxe ainda maisglória a Crotona ao ganhar a luta livre olímpicapor seis vezes consecutivas. Seus ombros ma-ciços eram fortes o suficiente para carregar umboi vivo ao redor do estádio. Certa vez, devorouum boi inteiro num único dia. Quando caminhavapela cidade, respirando o ar do fim de tarde, suapresença deve ter sido um foco de orgulho cívico

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muito maior que o de outro dos imortais dessacidade, o eminente matemático Pitágoras.

A inveja e a rivalidade enfraqueceram ascidades gregas. Às vezes, vaticina-se que o es-porte internacional se tornara um substituto dasguerras internacionais, mas a experiência das cid-ades gregas de Crotona e Síbaris, que eram rivais,deixa dúvidas quanto a essa previsão. Síbaris,com ciúmes da proeza de Crotona nos esportes,criou a própria festa esportiva por volta de 512a.C. Crotona não se impressionou. Por fim, des-pachou para Síbaris um exército sob o comandode ninguém menos que Milo, o lutador. Gregoslutaram contra gregos, derramando sangue pelopiso dos templos e pela grama das arenas. A cid-ade da sensualidade ficou praticamente destruída.As cidades-Estado gregas aprenderam também aexcelência do esporte da política popular. Dandoseus primeiros passos na democracia, levaram-namais adiante que talvez qualquer outra dasprimeiras sociedades. Em Atenas, os proprietári-os de terras, reunindo-se quase toda semana,

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faziam discursos e davam instruções àqueles quebrevemente assumiam o Poder acima deles. Nin-guém durava muito no poder; mesmo o influenteconselho, consistindo de 500 homens, todos demais de 30 anos, estava em constante mudança.Seus membros eram escolhidos por sorteio ou lo-teria, e nenhum membro podia servir por mais dedois anos. Acima do conselho ficava outro grupo,sendo um de seus membros escolhido por loteriapara presidir formalmente a cidade e seu interior.Sua permanência no poder era surpreendente-mente curta. Ele governava simplesmente do nas-cer do sol até o nascer do sol do dia seguinte. Naverdade, a assembleia de cidadãos arrendava seupoder aos oficiais superiores, dividindo-o empequenos pedaços e, depois, juntava os pedacin-hos e os inspecionava.

Como poderia um estado pequeno, fre-quentemente envolvido em guerras, ser gover-nado com eficiência dessa forma? O chefe dasforças armadas era parcialmente isento do gov-erno de curta duração. No século 5º, no auge da

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democracia de Atenas, o chefe militar era eleitodiretamente, não mais por sorteio.

A democracia grega era vulnerável em tem-pos de crise ou guerra. Era lenta na tomada dedecisões e, como a maioria das democracias dostempos modernos, relutante na imposição dos im-postos necessários. Aristóteles, uma das notáveismentes da Grécia, detectou as virtudes e falhasdesse modo raro de governo. Ele lamentava ofato de que, se muitos proprietários de terra maispobres frequentassem a assembleia, suas reivin-dicações por subsídios para si mesmos sugariamtodas as forças do país. Em sua opinião, "ospobres estão sempre recebendo e querendo maise mais". Ainda assim, ele defendia a idéia de quetodos que possuíam terra deveriam partilhar odireito de governar seu país e o dever de pagarimpostos.

Em Atenas, as decisões públicas eramtomadas diretamente pelas pessoas, e não a dis-tância, como é hoje a prática em todas as grandes

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democracias. Mas a democracia de Atenas, comoa estrada que ia da cidade ao porto de Pireu, eraenclausurada por paredes. Somente aqueles clas-sificados formalmente como cidadãos tinhamdireito de falar e votar e, a partir do ano 451 a.C,um cidadão ateniense que se casasse com uma es-trangeira privava, consequentemente, todos osfilhos desse casamento do direito de votar. Ospobres não votavam, as mulheres e os inúmerosescravos não votavam; somente os proprietáriosde terras podiam votar, mas muitos fazendeiroseram muito pobres ou moravam muito longe deAtenas para poderem parar o trabalho e estarpresentes aos barulhentos debates.

Os atenienses acreditavam na democracia,embora não acreditassem na igualdade. Na opin-ião deles, as pessoas nasciam desiguais e nuncaconquistariam a igualdade. Num discurso de con-fronto, em 330 a.C, o orador Demóstenes demon-strou desdém a um orador rival, Esquines,acusando-o de provir de uma família humilde:"Quando menino, você foi criado em extrema

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pobreza, servindo com seu pai em sua escola,moendo tinta, limpando os bancos, varrendo assalas, fazendo as obrigações de um criado, aocontrário de um homem nascido livre." Era comose o passado humilde de uma pessoa nuncapudesse ser perdoado. A habilidade de falar eprender a atenção das pessoas, seja como umcontador de histórias ou um poeta, um profeta ouum persuasor, tinha sido estimada por mais demil sociedades tribais e analfabetas diferentes noespaço de inúmeros anos. Os gregos a chamavamde oratória e a transformaram numa forma dearte. A oratória também era uma ferramenta depoder, porque as assembleias ao ar livre, compos-tas de eleitores violentos e temperamentais, àsvezes chegando a seis mil, podiam ser facilmenteenvolvidas por um orador eficaz.

Mestras do debate, as cidades gregas quepontilhavam as margens do Mediterrâneo tam-bém eram mestras da violência, quando ne-cessário. Enquanto Atenas ouvia as doces palav-ras dos oradores, os gregos na Sicília estavam se

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massacrando e se torturando. Agátocles, gov-ernante da poderosa cidade-Estado de Siracusa,matou quatro mil homens em um dia. Os ro-manos acabariam batendo esse recorde.

As notáveis cidades portuárias da Grécia,mesmo após a morte da democracia, fervilhavamcom energia intelectual. Hoje, muitos estudiososrenomados sugerem que Platão de Atenas foi omais talentoso de todos os filósofos, enquantoAristóteles é reverenciado no que hoje é chamadode ciência política. Na arquitetura e nas artes, ascidades gregas, embora gratas ao Egito, abriramnovos caminhos. Na medicina, um médico napequena ilha de Cós foi o primeiro no mundoocidental e seu nome continua vivo no juramentode Hipócrates, o juramento ético da medicinamoderna. Na física, na ética, na linguística, nabiologia, na lógica e na matemática, os melhoresdos pensadores e pesquisadores gregos eramcomo uma sucessão de luzes piscando na escur-idão. A história, derivada de uma palavra grega,foi outra área na qual os gregos foram

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desbravadores de caminhos; sua vitalidade egênio também se estenderam ao teatro, esportes epolítica democrática, bem como idéias abstratasde grande complexidade.

A engenharia foi outra potência dos gregos.Na Ilha de Samos, no século 6º a.C, um túnel deum quilômetro foi escavado através de um morrode calcário para drenar uma fonte de abasteci-mento de água doce. Mais ou menos na mesmaépoca, os pedreiros gregos foram os primeiros ausar o formão dentado, tão útil nos trabalhos commármore; seus construtores provavelmente foramos primeiros a usar o guindaste para içar materi-ais até os muros elevados, ainda que os escravosfossem preferidos ao uso de guindastes. Comoum todo, os gregos se sobressaíram mais na ciên-cia do que na tecnologia. Até suas armas mais en-genhosas exigiam trabalho físico em larga escala.Durante o cerco de Rodes, em 304 a.C, uma torreportátil e um arremessador de pedras que semovia sobre rodas foram construídos para auxili-ar no ataque, mas vários milhares de homens

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foram necessários para rebocá-lo até o local.Uma nova cidade do Egito, chamada Alexandria,acabou se tornando a principal herdeira datradição ateniense. Fundada em 331 a.C, a cidadeascendente tornou-se a máquina intelectual domundo ocidental. Uma notável biblioteca emuseu foram construídos. Grandes estudiososgregos, tais como Euclides, chegaram paraenriquecê-la com suas idéias; as pesquisasmédicas avançaram com o anatomista Herófilo,que dissecou o cérebro e o olho humanos no ano285 a.C; um quarto de século depois, nascia umaescola médica de grande fama. Os judeus vierampara a cidade em grande número para comerciar,e os estudiosos judeus os acompanharam etraduziram seu Antigo Testamento do hebraicopara o grego. Essa versão era conhecida comoSeptuaginta, por ter sido o trabalho de 72tradutores.

Se houvesse o Prêmio Nobel para ciência,medicina e literatura naquela época, Alexandriateria sido o lar de ganhadores do prêmio, mais

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que qualquer outra cidade. Ainda assim, todaessa engenhosidade não transformou o trabalhodiário de uma civilização na qual os escravos ser-viam como máquina para todos os propósitos. Al-exandria e outras cidades gregas provavelmenteforam capazes de dar vários passos que con-stituíram, mais de dois mil anos depois, a re-volução industrial, porém eles não precisavam deuma revolução industrial. A poderosa civilizaçãohelenística, agora concentrada em Alexandria enas antigas terras gregas, na Europa e na ÁsiaMenor, não tinha carência de autoestima; era fre-quentemente imitada. Mais de 2 mil anos depois,o mapa do mundo, incluindo terras nunca con-hecidas pelos gregos, foi regado com vozes elembranças da Grécia. Nos Estados Unidos, aprimeira capital, Filadélfia, trazia consigo umnome grego. No norte do Estado de Nova York,surgiu Syracuse (Siracusa), Ithaca (Itaca) e umconglomerado de cidades com nomes em hom-enagem à Grécia Antiga. Na Austrália, na décadade 1850, os garimpeiros de ouro que saíam de

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Melbourne em direção às novas minas de ouropassaram por duas montanhas, Monte Macedônioe Monte Alexandre.

Um arquipélago no Alasca e uma ilha emfrente à Antártida têm ambos o nome de Alexan-dre. No século 19, os três maiores impérios domundo foram, por muito tempo, presididos pormonarcas que tinham nomes gregos: a rainha Al-exandrina Vitória, da Inglaterra; Alexandre II, daRússia, e Luís Felipe, da França. Talvez a maiorinfluência exercida pela civilização helenísticatenha sido o Império Romano. Os romanos, prin-cipalmente após 200 a.C, imitavam com alegriatudo que era grego. Admiravam a literatura, oteatro, a comida, a política, as artes visuais, aoratória e uma boa parte do estilo e da culturaque havia florescido e se moldado inicialmenteem Atenas. Esse processo de imitação foi com-parado à imitação mundial da América na culturapopular de hoje. Atenas conseguia persuadir comas formas mais imprevisíveis. Muito tempo haviapassado desde sua iniciação na política quando,

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finalmente, ela se tornou a silenciosa mestra dosromanos.

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CAPÍTULO 7 - Senhordo Amarelo - Rei doGanges

Uma estrada de campinas cobria pratica-mente toda a área, às vezes interrompida pormontanhas e lagos, desde o centro da Europa atéo leste da Ásia. Seguia desde as margens do RioDanúbio às florestas da Manchúria. Medida decosta a costa, essa estrada de grama ia quase doMar Adriático ao Mar Amarelo. As terras aolongo desse corredor abrangiam solos ricos epobres; no sul da Rússia, onde o solo era rico e oclima mais ameno, eram chamadas de estepe. Ali,logo após o ano 2000 a.C, as pessoas começavama conseguir uma importante conquista: estavamdomando, ou domesticando, o cavalo que até en-tão havia sido caçado simplesmente pela carne.Não tão altos quanto o pônei típico de hoje, essespequenos cavalos nativos eram um patrimônio.

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Quando treinados, eram aliados fiéis e inteli-gentes; se perdiam seu cavaleiro, conseguiamachar o caminho de volta para casa. Forneciamleite para as crianças e, assim, permitiam que asmães parassem de amamentar os bebês aindacedo. Com o tempo, o espaço entre uma gravideze outra se tornou menor e, com isso, a populaçãodas estepes teve a chance de crescer mais rapida-mente. O cavalo podia fornecer carne, principal-mente no inverno, quando a comida era escassa, eseu esterco, quando seco, servia de adubonaquelas estepes cobertas de grama onde asárvores eram poucas. Graças ao cavalo, as campi-nas esparsamente povoadas acabaram abrigandomais pessoas do que antes: talvez até demais.

Muitos séculos mais tarde, principalmentedepois de 700 a.C, os cavaleiros aprenderam amontar os cavalos para a guerra. Cavalgando lon-gas distâncias, eles podiam pegar um inimigo desurpresa ou recuar rapidamente, quando ne-cessário. Por volta de 500 a.C, a invenção do es-tribo, de fato um descanso para os pés feito de

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metal suspenso por uma cinta de couro, permitiuque os cavaleiros ficassem em pé num cavalo quese movia velozmente e usassem toda a sua forçapara arremessar lanças contra os soldados inimi-gos em terra.

Os cavalos compensavam a falta de com-panheiros quando os saqueadores da estepe tin-ham de enfrentar um inimigo mais numeroso.Um cavalo de guerra frequentemente valia pordez soldados em terra, lutando no lado doinimigo.

Vista panorâmica da China

Por volta de 1500 a.C, de certa forma a Ch-ina estava atrasada em relação à população dosvales dos rios do Oriente Médio em organizaçãopolítica, na arte da produção de metais, na escritae, provavelmente, na agricultura e na astronomia.Contudo, como fabricantes de cerâmica em

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fornos, a China e o Japão estavam muito avança-dos. Essa habilidade com o fogo abriu caminhopara avanços na metalurgia. A fundição dobronze tornou-se uma especialidade dos chineses,e suas carruagens de caça eram decoradas combronze, quase como o cromo nos grandes carrosamericanos do pós-guerra. Em seguida, oschineses começaram a fazer ferro fundido e, porvolta de 400 a.C, aprenderam a se especializar namanufatura de relhas de arado, a forte lâminacortante que revirava 0 solo. A produção do altocalor necessário nos fornos era conseguida at-ravés de uma explosão vinda de foles sofisticadosde dois cilindros. Alguns dos foles seriam, maistarde, movidos pela força vinda da água que jor-rava dos riachos estreitos.

Nos 500 anos ou mais que antecederam oprimeiro milênio cristão, os chineses foram omais criativo dos povos dos quais se tem registro.Em metalurgia, eram imbatíveis. Na manipulaçãoda água para irrigação, inventaram novos méto-dos. Na matemática e na astronomia, procuraram

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novos conhecimentos. Com teares, produziramseda para confeccionar belas peças de roupa.Tornaram-se hábeis em transportes puxados a an-imais e força humana, usando carrinhos de mãoempurrados por homens, carroças e arados puxa-dos por bois, e carruagens puxadas por cavalos.Os governantes dos maiores Estados dentro daChina viviam no luxo e serviam-se de generosasparcelas da riqueza produzida pelos camponesese artesãos que trabalhavam duro. Embora muitoschineses possuíssem os próprios lotes de terra,tinham de dedicar parte de seu tempo às ne-cessidades de seu governante, em obras públicasou lutando em guerras locais. Na morte, os gov-ernantes também se serviam dos camponeses.Quando morria um rei, até 40 pessoas podiam serenterradas com ele. Nos séculos anteriores, eramenterrados com a crença de que poderiam servi-lona vida após a morte com a ajuda de alguns dosmilhares de artigos de jade e bronze que eram en-terrados com eles. Mais tarde, porém, os trabal-hadores que construíam os elaborados túmulos

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eram enterrados para que não revelassem a nin-guém o segredo da entrada nas câmaras, cuida-dosamente trancadas, e roubassem os tesouros. AChina era constituída por mais de cem pequenosEstados independentes, porém, entre cerca de 700e 464 a.C, a maior parte deles foi eliminada, prin-cipalmente como resultado de conflitos deguerra. Sete reinos mais importantes passaram agovernar a China. A sucessão de guerras reduziuo número de reinos a dois e, mais tarde, a um só.Por isso, em 221 a.C, a China estava unificada.

A maior influência no treinamento da novaburocracia chinesa foi Confúcio. Ele era um estu-dioso do tipo mais provável de ser encontrado emAtenas do que, talvez, em qualquer outro Estadoao longo do Mediterrâneo; chegou à visão de quea vida bem vivida era mais importante do quequalquer vida após a morte. Nascido em 551 a.C,no coração da China, num principado de menorimportância, próximo ao Rio Amarelo, ele per-tencia a uma ala pobre e antiga da aristocracia. Aprincípio ocupou postos rurais, tais como

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administrar estábulos de cavalos e manter regis-tros dos celeiros de grãos: o tipo de tarefas demenor importância que jovens ambiciosos, hoje,citam em seus currículos na esperança de con-vencer futuros empregadores de que não eramociosos. Com o passar do tempo, Confúciotornou-se professor em tempo integral, umaprofissão à qual, na época, não era dada grandeimportância. Ele acreditava que a nobreza dever-ia governar de forma sábia e humana. Acreditavanuma hierarquia mais do que na igualdade, tendiaa acreditar no velho mais do que no novo epensava que os ancestrais tinham muito que en-sinar aos mais novos. Exaltava a cortesia e alealdade, a humildade e a delicadeza. Uma vez,em resposta a uma pergunta sobre o tipo de pess-oa que ele era, descreveu-se com charme na ter-ceira pessoa: "ele é o tipo de homem que se es-quece de comer quando se engaja numa buscavigorosa do saber, que tem tanta alegria que es-quece suas preocupações e não nota que a velhiceestá chegando". Morreu aos 73 anos, não tendo

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criado nenhuma igreja ou instituição, mas suasidéias continuaram vivas, sendo reinterpretadaspor diferentes gerações. Nenhum outro pensadorsecular, ainda hoje respeitado, exerceu tamanhainfluência, que soma hoje um total de 2.500 anos.

A grande muralha

A China tinha uma unidade linguística ecultural notável, mas sua unidade política eraprecária. Sentia-se muito mais próxima dascampinas, que nutriam os cavaleiros tão hábeisnas lutas, e acabou sofrendo ainda mais que aEuropa com suas invasões. Estranhamente, o Im-pério Romano nunca construiu uma grande mur-alha para se defender dos invasores que se aprox-imavam por terra; mas a China, ainda num per-íodo inicial, teve de planejar uma imensa muralhapara manter sob vigilância seus inimigos, quehabitavam as terras secas e esparsamente povoa-das do noroeste.

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A Grande Muralha da China foi concluídaem 214 a.C, embora, por outro lado, nunca tenhasido finalizada, porque tinha de ser constante-mente prolongada ou ampliada. Refletia a capa-cidade de organização dos governantes e a forçae resistência das centenas de milhares de trabal-hadores que foram designados compulsoriamentepara as tarefas nacionais. Estes tinham menosmotivos que seus governantes para admirar amuralha; tinham sido levados para longe de casa,talvez nunca mais voltando a ver suas famílias,para trabalhar longas horas nas pedreiras efábricas de tijolos que alimentavam a muralha.Logo perceberam que o terreno próximo à mur-alha era acidentado e, em determinado trecho, amuralha teve de fazer um enorme desvio paraevitar a grande curva do Rio Amarelo (HuangHe). No total, a muralha e suas voltas se es-tenderam por 6.300 quilômetros. Se uma muralhasemelhante tivesse sido construída na parte maisselvagem da Austrália, de leste a oeste, não teriasido maior que a Grande Muralha da China. Em

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tempos de perigo, o exército chinês que guardavaa muralha deve ter sido muito numeroso pelospadrões da época. Para manter vigilância con-stante na maioria das torres, quando um invasorera esperado, devem ter sido necessárias dezenasde milhares de olhos. Além disso, a muralha re-queria um grande número de soldados cuja prin-cipal tarefa era lutar, em vez de vigiar.

Com o passar do tempo, outro fator ajudoua promover a unidade política da China. En-quanto a Europa era recortada por grandes reen-trâncias de mares e longas penínsulas, a costa daChina era mais regular em sua forma. MuitosEstados europeus podiam se manter independ-entes por longos períodos porque eram ilhas oupenínsulas e, assim, o mar os defendia. O mar,em toda a sua imprevisibilidade, com certezaoferece uma defesa contra os inimigos que nave-gam águas desconhecidas. Com bastante frequên-cia, na história da Inglaterra e da Grécia, por ex-emplo, as invasões foram frustradas por tempest-ades. Um estreito oferece uma defesa natural

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mais forte do que uma margem de terra. A popu-lação chinesa era comparável à da Europa. Nosseis séculos entre 300 a.C. e 300 da nossa era, hádúvidas de que a população da Europa tenha su-plantado a da China por mais de alguns poucosanos. A maioria dos chineses vivia na bacia doimponente Rio Amarelo. Nessa época, ele era oNilo da China, porém menos domável que o Nilo.O Rio Amarelo despencava em quedas-d'água,corria suavemente e se revolvia em ondas durantedias antes de atingir as planícies mais baixas daChina. Incapaz de decidir para onde ir, ele corriapara o norte por cerca de 800 quilômetros e, en-tão, corria para o sul - como se não tivesse nen-huma intenção de jamais se voltar para o leste edesaguar no Mar da China. Os que sobrevoamessa parte irregular do rio podem ver um veiomarrom nos desfiladeiros, com florestas de umlado e fazendas secas distribuídas do outro lado,sem ponte alguma interligando as duas margens.

As árvores já foram um dia mais numerosasque hoje. Com o crescimento da população, o

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corte de árvores para lenha ou para a produção decarvão levou à erosão maciça dos terrenos es-carpados. O Rio Amarelo, cheio de sedimentos,tornou-se uma torrente de uma grossa sopa de cormarrom. O povo da China não tinha meios desaber que esse rio era o maior carregador de sedi-mentos do mundo, com o qual o Amazonas e oNilo não chegavam nem a ser comparáveis.

O rio era tão fundamental, porém tão tem-pestuoso, que tinha de ser cortejado com sacrifí-cio humano. Por volta de 400 a.C, era costumeacalmar o invisível Senhor do Rio Amarelooferecendo-lhe anualmente um presente humano.Uma bela menina era vestida de noiva e colocadanum bote de madeira, em forma de cama de núp-cias, que era empurrado para dentro do rio im-petuoso, onde a noiva rapidamente sumia devista. Para domar o rio, era preciso engenhosid-ade e, para construir e reconstruir os aterros e osmuros de contenção, o recrutamento de um exér-cito de trabalhadores. Em 109 a.C, o im-perador ergueu um pavilhão em

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homenagem a todas as pessoas quetaparam buracos nos diques e, assim, sal-varam os vilarejos das águas furiosas. Acada década, o leito do rio continuava asubir e, por essa razão, os aterros tinhamde ser ainda mais elevados; em várioslugares, o fundo do rio estava bem acimado nível das planícies adjacentes. Emséculos diferentes, o Rio Amarelo correuimpetuosamente para o mar, ora ao norte,ora ao sul das montanhas da PenínsulaShandong (Shantung), o que nos dá umamedida do poder e da flexibilidade desserio.

Enquanto o Nilo era confinado a planíciesestreitas, o Rio Amarelo se recusava a ficar con-finado. Seu vale era possivelmente o lugar maisdensamente povoado do mundo durante os cincoséculos que precederam a era cristã. Mesmo em500 a.C, época em que as cidades portuárias daGrécia e o Império Persa estavam ambos flores-cendo, uma linha de grandes cidades prosperavaao longo do vale do Rio Amarelo. Seu vale ou

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planície era o eixo central da China e contavacom bem mais de metade da população: a mi-gração de pessoas em direção ao Yang-tse-kiang,na parte central da China, e ao sul do país, declima quente, começou mais tarde.

À medida que a produção de milho-miúdoe de arroz se tornava mais eficiente e surgiam oscanais de irrigação, as fazendas podiam sustentarcidades maiores. Algumas eram defendidas porlongas muralhas feitas de terra socada. Uma des-sas muralhas era um maciço de 36 metros de lar-gura na base e se estendia por uma área tão ex-tensa que cercava toda uma pequena cidade. Amovimentação de terra para a construção dessasmuralhas teria ocupado aproximadamente 12 milpessoas por mais ou menos 10 anos e, por suavez, essas construções eram abastecidas por umaprocissão de carroças carregando agregados. Aolongo do Rio Amarelo, várias cidades crescerama um tamanho tal que deve ter impressionado to-dos os viajantes que passavam por seus portões.A nova capital Loyang (atualmente Luoyang),

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fundada em 25, tinha uma população de aproxim-adamente meio milhão: talvez só Roma fossemaior.

A China tinha algumas das característicasdo Império Romano e uma delas era a extremaimportância do exército de fronteiras. Espaçadasao longo das estradas chinesas ficavam centenasde casas de repouso oficiais, com camas, lugarespara lavar roupa e preparar comida e estábulospara os cavalos. Mensageiros vinham montados acavalo, trazendo mensagens secretas escritas empedaços de madeira e acondicionadas em tubosde bambu, que eram então lacrados, proporcion-ando assim segurança máxima. Em pontos bemespaçados ao longo das estradas, havia postos deadvertência que, em tempos de emergência, po-diam transmitir sinais de fumaça ao próximoposto que, por sua vez, acendia o fogo e retrans-mitia o sinal. No ano de 74, a notícia da morte doimperador foi repassada por aproximadamente1.300 quilômetros no espaço de 30 horas, prin-cipalmente com a fumaça proveniente dos postos

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de advertência. A China era parecida com osEstados Unidos no século 19, quando umaabundância de floresta virgem e pântanos podiaser ocupada para agricultura, servindo, assim,como uma válvula de escape para a pressão dapopulação. No sul da China, as imensas áreas defloresta, de bosques espalhados e de planícies derios tropicais sustentavam poucas pessoas. Mascentenas de milhares de camponeses vindos donorte estavam migrando para o sul à procura deterra; o arroz estava sendo plantado como o prin-cipal produto do sul e era grande sua demandapor água. Aqui, também, a árvore do chá foi cul-tivada pela primeira vez, dando à China umproduto que, mais de mil anos depois, acaboubrilhando mais que a seda aos olhos da Europa.

A Coréia e o Japão ficavam à sombra daChina e suas novas idéias e técnicas, mas a luztambém brilhou na direção deles. A novametalurgia chegou e o ferro começou a substituira pedra nas pontas dos machados e nas extremid-ades afiadas das foices que ceifavam os grãos.

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Um novo tipo de cerâmica foi feito com a roda detornear e colocado em um forno para ser aque-cido a altas temperaturas. Antes de 500 a.C, umnovo produto alimentício, o arroz, atravessou daChina para a Coréia e o Japão e começou a trans-formar as refeições diárias.

A ilha da Índia

Na Ásia, nessa época, o único rival poten-cial da China era a Índia. Na verdade, ficavammuito longe uma da outra para serem verdadeirasrivais e sabiam muito pouco uma da outra. O fatode as duas estarem na Ásia não significava nadapara elas; a Ásia era um conceito europeu emgeografia e, por muito tempo, o conceito foidesconhecido dos mais cultos dos chineses, quepensavam que a China era muito importante paraser parte de qualquer outra unidade geográfica.

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A Índia, ao contrário da China, era pratica-mente uma ilha. Isolada da maior parte da Ásiapelas montanhas do Himalaia, que se voltavampara o leste por mais de 2.500 quilômetros,podia-se chegar à Índia mais facilmente pelonoroeste. Nesse local, as passagens das montan-has incentivavam o tráfego. A Índia ficava maispróxima das civilizações do Oriente Médio e daGrécia do que do coração da China, e a posiçãoexata das passagens das montanhas aumentava aprobabilidade de suas ligações privilegiarem omundo mediterrâneo. A principal língua da Índiapertencia à família indo-europeia, não à chinesa.A maioria de seus invasores veio da Europa; seucomércio externo, por mar ou por terra, tambémprivilegiava essa direção.

Dentre os países dos trópicos e de zonastemperadas do mundo, a Índia possui uma áreade picos gelados maior que qualquer outra;abrange também uma grande área de climaquente. Felizmente, as altas montanhas, com oderretimento da neve e do gelo, forneciam uma

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grande vazão de água às planícies secas durante overão. A água derretida das montanhas ajudava acompensar as deficiências e irregularidades daschuvas que vinham principalmente com amonção de sudoeste, proveniente do Oceano Ín-dico. O Rio Ganges era um filho dessas montan-has cobertas de neve. Normalmente, corria o anotodo, carregando água através de uma enormeplanície. Depois de 1000 a.C, a região do Gangessubstituiu a do Indo como a parte populosa dosubcontinente indiano. As cidades se multipli-caram ao longo do vale e as fazendas tiveram dese multiplicar para conseguir alimentar as cid-ades. Antes de 400 a.C, a Índia provavelmente játinha 30 milhões de pessoas. No mundo inteiro,somente a China moderna pôde suplantar essamultidão de pessoas. Nessa época, é provável quea China e a Índia, juntas, tivessem um terço dapopulação mundial, talvez mais. As planíciescheias de sedimentos e os rios alimentados pelaneve eram o segredo de sua capacidade desustentar tão grandes populações. O Rio Amarelo

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traz consigo, num ano típico, uma carga de maisou menos 2,1 milhões de toneladas de solo, muitomais que qualquer outro rio do mundo. Em se-gundo lugar vem o Ganges, com mais ou menos1,6 milhão de toneladas. Aproximadamente met-ade dos sedimentos desses rios é depositada nodelta e nos estuários dos afluentes, embora umaboa parte venha a se depositar em fazendas ecanais de irrigação. Esses poderosos rios cheiosde lama da Índia e da China não têm rivais; semo enorme volume de sedimentos, a populaçãotanto da China quanto da Índia teriam sido bemmenores. Enquanto o talento especial da Chinanessa época era a tecnologia, o da Índia era a reli-gião. O hinduísmo, que chegou com os migrantesindo-europeus, venerava seus sacerdotes, ou brâ-manes, quase como deuses. Era uma religiãoflexível, voltada para a criação de ramificações esegmentos. Seus devotos iam desde ricos sacer-dotes e andarilhos esfarrapados a multidões quecombinavam um hinduísmo mais moderno comseus antigos ídolos. A religião nunca foi estática;

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numa fase inicial, sacrificava animais emocasiões importantes e, mais tarde, tendia a santi-ficar a maioria das coisas vivas. Ia desde umacrença em muitos deuses especialistas a umacrença no deus supremo, Brahma. Os hindusacreditavam que todas as criaturas tinham umaalma e que, após a morte, ela migrava para outrocorpo. A idéia hoje é vista essencialmente comose um ser humano pudesse renascer numa var-iedade de espécies de animais ou de insetos; as-sim sendo, vacas e cabras, ácaros e insetos tin-ham de ser tratados com respeito. Por que a vaca,o único dentre os animais fornecedores de carne,era venerada de forma especial na Índia é ummistério.

O hinduísmo não dependia de que seusseguidores se reunissem em grande número numtemplo: seus templos feitos de madeira não eramsalões de reunião, mas afirmações de fé. O credoera cheio de regras para a vida diária e para avida eterna. Também enfatizava a reciclagem devidas. Essa idéia implantava um pouco de

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esperança, enquanto abençoava as misérias dostatus quo. A consolação de viver na pobreza eser humilde em seu estrato era que a vida de umapessoa, se vivida virtuosamente, poderia ser re-compensada na morte pela passagem da alma aum ser mais digno. Por outro lado, havia a pos-sibilidade de a alma da pessoa morta, ao retornarà terra, passar a um animal inferior. É impres-sionante que a Índia tenha se tornado uma demo-cracia nos tempos modernos, porque a duradouracivilização hindu, à primeira vista, era natural-mente hostil às idéias de que todos os adultosdeveriam ter voto igual, independentemente desua casta, e de que todos os adultos deveriampoder compartilhar da mobilidade social que eraparte do espírito democrático. Mas o enxerto deárvores mais novas naquelas mais velhas, quandoparece haver pouca esperança de sucesso e de vê-las crescer com vigor, não é uma experiência rarade se ver nas instituições humanas.

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O filho pródigo torna-se o Buda

No século 6? a.C, o hinduísmo, tolerante dediversidades, deu origem a novas religiões. Deuinício ao jainismo e ao budismo, mais influente.A história de Sidarta Gautama, o fundador dobudismo, tinha semelhanças com a de Cristo.Nascido na fase da Lua cheia, sua chegada foi re-cebida não por três reis magos e sábios, mas porum só. O pai de Gautama era um príncipe nepalêsque vivia próximo à fronteira da Índia, nas planí-cies quentes que eram uma nascente do RioGanges. Possuía três palácios onde Gautama,quando mais velho, aproveitava os entretenimen-tos que eles proporcionavam. Não apresentandonenhum sinal inicial daquele senso de dever quemais tarde pregaria, era constantemente entretidopor mulheres e música; vivia de regalias, um tipode filho pródigo. Casou-se com sua prima etiveram um filho, mas isso não trouxe nenhumsenso de responsabilidade a Gautama.

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Um dia, para surpresa de seus amigos, eleprocurou a salvação. Saiu de casa à noite, mont-ando seu cavalo, e sua vida mudou para sempre.Seguindo a forte tradição indiana do asceticismo,ele tentou punir o próprio corpo; por fim, perdeutanto peso que suas costelas projetavam-se parafora "como ripas de um telhado". Após resistir amuita dor e passar longo tempo retirado, ele en-controu a luz. Tornou-se "O Iluminado", ouBuda. Daí em diante, Buda procurava a san-tidade. Achava essencial aniquilar o eu: a metafinal era o nirvana, uma condição ideal em queele praticamente se extinguiria. Buscando a metada auto-extinção silenciosa, ele foi recompensadocom uma felicidade inexprimível. Ganhou a ad-miração de muitos dos pobres, pois não aceitavaa idéia hindu de castas. Atraiu também os ricos,que estabeleceram em cidades e vilas ao longo doGanges mosteiros budistas para os homens quedesejassem se aperfeiçoar. Montou uma ordemreligiosa para as mulheres, e sua tia foi a primeiraa entrar para o convento. Na estação seca, Buda

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deslocava-se de um local para outro, pedindocomida e ensinando a palavra. Os que lhe davamcomida sentiam que compartilhavam um poucode sua santidade. Como Francisco de Assis, queveio a domar um lobo selvagem na parte centralda Itália na era cristã, Buda conseguiu domar,com sua calma presença, um elefante enfurecido.Seus ensinamentos foram mais tarde resumidospelo político indiano Mahatma Gandhi nas palav-ras: "A vida não é feita de prazeres, mas de re-sponsabilidades." Nessa época, as partes dinâm-icas do globo eram a Índia, o leste do Mediter-râneo e a China. Muito distantes umas das outras,tinham poucas ligações entre si e, ainda assim,cada uma vivia simultaneamente uma épocafrutífera. Por volta de 480 a.C, Buda, já idoso,pregava sua palavra ao longo do Ganges, Confú-cio escrevia seus preceitos no norte da China, eos atenienses, tendo acabado de derrotar os per-sas na Batalha de Maratona, cultivavam as artes ea democracia sobre as quais sua fama veio afirmar-se. Buda morreu em cerca de 486 a.C,

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quando estava perto dos 80 anos de idade. Suamorte foi muito sentida na região, mas seu credonão parecia provável de ganhar adeptos além dasmargens do Ganges. Pouco mais de dois séculosapós sua morte, houve uma mudança de sorte.Aconteceu que o rei Asoka tornou-se o primeirogovernante de quase toda uma região que, naépoca de Buda, havia sido fragmentada em mui-tos reinos. Governando a partir de uma cidade noGanges, esse poderoso rei - talvez o mais poder-oso do mundo - tornou-se devoto do budismo eaté erigiu santuários em honra às cinzas de Buda.Numa época em que o budismo poderia, ao con-trário, ter sido deixado de lado pelo credo maisbásico e versátil do hinduísmo, o rei silen-ciosamente espalhou sua mensagem religiosa.Um rei com poder absoluto é o mais persuasivode todos os missionários, e em curto prazo. Aprincípio, era o hinduísmo que atraía osestrangeiros; renovando-se de tempos em tempos,espalhou-se ao longo da costa do SudesteAsiático e por várias ilhas. A fase da forte

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influência hindu no Sudeste Asiático durou sécu-los e, então, por toda parte, os deuses hindus re-cuaram. A pequena Ilha de Bali, bem longe dadesembocadura do Ganges, continua sendo umposto hindu solitário.

Na história das religiões do mundo, o norteda Índia compete com o Oriente Médio como olocal mais fértil de nascimento de religiões. Curi-osamente, as religiões indianas pouco avançaramem direção ao ocidente. Seus centros de recruta-mento ficavam a leste. O budismo provou ser orecrutador mais bem-sucedido, e suas vitórias vi-eram a ser ganhas em terras onde a Índia nãohavia tido quase nenhuma influência comercialou cultural durante a vida de Buda.

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CAPÍTULO 8 - Aascensão de Roma

Roma foi construída, como seus histori-adores e escritores de fábulas gostavam de pro-clamar, sobre sete colinas; nem todas as colinas,no entanto, eram povoadas nessa jovem Roma. Acidade era muito pequena para que um tal espaçofosse necessário. Atrás da cidade murada, corriao Rio Tibre, que desaguava no Mediterrâneo, amenos de 40 quilômetros de distância. Às vezesamarelado em decorrência da lama arrastadapelas águas desde as colinas íngremes após chuvaforte, o rio era usado por pequenos barcos quetransportavam carga para cima e para baixo desua desembocadura. Inicialmente, um monarcagovernava a cidade e o pequeno território aoredor, mas, em 509 a.C., as famílias proprietáriasde terras foram vitoriosas, e sua república veio adurar quase cinco séculos. A pequena cidade de

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Roma ainda lutava para sobreviver. Em 390 a.C,foi sitiada durante sete meses por um exército degauleses que, finalmente, entrou e destruiu met-ade da cidade. Roma ainda não comandava nemmetade da Península Itálica. Em 300 a.C., nemmesmo controlava Milão e a região de Veneza,que ainda não era uma vila. Roma governava al-gumas das ilhas do lado oeste do Mediterrâneo,quase todas elas do lado rival e sob influência deCartago, a poderosa cidade na costa norte daÁfrica. O talento de Roma estava na produção degenerais e soldados, almirantes e marinheiros.Esses guerreiros, tendo subjugado os vizinhossabinos, etruscos e os picentinos, começaram adesafiar o império terrestre e marítimo baseadoem Cartago. Em 240 a.C, os romanos contro-lavam a rica ilha da Sicília, outrora parte da civil-ização grega; no ano seguinte, capturaram a ilhacartaginesa de Sardenha. Em seguida, Aníbal, ogrande general de Cartago, pareceu por algumtempo ter grande chance de vencer Roma, poishavia conduzido um exército vitorioso pela

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Espanha e pelos Alpes franceses, avançandoItália adentro. Suas forças, porém, foram final-mente derrotadas em 207 a.C. Eram os romanosque agora expandiam seu império no estrangeiro,facilmente penetrando no domínio de Cartago, nonorte da África. Dessas novas posses no norte daÁfrica e na Sicília, vinha uma procissão de navi-os cujas cargas de grãos eram necessárias para al-imentar a cidade de Roma, em franca expansão.

Para os gregos, o mar era uma estrada nat-ural, mas os romanos construíram as próprias es-tradas. Em 312 a.C, engenheiros romanoscomeçaram a construir a primeira de suas artéri-as, a Via Ápia, que ia desde Roma ao porto deTarento, no sul da costa italiana, região cujo litor-al tem o formato do salto de uma bota. Em poucotempo, a estrada foi ampliada até a parte posteri-or desse salto, o porto de Brindisi, no MarAdriático, onde hoje pode ser vista a antigacoluna de pedra que celebra esse feito de engen-haria. Por fim, estradas romanas muito bemconstruídas estendiam-se ao longo da costa do

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norte da África, contornando boa parte da costanorte do Mediterrâneo até os distantes RiosDanúbio e Eufrates. Não eram meras estradas;onde ainda sobrevivem, são conhecidas como"estradas romanas", uma espécie distinta, comona verdade o são. Rasgando colinas, atravessandopântanos sobre pedras ou caminhos elevados, fo-ram descritas pelo novelista inglês ThomasHardy como uma linha fina e contínua, que di-vide o cabelo em duas partes. As estradas roman-as, para sua época, eram mais notáveis que as au-toestradas construídas na Europa, na era dosautomóveis. Os mensageiros velozes podiamviajar por essas estradas e, como na China, po-diam estar seguros de que, a não ser que as en-chentes ou a neve atrapalhassem, seus veículospuxados a cavalo seguiriam os horários previstos.Em muitas partes do Império Romano, umamensagem enviada por estrada chegava bemantes de uma mensagem enviada por mar. Nasestradas romanas passavam cavaleiros velozes,

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soldados em marcha, mercadores, escravos e be-bês carregados ao colo.

A ponte romana era um trabalho de arte,embora os romanos tivessem predecessores tal-entosos na construção de estradas e pontes. Veruma ponte romana hoje ainda resistindo aotráfego é ter uma sensação de estupefação; os en-genheiros, os cortadores de pedras e os pedreirosque construíram essas pontes há muito tempo si-lenciaram, mas sua ponte resiste em toda a suaforça e elegância. A ponte romana de Rimini,num braço do Mar Adriático, é feita de blocos decalcário esbranquiçado, com conchas e restos dealguns peixes ainda cravados na pedra branca;construída por volta do ano 5 a.C, consiste decinco arcos semicirculares sob os quais um rio,hoje mais estreito, fluía com força na época dasenchentes. Usada por carros e lambretas erealçada por uma saliência onde os pedestres po-dem passar com uma margem mínima de segur-ança, a ponte, até hoje, tem travessia em uma sódireção.

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Dentro da cidade de mármore

Todos os caminhos realmente levavam aRoma e cresceram em uma proporção quase in-controlável. Provavelmente, foi a primeira cidadedo mundo, embora a China também tivesse cid-ades grandes, a ter uma população de quase ummilhão de habitantes. Era a meta dos andarilhos edos indigentes sem lugar para ir, dos que queriamtrabalho e diversão e dos extremamente ambi-ciosos, que queriam as melhores oportunidades.As ruas de Roma, pavimentadas com pedra,ficavam abarrotadas de veículos de roda e degente, muitos chegando das terras aráveis itali-anas e outros chegando como prisioneiros da úl-tima guerra. A cidade em expansão dependia deaquedutos, e as pontes de grandes arcos trans-portavam das colinas o fluxo contínuo de águaque abastecia os banhos públicos e os potes e jar-ros de água em inúmeras casas, eliminando tam-bém o esgoto ali produzido. Alguns balneáriospúblicos eram enormes salões de mármore com

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inúmeras salas menores e muitas banheiras, tantoquentes quanto frias; lugar de conversas sobrecoisas alheias e de prazer, eles se multiplicavam.A cidade de Roma sozinha tinha cerca de 800balneários públicos.

Muitos dos navios que carregavam pedra,madeira e grãos para Roma eram maiores do queos que seriam construídos no mundo ocidentalnos mil anos seguintes ou mais. Podiam ter maisde 50 metros de comprimento e chegar a 15 met-ros de largura, fazendo com que parecessem umtonel, um pouco desajeitados para os atuaispadrões de projeto. Uma esquadra de navios,quase como os atuais navios graneleiros, foi con-struída especialmente para o transporte de pedraspara construção. Esses grandes navios romanosdependiam do vento, em vez de remos; sua tarefaera transportar cargas a baixo custo. A rapidezera de somenos importância, ainda que, ocasion-almente, fizessem travessias rápidas. Há relatosde um navio de carga que viajou do porto italiano

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de Nápoles ao porto egípcio de Alexandria emapenas nove dias.

Se acaso os marinheiros europeus, na épocade Colombo, tivessem visto os destroços de umdos grandes navios romanos de madeira, revela-dos pelo deslocamento das areias, teriam ficadosurpresos com o comprimento dele. A nau cap-itânia de Colombo, Santa Maria, tinha aproxima-damente 30 metros de comprimento, muito men-or do que os navios romanos vindos do Egito, en-volvidos no transporte de grãos ou de pedras paraconstrução. Mesmo o impressionante barco a va-por de 1843, o Great Britain, com sua únicachaminé e seis mastros, não era tão largo, nemduas vezes mais comprido que os grandes naviosde carga romanos que haviam navegado osmares, 2 mil anos antes. Os escritores romanosdeixaram para as futuras gerações uma visão de-talhada da vida cotidiana e de sua diversão, desuas angústias, de seus prazeres e de suas dores.Praticamente, podemos sentir o gosto das re-feições das pessoas comuns: o pão integral, o

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queijo fresco prensado à mão, os figos verdes desegunda safra e, é claro, o pequeno peixe degrande popularidade, o arenque. Podemos camin-har pelas fazendas romanas, graças à poesia deVirgílio, e ouvir conselhos de como trabalhar aterra. Assim, considerava-se que o sétimo dia daLua trazia sorte para laçar e domar o gadoselvagem e, no verão, o feno de um prado secodeveria ser cortado depois do anoitecer, para mel-hores resultados, uma das regras da produção defeno que era seguida com frequência na Itália eque persiste na lembrança de muitos.

Em quase todas as fases da história deRoma, houve crises. Assim, no século que pre-cedeu a era cristã, aconteceram graves impactos.Em 84 a.C, muitos membros das famílias patrí-cias, outrora tão poderosas, foram massacradospor seus rivais. Na década seguinte, Espártaco, oescravo, liderou uma rebelião, atraindo escravosrurais para sua bandeira às dezenas de milhares.Quando foi finalmente derrotado na Itália, em 71a.C, aproximadamente 6 mil de seus seguidores

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foram capturados e crucificados ao longo da ViaÁpia.

Períodos civilizados se entrelaçavam comperíodos de violência. Até mesmo com escravospodia haver civilidade e compaixão. No início dosegundo século, o filho de um escravo morreu, eseus donos encomendaram a escultura da cabeçado menino morto em bloco de mármore, acres-centando a simples mensagem em latim:

Ao querido MarcialUm pequeno escravo,Que viveu dois anos, dez meses e oitodias.

A criança tem um olhar inocente, orelhaslongas e elegantes, boca pequena, cabelo aparadopenteado até a metade da testa e - logo acima daorelha direita - um amuleto da sorte egípcio. Ainsígnia não denotava que a criança vivesse noEgito, que na época era uma colônia romana. Oimpério de Roma era cosmopolita e as idéias,

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religiões e modas fluíam com facilidade: acabeça dessa criança pode ser vista ainda hojenum museu de Los Angeles.

Roma começou como uma república naqual um pequeno número e famílias dividia opoder. Mais tarde, o eleitorado de cidadãos queviviam na Itália e com direito a voto aumentoupara centenas de milhares; no final, chegava amais de um milhão. Obviamente, não fazia sen-tido Roma imitar a democracia grega e as re-uniões públicas de cidadãos que votavam ali nahora; assim, a urna secreta foi a alternativa ro-mana. Por vários séculos, Roma teve uma formade governo representativo que praticamente todosos líderes europeus, 300 anos depois, teriam con-denado por ser democraticamente perigosa, deacordo com seus próprios padrões. Os chefes deestado eram eleitos, e nenhum político ou generalpodia segurar as rédeas do poder por muitotempo. A maior parte das decisões a serem toma-das ficava com as assembleias representativas. Odistante império de Roma, em constante

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expansão, não era fácil de governar. Onde po-deriam ser criados novos impostos? Os exércitosde cidadãos não podiam mais carregar o peso doserviço militar e, como consequência, mercenári-os e até escravos estavam sendo recrutados, al-guns com mais probabilidade de serem mais fiéisa seus generais do que a Roma. Até os generaisque lutavam em fronteiras distantes não eramfáceis de manter sob vigilância; eles precisavamde alguma independência para lutar com sucesso,mas, se saíssem muito vitoriosos e se fossemmuito populares com o público romano, repres-entavam indiretamente um desafio aos líderescívicos que detinham o poder em Roma.

A eterna tensão em Roma parecia encontraruma solução. Para as pessoas orgulhosas de suarepública, um imperador era impensável, mas oimpensável era agora dito em voz alta. Em 63a.C, Augusto tornou-se imperador, enquantoafirmava ser simplesmente primeiro cidadão davelha república; tinha controle militar e mantinhaum pulso firme no senado. Aos poucos, o

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imperador romano tornou-se todo-poderoso emvida e venerado como um deus na morte. Cadaimperador agora nomeava seu próprio sucessor.A transição de república para monarquia, emboradrástica, deu um novo sopro de estabilidade aoImpério Romano, que continuou a se expandir e asegurar o que já tinha conquistado. Como os cid-adãos não mais votavam naqueles que deveriamconduzir o império, a cidadania pôde ser facil-mente ampliada. O clímax veio no ano de 212,quando todos os homens livres podiam tornar-secidadãos romanos, desfrutar da proteção donotável sistema em evolução da lei romana e fin-gir desfrutar aquele outro privilégio dos cidadãos:o direito de pagar impostos para um império que,frequentemente, estava desprovido de receitas.Roma foi um império tão bem-sucedido, suahistória política e seus modos de governo foramtão bem registrados que, quando Londres tornou-se a outra Roma, no século 18, seus líderes políti-cos e culturais ficaram obcecados pela históriaromana.

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Ao longo da rota da seda

Entre as duas civilizações mais importantesdo mundo, os romanos e os chineses, havia umgrande espaço geográfico. A rota por terra entre ooeste da China e os portos mais próximos do MarNegro, mesmo antes da era cristã, era a maislonga do mundo. Atravessava montanhas eplanaltos, planícies rochosas e desertos salgados,correntezas fortes, desfiladeiros e imensas pasta-gens. A rota era mais como uma corrida de re-vezamento do que uma procissão, pois os benscomercializados eram passados de mercador paramercador, de bazar para bazar e, assim, eleslentamente cruzavam seu caminho pelo contin-ente em carroças, a cavalo e em camelos que semoviam em longos comboios. A principal cargatransportada do Oriente era a seda. Os ricos deRoma e Alexandria veneravam artigos de ves-tuário feitos de seda e, por muito tempo, a Chinafoi o único fornecedor desses artigos. Oshumildes bichos-da-seda, alimentando-se das

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folhas cortadas de milhões de amoreiras da Ch-ina, viviam apenas 45 dias, mas, durante essacurta vida, cada bicho-da-seda produzia um casu-lo esbelto de fios que, quando desemaranhados,podiam chegar a 900 metros. Os finos filamentoseram combinados formando um fio com o qual aseda era manufaturada à mão em muitas cidadeschinesas. Um rolo de seda era uma fibra mágica.Leve, capaz de ser esticada sem arrebentar, facil-mente tingida com cores fortes, tais como a púr-pura de Tiro, e macia quando em contato com apele, a seda era apreciada pelos poucos romanosque tinham a chance de usá-la. Por ser cara, nãoera usada pelas pessoas comuns na China e, porser bem mais cara ao chegar ao Mediterrâneo, eravista como um luxo quando desembarcava emRoma. Como o bicho-da-seda era uma máquinaviva de fiar e com energia inesgotável, era certoque mercadores de outras nações o capturassem.Os bichos-da-seda foram contrabandeados para aÍndia, onde o tecido de seda, de qualidade inferi-or, era produzido. Os bichos-da-seda acabaram

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chegando à Sicília e à França, mas a habilidadedos fiandeiros e tecelões chineses permaneceuem casa. A China continuava a manufaturar umaseda de qualidade inigualável.

A vida econômica da China era tãoavançada e tão versátil que desejava pouco doOcidente. A China sentia-se satisfeita por ad-quirir pequenas quantias do ótimo vidro que erafeito no Líbano e no Egito e transportado aolongo da rota comercial pela Ásia: uma carga frá-gil que vinha pendurada e balançando no lombode camelos. A China aceitava também, ocasional-mente, volumes de madeira e de outros tecidos emetais preciosos. Ao longo da rota da seda, emdireção ao pôr-do-sol, vinham não só a seda, masoutros itens altamente valorizados no Ocidente:remédios de grande valor, como ruibarbo emconserva e canela em casca, bem como plantasvivas e sementes de importância ainda maior. AChina era um jardim botânico do qual o mundoexterno, século após século, tomava emprestadassementes e mudas; os chineses foram,

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provavelmente, os primeiros a cultivar o pêssegoe a pêra que, com o tempo, chegaram à Índia emtorno do século 2°. Na China, a laranja foi cul-tivada pela primeira vez, trazendo riqueza aosdonos de pomares. A laranjeira era valorizadanão só como fonte de frutas, mas também por suamadeira, que frequentemente era escolhida parafazer os arcos que lançavam as flechas. Um pou-co antes da Era Cristã, as primeiras laranjas elimões da China chegaram ao Oriente Médio,tendo feito parte do trajeto em navios que usavama rota da Índia para o Mar Vermelho. Na cidadede Pompéia, que veio a ser soterrada por cinzasvulcânicas em 79, há um mosaico com a repres-entação nítida de uma laranja.

Os chineses e romanos tinham uma visãoem comum: cada um dos povos acreditava quesua civilização era superior a qualquer outra. Em-bora a China possuísse uma extensão de territórioque disputava com a de Roma, seu imperador nãotinha domínio sobre tantas línguas, culturas epovos quanto o imperador de Roma.

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No século 1º, os navios romanos estavamno comando de quase todos os portos de im-portância no Mediterrâneo. Qualquer cidade lit-orânea da Grécia que houvesse prosperado, fossena Sicília ou no Egito, estava agora sob o poderde Roma. A marcha de soldados romanos, asbatidas sistemáticas dos remos das galeras naágua podiam ser ouvidas da margem leste àmargem oeste do Mediterrâneo e até mesmo alémdo Estreito de Gibraltar, uma região à qual a in-fluência grega nunca havia chegado. As moedasromanas eram o dinheiro corrente na costa oeste,no Atlântico, desde a Espanha até a Bretanha, eno norte se estendiam até as dunas e pântanossalgados que constituem hoje a Holanda. O gov-erno de Roma se estendia desde o Mar Negro atéo norte da Inglaterra. Os regimentos romanoseram instalados no Rio Reno, descendo até a cid-ade de Colônia, onde esse majestoso rio era at-ravessado por uma ponte romana. Da mesmaforma, o Rio Danúbio, na atual Hungria, era at-ravessado por uma ponte romana, cujos pilares de

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pedra e arcos semicirculares de madeira foramprojetados pelo notável construtor Apolodoro deDamasco.

Essas cidades, portos, vilas de guarnição eprovíncias afastadas eram cruciais para Roma,pois os postos fronteiriços protegiam o impériointerno. Contribuíam também com alimentos,soldados, escravos, matérias-primas e, não menosimportante, forneciam receita. De tempos emtempos, também traziam inquietação para os gov-ernadores romanos. Uma das fontes dessa in-quietação era um novo credo que duraria muitomais que os exércitos romanos.

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CAPÍTULO 9 - Israel e"O Ungido"

A costa do que hoje é Israel era margeadapor dunas de areia e não parecia muito acolhe-dora a um navio desconhecido. Poucas eram asenseadas e portos naturais onde navios podiamlançar âncoras. Na verdade, a cidade de Jerus-além, comparada à maioria das outras cidadesfamosas do Mediterrâneo, era desprovida deacesso fácil a um porto natural. Os hebreus, ouisraelitas, ou judeus originalmente possuíam re-banhos em vez de navios, pois eram um povo depastagens, e não do mar. Contudo, o Líbano, aonorte, possuía portos naturais e lá os fenícioscomercializaram e floresceram. A palavra hebreusignificava andarilho ou "aquele que atravessapara o outro lado". Durante a maior parte de suahistória - provavelmente foram originários dascabeceiras dos rios do Golfo Pérsico ou dos

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desertos próximos -, os hebreus não tiveram umlar seguro. Esse povo andarilho conheceu temposde prosperidade, quando seus rebanhos e suasbarracas ocupavam belas pastagens, mas tambémlembrava-se dos tempos de humilhação, cativeiroe exílio. Escravizados no Egito, eles acabaramescapando com seu líder, Moisés, em direção auma terra que acreditavam ter-lhes sido pro-metida por Deus: onde hoje é Israel. De acordocom uma versão de sua história, preservada emescritura sagrada, eles foram quase capturadospor seus perseguidores na margem oeste do MarVermelho; então, o mar se abriu, permitindo-lhesque prosseguissem. O fenômeno parece mil-agroso, mas talvez não tenha sido; o nome inicialdo Mar Vermelho era mar dos juncos ou marpantanoso e, em muitos lugares, era bastante ra-so. O formato da costa é tal que marés incomunspodem ocorrer. De fato, em 1993, um grupo deoceanógrafos observou que, quando um ventomuito forte sopra a 70 quilômetros por hora por10 horas contínuas, o mar praticamente recua. É

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possível imaginar que os hebreus, com os egíp-cios não muito atrás, tenham atravessado o marnum desses dias atípicos; em seguida, o marsubiu, afogando os perseguidores egípcios.

Por volta de 1000 a.C, os hebreus, sob ocomando do rei Davi, tiveram seus anos deglória, pois ele havia tomado Jerusalém. Seufilho e sucessor, o rei Salomão, construiu ummagnífico templo no topo da colina e, nesse pré-dio de esplendor quase inigualável, seu povo ad-orava a Deus, que os havia guiado a essa terraprometida. Após a morte do rei Salomão, emcerca de 935 a.C, seu reino foi dividido em doisEstados, Israel e Judá; deste último, os judeusherdaram seu nome. Com o tempo, esses doisreinos, minúsculos em tamanho, tornaram-semuito fracos para conter os invasores cheios deambição. Em 587 a.C, os soldados do Novo Im-pério Babilônico saquearam e destruíram o nobretemplo de Jerusalém, e os líderes judeus partirampara o exílio por quase um século. Ao voltarempara casa, eles viveram sob uma sucessão de

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governantes estrangeiros: os persas; Alexandre, oGrande; e os selêucidas, povo de língua grega.Durante boa parte desse tempo, a vida espiritualdos judeus floresceu; ouviam-se os profetas,incentivavam-se os estudiosos da teologia, e aidéia de sobrevivência espiritual após a morte cri-ou raiz.

Os Dez Mandamentos e cem re-gras menores

O deus judeu era todo-poderoso e eterno.Seu nome raramente era pronunciado, tamanho otemor e a majestade que o cercavam. Dois milanos mais tarde, ele veio a ser chamado de "Javé"pelos reformadores protestantes. Javé protegia osjudeus sob a condição de que eles obedecessem aseus preceitos e seus mandamentos. O primeirodos Dez Mandamentos proclamava que haviasomente um deus em todo o mundo. Numa épocaem que a religião típica tinha muitos deuses e os

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templos do Oriente Médio eram repletos dedeuses para cada estação e para cada propósito, areligião dos judeus era diferente. Seus membroseram instruídos a não se curvar em sinal de rever-ência diante de nenhum outro deus. Os Dez Man-damentos instruíam os judeus sobre como con-duzir a própria vida. Segundo uma das regras,eles deveriam respeitar seus vizinhos e mostrar-lhes solidariedade. Deveriam honrar os pais. Nãodeveriam matar nem cometer adultério. Nãodeveriam mentir sobre seu vizinho, nem mesmopensar em roubar os bois ou os burros dele. Pode-se observar que o boi e o burro, mas não as ovel-has, eram mencionados. Fundamentais como ani-mais de carga e muito caros, o boi e o burro eramamplamente usados para arar os campos e paracarregar e arrastar cargas muito pesadas.

A prática rígida dos judeus era trabalharseis dias na semana e, no sétimo dia, praticar suareligião e descansar. Esse sétimo dia, de acordocom sua crença, era o sábado. Uma das primeirasleis de bem-estar social de grande alcance no

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mundo, o dia de descanso do sábado dos judeusse estendia não só aos donos da casa, mas tam-bém aos serviçais, fossem mulheres ou homens.Mais de vinte séculos depois, a mais avançadadas democracias mundiais veio a introduzir, paramuitos empregados, um dia de trabalho limitadoa oito horas. Mas essa experiência recente com obem-estar social foi bem menos importante que asemana de trabalho de seis dias religiosamenteseguida por esses filhos de Israel.

Os judeus eram mais obcecados com a pró-pria história do que qualquer outro povo que omundo havia conhecido. Eles registravam dili-gentemente suas provações e tribulações, suasderrotas e suas vitórias. Com o senso de história,havia uma ênfase na justiça e no comportamentoético na vida cotidiana. Às vezes, eram quasedominados pelas regras e orientações. Constante-mente investigando a natureza e a missão dosseres humanos, os líderes espirituais judeusacabaram tornando-se tão influentes quanto oseuropeus, que, nas revoluções científica e

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industrial, aproximadamente dois mil anos maistarde, imergiriam na tarefa de dominar o mundomaterial. Mas, se uma história do mundo tivessesido escrita em 200 a.C, os judeus não teriammerecido muitas linhas. Até então, eles nãohaviam sido mais influentes do que centenas deoutros Estados e monarquias, povos e tribos daÁfrica, da Ásia, da Europa e das Américas. Is-rael, após séculos de vicissitudes e poucas vitóri-as, viveu um milagre no século 2º a.C: desfrutoude 80 anos de quase total independência. O mil-agre não durou muito e o Império Romano, emconstante expansão, chegou em 63 a.C. Mas mui-tos dos judeus que ainda viviam na própria terranatal tomaram bastante cuidado com o domínioromano; sua intuição era que Javé interviria e sal-varia seu povo protegido. Jesus estava emprimeiro lugar entre esses profetas.

Jesus nasceu por volta de 6 a.C, de acordocom o calendário gregoriano usado hoje noOcidente. Crescendo num vilarejo encravado nascolinas, ele seguiu os negócios de seu pai como

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carpinteiro ou construtor. Por ser um trabalho es-pecializado, provavelmente proporcionava umarenda bem maior que a da maioria dos trabal-hadores da Palestina; contava ainda com a vant-agem de saber ler e escrever numa época em quepoucas pessoas tinham esse tipo de privilégio.Absorvendo a atmosfera intensamente religiosa epolítica de Israel, na época sob ocupação romana,ele dominava os ensinamentos do Antigo Testa-mento. Era principalmente inspirado pelapregação insistente de João Batista, um pregadorque viajava por toda parte, afastando-se de todosos confortos materiais das cidades, mostrandoseu desdém por esse conforto, comendo das com-idas mais simples e vestindo-se com uma túnicafeita de pele de camelo. Sua mensagem para to-dos os que o ouviam era "Arrependei-vos". Seugesto simbólico era o batismo, ou imersão emágua, daqueles que profundamente se arrepen-diam de seus pecados. Jesus veio a ser batizadopor João nas águas do Rio Jordão.

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Com pouco mais de 30 anos de idade, Jesusabandonou seu martelo, seu serrote e seu formãoe deixou o vilarejo - não tinha mulher - re-cebendo o mesmo chamado de João Batista.Começou a pregar e a ensinar em vilarejos, no in-terior e até em sinagogas. Ele podia, assim, argu-mentar, pregar e convencer com o que se podeseguramente chamar de genialidade. Os doenteseram trazidos até ele e, para o espanto de todos,parecia curá-los com um toque de suas mãos oucom uma força silenciosa e confiante. Não era desurpreender que esse homem jovem e ex-traordinário tivesse vindo de um vilarejo na árearural. Na verdade, ele era simplesmente con-hecido como o Nazareno, o que significava queera um nativo de Nazaré. Mais tarde, veio a serchamado de Cristo, que em grego quer dizer "oungido". Hoje, poderíamos dizer que ele curavapela fé. Suas palavras arrastavam multidões. Suapregação podia ser misteriosa, mas também erasensível e prática; ele contava uma históriasimples sobre a vida diária, dando a ela um fundo

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moral e concluía com um apelo a seus ouvintes àbeira da estrada para que adotassem seu novomodo de pensar. Na verdade, seus ensinamentose suas parábolas deixaram como legado ummaravilhoso registro da vida diária. Ele falavasobre a contratação de trabalhadores para as vin-has a um centavo por dia, e falava do dono dasvinhas que estava perplexo porque sua figueiranão havia dado frutos, e discutia, de passagem, amaneira sensata de engarrafar o vinho da novaestação: "Não se põe vinho novo em odres vel-hos", dizia ele. Sem dúvida, seus ouvintes ruraisbalançavam a cabeça em concordância. Grandesmultidões se reuniam quando se anunciava queele se aproximava para pregar e curar. Ele deveter sido um excelente orador, com voz clara, quepodia sair flutuando até o membro mais distanteda multidão, mas, no decorrer de um mês degrande agitação, sua voz atingia mais que umafração do povo de Israel. Como ele precisava daajuda de outros homens para pregar em todosaqueles vilarejos que não podiam ser encaixados

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em seu tempo, já todo tomado, ele reuniu volun-tários em tempo integral, ou discípulos; osprimeiros eram pescadores de um lago próximo.Em pouco tempo, havia 12 discípulos tomadospor seu magnetismo. Ainda mais discípulos eramnecessários. Como explicava ele com seus lem-bretes simples e rústicos: "A messe é grande, masos trabalhadores são poucos." Jesus demonstravaum profundo sentimento pelos oprimidos: pelosque eram pobres, pelos que eram doentes e pelosque sofriam. Ele parecia defender os antigosvalores judeus e a autoridade do Antigo Testa-mento, mas também tinha uma veia revolu-cionária. Anunciava que chegaria o dia em que"os últimos serão os primeiros" e os humildesseriam os mais poderosos. Essas não eram notí-cias tranquilizadoras para os que ocupavamposições de poder religioso e civil em Jerusalém.As principais seitas e sinagogas judias não tin-ham certeza de como julgar esse profeta. Algunsse sentiam ameaçados por sua influência cadavez maior sobre as multidões; outros estavam

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compreensivelmente alarmados, porque ele con-testava a rigidez dos ensinamentos e o forteapego que tinham às centenas de antigas regras erituais judeus. Havia ainda uma ameaça adicion-al: a de que ele levasse essa luta para dentro dassinagogas e desafiasse a credibilidade moraldeles. Ele não temia críticas e era visto pelosgovernadores romanos como um subversor empotencial.

Sua vida de pregações e curas foi curta. Porvolta do ano 30, ainda na faixa dos 30 anos de id-ade, ele praticamente acenou a seus inimigos paraque pusessem as mãos sobre ele. Resolveu vir aJerusalém com seus seguidores numa época santado ano. Celebrou a última ceia com os discípulose, na presença deles, previu a própria morte.Preso por exigência de seus inúmeros inimigos,foi condenado por blasfêmia num tribunal judeue, então, sentenciado pelos governadores ro-manos a morrer de forma humilhante da qual oscidadãos romanos se isentaram. Foi chicoteado eseu corpo pregado a uma grande estrutura de

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madeira em forma de cruz, com dois criminososcomuns colocados em cruzes semelhantes, masde menor tamanho, um de cada lado dele. Umaplaca escrita em três línguas – latim, grego e heb-raico - proclamava o que foi visto como sua peri-gosa pretensão: "Jesus de Nazaré, Rei dosJudeus". Ele morreu lentamente, em grande sofri-mento. Dizem que um eclipse do Sol então ocor-reu, como se os céus soubessem que um eventode magnitude estivesse acontecendo. Naquelatarde, foi retirado da cruz e enterrado por amigosfiéis. No terceiro dia, seu corpo desapareceu dosepulcro. Nos dias que se seguiram, seus discípu-los acreditaram tê-lo visto ou ouvido em algunslugares. Estavam convencidos, além de qualquersombra de dúvida, de que ele era o filho de Deus,a cuja presença ele havia agora retornado.

Nada contribuiu mais decisivamente parasua vida se tornar tão importante do que o fato desua ascensão aos céus. Lá, diziam, ele esperariaaté o dia do julgamento, quando apareceria na

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terra novamente para punir os maus e recom-pensar os justos.

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CAPÍTULO 10 - Depoisde Cristo

Se a mensagem de Cristo deveria permane-cer viva, isso só poderia acontecer com a ajudados judeus. Eles eram um povo disperso, vivendoprincipalmente longe de sua terra natal e, port-anto, propiciando uma rede através da qual amensagem cristã poderia se espalhar. No fimdesse período hoje conhecido como a.C. ou"antes de Cristo", a maioria dos judeus nuncatinha posto os olhos na terra de seus antepassad-os. Muitas famílias judias, tendo ido para o exíliocomo cativos, haviam se tornado parte de suanova terra. Outros judeus haviam partido comocomerciantes ou soldados para portos distantes elá vivido, geração após geração. Um censo, con-duzido pelos romanos em 48, indicou que 7 mil-hões de judeus viviam no vasto Império Romano.Talvez até 9% da população do império fosse

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judia, uma proporção de judeus maior que a quehabitava a Europa às vésperas da Segunda GuerraMundial. Outros 5 milhões de judeus viviam empartes da Ásia Menor e da África, que ficavamalém do império. À medida que as condiçõespolíticas se deterioravam na Palestina e à medidaque cada vez mais judeus decidiam partir, a cid-ade da Babilônia tornou-se o lar de vivazes teólo-gos judeus.

As sinagogas dos judeus podiam ser encon-tradas desde a Sicília até o Mar Negro, no sul daArábia e na Etiópia. Apenas as sinagogas emRoma serviam a cerca de 50 mil judeus. Em mui-tos povoamentos judeus afastados, a sinagogapermanecia o centro da vida social, abrigandouma biblioteca e, às vezes, até um hospício. Es-sas sinagogas distantes eram um testemunho dagenerosidade das congregações, às quais muitosdos membros doavam um décimo de sua rendaanual. A religião dos judeus, embora inicialmentesó para os judeus, há muito tempo haviaaumentado seu poder de atração. Muitos pagãos e

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outros não-judeus frequentavam a sinagoga eaceitavam seu código de ética e sua visão demundo, embora não necessariamente se sub-metessem à pequena cirurgia e importante ritualda circuncisão. Em muitas sinagogas nas partesorientais do Império Romano durante o século 1ºa.C, a língua hebraica fora substituída; a con-gregação orava e ouvia as escrituras lidas em vozalta em grego.

O conjunto de sinagogas no Mediterrâneo eno interior da Ásia Menor tornou-se um foro ini-cial para a disseminação dos ensinamentos deCristo. São Paulo foi o primeiro convertido demaior expressão. Ele não havia falado com Cristonem ouvido suas pregações e, de início, opunha-se ao seguimento de seu culto, vendo-o como umperigo à tradicional religião dos judeus. A atitudede Paulo foi transformada, entretanto, por umaexperiência mística na estrada de Damasco, e eletornou-se um fervoroso missionário cristão. Maisou menos 14 anos depois da morte de Cristo, elecomeçou a remodelar a Igreja que nascia. Paulo

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possuía qualidades pouco comuns: sentia-se emcasa dentro de uma sinagoga - seus pais eramjudeus e ele mesmo havia sido treinado para serum rabino; tinha cidadania romana, o que lhedava um passaporte aos círculos oficiais, e falavagrego, a língua dos homens cultos.

Embora os primeiros a se converterem aocristianismo tenham sido principalmente judeus,outros foram igualmente atraídos. Em poucotempo, muitas pessoas que não tinham nenhumaligação com as sinagogas escutaram a mensagemcristã e começaram a se reunir em casas particu-lares ou em salões públicos. A questão de quempodia se tornar cristão era cada vez mais debatidadentro das novas congregações. Muitos judeu-cristãos faziam objeção aos que vinham de fora,pois viam o cristianismo como simplesmenteuma ramificação da própria religião. Foi na cid-ade de Antioquia, no sul da atual Turquia, queesse dilema foi debatido pela primeira vez comvigor. Em Antioquia, uma ou duas décadas de-pois da morte de Cristo, a questão de a quem se

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deveria permitir tornar-se membro integral daIgreja Cristã foi resolvida a favor dos inter-nacionalistas, em vez dos judeus. Todos que seaproximassem em estado de arrependimentopodiam tornar-se cristãos. Isso inevitavelmentelevou a uma divisão cada vez maior entre as sin-agogas e as novas igrejas cristãs; cada uma com-petia pelos mesmos devotos, fossem eles judeusou pagãos. Enquanto muitas das congregaçõescristãs consistiam exclusivamente de judeus, cadavez mais as novas congregações atraíam pessoasde todas as raças e formações. São Paulo en-fatizou esse segmento totalmente acolhedorquando escreveu sua carta de grande influênciaaos gálatas: "Não há judeu nem grego, não há es-cravo nem homem livre, não há homem nemmulher, pois vós sois todos um só em CristoJesus."

No primeiro século após a crucificação deCristo, seus seguidores viviam principalmentenas cidades, em vez de nos vilarejos e no interior.As mulheres provavelmente eram a maioria dos

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cristãos. Aqueles que se apegavam à Igrejanesses anos difíceis tinham de ser corajosos. Osimperadores, em Roma, ocasionalmente sevoltavam contra os cristãos. O imperador NeroCláudio os culpou pelo famoso incêndio deRoma, em 64. Em um tipo de competição comumnaqueles dias, muitos cristãos levavam chifradasde animais selvagens até morrerem na presençade uma multidão de espectadores. Em suas con-tendas interiores sobre a questão de até que pontoseguir as regras da sinagoga, os primeiroscristãos não tinham certeza se deviam descartaras rígidas regras dos judeus em relação à ali-mentação. Muitos dos primeiros a se converteremao cristianismo, sem dúvida, seguiram as proib-ições dos judeus de ingerir carne de porco, mar-iscos e outras comidas. Paulo, embora fossejudeu, era mais flexível nesse ponto; em respostaao argumento de que algumas comidas eram nat-uralmente impuras, ele decretou que "nada é im-puro em si". Paulo era visto por inúmeros judeus

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como um traidor de sua fé; por isso, foi ator-mentado e Perseguido por eles.

Por fim, a maioria dos primeiros cristãos,sabendo que a última ceia de Cristo na presençade seus discípulos tinha sido um momento degrande importância, adotou uma atitude positivaem relação à comida. Como o vinho tinha sidoparte da última ceia, foi coroado junto com o pãona cerimônia especial conhecida como o sacra-mento da eucaristia. Fazer uma refeição com osdois juntos tornou-se o costume simbólico nasprimeiras cerimônias religiosas. Aqueles que tin-ham conhecido Cristo tornaram-se os primeiroslíderes da Igreja e, obviamente, eram judeus.Pedro, antes um pescador, era o discípulo maisvelho após a morte de Cristo e, segundo dizem,foi quem liderou inicialmente a Igreja em Roma.Com o passar do tempo, os nativos italianos to-maram a dianteira. Linus, provavelmente um nat-ivo da Toscana, tornou-se o bispo de Roma, oupapa, não muito tempo depois da perseguição deNero aos cristãos. Em Roma e nas cidades mais

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afastadas e de difícil acesso do Império Romano,multidões - com a presença de alguns judeus, àsvezes - atacavam com violência os cristãos. Alista de mártires crescia cada vez mais. Como erararo que os cristãos fossem a maioria da popu-lação em qualquer cidade ou vila maior do im-pério, eles dependiam da tolerância que lhes eraconcedida pelos outros. Teriam sido mais tol-erados se tivessem sido mais afirmativos. Àsvezes, não prestavam homenagem suficienteàqueles imperadores romanos que, cada vez mais,viam-se como semelhantes aos deuses. Ocristianismo tornou-se como um sapato nas mãosde cem sapateiros, assumindo muitas formasdiferentes até o ano 300. De província paraprovíncia, a Igreja em expansão diferia em suascrenças e rituais. Um mercador e sua esposa quese transferissem de uma congregação na ÁsiaMenor para uma na Itália provavelmente teriamum choque quando vissem pela primeira vez seunovo pastor executar os rituais ou explicar suateologia.

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O domingo, o sal e as escrituras

A atual forma do cristianismo, as observân-cias e os dias santos apareceram aos poucos. Aprincípio, o domingo não era necessariamente odia do Senhor. Os judeus haviam reverenciado osábado como seu dia e de início, os cristãos ten-diam a reverenciar esse dia como o coração dasemana. São Paulo começou a conferir ao domin-go o dia de reverência, uma vez que era o dia daressurreição de Cristo. Quando o imperadorConstantino tornou-se cristão e fez com que oImpério Romano entrasse em conformidade comsua nova fé, sua lei de 321 declarou o domingocomo sendo o dia de adoração na cidade, porém,não no interior. Lá, as vacas e cabras tinham deser ordenhadas, a colheita feita e a terra arada, in-dependentemente do dia da semana.

A Páscoa logo se tornou a época especialdo calendário dos cristãos, mas sua data exatanão foi escolhida facilmente. Ao longo da costa

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da Ásia Menor, o coração inicial da Cristandade,a princípio o dia de Páscoa não era no domingo.Durante anos, os teólogos cristãos discutiramsobre o dia ideal em que a Páscoa deveria cair.Seu desacordo foi mais estridente em 387;naquele ano, na Gália, o Domingo de Páscoa foicelebrado em 18 de março. Na Itália, aconteceuexatamente um mês depois e, em Alexandria, foiainda mais tarde, sendo celebrado em 25 de abril.No século 7º, uma região da Inglaterra celebravao Domingo de Ramos no mesmo dia em queoutra parte celebrava a Páscoa. A unidade dacristandade era frequentemente muito precária.Muitos dos dias especiais do ano cristão vierambem mais tarde. Durante três séculos, as primeir-as igrejas ao redor das margens do Mediterrâneonão celebraram o nascimento de Cristo. Com otempo, os cristãos, com bastante sensatez, apro-veitaram a oportunidade dos festivais populares,que há muito tempo tinham sido reservados paramarcar o dia mais curto do ano no HemisférioNorte. Assim, em Roma, o dia 17 de dezembro,

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um dia de festividades pagãs conhecido comoSaturnália, acabou sendo tomado à força peloscristãos e mudado para 25 de dezembro, quandofoi proclamado como o dia do nascimento deCristo. Mesmo quando Roma decidiu de uma vezpor todas celebrar o atual dia de Natal, os cristãosem Jerusalém aderiram, ao contrário, ao dia 6 dejaneiro. Como o dia do nascimento de Cristo, odia especial reservado a Maria, a mãe de Cristo,demorou a achar um lugar no calendário cristão.Em 431 o Conselho de Éfeso deu a Maria um pa-pel de honra, e o seu dia, 25 de março, cada vezmais se tornou conhecido como o Dia da Anun-ciação. A medida que crescia o culto a Maria, umculto de menos vulto se desenvolveu em torno damãe dela, Ana, e um dia chamado de "a con-cepção de Sant'Ana" acabou sendo reverenciadona cidade italiana de Nápoles. Por centenas deanos, Maria recebeu mais veneração nas igrejasdo Oriente do que nas do Ocidente. O cristian-ismo lentamente adaptou alguns de seus rituaisvindos da vida cotidiana dos romanos. Por

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exemplo, quando um bebê romano chegava aoseu oitavo dia, alguns grãos de sal eram coloca-dos em seus pequeninos lábios, na crença de queo sal afastaria os demônios que, do contrário, po-deriam prejudicar a criança. Quando a IgrejaCristã, em seu início, batizava seus novos seguid-ores, ela benzia um bocado de sal e, imitando ocostume romano, dava-o aos batizados. Isso erapara manter o ensinamento de Jesus que, sabendocomo os pobres desperdiçavam no uso do sal,escolheu o sal como símbolo para o que era pre-cioso e raro. Quando subiu às montanhas, Jesusdissera a seus discípulos: "Vós sois o sal daterra." Em muitos dos lugares em que grandesquantidades de cristãos se reuniam, eles se en-volviam em debates animados entre si. Discutiamporque vinham de várias partes do Império Ro-mano, discutiam porque Cristo às vezes falavaem parábolas e não deixava muito claro seu sig-nificado para aqueles que ouviam sua mensagemem segunda mão, discutiam porque confiavamnaqueles que, depois da morte de Cristo,

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escreveram seus ensinamentos e ofereceramvisões conflitantes do mesmo sermão ou milagre.E, às vezes, os cristãos discutiam entre si, porquecada um lia nas palavras de Cristo o que elespróprios queriam ler. Ainda assim, um sinal deunidade era inegável; os viajantes geralmente sesentiam em casa, pelo menos em espírito, quandoentravam numa igreja cristã longe de sua terranatal.

Por pelo menos quatro séculos, o cristian-ismo foi como um metal quente despejado defornos em moldes de formatos variados. Àsvezes, um forno quase explodia ou o fogo eraapagado. Frequentemente, os fornos eram remod-elados e, muitas vezes, eram ampliados. Osmoldes eram mudados repetidas vezes, de formaque, se os primeiros seguidores de Cristotivessem voltado a viver, não teriam reconhecidomuitas das crenças e rituais da Igreja que eles tin-ham ajudado a fundar. Teriam ficado mistifica-dos por outro fato: o fim do mundo, tão iminente

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a seus olhos e um estímulo tão insistente em suascrenças profundas, ainda aguardava no futuro.

Enquanto isso, a cidade de Roma estavadeixando de ser o coração do vasto império. Osexércitos e sua procissão de generais famososcomeçaram a substituir as velhas instituições deRoma como centros do poder. Além disso, acapital situava-se na extremidade ocidental de umimpério cuja verdadeira riqueza e equilíbriopopulacional se encontrava na extremidadeoposta do Mar Mediterrâneo. Consequentemente,no ano 285, o império foi dividido, por facilidadeadministrativa, em dois: o Império do Ocidente,governado a partir de Milão, e o Império do Ori-ente, ou principal, governado a partir da cidadede Nicomédia, localizada no Mar de Mármara, acerca de cem quilômetros a leste da atual cidadede Istambul, florescendo, em pouco tempo, commajestosos edifícios. Na história, muitos aconte-cimentos fundamentais são moldados por forças,movimentos e fatores escondidos, mas, ocasion-almente, uma pessoa quase sozinha muda a

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direção do mundo. Um menino que vivia na cid-ade de Nicomédia, em seus anos de maior or-gulho, quando batalhões de pedreiros pratica-mente se atropelavam, veio a ser um dessesmoldadores de grandes acontecimentos. Con-stantino era filho de um oficial de exército quesubiu de cargo rapidamente e tornou-se o im-perador da metade ocidental do império. Quandoo imperador Constantino foi morto em batalhaem York, na Inglaterra, em 306, o filho, compouco mais de 20 anos, foi aclamado pelo exér-cito como sucessor de seu pai. Constantino pro-vou ser um grande general. Para surpresa de mui-tos, ele era extremamente solidário com o cristi-anismo. Na França, 6 anos depois, ele se conver-teu. Em suas campanhas militares daí em diante,trazia consigo uma capela portátil, que seus ser-viçais podiam rapidamente instalar dentro de umabarraca, possibilitando, assim, que os serviços re-ligiosos fossem realizados para ele e seus com-panheiros em questão de poucos minutos. Con-stantino acreditava que o cristianismo era

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intrinsecamente adequado a ser seu aliado. Nãodesejava dominar o Estado, por estar há muitotempo acostumado a um papel mais humilde.Com a tendência de ser internacionalista, nãomostrava o fervoroso sinal nacionalista às vezesvisível no judaísmo. Podia se encaixar perfeita-mente num império multirracial. Por tratar a to-dos de forma igual, o cristianismo pareciabastante adequado a um império composto porgregos, judeus, persas, eslavos, germanos, ibéri-cos, romanos, egípcios e muitos outros. Seuúnico defeito era que nem sempre demonstravarespeito ao imperador e sua pretensão àdivindade, mas, uma vez que Constantino setornou cristão, esse defeito foi automaticamenteeliminado.

Na história do cristianismo, nenhum outroacontecimento desde a crucificação de seufundador foi tão influente quanto a mudança deatitude do jovem imperador Constantino no ano312. Ele ofereceu tolerância cívica aos cristãos erestaurou propriedades que lhes tinham sido

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confiscadas. Com sua mãe, começou a construirgrandiosas igrejas, uma das quais em local tãodistante quanto Jerusalém.

Até então, os cristãos provavelmente nãohaviam constituído mais do que um em cada 12habitantes do vasto Império Romano. Mas agora,de repente, sentados em posição privilegiada aolado do imperador, seus adeptos rapidamente semultiplicaram. Pela primeira vez, havia maispessoas dentro do império frequentando os cultoscristãos de adoração, aos domingos, do que assinagogas, aos sábados. Os residentes das cidadesque um dia poderiam ter escarnecido dos cristãosviam-se perguntando se, no novo clima religioso,eles poderiam ganhar promoção ou favores secu-lares se fossem vistos frequentando um local deadoração cristão. Em contrapartida, as sinagogas,que por vezes tinham estado a favor dos gover-nadores romanos, eram agora desprezadas. Emmenos de um século, os judeus perderam seudireito de casar-se com cristãos, a não ser quemudassem de religião, e perderam seu direito de

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servir o exército. Não podiam tentar converteroutras pessoas à sua religião; em vários lugares,as multidões destruíam sinagogas. Os padrinhosdo cristianismo foram, na verdade, declaradosilegítimos. Na era anterior, alguns judeus em al-gumas cidades tinham tentado prejudicar oscristãos, voltando as autoridades romanas contraeles. Mas agora a banda tocava do outro lado, etocava mais alto, e cada vez mais. Constantinonão era um cristão muito ortodoxo (ele colaboroupara que seu filho fosse morto), mas não se des-viou de sua crença de que Deus estava a seu lado.A seus olhos, havia uma só religião e aqueles quenão aderissem a ela eram uma ameaça aoimpério. Tornou-se ainda mais fervoroso em suafé. Constantino morreu em 337 e foi enterrado naainda pequena cidade de Constantinopla, que elehavia planejado. O auge de Roma havia nitida-mente passado e perdido sua supremacia paraessa nova cidade do Oriente.

Nenhum dos impérios, do Ocidente ou doOriente, estava sob controle total. Os

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guerrilheiros avançando das estepes eram cadavez mais capazes de vitória. Os hunos, queprovavelmente falavam turco, haviam chegadopela primeira vez ao Rio Don, na Ucrânia, em370. Dezoito anos depois, estavam acampadospróximos ao Mediterrâneo. Roma, acostumada aesses ataques sucessivos de "bárbaros", acumu-lara uma longa história de sucessos contra eles,mas agora se via incapaz de repeli-los. Inimigosvindos do centro da Europa não encontravam di-ficuldades para entrar na Itália, nem mesmo parase aproximar de Roma. A famosa cidade forasemidestruída em 410 e, novamente, em 455. Aspessoas fugiram da cidade que, por tanto tempo,tinha sido a meca de migrantes. Roma decaiucom velocidade alarmante. A civilização romanaera poderosa, mas até que ponto? Herdou muitodos gregos, mas não foi tão criativa quanto a Gré-cia. Roma tinha mais preparo em conflitos deguerra do que os gregos e teve mais sucesso aoimpor o primeiro ingrediente fundamental deuma civilização: a lei e a ordem. Roma criou a

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vasta área livre de comércio ou mercado comum.Por um longo período, manteve suas fronteirasem relativa paz, medida pelos padrões de guerrada história humana. Os romanos moldaram o queainda é chamado de direito romano, o sistemalegal adotado pela maioria dos povos da Europa eda América do Sul. Foram, provavelmente, osmelhores engenheiros do mundo até aquela épo-ca, construindo aquedutos impressionantes, queforneciam um abastecimento seguro de água paraas cidades, e construindo estradas que duraramséculos. Os romanos deixaram para trás uma lit-eratura esplêndida. Eles a transmitiram em latim,que foi a língua compartilhada pela Europa poraproximadamente 2 mil anos. Mesmo no iníciodo século 20, o latim continuou sendo a línguadas orações e dos rituais para o principal domíniocristão do mundo e uma segunda língua em terraseuropeias. Além disso, o latim permanece vivo eeloquente através das línguas neolatinas quedominam a América Central e do Sul, cuja ex-istência era desconhecida dos romanos. Mesmo

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no Leste Europeu, a língua romena usa umagramática baseada no latim. Acima de tudo, a úl-tima fase da história romana deu a bênção oficialao cristianismo. Estava aí uma plataforma delançamento mais poderosa que a de qualqueroutra religião na história do mundo. Por que oImpério Romano veio a decair? Essa é uma dasquestões fascinantes da história e aberta a umacombinação de respostas que vão do envenena-mento por chumbo na capital e exaustão do solono interior até a ascensão do cristianismo. Oshunos e outros invasores externos foram import-antes, mas suas invasões foram bem-sucedidasem parte porque encontravam menos resistência.O império praticamente decaiu a partir de umdesses pontos. Quase certamente a questão maisimportante - e de difícil compreensão - é por queo império durou tanto tempo. A ascensão e adecadência constituem o padrão normal das in-stituições humanas; é mais fácil ascender do quepermanecer no topo. É extraordinário que umacidade que em 200 a.C. estava se tornando o mais

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poderoso dos Estados do Mediterrâneo tenhaainda dominado a civilização ocidental por maisde 5 séculos. A extensão de seu domínio pode seravaliada mais facilmente se transposta para umacronologia moderna; é o equivalente a uma naçãoque tenha dominado a maior parte da Europa dur-ante o auge de Colombo e ainda mantenha a su-premacia na presidência de Bush e Fidel Castro.

O rival

Constantinopla era uma cidade nova sur-gindo no meio da velha cidade de Bizâncio.Fundada pelos colonizadores gregos no século 8?a. C, a velha cidade tinha sido tomada por inimi-gos e, às vezes, saqueada, mas sempre erareconstruída. Situava-se num triângulo de terrasuntuoso, banhada pelo mar por dois lados. Co-mandando uma rota comercial vital e a única en-trada para o Mar Negro, sua posição era sim-bólica e estratégica ao mesmo tempo, pois estava

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bem na borda da Europa e a uma distância depoucas remadas da Ásia. Para ampliar o espaçode vivência e de construção dessa nova cidade,muros externos foram construídos a alguma dis-tância dos muros anteriores e, mais tarde, o perí-metro desses muros se abriu ainda mais, tãorápido era o crescimento da cidade. Muros largoseram necessários, pois a cidade veio a ser sitiadanove vezes entre os anos 600 e 1100. Nessemeio-tempo, tornou-se uma maravilha do mundoocidental - somente a China possuía cidadesmaiores. Constantinopla foi a primeira cidadeprojetada para proporcionar locais proeminentespara igrejas cristãs. Em pouco tempo, as igrejastornaram-se numerosas. Os visitantes desejavamde modo especial rezar em um dos prédios maisnobres do mundo, a Hagia Sofia ou "DivinaSabedoria". Sua cúpula foi reconstruída após oterremoto de 559, e a igreja foi convertida, quaseum milênio depois, em uma mesquita encimadapor minaretes. Quando um bispo ou patriarca eraconsagrado na nova cidade, em Pouco tempo seu

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status espiritual disputava com o do papa, emRoma. Como Constantinopla contava com opalácio do imperador romano, esse atoaumentava o status do bispo. Mesmo na questãodo idioma, as Igrejas do Ocidente e do Orienteeram separadas. O grego era a língua da IgrejaOriental e o latim, a da Igreja de Roma. ComoRoma e Constantinopla eram separadas por umtempo de viagem que podia levar até um mêsquando os mares estavam revoltos ou os ventosinóspitos, elas nem sempre mantinham contato.Além disso, Constantinopla agora tinha mais de500 mil habitantes, enquanto Roma, à mercê dosinvasores bárbaros, havia definhado tanto quenão tinha mais de um décimo dessa população.No decorrer de muitos séculos, as Igrejas doOcidente e do Oriente, ou a católica e a ortodoxa,separaram-se em sua teologia e em sua organiza-ção. Assim, os católicos, mas não seus rivais,acreditavam no purgatório, uma morada no meiodo caminho para o céu, onde os mais merece-dores dos mortos recebiam punições conforme

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adequado. Na Igreja Ortodoxa, a divisão entre osleigos e o sacerdote não era tão pronunciadacomo na Igreja Católica e, além disso, umhomem casado podia ser ordenado padre. Emsuas congregações, os leigos também podiampregar, mas aos católicos não era dado tal privilé-gio. Nesse sentido, a Igreja Protestante, que veioa aparecer no norte da Europa, tem bastantesemelhança com a Ortodoxa. Assim, o cristian-ismo perdeu sua unidade. Mas a diversidade, como passar do tempo, talvez tenha sido uma de suasforças. O cristianismo, por ser facilmente com-preendido e adaptável a novas culturas, trouxe es-perança e, às vezes, medo a centenas de milhõesde pessoas. Seu novo rival, o Islã, apresentava es-sas mesmas qualidades.

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CAPÍTULO 11 - O sinalda Lua crescente

O Islã é geralmente um enigma. OOcidente tende a envolver suas origens emmistério. Presume-se que o Islã, originário de ter-ras de camelos e de pastores nômades, deva serum espelho das idéias de um povo simples para oqual qualquer coisa maior que uma barraca erauma visão desconhecida. Na verdade, o Islã sur-giu mais de cidades muradas do que do deserto.Surgiu mais de mercadores que estavam em con-tato semanal com o mundo externo do que depastores de rebanhos. Mais de cidades à sombrade montanhas pontiagudas e acidentadas e de cid-ades próximas ao mar ou no centro de oásis irri-gados do que das areias vermelhas sopradas pelovento e da solidão árida do interior. Algumas dascidades da Arábia eram portos movimentados, emuitos árabes podiam pilotar um navio rumo ao

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mar com a mesma facilidade com que outros con-duziam uma caravana de camelos. Comercializa-vam com a Índia e o leste da África por mar, ecom a Ásia Menor, por terra.

Meca, que se tornou o local de nascimentodo Islã, situava-se a pouco mais de 60 quilômet-ros do Mar Vermelho. Dependia do comércio delonga distância, situada que estava dos dois ladosda rota terrestre que ia desde o sudoeste maisfértil da Arábia, cruzando o deserto, até o Medi-terrâneo. Essa rota, servida por fileiras de cam-elos que transportavam carga, foi um estágio fun-damental em uma das rotas comerciais que lig-avam terras tão distantes entre si, como a Índia ea Itália. Dois dos produtos comercializados ao sulda Arábia eram a mirra, que custava muito caro,e o olíbano, ambos usados para fazer incenso,perfume, fluidos embalsamantes e os óleos de un-gir usados pelos sacerdotes judeus. Há grandeprobabilidade de que os valiosos presentes demirra e incenso apresentados ao menino Jesustenham, na verdade, sido transportados em

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camelos por essa rota comercial do deserto, at-ravessando Meca. Às vésperas da fundação doIslã, a rota terrestre florescia, talvez porque fosseuma alternativa segura durante as longas guerrasentre a Pérsia e Bizâncio.

Maomé, o fundador do Islã, nasceu emMeca em 570. Quando jovem, perdeu o pai e amãe. Os árabes, por serem marinheiros dodeserto, às vezes enviavam suas crianças oujovens como aprendizes com as caravanas decamelos que mantinham comércio em cidadesdistantes, e Maomé partiu em uma dessas cara-vanas. A noite, o menino órfão aprendeu a identi-ficar muitas das estrelas do brilhante céu noturnoe a saber a hora em que a Lua apareceria acimada linha do deserto: a Lua veio a ser o símbolo desua fé. Maomé era extremamente inteligente eimpressionou sua rica empregadora, uma viúva.Eles se casaram quando ela estava com 40 anos eele, 25. Ela lhe deu dois filhos, que morreramainda crianças, e quatro filhas. É curioso observarque o fundador de uma religião, hoje reconhecida

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por sua sujeição de mulheres, deva tanto a umamulher. Maomé provavelmente não poderia terlançado uma nova religião, não fosse o apoio fin-anceiro da esposa, numa época em que ele eraatacado por oponentes. Como comerciante emensageiro, Maomé viajou a cidades distantesonde aprendeu muito sobre as idéias dessemundo externo. Absorveu idéias do judaísmo edo cristianismo, não em apenas um suspiro pro-fundo, mas em pequenos suspiros. Em 610, eleviveu um despertar religioso intenso durante oqual recebeu a mensagem de que havia somenteum deus, uma idéia não defendida pelas religiõestribais de sua terra. Maomé sentiu que estavacheio do espírito de Deus. Pregou suas idéiascom fervor: era um poderoso persuasor. Fez in-imigos, também: quando começou a criticar osperegrinos pagãos que idolatravam a pedra negrasagrada de Meca. Meca era uma cidade de pereg-rinos, bem como de mercadores, e sua vida econ-ômica dependia do turismo religioso, assim comodo comércio. Muitos que vinham como

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peregrinos ficavam mais tempo para comercializ-ar por alguns dias. O fato de Maomé criticar a id-olatria e a adoração da pedra negra pode ser com-parado com o atual prefeito de Veneza de-fendendo uma proibição formal à entrada deturistas. Maomé sabia que suas perspectivas emMeca eram pequenas. Em 622, depois de fazercuidadosos planos, ele fugiu pelas montanhas dacosta e pelos cursos de água secos até Medina,uma cidade a menos de 400 quilômetros ao norte.Situada no meio de um oásis de tamareiras ecampos irrigados de cereais, Medina se tornouseu lar. O dia de sua chegada, 24 de setembro de622, veio a tornar-se o primeiro dia do novocalendário islâmico. Em Medina, tornou-se ogovernante espiritual e secular. Enquanto osprimeiros cristãos tinham sido, geração após ger-ação, uma minoria sem nenhum poder político, oislamismo logo se tornou a religião dominanteem sua cidade e distrito escolhidos e o detentorde todo o poder político.

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A guerra santa

Maomé silenciosamente declarou guerraaos principais comerciantes de Meca. Enviouforças para atacar suas ricas procissões de cam-elos carregados que passavam pelas proximid-ades de Meca, a caminho de cidades distantes ouvoltando delas. Em 626, ele planejou atacar umacaravana que supostamente consistia de mil cam-elos; embora Meca soubesse do plano e movi-mentasse forças superiores, sofreu uma derrotasurpreendente. Meca, a cidade maior e mais rica,deveria ter sido capaz de vencer Medina, masMaomé era um general hábil; muitas de suas tro-pas eram entusiastas, e ele aumentou sua forçamilitar firmando alianças com tribos nômades,muitas das quais eram cristãs. Em 630, Maoméapropriou-se de Meca sem nenhuma dificuldade.

Sua crença tomou forma com rapidez e pre-cisão. Suas regras eram simples. Os seguidorestinham de orar cinco vezes por dia, voltados em

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direção a Meca: o primeiro homem a invocar omuezim ou convocar os fiéis para as preces veioa ser um negro. O dia sagrado era sexta-feira, oque distinguia os maometanos dos judeus, comsua adoração aos sábados, e dos cristãos, aosdomingos. Os seguidores devotos deviam tentarfazer uma peregrinação a Meca ao menos umavez na vida. Tinham de dar generosamente aospobres e tinham de jejuar entre o nascer e o pôr-do-sol no mês lunar chamado ramadã. A regra dojejum hoje parece ser rígida, mas, na época, amaioria dos cristãos também jejuava durante 40dias no período que antecedia a Páscoa. Outrasregras protegiam os seguidores do Islã dos peri-gos morais, embora as mulheres fossem maisprotegidas que os homens. As mulheres usavamvéus em público para que seus rostos nãopudessem ser vistos. Por outro lado, os homensmais ricos podiam ter quatro esposas cada um, eMaomé, em seus últimos anos, também dormiacom Mariya, uma concubina de origem copta. OIslã reteve, talvez mais que qualquer outra das

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cinco religiões mais poderosas do mundo, umtraço das antigas religiões pagas. Conservou umsenso de admiração pelo universo e pelo céu e,além disso, a Lua tinha um lugar mais destacadono Islã do que em qualquer outra religião. A Luacrescente era frequentemente vista como um sím-bolo do Islã e, hoje, aparece nas bandeiras demuitas nações islâmicas. O calendário islâmicoera baseado na Lua, e não no Sol, e é por isso quea festa do ramadã é mutável e nunca permanecepor muito tempo no mesmo mês. Talvez a Luatambém tenha tido um lugar especial na imagin-ação dos povos que viviam no deserto ou próxi-mos dele. A noite, as nuvens raramente escon-diam a Lua e, numa noite típica, ela era o princip-al espetáculo no céu noturno.

As pregações de Maomé foram reunidas nolivro Alcorão, que foi escrito em árabe; poético efrequentemente de grande inspiração, simples eenfático, era a bíblia da nova religião. Era bemmenor que o Antigo Testamento dos judeus e umpouco mais longo que o Novo Testamento dos

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cristãos, chegando a um total de 78 mil palavras.Pintava as alegrias do céu que esperava pelos queverdadeiramente acreditavam nele. QuandoMaomé tomou Meca em 630, ele já estava a cam-inho da unificação da Arábia, há tanto tempo di-vidida. Morreu dois anos depois e foi enterradoem Medina. Uma mesquita surgiu sobre seutúmulo que, como local de peregrinação, é o se-gundo mais visitado, depois de Meca. Maoméainda não era visto como o salvador dos paísesvizinhos, mas seus exércitos começaram a con-quistar uma vitória atrás da outra, longe de casa.As primeiras vitórias ressoaram. Os inimigos noexterior começaram a cair tão facilmente quantoos de casa. A cidade de Damasco foi tomada em635, e Jerusalém, um ano mais tarde. Muitoscristãos esperavam que a perda de Jerusalém paraa nova religião militante fosse apenas temporária,mas essa cidade sagrada do cristianismo acabousendo controlada pelo Islã por aproximadamente1.100 dos 1.300 anos seguintes. Menos de vinteanos após a morte de Maomé, sua religião e sua

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espada dominaram das fronteiras do Afeganistão,no Oriente, até Trípoli, no Ocidente, uma distân-cia de quase 5 mil quilômetros. A forte invocaçãodas preces podia ser ouvida às margens do Medi-terrâneo, do Mar Negro, do Mar Cáspio, doGolfo Pérsico e do Mar Vermelho. As lanças doIslã continuavam a ser fincadas em todas asdireções. Logo alcançaram o Estreito de Gibral-tar, na porta de entrada do Atlântico. Em direçãoao Oriente, alcançaram a desembocadura do RioIndo, no Oceano Indico. As cidades de Multan,no atual Paquistão, e Samarcanda, na Ásia Cent-ral, foram tomadas em 712 e, um ano depois, noOcidente, Sevilha, na Espanha, foi controladapelo Islã. No século 9º, quase todas as grandes il-has do Mediterrâneo tornaram-se cidadelas is-lâmicas, até mesmo Sicília, Sardenha, Malta eCreta. Por um tempo, a costa sul da França e acosta da Itália, onde esta tem a forma de um saltode bota, tornaram-se islâmicas. Os conquista-dores já adentravam o Deserto do Saara. Até afronteira oeste da China parecia estar sob seu

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controle. No fim do século 10º, a mensagem pen-etrou terras longínquas, como a Índia. Depois,com o tempo, a linha do horizonte a noroeste edo vale do Rio Ganges, mas nem tanto o sul, es-tava pontilhada de mesquitas. A disseminação dacrença nas ilhas da Indonésia e da Península daMalásia foi mais lenta e, no ano 1200, ninguémpoderia ter previsto o que aconteceria: a In-donésia seria a nação islâmica mais populosa domundo.

Em triunfo quase contínuo, um golpe dev-astador atingiu o coração do Islã. No ano 930,Meca foi visitada não pelos fiéis, mas por invas-ores que levaram consigo a pedra negra sagradaaté Bahrein, onde permaneceu em exílio por vári-as décadas. O Islã não era um império centraliz-ado dentro dos padrões romanos, mas por todaparte seus seguidores adoravam o mesmo deus ereverenciavam o mesmo livro. Além disso, oárabe era sua língua unificadora praticamente damesma forma que o latim e o grego haviam sidoem grande parte do Império Romano.

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Considerando-se as comunicações e as armas daépoca, o império do Islã era muito vasto para sergovernado de uma cidade central. Mas sua cri-ação foi uma conquista extraordinária e, vista emseu contexto, faria parecer pequena a notável dis-seminação do comunismo na primeira metade doséculo 20.

O triunfo na África

Adentrando a África, o Islã se estendeupara além das fronteiras externas do Império Ro-mano. Rapidamente, atravessou o Mar Vermelhoaté a margem oposta da Arábia, enquanto o pro-feta ainda estava vivo. Na mesma época, al-cançou, mas não dominou, o reino cristão de Nú-bia, que controlava o território nos dois lados doalto Rio Nilo. Já no século 8º, portos do leste daÁfrica ressoavam com a invocação das precesvindas das pequenas mesquitas e, ao sul dodeserto do Saara, uma longa faixa de terra que se

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estendia até o Oceano Atlântico recebeu seusprimeiros mercadores islâmicos. O Alcorão foidifundido na África principalmente por persuasãoe exemplo. Na maioria dos portos e nas cidadesde comércio do interior, ganhou a conversão desomente uma fração dos cidadãos. Os povos dodeserto com seus rebanhos de camelos e seusacampamentos móveis eram mais solidários coma nova religião que os fazendeiros das terrasférteis. Os nômades do deserto achavam que a re-ligião poderia não só dar a suas vidas um novosignificado, mas encaixar-se perfeitamente emsuas andanças. No Islã, um grupo não precisavanecessariamente de uma mesquita para seus ser-viços de sexta-feira, tampouco precisava de umsacerdote, nem mesmo para os funerais. Para osandarilhos, uma religião que não requeria sacer-dotes nem igrejas era extremamente prática.

A difusão da nova religião e da nova formade vida foi conduzida por uma língua estrangeira;o árabe era a única língua de culto do Islã. Osconvertidos aprendiam de cor as passagens

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principais do Alcorão, entendendo-as da melhorforma que podiam, enquanto as recitavam comfervor. Com a religião, vieram novos tabus sobreas comidas; os vilarejos africanos que elegiam oporco assado como uma refeição memorável embreve abandonaram esse prazer, e alguns vilare-jos, onde a cerveja feita em casa era muito apre-ciada, também se viram abandonando o hábitopara sempre. Com a religião, veio uma grandequantidade de contatos comerciais; os comerci-antes islâmicos faziam negócios em mercados aoar livre, em lugares tão distantes uns dos outroscomo Mombasa, Cantão e Timbuktu.

O Islã proclamava o parentesco de todos ospovos, mas a idéia não se estendia completa-mente aos escravos. Os comerciantes islâmicosescoltavam escravos e escravas em longas jor-nadas até o ponto de venda, embora raramenteescravizassem pessoas de sua fé. Muitos dos es-cravos que, séculos mais tarde, foram despacha-dos em navios para as Américas pertenciam a ter-ras onde o Islã há muito era uma grande força,

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mas relativamente poucos desses escravos eramislâmicos fervorosos. Assim, nas plantaçõesamericanas, o Islã não fincou raízes profundas,deixando o terreno livre para o cristianismo.

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CAPÍTULO 12 - Osgansos selvagens cruzamas montanhas

A China era muito mais um importador doque um exportador de religiões. As novas reli-giões viajavam pela rota da seda, atravessando aÁsia, mas não na mesma direção que esseproduto. Na história do mundo, essa rota rara-mente transportou na mesma direção, sucessiva-mente e em pouco espaço de tempo, uma tãolonga procissão de missionários de novas reli-giões. Assim, os monges e missionários sírioslevaram para o Oriente a versão do cristianismoconhecida como nestorianismo. Na cidadechinesa de Sião, o ponto final da rota da seda, háuma maravilhosa placa de pedra registrando achegada de um missionário cristão nestoriano, noano 635.

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Mercadores judeus viajaram ao longo daestrada gramada e, na cidade chinesa de Kaifeng,estabeleceram sua sinagoga, que florescia aindaem 1163, muito tempo depois de as igrejas cristãsna China Ocidental terem desaparecido. Ela foireconstruída quatro vezes nos 500 anos seguintes.Nessa época, seu pequeno grupo de seguidoresdeve ter perdido todos os contatos pessoais com aterra descrita de forma tão vívida no AntigoTestamento.

O Islã entrou na rota da seda viajando comcaravanas e exércitos. Metade da rota estava sobcontrole islâmico por volta do início século 7º,quando até a cidade murada de Tashkent era umaposse islâmica. Alguns muçulmanos, em suascaravanas, comercializavam em toda a sua ex-tensão, que ia até a China Ocidental, ondeacabaram tendo mais sucesso na conversão defiéis do que os cristãos, judeus ou as seitas mistasda Pérsia. Foram os budistas, vindos da Índia, osque mais conseguiram infiltrar-se na China. Al-guns subiram a pé os vales dos Rios Ganges e

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Irrawaddy, passando, então, por regiões montan-hosas até chegarem à fronteira da China. Outrosprovavelmente foram para a China por mar. Mui-tos caminharam para o norte da Índia e tomarama rota através de uma passagem no Kush hindu, auma altura de 4 mil metros, continuando assimaté a Báctria, onde tomaram a rota da seda.

A princípio, o budismo não se expandiucom rapidez. Por muito tempo, ficou confinado àÍndia e ao Sri Lanka. Mais tarde, no noroeste daÍndia, séculos após a morte de Buda, a crença sereciclou. Conhecida como o Grande Veículo ou aversão mahayana do budismo, era mais vendávelno exterior e dava ao budismo um apelo mis-sionário: aumentavam as perspectivas de pessoascomuns encontrarem a salvação pela devoção aBuda. A crença só se expandiu no leste da Ásiaquando a jovem crença do cristianismo começoua se expandir na Ásia Menor. Na verdade, oprimeiro cristão deve ter chegado à Índia porvolta da mesma época em que o primeiro budistachegou às cidades ribeirinhas da China. Já no ano

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de 65, o budismo havia ganhado uma minúsculabase naquele país. Em suas atitudes, o budismoera tão diferente do confucionismo predominante,tão revolucionário em sua crença na reencarnaçãode seres humanos em outro corpo na hora damorte, que as duas crenças pareciam improváveisde coexistir. Mas a crença indiana acomodou-sesilenciosamente, como regra, ao lado das doutri-nas mais antigas do confucionismo e do taoísmo.Nos 3 séculos seguintes, milhões de chinesesacolheram bem os preceitos ensinados pelosmonges budistas, assim como aqueles apresenta-dos pelo confucionismo e pelo popular taoísmo.Era como se o crescimento do budismo fossesimplesmente um novo departamento do super-mercado religioso da China. Os primeiros budis-tas, na Índia, não desejavam mover montanhas:eles aceitavam as montanhas. Na China, a novaversão do budismo era mais ativista. Os mongeschineses usavam escravos em seus novosmosteiros, e a escravidão era uma instituiçãoaceita na China e na Índia para desmatar florestas

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e cultivar solo novo. O desejo dos monges de en-sinar rudimentos de leitura aos habitantes dos vil-arejos e, até mesmo, sua inclinação para agircomo agiotas e bancos alteraram a vida social eeconômica em muitas regiões. O budismo não sógerava energia econômica, mas também inspiravaa contemplação e o misticismo. Os poetas danatureza chineses emergiram. Hsien Ling-Yun,um playboy da aristocracia e um burocrata quequase foi mandado para o exílio em 422,estabeleceu-se em sua propriedade rural cercadapor rios, a cerca de 500 quilômetros de Nanjing.Estudante do budismo, ele agora tinha tempopara ponderar os problemas na teologia.Começou também a absorver o espírito da árearural conforme ia escalando os rochedos comsuas botas especiais. Alternando entre melancoliae júbilo, ele soletrava seus sentimentos em ver-sos. O fato de sua poesia ter sido reverenciada naChina aproximadamente 1.400 anos antes deWordsworth e os poetas da natureza se tornaremfamosos na Inglaterra é um sinal de que muitos

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chineses já viam a paisagem como um tipo detemplo místico. O budismo se encaixou nesseambiente sem nenhuma dificuldade. Os devotosbudistas ergueram grandes monumentos. Nogrande e turbulento rio, em Luoshan, do ladooposto de perigosas quedas-d'água, chega-se auma gigantesca estátua de Buda esculpida norochedo vermelho de um penhasco e elevando-sea 71 metros de altura, tão alta quanto um prédiode 20 andares. A escultura, iniciada em 685,provavelmente tinha a pretensão de ser a maiordo mundo conhecido. Vista do rio num dia ene-voado de outono, ela parece com o rosto de umgrande piloto, pronto a guiar os barcos do rio.

Na cidade de Sião, a oeste, ainda pode servista a enorme torre octogonal às vezes con-hecida como o Grande Pagode do GansoSelvagem: na antiga poesia chinesa, a migraçãode gansos selvagens era tratada como m sinal depresságios. Os comerciantes europeus quechegavam a Sião pela primeira vez devem tercomparado mentalmente o pagode com algumas

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majestosas colunas que haviam sobrevivido aoImpério Romano: em altura e ornamentação, oGrande Pagode do Ganso Selvagem era maisdeslumbrante. Na China, o maior dos pagodesbudistas mostrava aquela mesma qualidade queas catedrais góticas viriam a exibir na EuropaOcidental. Era como se os construtores tivessemdelicadamente levantado um guarda-chuva, de-pois aberto um guarda-chuva e colocado esteacima do anterior e assim, um andar após outro, atorre se erguia, alcançando a altura de 11 ou até13 andares. Na verdade, alguns pagodes foramfeitos de cima para baixo, tendo sido construídaantes uma estrutura de madeira. As vigas auto-travantes usadas para sustentar a enorme con-strução são uma invenção chinesa. Para os devo-tos que caminhavam de volta para casa após umdia nas plantações de arroz, um pagode, com suaforma cônica, deve ter sido uma grande visãoinspiradora.

A crença budista fez mais avanços na Ch-ina do que qualquer outra crença externa e foi o

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professor mais influente dos chineses por um per-íodo ininterrupto que se estendeu por aproxima-damente 800 anos. Buda nem sempre foi bemacolhido, mas sua influência foi duradoura. O úl-timo dos imperadores chineses, no início doséculo 20, era um seguidor do ramo tibetano dobudismo.

O budismo em marcha

Em seu primeiro milênio como religião, obudismo alcançou terras mais distantes do seulocal original do que o cristianismo, em ummesmo espaço de tempo. O budismo chegou aosul da Birmânia antes de 300; a Java e à Coréia,antes de 400. Por volta do ano 600, um dos reisde Sumatra era budista, e a cidade de Palembang,um centro de comércio chinês, recebia muita in-fluência de budistas vindos da China e da Índia.O Japão, um país ainda não unificado, era comouma esponja, absorvendo uma variedade de

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influências chinesas que incluía arquitetura, pin-tura, poesia, leis e religião, mas também foirápido em modificá-las quando conveniente. Obudismo floresceu no Japão exatamente namesma época em que o Islã florescia do outrolado da Ásia. No fim do século 7° o Japãotornava-se uma terra budista. Nara, a nova capit-al, construída nos moldes das cidades chinesas,tornou-se praticamente uma cidade devota deBuda. O imperador Shomu já mostrava apreçopela religião quando, em 737, seu país foi at-ingido por uma epidemia. A varíola provou sermais devastadora para os japoneses do que apeste negra viria a ser para os europeus. Oimperador, voltando-se ao "Iluminado" à procurade conforto e orientação, ordenou a construção deuma magnífica estátua de bronze: o Grande Budade Nara, ainda hoje de pé no local.

O imperador também instruiu cada provín-cia a construir um mosteiro e um convento. Ostemplos se espalharam por todos os cantos do ter-ritório. Em 749, depois de passar o trono à sua

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filha, o imperador tornou-se um sacerdote. Em-bora os templos xintoístas locais não tenham fa-cilmente se rendido à dominação budista, porvolta de 800, as duas crenças estavam se tor-nando aliadas e os templos xintoístas atéchegaram a ter toques do budismo em suaarquitetura.

No leste da Ásia, o budismo, comoqualquer religião importada, dependia daaprovação real. Na China, no Japão e na Coréia,essa aprovação era às vezes cancelada e posteri-ormente renovada. No século 9º, os budistas daChina, que por muito tempo tinham sido os priv-ilegiados, começaram a ser frequentementeperseguidos. Um século depois, a cidade ja-ponesa de Kyoto, que era agora a capital real,proibiu que qualquer pedaço de terra de suamalha quadriculada de ruas fosse destinado atemplos budistas. Mais tarde, a construção detemplos foi liberada. Na Coréia, a crença flores-ceu no século 14, mas, já em 1393, grandes ped-aços de terra que pertenciam aos mosteiros foram

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redistribuídos. Os budistas permaneceram coesosmesmo nas adversidades e, de tempos emtempos, tornavam-se os favoritos novamente.

Em alguns lugares do leste da Ásia, osbudistas estabeleceram enormes mosteiros, al-guns com mais de 7 mil membros e quase todosservindo como instituições de caridade e locaisde repouso para os viajantes. Buda inspirou con-struções monumentais, tais como o templo er-guido de pedra escura no início dos anos 800 emBorobudur, próximo à costa sul de Java, e o tem-plo construído em Angkor, no Camboja, no iníciodos anos 1100. Inspirou uma devoção religiosaque ele provavelmente teria repudiado, e suasrelíquias tornaram-se possessões apreciadíssimas.Na Birmânia, a capital é dominada pela cúpuladourada do templo de Shwedagon e os devotossobem os degraus até o topo do terraço ondeficam próximos da mais sagrada das relíquias:um cacho de oito fios de cabelo da cabeça deBuda.

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Durante séculos, o budismo foi como umbando de gansos selvagens que voou da Índia e,pousando com segurança em quase todas aspartes do leste de Ásia, deu frutos e se multi-plicou. Mas, quando seu domínio parecia seguro,o Islã atacou com sucesso. Moveu-se em direçãoà Península da Malásia e tomou a maioria das il-has da Indonésia: um dos primeiros sinais dapresença do Islã no arquipélago indonésio é umapedra tumular achada na parte leste de Java e es-culpida por volta do ano 1082. O Islã se espalhoupor toda a parte sul das Filipinas. O sucesso com-binado do budismo e do Islã no leste da Ásia, emlugares tão distantes de casa, foi um sinal decomo o mundo estava encolhendo consideravel-mente mesmo antes de os europeus teremdescoberto suas vias marítimas para o mundoexterno.

O trio triunfante

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As três religiões universais a terem cruzadofronteiras, capazes de converter uma variedadede terras e povos, nasceram durante uma fase es-pecial da história humana. Buda, Cristo e Maomésurgiram num espaço de tempo pouco superior amil anos. A primeira crença, o budismo, apareceupor volta do primeiro século antes de Cristo e aúltima, o Islã, emergiu no sétimo século depoisde Cristo. Desde então, nenhuma nova versão deuma religião universal atingiu tamanho sucesso.

Essas religiões mundiais refletiam umatransição da crença de que Deus era predomin-antemente um símbolo de medo para uma con-vicção de que o amor é divino. Elas incorporaramum alto senso de humanidade. Nenhuma dessasreligiões jamais teve a chance de ser a monopol-izadora de uma raça. Pode-se admitir que ojudaísmo foi, em parte, uma religião universal,tendo sido a geradora de duas religiões de grandealcance, mas, na maior parte do tempo, ela nãoprocurou ativamente a conversão de pessoas. Oscomerciantes que faziam negócios entre cidades

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inicialmente tinham mais probabilidade de acolh-er bem as novas religiões do que a região rural.Essas crenças enfatizavam a confiança, numaépoca em que os comerciantes em terras estran-has precisavam de um clima de afabilidade, noqual os contratos e os acordos verbais pudessemser honrados. Em geral, os primeiros seguidoresde Buda eram comerciantes, como o próprioMaomé. O cristianismo foi inicialmente dissem-inado longe de casa pelos judeus, muitos dosquais eram comerciantes em terras estranhas.Embora Cristo tenha afastado os cambistas dotemplo de Jerusalém, isso aconteceu porque es-tavam no lugar errado, e não porque seguiamuma ocupação indigna. Muitas de suas parábolassolidárias sobre os dilemas do cotidiano defazendeiros e de pastores sugerem que ele não erahostil aos empreendimentos de negócios. Comocarpinteiro ou filho de carpinteiro, ele conhecia omundo do comércio. O grande sucesso dessas re-ligiões em novas terras devia-se principalmenteaos devotos generosos que desejavam dar suas

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vidas, ou perder suas vidas, simplesmente de-fendendo sua causa. Para que uma religião se es-palhe em uma nova terra, depende de o gov-ernante querer recebê-la. As religiões universaisatraíram de forma especial os imperadores quetentavam governar povos que não tinham umacoesão social. O budismo e o cristianismo, queainda estavam lutando após vários séculos depregação de fé, deveram muito de seu sucessoposterior à conversão de dois poderosos im-peradores, Asoka, da Índia, e Constantino, deRoma. Um rei de um vasto império achava-sepropenso a acolher bem uma religião que fizesseseu povo se sentir contente com sua vida simplese, às vezes, difícil. Por volta do ano 900, as trêsreligiões universais tinham alcançado, entre si, amaior parte do mundo conhecido. Somente ocontinente americano, o sul da África, a NovaGuiné, a Austrália e outras ilhas afastadas es-tavam além de seu alcance. Dessas três religiões,a mais jovem era talvez a mais vigorosa e, com aajuda de comerciantes árabes, o Islã estava

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conquistando uma vasta área do SudesteAsiático. Por outro lado, a mais antiga delas, obudismo, estava influenciando o maior númerode vidas por causa de sua força na populosa Ch-ina, Coréia, Japão e Indochina. Embora tivessequase esgotado sua influência em sua terra natal;da Índia, continuava a conquistar novas regiões.O cristianismo era agora a menos viva das três.Contava com partes do nordeste da África e daÁsia Menor, mas conquistou poucas conversõesna Ásia propriamente dita. Na Europa, era dom-inante praticamente desde a Irlanda até a Grécia,mas tinha perdido terreno para o Islã no Mediter-râneo e tinha fracassado ao penetrar no norte ge-lado do continente. Não converteu a Suécia nema Dinamarca. Outros evangelizadores fizerampouquíssimo progresso na Rússia. Todas as reli-giões de importância dependiam de apoio de gov-ernantes fortes e profanos, mas os governantes daEuropa cristã não eram tão poderosos quanto tin-ham sido na época do Império Romano. Uma re-ligião de importância também dependia, para

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oportunidades de expansão, daqueles seguidoresque eram comerciantes e que, fazendo negócioslonge de casa, espalhavam a palavra ou prepara-vam o terreno para os missionários. No ano 900,no entanto, os comerciantes cristãos da Europaencontraram-se encurralados pelo Islã de um ladoe o desconhecido Oceano Atlântico do outro. Setivessem existido, no ano 900, alguns sábios ob-servadores com grande noção do mundo con-hecido e se tivessem sido questionados sobrequal das principais religiões parecia ter o futuroem suas mãos, eles dificilmente teriam apontadoo cristianismo. Este estava principalmente ancor-ado à civilização estagnante da Europa e, aindaassim, quase que por milagre, suas perspectivasvieram a se transformar seis séculos depois.

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CAPÍTULO 13 - Emdireção à Polinésia

O mundo ainda se encontrava dividido emcentenas de minúsculos mundos quase independ-entes. Enquanto a Europa e a China formavamcada uma grandes mundos, com o tráfego fluindoentre si, a África, as Américas e a Australásiaconsistiam de vários mundos pequenos e isola-dos: nesses lugares, um pequeno grupo tinha ger-almente muito pouco ou nenhum contato diretocom as pessoas que viviam a apenas mil quilô-metros de distância. Em partes do globo, umvácuo semelhante, principalmente se fosse ummar, era um verdadeiro abismo.

Às vezes, o abismo era transposto e essespassos tinham consequências fundamentais paraa raça humana. Em toda a história humana, houvesomente três grandes momentos em que se cruz-aram os mares para povoar grandes terras

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desabitadas: um foi a migração, há mais de 50mil anos, da Ásia para a Nova Guiné e Austrália;outro foi a migração da Ásia para o Alasca, hámais de 20 mil anos, seguido pela lenta ocupaçãode todo o continente americano; o terceiro, emtempos muito recentes, foi a migração dos povosda Polinésia para uma extensa faixa de ilhas des-abitadas dos Oceanos Pacífico e Indico. Uma dasmarcas de que essa migração é recente é que elaaconteceu na era cristã, embora os migrantesmesmos nunca tivessem ouvido falar no nome deCristo. As viagens da Polinésia pelos oceanosrumo a novas terras estão entre as migraçõesmais notáveis da história humana. Algumas desuas viagens foram mais corajosas que a deCristóvão Colombo pelo Atlântico, 1492. Defato, há uma estranha semelhança entre a procis-são de navegadores polinésios e as viagens deColombo. Estas saíram da Europa à procura daChina e aquelas saíram da China à procura denovas terras. A lenta migração em direção às il-has começou no sul da China, país de clima

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tropical e coberto de florestas. Talvez tenha sidopor volta de 4000 a.C. que os colonizadoresaventureiros começaram a atravessar os estreitosaté a ilha acidentada de Taiwan. Muitos marin-heiros provavelmente morreram enquanto selançavam em viagens tão perigosas. Uma vez emterra, eles estabeleciam seus modos de vida, pre-sumivelmente como fazendeiros e pescadores;faziam as próprias ferramentas de pedra, sabiamfazer o tipo de cerâmica na época comumenteusada na China e, provavelmente, criavam por-cos, galinhas e cães. Não há dúvidas de que eramhábeis em navegação. A embarcação escolhida,pelo menos na época em que se aproximaram doPacífico central, muitos séculos depois, foi acanoa polinésia (espécie de canoa com troncos demadeira paralelos ao casco, firmemente amarra-dos a ele, formando uma estrutura que impede aembarcação de virar mesmo sob a ação de fortesondas).

Sua sucessão de viagens, lenta eintermitente, dirigia-se para o leste, de ilha em

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ilha. Nos mil anos que se seguiram, esses povosdo mar chegaram às ilhas das Filipinas, das quaispedaços de terra foram limpos para plantações.Viagens posteriores levaram seus descendentesàs ilhas de Bornéu, Sulawesi, Timor, Sumatra eJava, todas em vias de serem colonizadas até oano 2000 a.C. Muitos desses povoamentosaconteceram em ilhas novas, mas alguns se de-ram em áreas que há muito haviam sido povoa-das. Nesses locais, a população existente foiderrotada em guerra, reduzida por novas doenças,empurrada para as colinas, áreas menos favorá-veis, ou simplesmente absorvida pelas classesdos povos invasores. Ao explicar esse movi-mento persistente de povos para longe de suasfronteiras, é tentador oferecer explicaçõessimplistas. Talvez estivessem reagindo à super-população, talvez tivessem sido levados ocasion-almente a procurar novas casas por causa de vul-cões, terremotos, tufões ou outros desastres nat-urais. Nenhuma explicação é suficiente. Umavariedade de fatores impulsionou esses povos

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semelhantes aos chineses, assim como muitas in-fluências levaram os colonizadores europeus àAmérica do Norte. Por serem marinheiros, elesprovavelmente evitavam o pensamento de viver-em em colinas, longe do mar, e, em vez disso,procuraram outras baías e vales do litoral ondepudessem pescar e plantar. Em qualquer localid-ade, eram poucas as baías e praias com baixapopulação e, assim, era frequente o incentivopara emigrar para uma nova ilha ou litoral. Asviagens desses povos, apinhados em suas canoas,seguiam um tipo de lógica. Aventurando-se rumoao leste, eles tinham a probabilidade de descobririlhas, habitadas ou não, de clima tropical e veget-ação como a que tinham acabado de deixar paratrás. Na fase inicial da migração, os ventos tam-bém foram favoráveis. As monções, baseadas naproximidade da região à grande massa de terra daÁsia e em seu resfriamento e aquecimento sazon-al, permitiram que os marinheiros viajassem parao sul, norte, leste ou oeste, desde que se conten-tassem em permanecer próximos ao Equador. A

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geografia sorria para eles, pois havia colocado il-has a leste, milhares delas, como um caminho depedras sobre a água; muitas podiam ser vistas doalto das colinas a olho nu, enquanto outras foramdescobertas por viagens ao acaso. A lenta rota demigração equatorial chegou à ilha de NovaGuiné, há muito povoada, ocupando algumaspartes da costa por volta de 1600 a.C. Emseguida, entrou na região de ilhas tropicais, ondenenhum ser humano vivia. Em 1200 a.C, as velasmarrons de seus barcos já se encontravam nasvilas costeiras de Nova Caledônia, Tonga, Fiji, Il-has Salomão e Samoa. Em 500 da Era Cristã,seus barcos foram vistos em torno do Havaí e daIlha de Páscoa. Em distância percorrida numalinha, de leste a oeste, o total de viagens feitaspor uma geração após outra era equivalente auma viagem por terra da Europa à China, dis-tribuída por mais de 4 mil anos. Mais tarde, essesnavegadores fizeram um retorno e descobriram asremotas ilhas da Nova Zelândia.

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Ao longo de uma linha de ilhas que form-avam um tipo de Via Láctea cruzando o Pacífico,esses marinheiros deixaram para trás evidênciaseloquentes de suas origens. Mesmo hoje, desdeas partes isoladas das montanhas de Taiwan até aIlha de Páscoa e a Ilha Pitcairn, a leste, a famíliade línguas austronésias sobrevive. Para os poliné-sios, encontrar a presença de vulcões na Ilha dePáscoa foi um triunfo especial. Era um meroponto no oceano, a 1.600 quilômetros da terrahabitada mais próxima. Outrora densamentearborizada, tornou-se tão desmatada pelos novoscolonizadores que, no final, seus imponentesmonumentos não eram antigas árvores, mas es-tátuas de pedra, em torno de 600 delas no total.Uma das estátuas, nunca acabada, tinha 20 met-ros de altura. Na língua e na sociedade, os habit-antes da ilha de páscoa eram polinésios, mas suasestátuas e sua forma de escrita sugerem um ante-passado ou uma influência diferente. Os polinési-os abrangiam desde tribos que viviam em con-flito entre si a fortes monarquias que governavam

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muitas ilhas. O Havaí, com talvez 200 mil habit-antes ou mais, era praticamente uma monarquia,quando ali chegaram os primeiros europeus. Al-guns desses monarcas polinésios, como seussemelhantes na Europa Ocidental, acreditavamser de descendência divina.

Durante essa longa temporada de mi-grações, outros exploradores alcançaram aimensa ilha desabitada de Madagáscar. Anordeste da ilha, o mar contínuo se estendia até oarquipélago indonésio, a cerca de 5 mil quilômet-ros de distância. De ilhas indonésias, quase comcerteza, vieram os primeiros colonizadores deMadagáscar. Até hoje sua língua, o malgaxe, per-tence ao grupo das línguas malaio-polinésias, ap-resentando mais afinidade com a fala da distanteBornéu do que com a fala da vizinha África. Aprimeira viagem a Madagáscar, favorecida pelamonção de nordeste, aconteceu quando a cidadede Roma entrava em rápido declínio, por volta doano 400. Foi realizada exatamente quando, quasea meio mundo a leste, outros polinésios estavam

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colonizando a Ilha de Páscoa. Sentado à beira daspraias pontilhadas de palmeiras de Madagáscar eobservando as ondas do Oceano Índicopreguiçosamente quebrando nos recifes de corais,podem-se imaginar as velas marrons lentamentesurgindo à vista, um ou dois pequenos barcos in-donésios balançando sobre as ondas do oceano.Todos a bordo desses barcos que se aproxim-avam devem ter visto, com avidez e ansiedade, aarrebentação das ondas à sua frente, a mata nofundo montanhoso e se perguntado se conseguiri-am alcançar a terra antes que suas embarcaçõesfossem destruídas pelas ondas e recifes. Mad-agáscar e Nova Zelândia foram as últimas áreashabitáveis de tamanho considerável a seremdescobertas e colonizadas pela raça humana.Talvez Madagáscar tenha sido a mais importantedelas, pois, em área, tinha mais que o dobro daNova Zelândia. Os triunfos na história das nave-gações humanas são parte de uma saga dedescobrimentos e migrações que praticamentefindaram por volta do ano 1000.

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Terra dos moas

Do mar, os vilarejos fortificados dosprimeiros maoris devem ter sido facilmente av-istados. Alguns ocupavam promontórios estreitose, portanto, eram rodeados por três lados pelomar, sua primeira linha de defesa. A subida ín-greme e geralmente perpendicular da praia oudos rochedos até o forte era a segunda linha dedefesa. A terceira, ainda mais alta, era uma bemconstruída cerca de mourões resistentes, comuma fileira de estacas pontiagudas de madeiraentre eles, fincadas no chão a espaços regulares.Essa cerca de mourões percorria toda a extensãodo vilarejo fortificado ou pa. Nos pontos mais al-tos do vilarejo, havia residências de madeira,com depósitos espalhados em alguns lugares. Osdepósitos ficavam sobre plataformas para que osratos não pudessem roubar os alimentos: umeventual buraco coberto por um telhado baixotambém servia como depósito de vegetais. As ca-sas, propriamente ditas, com seus telhados

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inclinados feitos de sapê, não tinham paredes edeixavam entrar a brisa do mar. No caso de umataque surpresa, esses vilarejos fortificados form-avam uma excelente defesa, mas eram incapazesde resistir a um cerco, pois, via de regra, não tin-ham poços, fontes ou nenhuma forma segura deabastecimento permanente de água doce. Até alenha tinha de ser trazida de longe.

Na Ilha do Norte, a origem do pa, foramidentificados os locais de cerca de 5 mil fortes.Os terraços sofreram erosão, as paliçadas des-moronaram e apodreceram. Os arbustos, as tre-padeiras e a grama voltaram a nascer no local;mas, de longe, o contorno de um forte, como umpequeno corte aberto no terreno e sua série debancos e terraços, pode, às vezes, ainda ser visto.

Uma enorme extensão de terras no interiorera necessária para abastecer cada tribo ou vil-arejo com alimentos. Os pomares eram cavadoscom pedaços de pau, de formato semelhante a umpé-de-cabra. A camada superficial do solo era

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então empilhada em fileiras perfeitas com uma páde madeira e o solo revolvido, plantado comtubérculos. A kumara era o mais valioso dessesvegetais. Semelhante a um inhame ou batata-doce bem comprida, com uma das pontas ligeira-mente grossa e a casca externa rosa-avermelhada,plantava-se a kumara em dias ditados pela fase daLua.

Um prêmio esperava pelos primeiros colon-izadores: a carne existia em abundância inacred-itável. Nas ilhas do norte e do sul, o enorme pás-saro moa, capaz de correr com grande velocid-ade, mas incapaz de voar, era uma presa fácil doscaçadores maoris. Chegando a uma altura de 3metros, com pernas fortes para correr, mas comuma cabeça que não podia ferir facilmente oscaçadores humanos, o moa parecia um carinhosoanimal de carga. Suas costas eram tão retas ecompridas que, se tivesse sido domesticado, po-deria carregar quatro ou mais crianças sentadas,uma atrás da outra. Os maoris caçaram o moacom tanto vigor que, por volta de 1400 ou 1500,

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a espécie estava praticamente extinta. As águiasde asas compridas que caçavam os filhotes demoa também estavam condenadas; já não erammais vistas sobrevoando a região, como quandoos primeiros colonizadores europeus alichegaram.

Não produzindo cerâmica, os maorisusavam como vasilhas a casca externa dascabaças que no verão cresciam das trepadeiras ese esparramavam pelos telhados das casas oupelos pomares plantados. Não tinham rebanhosnem porcos, seu único animal doméstico era ocão. A pedra tinha de ser usada em lugar do met-al e era modelada ou manufaturada com habilid-ade, provavelmente com a mesma perfeição ne-cessária para os trabalhos em metal. Havia jazi-das de pedra para fabricação de ferramentas evários tipos de pedras eram cortados e transporta-dos por longas distâncias, a pé ou em canoas, atéaquelas regiões onde não eram encontradaspedras adequadas. Umas das enormes pedras deamolar dos maoris, transportada da praia para o

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salão do Museu de Auckland, hoje atrai mul-tidões de admiradores. Os europeus que conhe-ceram o modo de vida dos polinésios, prestes amudar, ficaram impressionados com sua cor-agem. Eles notaram também a violência dessepovo: os sacrifícios humanos e o canibalismo. Oinstinto guerreiro dos maoris era indiscutível,tanto assim que, na década de 1780, quando ogoverno britânico teve de decidir se instalavauma colônia na Austrália ou na Nova Zelândia,uma decisão de profunda importância para essaparte do mundo, a escolhida foi a Austrália. Osmaoris pareciam destemidos e eram guerreiroscomprovados. Foi sensato tê-los deixado em paz.

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PARTE 2

Um marco no meio do caminho

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Uma multidão de cristãos esperava queCristo retornasse ou que o mundo tivesse umdramático fim no ano 1000. Ao contrário, a vidacontinuou e o novo milênio prosseguiu. Este viriaa ser o mais notável de todos os períodos de milanos que haviam decorrido desde que a raça hu-mana deixou pela primeira vez sua terra natal naÁfrica. Seria notável não só pelo ritmo cada vezmais rápido das mudanças, mas pela recuperaçãodos mundos esquecidos.

Antes da última grande elevação do níveldos mares, tinha havido uma tênue ligação entretodas as tribos humanas. Uma longa corrente decontatos humanos, uma corrente contínua de po-voamentos nômades atravessou a Ásia rumo àEuropa e à África e era possível que uma novaidéia surgida ao longo do Rio Amarelo pudessecom o tempo alcançar, mil anos depois, o Rio Ni-ger e o Nilo. Daí em diante, esses povoamentoshumanos foram separados em grandes fragmen-tos. Praticamente, todos os contatos cessaram egrandes populações de humanos foram isoladas

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pela elevação dos mares. No ano 1000, asAméricas já haviam vivido mais de 12 milêniosisoladas da Ásia e da Europa. O continente daAustrália tinha passado por um longo isolamentoda Ásia. No novo milênio, todos esses lugaresisolados, e muitos mais, vieram a ser reunifica-dos, um a um, com o centro dinâmico do mundosituado na Europa, na Ásia e no norte da África.

A parte mais inesperada desse processo deredescoberta foi sua origem: teve início naporção atrasada do mundo. As margens atlânticasda Europa enviaram a maioria dos navios quedescobriu o mundo esquecido. Ainda mais ines-perado, uma parte desse mundo esquecido - aAmérica do Norte - acabaria despertando para setornar o novo líder global no fim desse milênio.

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CAPÍTULO 14 - Osmongóis

Na história humana, os oceanos foram, àsvezes, um obstáculo insuperável para o contatoentre povos longínquos, enquanto, em outras épo-cas, as vastas extensões de terra haviam repres-entado grandes barreiras. O que os navios al-cançaram em transporte, no oceano, os cavalosalcançaram em pelo menos uma das massas deterra; eles lentamente converteram em estradarudimentar aquele largo corredor transcontinentalde campinas e montanhas, de leste a oeste, queseparavam as civilizações tão contrastantes doleste da Ásia e do Mediterrâneo.

Ocasionalmente, os povos das estepes ex-plodiam em cada extremidade do corredor comoum foguete sobre esses mundos bem armados.Várias de suas vitórias foram notáveis. Umdesses grupos do Oeste, os hunos, atacaram

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violentamente o Ocidente e fizeram o agonizanteImpério Romano tremer de medo. Quase milanos depois, um grupo do Leste, os mongóis, un-indo coragem, crueldade e um toque de genialid-ade, conquistou o maior território jamais domin-ado por um governante até então.

A terra de origem dos mongóis ficava bemmais ao norte da rota da seda. Numa determinadaépoca, eles provavelmente viveram próximo doLago Baikal, na fronteira leste da Sibéria e doque é hoje a República Popular da Mongólia. Porvolta do século 10º, deslocaram-se do norte daMandchúria em direção ao leste da Mongólia.Mais tarde, deram seu nome a uma dúzia de out-ros povos nômades que se juntaram a eles nagrande conquista. Os mongóis e seus vizinhosrivais raramente cultivaram alimentos, não con-heciam a irrigação e nunca se estabeleceram emum só lugar.

As famílias que, tradicionalmente, hab-itavam essas estepes da Mongólia deslocavam

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seus rebanhos de pastagem em pastagem, deacordo com a mudança das estações. Possuíamovelhas, cabras, gado e cavalos, mas a terra em sipertencia coletivamente a grupos maiores.Quando chegava a hora de mudar de acampa-mento para regiões propícias ao verão ou in-verno, os bois geralmente puxavam as carroçasnas quais eram carregadas as enormes barracasde lã. Não possuindo grandes cidades, sua popu-lação total era pequena.

Os animais eram seu capital, sua principalfonte de riqueza. Relutantes em devorar esse cap-ital, os mongóis preferiam, tanto quanto possível,viver dos dividendos que vinham do leite. Doleite de vacas, ovelhas e cabras, eles faziammanteiga, pelo menos quatro variedades dequeijo, o iogurte, hoje tão popular no Ocidente,um tipo de creme seco chamado de urum e umabebida destilada chamada de airak. Até as éguasrobustas de galope veloz produziam leite que,fermentado, era bebido com grande satisfação. Àprimeira vista, não era um ambiente que

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prepararia um povo pouco numeroso para a tarefade derrubar civilizações altivas e populosas. Masos homens, exímios cavaleiros, cavalgavam aomesmo tempo em que atiravam flechas com pon-tas de ferro com enorme precisão e podiam cobriruma imensa área com grande velocidade. Asmulheres eram competentes como administrador-as, quando os homens haviam partido em ex-pedições de guerra e ataques, e, na verdade, essasmulheres tinham um status que surpreendeu mui-tos chineses. De alguma forma, os mongóis po-diam ser comparados com os vikings, que haviamflorescido um pouco antes. O que um povo fez nomar, o outro fez em terra; ambos vieram de cli-mas inóspitos e territórios pouquíssimo povoa-dos, o que não é necessariamente uma vantagem,mas torna-se uma se, a seu lado, vive um impériorico e populoso que se torna cheio de si e, emseguida, perde suas forças.

Os mongóis estão chegando!

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Todos os sagazes imperadores da Chinaviam vantagens em instigar os nômades a lutarementre si. No século 12, eles encontravam-se tãodivididos quanto se tornaram unidos no séculoseguinte. Em 1206, Gêngis Khan, o chefe dosmongóis, como por milagre, uniu esses cavaleirosdas estepes. Todos os clãs ou grupos lhe juraramsua lealdade, e os mais prováveis de lhe seremdesleais haviam sido mortos ou intimidados. Se-gundo diziam, esse líder que atraía a todos pos-suía poderes místicos. Com um exército montadode aproximadamente 130 mil homens e uma redede espiões em território inimigo, ele começou suaconquista. Milhares de cavaleiros andavam comum ou dois cavalos sobressalentes a seu lado,para que pudessem substituir um cavalo cansadose uma longa jornada os esperasse à frente.

Gêngis Khan movia-se de modo tão velozque, frequentemente, sua arma era a surpresa. Àsvezes, usava da nova invenção, a pólvora, casotivesse de sitiar uma cidade fortificada. Geral-mente, oferecia à cidade a chance de se render. O

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preço da rendição era um em cada dez habitantesda cidade e um décimo de sua riqueza. E, assim,seus escravos, soldados recrutados e sua riquezamultiplicavam-se. As cidades que não se rendiameram sitiadas ou invadidas; massacres e carnifici-nas eram a marca registrada dos mongóis. O van-dalismo inteligente e sem piedade era outra desuas armas. Destruíam os sistemas de irrigaçãoque representavam a vida de muitas terras aráveisou devastavam a terra que cercava uma cidade si-tiada, para que a borda de suas estradas e os cam-pos ficassem repletos de corpos espalhados pelochão. Quando avançavam em direção aos murosde uma cidade bem protegida, às vezes com-peliam seus prisioneiros de guerra a irem à frentee formarem um escudo humano. Além disso, oslíderes mongóis também impunham uma discip-lina rígida entre o próprio povo.

A Grande Muralha da China era simples-mente um obstáculo a ser transposto pelos mon-góis. Tomaram Pequim em 1215 e, com o tempo,fizeram-na a capital da China. Ao sul, ficava uma

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imensa área de terras ainda nas mãos doschineses, e os mongóis lentamente a dominaram.Ocupar a China, a nação materialmente maisavançada do mundo, era quase equivalente a umanação da parte central da África ocupar hoje osEstados Unidos e tornar Washington sua capital.Ao contemplar os mongóis, uma conclusão é in-egável: nunca nos registros da história haviamacontecido conquistas tão fabulosas. No outrocanto da Ásia, os mongóis tiveram praticamente amesma notoriedade. Tomaram uma sucessão decidades islâmicas que até então tinham se sentidoseguras por trás de seus altos muros; até Bagdácaiu em suas mãos. No fim do século 13, o Im-pério Mongol se estendia desde as margens doDanúbio até as vilas de pescadores de HongKong.

Gêngis Khan alcançou em 20 anos o que osromanos, como conquistadores, tinham levadoséculos para construir; por isso, as duas con-quistas não podem ser facilmente comparadas.Os mongóis, quando avançaram rumo ao oeste da

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China, lutaram para abrir seu caminho cruzandouma enorme área da Ásia pouquíssimo povoada.Seus principais alvos eram as cidades muradas,travessias dos principais rios e passagens nasmontanhas, que deviam ser vencidas a qualquercusto. Na verdade, eles tinham de tomarpequenos pontos e ilhas espalhadas numa imen-sidão de mar. Um de seus alvos era a rica e bemprotegida cidade de Hangchow (hoje, Hangzhou),a maior cidade do mundo e o lar de aproximada-mente um milhão de pessoas: e eles a tomaram.

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É bem provável que a vitória sobre um im-pério seja mais facilmente realizada em terra doque por mar. As vitórias de Gêngis Khan e Alex-andre, o Grande, sobre uma imensa área de ter-ras, e mesmo as principais vitórias de Napoleão eHitler, foram favorecidas pelo fato de que nãotiveram de lutar com o mar tão temperamental.Uma cidade ou um reino de destaque na nave-gação não era tão facilmente conquistado: o mar,em geral, era seu aliado. Quando uma grande es-quadra de navios inimigos aparecia à vista, nemtudo estava perdido; o conhecimento do local eraum patrimônio fundamental para os defensores.Uma esquadra invasora, flutuando sobre as ondasou ancorando numa costa que oferecia ventosdesconhecidos e nenhum porto de abrigo ficavaextremamente vulnerável. O mar tendia a privile-giar o defensor. Assim, se as cidades de Samar-canda e Pequim, Herat e Kiev ficassem na costa,e não no interior, e tivessem de encarar os violen-tos mongóis chegando em suas esquadras, po-deriam ter se defendido com mais sucesso. Ao

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fazer um comentário como esse, coloca-se emperspectiva uma invasão de terra, e não a tent-ativa de roubar dos mongóis a sua glória.

Uma das primeiras conquistas dos mongóisfoi trazer a lei e a ordem à longa rota da seda:nunca antes essa estrada havia estado sob o con-trole de um governante. Chegaram a fazer cortesno terreno, nas partes mais altas, e algumaspontes, aqui e ali, com acampamentos para as di-ligências e estalagens simples pelo caminho,onde os comerciantes, seus serviçais e animais decarga pudessem acampar durante a noite. Todotipo de carga passava por ali e há registros deque, entre 1366 e 1397, o mercado de escravos nacidade italiana de Florença tenha vendido 257 es-cravos, a maioria mulheres jovens, que haviamsido trazidas por essa estrada.

A segurança da estrada tornou-se umalenda. Segundo diziam, os viajantes podiam atétransitar à noite, presumivelmente em noites deLua cheia. Ironicamente, a estrada, mais

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movimentada do que nunca, não era tão import-ante para a Europa, pois seus criadores de bicho-da-seda estavam agora adquirindo destaque àsombra das plantações de amoreiras. Além disso,a rota marítima do Oriente Médio e da Índia paraos portos chineses já competia fortemente com ascaravanas terrestres.

A perda de brilho da estrela daciência chinesa

Um centro de espírito inventivo, a Chinaainda tinha muito a ensinar ao Ocidente. Possuíaprovavelmente os fazendeiros mais capacitadosdo mundo, muito embora algumas regiões per-manecessem atrasadas; novas espécies de arrozforam descobertas através de experimentos, sur-gindo daí, por exemplo, um tipo que resistia àseca e outro de amadurecimento rápido, que pos-sibilitava que um novo plantio fosse feito a cada

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ano; a guerra contra as pragas agrícolas foi ex-tremamente criativa.

Na arte da comunicação, o acontecimentomais memorável desde a invenção da escrita es-tava aos poucos começando na China. O papelestava sendo manufaturado e a arte da imprensa,usando sinais gravados em blocos de madeira, es-tava se desenvolvendo. Seu livro mais antigo datade 868. A impressão de um livro, em vez deescrevê-lo todo à mão, foi uma maravilhosa opor-tunidade de difundir a mensagem do budismo etambém os preceitos de Confúcio, que todos oscandidatos ao serviço público tinham de saber.Em 1273, imprimiu-se um livreto para fazendeir-os e cultivadores de seda natural e, em breve, 3mil cópias estavam em circulação numa épocaem que, na Itália, a mesma tarefa teria exigidoum mosteiro cheio de monges, em dedicação umano inteiro, para escrever as cópias à mão. Nosprojetos de vias marítimas, os chineses erammestres. Enquanto os romanos tinham sido osmestres do aqueduto ou canais de pedras

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elevados que transportavam água doce até as cid-ades, os chineses foram os mestres dos canais deembarcações que atravessavam terrenos desnive-lados. O Grande Canal da China, como suaGrande Muralha, foi construído durante muitosséculos. Um monge japonês, em visita à Chinaem 838 ficou abismado ao ver um comboio debarcaças lentamente navegando pelo canal, algu-mas delas amarradas com cordas para quepudessem navegar as três de uma vez, e essemesmo comboio inteiro sendo puxado por doisbúfalos da Índia, caminhando penosamente pelasmargens. O canal transportava grãos das fazen-das, principalmente em torno do Rio Yang-tse-ki-ang, para abastecer grandes cidades.

Como a China possuía em abundância ostrês ingredientes da pólvora - o enxofre, o salitree o carvão -, não é de surpreender que tenhadescoberto esse explosivo. Um trabalho chinês de1044 contém três receitas diferentes para se fazerpólvora militar e, com certeza, foi usada de tem-pos em tempos no século seguinte.

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Várias técnicas de navegação e para a con-strução de navios muito provavelmente vieram daChina, embora algumas tenham sido melhoradase usadas com mais eficiência na Europa Ocident-al. Pontes suspensas por correntes de ferro foramconstruídas na China muito antes de a Inglaterrater feito sua famosa ponte de ferro no início daRevolução Industrial. Cinco anos antes dachegada à Inglaterra de Guilherme, oConquistador, construiu-se um pagode de ferrofundido na província de Hubei, onde se encontraainda hoje. Em 1400, um observador perspicazcom o dom de prever o futuro poderia terpensado que a China corria a passos largos, àfrente da Inglaterra, em direção à primeira re-volução industrial do mundo. Logo depois,porém, essa corrida diminuiria seu ritmo até setornar um simples rastejo pelo chão.

Na medicina e na saúde, os chineses foramvigorosos em experimentar novas soluções, mastambém obstinados em apegar-se aos velhos re-médios, principalmente na medicina fitoterápica,

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que provavelmente era a principal forma de cura.Muitos dos chineses usavam pasta de dente euma escova de limpeza, artigos desconhecidos naEuropa. Os médicos chineses vislumbraram asdoenças maléficas que estavam ligadas a certasocupações: como os mineradores tinham os pul-mões enfraquecidos pela poeira cortante suspensapela perfuração de buracos nas minas subter-râneas, como os ourives de prata inalavam o mer-cúrio que usavam em seu ofício e como os cozin-heiros, que constantemente inspecionavam o fogoem seus fornos de massas, aos poucos preju-dicavam a própria visão. Em anatomia, também,os estudiosos chineses fizeram grandes avanços.a liberdade na China, como quase em todo lugar,era racionada. Mesmo no ano de 1200, milhõesde chineses ainda eram escravos. Alguns haviamsido capturados em guerras e escravizados; mui-tos eram escravos hereditários apresentadoscomo presentes aos mosteiros budistas, onde tra-balhavam pelo resto de suas vidas. Outros eramcrianças e até mesmo adultos que tinham sido

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vendidos para a escravidão por famílias que pas-savam fome. O infortúnio dos chineses foi que,tendo liderado por muito tempo em muitos ramosda tecnologia, eles foram quentes e frios, criat-ivos e letárgicos, na técnica que provou ser oportão de entrada para o futuro: eles fracassaramno mar. É verdade que inventaram a bússola, masnão o desejo persistente de navegar para odesconhecido. Eram cartógrafos habilidosos, masseus melhores mapas eram de seus distritos agrí-colas de pequena escala. Um mapa do mundo erade pouco interesse para eles, pois acreditavamque as planícies férteis da China eram o centro daTerra, um Jardim do Éden Oriental, e que tudoalém daquelas planícies era de menorimportância.

Os cientistas chineses ainda acreditavamque a Terra fosse plana com uma borda definidamuito depois de essa idéia confortante ter desa-parecido na Europa. Não podiam ver sentido naatormentadora teoria, cada vez mais defendida naEuropa, de que viajando para o oeste, em vez do

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leste, um navio europeu acabaria alcançando aChina. Para os navegadores chineses, em 1492, ocorolário dessa idéia era que, navegando para oleste, eles acabariam chegando à Europa Ocident-al. Se os chineses tivessem se agarrado a essaidéia, seus navios poderiam ter partido primeiro edescoberto a costa oeste das Américas bem antesde a costa leste ter sido descoberta por Colombo.Mas eles não acreditavam que a Terra fosse re-donda. Os chineses mostravam uma alta capacid-ade na arte da construção de navios. Entre 1405 e1430, seu almirante Zheng He supervisionou via-gens de grande importância, feitas em grandesnavios, a terras distantes. Sua esquadra chinesa,quando saía em exploração longe de casa, prat-icamente só visitava portos bem conhecidos daÁsia e do Oceano Índico. Se podiam ser chama-das de exploração, dentro do espírito de Co-lombo, é duvidoso, e, em todo caso, as viagenslogo cessaram. A navegação costeira havia sidoreduzida na China, e o Grande Canal, depois dealargado, é que era usado para o transporte

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nortesul, em vez da costa do mar. Notavelmente,os chineses evitaram o mar, no qual eram espe-cialistas, na mesma época em que a EuropaOcidental estava embarcando rumo a oceanosdistantes com resultados surpreendentes.

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CAPÍTULO 15 - Osperigos do clima e dasdoenças

Um período de temperaturas elevadassobreveio durante a Idade Média, e os dois sécu-los entre os anos 1000 e 1200 foram talvez tãoquentes quanto a década de 1990 veio a ser nonorte da Europa. Colheitas foram feitas em terrasque, por serem tão frios seus verões, um dia tin-ham sido vistas como inúteis para o cultivo. Asvinhas deram frutos além do limite de cultivo deuvas; até o extremo norte da Inglaterra chegou aproduzir vinho. A ilha da Islândia foi ocupada aoprimeiro sinal de um período mais quente. Situ-ada no contorno do Círculo Ártico, mas lucrandobastante com o aquecimento vindo da Correntedo Golfo, a ilha foi ocupada por alguns religiososirlandeses e, depois, em 874, pelos vikings vin-dos da Noruega. Os vikings sacudiram o norte da

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Europa exatamente na mesma época em que osárabes islâmicos agitavam o Mediterrâneo e osmaoris ocupavam a Nova Zelândia. Embora osataques belicosos dos vikings sejam famosos,seus povoamentos foram eficientes e, com otempo, as cidades e distritos vikings se es-tenderam desde as cidades de comércio de Kiev eNovgorod, na Rússia, até a costa da França,Escócia, Irlanda, Ilhas Orkney, Ilha de Man eIslândia. Até mesmo a gelada Groenlândia, amaior ilha do mundo, parecia ser um prêmioonde, nesses anos mais quentes, os vikings po-deriam pastar suas ovelhas e defumar os peixesque pegavam no mar. No ano 985, pequenos na-vios zarparam da Islândia para a Groenlândiacom aproximadamente 400 colonizadores, bemcomo ovelhas, cabras, vacas, cavalos e, provavel-mente, pilhas de feno. Na sua maioria eram nor-uegueses, mas havia um contingente de ir-landeses também. Ancorando na costa mais aosul da Groenlândia, os colonizadores prosper-aram no clima cada vez mais quente. No verão,

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cortavam a grama alta, deixavam-na secar emmontes dispostos em fileiras e empilhavam-naem celeiros de feno, possibilitando alimento sufi-ciente para o rebanho durante o escuro inverno.A população da Groenlândia cresceu chegando a4 mil ou 5 mil, em menos de um século e meio. Apequena república viking chegou a ter um con-vento, um mosteiro, mais 16 igrejas e uma cated-ral presidida pelo bispo da Groenlândia. Era otipo de povoamento movimentado do qual suasfamílias fundadoras tinham orgulho: pareciaprovável que duraria por 10 mil anos. A Groen-lândia e a Islândia eram uma ponte de passagempelo gelado Atlântico Norte; do outro lado daponte, estava a América. Os primeiros desem-barques europeus no continente americano foramfeitos por expedições vikings exatamente quandoa Groenlândia estava sendo ocupada. As mul-heres partiram com os colonizadores para a TerraNova e, segundo dizem, uma das expedições,composta de dois navios, foi conduzida por Frey-dis, uma mulher que tinha no machado sua arma

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pessoal contra os inimigos. Nada resultou dessespovoamentos; os índios americanos não tinhammotivo para receber bem os vikings. A novaterra, com exceção das peles de animais, nãotinha nenhuma mercadoria que empolgasse oscomerciantes. Se Cristóvão Colombo, cinco sécu-los depois, tivesse descoberto essa mesma costaem vez de pisar nos solos das perfumadas Antil-has, ele não seria mais lembrado que os vikingsque construíram cabanas e pastaram seus reban-hos nas margens da Terra Nova.

As estações quentes, alguns poucos séculosmais tarde, começaram a alterar-se. Até a ilhamediterrânea de Creta entrou numa fase maisfria, por volta do ano 1150. Na Alemanha eInglaterra, o frio chegou talvez um século depois,e os anos entre 1312 e 1320 foram não só frioscomo também chuvosos, ao contrário do usual.Como uma boa parte dos grãos tinha de ser reser-vada para a semeadura do ano seguinte, uma col-heita insuficiente impunha fome a muitas pess-oas. Em 1316 talvez uma em cada 10 pessoas de

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Ypres morreu de fome ou subnutrição; em algunslugares, a carne humana serviu de alimento.

Procissões religiosas no oeste da França re-fletiam os tempos difíceis. Às vezes, traziam in-úmeras pessoas esqueléticas e descalças, algumasdas quais praticamente nuas. Colheitas insufi-cientes afetavam o abastecimento de roupasbaratas, bem como de comida barata, pois ospobres faziam suas roupas da planta do linho, quetambém sofria com as estações ruins. Na ver-dade, a terra que normalmente era usada para cul-tivar o linho poderia ser extremamente necessáriapara o cultivo de grãos.

Com o passar das décadas, o clima daGroenlândia e do Atlântico Norte tornou-se maisfrio. Os celeiros, que antes estavam cheios defeno, agora mostravam as aberturas de ar. Só trêspilhas de feno eram recolhidas, onde antes haviaquatro ou cinco. Os navios que se aproximavam,vindos da Europa ou da Islândia, encontravamblocos de gelo flutuando em lugares onde o mar

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se apresentava aberto, ao contrário de outras épo-cas. Os colonizadores da Groenlândia esperavamem vão pelos antigos verões de que seus antepas-sados tanto falavam. As fazendas e as igrejas fo-ram abandonadas. Os jovens eram poucos, e oscasamentos tornaram-se uma raridade. Em 1410,os colonizadores sobreviventes embarcaram emnavios que ficavam à espera e rumaram para aIslândia e a Noruega. A base europeia nessa terragelada havia durado menos de 400 anos. Era oequivalente ao porto de Sydney, na Austrália, serocupado em 1576 pela Inglaterra do períodoelisabetano e, então, ser abandonado no ano 2000por causa da deterioração do clima.

A fase de clima mais ameno haviaaumentado a taxa de crescimento da populaçãona Europa; entre 1000 e 1250, ela cresceu rapida-mente. Em seguida, vieram os anos gelados, col-heitas mais enxutas e um crescimento mais lentoda população. Houve mais anos de fome e maischances de epidemias. A Europa estava prontapara a peste negra.

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A peste negra

A peste negra de 1348 não foi em eventoisolado. É provável que tenha atingido a Ásia e aÁfrica alguns séculos antes, mas não deixou nen-hum registro detalhado de sua casuística. Umaepidemia semelhante atingiu o Império Romanoentre 165 e 180 e indiretamente promoveu o cris-tianismo, pois muitos romanos ficaram impres-sionados com a visão dos cristãos dando pão eágua às vítimas que se achavam enfermas demaispara se moverem. Aproximadamente três séculosdepois, outra epidemia, a peste bubônica, veio daÍndia. Atingiu Constantinopla em 542 e abriu seucaminho a golpes de foice até a Europa. A maiorparte dos que morreram dessa primeira fase da"peste negra" estava condenada dentro de seis di-as a partir do momento em que manifestavam osprimeiros sintomas - dor de cabeça, febre alta e oaparecimento sob a pele de um caroço, aproxima-damente do tamanho de um ovo ou de uma lar-anja pequena. Curiosamente, as vítimas que

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apresentavam caroços maiores tinham mais prob-abilidade de sobreviver. A China e o Japão tam-bém sofreram muitos casos com epidemias quetalvez se parecessem com a peste negra. Dizemque a cidade chinesa de Kaifeng chegou a perdervárias centenas de milhares de habitantes duranteuma epidemia em 1232. Se a cidade ficou tão ar-rasada, as áreas rurais a seu redor devem ter sidodevastadas de forma semelhante pela doença.Uma peste é como um turista compulsivo: elacria ânimo quando um novo caminho é aberto. Ainvasão dos mongóis e sua presença unificadorasobre uma imensa área da Ásia ressuscitaram ocomércio nas antigas rotas de caravanas e tam-bém serviu de estrada para a peste bubônicamover-se para o noroeste, em direção à Europa.Nos portos europeus, os ratos e as pulgas foramos portadores da peste. Após chegar à Europa, em1348, ela se espalhou rapidamente. Algumas cid-ades – Paris, Hamburgo, Florença, Veneza – per-deram metade de sua população ou mais. Os vil-arejos tinham mais chance de escapar da

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infecção. Ela se espalhava lentamente no invernoe rapidamente no verão. No total, talvez 20 mil-hões de europeus tenham morrido, ou uma emcada três pessoas. O monstro das pestes, a pestenegra, foi seguido em intervalos por pestes demenor vulto. A escassez de alimentos dasprimeiras décadas foi substituída pela escassez demão-de-obra. As terras aráveis já não faltavam.Em algumas regiões da Alemanha, havia maisvilarejos abandonados do que habitados, e oscampos que um dia soavam alto com trabal-hadores na colheita estavam agora cobertos demato e de silêncio. Costuma-se determinar aabrangência da Idade Média na Europa entre 500e 1500. Diferindo dos mil anos anteriores e dos500 anos seguintes, a Idade Média foi mais intro-spectiva e menos fascinada com as conquistas in-dividuais. O fato de essa era ter conquistadomenos que o Império Romano, em termos materi-ais, não foi motivo de decepção. A maioria doscristãos provavelmente acreditava que os cid-adãos romanos, em seus anos de triunfo, eram

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essencialmente pagãos e que, por isso, muitas desuas conquistas eram de pouquíssimo valor.

Muitos dos líderes intelectuais e políticosda Europa durante a Idade Media não se sentiraminferiores ao Império Romano; acreditavam queestavam construindo seu próprio império, unidospor uma religião em comum. Chamaram-no deSacro Império Romano e foi o prenúncio da fed-eração europeia das últimas décadas do século20.

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CAPÍTULO 16 - Novosmensageiros

A longa Idade Média foi um período negronão totalmente sufocado pela inércia. Para os vik-ings, no norte da Europa, e para o Islã, no sul daEuropa, não foi um período negro, mas um per-íodo de luz. Próximo a seu fim, na Europa comoum todo, o sentimento de aventura e de espíritoinventivo estava ressuscitando. No século 12,surgia a universidade, uma instituição que, oitoséculos depois, daria a volta ao mundo. Nomesmo século, apareceram os primeiros moinhosde vento e também a primeira eclusa, uma cri-ação engenhosa que possibilitava aos naviosseguir o canal que levava ao porto de Bruges, naBélgica. As habilidades de mineração estavamprestes a melhorar e, no norte da Europa, ummineral que seria fundamental para o futuro, ahulha ou carvão-de-pedra, começava a ser

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explorado. Ao mesmo tempo, o navio de alto-marguiado simplesmente pelo vento, com uma bús-sola magnética para orientá-lo e um leme de popapara governá-lo, silenciosamente apontava para apossibilidade de explorar o imenso Atlântico. AChina continuava sendo uma fonte de novas idéi-as, incluindo inovações notáveis, tais como apólvora, o papel e a técnica de uso da tinta. Nãomenos notável foi a forma com que os europeusestavam recebendo bem essas novidades e trabal-hando para melhorá-las. Em nenhuma área, era aEuropa tão importante quanto nos ofícios espe-cializados de fabricação de relógios e na im-pressão. O relógio era um meio que, como umsuave bumbo de metal, sutilmente pregava amensagem de que o tempo era precioso. A comu-nicação em massa já estava a postos, mesmo naIdade Média. O sino, a bandeira e os sinais de fu-maça e fogo eram meios que podiam enviarmensagens simultaneamente a milhares de pess-oas. O som alto do sino, dependurado num cam-panário de uma cidade medieval, podia ser

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ouvido a várias milhas de distância, embora osque estivessem dentro desse raio de audiçãotivessem de avaliar se a mensagem os chamavapara um serviço religioso ou anunciava que al-guém de importância havia morrido. A bandeiracolorida, geralmente feita de lã, enviava umamensagem visual nítida a gerações de pessoasque não sabiam ler ou contar. Até o fim do século19, uma bandeira amarela significava doenças in-fecciosas e uma bandeira branca era um pedidode paz num campo de batalha. O fogo e a fumaçaeram outro meio de comunicação, quando aguerra era em alto-mar. Uma sucessão defogueiras era arranjada de forma que fossem visí-veis umas a partir das outras, cada fogueira, porsua vez, era acesa para que um sinal silenciosoanunciando guerra pudesse ser revezado muitosquilômetros até uma capital ou porto de im-portância. A oração coletiva em silêncio era vistacomo outro meio poderoso. Dos meios tradicion-ais, a voz humana era a mais empregada. Amaioria das notícias era passada adiante, de boca

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em boca, fosse à beira de uma estrada da Chinaou num templo de Java. As palavras faladaslentamente e com ponderação alcançavam todosos cantos de um grande anfiteatro. Cristo e JoãoBatista devem ter possuído vozes que se pro-jetavam a longa distância. Aqueles que hojevivem na era do alto-falante e do microfone nãoentendem a que distância pode chegar a voz hu-mana ao natural. Em 1739, o jovem evangeliz-ador inglês, George Whitefield, falava ao ar livrena cidade americana de Filadélfia; uma multidãoinacreditável juntou-se a seu redor na esperançade ouvi-lo, despertando a curiosidade de Ben-jamin Franklin, que se encontrava por perto, emsaber quantos expectadores podiam ouvir suaspalavras. Ele mentalmente marcou os lugaresmais afastados onde a voz do orador estava aponto de tornar-se inaudível e computou quemais de 30 mil pessoas ouviam Whitefieldnaquele dia.

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Com o relógio em vista

No fim da Idade Média, pela primeira vez apalavra falada foi desafiada como meio de comu-nicação pela máquina de impressão, ou imprensa,mas foi o relógio que a superou em importância einfluência. Não se podia prever que, na Europa,chegaria o dia em que quase todos os adultospossuiriam um relógio.

Residentes de grandes cidades italianas fo-ram os primeiros a ouvir o som de um relógio e aobservar seus ponteiros se moverem firmes aoredor do mostrador. O relógio tinha de ficar noalto de uma torre para que as pessoas, na praça enas ruas próximas, pudessem ver seus ponteiros:muitas vezes havia o ponteiro das horas, mas nãohavia ponteiro para mostrar os minutos. É pos-sível que os cidadãos ainda não soubessem ver ashoras, mas pelo menos podiam balançar a cabeça,mostrando aprovação quando seus amigos - ansi-osos para mostrar seus conhecimentos - diziam-

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lhes que horas eram. Provavelmente, o primeirorelógio da Europa foi instalado numa grandeigreja de Milão, em 1335, e o som de seus sinospodia ser ouvido por toda a noite, de hora emhora. O relógio público deve ter sido um profess-or persistente da arte da contagem - pelo menos acontagem até 12 - nos séculos antes de aeducação tornar-se compulsória. Um relógiopúblico localizado no alto de uma torre não sómostrava as horas, mas proclamava que o temponão era para ser desperdiçado, pois o dia do jul-gamento em breve chegaria e exigiria severa-mente que todos afirmassem ter usado diligente-mente o tempo que lhes fora concedido peloSenhor.

O relógio mecânico do ocidente foi ex-portado para a China, onde encantou a muitos.Da China, quase como se fosse uma troca, veiooutra invenção ainda mais influente, que foi postaa trabalhar nas cidades europeias: essa invençãoera a arte de imprimir em folhas de papel.

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O papel e o livro

O papel e a tinta haviam chegado à Europabem antes da técnica da impressão. O papel foiinicialmente manufaturado na China, no Japão ena Coréia e, logo no início do ano 751, váriosartesãos chineses que detinham esse conheci-mento foram capturados e transportados paraSamarcana, na parte central da Ásia, onde rev-elaram suas técnicas, manufaturando, assim, oprimeiro papel em folhas grossas, num lugar queos chineses poderiam muito bem ter chamado deOcidente Próximo. O processo acabou chegandoao mundo árabe e, depois, à Europa, onde aospoucos desafiou o uso do pergaminho. Como opergaminho fosse feito só de pele de animais ecomo um livro manuscrito de 200 páginasgrandes poderia consumir a pele de cerca de 80animais, um livro feito de páginas de pergaminhoera muito mais caro que um livro impresso com onovo papel. O primeiro papel era feito, por exem-plo, com restos de tecido e cordas, e uma roda

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hidráulica ajudava a converter essas fibras em pa-pel. Na Itália, uma das primeiras cidadesprodutoras de papel, Fabriano, ainda fabrica pa-pel ao pé de uma cadeia de montanhas, embora aforte correnteza não mais mova a roda hidráulica.Uma vez que o papel estava sendo manufaturadona Europa, o tempo mostrou-se propício para oadvento da imprensa. Os chineses faziam suas le-tras e imagens não com metal, mas com madeirae barro cozido na técnica chamada de xilografia.Os coreanos faziam letras móveis, ou tipos, combronze desde 1403, mas sua inovação não influ-enciou a Europa. Os avanços distintos da im-pressão prestes a serem feitos na Europa en-volviam a fundição de cada letra do alfabeto emchumbo, assegurando-lhes durabilidade, e o usode uma prensa pesada para aplicar pressão e fazercom que as composições de metal imprimissemas imagens com tinta sobre o papel, com firmezae nitidez.

Johannes Gutenberg, residente em Mogún-cia (ou Mainz), cidade alemã à beira do rio de

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mesmo nome, foi talvez o primeiro europeu a im-primir um livro, usando não somente a imprensa,mas também as letras ou tipos de metal. Sua téc-nica, quando aperfeiçoada, era igual à usada maistarde pela máquina de escrever. Todavia, en-quanto a máquina de escrever moderna requersimplesmente quatro carreiras perfeitas com to-das as letras do alfabeto, maiúsculas e minúscu-las, a forma de impressão de Gutenberg exigiafazer centenas de réplicas de metal de cada letrado alfabeto.

Gutenberg e seus companheiros tipógrafoscolocavam sobre um banco ou prateleira à suafrente dúzias de letras a, dúzias de letras b, e as-sim faziam com todo o alfabeto. Dessa mont-agem, eles arranjavam ou compunham, com mo-vimentos rápidos das mãos, a sequência individu-al de letras de metal que formavam uma frase e,então, um parágrafo. Uma versão da prensa devinho, ou da prensa de encadernação, era usadapara prensar essa massa de letras metálicas emforma de páginas sobre uma folha nova de papel.

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A técnica da impressão a partir de letras de metalmóveis era infinitamente mais adequada às lín-guas europeias baseadas no simples alfabeto ro-mano do que os 50 mil símbolos da línguachinesa.

As novas técnicas da tipografia de Guten-berg eram copiadas e adaptadas. Em 1480, ostipógrafos já trabalhavam em cidades tão longín-quas como Cracóvia, Londres e Veneza. Amaioria dos livros que eles imprimiam eram séri-os e cultos - somente os cultos podiam lê-los - evinham em latim. Até então, o custo paraproduzir um livro à mão, em papel ou pergam-inho, era tão alto que a maioria das igrejasmenores da Europa não tinha condições de com-prar uma Bíblia. A situação era contornada com oevangelho em livros escritos à mão, que contin-ham somente aquelas passagens da Bíblia ne-cessárias para celebrar a missa. Eram provas me-dievais de uma versão das escrituras no estilo doReader's Digest. Graças a imprensa, uma Bíbliamais barata era agora possível.

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A técnica de impressão sobre papel foi umarevolução social. A Europa estava pronta para elae ansiosa por usá-la e melhorá-la, pois o fim doséculo 15 foi a época de seu despertar intelectual.A imprensa acelerou esse despertar.

O desejo urgente de espalhar umamensagem religiosa, primeiro para o budismo naChina e depois para o cristianismo na Europa,havia sido um impulsionador significativo para ainvenção e a utilização da imprensa. O Islã, noentanto, não tinha tempo para a nova invenção e,na verdade, evitou a imprensa até o século 19.

As conquistas otomanas

Nessa época de mudanças cada vez maisrápidas, a Europa estava se tornando intelectual-mente mais confiante, mas estava longe de sentir-se segura em termos militares. Do interior daÁsia, os mongóis tinham vindo galopando e, em

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sua sombra, vieram os turcos. Numa determinadaépoca, os turcos viviam principalmente no Tur-questão, na região central da Ásia. Guerreiroseficazes, eles vieram para o Ocidente em etapase, aproveitando-se dos avanços dos mongóis,ocuparam muitas áreas dominadas por confusões.Em 1400, os turcos otomanos já detinham quasetodo o território da atual Turquia e estenderamseu domínio pela Europa cristã. Detinham asduas margens do Estreito de Dardanelos, in-cluindo a faixa costeira que se tornou o campo debatalha de Galípoli, na Primeira Guerra Mundial.Ocuparam trechos longos do Rio Danúbio egrandes partes do que hoje são a Albânia, a Sér-via, Kosovo, a Bósnia, a Bulgária e a Romênia.Em terras balcânicas, os invasores turcos encon-traram seguidores e opositores. Muitos cam-poneses cristãos, incomodados com os ricos pro-prietários de terra para quem trabalhavam, acol-heram os turcos em silêncio, aceitando sua reli-gião e juntando-se a seu exército como mer-cenários. Os turcos cercaram a celebrada cidade

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de Constantinopla quase que totalmente, por terrae mar, transformando-a num pequeno territóriositiado. Em 28 de maio de 1453, o dia em que oúltimo serviço cristão foi realizado na catedral deSanta Sofia, os turcos estavam sobre os altosmuros, prontos para entrar em Constantinopla.Após onze séculos, a famosa cidade do cristian-ismo foi conquistada. Nos cinco anos entre 1516e 1521, os turcos tomaram cidades diversas,como Damasco, Cairo e Belgrado. Exatamente namesma época em que os europeus estabeleciam àforça seus impérios na América e na Ásia, os tur-cos otomanos da Ásia forçavam sua entrada naEuropa: eles eram agora uma potência europeia.

O fato de os turcos terem sido tão toleradosmostrou um pequeno lapso de intensidade reli-giosa na Itália, por volta de 1500. Essa mesma di-minuição de fervor católico abriu o caminho,dentro da Europa, para o aparecimento deprotestos, ou dos protestantes, que respiravamfervor religioso. Seu principal inimigo não seriaum sultão: seu inimigo era o papa.

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O que aconteceu na parte ocidental daEuropa, um pouco antes de 1500, foi uma dasconvergências mais extraordinárias de aconteci-mentos de grande influência na história domundo até então conhecido. Foi como uma en-cruzilhada, onde, praticamente por acaso, encon-tros extraordinários aconteceram entre nave-gadores, pintores, sacerdotes, professores ecientistas.

Nessa região, surgiu uma nova forma depintar e esculpir e uma nova perspectiva em ar-quitetura que, vista como um todo, foi chamadade Renascimento. Um despertar religioso, a Re-forma, tomou conta de todo o norte da Europa. Atécnica da impressão, uma forma maravilhosa dedisseminar novos e antigos conhecimentos,saltava de cidade em cidade. Sucessivamente eem pequenos intervalos de tempo, um mundo in-teiramente novo emergiu com a descoberta docontinente americano e de uma rota totalmentemarítima da Europa ao leste da Ásia. Curi-osamente, esse conjunto memorável de

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acontecimentos, cada um tão próximo do outro,não tem um nome específico que o englobe porcompleto e, certamente, já é muito tarde paraagora lhe dar um nome que seja aceito. Taisacontecimentos refletiram-se em novas formas dever o mundo. Muitos artistas e arquitetos viramcom novos olhos a realidade a seu redor, fosse ocorpo humano ou a perspectiva; muitos teólogose pregadores acreditaram ter redescoberto anatureza humana; os astrônomos e os nave-gadores viram o mapa do mundo com estu-pefação. Tudo refletia um desejo de banhar os ol-hos cansados em sal e enxergar tudo de uma novaforma. Seria surpreendente se essas novas formasde ver o mundo e a excitação que elas trouxeramnão tivessem sido contagiantes. A imprensaajudou a espalhar esse contágio. Por passagensque não podemos necessariamente detectar, poisa religião, a arte e a navegação eram basicamentereinos diferentes presididos por pessoas difer-entes, essas áreas tão separadas influenciaramumas às outras. Assim, o protestantismo, um

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produto dessa excitante época, foi ajudadoimensamente pela invenção da imprensa. Emboraesse conjunto de descobertas tenha sido, de certaforma, revolucionário, cada uma surgiu em partede uma veneração pelo passado. Muitos dosartistas apaixonaram-se pelo mundo esquecido daGrécia e de Roma e tentaram recapturá-lo. Al-guns dos teólogos radicais estavam tentando re-capturar as virtudes da religião como era prat-icada ao longo do Mar da Galiléia por Jesus eseus discípulos, tentando também destilar a es-sência dos escritos apagados de Santo Agostinhoe dos patriarcas da Igreja. Nem mesmo os nave-gadores, a princípio, estavam procurando o novo;simplesmente desejavam encontrar uma rotamarítima, em lugar da terrestre, até a velha Ch-ina. Ao mesmo tempo, embora inicialmenteapaixonados pelo passado, os teólogos, tipógra-fos, pintores e navegadores eram todos explor-adores. Os tempos, a atmosfera incentivaram umsentimento de aventura intelectual.

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Isso não deve sugerir que os olhos firm-emente vendados pelo passado foram de repentedesvendados: esse processo aconteceu aos pou-cos e foi provavelmente mais gradual na arte e naarquitetura, onde ganhou ímpeto durante trêsséculos. Por volta de 1500, as novas formas dever as coisas pareciam desabrochar. Um poucoantes de Leonardo da Vinci ter completado seuretrato de uma jovem mulher, "Mona Lisa", osespanhóis descobriram a América e os por-tugueses adentraram no Oceano Indico com suasnavegações. Logo em seguida, Michelangelocompletou sua pintura de temas do Antigo Testa-mento no teto da Capela Sistina, em Roma, eMartinho Lutero, do outro lado dos Alpes, prot-estava contra o sistema herético de impostos como qual Roma financiava exemplos nefandos,como a própria Capela Sistina. Essas mudançasde grande alcance nas artes, religião, erudição,imprensa e navegação nem sempre são vistascomo fortemente interligadas, porque cada umadeu frutos num canto diferente da Europa. A arte

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e a arquitetura floresceram principalmente nocentro e no norte da Itália e na Holanda; os refor-madores religiosos inicialmente brotaram nonorte da Alemanha e nos portos lacustres daSuíça; a impressão com composições de letrasmóveis foi inventada no Vale do Reno, na Ale-manha, e navegadores audazes zarparam dos por-tos de Portugal e Espanha, ao longo da costa doAtlântico. De grande importância, essa era aprimeira vez na história europeia em que osacontecimentos principais estavam mais ao nortedo que ao sul dos Alpes e mais do lado da costado Atlântico do que do Mediterrâneo.

Uma parte da Europa cristã não contribuiupara tal excitação, pois havia caído nas mãos doIslã, que continuava se expandindo. Em 1529, osturcos chegaram a sitiar a cidade de Viena. A Re-forma Protestante estava acontecendo a 300quilômetros dos turcos, que avançavam cada vezmais.

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O despertar que acontecia em tantas frentestinha um novo patrocinador. Na poderosa Roma,a Igreja era a principal patrocinadora das artes,mas as ricas cidades de comércio em desenvolvi-mento nutriam e financiavam muitas dessasdescobertas, fossem na arte, na teologia ou nanavegação. As casas de comércio de Florença,Gênova, Gent, Nuremberg, Genebra, Zurique,Lisboa e Sevilha forneciam os patrocínios e asfinanças e, frequentemente, tinham uma atitudesolidária com as novas formas de visão. As cid-ades de comércio, embora tivessem só umapequena fração da população da Europa,mostravam grande vigor. Os descobridores eramcomo pássaros há muito mantidos em umaenorme e gelada gaiola medieval chamadaEuropa. A porta da gaiola abrira-se: os pássarosfugiram, primeiro um a um, depois em grupos dequatro; em sua nova liberdade, eles mostraramsua plumagem de verão e cantaram como nuncahaviam cantado antes.

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Abrindo a gaiola

A gaiola nunca foi aberta com mais otim-ismo do que em agosto de 1492, quandoCristóvão Colombo e suas três pequenas naus za-rparam da Espanha numa perigosa viagem; suanavegação pode ser classificada como o aconteci-mento mais significativo de todo o milênio. Maisde 70 anos antes de Colombo ter partido paracruzar o Atlântico, outros já vinham mapeando amesma rota. A Ilha da Madeira foi colonizadapelos portugueses em 1420. Onze anos maistarde, descobriram-se os Açores: uma pequenabolha no oceano, muito distante, em direção aocontinente americano, a cerca de 800 milhasmarítimas de Lisboa e a mil da Terra Nova. Osnavios portugueses também navegaram rumo aosul, abraçando a costa africana. Em 1487, o cora-joso Bartolomeu Dias deixou Lisboa para seguiro Oceano Atlântico, indo mais ao sul. Durante se-manas, sem nenhuma terra à vista, ele navegouexatamente ao redor da costa mais ao sul da

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África e então retornou. Em sua viagem de re-torno, mais próximo a terra, ele avistou ospromontórios do sul e os chamou de Cabo dasTormentas. Mesmo nessa época, a arte das re-lações públicas já estava no ar e, finalmente, ocabo foi rebatizado de Cabo da Boa Esperança.Em essência, Colombo estava planejandoaventurar-se pelo oceano do qual uma boa parteestava se tornando conhecida, e muito ainda eraum grande mistério. Ele havia esperado ajuda fin-anceira de Portugal, mas o país já estava tendosucesso com suas próprias teorias simples degeografia. Voltou-se, então, para a Espanha, àprocura de ajuda. Da Espanha, em agosto de1492, com total conhecimento de que o mundoera redondo, Colombo zarpou para o Ocidente àprocura do Oriente. Começou a cruzar oAtlântico, acreditando estar a caminho da China.Tais esperanças hoje parecem um pouco im-prováveis, mas ele tinha razões para crer que es-tava realmente atravessando um estreito mar.Naquela época, acreditava-se, erroneamente, que

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os oceanos ocupavam somente um sétimo da su-perfície do globo e que, por isso, um oceanomuito largo simplesmente não existia. Essa era acrença do antigo geógrafo Ptolomeu, cujo nomeainda era reverenciado mais de um milênio apóssua morte. Por um acaso, os volumes de Pto-lomeu, há muito perdidos para a Europa Ocident-al, haviam sido publicados em uma nova tipo-grafia na cidade italiana de Bolonha, somentequinze anos antes de Colombo ter partido em suaprimeira viagem. Ptolomeu tranquilizouColombo, fazendo-o acreditar que ele não teriade navegar muito a oeste até entrar em águaschinesas. Na verdade, existia um traçado simplesda costa e dos portos chineses, e é possível que odestino de Colombo fosse o porto chinês deSwatow (Shantou) ou Cantão (Guangzhou), aosul.

Distanciando-se da costa da Espanha, Co-lombo navegou com confiança em direção aooeste ou sudoeste, mesmo em noites escuras. Naverdade, estava navegando em direção à Flórida

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quando, em 7 de outubro de 1492, ele avistou umbando de pássaros espalhados voando parasudoeste. Mudou o curso do navio para segui-los,notando com muita esperança que a brisa do marera perfumada com uma fragrância que lembrava"o mês de abril em Sevilha".

Finalmente, uma costa apareceu à vista.Um sentimento de triunfo deve ter tomado contade sua alma, à medida que remava até a margem.Era uma ilha, nas Antilhas, embora ele pensasseser a Índia. Daí em diante, o povo das Américasviria a ser chamado de índios, e Colombo, ao vol-tar à Espanha, veio a ser honrado como vice-reidas índias. Após avistar as ilhas de Cuba e doHaiti, Colombo voltou à Espanha em março de1493. A notícia de suas descobertas gerou umnível de estupefação, talvez excedendo o da épo-ca da primeira ida do homem à Lua. Em sua se-gunda expedição, com 17 navios sob seucomando, ele estabeleceu na ilha de Hispaniola(Haiti) a primeira cidade europeia no novohemisfério. Em agosto de 1498, em sua terceira

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expedição, ele realmente chegou ao continenteamericano e pôs seus pés em terra, na atualVenezuela. Quando da morte de Colombo, em1506, os extraordinários impérios dos astecas edos incas, longe das costas pelas quais ele havianavegado, ainda não haviam sido vistos peloseuropeus. Ele tinha destrancado a grande porta,mas, quando morreu, a porta encontrava-sesimplesmente entreaberta.

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Quatro anos após Colombo ter retornado desua primeira viagem de sucesso ao que elepensava ser a Ásia, os portugueses planejaramsua própria grande expedição à Ásia por uma rotadiferente. Vasco da Gama zarpou de Lisboa em1497 com três navios e uma tripulação de 170pessoas. Ao navegar pelo Equador e contornandoo sul da África, ele passou mais dias sem avistarterra do que Colombo em sua primeira viagem;talvez nenhum outro navio tenha estado sem av-istar terra por tanto tempo, antes. Na costa lesteda África, ele entrou na esfera de influênciacomercial do Islã e, no porto de Moçambique, en-controu navios árabes. Daí em diante, tudo foipura navegação. Os pilotos indianos, muçul-manos de religião, na verdade guiaram-no peloOceano Índico até a costa ocidental da Índia.Como Colombo, ele havia encontrado, com ajudamuçulmana, uma nova rota marítima para terrasremotas.

Essas viagens de Cristóvão Colombo eVasco da Gama estavam entre os acontecimentos

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mais importantes da história do mundo desde alenta invenção da agricultura, milhares de anosantes. A viagem portuguesa uniu duas partesricas e dinâmicas do mundo que anteriormenteeram inacessíveis por navio; a viagem espanholauniu dois mundos desabitados que haviam estadodistanciados e desconhecidos um do outro.Acontecimentos comparáveis a esses nunca ocor-rerão novamente, a não ser que uma forma devida avançada seja descoberta em outro planeta.

Os salões de Montezuma

Os vikings, séculos antes, haviam desem-barcado numa parte desolada e esparsamente po-voada do mesmo continente, assim como Co-lombo. Seu desembarque não os levou a lugar al-gum e, em pouco tempo, foi esquecido. Mas Co-lombo e os espanhóis desembarcaram mais próxi-mos ao centro das Américas onde, sem que elessoubessem, havia imensos pomares, minas de

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ouro e prata, cidades grandiosas e até impérios.No ano de 1517, o navegador espanhol Grijalvanavegou de Cuba até as cidades portuárias docontinente, a oeste, e no decorrer de nove mesesde navegação sossegada e inúmeras permanên-cias em terra, ele viu muitas coisas que o impres-sionaram. Trouxe também de volta a Cuba a notí-cia dos rumores do rico império de MontezumaII, situado na região montanhosa mais para o in-terior. Na costa, o imperador asteca era temido eodiado pelo povo maia. Qualquer espanhol que seaventurasse em seu território tinha de ser auda-cioso e bem preparado. Hernán Cortês, escolhidopara penetrar no reino de Montezuma, era auda-cioso, mas em alguns aspectos era mal preparado.Com 34 anos de idade, ele não tinha experiênciacomo líder e guerreiro. De porte franzino,curvava-se um pouco quando andava e tinha per-nas arqueadas. O homem que veio a alcançaruma das vitórias militares mais impressionantesjá registradas não havia ainda assumido um papelde comando.

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Com uma pequena esquadra de pequenosnavios, Cortês saiu de Cuba em novembro de1518. Entre os 530 europeus que o acompan-haram, estavam 30 especialistas em atirar com abesta, arma medieval comum na época. Na ver-dade, seus soldados tinham mais experiência comarcos e flechas do que com armas de fogo. Emseus navios, havia várias centenas de índioscubanos, homens e mulheres, muitos dos quaiseram serviçais particulares, além de alguns escra-vos africanos. Nos conveses, encontravam-se en-curralados 16 cavalos possantes que serviam dearma de surpresa, pois nenhum americano haviavisto um cavalo antes; quando desembarcaramem terra, os observadores presentesamedrontaram-se tanto com a visão das enormesbocas dos animais quanto de suas enormes patas.

Na Páscoa de 1519, Cortês e seu grupo in-terromperam sua viagem ao interior e passaramtrês semanas na cidade centro-americana de Po-tonchán, onde, no Domingo de Ramos, ergueramuma cruz cristã na praça da cidade. Antes de

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partirem da cidade, Cortês foi presenteado comuma mulher vivaz que podia falar as línguas loc-ais de que ele precisava, pois uma das línguas eraconhecida dos maias ao longo da costa, e a outraera falada pelo imperador Montezuma no interi-or. Cortês regozijou-se com sua talentosa intér-prete. Batizada na fé cristã com o nome de Mar-ina, a intérprete logo aprendeu a falar espanhol.Seu valor para Cortês foi, nas palavras de um his-toriador, "certamente, equivalente a dez canhõesde bronze". Por meio de suas palavras, a estranhaterra em que ele estava prestes a entrar tornou-seinteligível.

A cidade de Montezuma, chamada Tenoch-titlán, ficava num planalto aproximadamente ameio caminho entre os oceanos Atlântico ePacífico. Respirando um ar rarefeito a aproxima-damente 2.500 metros acima do nível do mar, elarepousava sobre uma ilha localizada num enormelago rodeado de montanhas. A Cidade do Méxicohoje ocupa esse local, mas o lago desapareceu.

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Visitar a cidade, vindo de longe, era umadas experiências mais extraordinárias que omundo inteiro poderia oferecer. Os viajantes pas-saram por montanhas altas, uma delas perman-entemente coberta de neve e muitas cheias deárvores, antes de finalmente chegarem a umplanalto, do qual se descortinava um lago e, bemao longe, as pirâmides de pedra, que eram ummarco dessa civilização. Três passarelas atraves-savam o lago levando à ilha onde se situava acidade e seus 200 mil habitantes. Era uma dasmaiores cidades do mundo. Para os poucos es-panhóis que tinham viajado por toda a Europaantes de partirem para o Novo Mundo, somenteas cidades portuárias de Constantinopla e Ná-poles tinham esse tamanho, entendendo-se quetampouco na China havia cidades muito maiores.

A área do Império Asteca em si era quasetão grande quanto a atual Itália, e seu povosomava entre 6 milhões e 8 milhões de pessoas.Destacavam-se nos ofícios de construção e ar-quitetura, sendo ourives e joalheiros de primeira

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categoria, extremamente competentes emmatemática e adeptos da agricultura, cultivandouma variedade de plantas e criando perus e patos-do-mato. Deve-se admitir que eles não dispun-ham de algumas invenções de importância adota-das ou inventadas pelos europeus, pois não eramfamiliarizados com o bronze, o ferro, parafusos epregos. Não dispunham da roda e não possuíampolias mecânicas, pólvora e navios de alto-mar.

O sacrifício de vidas humanas praticamentedominava o calendário da cidade-ilha. O ato dosacrifício era mais parecido com uma carnificinasistemática do que com um festival religioso. Noséculo anterior, quando o ritual de sacrifícioshavia se tornado mais frequente, milhares de víti-mas escolhidas, a maioria das quais eram ho-mens, podiam ser mortas no mesmo mês. Como avida após a morte era vista como mais importantee infinitamente mais longa que esta vida, ummenino e uma menina que fossem levados aotemplo para ser mortos em cerimônia, pelo

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menos, tinham o consolo de que sua recompensaseria duradoura.

A execução era feita com muito drama,presidida por sacerdotes, justificada pela ideolo-gia e, até mesmo, bem acolhida por alguns pais,principalmente os pobres, que traziam e ap-resentavam os próprios filhos. Não se podia es-perar que prisioneiros de guerra retirados de suasterras natais e seguidores de uma religião muitodiferente vissem o altar de sacrifícios e a faca depedra sob a mesma luz consoladora. Ser pen-durado no altar já todo manchado de sangue e vera mão de um sacerdote segurando uma lâmina depedra bem afiada era a última visão consciente dedezenas de milhares de vítimas. O coração erahabilidosamente arrancado do corpo e, emseguida, queimado em cerimônia. O abasteci-mento de uma cidade tão grande como essa eraum feito de habilidosa organização e trabalhopesado. A cidade era estocada com alimentos,grãos, lenha e materiais de construção por pess-oas que serviam de animais de carga. O

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continente americano não possuía veículos deroda e, mesmo que houvesse uma carroça, nãohavia cavalos ou bois para puxá-la. Lenha e ali-mentos podiam ser carregados em barcos pelolago a uma distância pequena, mas os artigos delonga distância eram trazidos de tão longe quantoo Golfo do México por uma procissão de car-regadores humanos que punham em seus ombrospacotes especiais, podendo chegar a quase 25quilos de peso. Como parte da estrada era com-posta de subidas íngremes, os carregadores hu-manos tinham de ser fortes.

Uma boa parte do solo ao redor do lago erafértil. Por quase 4 mil anos, havia sido cultivadocom implementos relativamente simples demadeira e irrigado por canais de água desviadosdo lago ou de nascentes. Nos séculos mais recen-tes, sua fertilidade havia sido sustentada com es-terco trazido da cidade. As safras de milho,feijões, verduras, pimentas, abóboras, outros ve-getais e frutas vinham das terras próximas aolago. O milho, mais do que qualquer outra planta,

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era o segredo do sucesso da economia: um quilô-metro quadrado plantado com milho podia ali-mentar três vezes o número de pessoas queviviam de trigo ou centeio cultivados numa áreade tamanho semelhante na Europa. A conquistada cidade de Montezuma foi corajosamenteplanejada por Cortês. Ele sabia, desde o início daluta, que estariam em número muito inferior.Além disso, estavam lutando longe de casa, emterras que o inimigo conhecia intimamente. Nopapel, suas desvantagens eram muito maiores quesuas vantagens, mas contou com o apoio funda-mental dos povos vizinhos que, odiando osastecas, estavam nada mais que ávidos para serviraos espanhóis como guarda avançada, car-regadores, fornecedores de alimentos e guerreir-os. Cortês chegou a ganhar até mesmo o apoiosutil dos astecas que estavam no comando e quepensavam, quando ele chegou em novembro de1519, que fosse a reencarnação de um deus porquem há muito eles esperavam. A vitória de

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Cortês foi uma das mais impressionantes de que ahistória mundial tem registros.

Montezuma II, com seus traços escuros enariz aquilino, cortesia e eloquência, humilde-mente se rendeu. Cortês assumiu o poder do im-pério e até mesmo dos filhos do imperador.

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CAPÍTULO 18 - OsIncas e os Andes

O império dos astecas havia desmoronado.Bem mais ao sul, nas longínquas montanhas dosAndes, havia um império relativamente novo queparecia ser ainda mais formidável. Governadopor um imperador conhecido como o Inca, ficavamuito mais distante dos novos portos espanhóisdo Caribe. Além disso, suas cidades e vilarejoscontavam com um escudo protetor de montanhase desfiladeiros.

As encostas medianas e mais baixas dosAndes e a costa adjacente do Pacífico há muitoeram ocupadas por caçadores e trabalhadores dacolheita. Um remanso de águas paradas nomundo, a região começou a se agitar, por volta de3000 a.C, quando domesticou três tipos de ani-mais: a lhama, a alpaca e o porquinho-da-Índia.Mil anos depois, seu povo começou a cultivar

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milho e batata, duas plantas valiosas que eramdesconhecidas na Ásia, na África e na Europa.Na irrigação de suas plantações, eles con-seguiram lidar com obstáculos geográficos maisdifíceis que os apresentados nas cidades dosvales do Oriente Médio. Na época de Cristo, opovo de Nazca já cavava túneis nas encostas demorros, ao sul do Peru, com a intenção de desviaros lençóis subterrâneos para a irrigação. Sua con-strução de terrenos para agricultura e osaquedutos tornaram-se impressionantes. Sua ha-bilidade em cultivar uma variedade cada vezmaior de plantas de grande utilidade era igual-mente admirável.

Enquanto para a Europa a Idade Média foi,de acordo com certas definições materialistas, o"período negro", o mesmo período nos Andes fo-ram os "anos das luzes". As cidades e vilarejospor todos os Andes estavam sofrendo alteraçõescom novas tecnologias, novos cultivos e novosinstrumentos. De alguma forma, os pequenosEstados dos Andes, em 1400, assemelhavam-se

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às cidades-Estado rivais da Itália do mesmo per-íodo, exceto pelo fato de os Andes terem umaprofusão de Estados separados, muitos dos quaisocupavam apenas um vale e suas encostas aoredor. A paisagem acidentada facilitou o isola-mento. Pelo menos 20 línguas distintas eram fala-das e talvez 100 grupos étnicos ou mais ocu-pavam, cada um, seu território nas encostas me-dianas e mais baixas das montanhas e na estreitafaixa da costa do Pacífico. Nessa época, em pou-co espaço de tempo, uma superpotência começoua lutar pela sua posição de supremacia até al-cançar o comando, o que coincidiu com achegada dos espanhóis.

Os conflitos de guerra entre essas dúzias degrupos ou micronações haviam há pouco se tor-nado quase um hábito. No decorrer da mais sériadessas guerras, as plantações e os projetos de ir-rigação do inimigo, resultado de gerações de tra-balho e criatividade, foram danificados, mulherese crianças foram levadas como prisioneiras, re-banhos e plantações foram destruídos ou

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saqueados. Até as pedras que eram usadas paramoer seus grãos foram arrancadas à força dosderrotados. Nessa longa rodada de lutas, os incasprovaram ser superiores e, a partir de 1438,aproximadamente, seu território começou a seexpandir.

Originários da região montanhosa ao redorde Cuzco, no atual Peru, os incas chegavam atalvez 40 mil. Após uma sucessão de guerras eameaças de guerra, ganharam domínio sobre to-dos os grupos e governaram um total de 10 a 12milhões de pessoas. Seu domínio, no mês em queColombo desembarcou pela primeira vez nasAméricas, fazia os impérios de Portugal eEspanha parecerem pequenos. Os incas govern-aram toda a área que ia da atual Colômbia eEquador, ao norte, até a região central do Chile,ao sul. Hoje cinco repúblicas independentes ocu-pam o território um dia governado por eles.Tamanha era a extensão do Império Inca que ossoldados enviados do posto central para postosdistantes poderiam levar de sessenta a oitenta

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dias na estrada, antes de finalmente chegarem aseu destino. Era fácil percorrer distâncias tãograndes porque o império era unido por umamaravilhosa rede de estradas. As antigas pontes eestradas chinesas e romanas haviam sido as maisnotáveis, mas nenhum outro império primitivopodia se igualar aos incas quanto às suas estra-das, construídas por um corpo de trabalhadoresforçados. Com o tempo, as estradas incas se es-palharam por mais de 23 mil quilômetros, o sufi-ciente para atravessar a Ásia em sua maior ex-tensão. As duas estradas principais corriamparalelas, uma seguindo a costa do Pacífico e atécruzando o deserto ao norte do Chile, e a outraseguindo as montanhas. A estrada da montanha, amais movimentada das duas artérias, subia e des-cia milhares de morros. Em alguns lugares, tinhamais de 25 metros de largura, mas, em trechosmais íngremes, assemelhava-se mais a um cam-inho em ziguezague. Como os incas não pos-suíam veículos de roda, não tinham de se preocu-par se a estrada era excessivamente íngreme ou

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muito estreita. Quando um pântano tinha de seratravessado, fazia-se um aterro de pedra ou deterra; quando um rio tinha de ser atravessado,uma plataforma flutuante, ou pontão, era con-struída; quando um desfiladeiro aparecia notraçado da estrada e atrapalhava seu progresso,uma ponte suspensa, feita de cordas grossas, eraconstruída para vencer o vão existente. Algumasdessas pontes ainda se encontravam em uso trêsséculos mais tarde. Por essas pontes, penduradasa grande altura sobre correntezas agitadas, corri-am os mensageiros oficiais. Usavam proteçãopara a cabeça e, nos pés, dispunham de sandáliasfeitas de couro não curtido, amarradas comcordões de lã. Nos longos trechos de estradasniveladas, os mensageiros se moviam em ritmoimpressionante. A velocidade com que as notí-cias corriam era favorecida pelo sistema de re-vezamento: no espaço de alguns poucos quilô-metros ao longo da estrada havia sempre umacabana, onde outro mensageiro ficava à espera.

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Artigos e mensagens urgentes eram levadospelos mensageiros que se revezavam. Assimeram transportadas cargas de peixe fresco a longadistância para o prazer dos oficiais superiores nacapital, Cuzco. Por essa estrada, até mesmo osoficiais superiores podiam ser carregados, se as-sim o desejassem, usando o meio de transportecomum que consistia de dois pedaços de madeiraparalelos sustentados por quatro homens, onde sefixava um assento especialmente para o oficial.

As estradas poderiam acabar sendo úteispara os invasores, mas, durante um bom tempo,os incas mantiveram-se superiores; excelentesgenerais com treinamento em manobras militareslideravam seus exércitos. Enquanto serviam aosoficiais superiores, os povos subjugados forne-ciam os humildes soldados de terra, fossem ho-mens ou mulheres. E, mesmo assim, não era umimpério totalmente composto de súditos privadosde vontade. Os incas trouxeram paz a uma regiãodestruída por guerras e também uma grande vont-ade de cooperar, desde que o grupo minoritário

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se rendesse sem travar lutas. Pelas estradas prin-cipais, em determinados anos, podiam ser vistasprocissões de pessoas caminhando longas distân-cias rumo a suas novas terras. Os incas, como osgovernantes da futura União Soviética e de out-ros impérios, sabiam que a dispersão de povosestrangeiros e a mistura de diferentes grupos étni-cos diminuíam a chance de uma rebelião organiz-ada. Sobre as mesmas estradas passavam solda-dos a caminho de regiões distantes onde eram ne-cessários os serviços de patrulhamento ou ondeconflitos eram prováveis de acontecer.Armazéns, intercalados pela estrada e servidospelos povos conquistados, forneciam-lhes ali-mento. As pessoas compartilhavam a estrada commais um animal de carga, a lhama. Quando lava-dos e limpos pelas águas das chuvas, muitosdesses animais de carga cobertos de lã forneciammaravilhosos casacos brancos com manchas mar-rons ou pretas. Membro da família dos camelos,mas sem a evidente corcova, a lhama podia

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aguentar cargas de 40 a 50 quilos, compensando,assim, a ausência da roda na civilização andina.

Sol, Lua e trovão

Os incas eram extremamente religiosos.Decisões importantes eram precedidas desúplicas aos deuses, fossem para pedir suabênção para as campanhas militares ou para apróxima colheita. O Sol e a Lua eram deuses cujaajuda era humildemente solicitada. O Sol, comofornecedor de calor, era visto como amigo e, as-sim, a vida após a morte era vivida sob seu calor.Ao contrário, o inferno dos incas era um lugargelado. O Sol era o deus masculino e dele o reiclamava sua descendência e, assim, governavapor direito divino. O Sol regulava o calendário e,a cada ano, o dia de dezembro em que o Sol est-ivesse mais ao sul do Equador marcava o iníciodo calendário inca. Portanto, seu ano começava

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sob clima quente, quase na mesma época em queo ano começava na Europa, sob clima frio.

O deus-sol tinha sua planta favorita, e suasfolhas produziam a coca, que possuía qualidadesespirituais. Originalmente, esse arbusto tropicalcrescia ao longo do sopé das montanhas, na parteleste dos Andes, mas foi cultivado e posterior-mente transplantado para as plantações das en-costas mais baixas dos Andes, do lado do oceano.Era plantado em terrenos planos, duramente con-struídos nas encostas íngremes, e a água eratransportada até os terrenos em longos canais queatravessavam o solo seco. Como o cultivo dacoca era extremamente valioso, cercas ou murosde pedra eram construídos para protegê-la de lad-rões e, possivelmente, evitar também que a ra-posa cinza entrasse na plantação e urinasse sobreum produto tão sagrado.

As folhas de coca eram transportadas emcestos e sacolas de fibra pelas estradas até a cap-ital, onde ficavam disponíveis somente para os

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altos oficiais do reino e os guardiães dos templos.Misturada com cal, a coca era geralmente masti-gada, provocando uma saliência na região dabochecha. Transmitia excitação à mente,ajudando assim as profecias feitas nos templosdedicados à adoração do Sol. Dessa planta, vi-eram na época moderna a droga cocaína e o adit-ivo secundário que, até 1905, fazia parte da re-ceita do refrigerante Coca-Cola. De todas as so-ciedades conhecidas do mundo anteriores aos úl-timos cem anos, os incas provavelmente vinhamem primeiro lugar em sua atitude para com asmulheres. Elas não só tinham o direito de ter pro-priedades, mas também tinham o próprio deuspoderoso: das duas principais divindades incas, aLua era a deusa das mulheres, que lhe serviamcomo sacerdotisas. A Lua presidia a fertilidadedas mulheres e as protegia durante o nascimentodas crianças. O papel econômico das mulheresera tão honrado quanto o dos homens, e ascerimônias funerais rendiam homenagem ao tra-balho e às necessidades delas. Enquanto no

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túmulo dos homens era colocada a enxada com aqual eles haviam trabalhado a terra, as mulhereseram enterradas com as varetas ou roscas demadeira com as quais haviam enrolado os fiosnovos de algodão.

O sacrifício de animais, principalmente doporquinho-da-Índia e da valiosa lhama, era umaparte fundamental dos rituais religiosos. Paragrandes acontecimentos como uma coroação ou aperigosa decisão de ir à guerra, exigia-se o sacri-fício humano. Crianças de 10 a 15 anos, por ser-em consideradas mais puras que os adultos, ger-almente eram as escolhidas. Para os pais, aescolha de seu filho era vista como uma honra.Nas regiões distantes dos muros e dos templos dacapital, uma vida humana poderia ser premedita-damente sacrificada numa época apropriada doano, na esperança de que os deuses da fertilidadeabençoassem o desenvolvimento das plantações.Nas montanhas mais altas, onde a estação deplantio era curta e um verão breve e seco poderiaser desastroso, o sacrifício de uma jovem era uma

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questão de segurança. Na primavera de 1995, umdesses sacrifícios dos incas foi revelado peloderretimento da neve a 6 mil metros acima donível do mar. A menina havia sido sacrificadadurante as últimas décadas do reinado inca e,possivelmente, num ano de seca, quando o sacri-fício humano parecia ser a única esperança dechamar chuva. Congelada e, por isso, bempreservada, deduziu-se que tinha em torno de 13anos de idade e que aparentemente gozava de boasaúde na véspera de sua morte. Dada a frequênciados rituais de sacrifício, o sangue humano era tãoabundante que podia ser usado em experimentosmédicos. Há evidências de que, bem antes datransfusão de sangue ser praticada com sucessoem outros lugares do mundo, os incas con-seguiram transfundir sangue humano para ocorpo de um doente. Como praticamente todos osnativos da América do Sul pertenciam ao mesmogrupo sanguíneo, a transfusão de sangue de umapessoa para outra era mais segura do que naItália, onde as transfusões envolvendo mais de

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um grupo sanguíneo foram corajosamente experi-mentadas, talvez pela primeira vez, somente umséculo depois do colapso do Império Inca. Outrahabilidade dos incas estava na cirurgia; podiamcortar um segmento ósseo do crânio de um pa-ciente ferido ou doente, ou raspar e limpar o ossoem sua posição natural, sem necessariamente at-ingir o cérebro. Apesar de ser uma operação del-icada, sua proporção de sucesso era de aproxima-damente 60%, provavelmente. Essa conquistasugere que os pioneiros cirurgiões incas usavamantissépticos para evitar infecções.

É possível entender a vida econômica dosincas e das muitas micronações que os pre-cederam simplesmente compreendendo a geo-grafia única dos Andes. O terreno e o clima eramtão diversificados que, à medida que as pessoascaminhavam para partes mais altas, elas pratica-mente entravam em um novo país. Bem próximasumas das outras nos Andes, como se dispostasnuma escada inclinada, havia quatro regiões cli-máticas e geográficas distintas, de tipos que

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normalmente são separados por milhares dequilômetros de oceano ou terra. As quatro regiõeseram separadas por diferenças em altitude, e nãoem latitude. Seria algo como se a Noruega fossecolocada sobre a Holanda que, por sua vez, fossecolocada sobre a Sicília. Essas regiões distintas,no lugar de uma longa viagem marítima, eram li-gadas por passagens em ziguezague nas montan-has e, ocasionalmente, por estradas. Nas encostase no fundo dos vales, ficava uma região quente eseca que, com a ajuda da irrigação, podiaproduzir frutas, cactos e até mesmo milho. Nosterrenos medianos, que ficavam a pelo menos500 metros acima do nível do mar, achava-se azona mais adequada à agricultura. Aí cresciam omilho, o feijão, a abóbora e a quinoa, grão ricoem proteína.

Nas regiões mais altas, havia uma terceirazona rural, mais fria e mais úmida. Nesse lugar,crescia uma surpreendente diversidade de batatase tubérculos, talvez 250 variedades no total. Maisaltas ainda que essa região de batatas, estavam as

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pastagens alpinas, que eram procuradas n0 verão.Em boa parte dessa região, pastavam os rebanhosde lhamas. Quando um animal era abatido, suacarne era cortada em fatias compridas e posta aosol para secar.

Os primeiros sul-americanos tiveramgrande sucesso em descobrir e cultivar plantasque hoje são conhecidas em muitos cantos domundo. Aprenderam a cultivar a batata, a batata-doce, o tomate, vários tipos de feijão, o caju, oamendoim, a coca, as pimentas, a abóbora, amandioca, conhecida na Europa como tapioca, eo abacaxi. O milho como produto cultivadooriginou-se independentemente na América doSul e no México. Nesses locais, também cres-ciam as seringueiras e uma espécie distinta de al-godão para fazer redes e linhas de pescar. Ospovos das montanhas, extremamente conser-vadores na religião, eram extraordinariamentecriativos. Inventaram o pé-de-cabra, usando-o emmineração, e projetaram uma enxada altamenteeficaz para o plantio. Aprenderam a usar rebites e

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metais para solda. Essa era uma civilização nas-cida, em grande parte, da própria criação. O queeles tomaram emprestado da América Central edos astecas foi, provavelmente, muito menos doque eles inventaram por si sós.

A queda dos incas

Os incas dominavam seu império demontanhas, planaltos, deserto, florestas úmidas eneve eterna há menos de um século quando os es-panhóis chegaram às suas fronteiras. A influênciada Espanha veio na forma de doenças, que sealastraram rapidamente entre os povos nativos. Oimperador dos incas, tendo estado engajado emguerras de fronteira, regressava ao sul em direçãoao território inca, por volta de 1525, quando foiatacado Por uma doença misteriosa, que foi ful-minante. A questão de quem deveria sucedê-lofoi para os incas, como para muitas monarquiaseuropeias, um fator crucial e divisório. De

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repente, o domínio dos incas foi posto em perigopor guerras civis mesmo antes de o verdadeiro in-imigo chegar. Em muitas ocasiões, os líderes dealguns dos centros de poder mais afluentes domundo lutaram entre si, vendo-se como imunesaos ataques externos exatamente no momento emque já não eram superiores. Os antigos gregos as-sim o fizeram com bastante frequência. Até aEuropa acabou caindo nessa armadilha de ex-cesso de confiança em 1914 e, novamente, em1939. Da mesma forma, os incas lutaram entre sisem saber que um inimigo poderoso e descon-hecido, os espanhóis, estavam quase à porta. Osincas ficaram ainda mais expostos a um inimigo,as novas doenças que chegaram com os invas-ores. Quando Cristóvão Colombo descobriu asAméricas, a varíola era comum na Europa queele havia deixado para trás. Alguns espanhóis,sem saber, trouxeram-na em navios que cruzaramo Atlântico. Em 1519, a doença já havia chegadoà ilha de Hispaniola, onde matou talvez um terçoda população. Era uma arma secreta e não

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intencional dos soldados espanhóis que, sobFrancisco Pizarro, partiram do Panamá por marna tentativa de conquistar os incas. Em novembrode 1532, os espanhóis capturaram facilmente oimperador inca Atahualpa. A varíola, um aliadoinvisível, já vinha pulando à frente dos soldadosespanhóis e matando enormes quantidades de in-cas. A velocidade com que a varíola matou foi,por si só, uma causa de desespero para os que as-sistiam sem ter o que fazer. Incubada em apenas12 dias, a doença mostrava sua presença com oaumento da pulsação, sensação de boca seca, dorna cavidade estomacal, dor aguda nas costas e,frequentemente, vômito. Os que sobreviviam àdoença desenvolviam erupções cutâneas e cascasde ferida que começavam a cair por volta dodécimo sexto dia de febre, às vezes deixandoburacos e marcas que desfiguravam permanente-mente o rosto. Os rostos marcados por pústulasda varíola, comuns nas ruas de Viena e de Madri,tornaram-se familiares nas Américas. Em 1530, avaríola estava atacando vorazmente ou já tinha

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feito seu maior estrago desde a Bolívia, no sul,até os Grandes Lagos, no norte.

Enquanto isso, nos vilarejos e nas ocas deíndios americanos, nas altas encostas dos Andes enas colinas por todo o Missouri, o pesadelo deoutra doença começava a atacar: o sarampochegou logo após a varíola. Em seguida, veio otifo, que também era relativamente novo para osespanhóis, tendo sido observado pela primeiravez em seus soldados que haviam acabado de re-gressar da ilha de Chipre. Seguindo a leva, vi-eram a gripe, observada pela primeira vez nasAméricas em 1545, a coqueluche, a difteria, a es-carlatina, a catapora e a malária, todas elas apar-entemente desconhecidas dos habitantes e, con-sequentemente, mais mortais.

Quantas pessoas morreram de doenças noMéxico durante a primeira metade do século,após a chegada dos espanhóis, tem sido o assuntode infinitos cálculos e estimativas. Talvez 8 mil-hões de mexicanos vivessem na época em que

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Cortês chegou; meio século depois, a populaçãofora reduzida a menos de um terço. No impériodos incas, bem mais ao sul, o número de mortestambém chegou aos milhões, e em algumas dasregiões menos populosas talvez tenham morrido8 de cada 10 habitantes. Inicialmente, o impactodo povo espanhol, assim como o de suas doenças,sobre os nativos americanos foi desastroso. Civil-izações foram despedaçadas. A vida econômica ecultural em grande parte se desintegrou nas prin-cipais cidades, embora tenha sobrevivido pormuitas décadas com poucas alterações em áreasmenos povoadas. Milhões de pessoas morreram,enquanto outras simplesmente trocaram a formade escravidão dos incas pela sujeição aos espan-hóis. Para os derrotados, talvez o principal con-solo no longo prazo foi o catolicismo, que veiopara dominar a América Latina. A magnitudedessas mudanças rompedoras pode talvez sercompreendida imaginando-se uma invasão nadireção inversa: que os astecas e os incastivessem chegado de repente à Europa, imposto

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sua cultura e calendário, condenado o cristian-ismo, montado altares de sacrifício para milharesde vítimas em Madri e Amsterdã, inconsciente-mente espalhado doenças numa escala que prat-icamente se assemelhava à peste negra, derretidoas imagens de ouro de Cristo e dos santos, jogadopedras nos vitrais e convertido os corredores dascatedrais em armazéns de armas e de alimentos,derrubado estátuas gregas desconhecidas ecolunas romanas, levado para casa, nas montan-has do México e do Peru, suas pilhagens demetais preciosos Junto com escravos, servos con-tratados e outros troféus humanos.

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CAPÍTULO 19 - AReforma

Na Europa, a todo-poderosa Igreja Católicaencontrava-se em perigo. Ela havia tolerado mui-tos acessos suspeitos e obscuros que permitiamque os ricos e os desonrosos, ao pagarem umataxa prescrita, esperassem poder entrar segura-mente nos céus. Acreditava-se que os santosmantinham sob vigilância um quarto cheio demisericórdias e indulgências do qual podiam dis-tribuir uma porção àqueles pecadores ricos que,no último momento, desejassem a salvação epudessem pagar por ela. Algumas indulgências econcessões, dadas em troca de dinheiro ou de ser-viços prestados, baseavam-se num perfeito fun-damento espiritual. Assim, em 1095, durante ascruzadas para resgatar Jerusalém dos infiéis, opapa Urbano II prometeu perdoar os pecados doscruzados que atravessassem os mares "por pura

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devoção, e não com o objetivo de obter honra edinheiro". O dinheiro doado para a construção decatedrais era reconhecido como um passaportesagrado que poderia ser apresentado ao entrar naporta eterna do céu. Quando a imponente igrejade Speyer, na Alemanha, estava sendo recon-struída em 1451, pelo menos 50 sacerdotessentavam-se tranquilamente e, após ouvirem asconfissões, davam seu perdão aos peregrinos quedoassem dinheiro. Um quarto de século depois, opapa permitiu que se vendessem indulgênciaspelo bem das pessoas já mortas e que viviam nopurgatório. Em suma, os ricos podiam comprar operdão dos pecados cometidos por parentes fale-cidos que, na época de sua morte, podiam não tersentido necessidade alguma de perdão. Aospobres, por serem pobres, era praticamente neg-ada tal concessão.

Vendendo o sangue de Cristo

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A Igreja reuniu cobradores de impostosprofissionais e, assim como as pessoas que hojeajudam a angariar fundos nas instituições decaridade, eles se encarregaram de vender indul-gências. Como a Igreja medieval acreditasse emcastigo eterno, bem mais que a maioria dosgrupos cristãos de hoje, a venda de isenções esuspensões de penas estava se contrapondo a umdos principais dogmas de sua teologia; pratica-mente, estava vendendo a Igreja por algumasmoedas de ouro. A Igreja Católica ainda contavacom um grupo de sacerdotes, monges e freiras dedignidade, totalmente dedicados, mas as ex-ceções eram muitas. Martinho Lutero, um sacer-dote do norte da Alemanha, começou a question-ar essa Igreja que, aos poucos, se desviava de seucaminho. Filho de um minerador bem-sucedido,era professor de teologia bíblica na pequena cid-ade de Wittenberg. Aos 33 anos, rebelou-se.Martinho Lutero detestava a prática de venda deindulgências, que nada mais eram que pacotescaros pagos pelo Perdão. Em 31 de outubro de

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1517, na véspera do Dia de Todos os Santos, umdia importante do calendário, afixou seusprotestos em latim à porta da igreja do castelo desua cidade. Seu manifesto continha 95 pontos outeses, a primeira das quais assim dizia: "NossoSenhor e Mestre quis que a vida dos fiéis fosseuma vida de penitências." Sua intenção ficoumuito clara para os que se acercaram da porta.Por que os crentes deveriam ser penitentes,quando alguns vendedores ambulantes tentavamisentar as pessoas da necessidade de arrependi-mento em troca de algumas moedas?

O exímio pintor alemão Lucas Cranachconhecia Lutero e transpôs sua imagem para atela. Estava aí o rosto forte e ligeiramente rude deum camponês, com olhos pequenos e sagazes, ca-belo cobrindo as orelhas e alguns fios de barba aaparar, como se levasse alguns dias entre cadabarbear; o nariz protuberante e as narinas ex-ageradas, como se tentasse farejar o que haviapara o jantar. O rosto sugeria que tinha bastanteapetite, mas trazia também um aspecto místico.

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Se alguém visse esse homem de aparência fortecaminhando pela rua ou no púlpito, aos domin-gos, essa combinação de força e prontidão decamponês certamente exigiria atenção redobrada.

Como a maioria dos reformadores reli-giosos, ele não desejava abandonar a IgrejaCatólica, porém, foi cada vez mais levado a umponto do qual não podia mais voltar. A Igreja,compreensivelmente, ditava os termos sob osquais ele podia viver. Ele, porém, não podiaaceitá-los.

Só nas cidades de língua alemã, mais de200 imprensas pareciam estar praticamente es-perando esse acontecimento que, sem nenhum es-forço, acabaram ajudando: a Reforma Protest-ante. O monopólio da Igreja Católica sobre aBíblia estava prestes a terminar devido a uma in-venção emprestada, em parte, de uma terra ondeo nome de Cristo era quase desconhecido. ABíblia era um livro precioso escrito à mão, tão es-casso que em algumas igrejas a única cópia era

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acorrentada à mesa de leitura. Pela primeira vezna cristandade, os evangelhos se tornariamacessíveis a um preço que uma igreja de um vil-arejo ou um mercador moderadamente ricopudessem comprar. Um panfleto contendo umsimples sermão podia, agora, através da poderosaimprensa, chegar a mais pessoas como nuncaantes um sermão havia conseguido.

Martinho Lutero via na tipografia umpresente de Deus para seu trabalho. Escrevia pan-fletos religiosos e os entregava aos tipógrafos,junto com seus últimos sermões. Começou atraduzir a Bíblia para o alemão, completando-aem prosa simples e forte, em 1534.

Wittenberg, uma cidade com apenas 2 milhabitantes, explodiu em pouco tempo como ocoração da indústria tipográfica da Alemanha. Ocheiro de papel fresco e de tinta forte provavel-mente permeava algumas ruas da cidade nos diasquentes de verão, quando as janelas e portas dastipografias se escancaravam. Embora somente

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150 livros diferentes tenham sido impressos emtoda a Alemanha no ano dos protestos de Lutero,990 livros foram impressos em 1524, apenas seisanos mais tarde. Mais de 50% dos livros foramimpressos em Wittenberg, a maioria, a favor deLutero. Para ele, a imprensa era uma parelha decavalos "que conduzia o evangelho sempre adi-ante". Lutero protestava, ou seja, era um protest-ante, conforme o vocabulário da época. Emboraseus protestos fossem um tanto políticos e soci-ais, eram primeiramente religiosos. Em parte pormeio de sua influência, centenas de cidades daEuropa foram abaladas pelo notável despertar re-ligioso. Milhões de pessoas sentiram que Deusestava a seu lado. Não conseguiam expressar ad-equadamente a alegria e a sensação de libertaçãoe alívio que sentiam. Lutero veio para que refle-tissem que a salvação não estava em fazer o bem,mas numa fé simples e abnegada em Deus.Dezenas de milhares dos que o ouviam pregarficavam profundamente comovidos com seus ar-gumentos e sua paixão. O raio com o qual Lutero

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iluminou o céu poderia ter aos poucos seapagado, não fossem os esforços do pregadorfrancês João Calvino. Nascido no norte da Françae educado em Paris, faltava nele o magnetismode Lutero. Quando pregava, mostrava pouca dra-maticidade. Foi sua mente original, suamensagem cativante e sua sinceridade nervosaque impressionaram aqueles que, ansiosos porouvi-lo, ficavam lado a lado na enorme igrejapróxima ao lago de Genebra. Sob o comando deCalvino, dos clérigos conhecidos como a Com-panhia de Pastores e das autoridades da cidade-Estado, Genebra se tornou a vitrine moral e reli-giosa da Europa.

Todas as reformas e revoluções trazemconsigo uma tensão entre aqueles que insistemem que tudo deve ser reformado e aqueles quedizem, depois do primeiro conjunto de reformas:"Já fomos longe demais!" Calvino despertou aanimosidade até entre os próprios seguidores aodenunciar como papistas muitos dos antigosnomes cristãos, tão populares na cidade. Em

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1546, a Companhia dos Pastores, sem formal-mente anunciar sua política, resolveu que os be-bês trazidos a eles para a cerimônia do batismodeveriam receber nomes bíblicos, em vez denomes dos santos católicos da região. Umbarbeiro da cidade trouxe seu bebê à igreja, abar-rotada de pessoas, para ser batizado de Cláudio,um dos três nomes mais comuns em Genebra,mas o pastor solenemente o batizou de Abraão.Como resultado, o barbeiro arrancou-lhe a cri-ança e levou-a para casa. Houve tumulto na con-gregação e em todos os lugares em que a con-versa se espalhou. Uma peça fundamental de suadoutrina era uma certa crença, que hoje é ex-tremamente controversa, mas parecia razoável eaté apropriada para as pessoas que viviam numaépoca mais religiosa: ele acreditava na predestin-ação. Acreditava que Deus, em toda a suasabedoria e visão, sabia antecipadamente comocada vida humana se desenvolveria. Em essência,algumas pessoas, desde o dia de seu nascimento,eram predestinadas a ganhar um lugar no céu;

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outras eram destinadas a ficar jogadas pela es-trada espiritual e nada que fizessem alteraria seudestino final. A doutrina católica, mais aceitável,dizia que uma pessoa poderia ser salva por bonsatos, e Lutero dizia que as pessoas só poderiamser salvas por sua profunda fé na misericórdia deDeus. Calvino, porém, rejeitava essas visões:Deus era todo-poderoso e somente sua decisãopoderia salvar a alma de uma pessoa. Para nós, adoutrina parece absurdamente injusta. Calvinodiscutia que nosso conceito de justiça era irrelev-ante. Em sua opinião, e na visão de Deus, todasas pessoas de certa forma não tinham valor. Ofato de que tantas eram finalmente salvas era umsinal da imensa generosidade de Deus para comaqueles que não tinham nenhum direito natural àgenerosidade. Calvino não era muito diferente deMaomé, que acreditava que Deus ordenava combastante antecipação o que cada ser humanofaria, fosse para o bem ou para o mal.

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A afirmação do pastor Calvino sobre a pre-destinação era ao mesmo tempo tranquilizante eestimulante para seu rebanho. Numa típica con-gregação calvinista, alguns ouvintesprovavelmente viam-se aterrorizados com essa

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crença que Calvino expunha em longos sermões,construídos sobre as alpondras dos textos bíbli-cos. A maioria de seus ouvintes, entretanto, as-sumia com alegria que já estava entre os escol-hidos. Nesses anos cobertos de emoção, umgrande número de pessoas comuns mostrou cor-agem em apegar-se a sua antiga fé ou em abraçara nova crença. Obviamente, a maioria, quandoameaçada pela morte, prisão ou perda depropriedades, tornava-se adepta da visãodaqueles que governavam sua terra. Mas centen-as de milhares se arriscaram, entretendo-se com anova fé ou apegando-se à antiga.

Ai de vós!

Uma revolta de grande alcance contra aIgreja Católica veio das seitas anabatistas, assimchamadas por herdarem seu nome da palavragrega para "rebatizados". Eram militantes da Re-forma. Apareceram pela primeira vez em

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Zwickau, a leste de Wittenberg, emergindo de-pois em Zurique e centenas de outras cidades donorte da Europa. Quando expulsos das cidades,queriam realizar seus cultos nos campos, nosmeses mais gentes, e batizar os adultosconvertidos imergindo-os em água corrente. Ap-resentavam muita diversidade e nutriam váriascrenças. A maioria se opunha à idéia do batismode crianças, acreditando que era uma dádivamuito valiosa para ser conferida a seres com pou-cos dias de vida, incapazes de tomar uma decisãoconsciente de viver e morrer em Cristo. Mais doque qualquer outro grupo protestante, os ana-batistas tiveram grande poder entre os pobres. Oslíderes das seitas, arriscando suas vidas, estavamdispostos a opor-se àqueles que governavam.

Os anabatistas foram denunciados comoloucos e nocivos por Lutero, Calvino, Zwingli eos heróis pregadores do início da Reforma.Foram vistos por muitos governantes como a es-cória da Reforma. O termo "anabatista" tornou-seum termo abusivo. Um fato notório foram as

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cinco mulheres e sete homens que, em Amsterdã,em 1535, para enfatizarem que pregavamsomente a verdade nua e crua, arrancaram suasroupas e correram pela rua gritando "Ai de vós! -a ira de Deus". Os 12 anabatistas acabaram sendoexecutados. Temidos como opositores da ordemsocial e religiosa, os anabatistas foram perseguid-os quase em todos os lugares. Somente na Holan-da e na Frísia, aproximadamente 30 mil forammortos nos dez anos que se seguiram a 1535 e,ainda assim, foi nessa região que eles con-seguiram sobreviver. O calvinismo, que começoua dar frutos na década da morte de Lutero, deu àReforma nova energia. Durante 40 anos, amensagem da Reforma criou asas, pousando emdistritos distantes de seu local de nascimento. Poralgum tempo, parecia que a maior parte daEuropa central, ocidental e ao sul poderia serconvertida a uma das novas crenças concorrentes.A maior parte do norte da Alemanha seguiu osluteranos. Eles dominaram as catedrais da Finlân-dia até a Dinamarca e a Islândia. Na Polônia e

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Hungria, a crença calvinista varreu as cidades,deixando sua marca principalmente nas famíliasmais ricas. A Holanda e a ilha da Inglaterra, ex-ceto a região montanhosa da Escócia, foram con-quistadas pelos reformadores. Adentrando aFrança, a pé ou a cavalo, veio uma longa procis-são de jovens pastores de Genebra, que ganhouapoio maciço nos portos marítimos, principal-mente ao longo da costa do Atlântico. Até a Itáliafoi invadida. Os anabatistas faziam seus cultosem Vicenza, enquanto outras seitas criaramraízes na vizinha Veneza. Os protestantes se vol-taram contra muitos dos principais pontos docatolicismo. Os católicos acreditavam em grandi-osas cerimônias religiosas, ricas procissões e jói-as colocadas na mitra do arcebispo; ao contrário,muitos dos reformadores insistiam na simplicid-ade e, mesmo quando ricos, preferiam uma igrejasem janelas de vitral. Os católicos acreditavamnum círculo sagrado de santos cuja ajuda podiaser invocada, muitos dos reformadores rejeitavamos santos como intermediários desnecessários

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que ficavam entre os cristãos humildes e Cristo;os católicos geralmente decoravam as paredes desuas igrejas com estátuas de Cristo, os reform-adores eliminaram as estátuas e a Virgem Maria.Os católicos acreditavam no poder de liderançado padre, muitos reformadores acreditavam nosacerdócio de todos os crentes. Aos olhos deles,os cristãos mais humildes, que liam a Bíblia comfé e esperavam humildemente pela inspiraçãodivina, traziam consigo a mesma autoridade es-piritual que os padres católicos de cada paróquia.Os católicos há muito haviam abandonado a idéiade que os padres podiam casar-se, os reform-adores começaram a rever essa idéia. Lutero, porexemplo, acabou se casando com uma ex-freira.

O novo protestantismo fomentou algumasrevoltas contra a Igreja Católica. A maioria doscalvinistas, acreditando que não deveria havermúsicas majestosas e corais muito altos, enfat-izava o canto de toda a congregação, sem oacompanhamento de instrumentos. A palavra eraa mais importante: a música era simplesmente

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uma serviçal que trazia a palavra. Ao tratar amúsica ao mesmo tempo como uma ajuda aoculto e também como uma arma de sedução, osprimeiros calvinistas fizeram ressoar o apelo porsimplicidade que tinha sido feito na Idade Médiapelos monges cistercienses. Por outro lado, osluteranos mantiveram a rica tradição musical donorte da Alemanha que, com sua ajuda, floresceusurpreendentemente somente dois séculos depoisde Lutero ter feito seus primeiros protestos. Ali,dois jovens músicos, Handel e Bach, fizeramcada um uma peregrinação a pé até o porto deLubeck para ouvir os serviços religiosos nosquais o organista luterano Buxtehude era respon-sável pela música. George Frideric Handel eraneto de um pastor luterano. Johann SebastianBach escreveu quase toda a magia de sua capa-cidade musical enquanto trabalhava como or-ganista, chantre ou diretor de música eclesiásticaluterana. A maioria de seus oratórios e de suascantatas foi escrita para as congregações luter-anas de duas grandes igrejas góticas de Leipzig

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que, nas cerimônias que duravam de 3 a 4 horas,aos domingos, às 7 horas, reservavam meia horapara uma cantata que Bach geralmente compunhae dirigia para 30 ou 40 cantores e instrumentistas.Serviços religiosos de longa duração foram umacaracterística dos três primeiros séculos do fervorprotestante.

Espadas afiadas e palavrasprofundas

A Igreja Católica se reexaminou critica-mente após Lutero e Calvino terem erguido suasbíblias em sinal de protesto; proibiu os principaisabusos, alguns dos quais não foram tão fre-quentes quanto Lutero havia argumentado. Avenda de indulgências por cobradores profission-ais de receitas foi reprimida pelo Concilio deTrento em 1562. Os bispos não podiam maisficar ausentes de suas dioceses por longos per-íodos, a música e a liturgia, quase tão diversas

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quanto as do protestantismo, foram mantidas sobcontrole. A nova arquitetura barroca, que flores-ceu principalmente na Espanha e nas AntilhasEspanholas, tornou-se uma nova afirmação de fédentro de um catolicismo rejuvenescido e discip-linado. Seminários foram abertos para treinar ojovem clero. Novas ordens religiosas trouxerampropósito à Igreja. Os jesuítas e os capuchinhosjuntaram-se às antigas ordens católicas, enviandomissionários às novas terras.

Após 40 anos, a maré virou contra os prot-estantes. Na Europa central, a maioria dos gov-ernantes, acreditando que todas as pessoasdeveriam pertencer a uma religião da escolhadeles, começou a perseguir os protestantes:praticar uma fé dissidente era praticar traição. Asbase dos protestantes estavam agora confinadasao noroeste da Europa: à Escandinávia, onde suavitória era total, à Inglaterra e à Escócia, à maior-ia dos principados do norte da Alemanha, àHolanda e a certas cidades e cantões da Suíça. Detodas essas terras, a fé católica foi banida. Da

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mesma forma em terras católicas, e estas con-tavam com a maioria da população da Europa, oculto de qualquer outra fé foi banido. As primeir-as décadas da Reforma se assemelharam aosprimeiros anos do Islã: os reformadores de-pendiam ao mesmo tempo da espada e da palav-ra. A mensagem de Lutero não poderia ter con-quistado um grande território em ambas as mar-gens do Báltico sem o apoio de príncipes e de re-gimentos. Calvino teve sucesso somente porquefoi apoiado pelos governantes da república suíçade Genebra. Na França, sua doutrina, fracassandoem conquistar o monarca, começou a perder suasbases fortes no sul e no oeste do território. EmParis, no dia de São Bartolomeu, em 1572,aproximadamente 20 mil protestantes forammassacrados.

Enquanto os protestantes tinham a tendên-cia de centralizar o poder na maioria das terrasonde tinham sido vitoriosos ou onde os gov-ernantes deixaram que fossem vitoriosos, elestambém iniciaram uma corrente democrática. O

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calvinismo criou um sistema de governar a igrejaque garantia influência aos membros superioresda congregação. Como o luteranismo, pregavaque a Bíblia, e não a Igreja, era o tribunal deapelação de última instância, e todos os cristãosdevotos e inteligentes podiam apelar para aBíblia. No calvinismo, as pessoas comuns tinhammais influência do que em qualquer congregaçãocatólica. No final, os protestantes não fizeramnenhum avanço ao sul dos Alpes ou ao sul dosPireneus. Seu triunfo estava nas distantes mar-gens do Atlântico. Enquanto a Espanha se recus-ava a deixar que judeus, muçulmanos e protest-antes emigrassem para suas novas colônias,Inglaterra e Holanda permitiam que os dissid-entes protestantes partissem para as novas colôni-as americanas. Em Boston e outras cidades da re-gião da Nova Inglaterra, a Reforma Calvinistaalastrava-se em chamas ardentes. O surgimentodos Estados Unidos, sua cultura característica,seu fomento inicial de debates intensos e suademocracia recente provavelmente devem tanto

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aos reformadores protestantes quanto a qualqueroutro fator. Inicialmente, a Reforma parecia serum golpe para as mulheres. Provavelmente, asúnicas instituições do mundo ocidental nas quaisas mulheres tinham poder de próprio direito eramo convento e a monarquia. As mulheres adminis-travam os conventos femininos e, quando o con-vento tinha propriedades valiosas na cidade, amulher que estivesse encarregada desse bemtinha um poder ainda maior; assim, em Zurique, aabadessa do convento beneditino ajudava a ad-ministrar a cidade. O fechamento dos poderososconventos na maioria dos Estados que eramagora protestantes indiretamente reduziu o poderdas mulheres. Havia só uma compensação: amaioria das igrejas protestantes acreditava que omáximo de pessoas possíveis, homens ou mul-heres, deveriam ler a Bíblia, e isso levou à aber-tura de mais escolas que ensinassem a ler e a es-crever. A taxa de alfabetização das mulherescomeçou a crescer com firmeza. A Prússia, umabase luterana, tornou a educação compulsória

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para os meninos e meninas em 1717. Na cidadeholandesa de Amsterdã, em 1780, um ex-traordinário número de 64% das noivas assin-aram a certidão quando se casaram, enquanto asoutras desajeitadamente marcavam com uma cruzo lugar onde sua assinatura de assentimento eraexigida. Na Inglaterra, cerca de 1% das mulheressabia ler no ano 1500, mas esse número haviaaumentado para 40% em 1750. Tardiamente, ospaíses católicos acabaram seguindo essa tendên-cia revolucionária. A Igreja russa, ao contrário,voltou suas costas para a alfabetização. Nenhumaigreja cristã em nenhuma outra nação tinha tantosdevotos quanto a Igreja Ortodoxa na Rússia, masseus sacerdotes tinham pouca educação e muitoseram mais habilidosos em recitar de memória, oude esquecimento, do que em ler as escrituras. Aautoridade do sacerdote foi estabelecida porquepoucos em sua congregação podiam ler a Bíblia.A Bíblia completa, com Antigo e Novo Testa-mento, só se tornou acessível livremente na atualRússia após 1876.

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As bruxas estão soltas

O interesse emergente pela religião tomouformas pouco comuns. O mal e a santidade con-tinuavam a ser detectados. Em muitas partes daEuropa as bruxas se multiplicavam ou assim sedizia. Numa época de fervor religioso, a crençana misericórdia e na bondade andava de braçosdados com a crença no poder do mal de arruinaras vidas das pessoas. O mal foi personificado nasbruxas; quando tragédias aconteciam, cada vezmais eram atribuídas à conspiração de algumabruxa; quando uma dificuldade econômicaafetava um vilarejo ou uma família, saía-se à pro-cura da bruxa agressora. A maioria das acusaçõesde bruxaria surgia das brigas, tensões e adversid-ades da vida cotidiana. O encontro de bruxas eracomo a visão de discos voadores na segunda met-ade do século 20. Uma vez que a idéia dominasseuma região, espalhava-se com velocidade.

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Na Europa, durante os três séculos entre1450 e 1750, a maior parte das 100 mil ou maisbruxas "comprovadas" estava concentrada numpequeno número de regiões. No sudeste da Escó-cia e no leste da França, segundo diziam, asbruxas eram extremamente ativas. Na Europa,durante um longo período, aproximadamenteuma em três bruxas detectadas vivia na Ale-manha. Esses eram padrões de disseminação dabruxaria. Assim, na Inglaterra e na Hungria, novede cada dez bruxos condenados eram mulheres,embora na Islândia e na Estônia a maioria dosacusados e condenados fossem homens. Dasdezenas de milhares de pessoas sentenciadas amorte por bruxaria na Europa, três de cada quatroeram mulheres; muitas eram velhas e desfigura-das, mas algumas eram jovens e bonitas, e algu-mas eram até crianças. Na Inglaterra, uma típicabruxa seria solteira ou viúva, velha e pobre,quase sempre brigando com seus vizinhos.

As tensões religiosas aguçaram a caça àsbruxas que, geralmente, eram encontradas em

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cidades e regiões onde seitas rivais andavam caraa cara. Uma terra com unidade religiosa tinhamuito menos probabilidade de gerar acusações debruxaria; na Irlanda, na Polônia, no sul da Itália evárias outras terras e regiões católicas, a prisãode bruxas era rara.

Numa época ultra religiosa, quase todosacreditavam no poder da organização do mal.Presumia-se que o demônio estava à solta nomundo, espalhando mau-olhado e com um mil-hão de mãos, escolhendo bruxas como servaspessoais. Acreditava-se, muito mais na África doque na Europa, que as bruxas causassem enormesdanos às vidas humanas. Essa ênfase no poder domal, que já não é mais uma crença proeminentena civilização ocidental, era a essência da cruz-ada contra a bruxaria e a justificação dacrueldade infligida às bruxas. A tragédia foi quea civilização ocidental, quando finalmente deixoude acreditar em bruxas, também começou a deix-ar de acreditar na imensa capacidade de a human-idade praticar o mal tanto quanto o bem. Na

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primeira metade do século 20, milhões de pess-oas instruídas e cultas não se achavam preparadaspara a forma cruel com que o mal, através dequalquer nome respeitável que adotasse, viria aassim devastar a Europa, fazendo com que a eradas bruxas parecesse um mero percalço.

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CAPÍTULO 20 -Viagem à Índia

A viagem de Portugal à Índia tornou-seuma rota marítima regular. Era a mais árdua queo mundo até então havia conhecido, e a viagemàs Américas não tinha concorrente. Quatro oucinco navios saíam a cada ano de Portugal rumoà Índia, e seus capitães planejavam a viagemcuidadosamente para que pudessem tirar melhorproveito dos ventos e fugir da perspectiva de en-contrar tempestades perigosas ou costas arrisca-das. A melhor época para partir de Lisboa pormar era na primeira quinzena de março, pois,desse modo, teriam seis meses aproximadamentepara navegar além do Cabo da Boa Esperança,cobrindo parte do Oceano Indico onde eraprovável que os ventos virassem a seu favor.Nesse local, se chegassem muito tarde, poderiamencontrar ventos difíceis, que os obrigariam a

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recuar até um local de abrigo. Uma viagem à Ín-dia poderia durar um ano ou mais, se fosse ini-ciada na época imprópria.

Alguns navios portugueses paravam noBrasil por algum tempo em sua viagem de ida,mas a maioria deles não parava em porto algum.Na verdade, nos primeiros anos, os capitães nãoconheciam nenhum porto africano ondepudessem se sentir bem-vindos ou mesmo livresde ataques-surpresa. Uma vez que os navios por-tugueses, bem carregados, passassem pela costamais ao sul da África e virassem rumo ao norte,normalmente continuavam navegando pelo largoCanal de Moçambique, que separava a África deMadagáscar. Seguindo a costa até quase chegarao Mar Vermelho, os navios então viravam aleste, seguindo a costa árabe e, finalmente, com-pletavam a viagem a seu destino, na Índia. Ossoldados e mercadores que embarcavam em Lis-boa não estavam mentalmente preparados paraexperiências penosas e longas como essas.

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Após poucas semanas, a água de beber, queera geralmente armazenada em barris de madeira,começava a cheirar mal. Tornava-se também es-cassa conforme a viagem prosseguia e, assim,lavar o rosto, sem mencionar o resto do corpo,não era um hábito muito frequente. Com tantaspessoas amontoadas no mesmo lugar, com o na-vio demorando muito tempo nos trópicos e semfrutas e vegetais frescos, as doenças se alas-travam facilmente. Nos anos de 1629 a 1634,mais de 5 mil soldados portugueses partiram deLisboa, mas menos da metade deles chegou comvida à Índia. A maioria dos navios trazia umcirurgião, cujo remédio predileto era simples-mente deixar sangrar três ou quatro litros desangue dos pacientes doentes. A cura raramenteoperava milagres. Goa tornou-se o principalporto indiano para os portugueses e, na verdade,continuou sendo uma província de Portugal até oséculo 20. De Goa, saía, uma vez por ano, umenorme navio abarrotado de cargas comerciaisem direção a Málaca, na Península da Malásia, e

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a Macau, na China, daí chegando ao Japão.Novamente, o capitão tentava ajustar sua épocade navegação para se beneficiar das monções doPacífico ocidental. O início da nova monção eracomo um sinal de trânsito, mostrando a cor verdeaos navios que vinham de uma direção, e a corvermelha, aos navios que vinham da outra. Ascargas trocadas entre a Ásia e a Europa erampraticamente compostas de caros artigos de luxoque pudessem pagar o custo do transporte. À Ch-ina e ao Japão, chegavam tecidos escarlates,roupas de lã, cristal, vidro, tecidos de algodão es-tampados da Índia e relógios de Flandres. Noporão dos navios que retornavam à Índia e, final-mente, à Europa, estavam a seda chinesa e outrosartigos de seda em enormes quantidades, bemcomo ingredientes medicinais exóticos. Outroartigo possível de ser encontrado na carga eramescravos ou servos chineses.

Em Goa, em certas épocas do ano, os navi-os portugueses preparavam-se para sua viagemde volta para casa. Além de artigos chineses,

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levavam grandes quantidades de pimenta, canelae outros temperos. Traziam também a bordo con-têineres de nitrato de potássio, que era o ingredi-ente principal da pólvora, tintura de índigo, peçasde algodão e, às vezes, diamantes indianos quevinham das minas de Golconda. Cargas como es-sas faziam com que a Índia parecesse incrivel-mente rica. Por volta do ano de 1600, aos olhosda maioria dos europeus, o nome Índia era sinôn-imo de riqueza deslumbrante. Várias peças deWilliam Shakespeare mostram esse deslumbra-mento. Na peça "Décima segunda noite", Maria étratada como a menina de ouro, "meu metal daÍndia". Parecer-se com um metal brilhante da Ín-dia era ser duas vezes mais preciosa.

Além das cargas que, literalmente, vinhamamontoadas nos navios portugueses a caminho decasa, havia cargas pessoais que eram colocadasou amarradas juntas no convés aberto, ondeficavam expostas à chuva, sal e vento. Todos osmembros da tripulação tinham direito de trazercarga e vendê-la em Lisboa. Até os empregados

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do navio tinham direito de encherem um terço deum baú com canela, se tivessem dinheiro paracomprar o produto nos mercados de rua indianos.Os oficiais e a tripulação, na verdade, tinham opoder absoluto de usar os conveses abertos comolocal de armazenagem para suas cargas pessoais.Esses conveses ficavam abarrotados de fardos,pacotes, baús e caixotes de madeira, a ponto detirarem a estabilidade do navio sob fortesventanias. Uma caminhada pelo convés era comouma corrida de obstáculos.

A rota contornando o Cabo da Boa Esper-ança substituiu, em importância econômica, aslongas trilhas de caravanas e estradas da sedaque, durante séculos, atravessaram o centro daÁsia, desde o Mar Negro até as cidades muradasda China. Aproximadamente um século depois darota marítima ter sido estabelecida, a línguaholandesa podia ser ouvida nos becos próximosaos rios em Cantão. O português, misturado comas línguas locais, estava se tornando o jargão docomércio asiático e o precursor do "pidgin",

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mistura de inglês com chinês. Na mesma época,alguns potes de chá japonês e chinês, compradosa preços astronômicos, já estavam sendo difun-didos na Europa Ocidental. Sacerdotes tinhamdobrado o Cabo da Boa Esperança nos primeirosnavios portugueses. Um dos primeiros foi Fran-cisco Xavier, um jesuíta que fez voto de seguiruma vida de pobreza e dedicação. Chegando à Ín-dia em 1542, fez do porto português de Goa abase para suas viagens missionárias. Ele não foi oprimeiro cristão na Índia - várias congregaçõesde cristãos de língua síria existiam na Costa deMalabar, por volta de 600 -, mas certamente foibastante dinâmico. Chegou a viajar a lugares dis-tantes, como o Japão, onde ganhou a conversãode muitos. Os católicos, bem mais que os protest-antes, foram os primeiros missionários do NovoMundo, e sua coragem em aventurar-se nesseslugares acabou tendo efeitos de longo alcance.Em parte estavam à frente porque, tanto nasAméricas quanto na Ásia, os dois colonizadoreseuropeus pioneiros foram nações católicas. De

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fato, o protestantismo só veio a nascer um quartode século após Colombo ter começado a navegar.Talvez nada tenha reprimido mais os luteranos,calvinistas e anglicanos de organizarem missõesaos povos pagãos do que o fato de a maioria deseu clero, como resultado da revolta contra opapado, ser casado. Incentivar uma esposa e suajovem família a acompanharem um pastor ouministro a portos tropicais insalubres nasAméricas, na África ou na Ásia, em 1600, era umconvite a uma morte prematura. Além disso, aIgreja Católica gozava de relativa unidade, umaajuda poderosa à disseminação de sua mensagem.Muito tempo depois de as nações protestantesterem conseguido domínio como comerciantes egovernadores na Índia e na maior parte da costada Ásia, continuavam sendo lentas em fomentar otrabalho de missionários. Só depois de 1704,mais de um século e meio depois da morte deFrancisco Xavier, é que o rei protestante, Fre-derico IV, da Dinamarca, fundou uma base mis-sionária na Índia.

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Impedidos pela distância

No sul da Ásia, esses impérios portugueses,holandeses, britânicos e franceses e a extensão doImpério Espanhol nas Filipinas ocupavam, ini-cialmente, só um cordão de portos enfumaçadosda Ásia e alguns armazéns de comércio no interi-or. Podiam ser chamados de impérios com certahesitação. Seu poder, longe da costa, era geral-mente frágil. Comparado ao do Império Romano,o impacto cultural era fraco, porque pouquíssi-mos europeus se estabeleceram nos portos e pos-tos de comércio, sendo detidos pelo clima quente,pelo medo de doenças tropicais e pela distânciade casa. A Europa estava muito dividida paraconseguir dominar grandes extensões de terrasestrangeiras. Além disso, podia aplicar na Ásia sóuma fração de seu poderio militar: a Ásiasimplesmente era muito distante. A distância,com efeito, ainda impedia a chegada das armasda Europa e retardava seus navios de guerra.

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No leste da Ásia, o avanço dos europeus,tão confiantes no primeiro século, foi refreado. OJapão, que de início mostrara-se amigo de mer-cadores e missionários estrangeiros, havia envi-ado uma delegação de quatro jovens até aEuropa, onde, em 1580, foi extremamente bemrecebida pelos poderosos de Madri, Lisboa eRoma. No início do século seguinte, os japonesescomeçaram a mudar de pensamento. Expulsarampraticamente todos os europeus e mataram mui-tos jesuítas e outros sacerdotes que não aceitaramser expulsos. Somente os comerciantes holan-deses tinham permissão de fazer visitas ocasion-ais. A China, dominante em sua própria parte domundo, expandiu suas extensas fronteiras ter-restres no século 18. Ocupou o Tibet e o leste doTurquestão, áreas que há muito eram vistas comopertencentes à sua esfera de influência. Antesdisso, a China raramente havia comandado umaárea tão grande da rota da seda. Ao mesmotempo, alguns dos governantes indianos apren-deram uma lição com os chineses e desafiaram os

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europeus. Em junho de 1757, um dos meses maisnegros da história colonial britânica, mais de cemde seus soldados morreram enquanto estiveramaprisionados no Buraco Negro de Calcutá. En-quanto a Europa Ocidental estava festejando suafase de conquistas globais, os habitantes docentro da Europa ainda viviam sob o medo doimpério otomano. Os exércitos turcos acamparamdo lado de fora dos portões de Viena, no verão de1683, e novamente sitiaram uma das cidadesmais poderosas da cristandade. Agora era a vezde os turcos baterem em retirada. No fim dadécada de 1680, foram expulsos de Buda, quecorrespondia à metade da atual cidade de Bud-apeste, a qual tinham governado por mais de umséculo. Perderam a cidade de Belgrado e, durantealguns anos, Atenas. Para os amantes da arte, aderrota dos turcos em Atenas acabou sendo umacalamidade, pois, no decorrer das lutas, parte doParthenon foi trazida abaixo. Logo os turcos re-conquistaram Atenas e governaram-na até 1829.Não havia sinal mais claro dos limites de

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influência do cristianismo do que o fato de a cid-ade de Jerusalém, século após século, continuarsob o domínio do Islã.

Em 1600, a ascensão da Europa para dom-inar boa parte do mundo não estava preestabele-cida. Até então, suas vitórias concentravam-semais na costa da América do que na Ásia e naÁfrica. Pouco impacto tinha causado no Japão,na China e na Turquia otomana. No entanto, suaconfiança e ímpeto comercial, sua nova tecnolo-gia e sua proeza em guerras, mesmo quando es-tava em número bem menor, eram um presságioda era que estava por vir, que moldaria uma di-versidade de culturas, abrangendo uma áreamuito maior do que as terras que haviam estadosob o domínio de Roma.

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CAPÍTULO 21 - Ospresentes que o NovoMundo escondia

Espanha e Portugal venceram a primeirafase das colonizações e conquistas em parteporque eram fortes nas navegações e em parteporque eram os dois países europeus que se en-contravam mais próximos da América Central edo Sul. Depois de 1600, entretanto, começaram aperder ímpeto.

A nova fase de colonização das Américaspertenceu à França, Holanda e Inglaterra, naçõesde navegadores que também dispunham de vant-agens geográficas sobre os Estados do Mediter-râneo. Em 1650, seus pequenos portos, fortalezasde madeira e postos de comércio de pele de ani-mais na América do Norte, pontilhavam a costaAtlântica e o interior mais próximo. A França

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ocupava o Canadá e duas ilhas das Antilhas,Martinica e Guadalupe. A Inglaterra tinha colôni-as que se estendiam ao longo da costa doAtlântico, desde a ilha de Terra Nova, que dividiacom a França, até a região da Nova Inglaterra,Virgínia e Antilhas. Os dinamarqueses tambémlogo estabeleceram plantações nas Ilhas Virgens.Dos estados da Europa Ocidental, só a Alemanhaestava de fora. Na costa atlântica da América doNorte, holandeses e suecos tinham colônias inde-pendentes, que rompiam com a continuidade dacadeia de colônias costeiras da Inglaterra. Osholandeses fundaram Nova York e a eles tambémpertencia a ilha de Curaçao, no Caribe; o Estadode Delaware pertencia à Suécia. No total, seisnações da Europa Ocidental tinham colônias nasAméricas, mas os territórios espanhóis e por-tugueses continuavam sendo de maior importân-cia e, juntos, provavelmente produziram a maiorparte das riquezas.

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Um supermercado cruza oatlântico

Os europeus estavam começando a dominaras Américas, mas a corrente de influências corrianas duas direções. Nunca antes, na história domundo, haviam sido transferidas tantas plantasvaliosas de um continente ao outro. O milho era amais notável das novas plantas, e Cristóvão Co-lombo, pessoalmente, trouxe sementes em seunavio. O milho tinha a impressionante capacid-ade de produzir, na época da colheita, muito maisgrãos do que o trigo ou o centeio; não se espal-hava com velocidade mirabolante, mas, com opassar do tempo, chegou às fazendas das partesmais quentes da Europa. Em 1700, os pés altos everdes de milho podiam ser vistos balançando aovento na maior parte das zonas rurais daEspanha, Portugal e Itália. A batata americana foipara o norte da Europa o que o milho representoupara o sul. Os irlandeses acolheram bem a batata,pois, em seus pequenos pedaços de terra, ela

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oferecia mais calorias do que qualquer outroproduto. Crescia no Condado de Down em 1605e, antes do fim daquele século, a batata quenteera o principal prato da população pobre da Ir-landa. Dali, curiosamente, as sementes de batataforam levadas para a América do Norte, ondeesse alimento sul-americano ainda era descon-hecido. Os alemães também se regozijaram coma batata, ao descobrirem que essa plantação, aocontrário da plantação de milho maduro, não erafacilmente danificada ou destruída por exércitosviolentos. Nas plantações europeias, também po-diam ser encontradas outras novidades americ-anas: a batata-doce, o tomate, que levou muitotempo até agradar os paladares europeus (aindacontinuava sendo uma novidade na Inglaterra,quatro séculos depois de Colombo ter regres-sado), e a alcachofra, que ganhou na França umapopularidade inicial bem maior que a do tomate.Misteriosamente, um novo tipo de alcachofra,também introduzida pelos franceses do Canadá,foi chamada de alcachofra de Jerusalém. O peru,

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a única carne a ser trazida das Américas, tambémfoi igualmente disfarçada por seu nome europeu.Na verdade, o nome em inglês, turkey, é omesmo usado para o país "Turquia", que já haviaemprestado seu nome à primeira denominaçãoque foi dada à exótica galinha-d'angola, inicial-mente chamada de "galo ou galinha da Turquia",quando os exploradores europeus a viram pelaprimeira vez na costa da África. Com o tempo, onome foi transferido para a ave mexicana queacabou logo chegando às fazendas europeias. Osperus, que mais rigorosamente falando deveriamter sido chamados de "méxicos", já eram pop-ulares nas mesas da Espanha e da Inglaterra noNatal de 1573. O fato de terras tão distantes umasdas outras, como a Turquia e a América, seremconfundidas pelos cozinheiros era um sinal decomo havia mistério em terras do Ocidente e doOriente. O próprio milho americano chegou a serchamado de milho da Turquia, ou trigo da Tur-quia, por camponeses europeus que, com todo o

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direito, maravilharam-se com essas plantasabundantes desconhecidas de seus avós.

Das Américas vieram presentes como oabacaxi, que era consumido somente na mesa dosmuito ricos, a pimenta-de-caiena (ou cápsico), ocacau e o tabaco. Como quase todas as novidadestransatlânticas, o tabaco se espalhou aos poucospela Europa e, dois séculos depois da primeiraviagem de Colombo, um trabalhador rural típicoda Polônia ou da Sicília provavelmente ainda nãohavia sentido seu doce aroma. As monarquias daEuropa não tinham certeza de como controlaressa nova moda de fumar tabaco em cachimbosou de cheirá-lo na forma de rapé; alguns reistentaram banilo. Na Rússia, um fumante podiaser punido com a amputação de seu nariz. Outrospaíses que tinham colônias tropicais tentaramproibir a plantação de tabaco em solo nacionalpara que pudesse ser cultivado nas colônias e im-portado e, assim, recolher impostos sobre cadalote de tabaco desembarcado. A Inglaterra es-tabeleceu colônias na Virgínia e em Maryland,

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principalmente para o cultivo desse produto. Adistante Turquia acabou se tornando um dos cul-tivadores mais entusiasmados do tabaco amer-icano que, para aumentar a confusão, tornou-seconhecido como tabaco da Turquia!

O tráfico de minerais, a curto prazo, foi ocomércio mais dramático do Atlântico. Oprimeiro presente para os espanhóis na AméricaCentral e do Sul foram o ouro e a prata. Uma vezque haviam conseguido total controle sobre seusterritórios americanos e enviado trabalho forçadopara operar nas minas, os espanhóis des-pachavam para casa, em comboios altamente ar-mados, uma quantidade anual tão grande de ouroe prata que a inflação monetária começou a mex-er com a Espanha e, em seguida, com a Europa.Sempre haverá polêmica sobre o papel dosmetais preciosos em instigar a inflação na Europado século 16, mas um fator parece claro, asdramáticas ondas de inflação do mundo ocidentalcoincidiam com grandes conflitos bélicos ou, demaior importância ainda, com uma mudança

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relevante no fornecimento de apenas doisprodutos fundamentais: metais preciosos, nosséculos iniciais, e óleo, na década inflacionáriade 1970. Nos primeiros navios que traziammetais preciosos, plantas e sementes valiosaspelo Atlântico, veio um outro turista: a sífilis, queprovavelmente veio das Américas e tornou-secomum no século 16. Um dos sintomas dessadoença eram feridas na mucosa nasal, semel-hantes a mordidas.

O desfile de pavões

As viagens europeias também abriram aÁsia para o mundo. Durante séculos, uma infin-idade de produtos e plantas asiáticos atravessoutoda a extensão da Ásia por terra, mas agora tudofluía pelas rotas do mar. O chá da China encon-trou seu caminho para a Europa, assim como amisteriosa porcelana e muitas outras manufatur-as. Caulim, a matéria-prima da porcelana, era

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uma palavra que originalmente parecia estranha àmaioria dos ouvidos europeus. A palavra era, naverdade, o nome de um morro na China de ondeessa argila branca e macia era extraída. Um sa-cerdote francês com espírito empreendedor envi-ou amostras de caulim à Europa por volta de1700, destacando que era fundamental para amanufatura da porcelana. Em pouco tempo, gar-impeiros acharam depósitos semelhantes de caul-im na Alemanha, na França e na Inglaterra. NaEuropa, a primeira verdadeira porcelana veio aser feita na fábrica de Meissen, na Saxônia, em1707. Da China, vinham novas flores de jardimpara a Europa. O crisântemo era a favorita. Umaflor simplesmente amarela até o século 8?, erahonrada na China como a mais nobre das flores elouvada em verso pelos poetas. Com ela,adornavam-se os mercados de rua em partes daChina, quando as flores do verão haviam passadode sua época de viço. Em 1600, os chineseshaviam criado aproximadamente 500 variedades,das quais algumas chegaram à Europa com a

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nova onda de importações de flores. O NovoMundo também deu aos ávidos europeus umprazer que não era comum: deu-lhes as coresvivas. Ainda em 1500, a maioria das cidades evilarejos era fria em suas cores. As cabanas po-diam receber uma demão de cal, mas raramenteeram pintadas. As casas de madeira tinham umaaparência pardacenta, embora, na Holanda, os ti-jolos chegassem a dar um tom vermelhoaconchegante. Reconhecidamente, as casas depedra podiam ser realçadas pela própria cor dapedra, mas as pedras de construção geralmenteeram escolhidas não pela cor, mas pela conven-iência. Em muitas cidades, a pedra era natural-mente escura e, com o passar dos anos, até aspedras claras eram aos poucos manchadas pelafumaça de madeira, uma amostra do que a fu-maça de carvão viria a fazer de forma mais com-pleta. Em algumas catedrais medievais, os vitraisficavam realmente bonitos quando o sol incidiasobre eles, mas essas cores eram destacadas

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exatamente porque a maioria das ruas da cidadenão tinha brilho algum.

As roupas dos europeus eram geralmentepardas, exceto as usadas pelos ricos. Os artigosnão eram embrulhados em cores vivas, porquequalquer forma de embrulho era muito cara. Ospapéis de embrulho eram pura extravagância enunca coloridos. Faixas e bandeiras eram at-raentes porque eram muito mais ricas em cor doque as roupas usadas pela maior parte doscidadãos.

Um dos milagres das recém-descobertasAméricas foram as novas cores. Os mexicanos,bem antes da chegada dos espanhóis, haviam ob-servado como um inseto sem asas, alimentando-se da planta do cacto, e estando prenhe, continhauma cor escarlate de grande intensidade. Eramnecessários 70 mil insetos mortos para produzirsomente meio quilo de pó de cochonilha, que, en-tão, podia ser usado para criar tinturas das maisvivas. O escarlate há muito era o nome de uma

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cor usada em faixas e roupas, mas o escarlatefeito na Inglaterra a partir da cochonilha ofuscavaa visão. O novo escarlate tornou-se a palavra domomento, sendo até conferida à febre escarlateou escarlatina, que, na década de 1670, foi dia-gnosticada pela primeira vez como uma doençapor si mesma e, não, como um tipo de sarampoou varíola.

A rota marítima ao redor da África abriu asportas para uma fonte barata da cor azul. Oíndigo, planta da qual o mais fino azul era ex-traído, era cultivado em Bengala. Cortado noscampos e transportado em fardos por carroças atépátios de secagem e tanques de água, a planta doíndigo liberava sua indoxila através de um pro-cesso de fermentação. Por muitos séculos, con-signações pequenas e caras da tintura do índigoproveniente da Índia ocasionalmente haviamchegado ao Mediterrâneo pela rota terrestre, masagora ela começava a chegar em milhares de baúsde madeira acondicionados em navios holandesese portugueses. O índigo produzia um azul tão

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brilhante que a cor azul tradicionalmente extraídada ísatis europeia parecia desbotada. Em poucotempo, nos recintos mais elegantes de Amsterdã ede Veneza, homens e mulheres usando chapéus ecasacos, capas e túnicas de azul índigo desfil-avam como pavões. Até o exército francês aban-donou o uniforme castanho avermelhado evestiu-se de azul. As cores podem parecer um es-pelho de vaidades, mas foram importantíssimaspara a ascensão do Brasil, hoje uma das naçõesmais populosas do mundo. Os portugueses foramos primeiros a alcançar a costa do Brasil. Trezede seus navios, que navegavam em direção àcosta sul da África e daí para a Índia, foram des-viados pelos ventos tropicais até a costa doBrasil, onde passaram uma semana em abril de1500. Daí em diante, os navios portugueses oca-sionalmente usavam os portos brasileiros comoabrigo na metade do caminho da longa rota até aÍndia. Levaram consigo nativos brasileiros,macacos e papagaios em pequenas quantidades,como cativos e curiosidades, mas seu presente

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principal era a árvore do pau-campeche. Essaárvore era tão apreciada na Europa que levoudiretamente à abertura do porto de Pernambuco,onde, protegidos pelos recifes de corais, os navi-os portugueses podiam ancorar com segurança.Uma variedade inferior crescia no leste das Antil-has e era conhecida como pau-brasil. Quandodescascada e mergulhada num barril de água, aárvore do pau-brasil produzia uma cor vermelhaconhecida, algumas vezes, como o suco do Brasile apreciadíssima pelos tintureiros na Europa.

Novas doses de excitação

Muitos pacotes pequenos, caixas e barrisvinham nas novas cargas até os armazénseuropeus e eram considerados tão preciososquanto o ouro. Da China, vinham pequenos potescontendo aquele ingrediente precioso da medi-cina, do perfume e da arte de embalsamar, oalmíscar. Seco, leve e de cor escura, às vezes se

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parecia com sangue ressequido. Tirado de umabolsa na cavidade do abdômen de um pequenoveado macho que havia em abundância nasmontanhas da parte central da Ásia, era costuradonum pequeno pedaço de pele pelos cirurgiões deCantão. Na era de pouquíssimos analgésicos, oalmíscar induzia à sonolência. A primeira ediçãode uma enciclopédia famosa prometia que eramelhor que o ópio, pois não deixava consequên-cias de "estupor e languidez". No século 17, oschineses já estavam importando ópio doOcidente, o qual defumavam em barris ou con-sumiam como remédio para aliviar a dor. A Ch-ina tentou proibir sua defumação, uma proibiçãoque fracassou em cessar a entrada de ópio ex-traído de papoulas, especialmente cultivadas naÍndia Britânica, para o mercado ilícito de Cantão.Em todos os lugares, o mercado de novos remé-dios era enorme. A Europa, na época, sofriamuito com a malária e, nos pântanos da Itália, elaera mortal. Uma possível cura era oferecida pelacasca de um arbusto peruano, a cinchona.

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Principalmente importada para a Europa pelos sa-cerdotes católicos, foi conhecida inicialmentecomo casca dos jesuítas. O ingrediente funda-mental presente na casca era a quinina,descoberta pelos franceses durante o período dasGuerras Napoleônicas.

Na Europa, o cravo-da-índia, originário doarquipélago indonésio, era apreciado como remé-dio, principalmente para a dor de dente, e comotempero para comida e bebida. Aos olhos damaioria dos mercadores, a pimenta era o presentedo sudeste da Ásia. Uma trepadeira que se enras-cava nos galhos das árvores, seus frutos eramcolhidos quando estavam vermelhos e brilhantese, em seguida, eram espalhados em tapetes sob osol quente, onde ficavam até murcharem e se tor-narem escuros. Era tão cara que, em muitas co-zinhas europeias, era salpicada em algumascarnes especiais de forma muito parcimoniosa,como se fosse pó de ouro. Como muitos artigosalimentícios que um dia foram caros, a pimentaperdeu um pouco de seu glamour à medida que

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se tornou mais barata. Não só a mesa de refeiçõesdos europeus mais abastados, mas a própria agri-cultura estava se alterando. As viagens de Co-lombo, Vasco da Gama e outros navegadoreseuropeus pelos oceanos Atlântico, Indico ePacífico promoveram uma revolução na agricul-tura do mundo. Junto com as cargas acondicion-adas nos conveses ou trancadas no porão, haviapequenas remessas de sementes e mudas queeram eventualmente transportadas por uma sériede acontecimentos premeditados ou casuais paratodos os continentes. O café, o algodão, o açúcare o índigo foram para as Américas para seremcultivados em larga escala, com suas colheitassendo exportadas para a Europa. Para a Argen-tina, foram os bois e, mais tarde, para a Austrália,foram as ovelhas. Por fim, essas duas terras tin-ham mais bois e ovelhas do que qualquer outrapastagem da Europa. Uma transferência semel-hante de plantas e animais havia acontecido vári-as vezes no passado distante, há 10 mil anos naÁsia Menor, há 5 mil anos no norte da Europa

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ou, no início da era cristã, na parte central daÁsia. Mas essa última troca cobria a maior parteda superfície da terra e foi conduzida com velo-cidade sem precedentes. Estava aí uma versãoinicial da revolução da informação, com os navi-os errantes em suas navegações servindo decorda salva-vidas na qual era trazido um númeroincrível de novas sementes, mudas e animais deprocriação. Seus efeitos foram apreciados aospoucos. A mesma imprevisibilidade se con-cretizou em relação à revolução do vapor eprovavelmente seja verdade em relação à re-volução da informação, da qual satélites e com-putadores, fibra óptica, microchips, fax e Internetsão forças propulsoras. Uma viagem notávelhavia começado, mas ninguém sabia aonde iadar. Durante esse intercâmbio internacional deplantas e matérias-primas, aconteceram fatalid-ades. Muitas aves, animais e plantas foramameaçados pela chegada de novas pessoas, novosanimais, novas armas e armadilhas.

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Nas ilhas vulcânicas de Maurício eReunião, há vários anos, havia vivido um pássaroque não podia voar, o dodó. Membro da famíliados pombos, grande e dócil, com pernas grossas ecalosas, penas brancas e cabeça pouco comum, opássaro vivia em segurança, longe do ataque dequalquer predador. Seu corpo era tão grande que,quando depenado, não caberia num fornodoméstico de assar. Então, os exploradoreseuropeus chegaram, trazendo porcos e ratos; osovos colocados pelo dodó em ninhos sobre ochão ficaram vulneráveis.

O último dodó de que se tem notícia, cap-turado na ilha de Reunião, segundo dizem, mor-reu num barco francês em algum momento antesde l746. A frase "morto como um dodó", usadana língua inglesa, veio a ser um sinônimo de ex-tinção. Em todas as regiões do Novo Mundo,uma variedade de espécies, seja o pombo-pas-sageiro da América do Norte ou o "tigre" mar-supial listrado da Tasmânia, seguiram o mesmocaminho que o dodó.

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CAPÍTULO 22 - O olhode vidro da ciência

A ciência estava a todo vapor na Europa.Deixando de engatinhar, começou a andar e, emseguida, a correr. Continuou a correr por algumtempo antes de ultrapassar a China na maior partedas áreas, mas, na década de 1520, já havia fortesindícios de que estava ganhando velocidade. Amesma imprensa que expôs Lutero explicava asúltimas descobertas da ciência. A página im-pressa viajava com facilidade, ao contrário dostípicos estudiosos europeus. Grande parte doscientistas famosos da Europa de 1550 nuncachegara a conhecer a maioria de seus contem-porâneos estrangeiros cara a cara, mesmo quandovivia apenas a algumas centenas de quilômetrosde distância.

Novos avanços vieram do estudo do Sol, daTerra e das estrelas. Nessa área, o grande

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descobridor foi Nicolau Copérnico, um estudiosopolonês que usou toda a sua capacidade de medire observar, bem como aquela atividade poucocomum conhecida como "raciocínio", para provarque o Sol era o centro do universo. Com isso,destronou o planeta Terra, uma vitória tãolouvável que parecia inicialmente desafiar aBíblia e toda a essência do cristianismo, que via aTerra como o centro do universo. Copérnicocomeçou a destronar a Terra por volta de 1510,logo após Colombo e suas viagens de descobri-mento terem ampliado o mapa do mundo. Avitória de Copérnico, entretanto, não estava asse-gurada, mesmo depois de sua morte em 1543. Decerta forma, ainda hoje, sua visão é só parcial-mente aceita. A voz do povo e a imagem poéticaainda indicam que a Terra é o centro do universo.Todas as manhãs, aos olhos da mente, é o Sol quenasce e, não, a Terra que se põe.

A ênfase nas medidas e na observação, defato um método científico completamente novo,conduziu esses avanços. A Anatomia ganhou

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com a nova ânsia das escolas de medicina itali-anas em dissecar o corpo humano, em vez deconfiar no que os antigos estudiosos gregoshaviam escrito. A autópsia do corpo do papa Al-exandre V chegou a ser sancionada, após suamorte misteriosa em 1410. O jovem e brilhantemédico Vesalius, originário de Flandres, fre-quentemente dissecava corpos e, na Universidadede Pádua, ensinava suas descobertas arrojadas, nadécada de 1540, reescrevendo assim os antigoslivros de anatomia. A onda de descobertas, feitasem várias frentes científicas, era o trabalho decentenas de curiosos, que passavam seu tempocomo cientistas, observadores de estrelas, médi-cos e religiosos e que dispunham de um pouco detempo para gastar. Muitos eram pessoas de váriostalentos e habilidades que estavam decididas a re-solver um emaranhado de charadas intelectuais.Assim, Isaac Newton, que foi aclamado em vidacomo o maior de todos os físicos, pesquisouTeologia, Química, Astrologia, Astronomia e afabricação de telescópios, bem como as leis do

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movimento e da gravidade. Nos séculos 16 e 17,cientistas famosos raramente eram pesquisadorescom dedicação exclusiva e raramente viviam vi-das longas. Isaac Newton foi uma exceção pelofato de ter passado dos 80 anos de idade, épocaem que ainda tinha todos os dentes, com exceçãode um, e uma visão tão aguçada que não lhe eranecessário o uso de óculos. Sua versatilidade eratal que poderia ter feito seus próprios óculos.

Um avanço na ciência, segundo dizem al-guns observadores, nada mais é que a aplicaçãodo bom senso, mas várias dessas teorias pareciamdesafiar o bom senso vigente na época, tanto aversão espiritual quanto a secular desse bomsenso. Por isso, não eram aceitas prontamente.Muitos descobridores sabiamente hesitavam emtornar público o que haviam descoberto, en-quanto os descobridores de hoje se entregam àtentação de logo recorrer à imprensa, sem um diade atraso. Copérnico passou um terço de séculocuidando de sua idéia fundamental antes de serpersuadido a confiá-la a um livro. Dizem que

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Newton vislumbrou sua principal descoberta emFísica ao ver uma maçã cair de uma árvore numpomar da Inglaterra em 1666, mas vinte e umanos se passaram até que ele expusesse sua teoriana forma impressa. William Harvey, o médicoinglês que descobriu que o sangue circulava eter-namente, falou sobre sua descoberta durante dozeanos ou mais até que a colocasse no papel, em1628, publicando-a não em Londres, mas numacidade da Alemanha.

Enquanto a imprensa disseminava muitasdas descobertas, os sacerdotes e párocos se sen-tiam tentados a impedi-las. Os líderes religiososopunham-se ou mostravam-se extremamentedesconfiados com várias idéias revolucionáriasda ciência. A própria idéia de que as leis danatureza, até então desconhecidas, agiam no uni-verso e que leis semelhantes poderiam ser encon-tradas agindo sobre os seres humanos, assimcomo no mundo físico, era um perigo em poten-cial para a religião que pregava que Deus, sober-ano em sabedoria e em conhecimento, presidia

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cada canto do mundo e, portanto, podia suspend-er qualquer lei da natureza e operar milagres. Atémesmo a China, que simpatizou com quase todasas ciências em quase todas as épocas, colocouobstáculos religiosos em relação à pesquisa dasestrelas, pois davam origem às previsões, queeram uma prerrogativa do imperador.

O vidro e o olho transplantado

A revolução científica foi um avanço mara-vilhoso na forma pela qual o mundo era visto.Antes de 1550, enquanto o trabalhador especial-izado em metais foi responsável por avanços, taiscomo o relógio mecânico e a imprensa, foi o tra-balhador especializado em vidro que facilitoudescobertas futuras como o microscópio e otelescópio. O vidro tornou-se o olho trans-plantado do cientista para ver o invisível. Os anti-gos egípcios produziram os primeiros recipientesocos de vidro. Os sírios, por volta de 200 a.C,

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inventaram o maçarico para soprar vidro, dando-lhes o formato de recipientes arredondados e comparedes finas. Os romanos manufaturavam umvidro rudimentar, normalmente um pouco turvo,mas que, quando bem trabalhado, ganhava trans-parência. Em Veneza, o Vale do Silício de suaera, os antigos métodos romanos de fabricação devidro foram aperfeiçoados. Os vidreiros deVeneza tornaram-se tão numerosos, e o fogo quequeimava em seus locais de trabalho apresentavaum perigo tão grande de se alastrar por toda acidade que, em 1291, o governo os deslocou paraa ilha de Murano, próxima ao local. Os primeirosespelhos feitos com nitidez foram produzidos emVeneza, por volta de 1500, e os habitantes dessacidade mantiveram em segredo seu novo pro-cesso de manufatura por mais de 150 anos. Os es-pelhos fizeram o máximo que puderam pararealçar a reputação de Veneza como o lar doluxo, da vaidade e, talvez, dos produtos femini-nos imorais: uma reputação criada pelas luvas eleques e pelos calções bordados de Veneza, peças

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bem justas de vestuário, usadas para encobrir aspernas. Uma revolução da ciência também se en-contrava nas mãos dos vidreiros. O poder que ovidro curvo tem de aumentar os objetos observa-dos já era conhecido mesmo antes da civilizaçãogrega, mas lentes de vidro específicas para usoem óculos e como lentes de leitura só foramaventadas por volta de 1300. Óculos preservadosno Deutsches Museum, erri Munique, datam de50 anos depois, e já era possível aos médicos, ex-ercendo sua penosa obrigação durante a pestenegra, colocarem seus óculos para examinar maisde perto a pele e a língua das vítimas. Quando oslivros impressos entraram na moda, a demandapor óculos aumentou principalmente entre ho-mens e mulheres que desejavam ler sob a luzfraca do inverno do norte da Europa.

O poder esplêndido do vidro foi drastica-mente revelado na cidade litorânea de Middel-burg, na Holanda. Em 1608, Hans Lippershey,um fabricante de óculos, começou a construirtelescópios de bastante utilidade. Para o espanto

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daqueles que empregavam o novo aparelho, elespodiam claramente ver uma pessoa a três quilô-metros de distância. A idéia, mas não o telescó-pio, chegou a Galileu Galilei, que ensinavaMatemática em Pádua, no norte da Itália.Fazendo sua própria versão do que ele chamou de"vidro espião", maravilhou-se ao descobrir quepodia aumentar a imagem em três vezes. Moendosuas próprias lentes de vidro, ele conseguiu umaproporção de aumento de 8 vezes e, depois, de 32vezes. Nos arredores de Veneza, mercadores edonos de navios levaram o excitante telescópiopara o alto das torres e, olhando para o mar,puderam ver navios que antes eram invisíveis aolho nu.

O telescópio melhorado de Galileu estavaalcançando, no céu, o que Colombo e Magalhãesfizeram ao navegar pelos mares. Ele estavamapeando novos mundos. Através de seustelescópios, feitos principalmente de vidro deVeneza, Galileu inspecionou a Lua, a qualdescreveu como "a visão mais bonita e mais

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prazerosa que existe". Detectou também o queninguém havia visto antes, as crateras da Lua esua superfície acidentada. Foi ele quem primeiroviu as manchas do Sol e descobriu que a ViaLáctea consistia de estrelas.

Ele também chegou à mesma conclusão deCopérnico: a Terra não era o centro do universo aquem quase todos os corpos celestes faziam acorte. Essa visão trouxe profundas implicaçõespara certas frases do Antigo Testamento, que Ga-lileu denunciou como sendo escritas por ignor-antes para os ignorantes. A Igreja ergueu sua mãocontra ele em 1616 e ergueu-a ainda mais depoisde ele ter persistido em suas teorias. Galileu pas-sou os últimos oito anos de sua vida sob prisãodomiciliar em sua pequena fazenda perto deFlorença.

Ao telescópio, os vidreiros holandeses eitalianos acrescentaram o microscópio. Antonvan Leeuwenhoek, que vendia materiais de cos-tura e roupas na cidade holandesa de Delft,

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tornou-se um mestre na fabricação de microscó-pios. Com uma ampliação de pelo menos 270vezes, seus microscópios viam mais do que ja-mais tinha sido visto pelos olhos humanos. Em1677, pela primeira vez, ele descreveu com pre-cisão o espermatozóide e as células vermelhas dosangue. Seu microscópio possibilitou quebrarvários velhos mitos: que a pulga nascia da areia eque a enguia era chocada pelo orvalho. Enquantoisso, na Inglaterra, Robert Hooke, enquanto ol-hava os tecidos das plantas ao microscópio, in-ventou uma palavra fundamental: "célula". Naépoca, ainda não se sabia que todas as plantas eanimais consistiam de células.

O microscópio abriu os olhos da botânica eda zoologia. Exatamente na mesma época em quea exploração de novas terras multiplicava asplantas e animais conhecidos, o botânico e físicosueco, Carolus Linnaeus, ou Lineu, aperfeiçoouseu método que, em pouco tempo, tornou-se ométodo de todo o mundo, o de classificar todas ascoisas vivas dando-lhes dois nomes em latim, um

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especificando o gênero mais amplo e o outro, aespécie em particular. O que Lineu fez pela clas-sificação de plantas, outros cientistas, ao sul dosAlpes, alcançaram na classificação do tempo. Areforma do calendário foi um processo vagaroso.No auge de Roma, Júlio César e seus consultoreshaviam reformado o calendário, abandonando ociclo da Lua e voltando ao ano solar. O ano solarse estendia por 365 dias, 5 horas, 48 minutos etrês quartos, mas as horas que sobravam criavamuma dificuldade para o novo calendário. JúlioCésar adotou uma solução conciliatória sensata.Seu calendário, mais tarde chamado de julianoem sua homenagem, admitia, por questão de sim-plicidade, que o Sol completava seu percursoanual em 365 dias e um quarto. Dessa maneira, oano contava 365 dias para cada primeiro, se-gundo e terceiro anos, e 366 dias para cadaquarto ano, ou ano bissexto.

César morreu bem antes de a dificuldadeinerente de seu calendário se tornar evidente. Ofato estranho era que seu calendário, a cada

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século consecutivo, atrasava um pouco. Na ver-dade, a cada ano, o calendário perdia 11 minutose, em seus mil anos iniciais, ele perdeu aproxima-damente sete dias. Interferia, também, com a de-terminação do Domingo de Páscoa, um eventodesconhecido da época de Júlio César, mas queveio a ter profunda importância mais tarde.

Finalmente, em 1582, o papa Gregório XIIIagiu decisivamente. Usando os cálculos do as-trônomo e médico de Nápoles, Luigi Ghiraldi, opapa anunciou sua solução. Exatamente naqueleano, ele eliminaria os dez dias que iam de 5 a 14de outubro. Em suma, o calendário seria atualiz-ado com um traço de pena. O futuro também ser-ia controlado com a mesma decisão. Como cor-retivo a longo prazo, o calendário gregoriano ad-otou o ano bissexto em 1600 e em 2000, porémnão nos anos intermediários de 1700, 1800 e1900. Aqueles que viviam na Espanha, Portugal eItália iriam discutir por muito tempo omemorável outubro de 1582. Dez dias, para seuespanto, simplesmente desapareceram de suas

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vidas. Alguns meses depois, a França e vários es-tados católicos da Alemanha perderam seus dezdias. Os países protestantes, no entanto, não tin-ham certeza se deveriam seguir uma reforma ini-ciada por um papa. A Inglaterra continuou aseguir um calendário diferente do que prevaleciana França e na Espanha católicas. Quandochegou o dia de Natal na Inglaterra, já era janeirodo outro lado do Canal da Mancha. Na Ale-manha, somente duas cidades, a poucos quilô-metros uma da outra, seguiam um calendáriodiferente, baseadas no fato de estarem situadasnum estado católico ou luterano. Quando aInglaterra finalmente adotou esse novocalendário, onze dias não vividos tiveram de serapagados. Assim, em 1752, seu calendário puloudurante a noite de 2 de setembro para 14 desetembro, uma mudança que causou desordemem muitos cantos e consternação em outros. EmLondres, uma multidão sob um compreensívelestado de confusão pôde ser ouvida gritando:"Devolvam-nos nossos onze dias." A Rússia e

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várias outras nações da igreja oriental ou orto-doxa continuaram a seguir o antigo calendário. ARússia acabou esperando até o ano de sua re-volução comunista, 1917, para adotar o que opapa e a Itália haviam começado mais de trêsséculos antes.

A procura por novas formas de contar e demedir foi impulsionada ainda mais pelas vari-ações e pela confusão em relação às formas exist-entes medida. A medida de uma milha era objetode discussões e dúvidas sempre que uma fron-teira europeia era cruzada por um viajante. Amilha inglesa continha 1.760 jardas, a milha itali-ana continha 2.029 jardas, a milha irlandesa con-tinha 3.038, a alemã, 8.116, e a milha sueca exce-dia as 10 mil jardas.

Pelo menos, o calor e o frio eram medidosagora com mais precisão, embora não de comumacordo. Em 1714, Gabriel Fahrenheit, um habit-ante do Báltico que se tornou um fabricante deinstrumentos na Holanda, inventou o termômetro

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de mercúrio. Em sua escala, o ponto de ebuliçãofoi marcado em 212 graus, mas, algumas décadasdepois, uma nova escala foi inventada pelo as-trônomo sueco Anders Celsius, que marcou seuponto de ebulição em 100 graus. Essas divergên-cias foram agravadas em 1799, quando a revolu-cionária França introduziu o sistema métrico depesos e medidas, com sua lógica simples e seusnomes fáceis.

À procura de Vênus

A primeira viagem de exploração de JamesCook nos oceanos Pacífico e Indico foi impul-sionada por demanda da ciência. Previra-se comcerteza que, em 3 de junho de 1769, o planetaVênus passaria rapidamente diante do Sol. Estavaaí a rara chance de aprender a distância exata daTerra ao Sol, um cálculo que, se feito com pre-cisão, forneceria informações fundamentais paraastrônomos e navios que tentavam saber sua

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posição exata no mar. No dia da passagem, en-tretanto, era possível que o céu estivesse nubladona Europa e, portanto, a oportunidade de obser-vação estaria perdida. A decisão de aproveitaressa oportunidade de observar Vênus foi intensi-ficada pelo conhecimento de que a passagem sóaconteceria novamente em 1874.

A Inglaterra decidiu que o lugar maispromissor para observar a passagem de Vênusera na recém-descoberta ilha do Taiti, onde sepressupunha que o céu estivesse sempre limpo. Aviagem ao Taiti, no distante Pacífico foi meticu-losamente planejada. Talvez a expediçãocientífica mais ousada que o mundo havia visto,uma pequena prova antecipada das sondas envia-das à Lua na década de 1960, ela foi chefiada porum pequeno grupo de cientistas provavelmentecom mais talento do que qualquer outro grupo jámontado para uma expedição longa como essa. Abordo do "Endeavour", estavam os melhorestelescópios e o melhor relógio mecânico. No na-vio de madeira de Cook, a ciência era um

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passageiro de primeira classe. No tempo previsto,o navio chegou ao Taiti. Um observatório portátilfoi erguido, os instrumentos de ciência foramlimpos e montados, e as observações foram feitasno dia tão esperado. Uma névoa ao redor do Sol,entretanto, fez com que tudo isso perdesse umpouco de sua utilidade.

Cook, então, executou suas instruções deprocurar a grande terra ao sul que, segundo seacreditava, deveria estar em algum lugar doimenso Oceano Pacífico. Há muito tempo,acreditava-se que, para manter o equilíbrio natur-al do globo eternamente em rotação, deveriahaver uma quantidade igual de terra no Hemis-fério Sul e no Hemisfério Norte. Em algum lugar,deveria haver um continente escondido. A teoriaera incorreta, mas a conclusão se mostrou,acidentalmente, positiva. A Austrália era o con-tinente que faltava, e Cook o avistou pelaprimeira vez, sob a luz do dia, em 20 de abril de1770. Na verdade, vários navegadores por-tugueses, holandeses e ingleses já haviam visto as

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margens da Austrália ou nelas destroçado seusnavios. Foi Cook quem descobriu a costa leste,mais atrativa, onde a maioria dos australianosvive hoje. Acompanhado de seu botânico, JosephBanks, ele elogiou tanto suas campinas, solo,peixes, vegetação natural e portos que, maistarde, foi vista pela Inglaterra como uma regiãopromissora para se estabelecer uma colônia.

Depois de regressar à Inglaterra, Cooknavegou novamente para os mares do sul. Comgrande risco para seus dois navios de madeira,ele navegou em direção aos mares e ventosselvagens, além do Círculo Polar Antártico. Emtrês verões seguidos, ele navegou mais próximodo que qualquer outro navegador até chegar aocontinente gelado. Repetidas vezes, ele se de-parou com baías de gelo, navegando contra elasna esperança de achar terra na outra extremidade.

Sem saber, Cook navegou ao redor daAntártida. Na verdade, o mar de gelo flutuanteera tão arriscado que ele pensou que nenhum

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outro navio se aventuraria pelas águas mais aosul. A verdadeira terra da Antártida, além dasbarreiras de gelo, só foi avistada em 1820, edécadas se passaram até que o quebra-cabeça daextensa costa de penhascos congelados fosse fi-nalmente montado. Estava aí uma área de terramaior que os Estados Unidos, coberta de gelo es-pesso e montanhas ainda mais altas que os Alpeseuropeus. Aos poucos, o mundo saberia que essaimensa geladeira de continente tinha efeitos pro-fundos sobre o nível dos mares do planeta e sobreos ventos e clima de uma enorme área do Hemis-fério Sul.

Cook era um verdadeiro filho da nova erade medidas. Nessa segunda viagem, ele levou onovo cronômetro, um relógio delicado e precisoinventado por James Harrison. Cook foi oprimeiro navegador e explorador a conseguir cal-cular com precisão, sob tempo bom, a posição deseu navio sobre uma linha Leste-Oeste. Emsuma, ele conseguiu determinar a longitude. Ao

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mapear novas terras e recifes, ele construiu gráfi-cos de precisão sem precedentes.

As três viagens de Cook pelos oceanosPacífico e Índico foram, na verdade, como ligaruma máquina do tempo. Muitas ilhas do Pacíficocolonizadas pelos polinésios, tão habilidosos aomar no decorrer de vários milhares de anos, tin-ham permanecido isoladas até a chegada deCook. Em encontros tão estranhos como esses,entre povos e culturas tão diferentes, haviagrande chance de perplexidade e desconfiança,mesmo com boa vontade dos dois lados. Cook,em geral tinha bastante tato em seus contatoscom os povos nativos, mas foi vítima de umdesses desentendimentos, vindo a morrer a paula-das em 1779, no Havaí.

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CAPÍTULO 23 -Destronando a colheita

Na Europa e na Ásia, uma família típicavivia praticamente à base de pão. Fosse em 1500ou 1800, na França ou na China, a maioria dasfamílias não possuía terras ou dispunha de pro-priedades muito pequenas que mal garantiam suaalimentação, mesmo nos anos de fartura. Inúmer-os homens e mulheres solteiros deixavam suasminúsculas fazendas ou seus vilarejos rurais paratrabalhar em outras fazendas ou em outros negó-cios. Geralmente, recebiam refeições gratuitasenquanto estavam no trabalho, e estas repres-entavam uma parte considerável de seus ganhos.Uma boa parte do trabalho rural ficava com asmulheres ou crianças jovens: capinavam asplantações, cuidavam dos gansos, carregavamágua do poço para a casa, enrolavam as fibras efaziam tecidos, produziam cerveja caseira, saíam

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à procura de ervas que serviam de remédio, apan-havam lenha para o fogão e esterco para asplantações. Revirar os lugares à procura de com-ida e procurar forragem eram quase uma formade vida. Um camponês que possuísse uma vaca eum pequeno pedaço de terra devia mandar queseus filhos, todos os dias do verão, cortassemcapim à beira da estrada. Parte desse capim era,então, preservada como feno para alimentar o an-imal durante o inverno. Nas florestas,procuravam-se cogumelos e frutas silvestres, erecolhiam-se ovos das aves. Em muitas partes daChina, a população de aves diminuiu devido à in-tensidade do uso da terra, à ânsia dos caçadoresde aves e à coleta de ovos. A vida cotidiana, emtodas as partes do mundo, concentrava-se naprodução de alimentos. Em 1800, em todo omundo, alguns milhões ainda eram caçadores elavradores nômades, mas a maioria era defazendeiros. Sua vida cotidiana era regida pelosol e pela chuva. Das margens do mar do sul daChina às margens dos lagos do interior da

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América, o acontecimento triunfal no calendárioeconômico era trazer para casa a colheita, umatarefa executada por mulheres, crianças e homensporque, uma vez que os grãos estivessem madur-os, todas as mãos eram necessárias para ceifar,amarrar e transportar as espigas ao local dearmazenagem. Na maior parte do mundo, comexceção dos vales tropicais férteis da Ásia, a col-heita acontecia uma única vez ao ano. Os grãosdominavam a mesa de refeição numa proporçãoque hoje seria inimaginável em países prósperos.Uma grande parte dos grãos era comida na formade pão, mas alguns o consumiam também naforma de mingau e sopa. O mingau de aveia, ser-vido bem quente, era devorado com voracidadedurante o inverno. Em épocas de carestia,adicionava-se água em abundância a um poucode farinha com o intuito de dar alívio temporárioà sensação de fome. Uma receita caseira demingau de aveia era "nove sementes de aveiamoídas e um galão de água". Na Rússia ePolônia, a kasha, um mingau feito de centeio,

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tinha aspecto mais fino e aguado quando as col-heitas eram mais escassas. Em muitas terraseuropeias, os grãos, principalmente a cevada,eram também usados para a produção de cerveja.Na Inglaterra, a cerveja caseira, tomada em quasetodas as refeições, era praticamente tão essencialquanto o pão na dieta diária. As criançastomavam-na todos os dias. Num renomado colé-gio interno de Londres, em 1704, o café da man-hã consistia de pão e cerveja, enquanto os pobresque viviam nos asilos recebiam cerveja em quasetodas as refeições. O chá, bastante consumido naChina, era uma bebida reservada aos mais abasta-dos na Europa. O café também era um luxo emtoda parte, à exceção das terras em que eraproduzido, como a Arábia e o Brasil. Na Europae na Ásia, os vários grãos provavelmente con-stituíam mais de 80% da dieta de uma casa típica.Na Europa, a padaria da rua do vilarejo era, naverdade, um pequeno armazém com dois tipos depão à venda. O mais apreciado era o pão de trigo,feito com farinha quase pura, ao passo que os

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pães mais baratos consistiam de farelo e grãos desegunda categoria. O preço do pão era geral-mente o barômetro da estabilidade social. Umaumento em seu preço denotava a probabilidadede revoltas.

O fracasso ou semifracasso de uma colheitaera frequente desde o Sudão até a China. Na Fin-lândia, no início da década de 1690, um longoperíodo de fome chegou a matar um terço dapopulação. A França, que nos anos de farturapraticamente transbordava com os mais finos ali-mentos, sofreu um período de fome nacional emdezesseis dos cem anos do século 18, que termin-ou em revolução e foi provavelmente o pior paraas colheitas desde o século 11. A colheita que seaproximava passou a ser frequentemente men-cionada nas orações de mulheres jovens e solteir-as. Se a colheita fosse farta, seu casamento, hámuito planejado, tinha grande chance de se real-izar; se fosse insuficiente, o casamento seriaadiado. As mulheres na Europa Ocidental geral-mente só se casavam depois dos 24 ou 26 anos de

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idade. Os casamentos tardios eram a principalrazão de as mulheres darem à luz somente 4 ou 5filhos. As famílias grandes, de 8 ou 10 filhos,viriam a ser mais comuns no final do século 19.

Uma boa colheita não era o suficiente. Elacorria sério risco quando os celeiros de grãoseram invadidos por ratos. Os gatos eram man-tidos dentro das casas, nos celeiros de grãos e es-tábulos mais por serem caçadores de ratos do queanimais de estimação. Quando, em 1755, o dr.Samuel Johnson produziu seu dicionário da lín-gua inglesa, ele grosseiramente definiu o gatocomo "animal doméstico que pega ratos". Masserá que os gatos não tinham direito de ser acari-ciados e mimados simplesmente por afeto? John-son discordava, rotulando-os como "a ordemmais baixa da espécie dos leoninos". Tradicional-mente, cada grão de trigo que era plantado davasomente alguns grãos na época da colheita. NaHolanda e na França, entre 1500 e 1700, por ex-emplo, o rendimento médio era de talvez sete porum. No norte da Rússia, esse rendimento caía

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para três por um. Após colheitas assim, cerca deum em cada três grãos tinha de ser armazenadocomo semente para a colheita do ano seguinte.Isso trazia um dilema, se o período de fome se in-stalasse. Com as crianças chorando por comida, atentação era consumir parte dos grãos que tinhamsido separados como semente para a colheitaseguinte. Na Europa, os principais cereais col-hidos pelo exército de lavradores que usavamsuas foices eram o trigo e o centeio. Asplantações de painço ou milho-miúdo tambémocupavam grandes extensões de terra no norte daChina e na África, bem como na Europa. Emboraos grãos de painço fossem mais grosseiros, elesduravam até vinte anos; e, no século 16, o painçoera mantido nos celeiros de grãos dos portos for-tificados do império veneziano como umaquestão de segurança em períodos de fome e es-tados de sítio. A aveia, outro grão muito difun-dido, era dada aos cavalos, que puxavam grandescarroças, em época de paz, e armas pesadas, emépoca de guerra. Na era do cavalo, a aveia servia

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como equivalente ao diesel hoje, um combustívelde baixo custo, porém, nos países pobres doNorte, tais como a Escócia, a mesma aveia eratambém a comida dos pobres. O arroz era o prin-cipal produto nas partes mais quentes da China epodia também ser encontrado na Itália. O milho,o maravilhoso produto vindo das Américas, eracada vez mais cultivado nas planícies ribeirinhasdo sul da Europa, mas o preço de suas maravilho-sas safras era a exaustão do solo.

Dos alimentos consumidos nas típicas casaseuropeias e chinesas das zonas rurais, somenteuma fração era produzida no local. O sal era o al-imento em comum a ser transportado por longasdistâncias. Em 1500, o transporte de sal rendeufortunas aos carroceiros e donos de barcos. Acidade de Veneza tinha praticamente omonopólio do sal colhido no Mar Adriático, e otransporte de sal por navio ajudou a manter suaascensão econômica. A parte mais quente dacosta do Atlântico, na França, produzia sal porevaporação da água do mar no verão, e esse sal

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supria a Inglaterra e os ricos portos do Báltico.Entre 1427 e 1433, foi feita uma contagem dosnavios que entraram no porto báltico de Tallinn.Dos 314 navios, um número surpreendente de105 aportou com carga das salinas da Baía deBourgneuf, na França. O Báltico era o lar docomércio de arenques, e para salgar os arenquesfrescos, era necessária uma pequena montanha desal todos os anos. A parte mais ao norte da Áus-tria possuía ricos depósitos de sal, que eram es-cavados pelos mineradores, no subterrâneo. Moz-art nasceu numa cidade do sal - "Salzburg", naverdade, quer dizer "cidade de sal" - e, dasmontanhas próximas, todas as semanas saía umaprocissão de pequenas carroças carregandounicamente sal-gema. Em geral, o sal cru ex-traído das minas subterrâneas exigia tratamento.Para purificá-lo, eram necessárias caldeiras deferro, ou tonéis cheios de salmoura, sobre o fogoem chamas, dia e noite.

Pequenos vilarejos corriam o risco de ficarsem sal enquanto esperavam a neve do inverno

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derreter. As donas de casa regozijavam-sequando as carroças, e na China, as barcaças, fi-nalmente chegavam com sacas de sal. A maioriados habitantes dos vilarejos comprava pouco sale usava-o moderadamente, uma simples "pitadade sal" era suficiente. A moderação com o sal in-dica claramente o padrão de vida precário daspessoas na era anterior ao transporte a vapor, querevolucionou a distribuição de sal e de grãos. Osal marinho ou certos tipos de algas produziam asoda, que, por sua vez, era um dos ingredientesdo sabão. Em muitas partes da Europa, o outroingrediente do sabão era o sebo, a gordura dosanimais ou uma mistura de azeite de oliva e óleode semente de colza. Fazer sabão, portanto, erausar matérias-primas que, do contrário, seriamconsumidas. Em épocas de fome, a fabricação desabão e até mesmo o ato de lavar com sabão eracomo roubar comida da boca dos famintos.

Os indianos e os turcos eram mais in-teressados no sabão e na higiene pessoal do queos europeus. De fato, a Europa Ocidental tinha o

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hábito mais regular de lavar o rosto e as mãos em1300 do que em 1800. A peste negra provavel-mente fez com que as pessoas se tornassemdesconfiadas dos banhos como lugares onde sepudesse adquirir infecções. Os banhos públicoseram vistos como locais de lassidão moral. NaAlemanha, a cidade de Frankfurt tinha 39 banhospúblicos em 1387, mas, um século e meio depois,com uma nova autoconsciência da nudez, a cid-ade apresentava somente nove. A saúde públicasofria com o crescimento das cidades do interior.Nenhuma cidade grande possuía sistema de es-goto. O rio era o escoadouro preferido, e o esgotode alguém, depois de flutuar correnteza abaixopor 200 metros, tornava-se a água de lavar ou debeber de outra pessoa. No sudeste da Ásia, poroutro lado, o esgoto dos vilarejos e das cidadesera geralmente transportado por carroças atécampos adjacentes e colocado no solo como fer-tilizante. O defeito desse método era que muitaspessoas, ao consumirem os alimentos cultivadosem solo com esse adubo, infeccionavam seu

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aparelho digestivo. Na Tailândia, ainda em 1970,talvez dois de cada três habitantes da zona ruralsofressem com tais infecções. Embora a popu-lação da Europa estivesse geralmente crescendo,desastres ocasionais lhe impunham um certofreio. Assim, durante a Guerra dos Trinta Anos,que estourou em 1618 e se prolongou até 1648, aAlemanha talvez tenha perdido um terço de suapopulação. Enquanto a guerra se desenvolvia, aItália foi atacada por uma praga. Em 1630, cercade um milhão de pessoas morreu nas planícies daLombardia, em que as cidades de Bolonha,Parma e Verona chegaram a perder metade desua População em um ano. Durante as duas prin-cipais guerras do século 20, somente Leningrado(São Petersburgo) e algumas outras cidades rus-sas chegaram a sofrer perdas de magnitudesemelhante. Para uma típica família de trabal-hadores de algumas regiões da Europa e da Ch-ina, os anos de escassez eram intercalados porum ano ocasional de abundância. A partir de1570, aproximadamente, colheitas exuberantes

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tornaram-se menos frequentes no norte daEuropa. O clima tornou-se mais frio, e os portosdo Báltico, tais como o de Riga, eram fechadospelo gelo com mais frequência. Próximo aoMediterrâneo, as plantações de oliveiras e seujovem fruto começaram a ser atingidos pelas gea-das com mais frequência. Chamada em retro-specto de Pequena Idade do Gelo, essa nova erade mudanças no clima continuou por cerca detrezentos anos. O prolongamento do inverno e oalastramento das geleiras tendiam a separar o suldo norte da Europa. Entre a Itália e a Alemanha,as passagens nas montanhas, acessíveis na épocade Lutero, podiam ser perigosas mesmo no iníciodo verão. Nem todas as partes da Europa, en-tretanto, sofreram com a mudança nos padrões doclima. Várias regiões agrícolas ainda recebiamsol mais do que suficiente para amadurecer seusplantios em um ano normal. A Alemanha teveanos extremamente favoráveis para o vinho entre1603 e 1622. Além disso, durante esses três sécu-los de clima mais frio, métodos mais inteligentes

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de agricultura viriam compensar as mudanças.Em relação à China, o país sofria com sua própriasérie de desastres naturais a cada século: epi-demias, secas, enchentes e incêndios, bem comoaquele desastre profundo de autopunição: umalonga guerra. No norte da China, em 1557, houveum terremoto em que 830 mil pessoas pereceram.Uma seca prolongada teria matado muitos maisde fome e de doenças, que eram facilitadas peladesnutrição. A China era mais vulnerável a de-sastres naturais do que a Europa. A populaçãocrescente da Europa e da China exigia maiorprodução de alimentos. Entre 1500 e 1800, onúmero de pequenos proprietários de terras cres-ceu em milhões. Eles cultivavam áreas anterior-mente cobertas por florestas e pântanos. Os cam-poneses chineses foram para a extremidade sul eoeste e ocuparam terras de solo pobre. Muitoseuropeus mudaram-se como fazendeiros inquili-nos para as regiões montanhosas do centro daFrança e da Toscana, onde, com o tempo, con-struíram casas simples de dois andares que, hoje,

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após sofrerem reformas, são as charmosas casasde férias dos banqueiros holandeses e políticosingleses. Onde os camponeses reviravam o solopobre com enxadas e plantava feijões, milho euvas, hoje os turistas em férias se aquecem aosol, bebendo vinho gelado nos terraços que, umadécada após outra, foram construídos com solocarregado numa procissão infinita de cestos,trazidos dos vales mais abaixo. Uma enorme áreatinha de ser reservada para o plantio de fibrasnaturais, para cobertores e roupas. Embora, hoje,a maior parte das roupas seja feita de produtossintéticos, ainda no ano de 1800 todas asmatérias-primas para roupas vinham das fazen-das. Terras que poderiam ter sido reservadas parao plantio de alimentos tinham de plantar linho oucânhamo, para produzir camisas e lençóis dessesmateriais ou, numa escala menor, as folhas daamoreira com as quais os bichos-da-seda eram al-imentados. Da mesma forma, eram necessáriasterras para alimentar as ovelhas que forneciam alã e os vários animais que, depois de mortos,

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forneciam as peles para os trabalhos em couro.No Japão, era comum usar roupas de couro aosair de casa e, na Europa, a maioria das botas esapatos era feita de couro ou madeira. Assimtambém, terras adicionais eram necessárias parao cultivo de produtos como a ísatis e o índigo,dos quais eram extraídas as cores das roupas.

O linho era um dos principais produtos donorte da Europa. Um produto têxtil antigo feitoda planta de mesmo nome tinha fornecido amatéria-prima para a mumificação dos egípcios epara as roupas de milhões de gregos e romanos.No início da Era Moderna, o linho era ampla-mente usado nas velas de navios, toalhas brancasde mesa e lençóis de cama (para os que podiamse dar ao luxo de revestimentos tão nobres), parafazer calças, macacões, aventais para crianças eaté mesmo roupas íntimas.

O pintor holandês Rembrandt, por volta de1651, esboçou com caneta, tinta e pincel uma"visão de Haarlem". A cidade holandesa e suas

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igrejas semelhantes a torres aparecem ao fundo,enquanto nos arredores elevam-se grandes braçosdos moinhos de vento. Mas, em primeiro plano,estão as belas fileiras do que, à primeira vista,parecem ser pequenas estufas cobrindo uma ex-tensa área de pastagem. Na verdade, são uma col-cha de retalhos de linho, estendida para secar aoar fresco e ao sol. Onde o linho fosse produzido,esses espaçosos "campos de quarar roupas"faziam-se necessários para que o linho fresco,porém sujo, pudesse ser branqueado. Quase todosos vilarejos, desde a Bavária até o leste da Prús-sia, trabalhavam em suas tecelagens de linho. Oalgodão, um produto estrangeiro, foi uma ajudaespecial para a Europa. Cultivado na Índia ou emplantações de escravos na outra extremidade doAtlântico, o calicô, um tecido mais rústico, e out-ros artigos da Índia ajudaram a população daEuropa a expandir-se, ao permitir que uma maiorquantidade de suas terras fosse cultivada para ali-mentos. O algodão manufaturado, principalmenteo calicô indiano, era transportado por navios em

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grandes quantidades até a Inglaterra, antes queessa nação se tornasse um grande manufaturadorde roupas feitas com algodão importado. Após1820, a lã também chegava em quantidades cadavez maiores da Austrália e da Nova Zelândia.Sem a lã e o algodão, cada vez mais importadosdo Novo Mundo, a Europa teria de ter desviadograndes áreas de seu próprio solo para o cultivode linho e de outras matérias-primas. Na China, oalgodão era bem mais importante do que a lãcomo matéria-prima para roupas. Cada vez maissubstituindo o cânhamo como fibra, o algodão jáocupava imensas áreas de terras aráveis em 1400e, na época da colheita, vários fardos de algodãoenchiam milhares de pequenos barcos que nave-gavam pelos rios e canais chineses até as cidades.Muitos fazendeiros alternavam as plantações dealgodão com arroz. No ano de 1800, a maioriadas pessoas na Europa não tinha o costume decomprar um único item novo de vestuário das lo-jas e feiras. Faziam suas roupas em casa,herdavam-nas dos mortos ou compravam-nas de

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segunda mão das mulheres comerciantes quedominavam esse segmento de vestuário. Dentrode cada família, havia um movimentado negócionão remunerado de vestuário. As roupas geral-mente passavam de irmã para irmã mais nova, deirmão para irmão mais novo, e eram remendadas,recosturadas, consertadas e cerzidas conformemudavam de mãos. Um dos benefícios de ser umempregado era receber roupas de segunda mão,repassadas pelos senhores e senhoras. As roupaspoderiam estar um pouco desgastadas, mas eramrecebidas de braços bem abertos. Era um enormeesforço para Europa, a Ásia e a África produzir-em alimentos e roupas suficientes para mantersua população viva e bem. Às vezes, o esforçofalhava, e milhões de pessoas ficavam de es-tômago vazio e roupas puídas. Se um vilarejopassava fome, não podia esperar ajuda externa;em parte, porque o vilarejo mais próximoprovavelmente também estava faminto. As casasna Ásia, na Europa e na África eram das maissimples: a maioria delas seriam hoje chamadas de

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barracos. Na Europa e na China, era normal di-vidir a cama com alguém, onde, em geral, três ouquatro crianças se amontoavam. Às vezes, afamília inteira dormia sobre um mesmo colchãofeito em casa, cheio de palha colhida nas terrasaráveis e renovado a cada época de colheita. Ojunco, arrancado das beiras dos pântanos adja-centes, servia de forração a chãos de madeira oude terra. No inverno, a casa ficava extremamentefria, e a cama era bem mais aquecida. Oschineses, com grande sensatez, preferiam aquecera cama, partilhada por toda a família, a aquecer ocômodo inteiro, e milhões de famílias chinesasdormiam sobre uma caixa de tijolos retangularaquecida por um braseiro.

Nas cidades grandes, muitas pessoasvivendo juntas num único cômodo geravam cal-or. Mesmo se houvesse um fogo aceso nesse cô-modo nos períodos críticos do inverno, ele gerar-ia calor insuficiente, em parte, porque a lenhatinha de ser usada moderadamente. O com-bustível tinha de ser conseguido na floresta e

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transportado nos braços ou nos ombros ate acasa; e isso roubava horas do pequeno tempo re-servado ao lazer. Às vezes, não havia florestaspor perto e, assim, o combustível era escasso paraos mais pobres. Lenha barata no ano de 1500 eramais fundamental para as casas comuns do queóleo barato no ano 2000.

A chaminé das casas era uma pequenaabertura no telhado. A fumaça pairava dentro dacasa e fornecia calor, bem como ardência nos ol-hos. Mesmo sob a luz do dia, as casas geralmentenão tinham claridade suficiente, e os vãos dejanela consistiam não de vidraças, mas de folhasmaciças feitas de madeira que, ao serem abertas,deixavam entrar a luz e o frio. Na Europa dosanos de 1400, as janelas das casas, embora aindapequenas, tornaram-se mais comuns. A janela devidraças já era comum em Viena, em 1484.Duzentos anos depois, a Galeria dos Espelhos,em Versalhes, era talvez o interior mais impres-sionante de um prédio até aquela época e umaamostra fascinante do que o vidro podia realizar.

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Muitos camponeses que ouviam falar sobre esselugar tinham de se contentar em ficar só maravil-hados, pois, em seus vilarejos, não se via uma ún-ica janela com vidraças.

Na China, na Índia e na Europa, emqualquer lugar onde a população fosse numerosa,a pressão sobre as florestas era enorme. As in-dústrias de mineração de sal e de metais eram de-voradoras de florestas inteiras. Um trabalho emferro de grandes proporções poderia facilmenteusar 2 mil hectares de floresta em um ano. A es-cassez de madeira explica alguns eventos que sãofacilmente mal interpretados. Quando o aclamadofilme Amadeus retratou o enterro do compositorMozart, em Viena, em 1791, sem sequer umcaixão para colocar seus restos mortais, a plateiaimediatamente supôs que Mozart tivesse morridona miséria. Na verdade, três anos antes, o im-perador José II havia proibido os enterros emcaixões, em parte para incentivar a simplicidadeem lugar da extravagância e estimular o corpo a

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voltar para o solo. Mas um dos motivos import-antes era economizar no uso de madeira.

Quando a lenha se tornou escassa, substi-tutos engenhosos foram testados. A palha dacana-de-açúcar era queimada no Egito, o estercoseco de vaca era queimado na Índia, e as cascasde azeitonas amassadas eram queimadas em algu-mas das ilhas gregas. O carvão, como alternativapara a madeira, demorou a entrar na competição.No norte da China, onde as florestas haviamquase desaparecido em algumas regiões, o carvãoera usado até mesmo para cozinhar alimentos. Nonorte da Inglaterra e da França, por volta de1200, o carvão era extraído de minas, e o carvãoinglês era transportado em veleiros que cruzavamo canal até os Países Baixos, na cidade deBruges. Nos seis séculos seguintes, cada vezmais carvão era embarcado para Londres,fazendo dessa grande cidade talvez a primeira domundo a usar carvão em larga escala, fosse no fo-gão das cozinhas ou nas fábricas. Havia limites,em quase todos os lugares, sobre as cidades que

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cresciam além de um determinado tamanho. Umacidade não podia crescer muito porque não con-seguia assegurar em seus bairros os alimentos e alenha de que precisava. Uma cidade de, por ex-emplo, 30 mil habitantes precisava de 600 a milcarroças de lenha a cada semana. No mesmo es-paço de tempo, a cidade precisava de outras 200cargas de grãos. Como os cavalos ou boispuxavam as carroças, uma enorme área tinha deser reservada para fornecer capim ou feno paraesses animais. Uma cidade grande, fora do nor-mal, como a antiga Roma ou a atual Londres, po-dia ser sustentada somente com alimentos e com-bustíveis trazidos de longas distâncias, por marou por rio. A necessidade de gastar muito tempoe dedicar muita terra para produzir combustívelpara aquecimento e luz e as matérias-primas pararoupas de inverno era um eterno freio para opadrão de vida de boa parte da Europa. Ao con-trário, os povos tropicais, com seu padrão devida, facilmente mantiveram o mesmo ritmo quea Europa até o século 18, em parte, porque

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precisavam de poucas roupas e de pouco com-bustível para aquecimento. Eles precisavam demenos calorias para resistir ao frio do inverno.De fato, várias partes dos trópicos tiverambastante sorte e ate possuíam suprimento de óleobarato para lampiões. A Birmânia já produziaóleo há algumas gerações quando o líquido foidramaticamente descoberto na Pensilvânia, em1859, ao se perfurar um buraco no chão.

O fim de um antigo impasse

Por talvez quatro mil anos, o padrão devida da pessoa comum na Europa, na África e naÁsia tenha subido pouco, se é que chegou a subir.Houve anos de abundância e anos terríveis,pequenos aumentos e quedas no bem-estar mater-ial das pessoas e um aumento nos luxos disponí-veis aos ricos, mas, para os dois terços da popu-lação que viviam nos degraus mais baixos da es-cada econômica, a vida cotidiana era um

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sacrifício. Entre 1750 e 1850, porém, surgiramsinais de uma mudança drástica. A Inglaterra, emespecial, mostrou sinais de um salto para a frente.Sua população crescia rapidamente, mas o padrãode vida da maioria das famílias também estavacrescendo acima de suas bases humildes. Aprosperidade aumentava não por causa de umasequência de sorte de verões quentes e safrasfartas, mas por causa da aplicação da engenhosid-ade no trabalho diário em todas as suas formas,no mar e em terra, nas fazendas e nas fábricas.Quando os fazendeiros dominaram a arte de criarrebanhos e de manter a fertilidade do solo, aspequenas fazendas começaram a produzir maisalimentos do que nunca. E se o transporte foimelhorado pelos canais e estradas mais resist-entes e, mais tarde, pelas ferrovias e barcos a va-por, cada distrito ou cada país se especializou notipo de atividade econômica que melhor lhe cabiae começou a trocar seus produtos por outros. Emessência, se a engenhosidade fosse aplicada a to-dos os tipos de trabalhos diários, a produção de

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alimentos e de outros produtos se multiplicariamais rapidamente que o crescimento da popu-lação. Mais alimento, mais combustível, mais ab-rigo, mais roupas e lazer possivelmente estariammais disponíveis para cada família, pelo menosnas nações mais eficientes. Essa ação recíprocade eventos e tendências acabou remodelando osdois séculos seguintes. Rompeu com todas asformas tradicionais de vida, mas suas recompen-sas seriam enormes. Nos países mais favorecidos,o padrão de vida das pessoas que estavam nos de-graus mais baixos da escada de rendas se tornariaquase tão alto quanto o padrão tradicional anteri-or daqueles que viviam nos degraus mais altos.

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PARTE 3

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CAPÍTULO 24 - Aqueda das cartas dobaralho

Acontecimentos imprevisíveis ou a coin-cidência de acontecimentos importantes queocorrem paralelamente têm seu papel reservadona História. Durante as últimas décadas do século18, uma combinação imprevista de acontecimen-tos exerceu uma força especial sobre o surgi-mento dos Estados Unidos da América, dasnações da América do Sul, da África do Sul, doCanadá e da Austrália. Muitos desses aconteci-mentos giraram em torno do destino da França,cuja influência foi extremamente decisiva,quando estava perdendo ou quando estava gan-hando suas guerras. De todas as línguas europei-as, a língua francesa tinha os motivos mais fortespara reivindicar sua posição de língua inter-nacional quando esses acontecimentos estavam

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começando a se desdobrar, mas, quandochegaram ao final, as bases já estavam prontaspara que o inglês se tornasse a língua mundial doséculo 20.

Em 1750, o continente americano haviasido dividido em dois ou três mundos sobrepos-tos. Dezenas de tribos e micronações ainda seautogovernavam, principalmente nos extremosgelados do Norte, do Sul e nas pradarias daAmérica do Norte, mas sua influência sobre orestante do mundo era insignificante. Ao con-trário, muitas partes do continente sob influênciaeuropeia, que estava principalmente concentradana costa, estavam transbordando de vitalidade eum sentimento de que o futuro estaria totalmentea seu favor. A população dessas colônias estavacrescendo, sua riqueza aumentando rapidamente,e sua influência sobre a Europa Ocidental e ooeste a África se espalhava cada vez mais. Aindaassim, as colônias eram governadas por Paris,Londres, Lisboa e Madri, uma combinação que jápersistia há gerações, mas que poderia não durar

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para sempre. Em 1750, a soma do poder econ-ômico de todas as colônias europeias nasAméricas era, provavelmente, maior do que o decada nação da Europa. A questão intrigante nãoera se a América se tornaria independente, masde qual nação europeia ela permaneceria depend-ente. Em 1763, no término da Guerra dos SeteAnos entre a França e a Inglaterra, o controle doCanadá e da Nova Escócia passou da França paraos vitoriosos. No Leste, a metade mais europeiada América do Norte, a Inglaterra, tinha agoraum domínio que parecia propenso a crescer. Prat-icamente toda a extensão que ia da Baía de Hud-son, no Canadá, até o Golfo do México, estavasob o domínio dos ingleses. Além disso, a maiorparte dos colonos da América do Norte era a fa-vor de continuar sob controle britânico, principal-mente aqueles de Boston, Nova York e Fil-adélfia, muitos dos quais haviam lutado na re-cente guerra; não tinham nenhum desejo de ser-em governados pela França católica ou seu re-gime comercial.

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Uma vez que a guerra havia acabado, as re-lações entre a Inglaterra e seus colonos naAmérica do Norte perderam um pouco do antigofervor. O custo de participar na Guerra dos SeteAnos havia dobrado a dívida interna daInglaterra, mas os colonos americanos poucocontribuíram para sanar essa dívida. Uma dasprincipais fontes de receita para o governo eramas taxas colhidas sobre as importações, mas mui-tos importadores americanos tentavam se evadirdas taxas, preferindo contrabandear para os por-tos nacionais artigos como o melaço das Antil-has, o qual era destilado e transformado em rum.Esse mesmo rum era apenas um dos canais amer-icanos de evasão de impostos. Como resultado,os colonos norte-americanos pagavam, em mé-dia, um xelim em impostos, no início da décadade 1760, enquanto os britânicos pagavam, emmédia, 26 xelins. As tentativas de corrigir essasdistorções acabaram causando ressentimento eira.

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Os Estados Unidos que ninguémesperava

Muitas das colônias americanas já dispun-ham de parlamentos através dos quais podiam darvazão a seus agravos. Os parlamentos, por suaprópria natureza, davam um indício enfático deque essas colônias, se necessário, podiam se gov-ernar completamente livres do controle britânico.As 13 colônias britânicas localizadas numa dasextremidades do território, agora chamado deEstados Unidos, geriam seu próprio parlamento.Rhode Island e Connecticut tinham o direito deeleger seu governador, representando um grandecontraste em relação à maioria das colônias, quese submetiam a um governador enviado pelaInglaterra. Os americanos já tinham uma estru-tura de independência; não concordavam, no ent-anto, se deveriam buscar essa independência,pois os legalistas eram dominantes no Canadá.Mesmo nas 13 colônias do sul, os que permane-ciam leais à Inglaterra eram inicialmente mais

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numerosos do que os que defendiam a rebelião.Os colonos tinham descendência ou naturalidadepredominantemente britânica, exceção feita aosalemães da Pensilvânia e àquele um sexto dapopulação que consistia de escravos negros, quenão tinham voz política.

A Inglaterra e as 13 colônias se afastaram.Em 1775, colonos armados começaram a lutarcontra as guarnições britânicas. O líder rebeldeera George Washington, um proprietário deplantações de naturalidade americana que havialutado contra os franceses como miliciano. Nosprimeiros 12 meses, suas forças tiveram sucessoem alguns lugares; ao tomarem Montreal, foramenfraquecidos por um surto de varíola e fracas-saram tremendamente em expulsar as tropasbritânicas do Canadá. Mas Washington expulsouos britânicos do porto de Boston, mostrando, as-sim, uma perspectiva enorme de sucesso militarque começou a ganhar apoio substancial e secretoda França e da Espanha, que eram velhos inimi-gos da Inglaterra e estavam ansiosos em retaliar,

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agindo em segredo. Sem essa ajuda, a rebeliãoamericana teria sido derrotada como resultado fi-nal. Se a guerra tinha de ser vencida, a força damarinha era de extrema importância. A marinhaeuropeia que controlava o Atlântico podia enviarseus próprios reforços à América do Norte ouevitar que seu adversário mandasse buscar ajuda.A Inglaterra era a principal potência naval, mas,após 1778, sua superioridade foi reduzida pela in-terferência da marinha francesa e pela inimizadedeclarada da Holanda e da Espanha. A guerracontinuou se arrastando, tornando-se outra guerrade sete anos. Em novembro de 1782, a Inglaterraaceitou a paz em vez de continuar uma guerra tãodispendiosa.

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A maior parte do atual território dos Esta-dos Unidos ainda estava nas mãos das potênciascolonizadoras. Se essas fronteiras tivessem per-sistido, os Estados Unidos, com sua imensa áreade recursos e sua habilidade de atrair imigrantes,poderiam, ainda assim, ter um dia se tornado umapotência mundial importante, mas nunca teriamtido a esperança de se tornar uma das potênciassoberanas. Confinada ao lado leste do Rio Mis-sissipi, sua população teria, por muito tempo,permanecido em local inadequado. Ao ver osacontecimentos em retrospectiva, eles parecemperfeitos e previsíveis, mas, olhando adiante, sãotemperados de imprevistos. Com a ajuda dosfranceses, a vitória das colônias rebeldes americ-anas teve fortes repercussões na França; muitasdívidas foram contraídas e, com isso, o rei se viuobrigado a aumentar impostos para lutar naguerra. Mas os acontecimentos do outro lado doAtlântico haviam mostrado que mesmo o mon-arca mais poderoso tornava-se vulnerável se aspessoas, ao exigirem liberdade, o enfrentassem.

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A explosão, em 1789, de uma revolução popularna França, resultado de um remoinho de grandese pequenas causas, foi fortemente impelida pelarevolta dos Estados Unidos e pelos princípiosenunciados nessa revolta. Explodindo em Versal-hes e em Paris em maio de 1789, a RevoluçãoFrancesa inicialmente parecia ser uma declaraçãode esperança e, não, um prelúdio ao tumulto; emjulho, porém, uma multidão já corria solta emParis. No mês seguinte, a assembleia francesaemitiu uma declaração dos "direitos do homem".Tais declarações, que vieram a ser quase que umacontecimento mensal durante alguns anos nofim do século 20, eram uma raridade, bem comoum ato de traição, no século 18. Três meses aposa declaração, as propriedades extensivas da IgrejaCatólica na França foram nacionalizadas, e mui-tos sacerdotes e monarquistas começaram asabiamente fugir do reino. Em 1791, o rei daFrança já era prisioneiro em sua própria terra;ainda assim, o colapso do velho regime na Françainicialmente agradou ou deleitou muitos liberais.

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Em Londres, em fevereiro de 1790, onde atradição democrática há muito era mais vigorosaque na França, a Câmara dos Comuns ainda de-batia se os acontecimentos tumultuosos na Françadeveriam ser bem acolhidos ou temidos.

Enquanto isso, a França estava em guerracom as principais monarquias europeias. Comgrande fervor, proclamou ter o dever de imporsua própria revolução popular secular sobre todasas terras que havia conquistado. Originalmentevoltada para o povo francês, a revolução agorarecebia o carimbo de "produto de exportação".Mas o comando da revolução, e daí suamensagem, estava lentamente passando das mãosde políticos radicais para as mãos de um soldadomais jovem, Napoleão, que havia gostado de suaprimeira célebre vitória em Toulon, em 1793,quando tinha ainda cerca de 25 anos. Provou serum brilhante general, que afirmava que quasenada era impossível e, por cerca de duas décadas,sua palavra foi cumprida. Em 1799, tornou-se ochefe do governo ou primeiro-cônsul da França;

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em 1804, tornou-se imperador e, em Paris, foiformalmente coroado pelo papa Pio VII. Os Esta-dos Unidos, ainda jovens, ficaram de fora dasguerras revolucionárias da França, recusando-se,assim, a continuar uma aliança com a nação queos tinha provavelmente salvo de uma derrota mil-itar no final da década de 1770. Daí em diante,foi lançada sua longa tradição de isolamentoauto-imposto em relação aos acontecimentos naEuropa. Mais uma vez, as brigas na Europa de-ram oportunidade para que os Estados Unidos seexpandissem. Napoleão tinha retomado daEspanha, que se encontrava muito frágil paradizer não, a Louisiana e o lado oeste do Missis-sipi. Conhecida simplesmente como a Compra daLouisiana, ela assegurou aos Estados Unidos, atrês centavos de dólar o acre, a propriedade domaior sistema de rios da América do Norte e umaimensa área que ia desde o Canadá até o Golfo doMéxico. Essa transação abrangia o território hojeocupado por um quarto de todos os estados dosEUA.

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Se essa extensão de terreno, bem maior quequalquer nação europeia, exceto a Rússia, tivessepermanecido nas mãos dos franceses, ou setivesse passado às mãos de um grupo de colonosliderados pelos franceses, poderiam ter existidoduas Américas rivais, mas independentes, umamostrando a bandeira de estrelas e listras na costaleste, e a outra mostrando uma versão dabandeira tricolor da França no interior. É impos-sível dizer se os Estados Unidos teriam con-seguido anexar o Texas e a Califórnia posterior-mente, caso as barreiras francesas em terrativessem continuado a interferir. É mais provávelque tivessem continuado a ser uma nação detamanho médio com todos os seus portos volta-dos para o Oceano Atlântico.

O que Napoleão vendeu em 1803 foramterras pertencentes a muitas tribos e naçõesnativas da América. Originalmente, era a in-tenção dos britânicos, e talvez dos governantesfranceses, que essas tribos e nações ficassem coma maior parte de suas terras a oeste. Em 1763, os

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ingleses, ainda em controle de boa parte daAmérica do Norte, tentaram traçar no mapa umalinha de proclamação, que não poderia ser ultra-passada pelos colonizadores brancos. Aos amer-icanos foi permitido ficar com as terras a oesteou, na verdade, o imenso interior, ainda que nãopor muito tempo.

Em breve, a linha reapareceu mais paraoeste, como em um truque de invisibilidade.Após os Estados Unidos terem se tornado umajovem nação, a linha de divisão oficial entre osamericanos nativos e os europeus buscou o pôr-do-sol. Os direitos dos povos nativos foram em-purrados em direção ao oeste ou simplesmenteignorados. Se tivessem sido um povo unido, po-deriam ter tido sucesso em frear a expansão. Masnunca tinham sido unidos e, na verdade, os col-onizadores europeus há muito desestimulavam aunião. Boa parte da história do mundo foimoldada pela desunião.

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Os Estados Unidos, ao ganharem a inde-pendência, estabeleceram um precedente que foimais contagiante do que poderia ter sido previsto.Uma das colônias de açúcar nas Antilhas foi aprimeira a seguir o caminho da jovem nação dosEstados Unidos. Santo Domingo, uma ilha com-prida montanhosa, era ocupada pelos espanhóis, aleste, e pelos franceses, a oeste, onde a colôniaera chamada de Saint-Domingue. A revoluçãofrancesa temporariamente enfraqueceu o controleda França sobre sua colônia. Da mesma forma,em 1791, a mensagem dos revolucionários quedizia que todas as pessoas eram iguais foi apro-veitada sem hesitação pelos habitantes da colôniafrancesa, que decididamente não eram iguais: deum lado, os escravos africanos das plantações deaçúcar de propriedade dos franceses e, de outro,os mulatos, que não eram escravos nem cidadãos.Numa insurreição repentina, eles tomaram o con-trole; em 1803, um homem negro se proclamouimperador dessa nova nação do Haiti. Agora, as

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Américas contavam com duas nações independ-entes: os Estados Unidos e o Haiti.

Os acontecimentos turbulentos na Europaabriram caminho para mais nações independ-entes. Quando, em 1808, Napoleão invadiu aEspanha, as colônias espanholas do outro lado doAtlântico tiveram sua chance de ficar do lado daEspanha ou de conquistarem a liberdade. Em1810, desde a parte espanhola do México até osportos das colônias espanholas próximos aosAndes, houve guerras civis ou guerras de liber-tação, batalhas no mar e em terra, execuções deamotinados e inúmeras represálias. Em 1821, oatual mapa da América Central e do Sul haviapraticamente tomado forma, com um Méxicolivre, um novo conjunto de repúblicas centro-americanas, um Peru livre, um Chile livre, umParaguai livre, junto com uma República do Rioda Prata, que, mais tarde, foi dividida em Argen-tina e Uruguai. Um ano depois, o Brasil rompeutotalmente com Portugal e se tornou uma monar-quia. Três anos depois, a Bolívia se formou,

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tomando seu nome de Simão Bolívar, seu liberta-dor. Os espanhóis se retiraram também daAmérica do Norte, cedendo a Flórida para osEstados Unidos.

Embora, em 1775, as nações de nave-gadores da Europa Ocidental tivessem reivindic-ado as Américas, desde a gelada tundra do norteaté a extremidade rochosa da América do Sul, to-das elas praticamente se retiraram nos cinquentaanos seguintes. As brigas e rachas solaparam seusimpérios, e a maioria de suas colônias havia setornado independente. Em 1830, as Américaspraticamente se constituíam de países independ-entes. Ao norte, as principais exceções eram aparte inglesa do Canadá e o Alasca, pertencente àRússia, onde os russos negociavam peles de ani-mais, seus missionários ortodoxos conduziamsuas missões e o esporádico navio de bandeirarussa chegava trazendo novidades ultrapassadasde São Petersburgo. O Alasca foi comprado pelosEstados Unidos em 1867.

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Ao sul do Golfo do México, em 1830, omovimento pela independência estava quasecompleto. Dificilmente uma bandeira europeiaera vista, exceto nos mastros dos navios visit-antes. Somente no Caribe é que as potênciaseuropeias permaneciam soberanas. A Inglaterraainda ocupava a Jamaica e boa parte das Antil-has. A França ocupava a Martinica e outras ilhas.Os dinamarqueses ocupavam parte das Ilhas Vir-gens e a Espanha se garantiu com Cuba, a maisrica de todas as ilhas. Nunca, na história dasnações, uma área tão grande se reorganizara comtamanha rapidez e, mesmo assim, as línguas, areligião e muitas das instituições sociais e polític-as dos conquistadores praticamente permane-ceram em seu lugar. Até mesmo a escravidãopermaneceu intacta. Nessa sequência de aconteci-mentos, que, olhando em retrospectiva,encaixam-se perfeitamente como as cartas de umbaralho - porém, são na verdade imprevisíveis -,as Américas não foram o único continenteafetado. A sequência contínua de acontecimentos

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nas Américas teve repercussões na Austrália, naÁfrica do Sul e em outras terras mais.

Além do Cabo da Boa Esperança

A perda de muitas de suas colônias americ-anas serviu para a Inglaterra voltar sua atençãopara longe do Oceano Atlântico, em direção aosoceanos Índico e Pacífico. A guerra contra aFrança, que começou em 1792 e continuou inter-mitentemente por quase um quarto de século, deua Inglaterra oportunidades de apoderar-se decolônias francesas e algumas possessões holan-desas, pois a Holanda havia se tornado um satél-ite da França. No grande arco marítimo que se es-tendia desde o Cabo da Boa Esperança até oCabo Horn, a Inglaterra não havia sido a potênciadormente. Embora a principal possessão daInglaterra naqueles mares, em 1780, tenha sidouma simples base em várias partes da Índia,tornou-se, incomparavelmente, a potência

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colonial dominante dessa imensa parte do globonos 50 anos seguintes. Controlava o import-antíssimo porto da Cidade do Cabo e a costa daÁfrica do Sul, as ilhas estratégicas de Maurício eo Ceilão (Sri Lanka), a maior parte da Índia,partes da Península da Malásia e toda a Austrália,com um possível ou real controle da Nova Zelân-dia, muitas outras ilhas do Pacífico e boa parte dacosta do oceano onde hoje se encontra o Canadá.

A Inglaterra passou a ser mais forte nosoceanos Índico e Pacífico do que jamais haviasido na América. Governava agora uma popu-lação bem superior a que havia governado naAmérica. Quase totalmente derrotada em outrocontinente, havia se voltado para novos oceanos erapidamente erguido o maior império que omundo havia visto. Uma das mudanças impul-sionadas por esses acontecimentos foi a ascensãodo inglês até se tornar, na segunda metade doséculo 20, a primeira língua que podia ser cha-mada de mundial. Em 1763, fora das IlhasBritânicas, somente três milhões de pessoas

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falavam inglês como primeira ou segunda língua,e praticamente todos viviam na América doNorte. Nada poderia ter ajudado mais o inglês ase tornar uma língua global, a longo prazo, doque a consolidação de um território imenso nasmãos dos Estados Unidos e a aquisição pelaInglaterra de tantas colônias espalhadas pelosoceanos Índico e Pacífico. Se os Estados Unidostivessem se restringido a uma pequena área,atendo-se somente à costa do Atlântico, e se amaior parte da Índia nunca tivesse estado sobcontrole inglês, a perspectiva de o inglês se torn-ar uma língua mundial teria sido mínima. Aqueda de uma carta do baralho às vezes deixacair outra carta. A Inglaterra não planejou es-tabelecer um povoamento na parte leste do con-tinente australiano, que havia sido descobertopelo Capitão Cook. O plano foi forçado pela re-belião das colônias americanas. A Inglaterra jávinha enviando muitos de seus condenados paraseus portos ao sul, onde, na verdade, seus ser-viços tinham sido leiloados a proprietários de

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escravos, e eles haviam sido usados como super-visores. O rompimento final com os americanosforçou a Inglaterra a olhar para outros lugarespara onde os condenados pudessem ser enviadose ser úteis. "Ser útil" eram as palavras-chave,pois a Inglaterra dominava um império mercantile tentava usar a mão-de-obra no interesse de seusproprietários de navios e mercadores. Final-mente, baseado nos relatórios trazidos para casapelo Endeavour de Cook, o governo britânicoescolheu a Baía de Botany, às margens arenosasda atual pista de decolagem do aeroporto deSydney. Esperava-se que, na Baía de Botany, oscondenados, em breve, estivessem cultivando to-dos os alimentos de que precisassem. Perto desselocal, havia um bônus: na desabitada Ilha de Nor-folk, a nordeste de Sydney, crescia um tipo depinheiro único e bem alto, do qual parecia serpossível tirar mastros de primeira linha para asesquadras inglesas, e uma espécie superior daplanta do linho que, esperava-se, produziria panopara as velas e corda para os navios da marinha

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inglesa. Uma esquadra inglesa que transportavacondenados e marinheiros chegou à Baía deBotany em janeiro de 1788. Em pouco tempo,descobriram, naquele mês de grande calor, que apaisagem não era a utopia verde que havia sidovista naquele abril de clima fresco, aproximada-mente dezoito anos antes, por Cook e Banks.Abandonando a Baía de Botany e retomando suaviagem por algumas horas ao longo da costa, os11 navios se dispersaram pelas passagens dospenhascos perpendiculares e entraram no ensol-arado Porto de Sydney, no qual, conforme obser-vou o comandante, havia espaço para mil naviosse reunirem com segurança. No Porto de Sydney,a nova colônia fez todos os esforços possíveispara cultivar alimentos em quantidade suficiente.Somente quando os colonos atravessaram o es-treito espinhaço costeiro chamado de MontanhasAzuis e começaram a dispersar enormes rebanhosde ovelhas nas imensas planícies quentes do in-terior, a Austrália surgiu como lugar de importân-cia aos olhos do mundo. Uma geração mais tarde,

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dezenas de milhões de pessoas, enfrentando osinvernos gelados do extremo Hemisfério Norte,já se vestiam com roupas ou dormiam embaixode cobertores feitos com a lã australiana. Osaborígines, que silenciosamente observavam osnavios ingleses amarrados às árvores no litoral eassistiam à construção de cabanas e armazéns, àfervura de água em vasilhas, ao barulhento tirode armas, ao rápido acendimento de fogueiras e àderrubada de árvores com machados de ferro -considerando-se que eles desconheciam todos osmetais -, nada mais podiam fazer senãomaravilhar-se com tudo. Provavelmente, foi oconjunto mais estranho de encontros nos registrosda história do mundo, pois as formas de vidadesses novos e antigos povos eram muito maisdistantes entre si do que quando os espanhóisconfrontaram-se com os astecas, quando osholandeses se estabeleceram nos portos da Cid-ade do Cabo e de Jacarta, e mesmo quando osnavegadores franceses e ingleses se viram cara a

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cara com os polinésios, que há muito viviam nasilhas do Taiti e da Nova Zelândia.

Ao contrário, os povos da Austrália aindaestavam isolados de quase todas as mudançasradicais que haviam acontecido na maior parte domundo durante os últimos 10 mil anos. A lacunaexistente entre os recém-chegados e os nativosera quase um abismo. Os talentos dos aborígines,tão diferentes dos europeus, raramente podiamser compreendidos ou apreciados pelos recém-chegados; não havia como pudessem inicial-mente entender que a maioria dos aborígines con-hecia várias línguas e vários dialetos, tinha umenorme conhecimento da botânica e da zoologiade cada região, habilidades sutis e simples emcaça e pesca, e uma dieta que oferecia mais var-iedade do que a disponível à maioria do povoeuropeu. Não podiam entender que os aborígines,em seus casamentos, sua dieta, seus rituais e seusconceitos de propriedade e terras, obedeciam aum conjunto de regras há muito tempo estabele-cidas que, embora difíceis de compreender, de

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certo modo eram tão sofisticadas quanto osrituais que norteavam as aristocracias de Esto-colmo e de Varsóvia. Tampouco podiam osaborígines entender a forma de vida dos ingleses,suas leis e instituições, religião, maneiras e trajes,métodos de agricultura e de manufatura, os atosda leitura e da escrita, o armazenamento de ali-mentos em barris, sacas e depósitos. Não con-seguiam enxergar a profundidade do conheci-mento científico da civilização que os recém-chegados, muitos deles incivilizados, haviamdeixado para trás. A tecnologia dos estranhos,fossem grandes navios, armas de fogo ou reló-gios, era desnorteante. Os animais domesticadoseram completamente novos para os aborígines,que, às vezes, davam por certo que as ovelhas e ogado deveriam ser as esposas que viajavam comos homens brancos.

Os aborígines da Austrália não defenderamseu território com eficácia. Comparados com osneozelandeses, eles viviam em grupos menospopulosos, não eram tão bem organizados, não

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construíam fortes e não se uniam facilmente agrupos vizinhos com a intenção de resistir a umataque. Uma década após outra, essa procissãoinexplicável de rostos brancos e novos animaismovia-se cada vez mais rumo ao interior do con-tinente, esparsamente povoado. Em mil lugaresisolados, ouviram-se tiros e viram-se lanças ar-remessadas. Pior ainda, a varíola, o sarampo, agripe e outras doenças novas varriam todos osacampamentos aborígines, assim como haviampercorrido toda a América quando os primeirosespanhóis lá chegaram, aproximadamente trêsséculos antes. O principal conquistador dosaborígines veio a ser a doença, e o seu aliado, adesmoralização. Para essa tragédia, os cientistas,na primeira fase da ciência, não tinham resposta.

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CAPÍTULO 25 - Alémdo Saara

Durante séculos, a maior parte da Áfricaesteve praticamente além do alcance dos povos eimpérios da Europa. Talvez fosse mais acessívelna época dos romanos do que mais tarde. Na ver-dade, foram os romanos que, possivelmente, col-onizaram a África com mais sucesso do quequalquer outra potência europeia antes de 1900,— embora tivessem colonizado somente as mar-gens mais ao norte. Até que ponto o Saara erauma barreira que impedia o movimento de povose até que ponto era uma miragem? Muitas evid-ências sugerem que o deserto era uma barreiratão formidável que, até nos tempos modernos,impedia que os impérios europeus e asiáticos en-trassem na maior parte do continente. De fato, ocoração da África provou ser menos acessível avárias gerações de europeus do que o coração da

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Ásia, que ficava bem mais distante da Europa.Além do mais, o continente era muito grandepara que qualquer país a seu redor conseguissecontrolá-lo completamente.

O enigma do deserto

Esse deserto, o maior do mundo, cobria umquarto de todo o território da África. Consistindode extensões de pedra e areia, era enorme o sufi-ciente para cobrir a parte continental dos EUA.Talvez devesse ser comparado mais propriamentecom o mar do que com a terra, um mar seco noqual as pessoas se aventuravam, às vezes per-dendo suas vidas enquanto viajavam entre os dis-tantes portos do deserto. Como o mar, ele escon-dia piratas que arrebatavam os comerciantes, eera varrido por tempestades. Com muita sensatez,era costume do povo tuaregue usar véus de panosobre a boca para se proteger da areia cortanteque vinha com os ventos.

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Em alguns lugares, surgindo no meio dodeserto, havia montanhas rochosas que recebiamchuva. Normalmente, a chuva caía com algumasfortes pancadas estrondosas, sendo rapidamenteevaporada pelo sol e pelo calor do chão. Odeserto sofria mudanças e, através dos milênios,encolhia-se e expandia-se, conforme o clima mu-dasse um pouco, ou conforme as cabras e o gadoprovocassem erosão nas zonas de seu entorno,formadas por mato e arbustos espinhosos. Odeserto estava longe de ser uma barreira com-pleta; caravanas de camelos riscavam seu mapapara todos os lados. Século após século, comerci-antes islâmicos atravessavam-no e ganhavamuma enorme quantidade de convertidos. Os po-tentados da região oeste da África cruzavam-noe, em 1324, o imperador do Mali chegou aoCairo onde, por muito tempo, foi lembrado peloouro que borrifava, como se fosse confete, sobreaqueles que o agradavam. Os mercadoreseuropeus cruzavam o deserto mais frequente-mente do que se imagina. Em 1470, na época do

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Renascimento, foram observados alguns mer-cadores de Florença comercializando na cidadeafricana de Timbuktu, do outro lado do deserto.Mas a pele branca era raramente vista nas ricascidades muradas e irrigadas do entorno do Saara.Com suas tamareiras balançando ao vento, visí-veis ao viajante que se aproximava, a cidadetropical de Timbuktu, por muito tempo, transmi-tiu uma aura de mistério aos ouvidos de europeusque escutavam seu nome. A cidade era um de-pósito no interior que servia a terça parte daÁfrica situada ao norte; um depósito para as cara-vanas que cruzavam o Saara, para as cargastransportadas nas cabeças dos carregadores ou nolombo de burros e bois do Sudão, e também umterminal para as cargas esporádicas vindas do sulda Europa. Podia-se chegar a esse lugar, porémcom menos frequência, vindo da costa mais próx-ima, no oeste da África, em vez da costa doMediterrâneo e da cidade de Marrakesh, no in-terior do Marrocos. No fim do século 16, Mar-rakesh acolhia mulas e camelos carregados com

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ouro vindo de Timbuktu, junto com cargas es-porádicas de escravos. Uma dessas cargas con-signadas chamou muito a atenção por ser nadamenos que 15 virgens. As mercadorias que cruza-vam o deserto e sua caríssima rota de comércioeram aquelas que, como o ouro, o marfim e asmulheres bonitas, exigiam um alto valor porquilo. Exatamente como o deserto da África erauma barreira de proteção contra forasteiros, as-sim também eram seus rios; a maior parte era in-terrompida por quedas d'água, cachoeiras e catar-atas. Nenhum navio conseguia navegar rio acimaou abaixo de seus trechos turbulentos e es-pumantes encontrados em quase todos os rios demaior importância. O Zaire e o Congo tinhamsuas cachoeiras. A vazão do majestoso Zambezeera interrompida pelas Cataratas de Vitória. Ahistória da Europa teria sido diferente se o Danú-bio, o Reno, o Ródano e o Elba também fosseminterrompidos por quedas-d'água. Rios navegá-veis promovem o comércio e a troca de idéias,mas a África possuía somente um rio longo e

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navegável, o Nilo. É possível que o sucesso doEgito como criador de civilizações deva muito aopapel do vale desse rio, como estrada e fonte dealimentos, e ao fato de que esse mesmo rio de-saguava em um mar, não muito longe do centrode outras civilizações primitivas. Se o Nilo de-saguasse no oceano do lado ocidental da África,sua influência não teria sido tão grande assim.

Ao sul do Saara, na imensidão da Áfricatropical, não havia outro rio que se igualasse aoNilo. Além disso, a África, como um todo, nãoera atrativa nesses golfos e baías profundas, nosbraços de mar que permitiam que navios ougaleras penetrassem a uma distância considerávelaté o interior. Enquanto mais de 33% do territórioeuropeu era formado por penínsulas e ilhas,somente 2% da África era assim formada. Eramdesvantagens consideráveis para a África, àsquais deve-se acrescentar a imensa área deselvas. Nas florestas úmidas da África tropical, amosca tsé-tsé, sugadora de sangue, não maior queuma mosca caseira, era um perigo para todos os

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animais de carga, infeccionando seu sangue eenfraquecendo-os com a doença do sono. Emaproximadamente um quarto da área da África,essa infecção matava todos os animais domestic-ados, exceto as aves. A malária, a doença do sonoe outras doenças tropicais ajudaram a construiruma muralha em torno da África tropical, dis-persando ou matando os forasteiros e os própriosafricanos. A doença do sono, principalmente, ob-struiu o desenvolvimento econômico. A falta deanimais de fazenda numa área tão grande assimnão só privava os africanos de proteínas em suadieta, mas também lhes roubava os animais decarga e, assim, eles mesmos tinham de fazer opapel desses animais, como carregadores ecavalos. A ausência de animais domesticados sig-nificava que o adubo era escasso e, assim, asplantações não contavam com esse fertilizantedisponível em outras partes da África onde, porser a tsé-tsé desconhecida, os rebanhos de gadoexistiam em abundância. Outros obstáculos limit-aram os contatos externos tão úteis com o

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coração da África durante os últimos cincomilênios. Talvez a África não tivesse a diversid-ade botânica da Ásia. Se as partes central e sul daÁfrica tivessem sido as primeiras do mundo aproduzir café, chá, pimenta, noz-moscada, seda,tinturas e uma variedade de outros produtos quemexiam com o paladar e despertavam o consumodos povos ao longo das margens do Mediter-râneo, as barreiras geográficas dentro da Áfricanão teriam sido tão significativas. As barreirasnão são um impedimento quando algo valioso es-pera do outro lado. Durante muitos séculos, foi aÁsia, tanto quanto a Europa, que influenciou aÁfrica. O Oceano Índico era a principal porta deentrada no leste da África, e os navios e as em-barcações que vinham da Pérsia, Índia, Arábia e,até mesmo, do arquipélago da Indonésia, geral-mente entravam em seus excelentes portos. Essesjá eram movimentados numa época em que nen-hum europeu ainda era visto por lá. Na Ilha deZanzibar, os persas já estavam estabelecidos portalvez 500 anos ou mais antes de os primeiros

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portugueses passarem pela região em seusnavios.

Os lugares situados próximos das vias decruzamento do mundo têm vantagens. São estim-ulados por novas idéias, bem como esmagadospor novos exércitos. A África, fora sua costa doMediterrâneo e faixas de suas costas ocidental eoriental, era muito distante para ser estimulada.

O tráfico de escravos

A África, durante muito tempo, exportouuma mercadoria polêmica que tinha alta demandaem quase todos os lugares: os escravos.

Deve-se imediatamente ressaltar que a es-cravidão foi de extrema importância em váriosoutros países e tribos. A China antiga possuíamilhões de escravos, e essa prática de venderpessoas para elas se tornarem escravas só foiproibida em 1908. Os indianos possuíam

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escravos antes e depois de Cristo. Muitas tribos ealguns estados da América, muito antes dachegada de Colombo, possuíam escravos e semi-escravos. O regime de servidão na Europa, quesobreviveu na Rússia até exatamente a mesmadécada em que a escravidão chegou ao fim nosEstados Unidos, era uma versão da escravidão.Os escravos eram uma visão comum nas cidades-Estado gregas. Em terras governadas por Roma,eles eram vistos aos milhares, espalhados pelaspropriedades rurais. Cada escravo era, na ver-dade, uma picareta, um machado ou uma pá amais, um par de mãos a mais na época da col-heita, nas equipes de construção e de reparos dasestradas ou na cozinha das casas. Desde queproduzissem mais do que comiam, eram um im-portante patrimônio. Em muitas partes de mundo,era quase uma regra nos conflitos de guerra queos prisioneiros fossem mortos ou escravizados.Como as guerras eram frequentes, o total de nov-os escravos a cada século era alto, mas ser

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escravo era preferível à alternativa de se tornarum cadáver.

Em seu início, o cristianismo, assim comoo judaísmo e o islamismo, entendia que a es-cravidão era uma instituição antiga e útil, na qualnão se devia mexer. De acordo com a visão cultae compassiva do século 21, não se pode entendercomo a escravidão pôde, por tanto tempo, seraceita sem questionamentos, mas, por outro lado,o novo século herdou as idéias de igualdade edignidade humanas, que eram raras em séculosanteriores. Além disso, hoje, os países prósperosnão têm necessidade econômica de terem escra-vos. Graças à tecnologia, eles possuem um ex-cedente, em vez de uma escassez, de força brutanão qualificada. Indo um pouco mais além, elescontam com um novo e incansável escravo con-hecido como combustível fóssil, que não era con-hecido das civilizações antigas.

Muito antes de os navios europeuscomeçarem a levar escravos da África, os

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africanos mesmos eram atarefados comerciantesde escravos. Desde 1500, provavelmente foramvendidos mais escravos africanos às terras islâm-icas do que às terras cristãs, e os muçulmanos fo-ram seus principais comerciantes na África.Presume-se ainda que havia na África um comér-cio ativo desse tipo, bem antes de o islã chegar.Na África, muitas pessoas eram escravizadaspelos próprios parentes. Pais, às vezes, vendiamseus próprios filhos para a escravidão; irmãosvendiam irmãos. Talvez metade dos escravos queterminaram seus dias em terras ou regiões es-trangeiras tenham sido escravizados pelo grupoou sociedade africana da qual faziam parte. Osescravos eram geralmente devedores, criminosos,desajustados, rebeldes e, principalmente, pri-sioneiros de guerra. No século 16, a maioria dosescravos exportados da parte ocidental da Áfricaera de mulheres, e elas eram vendidas para terrasislâmicas. Um século depois, a maioria deles erade homens, e eles eram despachados em naviosde bandeira europeia para as colônias cristãs na

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América. Os portugueses foram os pioneiros docomércio de escravos para as Américas – eles jáos usavam em suas próprias plantações de açúcar,nas Ilhas de Cabo Verde e da Madeira -, e osbritânicos e outras nações de navegadores logo sejuntaram a esse comércio insensível, mas alta-mente lucrativo. Uma longa faixa da costa oesteda África, indo desde o Rio Senegal atéCamarões, fornecia a maioria dos escravos e, nosanos mais movimentados do século 18, eles eramenviados de navio pelo Atlântico, na proporçãode 100 mil por ano. Levados a trabalhar emplantações de açúcar, tabaco e algodão espalha-das desde a foz do Amazonas até a Jamaica e aVirgínia, eles nunca mais viram a terra natal. Amaior parte do açúcar consumido na Europa eracultivada por escravos africanos trabalhando noexílio.

A viagem em pequenos navios cruzando aságuas equatoriais, partindo da parte ocidental daÁfrica, deve ter sido extremamente penosa. Amaioria dos escravos ficava amontoada no porão,

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na escuridão e no calor, geralmente acorrentada.Seu suprimento de água potável era mínimo, eeles nunca tinham estado no mar. Para a tripu-lação europeia, a viagem também era arriscada, emuitos morriam de doenças tropicais. Geraçõesde afro-americanos nasceram na escravidão, maspoucas rotas de fuga lhes foram abertas. Uma cri-ança nascida de mãe negra e pai branco - geral-mente o proprietário ou supervisor - era pratica-mente livre. Outra escapatória era simplesmentefugir. Muitos escravos corriam com medo dochicote que estava por vir ou como resultadodesse mesmo chicote que já havia deixado suamarca. Às vezes, eram perseguidos por cães;muitos dos que acabavam escapando para umafloresta ou pântano vizinho voluntariamente re-tornavam à escravidão, a seu suprimento segurode alimentos e abrigo, e à fé religiosa e consol-adora de seus companheiros escravos. A es-cravidão era uma loteria em seu ritmo de tra-balho, seus castigos e suas recompensas. Muitodependia da personalidade do proprietário, de sua

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mulher e de seu supervisor, que era geralmentenegro também, e das atitudes do governo sob cu-jas leis o escravo trabalhasse. É praticamentecerto que os Estados Unidos foram superiores aoBrasil e outras terras em seu tratamento com osescravos. Alguns observadores da escravidãoamericana concordam que, em uma típicaplantação de algodão ou arroz, os barracos dosescravos eram pelo menos tão confortáveisquanto os das pessoas mais pobres da Escócia eda Sicília; mas, fora dos barracos, não havialiberdade. Os portos dos Estados Unidos rece-beram no total, até 1820, um pouco mais de es-cravos africanos do que de imigrantes europeuslivres, mas os europeus, com a vantagem de umataxa de mortalidade menor e uma taxa de natalid-ade maior, formaram a grande maioria da popu-lação americana. Após a década de 1820, aimigração africana acabou diminuindo, pois opróprio conceito e legitimidade da escravidão es-tavam sendo ameaçados. Parecia que a África es-tava quase fadada ao azar; parecia estar separada

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das partes pulsantes do mundo. Sua particularid-ade geográfica nas vendas, no século 16, era deque podia fornecer milhões de escravos, acli-matados ao trabalho sob o calor tropical evivendo a uma pequena distância por mar dasplantações em desenvolvimento nas Américas.Mas, então, o comércio de escravos começou aentrar em perigo.

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CAPÍTULO 26 - Nobrevapor

Em 1801, o Annual Register, um popularlivro de crônicas sobre os acontecimentos do ano,declarou que o século que findava havia sidonotável. A ciência e a tecnologia, mais do que emqualquer outro século anterior, haviam dado umgrande salto adiante. Embora a Europa estivessefrequentemente em guerra consigo mesma, estavaocupadíssima espalhando ciência, religião e civil-ização às florestas e desfiladeiros mais afastados.Nunca antes se haviam explorado "as regiõesmais desconhecidas e remotas do globo". A sedepor conhecimento, afirmava o livro, havia su-plantado a sede por ouro e conquistas. Nunca ocomércio a longa distância havia crescido tanto.Nas vias marítimas conhecidas, os navios veleir-os se movimentavam com muito mais rapidez do

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que antes; até a longa viagem da Europa à Índiajá não era temida como uma provação.

O mundo havia encolhido, mas, mesmo as-sim, os ricos não viajavam muito longe à procurade conhecimento ou prazer. Uma rainha rara-mente viajava para além dos limites de seu reino.Pouquíssimos missionários europeus atraves-savam os mares para trabalhar em terras estran-has. No leste da Ásia, alguns peregrinos, àsvezes, viajavam para longe, a fim de visitar osgrandes templos budistas, mas poucos peregrinosislâmicos se dispunham a viagens tão longas paraparticipar de seus cultos em Meca. Os estudiosos- em todas as nações havia alguns - ficavam emcasa e aprendiam sobre o mundo através dos liv-ros. Quando o jovem poeta londrino John Keatsescreveu as palavras "Muito viajei nos reinos deouro, e muitos estados e reinos formosos en-contrei", ele queria dizer que viajava pela leitura;nessa época, ele nunca havia ido muito além deseu local de nascimento. As pessoas mais viaja-das do mundo não eram estudiosos e sacerdotes,

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mas marinheiros comuns da Europa e da Arábiaque, em sua mobilidade, eram como a tripulaçãode um avião de sua época. Entre 1700 e 1800, amaior categoria de viajantes de longa distânciado mundo consistia daqueles que não tinhamnenhum desejo de viajar: os milhões de escravosafricanos levados como prisioneiros em seupróprio continente ou embarcados em navioscruzando o mar tropical até as Américas. Omundo era composto por dezenas de milhares depequenas localidades autossuficientes. Atémesmo dormir uma noite fora de casa era umaexperiência incomum. Isso se provava verdadeiroem relação à China, Java, Índia, França ouMéxico, embora não se aplicasse à Austrália e aseus aborígines. As pessoas passavam toda a vidaem um único lugar e daí vinham praticamente to-dos os alimentos que consumiam e os materiaisque usavam para suas roupas e calçados. Aí sur-giam as novidades e boatos que lhes propor-cionavam excitação ou medo, aí encontravamseus maridos e esposas. Férias na praia ou nas

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montanhas pertenciam ao futuro; estânciashidrominerais, onde as pessoas bebiam água min-eral em benefício de sua saúde, eram as únicascidades turísticas especializadas da Europa.Nesses locais abundantes em água, as pessoasbebiam-na segundo fórmulas rígidas que prescre-viam tantas jarras ou copos por dia. No início doséculo 19, talvez a mais internacional das estân-cias hidrominerais fosse Carlsbad, uma bela cid-ade cercada de pedreiras de granito e florestas dePinheiros a uma distância de poucos dias dePraga e de Leipzig. Em 1828, não mais de dezvisitantes, em média, chegavam a cada dia com aintenção de compartilhar a água medicinal. Suaprincipal fonte ainda jorra em um jato quente eperpétuo, e a água ainda possui um gostofortíssimo que ajuda a melhorar a amnésia. Acidade industrial, não a estância e o balneário deférias, simbolizava a nova era. No norte daInglaterra, especialmente a partir da década de1780, surgiram cidades industriais cheias de má-quinas engenhosas que fiavam e teciam lã ou

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algodão. Os visitantes de outros países se mara-vilhavam com o vigor de Manchester, Leeds,Birmingham e das novas cidades industriais, masse espantaram ao visitar as minas e fábricas econstatar o número de crianças que ali trabal-havam. Um americano, ao descrever uma fiaçãode lã em Yorkshire, em 1815, observou queaproximadamente 50 meninos e meninas estavamtrabalhando, chegando às 6 horas e saindo às 19horas. No inverno, chegavam no escuro e saíamno escuro. A criança mais velha não tinha maisde 10 anos de idade. Todos estavam lambuzadosde poeira e óleo vindos da lã crua que eles ma-nipulavam. A nova fábrica, ao contrário dos tra-balhos rurais, tais como cuidar dos gansos e ord-enhar as vacas, era um tirano incansável que exi-gia a atenção das crianças o dia inteiro, mesmoquando estavam a ponto de adormecer porexaustão.

O cavalo a vapor

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A energia mecânica e humana consumidadentro da nova fábrica fez com que os olhos seabrissem. Em geral, uma roda hidráulica sobforte correnteza fornecia a força motriz para asmáquinas. Cada vez mais, as fábricas mais novaspassavam a usar carvão e energia a vapor, mas,durante um tempo, a barulhenta máquina a vapordeu muito pouco sinal de que transformaria omundo.

O vapor, como força motriz, foi usado pelaprimeira vez com eficácia nas minas daInglaterra. Em 1698, Thomas Savery aplicou ovapor produzido pelo carvão para fazer funcionaras bombas de uma mina da região da Cornualha.Onze anos mais tarde, um ferreiro de Devon,Thomas Newcomen, construiu uma máquina avapor alternativa que, finalmente, podia fazer omesmo que um exército de homens ou cavalos. Aesse tipo de máquina, James Watt, um escocês,trouxe melhorias fundamentais. Seu maravilhosodispositivo de 1769, o condensador, finalmenteproduzia cerca de três vezes a quantidade de

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vapor ou energia com a mesma tonelada decarvão. Praticamente todos os grandes passos naevolução da máquina a vapor foram dados pelosengenhosos britânicos ao tentar resolver os prob-lemas práticos que surgiam no trabalho diário,nas novas indústrias em desenvolvimento.

Mas a máquina a vapor teve pouco efeitosobre o mundo do comércio até que sua forçafosse aplicada ao transporte. O rangido das loco-motivas a vapor foi ouvido pela primeira vez nonorte da Inglaterra, o coração do início da Re-volução Industrial. A fumaça e os apitos das lo-comotivas, a princípio, espantaram muitas pess-oas e assustaram os cavalos, que trabalhavam nasestradas e pastavam nos campos vizinhos. A ve-locidade e a força da locomotiva impressionaramos primeiros passageiros, que mal podiamenxergar através do vapor e da fumaça do carvão.

No transporte terrestre, essa foi provavel-mente a invenção mais importante desde a es-trada romana. Mesmo quando um trem era

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puxado por cavalos sobre uma via com trilhos deferro - os primeiros vagões das ferrovias da Hun-gria e dos Estados Unidos, por exemplo, eram at-relados a fortes cavalos -, o custo do transportede bens já era drasticamente reduzido. O primeirotrem a vapor fez o percurso entre Stockton e Dar-lington, na Inglaterra, em 1825, e sua principalcarga era carvão e outros minerais. A França ab-riu sua primeira ferrovia a vapor em 1828; a Áus-tria, em 1832; a Alemanha e a Bélgica, em 1835,época em que o primeiro trem estava prestes achegar à cidade de Londres. Em direção ao interi-or da Europa e dos Estados Unidos, saiu um exér-cito de construtores de ferrovias, desfigurandofaixas da paisagem tranquila com seus cortes noterreno e seus impressionantes aterros de con-tenção feitos de terra e barro. No início da décadade 1850, províncias remotas do Novo Mundo es-tavam construindo suas primeiras ferrovias:Egito, México, Peru, Brasil e o leste da Austrália.Mesmo a atrasada Rússia decidiu que uma fer-rovia deveria ligar sua capital, São Petersburgo, à

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cidade de Moscou, no interior. Antes da era dovapor, era difícil imaginar um veleiro ou veículosobre rodas que chegasse na hora certa. É pos-sível admitir que uma carruagem pudesse chegarpontualmente a uma cidade afastada, mas, noinverno, atrasava-se com as enchentes, a neve e aneblina e, mesmo nos dias de tempo bom, podiaatrasar-se com o tráfego pesado nos trechos maismovimentados das estradas ou com um acidenteocorrido com um cavalo. O trem, ao contrário,em geral chegava a cada estação no minuto espe-cificado. O neologismo - quadro de horários -,símbolo do ofegante mundo moderno, foi in-ventado na Inglaterra, em 1838. Nem todos acol-heram bem a nova invenção. Muitos habitantesdas áreas rurais, partindo do princípio de quenunca teriam dinheiro suficiente para comprarum bilhete de trem, não conseguiam ver seupropósito. O barulho ensurdecedor dos trens quepassavam, achavam eles, assustaria as vacas efaria com que elas dessem à luz bezerros prema-turos. George Eliot, em seu romance

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Middlemarch, relatou outros tipos de medo:"Mulheres, tanto idosas quanto jovens, viam asviagens de trem como inconvenientes e perigo-sas." Aqueles que viveram durante os primeirostrinta anos da era das ferrovias perceberam que omundo havia mudado para sempre. O romancistaWilliam Thackeray, escrevendo na década de1860, quando a Inglaterra se tornou o primeiropaís a ser riscado por vias férreas, explicou detal-hadamente a magnitude da mudança. Eleafirmava que o trem havia mudado de tal modo avida cotidiana que os aterros de contenção dasferrovias eram como um muro que dividia o pas-sado e o presente. Suba no aterro de contenção,escreveu ele, fique em pé sobre a linha do trem -e olhe para o outro lado... tudo acabou! - Umavelha forma de vida, na qual poucas pessoasviajavam para longe de seus vilarejos nativos,havia desaparecido.

A escura locomotiva a vapor se impôs emquase todos os aspectos da vida. Carne e ovosfrescos chegavam à cidade vindos de longe. A

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moda das cidades rapidamente chegava aos ven-dedores de tecidos nos vales mais afastados. Namaioria dos países, o jornal diário da naçãotornou-se possível pela primeira vez, porque osvelozes trens mensageiros podiam transportarfardos de jornais até a maioria das cidades nomesmo dia da publicação. O jornal tornou-setambém mais barato, pois era impresso pela im-prensa a vapor, inventada na Alemanha.

Quase tudo, dos serviços de correios e per-íodos de férias à guerra, foi transformado pelostrilhos de ferro. A rápida guerra entre a França ea Prússia, em 1870 e 1871, foi bastante influen-ciada pela habilidade de organização dos generaisprussianos em usar trens para reunir seu enormeexército e desembarcar nos pontos cruciais dafronteira com a França. Os prussianos invadirama França aos milhares, enquanto muitos soldadosfranceses, ainda em suas cidades de origem, es-tavam abotoando suas túnicas e despedindo-se desuas namoradas. O vapor levou mais tempo paratransformar o transporte marítimo que o terrestre.

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Os primeiros barcos a vapor tinham rodaspropulsoras feitas de madeira, incapazes de fazerlongas viagens a não ser que usassem velas emotores de combustão de carvão. Em 1840, ve-lozes barcos a vapor cruzavam regularmente oAtlântico Norte, na mesma época em que osimigrantes europeus estavam chegando aos mil-hares à América. Charles Dickens, o famoso ro-mancista inglês, decidiu visitar os Estados Un-idos com sua esposa, Kate, e embarcaram em umnavio a vapor em Liverpool, em janeiro de 1842.Ao depararem com mares bravios, ambos so-freram enjoo por pelo menos cinco dias e, ànoite, observaram com espanto como as chamasdançavam acima do topo da alta chaminé ver-melha. Nos navios a vapor, o medo de incêndiosacidentais era enorme.

Uma vantagem indiscutível do navio a va-por era poder navegar sem vento, recuar emlugares de difícil passagem e navegar por canaisestreitos, tarefas impossíveis para um veleiro. Onavio a vapor tornou possível construir o estreito

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Canal de Suez, em 1869, unindo o Mediterrâneoe o Oceano Índico, evitando a longa viagem aoredor da África. A Índia viu-se repentinamentearrastada para mais perto da Europa. O Canal deSuez encurtou em 56% a distância marítima deuma viagem entre Bombaim e o sul da França.Como resultado dessa iniciativa tomada pelosfinancistas franceses, o Oriente Médio, que umdia fora o centro do mundo conhecido, mas es-tava reduzido a um lugar atrasado, voltou a ad-quirir importância. Um exemplo disso é adescoberta de óleo no Irã quatro décadas maistarde. As máquinas a vapor não seriam o fim dasmudanças rápidas no transporte. Os operadoresdos primeiros trens de ferrovia decidiram queprecisavam de um mensageiro que chegasse antesdos trens. Adotaram o que foi batizado de telé-grafo, uma palavra que deriva da junção de duasantigas palavras gregas que significam "de longe"e "escrever". Um telégrafo era uma linha con-tínua, feita de um fio de ferro ou cobre apoiadonuma sucessão de postes altos que corriam

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paralelamente à linha férrea. Com a ajuda de umabateria elétrica, o fio transmitia sinais de uma es-tação para outra mais próxima. Um sinal poderiaadvertir uma locomotiva que se aproximava deque a linha férrea já estava ocupada. Outro sinalpoderia anunciar que um trem havia quebrado, euma locomotiva de emergência fazia-se ne-cessária. Provavelmente, a primeira linha públicade telégrafo do mundo começou a funcionar em1843, paralela à ferrovia inglesa que ligava a es-tação de Paddington, em Londres, à cidade deSlough.

Os inventores apressaram-se em melhorar osistema de telégrafos usado inicialmente nas fer-rovias inglesas. O dr. Samuel Morse, americano,criou a versão inicial de seu Código Morse para aferrovia que ia de Washington a Baltimore, em1844. Muitas linhas de telégrafo foram construí-das entre cidades que não possuíam ferrovias. Em1849, uma rede de linhas telegráficas se estendiapor 15 mil quilômetros dos Estados Unidos. Pas-sar com as linhas telegráficas sob oceanos e

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estreitos era o objetivo seguinte. A solução maisaceita era envolver o fio ou cabo com um materi-al acolchoado, a gutapercha, um tipo de borrachaextraído da seiva de uma árvore do arquipélagoda Indonésia. Em 1850, uma linha telegráficacruzava o leito do mar do Canal da Mancha, entrea Inglaterra e a França. Cruzar o Atlântico Norteera uma tarefa mais árdua. A penosa colocaçãode um cabo sobre o leito do mar por um navio foicompletada em 1858, em meio a muito júbilo. In-felizmente, transmitiu mensagens por apenasquinze dias. Um cabo permanente que cruzasse oAtlântico foi finalmente colocado em 1866. Noespaço de uma década, uma combinação de lin-has telegráficas em terra e no mar já chegava aquase todas as principais cidades da Ásia, daÁfrica e da América do Sul. Os fios e cabostelegráficos haviam quase alcançado as mais re-motas colônias australianas em meados da décadade 1870. Caminharam a passos largos na Ásia e,depois, por terra e sobre o leito do mar, passarampelo arquipélago da Indonésia. Chegando à costa

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norte da Austrália, no porto de Darwin, o fio con-tinuou se esticando, numa sucessão de postes, at-ravessando o deserto até Adelaide, na costa sul.Outro cabo telegráfico cruzava o Mar da Tas-mânia até a Nova Zelândia. Era possível agoraenviar um telegrama a Londres, a partir de prat-icamente qualquer porto afastado da Austrália eda Nova Zelândia. Com um pouco de sorte, umamensagem podia atravessar o mundo em 24 hor-as. Uma noite mágica em que se quebrou um re-corde foi 16 de fevereiro de 1871. De Karachi, noPaquistão, na época pertencente à Índia Britânica,um telegrama foi enviado a Londres. Passando deestação em estação, chegou a seu destino em 50minutos. Em comparação, o Sol no dia seguintelevaria quatro horas e meia para cobrir a mesmadistância de quase 9 mil quilômetros, incitando,assim, um jornalista inglês a relatar esse fato domais veloz telegrama sob a manchete "O Sol foiultrapassado". A mesma mensagem teria levadosemanas para chegar a Londres num navio avapor.

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Tornou-se comum creditar importantes in-venções ao trabalho de um ou dois indivíduosque se destacam na multidão. Mas as invençõessão o resultado de um jogo em equipe, bem comouma competição entre indivíduos. O esforço parainventar e melhorar as máquinas a vapor, as fer-rovias, o telégrafo, os produtos de ferro e as má-quinas têxteis aconteceram em muitas nações ecentenas de oficinas empreendedoras. Algumasdas mudanças mais importantes vieram de umaenorme quantidade de contribuições feitas porpessoas hoje esquecidas. Somente alguns dessesheróis inventores são lembrados. Nada, até então,na história do mundo, havia feito tanto para unirtodas as terras como aquele fio delgado quecruzava estepes e planícies, selvas e vales gela-dos, subúrbios industriais e vilarejos nas montan-has e, até mesmo, o próprio leito do mar. Em1876, quando o telégrafo internacional chegavaàs partes mais afastadas do mundo, surgia nosEstados Unidos o telefone. As casas de negóciospróximas umas das outras podiam conversar

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entre si. Não que pudessem discar diretamentepara um telefone próximo; eles dependiam deuma longa fila de mulheres, que trabalhavamnuma central de atendimento e comandavam umasérie de tomadas e chaves interruptoras que, op-eradas manualmente, ligavam um telefone aoutro. Quando as mulheres iam para casa, à noite,as linhas telefônicas silenciavam. Uma conversaa longa distância feita por telefone continuavasendo difícil, com as vozes distorcidas e difíceisde escutar. O oceano era mais que um obstáculopara o telefone. A Inglaterra e a França estavamligadas por cabos telefônicos que cruzavam oCanal da Mancha em 1891, mas os oceanos maisextensos permaneciam intransponíveis aos cabos.Durante décadas, o telefonema de longa distânciase restringia aos grandes homens de negócios ouàqueles que dispunham de altas rendas.

A corrida para as cidades cheiasde fumaça

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A fazenda familiar ainda era o foco de mil-hões de sonhos e esperanças, especialmente noNovo Mundo, onde a terra era barata e abund-ante. Durante os vários séculos antes de os gov-ernos oferecerem seguridade social, uma fazenda,se fosse grande o suficiente, era em si a principalforma de seguridade social. Fornecendo comida,abrigo e matérias-primas para vestuário, tambémmantinha a família unida, pois ali a maioria dosfilhos e filhas podia viver e trabalhar antes de secasar, e os pais podiam ali viver na velhice, sechegassem até essa idade. Em vários países,desde o Chile até o Transvaal, na África, novosfazendeiros batalhadores se viam derrotados pelaseca ou por pestes, dívidas e preços injustos, maso sonho de ser fazendeiro permanecia vivo. Umacena vívida das terras de fazendas de Massachu-setts sobrevive desde cerca de 1820. O invernohavia chegado e, sob a luz fraca da tarde, apequena fazenda da família Whittier estava empleno vapor: as mulheres trabalhavam na co-zinha; no celeiro, o velho cavalo relinchava por

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seu milho; nos currais, o gado era alimentadocom o feno preparado no verão; o galo cantava, eo vento do leste soprava prenunciando uma fortenevasca; as toras e os gravetos de lenha serradaeram empilhados para o pronto acendimento dofogo na sala, onde a família se reunia após maisum dia de trabalho. Essas cenas simples sãodescritas no poema "Snowbound", de JohnGreenleaf Whittier, impresso pela primeira vezmeio século mais tarde.

Cenas semelhantes se repetiam em fazen-das que iam do Ohio até a Suécia e a Sibéria, masfoi o poema de Whittier que capturou o senti-mento aconchegante de segurança que tantasfamílias fazendeiras desfrutavam quando seupróprio trabalho diligente lhes havia proporcion-ado tudo de que precisavam para o longo in-verno. Assim, sentavam-se eles, o tio fumando ocachimbo, a mãe enrolando a lã em sua roda defiar manual, e uma história era lida em voz altaaté que se dessem conta de que já eram quase 9horas da noite, hora de ir para cama.

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Enquanto os Whittier se sentavam ao ladodo fogo, a Europa dava sinais de uma das maisextraordinárias mudanças na história da human-idade, uma mudança que ainda hoje continua en-volvendo todos os países. Em algumas nações, amaioria das pessoas não lavrava mais o solo. AInglaterra e a Bélgica foram, talvez, as primeirasnações da Europa, e provavelmente do mundo,em que a maioria da força de trabalho não eramais necessária para a produção de alimentos.Somente 30% da força de trabalho da Inglaterraera necessária para as atividades rurais. Na Aus-trália, Chile e Argentina, de forma semelhante, sóuma pequena parcela da força de trabalho era dir-ecionada para os trabalhos rurais. Essas terras es-tavam agora produzindo muito mais alimentos,assim como lã e couro de gado, do que podiamutilizar. Uma forma de vida que surgiu aos pou-cos, há cerca de dez mil anos, e se espalhou porpraticamente todo o globo, estava prestes a sersuplantada como principal fonte de trabalho. Ámaioria das fazendas estava produzindo mais do

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que no passado e necessitando de menor númerode trabalhadores. Uma prova do aumento desuprimento de alimentos é que graves períodosde fome, tão comuns na França no século 18,tornaram-se raros depois de 1800. A escassez dealimentos na Irlanda e no baixo Reno, na décadade 1840, foi o último período de fome en-volvendo mortes na Europa Ocidental. Outratendência era visível na Europa: a população es-tava aumentando mais rapidamente do que emqualquer outra época, desde os anos de climaquente, entre 1000 e 1250. As pragas eram maisraras e maior o conhecimento de como combateras doenças. Além disso, em boa parte da Europa,cada hectare de terra arável conseguia produzirmais alimentos para uma população que se multi-plicava. Entre 1750 e 1850, a população daEuropa deu um salto de mais de 80%, uma taxade crescimento que foi tida como impressionante,até que as populações das nações do TerceiroMundo começassem a crescer num ritmo aindamaior após a Segunda Guerra Mundial. Em toda

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a Europa, a maior parte das cidades cresceu evárias se tornaram tão grandes quanto as maioresda China. Em 1800, a população de Londreshavia passado de um milhão. Em 1860, estava emtrês milhões, com certeza, a maior cidade que omundo havia conhecido. No início do novoséculo, de acordo com alguns cálculos, Londresbeirava a casa de 10 milhões de pessoas, que con-sumiam trigo, manteiga, geleia, bacon, carne decarneiro e maçãs, que vinham não só das fazen-das inglesas, mas de terras distantes, em navioscargueiros. A maior parte desse aumento na pop-ulação da Europa Ocidental se concentrou nascidades. Em 1600, a Europa tinha somente 13cidades com mais de 100 mil habitantes. Em1900, esse número chegava a 143.

As cidades que cresciam eram sujas, e amaioria das casas eram pequenas. Em 1850,mesmo em algumas das melhores cidades, amaioria das casas não tinha acesso à água cor-rente limpa. Cidades grandes geralmente surgiamao longo de um rio, e a água para cozinhar e lavar

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era retirada desse mesmo rio poluído ou de poçosvizinhos. A maioria das pessoas tinha de carregara água até suas casas em baldes ou caçambas demadeira. Como a água era escassa, a lavagem deroupas era pouco frequente. Por outro lado, a lav-agem do corpo nu supostamente fazia escoar osóleos essenciais e, assim, as doenças ganhavamuma fácil porta de entrada ao corpo.

O esgoto achava seu caminho até os rios e,correnteza abaixo, poluía a água usada pela próx-ima cidade. As infecções, que traziam a morte,eram espalhadas pelo saneamento precário. Acólera asiática havia aparecido pela primeira vezna Rússia, em 1823, e nove anos depois umaforma violenta dessa doença chegou a NovaYork, enchendo as ruas de apreensão. Voltouvárias vezes à Europa, enchendo os cantos demuitos cemitérios, aproximadamente uma vez acada década. A Rússia, um dos países maisprecários em saneamento, perdeu para a cólera250 mil de seus habitantes em 1892. Cada vezmais, engenheiros construíam reservatórios de

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suprimento de água potável para as cidades, as-sentavam tubos subterrâneos e cavavam túneispara escoar o esgoto diário das cidades. A taxa demortalidade das cidades também caiu devido aosavanços na Medicina. Foi em meados de 1870que o bacteriologista alemão Robert Kochrealizou a importantíssima descoberta de que asbactérias, tão pequenas que milhões delas podiamse alojar em uma gotícula de saliva, causavam asdoenças. Em 1882, em Berlim, ele anunciou quehavia localizado a causa bacteriana da tubercu-lose, uma doença identificada por Hipócrates, naGrécia Antiga, e há muito tempo conhecida como"o capitão dos homens da morte".

A facilidade das viagens na era do vaporacelerou a corrida-relâmpago de descobertas naMedicina. Koch correu para o Egito, esperandoestudar a última epidemia de cólera, mas chegoulá apenas a tempo de concluir que já haviaacabado. Mais tarde, partiu em um navio a vaporpelo recém-construído Canal de Suez, a caminhoda Índia, o lar da cólera. Lá, em 1883, com a

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ajuda de seu poderoso microscópio, realizou adescoberta do bacilo que transmitia a doença.Quinze anos mais tarde, Ronald Ross, um oficialmédico que trabalhava na Índia, descobriu que amalária não emanava, como tradicionalmente seacreditava do ar dos pântanos ou de água estag-nada. Pelo contrário, era propagada pela picadado mosquito de asas malhadas, como ele o de-nominou, identificando assim a causa da maiscatastrófica das doenças tropicais. Como reflexodesse século de invenções, confiante modeladordo mundo, em muitos círculos europeus a mortejá não era mais vista como um ato de Deus quepodia ocorrer a qualquer hora. Em muitos círcu-los, a raça humana era vista com otimismo ex-agerado como a arquiteta e inventora de seupróprio futuro. Deus estava sendo desafiado nocéu por engenheiros, construtores de navios, bac-teriologistas, cirurgiões e todos os outros heróisda nova tecnologia, e pelos líderes políticos, quefizeram saber que estavam agora atacando muitos

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dos males do mundo, existentes há muito tempo,incluindo a pobreza e a escravidão.

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CAPÍTULO 27 - Seráque todos são iguais?

A luta para abolir a escravidão, em parte,foi uma luta igualitária, conduzida por pessoas debom coração. A vitória contra os donos de escra-vos, porém, dependia de muito mais além de bomcoração. A luta dos dois lados do Atlântico foiconduzida por nações cada vez mais ricas que jánão dependiam da escravidão para uma parcelasignificativa de sua riqueza. Assim, em 1790, aDinamarca aboliu o comércio de escravos emsuas ilhas nas Antilhas, e a França revolucionáriaaboliu a escravidão em suas colônias. Para essasnações, era mais fácil libertar os escravos queainda trabalhavam nas colônias tropicais, poissua vida econômica era bem menos dependentedo trabalho escravo do que os Estados Unidos.

Os Estados Unidos tardaram em dar suacontribuição contra a escravidão. O

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encabeçamento do movimento abolicionistaencontrava-se nos ricos estados do Norte, que de-pendiam não de escravos, mas de oficinasmetalúrgicas, fábricas, fazendas livres e estaleir-os. Em suas mãos, os Estados Unidos estavam setornando uma grande potência industrial e, em1860, sua produção de ferro e aço, na época obarômetro do sucesso industrial, já estava em ter-ceiro lugar no mundo, logo atrás da Inglaterra eda França. Os americanos podiam, então, abolir aescravidão, mas o custo político e econômicoainda era alto. Esses lutadores, a maior parte de-votos das igrejas, estavam querendo pagar opreço, embora o custo real provavelmente re-caísse sobre os próprios donos de escravos esobre os estados cuja economia dependia do seutrabalho.

Nos Estados Unidos, a importação de nov-os escravos já era proibida, forçando, assim, asplantações a dependerem dos filhos e filhas deescravos. Tal tipo de trabalho ainda era consid-erado fundamental para a vida cotidiana dos

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estados subtropicais do Sul e foi aí, em 1861, queonze desses estados se rebelaram, separaram-sedos Estados Unidos e criaram sua própria nação,os Estados Confederados. Em meio a essa tensão,Abraham Lincoln assumiu a presidência dos anti-gos Estados Unidos. Um mês depois, em abril de1861, a Guerra Civil começou com a vitória dosconfederados em Fort Sumter, na Carolina doSul.

O principal objetivo de Lincoln ao conduzirsua nação à guerra não era a abolição da es-cravatura. Ele lutou, antes de mais nada, parapreservar o país e sua unidade em face da se-cessão de alguns de seus estados mais antigos eimportantes. Lincoln estava tentando achar umaconciliação; se necessário, permitiria que a es-cravidão continuasse, desde que a nação per-manecesse unida. Queria simplesmente salvar anação de um grande desfalque.

Hoje parece um tanto estranho que o demo-crata mais famoso do mundo estivesse

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proclamando a marca registrada da igualdadepolítica, conhecida como democracia, enquantotolerava, ainda que com relutância, a severadesigualdade da escravidão. Mas a democracia,em sua versão moderna, ainda estava em seusprimórdios, ao passo que a escravidão, ao con-trário, era uma instituição antiga. Além disso, osEstados Unidos haviam sido construídos sobre oprincípio federativo de que vários estados gan-havam força com a união, mas podiam seguirsuas diferenças políticas e econômicas. A essên-cia do federalismo era que os inimigos e opos-itores podiam coexistir, e Lincoln tinha de con-solidar essa coexistência. Em 1861, a seu ver, osul escravocrata do país pecou não tanto peloapoio que dava à escravidão, mas pelo fato in-aceitável de que se opunha ao federalismo e àprópria existência dos Estados Unidos. O heróida guerra contra a escravidão veio de família hu-milde. Em 1816, seus pais haviam se mudado doKentucky, onde o clima era mais quente, para oestado de Indiana, mais ao norte, onde possuíam

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uma pequena fazenda. Abraham Lincoln, que naépoca tinha oito anos de idade, aprendeu a usarum machado e tornou-se adepto do árduo tra-balho de cortar árvores e parti-las em mourões,com os quais, nessa época, dezenas de milharesde cercas simples de fazendas eram feitas por to-das as planícies norte-americanas. Quando, comojovem advogado, Lincoln entrou na política, seusseguidores o chamavam de "o cortador demourões", mas nessa época ele estava mais or-gulhoso da educação que tinha adquirido do quecom o início de sua vida como filho do trabalhoárduo. Seus pais participavam do culto da IgrejaBatista Independente, um dos muitos segmentosdo protestantismo que floresceram na América doNorte e, como a maioria dos fiéis dessa seita,opunham-se às corridas de cavalos, às danças, aoconsumo de álcool e à posse de escravos. Suaoposição à escravidão era baseada não só na reli-gião, mas também nos próprios interesses fin-anceiros. Em estados escravocratas como Ken-tucky, a família Lincoln e outros pequenos

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fazendeiros brancos não podiam competir com osgrandes fazendeiros que empregavam a mão-de-obra barata e injusta de escravos. Como a maioriados políticos numa democracia, Lincoln teria denadar a favor da corrente, se quisesse apelar parao apoio popular necessário para grandes tarefas;pois ele nadou a favor da corrente, inclusive naquestão da escravidão. Embora tivesse opiniõesdefinidas sobre o assunto, ele não defendeu aigualdade entre brancos e negros. Em 1862, Lin-coln apoiou a idéia de criar uma nação independ-ente para os negros na África, "pelo bem da hu-manidade". Quando os líderes negros disseramnão, ele aceitou o não. Um ano se passou até queele finalmente conferisse liberdade, ainda umaliberdade teórica, aos escravos que viviam nosestados do norte. Em seguida, não aboliu a es-cravidão nos estados do sul: a constituição dopaís, na verdade, tinha de sofrer emendas antesque a escravidão pudesse ser abolida.

Logo depois da batalha vitoriosa de Gettys-burg, os mortos da União foram reenterrados em

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um belo cemitério de guerra, em dedicação ao dia19 de novembro de 1863. Para a cerimônia nocemitério, Lincoln vestiu um terno preto novo eum chapéu tipo cartola, que o fez parecer aindamais alto do que era. A cartola estava envolta poruma faixa preta em sinal de luto, assim colocadanão para homenagear aqueles que morreram embatalha, mas devido a seu próprio filho, Willie,que havia morrido há pouco tempo, após umadoença fulminante. Lincoln ouviu um longo dis-curso, em seguida levantou-se e proferiu seupróprio discurso num espaço de mais ou menoscinco minutos. Ele mesmo teria ficado impres-sionado ao saber que as palavras de seu discursoficariam marcadas para sempre; afinal, eramapenas algumas frases. Contudo, ressoou eterna-mente. O discurso concluía com uma frase quepermaneceria viva: "Aqui, devemos assumir queesses mortos não hão de ter morrido em vão, queessa nação, sob a autoridade de Deus, há derenascer em liberdade, a fim de que o governo do

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povo, pelo povo e para o povo não pereça naterra."

A posição de Lincoln pela união de suanação veio a ser, na história do crescimento daliberdade humana, ainda mais influente do quesua campanha contra a escravidão. Se os EstadosUnidos, desde a década de 1860, tivessem sidodivididos em duas nações, com pouca coisa emcomum, a influência da América do Norte sobreos negócios mundiais teria sido bem menor, e oresultado da Segunda Guerra Mundial poderia tersido muito diferente.

Um pouco antes do fim vitorioso da guerrade quatro anos, em 1865, Lincoln estava descon-traído, assistindo a uma peça de teatro em Wash-ington, quando foi assassinado. A escravidão jáestava condenada nas Américas: foi abolida nosEstados Unidos naquele ano e, cada vez mais, eraameaçada em Cuba e no Brasil. Nenhum escravonovo estava chegando da África, e as criançasnascidas de famílias de escravos eram declaradas

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livres. Finalmente, em 1886, a escravidão foi ab-olida em Cuba e, dois anos depois, o último es-cravo foi libertado no Brasil; porém, em muitaspartes da África e em algumas partes espalhadasda Ásia, a escravidão continuava. Só foi abolidaoficialmente nas planícies arenosas do estadoafricano da Mauritânia em 1980. As nações con-tinuam a condená-la, mesmo na década de 1990,mas, em alguns lugares, ela ainda persiste.

Rebelião na China

As duas guerras mais mortais durante olongo período de relativa paz entre 1815 e 1914ocorreram dentro das próprias nações e, não,entre nações. Além disso, ocorreram dentro denações importantes e, consequentemente, o res-ultado final teve fortes efeitos sobre o peso e oequilíbrio do poder mundial. Enquanto a GuerraCivil americana é bastante conhecida, já que atelevisão e os filmes mantiveram viva sua

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memória, a outra guerra, a Rebelião de Taiping, épouco conhecida fora da China. Os mortos naguerra civil americana excederam os 600 mil,mas, na guerra chinesa, talvez tenham passadodos 20 milhões, tornando-a mais mortal que aPrimeira Guerra Mundial.

Essa insurreição de simples camponeses foium clamor por igualdade numa época em que apopulação estava crescendo vertiginosamente, eas áreas cultivadas eram escassas. A nutrição e asmoradias dos camponeses chineses eram maisprecárias do que as dos escravos nos Estados Un-idos. Mas a pobreza e as dificuldades não levamautomaticamente a uma insurreição: se a pobrezarealmente levasse a uma rebelião, a história domundo não seria nada além de uma sucessão derebeliões. Para isso, era necessária uma faísca,que foi acesa por Hung Hsui-Chuan.

Hung tinha as ambições de um brilhantejovem chinês, mas, entre 1828 e 1843, fracassouquatro vezes no exame de admissão ao serviço

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público. Foi obrigado a fazer-se professor em seuvilarejo em vez de um burocrata honrado, até cairsob o feitiço de um missionário americano, per-tencente à Igreja Batista do Sul que, sem perce-ber, reacendeu a ambição do frustrado professor.Recebendo visões cristãs, Hung as envolveu como Patriotismo chinês e pôs-se a guiar as pessoasem direção ao "Reino Celestial da Grande Paz".Em chinês, o termo para "grande paz" é taiping, eesse foi o nome dado à rebelião que ele liderou.

Marchando pelo interior do país, as tropasde Hung estavam determinadas a conquistar suasprimeiras vitórias, enquanto o governo, em totaldesordem, ainda estava juntando suas forças. Asurpresa estava do lado de Hung: um vilarejoapós o outro, uma cidade após a outra, talvez 600ao todo aderiram às suas forças armadas, que,com o tempo, chegaram a um contingente deaproximadamente um milhão. Esse teólogo egeneral amador pregava sua própria mistura deConfúcio e Cristo. Havia também uma correnteigualitária e, se houvesse controlado o interior do

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país em vez das cidades, é possível que tivesseredistribuído as terras em larga escala e estabele-cido comunas. Mas, em 1856, um momento de-cisivo, os postos mais altos entre os rebeldes fo-ram divididos por disputas e eliminados pordiferenças de opinião; daí em diante, as tropastiveram menos sucesso.

Em 1º de junho de 1864, depois de quasecatorze anos em campo, Hung enxergou a certezada derrota e, nesse dia, suicidou-se. Mas os taip-ings tinham abalado o que parecia inabalável. Daípor diante, a perspectiva de rebeliões foi acentu-ada nas mentes de um grande número de intelec-tuais e dissidentes chineses. O exemplo de luta deHung influenciou profundamente o nacionalistadr. Sun Yatsen que, meio século depois, acabouderrubando o imperador da China. Até oscomunistas, que mais tarde derrubaram arepública nacionalista, foram ajudados pelo ven-daval que Hung havia desencadeado.

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Uma época de experiências sociais

As sementes da planta da igualdade já es-tavam sob a terra há milhares de anos. Os filóso-fos gregos conhecidos como estoicos enfatiza-vam que todos os seres humanos, escravos ou ho-mens livres, partilhavam do poder da razão e dacapacidade de mostrar boa vontade, e que essasqualidades os distinguiam de outras criaturas. OImpério Romano e o conceito de leis da naturezaenfatizavam os direitos comuns e, no ano 212, amaior parte dos homens do império nascidoslivres tornou-se igual perante a lei. Tais idéias deigualdade, embora de pouca influência na IdadeMédia, foram ressuscitadas pelo Renascimento,com ênfase na individualidade, e pela Reforma,que insistia em que todos os que lessem com hu-mildade a Bíblia tinham o direito de ser ospróprios intérpretes da palavra de Deus e atémesmo, o direito de ser os próprios sacerdotes epastores. Uma ênfase na igualdade levava a umaênfase na educação para todos; aquelas terras

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protestantes que construíam escolas partiam dopressuposto de que todas as crianças tinham po-tencial e que ler e escrever eram a chave para ab-rir essa porta. A democracia nos Estados Unidosdevia muito às centenas de milhares de pessoasalfabetizadas que, governando suas próprias as-sembleias, acreditavam também ter direito a umassento em seus parlamentos regionais.

Na Europa da segunda metade do século19, as exigências por igualdade econômicatornaram-se fortes em determinados anos. Forammais fortes nas cidades porque nelas era mais fá-cil organizar movimentos de protestos não ofici-ais do que nos vilarejos. O grito por igualdadetambém foi estimulado pelos extremos aviltantesde riqueza; embora a monarquia, a nobreza, osgrandes proprietários de terras e os mercadorestivessem sido visivelmente ricos, a ascensão dosdonos de fábricas, que ganhavam grandes quan-tidades de dinheiro, aumentou a noção de quesuas riquezas haviam sido geradas principal-mente pelo suor dos empregados atuais. As

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exigências por reformas econômicas foram es-timuladas pelo aumento do desemprego nos anosdifíceis e pelo fato de que estar desempregadonuma cidade grande era muito pior do que no in-terior, onde, pelo menos, podia-se conseguirlenha e onde os parentes podiam ser visitados àprocura de comida e abrigo.

A maioria dos fortes movimentos deprotesto ocorria nas cidades e, em 1848, o anodas revoluções, estava à beira do sucesso. En-quanto muitos dos protestos iniciais não reivin-dicavam nada além de pão barato em ano de pãocaro, os novos movimentos por reformas eramgeralmente abrangentes e sofisticados. Karl Marxe Friedrich Engels, os jovens arquitetos alemãesdo chamado comunismo, mostraram grande visãoem relação aos novos rumos que estavam sendotomados pelas rápidas mudanças na economiaeuropeia. Com visão aguçada, Marx previu que,nas nações industriais, as novas máquinas e asnovas habilidades produziriam uma enormeriqueza e um enorme abismo entre os ricos e os

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pobres. Em 1875, ele já enfatizava drasticamentea igualdade: "De cada um de acordo com suas ca-pacidades, para cada um de acordo com suas ne-cessidades." Os reformadores econômicos nãotiveram de apontar para a necessidade de ação.Na Itália, grande número de crianças andava de-scalça em pleno inverno. Nas grandes cidadesalemãs, a maioria das famílias vivia em aparta-mentos de um só cômodo. Na Rússia, inúmerasfamílias tremiam no inverno gelado porque nãopodiam comprar combustível suficiente paramanter o fogo aceso. Nas cidades industriais, odesemprego excedeu os 10% em alguns anos dadécada de 1880, e a maioria dos desempregadosera composta de pessoas que queriam muito tra-balhar e que tinham a experiência de uma vidainteira de trabalho pesado. A lenta oscilação entreprogresso econômico e depressão era agora umacaracterística da vida econômica da Europa in-dustrializada, e os níveis de desemprego subiam edesciam como um ioiô. Inicialmente, a exigênciapor igualdade foi ouvida mais na vida política do

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que na vida econômica; lutar pelo direito de votoera menos revolucionário do que exigir que todasas terras fossem redistribuídas igualmente entrepobres e ricos. O direito de votar, entretanto, erauma raridade, mesmo na Europa: em 1800,somente uma pequena parcela das nações domundo possuía um parlamento que exercia algumtipo de poder, e somente a um número limitadode cidadãos era permitido votar nas eleições outomar um assento nos poucos parlamentos exist-entes. O mundo de língua inglesa estava à frentedos governos parlamentares, mas a assim cha-mada mãe dos parlamentos, às margens doTâmisa, foi bem menos democrática do que osEstados Unidos durante as primeiras décadas doséculo 19. No fim da década de 1850, três dascinco colônias australianas serviram de labor-atório político e, nelas, praticamente todos os ho-mens adquiriram o direito de votar, incluindo odireito ao voto secreto e o direito a candidatar-seà câmara dos comuns do parlamento. Nessa épo-ca, as cinco principais nações europeias -

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Inglaterra, França, Alemanha, Áustria e Rússia -estavam muito atrás da Austrália, Canadá e Esta-dos Unidos em sua busca e prática dademocracia.

No fim do século, a Nova Zelândia e aAustrália ainda eram pioneiras na expansão dademocracia. Na verdade, a grande extensão dedireitos a voto e a prática de remuneração dosmembros do parlamento levaram à eleição doprimeiro governo trabalhista do mundo, emQueensland, Austrália, em dezembro de 1899.Era uma primeira prova de uma época em que amaior parte da Europa seria governada intermit-entemente por governos socialdemocratas. Asmulheres ganharam com o novo interesse emigualdade, embora o direito de votar tenhachegado a elas a passos lentos. O território amer-icano de Wyoming foi o primeiro a dar às mul-heres o direito de votar. Essa mudança radicalocorreu em 1869, na esperança de atrair maismulheres a ocuparem seu território, composto,em sua maioria, por homens portadores de armas

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e, assim, dar um tom mais suave a uma sociedadede fronteira. Um ano depois, o estado vizinho deUtah deu às mulheres o voto. Como Utah erapraticamente uma sociedade de mórmons, e mui-tos dos chefes de família viviam com várias mul-heres, não se podia classificá-lo facilmente comoum refúgio do feminismo. O efeito da nova leiera simplesmente o de dar mais votos às famíliasmórmons que já habitavam o estado há maistempo, em detrimento dos recém-chegados aUtah. Admitir mulheres em escolas de medicinatambém era um passo ousado; nos Estados Un-idos, Elizabeth Blackwell, obcecada pelo desejode estudar medicina, teve de contratar vários pro-fessores particulares até que, finalmente, emnovembro de 1847, aos 26 anos de idade, fosseadmitida na escola de medicina da pequena fac-uldade de Geneva College, numa cidadezinha doestado de Nova York. Sua vitória foi prematura e,inicialmente, não lhe era permitido assistir àsaulas práticas e ver o corpo humano na

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companhia de homens. Por fim, ela acabou ab-rindo, em Nova York, um hospital para mulherespobres.

Mesmo na Europa, uma geração depois,uma mulher que trabalhasse em qualquer profis-são além do magistério era uma raridade.

A primeira cientista a ganhar a estima mun-dial foi provavelmente Marie Curie a médica nas-cida na Polônia que, na França, em 1898, invent-ou a palavra "radioativo" para descrever uma desuas descobertas. Nessa época, uma mulher noparlamento ainda era um fato desconhecido nomundo inteiro, embora a rainha Vitória, chefeformal do maior império, já tivesse reinado por63 anos, um mandato muito maior do quequalquer primeira-ministra em qualquer paísdemocrático jamais terá. Somente em 1924 é quea primeira-ministra de gabinete do mundo, NinaBang, tomou posse na Dinamarca. A agitação deum estado da Europa Ocidental, onde o bem-estardos cidadãos era responsabilidade do governo,

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era outro sinal da moda de igualdade. Se todos ospovos de uma nação eram dignos, será que elesnão deveriam ser cuidados pelo governo quandoestavam doentes, idosos, permanentemente priva-dos do trabalho ou completamente destituídos?Na Alemanha, na década de 1880, Bismarckelaborou um esquema de seguridade nacional, ena Dinamarca, na Nova Zelândia e em partes daAustrália a pensão para idosos passou a ser ap-licada em 1900. Sob pressão dos sindicatos detrabalhadores, a Austrália introduziu a idéia ou-sada de um salário básico para os empregadosdas fábricas. Em várias nações, o sistema de im-postos foi alterado para reduzir o imposto sobrepequenas rendas e aumentá-lo sobre rendas maisaltas; alguém tinha de pagar pelo bem-estar, e osricos foram a escolha popular. Mesmo nas cid-ades prósperas, muitas famílias com renda regu-lar viviam precariamente, pelos padrões de hoje.Na cidade inglesa de York, uma família de cincopessoas que se situasse próxima do último degrauda escada de rendas não podia se dar ao luxo de

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beber cerveja ou comprar tabaco, comprar umjornal de 50 centavos de libras ou postar umacarta. As pessoas não tinham dinheiro suficientetoda semana para depositarem sequer umapequena moeda na cesta de coleta de sua igreja enão podiam se dar ao luxo de distribuir presentesde Natal para os filhos a não ser que elas mesmasfizessem os presentes; às vezes, levavam suasroupas de domingo ao agiota na segunda-feira demanhã para terem dinheiro suficiente para com-prar comida até que viesse o próximo pagamento.Para a família de um trabalhador que lutava pelopão de cada dia e que sofresse um acidente notrabalho ou o ataque de uma doença, a perda derenda arruinava tudo. Se o marido morresse, aviúva tinha de alugar quartos para pensionistas,se houvesse cômodos vagos, ou lavar roupas parafora. Com muita sorte, ela poderia se casar nova-mente. Havia um consolo, porém, essas famíliasgeralmente desfrutavam de um padrão de vidamelhor que seus avós haviam tido em seus

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vilarejos rurais. Além disso, viviam mais e commais conforto e usufruíam mais educação.

A demanda crescente por igualdade se ex-pressava no objetivo da educação primária paratodas as crianças e no princípio de que todos oshomens jovens deveriam estar prontos para ser-virem às forças armadas. Chegou também aocampo religioso, onde até então os governoshaviam dado forte preferência aos adeptos da re-ligião oficial. Na Inglaterra, ainda no ano de1820, a lei enfatizava a desigualdade das reli-giões; assim, os católicos e os judeus não podiamvotar ou ter assento no parlamento, e os batistas ea maioria dos metodistas não podiam ensinar emuniversidades. Membros de religiões diferentesnão podiam ser casados em suas próprias igrejaspor pastores da própria religião. Bem antes dofim do século, entretanto, os adeptos de todas asreligiões se tornaram iguais em quase todos osquesitos nas Ilhas Britânicas, embora ainda nãofosse assim em todas as nações europeias.

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A onda europeia pela igualdade expressou-se numa crescente desconfiança dos direitoshereditários e na preferência por alguma formade republicanismo. Veneza, durante séculos,havia sido uma poderosa república aristocrática,mas a ascensão de uma nação poderosa como osEstados Unidos e a nova corrente de repúblicassul-americanas foram os anunciadores de umaépoca mais republicana no mundo inteiro. AFrança, após ter abolido e, em seguida, res-taurado a monarquia, tornou-se uma república em1870. A China, talvez a mais antiga monarquiacontínua do mundo, tornou-se uma república em1912. Na maioria das nações europeias, pareciaprovável que a monarquia, com o poder bastantereduzido sobrevivesse, mas o tumulto gerado nofinal da Primeira Guerra Mundial eliminou trêsdas fortes monarquias da Europa e não voltarama ser restauradas. As novas nações fundadas naEuropa, em sua maior parte, acabaram optando,após a guerra, por se tornarem repúblicas.

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As garrafas da igualdade

Essa sede por igualdade foi um marco daépoca, mas a igualdade foi rotulada e vendida emgarrafas de diferentes formatos e tamanhos. Emalgumas garrafas assim rotuladas, estava uma be-bida espumante de desigualdade; o nacionalismoestava em uma dessas garrafas. Enquanto todosos cidadãos de uma nação podiam ter um senti-mento de união e igualdade na presença de seusparentes, a igualdade não se estendia tão facil-mente assim aos povos de outras nações. Emborahouvesse uma apreciação mais intensa daigualdade no ar, nem sempre ela se estendia àspessoas pertencentes a outras classes sociais, epoderia não se estender aos novos imigrantes. Ointeresse em igualdade, às vezes, colidia com ointeresse em raça, partilhado por muitoseuropeus. Uma característica da segunda metadedo século 19, a fascinação com a raça, originou-se de uma mistura pouco comum de fatores. Foium século em que a busca por leis gerais em

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relação à natureza humana e a confiança de quetais generalizações podiam ser encontradas foi in-tensa. Ao mesmo tempo, o drástico aumento nocontato entre as pessoas que, por muito tempo,tinham estado distantes, geográfica e cultural-mente, voltou a atenção para as diferenças grit-antes que realmente existiam, diferenças queeram maiores do que provavelmente as existenteshoje. Boa parte desses comentários sobre raçasera inofensiva, mas alguns deles eram agressivos.Os povos da Europa Ocidental estavam encanta-dos com seu próprio progresso nessa época dovapor e da educação compulsória. Da plataformaelevada em que se encontravam, era fácil acharque eram inerentemente superiores, mental e fis-icamente, e assim permaneceriam. Não tinhamdúvidas de que, nesse aspecto, sua civilização es-tava bem à frente das civilizações da África Cent-ral e da China e, certamente, estava bem mais àfrente em termos materiais também.

Muitos dos que acreditavam que havia algode especial com seu próprio ramo de civilização

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europeia eram românticos e, geralmente, gener-osos em espírito. Muitos estavam ávidos por es-palhar sua cultura entre os diversos povos emsuas próprias colônias. Em quase nenhum lugarda Europa, considerava-se o fato de que essaonda emergente de idéias raciais e nacionalistaspoderia trazer consigo perigos tão alarmantes. Osjudeus vieram a ser as vítimas trágicas dessaonda de idéias, mas, em 1900, eram poucos ossinais no mundo, exceção feita ao Império Russo,de que essa onda fosse necessariamente malevol-ente. Aos judeus, pela primeira vez, foi permitidochegar à vida pública em muitas nações europei-as; pareciam ser um dos beneficiários especiaisdas ondas igualitárias da época. Na verdade, aAlemanha era vista como relativamente amiga, emilhares de judeus emigraram para cidadesalemãs onde exaltavam a vida profissional e in-telectual, eram proeminentes em música, pinturae escrita, e construíram maravilhosas sinagogas.

O principal lar dos judeus era na parte cent-ral e leste da Europa. Numa enorme faixa de

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terras que ia desde o Mar Báltico até o MarNegro - uma distância de mais de 1.200 quilô-metros -, os judeus eram em média mais de 10%da população total em cada um dos principaisdistritos. A Rússia governava a maior parte dessaárea e, ao contrário da maioria das outras naçõeseuropeias, restringia com firmeza os direitos dosjudeus, os quais tinham de viver em áreas es-pecíficas, o assim chamado "limite de povoa-mento", e não podiam entrar em certasprofissões.

Como povo, os judeus eram facilmenteidentificados, pois realizavam seus cultos aossábados. Para os propósitos religiosos, falavam eescreviam em sua própria língua, o hebraico, e nodiscurso diário falavam principalmente o iídiche,um dialeto do alemão medieval. Em alguns círcu-los europeus, eram alvo do preconceito cristão,sendo vistos com os descendentes daqueles quesupostamente haviam crucificado Cristo; algunsteólogos e intelectuais europeus até discutiamque Cristo não era judeu. Como banqueiros e

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agiotas, os judeus geralmente se sobressaíam.Parte do antissemitismo, particularmente nosanos de sério desemprego tinha um lado econ-ômico: era dirigido contra aqueles judeus ricosque formavam uma minúscula minoria ou contraos judeus agiotas que operavam em pequenascidades do Leste Europeu. No final do século 19,fosse nas artes, nas ciências, na medicina ou nodireito, os judeus se sobressaíam acima dequalquer proporção em relação a seus númerosna Europa Ocidental. Na Inglaterra, onde erampoucos, conseguiram atingir altos cargos. Oprimeiro-ministro conservador que presidiu aInglaterra de 1874 a 1880, o eloquente BenjaminDisraeli, descendia de judeus italianos e por-tugueses, e seu próprio pai, quando jovem, haviafrequentado a sinagoga. Dessa lenta sublimaçãoda igualdade, várias centenas de milhões de pess-oas que viviam na África e na Ásia nada gan-haram. A exigência por igualdade e liberdade emgrande parte da Europa coincidiu com algumasperdas de liberdade em partes de outros

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continentes. Com tantos povos asiáticos eafricanos agora governados por monarcas ou par-lamentos europeus, não era fácil conversar con-vincentemente sobre igualdade no Cairo, emTashkent, Xangai ou Calcutá. Talvez, pelaprimeira vez na história da humanidade, aigualdade era louvada como uma virtude, mas,ironicamente, centenas de milhões de pessoasviviam sob o domínio colonial das naçõeseuropeias que se destacavam na pregação dessamesma igualdade.

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CAPÍTULO 28 - Oglobo desvendado

Na Birmânia, em 1900, os donos de lojasao longo do rio Rangum estavam a par dosacontecimentos na Europa; os professores dasescolas nos vilarejos africanos sabiam algo daChina, uma terra sobre a qual suas avós talveznunca tivessem ouvido falar. Um esboço do con-hecimento sobre essas terras remotas agora faziaparte dos currículos de milhares de escolas. Ma-pas coloridos do mundo tornaram-se comuns; nosdias de Napoleão, é provável que nem mesmouma pequena fração da população europeiativesse posto os olhos em um mapa do mundo,mas, um século depois, a maioria das criançaseuropeias em idade escolar havia visto, pelomenos, um desses mapas ou um globo, e podiaaté recitar os nomes dos rios e montanhas de cadacontinente. Foi a última era de explorações do

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globo. Em quase todas as décadas do século 19,aconteceu uma descoberta geográfica de grandeimportância: a descoberta da nascente do RioNilo; a escalada do Matterhorn e de outrasmontanhas que haviam sido vistas anteriormentecomo inatingíveis; a descoberta das nascentes dosrios Amazonas, Mississipi e Congo; expediçõesao interior da Austrália, castigado pelo sol; adescoberta de Humboldt, a maior geleira domundo, na Groenlândia; e as viagens pelos rioscercados de florestas da Nova Guiné. Um dospoucos marcos simbólicos ainda não visitados erao Pólo Sul, que veio a ser alcançado em 1911pelo explorador norueguês Ronald Amudsen, sócinco semanas antes do inglês Robert Scott, queacabou morrendo na neve. Muitos desses marcosremotos, agora vistos e mapeados por descend-entes de europeus, há muito tempo eram vistospelos nativos das regiões. Os europeus apenas oscolocaram em perspectiva e os imprimiram sobreos mapas.

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Novas visões da longa história do mundovinham daqueles poucos que viajavam grandesdistâncias. Charles Darwin navegou lentamenteao redor do mundo num navio inglês na décadade 1830, visitando lugares tão inacessíveisquanto as Ilhas Galápagos, no leste do Pacífico, eadquirindo conhecimentos que levaram à teoriada evolução biológica, publicada pela primeiravez em 1859. Nos estreitos e ilhas do sudeste daÁsia, outro naturalista inglês descobriu independ-entemente a teoria de Darwin, deduzindo tambéma existência de uma impressionante linha di-visória que separava os habitats de muitas espé-cies de plantas e animais. Alfred Russel Wallace,professor e supervisor, tinha aproximadamente25 anos de idade quando se apaixonou pelahistória natural; decidindo colecionar aves exót-icas, em parte pelo prazer dos colecionadoreseuropeus que desejavam ficar em casa, ele nave-gou em 1848 até o Rio Amazonas para colheramostras e conservá-las. Em sua viagem de re-gresso, porém, seu navio pegou fogo, e muitos de

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seus espécimes e de suas anotações zoológicas seperderam.

Wallace não se deteve. Partindo para o ar-quipélago da Indonésia, foi de ilha em ilha, col-hendo espécimes de todas as coisas vivas quefossem diferentes e extraordinárias. Em 1862,com a coleta e suas observações quase termin-adas, voltou com as primeiras aves-do-paraísovivas a chegarem à Europa. Seus olhos atentos egrande memória montaram os fatos que lhe pos-sibilitaram provar que entre o sudeste da Ásia e aAustrália, especialmente visível entre as ilhas deBali e Lombok, havia uma barreira marítima pro-funda e permanente, daí em diante conhecidacomo linha de Wallace.

Ainda não se percebera que uma nova di-mensão dos oceanos estava esperando para serexplorada. Enquanto o olho humano conseguever, pelo menos sob tempo claro, as mais altasmontanhas da Terra, não consegue ver as cadeiasde montanhas presentes no fundo do mar, pois o

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mar bloqueia a luz do sol. Poucas pessoas cultassabiam que os mares ocupavam duas vezes maissuperfície do mundo do que as terras, e a existên-cia de cadeias de montanhas abaixo do nível domar não era conhecida. Foi quando um navioinglês feito de madeira, o HMS Challenger,equipado para sondar o fundo dos oceanos empartes remotas do mundo, partiu em 1872 e, emsua viagem, sistematicamente jogava ao mar umfio bem comprido para medir a profundidade dooceano. Sua primeira descoberta de importânciafoi uma cadeia sinuosa de montanhas situadabem abaixo da superfície do Atlântico e que cor-ria pelo fundo do mar numa linha Norte-Sul. Emnenhum ponto essa serra, ou Dorsal do Atlântico,chegava perto dos continentes americano eafricano. Em 1874, o Challenger aventurou-se atéo Sul, tornando-se o primeiro navio a vapor a at-ravessar o Círculo Polar Antártico. Ao dragar ofundo do gelado Oceano Antártico, seus cientis-tas encontraram fragmentos de rocha continentalcuja superfície havia se tornado mais lisa pela

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ação das geleiras. Essa descoberta, um pequenopedaço de terra ou grupo de ilhas, transmitindo oforte indício de que uma grande massa de terrasituava-se ao Sul, foi a evidência mais convin-cente até então encontrada da existência de umcontinente antártico. O mar ainda encobria mis-térios. Será que os continentes, agora separados,um dia foram um só? Um jovem meteorologistaalemão, Alfred Wegener, depois de viajar até aGroenlândia, fez uma observação abrangente deprofunda importância. Em 1912, ele elaborou ateoria da movimentação dos continentes; sugeriuque havia existido originalmente um único con-tinente maciço, que a parte tropical da África e aAmérica do Sul haviam sido ligadas, que aAmérica do Sul e do Norte nem sempre foramunidas, que as montanhas do Himalaia surgiramda pressão dos continentes que lentamentecolidiram uns com os outros, e que os atuais con-tinentes não eram fixos, mas estavam aos poucosse separando ou se aproximando mais. Suas bril-hantes idéias foram consideradas absurdas e só

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ganharam respeito na década de 1960, muitotempo depois de sua morte. Com um maior con-hecimento do globo e a influência do movimentoromântico, vieram uma percepção de que omundo era salpicado de lugares estranhos que po-deriam arrancar suspiros de admiração dosamantes da natureza. Os gregos antigos haviamlistado suas maravilhas do mundo, sendo pratica-mente todas elas construções criadas pelos seuspróprios artistas e arquitetos dentro de umpequeno raio das cidades de Atenas e Alexandria.Em 1900, ao contrário, muitos viajantes preferi-am os grandes espetáculos da natureza às grandesconstruções da Grécia, Roma, China e Índia. Al-guns apontavam para as Cataratas do Niágara, osAlpes Suíços, o Himalaia, os portos de HongKong, o monte em forma de mesa da Cidade doCabo; as árvores de Yosemite, na Califórnia; ofiorde de Milford Sound, na Nova Zelândia; aságuas barrentas do rio Irrawaddy, na Birmânia;enquanto outros colecionavam um conjuntodiferente de cartões-postais coloridos. Supunha-

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se, na época, com muito mais confiança do quehoje, que essas maravilhas nunca poderiam, deforma alguma, ser postas em perigo.

Muitos viajantes de sorte se maravilharamcom as plataformas vulcânicas e as escadariasrochosas da Ilha do Norte, na Nova Zelândia.Uma dessas enormes plataformas era de um rosadelicado com cristais parecidos com pingentes degelo rosados. As águas de outra plataforma foramdescritas, com grande admiração, pelo historiadoringlês J. A. Froude em 1885: "A coloração daágua era algo que eu nunca havia visto e nuncahei de ver novamente deste lado da eternidade."Não era da cor da violeta nem dos jacintos daInglaterra - as flores que ele tanto adorava -, nemda safira, nem azul-turquesa; um mestre da prosainglesa, ele confessou não conseguir achar umaforma de transmitir "o sentido daquela belezasobrenatural." Um ano depois, essas plataformasrosadas e brancas foram totalmente destruídas,quando pedras, cinzas e lama quente jorraram dovulcão situado próximo ao local. Em 1901, no

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centro árido da Austrália e longe da ferrovia maispróxima, uma ligação milagrosa foi feita entre oséculo 20 e a era dos nômades. O prof. BaldwinSpencer e F. J. Gillen captaram as danças dosaborígines com uma das primeiras câmeras exist-entes e gravaram suas canções assombrosas nocilindro de cera de um fonógrafo. Como osilustres visitantes não tinham baterias nem eletri-cidade, foram forçados a rodar a manivela dacâmera continuamente para fornecer a força mo-triz, além disso, não tinham alternativa a não serfixar a câmera numa determinada posição porlongos períodos de tempo para que ela apontassecontinuamente na direção certa. Spencer decidiuvirar a câmera para um grupo de homens seminusque, batendo seus pés descalços e levantandopoeira, executavam a dança de uma antigacerimônia para fazer chover. Os dançarinos,sabiamente não interessados na posteridade, derepente começaram a fazer um "grande movi-mento circular" e, aos poucos, saíram do ângulo

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de visão da câmera. Assim, uma grande parte doprecioso filme foi desperdiçada.

Foi uma ocasião e um sinal do tempo notá-veis. Aí estavam os representantes de uma formade vida quase extinta que havia dominado omundo inteiro em 10000 a.C, encontrando-secara a cara com o mais recente passo da tecnolo-gia. Os dançarinos aborígines mantinham a per-cepção de que eles possuíam a chave do uni-verso. Enquanto dançavam, suas vozes, poiseram mímicos impressionantes, imitavam o gritodas tarambolas ou maçaricos, espécies de aves ecomuns na região. Os aborígines acreditavam quesua imitação do grito dessa ave faria com que achuva caísse sobre o chão cheio de poeira, que hámuito havia ressecado.

No encolhimento do mundo, os sobre-viventes dos caçadores e lavradores, que um diahaviam tido todo o poder na face da Terra, foramos maiores perdedores. Mais tarde, a maioria deseus descendentes provavelmente seria

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readmitida num mundo mais amplo, mas a ger-ação que enfrentou pela primeira vez a nova, po-derosa e incompreensível forma de vida europeianão podia fazer nada senão sentir-se aturdida.Eles já ocupavam suas terras há milhares de anos,e o futuro parecia eterno. Nesse sentido, foramexcepcionalmente privilegiados. Eles con-seguiram reter, por muito mais tempo do que to-das as outras sociedades humanas, uma forma devida tradicional baseada no luxo de um pequenonúmero de pessoas que possuía espaços enormese, geralmente, de grandes atrativos. Mas, no final,a extinção da antiga forma de vida nômade haviasido incentivada pelo monopólio aristocrático eineficaz do que estava se tornando o mais escassodos patrimônios mundiais: terra na qual plantaralimentos e encontrar abrigo.

O avanço material da raça humana e a mul-tiplicação de seus números dez mil anos anteri-ores tinham sido resultado principalmente do usohabilidoso e criativo da terra, das plantas, dos an-imais e das matérias-primas. Agora, na Austrália,

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nas margens geladas do Hemisfério Norte e noscantos áridos da parte sul da África, os últimosnômades estavam recebendo o chamado, com ur-gência e, às vezes, violência, para saírem do cam-inho ou se unirem ao grupo. Como poderiam seunir? Eles não tinham as habilidades, atitudes,valores e incentivos que lhes permitiriam, semmuita dificuldade, tomar parte nesse grupo.

O tapete do mar

Novas rotas de navegação estavam unindoos continentes com uma velocidade e segurançanunca vistas antes. A navegação era barata, e ocusto do transporte de mercadorias tinha sido re-duzido. Mercadorias a granel, como o carvão, otrigo, o algodão, o ferro-gusa e o petróleo, eramtransportados por baixo custo de uma extremid-ade do mundo à outra; porém, algumas geraçõesantes, somente mercadorias preciosas como a pi-menta, o marfim e o ouro podiam se dar ao luxo

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de serem transportadas por longas distâncias emnavios. Os filhos dos faroleiros do Cabo Horn, setivessem curiosidade pelos navios que passavampor ali, podiam apreciar, sob tempo bom, umaprocissão esporádica de imponentes veleiros comseus mastros altíssimos carregando nitrato, dacosta seca do Chile até a Alemanha, onde oproduto estava se tornando um valioso fertiliz-ante. Talvez conseguissem avistar navios car-regando fardos de algodão da Austrália para aInglaterra, ou madeira do pinheiro de Oregonpara a Europa, vinda da costa noroeste daAmérica. O Canal do Panamá, esse notávelatalho situado na América, só terminou de serconstruído em 1914.

A migração livre ou semilivre nunca haviaacontecido em tão larga escala, fossem alemães eirlandeses rumando para os Estados Unidos, itali-anos e ibéricos para a América do Sul, japonesespara o Havaí, ingleses para o Canadá e NovaZelândia, chineses para a Península da Malásia eJava, gauleses para a Patagônia ou indianos para

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Fiji e para a província sul-africana de Natal.Mensageiros de cultura também atravessavam omundo em número sem precedentes. Missionári-os médicos e cristãos, homens e mulheres,chegavam aos milhares à China, à Índia, à Áfricado Sudoeste (de colonização alemã), à Indochinafrancesa e aonde quer que fosse permitida sua en-trada: na prática, a entrada era permitida emquase todas as terras durante o auge da Europa.Na África, um dos famosos exploradores foiDavid Livingstone, um operário fabril escocêsque se tornara missionário cristão, enquanto omissionário médico Albert Schweitzer, nascidona Alsácia, passou a maior parte de sua vidaajudando as vítimas da lepra e da doença do sonono Gabão. Missionários, tais como o PadreDamien, de origem belga, que morreu enquantoajudava os leprosos no Havaí, eram heróis dopovo, numa época em que ainda não se pensavaem aclamar jogadores de futebol como heróis.Músicos também riscavam o mundo e, na viradado século, o jovem tenor italiano Enrico Caruso

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dividia seu ano entre casas de ópera em BuenosAires, Nova York e Europa. Os impérios globaisfacilitaram a abertura de trilhas profissionais aoredor do mundo.

Esse processo de muitas caras acabousendo chamado, no fim do século 20, de globaliz-ação. Certamente era internacional e global, mastambém era radicalmente nacional. Embora omundo estivesse se tornando um só, continuavadividido. O mapa foi fragmentado em impérioscontrolados a partir da Europa. Uma grande partedo mundo havia sido dividida entre as potênciasimperiais europeias antes de 1850, e a fase finalda subdivisão aconteceu nos cinquenta anosseguintes, quando colônias tão distantes entre si,como a Nova Guiné e o leste da África, foramadquiridas pela Alemanha, o Congo tropicaldominado pela Bélgica, partes do nordeste daÁfrica rendidas à Itália, a Nova Caledônia e amaior parte da Indochina dominadas pela França,uma imensa área de rochedos e planícies na partecentral da Ásia absorvidas pelo Império Russo, e

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um conjunto de ilhas e enormes pedaços de terrado continente rendidos à Inglaterra, que era, comcerteza, o maior possuidor de colônias. Até osEstados Unidos, com certa relutância, entraramna corrida comprando o Alasca e tomandocolônias espanholas que iam desde Cuba até asFilipinas. Em 1900, a maior parte do mundo eragovernada pelas potências coloniais. Os mapascoloridos do mundo eram pontilhados e traceja-dos com o vermelho que era bastante usado peloscartógrafos para simbolizar o Império Britânico.A Rainha Vitória, que veio a morrer em 1901,governou um império incomparavelmente superi-or ao dos mongóis. Seu império foi o primeiroonde o sol nunca se pôs.

O tímido império das idéias

Se o Império Romano, em sua extensão elongevidade, foi um prodígio, vários impériosque estavam florescendo em 1900 foram ainda

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maiores. A Rússia, os Estados Unidos e a Chinaocupavam, cada um, uma área maior que a doImpério Romano. Da mesma forma, os impériosda Inglaterra e da França por todos os mareseram mais extensos em área do que o total dascolônias de Roma, embora o controle da Europasobre a vida cotidiana de suas colônias provavel-mente fosse menos abrangente do que o deRoma, nos limites de seu império.

Existem duas categorias de império: uma éa física, consistindo, como os impérios romano ebritânico, de colônias e possessões; a outra cat-egoria é o tímido império de idéias. No século19, a Europa expandiu sua influência muito maisatravés de seu império de idéias do que atravésda posse de novas colônias.

Ao mesmo tempo, um tímido império deidéias estendia-se na direção oposta. Por volta de1900, um oceano de grandes idéias silen-ciosamente correu da África e da Ásia para acivilização europeia. Na arte, o cubismo francês

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foi bastante influenciado pela arte da parte oesteda África. Escritores famosos, tais como JackLondon e Rudyard Kipling, enxergaram virtudesnos inuítes e nos indianos. Um novo respeito pelanatureza, em partes da sociedade ocidental, signi-ficava que os assim chamados "povos primit-ivos", que viviam próximos à natureza do outrolado do globo, tinham virtudes anteriormente ig-noradas. A fundação do movimento internacionaldos escoteiros, em 1907, refletia a crença de quemuito podia ser aprendido com os lobos, assimcomo nos livros de Cambridge e Tubingen. Oconhecimento profano estava predominando, em-bora devesse muito aos impulsos religiosos.Desde que certos segmentos do protestantismohaviam incentivado a idéia de que todos deveri-am ser seus próprios sacerdotes e sacerdotisas, acapacidade de leitura tornou-se fundamental. APrússia, a Holanda e a Escócia protestantes, cadauma relativamente pequena em população e área,lideravam a corrida da alfabetização, bem como abusca geral do conhecimento. Os locais de

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aprendizagem da Escócia continuavam a produzirtantos jovens talentosos que o país não os podiausar com eficácia e, assim, eles marcharam parao sul, rumo a Londres, onde a indústria de pub-licação de livros, provavelmente a maior domundo, tornou-se um reduto escocês longe decasa. Os judeus também se destacaram na buscapor educação. Seu papel na indústria do conheci-mento foi mais influente do que seus pequenosnúmeros sugeriam; o conhecimento era seu bemimóvel, seu título de propriedade.

Tradicionalmente, na maior parte domundo, a posse de terras havia conferido renda,status social e direitos políticos àqueles que aspossuíam. O conhecimento agora desafiava o pa-pel econômico das terras, embora ainda nãofizesse incursões profundas no status provenienteda posse de terras. Em 1900, nos Estados Unidos,na França, na Inglaterra e na Alemanha, onúmero de pessoas que tiravam seu sustento doconhecimento de forma satisfatória e bem remu-nerada era praticamente o mesmo das pessoas

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que o tiravam da posse de terras, minerais e out-ros recursos naturais. O conhecimento era a novafronteira; houve praticamente uma corrida peloconhecimento, assim como havia acontecido acorrida pelo ouro na Califórnia e na Austrália,meio século antes. A capacidade de expandir oconhecimento era quase um certificado de qualid-ade das nações líderes, e nenhum outro períodohavia visto tal acúmulo de conhecimentos degrande utilidade. Albert Einstein, o físico, foipraticamente visto como o gênio da primeirametade do século 20, mas ninguém poderia dizerisso com certeza, pois as teorias cultas formula-das por esse brilhante e modesto judeu-alemãoeram entendidas por poucos. Cada campo do con-hecimento era agora o domínio de especialistas, epouquíssimos especialistas conseguiram pular asaltas cercas projetadas para separá-los dos cam-pos externos. A especialização era o segredo dosucesso da Europa, mas trazia consigo grandesperigos para os especialistas, mais ainda do quepara a civilização que ganhava com suas

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pesquisas. Às vezes, reclamava-se em sussurros,pois era herético o pensamento de que, se o con-hecimento, ou seja, a sabedoria, era realmente tãoimportante, por que a maioria dos especialistasestava satisfeita com a posse de uma porção tãopequena e concentrada de conhecimento?

Nenhuma terra podia esconder-se dessa in-vasão de conhecimento. O Japão tivera períodosem que se escondera e, apesar disso, mantivera avitalidade e a criatividade em seu isolamento. Nofim do século 16, no encerramento de seuprimeiro período de contato com a Europa, oJapão manufaturava mais mosquetes quequalquer outro país da Europa. Na década de1850, estendeu suas mãos ao mundo novamente,abrindo seus portos aos navios estrangeiros. Nadécada de 1860, começou a moldar o seu exércitocom base nos franceses, e sua marinha, com basenos ingleses. Em 1876, a proibição do uso de es-padas era outro sinal da rejeição de seu passadofeudal. A construção de ferrovias, fortementecriticada por alguns japoneses, foi mais um sinal.

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A remodelagem do Japão foi enérgica e decisiva.Em 1895, saiu vitorioso em sua breve guerra coma China e dez anos depois venceu, para a surpresado mundo, sua breve guerra com a Rússia. Alonga e orgulhosa fase de auto-isolamento da Ch-ina, ao contrário, terminou em humilhação. Emmuitos de seus portos, os europeus faziam suaspróprias leis, e Xangai rapidamente estava se tor-nando uma cidade europeia. O trono da China,que um dia fora todo-poderoso, em breve veio acair. Havia até uma perspectiva de que a Chinaseguisse o destino da África e fosse divididaentre as potências europeias. Foi um salto ex-traordinário nas relações entre a China e aEuropa. Se essa humilhação no trono e na culturativessem sido possíveis, por exemplo, em 1400,os chineses é que teriam enviado missionáriosbudistas a Dublin, que operariam as alfândegasem Hamburgo e Constantinopla e que ameaçari-am dividir a Europa se as pessoas não se compor-tassem adequadamente.

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Ao redor do mundo, a maioria dos portõesfechados foi aberta, com exceção dos de Meca,que permanecia uma cidade proibida para os in-fiéis. Mesmo assim, muitos árabes que partiamem suas peregrinações legítimas gostavam deusar tecidos coloridos feitos em Manchester.

A ascensão do noroeste da Europa

Por vários milhares de anos, houve somentedois centros duradouros de inovação e poder eco-nômico: um foi o leste da Ásia e o outro foi oMediterrâneo, principalmente as terras próximasàs suas margens do leste. Dos impérios ocidentaisinfluentes antes de 1500, os egípcios, os meso-potâmios, os gregos, os romanos, os helênicos eos bizantinos situavam-se nessa zona relativa-mente pequena. O leste do Mediterrâneo foi nãosó o local de nascimento das três religiõesocidentais mais influentes – o judaísmo e seussegmentos, o cristianismo e o islamismo -, mas

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também o berço da maioria das inovaçõesocidentais, indo desde os métodos de agriculturae metalurgia até a escrita, a aritmética e, atémesmo, o Estado.

A ascensão do noroeste da Europa aodomínio do cenário mundial, nunca conquistadopelos antigos impérios do leste do Mediterrâneo eda Ásia Menor, não podia ter sido prevista no anode 1600. A ascensão não podia ser evitada, mas,revendo o passado, alguns fatores fortes já es-tavam promovendo esse fato. Com a descobertadas Américas e a abertura da longa rota marítimaque passava pelo Cabo da Boa Esperança até aÍndia as índias Orientais e a China, o noroeste daEuropa tinha uma vantagem, pois, com certeza,Amsterdã e Londres encontravam-se numaposição tão favorável quanto a costa oeste daItália e a costa mediterrânea da Espanha para es-coarem as riquezas do Novo Mundo pelosoceanos.

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O protestantismo foi parte dessa energia donoroeste da Europa. Esse movimento religiosofloresceu principalmente no lado norte dos Alpes.Pode-se afirmar, quase com certeza, que era maisfácil que uma reforma obtivesse sucesso quandoacontecia longe de Roma e daquelas outras cid-ades e principados italianos em afinidade com opapado e com interesse econômico e emocionalem apoiá-lo. Além disso, a Reforma, em seusprimeiros anos, foi adotada e promovida pelosexpoentes desse comércio e capitalismo, bastanteconcentrado em tecidos, que já eram vigorososno noroeste da Europa. Com algumas exceçõesimportantes, as crenças protestantes eram maissolidárias com o espírito de pesquisas que odesenvolvimento da ciência e da tecnologia exi-gia. A geografia promoveu a ascensão donoroeste da Europa de outra forma. Essa regiãofria, com seus longos invernos, era uma grandeconsumidora de combustível. Como a Inglaterra,a Bélgica e outras partes da região começaram aficar sem o fornecimento barato de lenha,

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voltaram-se para as jazidas rasas de carvão situa-das na costa. Aconteceu que essa região eramaravilhosamente abundante em carvão em com-paração com a Itália, a Grécia, o Egito, o Cres-cente Fértil e todas as terras do leste do Mediter-râneo e do Golfo Pérsico. Com o tempo, a ex-ploração do carvão levou, embora não automat-icamente, à máquina a vapor e ao alto-forno decombustão de carvão. A máquina a vapor foi oagente mais poderoso da globalização até entãovivida, pois levou direta e indiretamente aosmotores dos carros e das aeronaves e à era do gáse do óleo. Portanto, uma mistura de fatores maise menos importantes ajudou o noroeste daEuropa a suplantar regiões mais quentes e maissecas: o Mediterrâneo e o Oriente Médio. AEuropa Ocidental explorou sua geografia com umespírito de aventura intelectual e comercial comoo mundo provavelmente nunca havia visto antes.Os Estados Unidos mostraram o mesmo espíritode aventura, com mais efeito ainda. Um pratocheio de recursos e energia de conhecimento:

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eram potencialmente mais ricos que o noroesteda Europa e, já em 1900, tinham mais habitantesdo que a combinação de quaisquer dois paíseseuropeus juntos. Eram também unidos, ao passoque a Europa era dividida. Nada moldou mais oséculo 20 do que a união cada vez maior daAmérica do Norte e a crescente desunião daEuropa.

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CAPÍTULO 29 - Asguerras mundiais

A história do mundo poderia ser escritacomo uma sequência de guerras entre clãs, tribos,nações e impérios. Inúmeras guerras, registradasou não, aconteceram nos últimos dez mil anos.Certamente, a paz é uma condição mais normalque a guerra, mas a guerra e a paz estão unidasem sua causa. Assim, um período memorável depaz depende do resultado da guerra anterior e daimposição desse resultado. A paz entre as naçõesde uma determinada região é geralmente res-ultado de um acordo baseado na classificação deimportância de cada uma delas, o qual é fruto deuma guerra ou de uma ameaça de guerra. NaEuropa, em 1914, infelizmente, não se conseguiuchegar a nenhum desses acordos.

A última guerra de importância da Europa,travada entre a França e a Prússia em 1870 e

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1871, havia sido rápida e, por conseguinte,acreditava-se que as guerras de curta duraçãoseriam o padrão daí em diante. A PrimeiraGuerra Mundial foi iniciada acreditando-se que aguerra em si ainda era a solução mais rápida eeficiente para os problemas. Ambos os lados es-peravam vencer, e vencer rapidamente, uma vezque a tecnologia militar parecia muito mais deci-siva do que antes.

Uma guerra em impasse

A guerra começou em agosto de 1914 eacreditava-se que fosse vencida antes do Natal oulogo depois. Quando os alemães e seus aliados,os austro-húngaros, entrechocaram-se com osrussos no Leste Europeu, lutando contra os exér-citos francês e inglês nas planícies do norte daFrança, e os austríacos lutavam contra os sérvios,a guerra parecia estar caminhando rapidamentepara um fim bem próximo. A Alemanha acabou

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saindo como vencedora precoce, mas as baixasforam enormes. O poder de fogo das metral-hadoras mais modernas e das armas pesadas,puxadas por cavalos, era tão devastador que ossoldados que avançavam contra o inimigo eramdizimados aos milhares, e os que os substituíamtambém acabavam tendo o mesmo destino. Noespaço de alguns meses, na maior parte dos cam-pos de batalha, os soldados tinham de cavar cen-tenas de quilômetros de trincheiras e fazer murosde arame farpado para sua própria proteção. Aslongas trincheiras dos campos de batalha, comprofundidade suficiente para um soldado ficar empé e não ser visto pelo inimigo próximo, eram, naverdade, nada mais que uma forma de escudo.

Mas os exércitos inimigos pararam demover-se rapidamente, como nas guerras passa-das, e a guerra, então, tornou-se defensiva. Qu-alquer tentativa de um exército de deixar o abrigodas trincheiras e movimentar-se para a frente ger-almente levava à conquista de uma faixa minús-cula de território, até que uma chuva de granadas

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e balas vindas do lado oposto forçassem uma re-tirada. Em dias como esses, as mortes eram con-tadas às dezenas de milhares.

Na maioria das frentes de batalha, nas últi-mas semanas de 1914, a guerra atingiu um im-passe. O que era para ser a Grande Guerra de1914 tornava-se a Grande Guerra de 1914-1915,e, mesmo assim, os meses continuavam a passar.Em abril de 1915, numa tentativa de acabar com

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o impasse, ingleses e franceses, junto com os aus-tralianos e os neozelandeses, lançaram uma novafrente nas praias da Turquia, junto a Galípoli, naentrada do Estreito de Dardanelos. Esperavamderrotar a Turquia em poucas semanas, usar oDardanelos liberado como rota marítima aos por-tos do sul da Rússia e, assim, enviar armas e mu-nições que poderiam equipar os enormes exérci-tos russos; e esperava-se, ainda, que os exércitosrussos pressionassem os alemães na frente orient-al. Os turcos, porém, cavaram trincheiras comoescudo, impediram o progresso desse setor daguerra e forçaram os invasores a se retirar no fimdaquele ano.

O impasse militar desafiou as previsões detodos, com exceção de alguns generais de grandetalento e de estrategistas teóricos. Nada parecidohavia sido visto na história do mundo. É comumculpar os generais, mas, na maioria dos países emguerra, até as mães, esposas e namoradas inicial-mente estavam dando apoio, acreditando que,com a ajuda da propaganda, o eterno

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derramamento de sangue terminaria mil-agrosamente com a derrota do inimigo exausto.

A guerra, com todas as suas surpresas e in-certezas, foi temperada de hipóteses. Se a Rússiapudesse ter recebido apoio em 1915, o czar e seusministros poderiam ter mantido controle sobre aagitação de seu país. Mas o fracasso de três anosconsecutivos de lutas dizimou as forças de umczar já ofegante. Em 1917, duas revoluções, umaatrás da outra, explodiram com Lênin e seuscomunistas assumindo o controle, e com a Rús-sia, consequentemente, retirando-se da guerra.

No início de 1918, a Alemanha ainda tinhauma chance de lutar e vencer a guerra ou nego-ciar uma paz favorável. Os Estados Unidos, en-trando na guerra mais tarde, não eram vistoscomo capazes de exercer forte influência. Alémdisso, o principal aliado da Alemanha, o impérioaustro-húngaro, ainda estava com o controlefirme da linha de frente nas montanhas, contra aItália. Com grande coragem, os alemães

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começaram uma ofensiva que, em março de1918, ganhou território e aproximou-se de Paris.Aos poucos, o destino da guerra virou contra aAlemanha, que começou a sofrer porque o acessoa comida e matérias-primas, bem como o forneci-mento de munições e de homens, favoreciam osinimigos. Suas linhas de frente foram atacadas agolpes de martelos. Em setembro de 1918, os ali-ados da Alemanha estavam prestes a se render.Os búlgaros se renderam; os turcos, lutando paramanter seu antigo Império no Oriente Médio, es-tavam também próximos da rendição. O impérioAustro-Húngaro estava em vias de se despedaçare, em outubro, como consequência, a Iugoslávia ea Tchecoslováquia se proclamaram repúblicas.Na Alemanha, à medida que o inverno se aprox-imava, o moral dos civis, e mesmo o dos solda-dos, começou a dar sinais de fadiga. Alimentos eroupas eram escassos: o bloqueio do inimigohavia causado seus danos. Em 3 de novembro de1918, marinheiros alemães se amotinaram emKiel. Em 9 de novembro, uma revolução

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socialista tomou conta de Munique, enquanto oimperador da Alemanha, o Kaiser Guilherme, ab-dicava de seu trono em Berlim. Dois dias depois,em 11 de novembro, a Alemanha e seus aliadosassinaram o armistício. Para os soldados, foi amais terrível das guerras que o mundo havia con-hecido; para os civis, a Rebelião de Taiping haviasido pior. Dos 8,5 milhões de soldados e marin-heiros que morreram na Primeira Guerra Mundi-al, a Alemanha foi a que mais perdeu, seguidapela Rússia, França, Austro-Hungria, Inglaterra eseu império. Além disso, mais de 20 milhões desoldados foram feridos, e a lista dos mortos e mu-tilados não incluía talvez cinco milhões de civisque morreram como resultado direto da guerra.De apartamentos lotados em Moscou a fazendasde ovelhas na Nova Zelândia, havia milhões deconsoles de lareiras com seus porta-retratos e fo-tografias em preto-e-branco, mostrando jovenssérios ou sorrindo, mortos na guerra que todosagora chamavam de a "Grande Guerra", sem per-ceber que uma guerra ainda maior estava apenas

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vinte anos à frente. Sem a Grande Guerra,provavelmente a Revolução Russa e a vitóriacomunista não teriam ocorrido. Mas se não fosseessa guerra, os monarcas ativistas teriam continu-ado em todo o seu esplendor a reinar em Viena,Berlim-Postdam e São Petersburgo, e o sultãoteria presidido o Império Turco, um império quetambém acabou desaparecendo. Se não tivesseacontecido essa guerra, Hitler provavelmente ser-ia desconhecido, pois foi da amargura da derrotaalemã que ele surgiu, assim como Mussolini sur-giu como ditador da Itália, principalmente por ex-plorar a grande decepção pós-guerra de seu povo.Nas discussões ocorridas nas mesas da Conferên-cia de Paz de Versalhes em 1919, estavampresentes grandes esperanças e também umdesejo de vingança. Muitas nacionalidades apro-veitaram a chance de estabelecer suas própriasnações: foi uma festa para os cartógrafos. NaEuropa, havia agora 31 estados e nações onde, navéspera da guerra, havia somente 20. Alguns dosnovos estados eram pequenos e alguns grandes,

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tais como a Polônia e a Hungria. A maioria optoupor tentar implantar a democracia, nem sempreobtendo sucesso. Alguns se tornaram ditaduras.

A guerra, muito mais longa do que se haviaesperado em 1914, foi um choque para o otim-ismo, que havia criado raízes na maior parte daEuropa durante os 99 anos relativamente pacífi-cos, prósperos e civilizados desde a derrota deNapoleão. Ainda assim, muitos europeus to-maram coragem. Uma mesa-redonda permanentede diplomacia, chamada Liga das Nações, foi es-tabelecida em Genebra. Como parlamento de paz,era possivelmente o experimento mais corajosoda história de todas as nações até aquela época.Esperança dos liberais e idealistas do mundo,acabou se tornando meramente um clube dedebates.

Sem a Grande Guerra, a Inglaterra e aEuropa teriam permanecido dominantes nomundo das finanças; de fato, durante o evento,tiveram de tomar dinheiro emprestado de outros.

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Assim, os Estados Unidos, principalmente nosanos da guerra em que se mantiveram neutros,tornaram-se os financistas do empenho de guerra.Uma das causas da depressão mundial que estavapor vir foi o novo poder financeiro dos EstadosUnidos na década de 1920. Relativamente inex-perientes como líder mundial, tolerantes com osciclos de crescimento e de revés, e felizes em as-sistir à bolsa de valores de Wall Street agir comomaestro da banda, eles levaram um mundo já in-stável em direção a uma instabilidade crônica.Outra causa visível da virada econômica de 1930foi a tentativa da Inglaterra de restaurar fin-anceiramente o mundo pré-1914 e sua ânsia porpreços estáveis. Mas não se deve ser muitocrítico com essas tentativas; depois da catástrofede uma guerra como essa, uma tentativa determ-inada de montar as peças do quebra-cabeçapacífico desse passado perdido era quase inev-itável. Em muitas nações, na década de 1920, odesemprego nos meses mais difíceis excedeu os10%. Era, em parte, o resultado dos

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deslocamentos causados pela velocidade dasmudanças. Novas indústrias e regiões industriaissurgiam e desapareciam. A mudança de trabalhodas fazendas para as fábricas continuava, porémas fábricas tinham mais probabilidade de sofrercom sérias quedas repentinas dos preços do queas fazendas. Nas fazendas, quando os preços es-tavam em baixa, as mãos continuavam a trabalhara salários mais baixos ou, pelo menos, podiamplantar a maior parte de seus alimentos. Nasfábricas de carros, pneus ou tecidos, quando asquedas vinham, os trabalhadores ficavam emcasa e não tinham de onde tirar o sustento. Osgovernos e os economistas, além disso, não tin-ham certeza de como lidar com a depressão; oprincípio que prevalecia era de que não deveriamfazer nada e que a economia, após engolir seu re-médio na forma de alto desemprego e baixossalários e lucros, rapidamente se restabeleceria. Odesastre financeiro do mercado de ações de WallStreet, em outubro de 1929, é hoje visto como opontapé inicial. A confiança financeira

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despencou, as pessoas pararam de comprar e, porconseguinte, mais empregos foram destruídos. Ataxa de desemprego subiu, excedendo 30% emalgumas nações industrializadas em 1932, seu pi-or ano. Uma depressão econômica desse nívelnão tinha precedentes; foi o empurrão de que ocomunismo e o fascismo precisavam, levando àSegunda Guerra Mundial, que, na verdade, foi oresultado do que cada vez mais era visto comouma Primeira Guerra Mundial inacabada. Hitler,na Alemanha, e Stalin, na Rússia, moldaram aguerra que estava por vir; foram os líderes decis-ivos quando a guerra explodiu em 1939, umadata de sua escolha, e rapidamente se tornaramaliados.

Adolf Hitler vinha de uma cidade à beira deum rio, na Áustria, onde seu pai era um oficialsecundário da alfândega. Um suposto artista, eleassimilou parte do antissemitismo de Viena eparte do patriotismo que borbulhava em Muniquequando da deflagração da Primeira GuerraMundial. Alistando-se no exército alemão,

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ganhou a Cruz de Ferro por sua coragem nafrente ocidental. Tendo sido um dentre os solda-dos alemães que, em 1918, ficaram atordoadoscom a perda de moral em casa, quando o moralainda estava sólido em muitas partes do exércitosob forte pressão, Hitler deu vazão a seu senso detraição no regresso à vida civil, infiltrando-se nasmargens da política. Em 1919, com 30 anos deidade, ele se tornou chefe de um pequeno partidopolítico da Baviera, o Partido Nacional-SocialistaAlemão do Trabalho. Seu partido desenvolveuum exército particular, que se sobressaía em lutasde rua contra os marxistas e outros partidos deesquerda. Hitler conhecia a Alemanha; sua bril-hante oratória, auxiliada pelos treinamentos astu-ciosos que recebera, aquecia os corações de mui-tos alemães que sentiam que sua nação e seumundo haviam sido injustamente torpedeados em1918. Falava com tanta energia física e emocion-al que sua camisa, depois de um discurso de duashoras, ficava encharcada de suor. O recém-inventado alto-falante e o rádio ajudaram a

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difundir sua mensagem; poucos líderes de partidona Europa foram mais velozes do que ele emlançar mão de inovações.

A depressão mundial, no início da décadade 1930, fomentou ansiedade e uma premoniçãode caos. Hitler prosperou com base exatamentenesses medos. Muitos alemães viam Hitler comoum defensor bem-vindo da lei e da ordem. Omedo do comunismo lhe rendeu cada vez maisapoio dos pequenos fazendeiros e donos de lojas.Ele e sua oratória apelaram para o orgulhoalemão e exploraram o ressentimento generaliz-ado de que a Alemanha havia sido derrotada in-justamente num jogo no qual há muito tempo opaís se sobressaía, o jogo da guerra.

Nas eleições de 1930, o partido de Hitlerampliou sua votação. Em 1932, novamente du-plicou sua votação, tornando-se o maior partidopolítico alemão; em janeiro do ano seguinte, jun-tou uma coalizão de partidos menores de direita,e Hitler foi formalmente apontado como

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chanceler. Em pouco tempo, tornou-se efetiva-mente um ditador. A perseguição aos judeus, asupressão dos sindicatos de trabalhadores e aopressão das liberdades civis estavam em anda-mento. Em 1934, o então presidente, já idoso,veio a falecer, e Hitler, com consentimento popu-lar, assumiu total controle.

Na verdade, ele era mal preparado para opoder, não gostava de administração e de tra-balho de escritório; até chegar ao poder, seuposto oficial mais elevado tinha sido o de um hu-milde cabo do exército.

Um ditador mais ao leste

Joseph Stalin não era o nome verdadeiro dogovernante da Rússia. Organizador e agitadorque havia cumprido sentenças nas prisões daSibéria como punição por suas atividades polític-as, assumiu o nome de Stalin, que significava

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"homem de aço", logo após a revolução vitoriosade 1917. Como editor do jornal comunistaPravda, tinha acesso a informações sigilosas,tornando-se cada vez mais poderoso. Chefe dogoverno, após a morte de Lênin em janeiro de1924, ele começou a eliminar os rivais pessoais eimaginários. Fortaleceu as forças armadas e, paraa economia, lançou o primeiro de seus ousadosPlanos dos Cinco Anos, em 1928. Embora a novaUnião Soviética ainda sofresse de muitos males edescontentamentos econômicos, não vivia nen-huma fase oficial de desemprego e garantia quequase todas as mãos ociosas seriam colocadas atrabalhar. A nação, com isso, acabou escapandoda depressão, e o fato serviu como um maravil-hoso impulso para seu prestígio. Com váriasnovas usinas elétricas, fábricas e minas, Stalinconseguiu converter a Rússia em uma potênciaindustrial. Executou a mudança mais radical naagricultura já feita por qualquer outro gov-ernante: transformou as fazendas particulares emfazendas coletivas, uma mudança radical e

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impressionante, pois seu povo estava muito maisenvolvido em agricultura do que qualquer outranação europeia em qualquer época, e a maioriados camponeses tinha um sentimento de possemuito forte em relação às suas terras e um grandeódio das fazendas coletivas por ele criadas. Oscamponeses que resistissem à política de colet-ividade eram deportados, mortos ou subjugadospela fome. Stalin acreditava que o comunismopereceria, que ele mesmo pereceria, a não ser queagisse sem piedade. Em época de paz, seu estadopolicial costumava ordenar ou sancionar a mortede seus concidadãos em grande escala. Apesardisso, o patriotismo nacional achava-se em nívelmais alto sob o governo de Stalin do que quandoesteve sob o domínio dos czares. O vigor e a cor-agem dos soldados russos na Segunda GuerraMundial foi simplesmente impressionante.

Hitler e Stalin tinham muito em comum, in-cluindo o fato de que cada um chegou ao podercomo um forasteiro, sendo Hitler da Áustria, eStalin, da Geórgia. Eram ambos praticamente

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desconhecidos, sem nenhum poder aos 35 anosde idade e extremamente subestimados por seusopositores. O rearmamento da Alemanha, feitopor Hitler na década de 1930, tomou a França e aInglaterra de surpresa, assim como aconteceucom o rearmamento da Rússia por Stalin. Os doislíderes cultivavam uma certa aptidão por contarmentiras plausíveis a seu povo e ao mundo; fo-ram os marechais-de-campo da propaganda numaépoca em que sua influência era ainda mais amp-liada pelo rádio e pelos filmes. Stalin, Hitler e oditador italiano Benito Mussolini, que assumiu opoder em 1922, comungavam uma forte determ-inação de reescrever os resultados da PrimeiraGuerra Mundial e, se necessário, retomar aguerra. A luta que começou em 1939 era a opor-tunidade que há muito tempo esperavam, feitasob medida. Tradicionalmente, na Europa, umalonga guerra de maior vulto levava geralmente aum longo período de paz. Ao estabelecer umaclassificação clara de importância entre as prin-cipais nações, uma guerra decisiva tornava

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possível que muitos problemas fossem resolvidoscom diplomacia. Além disso, nas primeiras déca-das de paz, as realidades e as terríveis perdas hu-manas na guerra eram geralmente lembradas comimagens bastante vivas. A diplomacia era, con-sequentemente, preferida à guerra como forma deresolver as disputas entre nações. Assim como avitória decisiva nas longas Guerras Napoleônicasintroduziram um longo período de relativa paz noimenso mundo europeu, esperava-se também queo fim da Primeira Guerra Mundial, vista comotimismo como a guerra que terminaria todas asoutras guerras, introduzisse um período de pazainda mais favorável. A tragédia dessa guerra foiexatamente porque, voltando no passado, ela nãotinha sentido algum. A vitória foi logo esquecida,e outra guerra já estava em processo de desenvol-vimento. Por que a vitória foi tão breve? Infeliz-mente para os vitoriosos, e para a paz do mundo,o poder em massa que venceu a Primeira GuerraMundial foi logo dissipado. Os Estados Unidos,cujo poder industrial era fundamental mesmo

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antes de os primeiros soldados terem partido emseus navios para lutar em 1917, retiraram-sementalmente logo depois de a guerra terterminado. Isolaram-se, fechando os olhos e osouvidos para a Europa. O Japão, cuja potêncianaval havia colaborado durante os meses iniciaisda guerra, também bateu em retirada. Assim,duas potências de importância, com grande in-teresse em preservar a vitória que haviamajudado a conquistar, deixaram de usar seu pesocontra as potências derrotadas. Isso raramentehavia acontecido, se é que um dia chegou aacontecer, no resultado de uma guerra de talvulto. Além disso, a Itália, também do ladovitorioso, estava desiludida por não lhe teremsido concedidas as colônias alemãs na África eoutras posições que lhe foram prometidas pelosaliados. A Itália se tornou a terceira nação vitori-osa a não cumprir o tratado de paz, conquistadocom unhas e dentes. A Rússia veio logo emseguida, tornando-se a quarta. Permaneceu dolado vitorioso até março de 1918 quando, exausta

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e revolucionada, retirou-se de sua guerra com aAlemanha. Como resultado, ela perdeu ou rendeuum imenso território, que incluía a Letônia, aEstônia e a Lituânia, tendo assim um incentivopara derrubar a nova Europa nascida em 1919.Das nações poderosas que estavam do ladovitorioso em 1918, somente a Inglaterra e aFrança continuaram com forte incentivo de de-fender o tratado de paz e de desarmar a Ale-manha e mantê-la desarmada. Esse era o sinal daincrível erosão da vitória de uma guerra.

Em seguida, veio a depressão, e um senti-mento de impotência tomou conta de muitasnações industriais que haviam lutado na guerra.A depressão entregou o poder a Hitler, que estavadeterminado a quebrar o tratado de paz. Quandoele começou seu rearmamento, a Liga das Naçõesse encontrava frágil demais para intervir. Emmarço de 1936, Hitler menosprezou novamente otratado, ocupando o Vale do Reno. Se a França ea Inglaterra juntas tivessem agido imediatamente,os soldados de Hitler poderiam ter marchado em

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retirada novamente. Hitler continuou o rearma-mento. A construção de estradas de alta velocid-ade e a recuperação da indústria automobilísticaserviu quase tanto quanto o rearmamento paraabolir o desemprego. O moral e o amor próprioalemão alavancaram a Alemanha. Em março de1938, as tropas de Hitler invadiram a Áustria; emoutubro, ele subitamente ocupou a parte de línguaalemã da Tchecoslováquia. Página por página,ele havia rasgado o Tratado de Versalhes. O prin-cipal perdedor da Primeira Guerra Mundial haviarecuperado agora a maior parte de suas perdasterritoriais dentro da Europa. A nova guerracomeçou em 1939 com a invasão de Hitler àPolônia. A União Soviética uniu-se à invasão; aPolônia foi esmagada antes que a França e aInglaterra pudessem dar-lhe a ajuda que haviamprometido. Nos anos de 1940 e 1941, Hitlertomou quase toda a parte central e ocidental daEuropa, exceto a Itália e a Romênia, que eramaliadas, e Espanha, Portugal, Turquia, Suécia eSuíça, que eram neutras. Pegou Stalin de

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surpresa, invadiu a Rússia e, no final de 1941,sua vanguarda chegou às adjacências de Moscou.Mas quanto mais os alemães avançavam, maissuas linhas de suprimento tornavam-se vulnerá-veis. A invasão da Rússia por Hitler provou ser oponto crítico tardio de uma guerra que, até então,lhe havia favorecido.

A Segunda Guerra Mundial consistia deduas guerras distintas: uma travada principal-mente na Europa, e a outra, travada principal-mente no leste da Ásia. A guerra na Ásia aconte-ceu mais cedo; começou quando o Japão invadiua Manchúria em 1932 e tornou-se mais intensaem 1937, quando o Japão começou a ocupar aparte leste da China. A impressionante vitória deHitler na Europa Ocidental, em 1940, expôs afraqueza das colônias inglesas, holandesas efrancesas no Sudeste Asiático, e as bases americ-anas nas antigas Filipinas espanholas. O Japãoaproveitou-se dessa fraqueza e, em dezembro de1941, atacou repentinamente os territórios e as

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bases que iam desde a Birmânia e Hong Kong atéPearl Harbor.

Imediatamente, as duas guerras - a europeiae a asiática - se transformaram em uma só, com aAlemanha e o Japão lutando de um lado, e osEstados Unidos, a Inglaterra, a China e a maioriadas outras nações do mundo, do outro. Essa, sim,era uma guerra mundial, enquanto a PrimeiraMundial havia sido principalmente um conflitoeuropeu com algumas pontas e farpas.

Nenhum acontecimento anterior, na paz ouna guerra, tinha refletido tanto o encolhimento domundo. As aeronaves e o rádio saltavam peloscontinentes. O Oceano Pacífico era agora at-ravessado como o Mediterrâneo na época dasgaleras. Fora um sinal da nova era da guerramecânica em que, durante a decisiva Batalha doMar de Coral, travada próximo à parte leste daAustrália em maio de 1942, as esquadras guer-reiras do Japão e dos Estados Unidos não seviram uma à outra. Simplesmente lançaram uma

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aeronave que bombardearia os navios de guerrado inimigo e determinaria a vitória. Nos últimosmeses de 1944, depois de mais de cinco anos deguerra, o fim da luta surgiu à vista. A Alemanhae o Japão se depararam com a derrota total, masera difícil prever se essa derrota viria em 6 ou 36meses. Poucos acontecimentos humanos são tãoimprevisíveis quanto a eclosão da paz.

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CAPÍTULO 30 - Abomba e a Lua

No início do século 20, talvez a Física fossea mais dominante das ciências. Ocupada em des-vendar e inspecionar o mundo físico há muitotempo mantido em segredo, ela começou a gan-har um certo glamour. Parte de sua fama, en-tretanto, veio com uma percepção tardia. Se abomba atômica não tivesse sido inventada, talveza física não fosse vista com tanta admiração.

Durante muito tempo, o átomo fora procla-mado como o último "tijolo" da obra. Um átomoera tão pequeno que, se 10 bilhões deles fossemcolocados lado a lado, eles cobririam somente oespaço de 1 metro. Em 1704, em sua obraTratado de Óptica, Isaac Newton escreveu que oátomo era tão duro e tão elementar que nunca po-deria ser quebrado em pedaços, "nenhuma forçacomum poderia dividir o que o próprio Deus

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havia tornado único em sua Criação". Mais tarde,porém, veio a ser descoberta uma unidade aindamenor e mais complexa, chamada de núcleo. Aenorme força do átomo e do núcleo para criar en-ergia e infligir destruição não fora prevista no iní-cio da Primeira Guerra Mundial. Somente depoisde pesquisas feitas pelo emigrante neozelandêsErnest Rutherford, o dinamarquês Niels Bohr efísicos de outras nações ocidentais é que suaforça foi claramente conhecida.

Como a Alemanha estava à frente no ramoda Física, era de esperar que fosse também enér-gica em tentar atrelar essa ciência à guerra. AAlemanha, entretanto, colocava a pureza racialacima da procura pelo conhecimento. Muitas desuas estrelas da física eram judeus e, na décadade 1930, com muito bom senso, eles acabaramencontrando refúgio do outro lado dos mares. OsEstados Unidos demoraram a assumir a liderançadas pesquisas nucleares. Em dezembro de 1942,conseguiram o domínio da divisão nuclear, mas

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ainda havia um longo caminho de experiências epesquisas a ser percorrido.

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A Alemanha foi finalmente conquistada em1945, antes de os Estados Unidos estarem pron-tos para testar sua primeira bomba atômica.Mesmo assim, os americanos continuaramempenhando-se em suas pesquisas pois aindarestava o Japão para ser derrotado. Em 16 de ju-lho de 1945, a primeira bomba foi testada nodeserto do Novo México; a explosão gerou tantocalor que a superfície do deserto, num raio deaproximadamente um quilômetro, foi derretida,transformando-se em vidro. Estava aí a armamais extraordinária da história dos conflitos deguerra. Para a pergunta "Deveríamos usá-la con-tra as forças japonesas?" não havia resposta fácil,e a resposta escolhida ainda é debatida comgrande impasse até os dias de hoje. Entre oslíderes políticos americanos, havia um desejo devingar Pearl Harbor. Na mente dos cientistas nuc-leares, havia a resolução, de certa forma com-preensível, de testar a eficiência da arma pelaqual eles haviam trabalhado tanto. Na mente dos

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generais americanos, havia o medo de que oJapão lutasse até o fim e de que, talvez, meio mil-hão de vidas americanas se perdessem antes de oJapão ser finalmente derrotado.

Em julho de 1945, cinco milhões de solda-dos japoneses estavam prontos para defendermuitas de suas conquistas iniciais, incluindo amaior parte da China, o arquipélago da In-donésia, a Península da Malásia, Taiwan e o atualVietnã. Os arsenais de munição dentro do Japãoainda eram altamente produtivos. Os japonesesmantinham mais de cinco mil aviões camicases,com pilotos corajosos dispostos a sacrificar suasvidas chocando-se contra os porta-aviões e asbases aéreas inimigas, e, além disso, ainda nãoestavam querendo admitir a derrota. Hoje, muitoshistoriadores denunciam a decisão americana delançar bombas atômicas sobre o Japão comooutro passo na infâmia humana; argumentam quea bomba inaugurou uma nova era de massacre decivis. E, apesar disso, talvez essa nova era jáhouvesse chegado. Ataques aéreos sobre cidades

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alemãs e japonesas com bombas convencionais jáeram mortais o suficiente. Um desses ataquesrealizados sobre Tóquio, no mês de maio anteri-or, havia matado 82 mil civis ou quatro décimosdos japoneses que foram mortos pela primeirabomba atômica. E se a guerra continuasse in-definidamente e somente bombas altamente ex-plosivas fossem usadas, centenas de milhares decivis japoneses seriam mortos pelos ataques ebombardeios aéreos, e talvez, por fim, pela in-vasão das ilhas do Japão. Esses argumentos fo-ram amplamente aceitos pelo presidente Truman,em Washington. Um fator crucial, entretanto, nãofoi percebido. A bomba atômica, quando lançada,faria o que nenhuma outra bomba normal podiafazer: sua radiação criaria danos genéticos, pun-indo assim as crianças ainda não nascidas pelosfracassos e pecados da geração japonesa daguerra. Mas mesmo que a radiação tivesse sidointeiramente compreendida pelos cientistas, elesainda assim poderiam ter chegado à mesma con-clusão, de que a bomba atômica deveria ser usada

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contra os japoneses. Por aproximadamente seisanos, essa terrível guerra generalizada foratravada. A vitória não devia ser adiada: esse ar-gumento tem muito mais impacto sobre aquelesque viveram o momento do que sobre aquelesque a viram décadas depois. Em 6 de agosto de1945, um pesado bombardeiro americano vooudas Ilhas Marianas em direção ao Japão, e abomba foi então lançada. A maior parte deHiroshima virou praticamente um alto-forno eaproximadamente 90 mil japoneses foram mor-tos. Na vizinha Tóquio, não havia nenhum sinalde rendição. Três dias depois, uma segundabomba atômica, a última bomba desse tipo no ar-senal americano, foi lançada sobre a cidade deNagasaki. Mesmo assim, a mensagem esperadacom tanta ansiedade não chegou de Tóquio.Cinco dias depois, o imperador do Japão pessoal-mente anunciou no rádio que sua nação havia serendido. Era um sinal da frieza e da majestade doimperador que sua voz estivesse sendo ouvida norádio pela primeira vez. Estava aí um imperador

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exercendo relíquias de seu poder divino numa eramoldada por Marconi e Henry Ford. Os primeirostiros oficiais da Segunda Guerra Mundial haviamsido dados nas planícies do norte da Europa e,agora, os documentos de paz eram assinados numnavio de batalha ancorado na Baía de Tóquio. Nodecorrer da guerra, mais de 107 milhões de pess-oas haviam se alistado nas forças armadas.Talvez 11 milhões de soldados russos tenhamsido mortos, um número maior que o total dasforças que lutaram dos dois lados na PrimeiraGuerra Mundial. As mortes nas forças japonesase alemãs juntas atingiram quase cinco milhões.As mortes de civis foram muito maiores que asda guerra anterior. Na China, talvez tenham at-ingido o número de 20 milhões e, na Rússia,talvez 11 milhões. Os judeus, cuja populaçãoantes da guerra em toda a Europa era pequenacomparada com a população da Alemanha,haviam sofrido mais mortes no total do que asforças armadas alemãs e os civis alemães queviviam nas cidades bombardeadas. Ironicamente,

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muitos judeus um dia chegaram a se sentir segur-os na Alemanha. Na verdade, um enorme contin-gente de judeu-alemães havia assumido posiçõesde honra no direito, nas universidades e na medi-cina. Alguns haviam viajado para a Alemanhacom esperança, vindos de terras problemáticas,rejeitando a oportunidade de emigrar para oscrescentes povoamentos judeus na Palestina: naépoca, o estado de Israel ainda não havia sido cri-ado. Mas, em 1942, talvez antes, os líderesalemães já haviam resolvido exterminar os judeusem todas as terras que dominavam. Pelo menoscinco milhões foram mortos. A esse projeto de li-quidação os líderes nazistas deram o nome de "asolução final da questão dos judeus". Mais tarde,"o holocausto" tornou-se a descrição mais simpli-ficada. Em meio à selvageria e ódio, esse eventonão foi único. A história da humanidade, atravésdos séculos, é temperada com atos de selvageriaem grandes proporções, bem como de generosid-ade e boa vontade. Mas o holocausto foi aterror-izador devido à proporção dos massacres e à

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recusa em isentar os mais idosos e os maisjovens. Foi um choque para a idéia de progressohumano, pois havia sido projetado e executadopor uma nação que era vista por muitos olhos im-parciais, no início do século, como a mais civiliz-ada e culta do mundo.

A existência de armas nucleares tambémfoi um choque para a idéia de progresso humano.A maioria das pessoas do mundo teria se sentidosegura se os Estados Unidos sozinhos tivessempossuído essa arma tão superior a todas as outras.Mas um país, a União Soviética, não se sentiu se-guro e, por isso, tinha de possuir uma armasemelhante. Finalmente, em 1949, os russossecretamente testaram sua primeira bomba atôm-ica. Como resposta, foi apresentada em 1951,pelo presidente Truman, uma arma ainda maispoderosa: a bomba de hidrogênio.

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Juntando os pedaços do mundonovamente

Depois de 1945, a Europa dividiu-se emduas. As democracias dominavam a metadeocidental. A União Soviética controlava a metadeoriental, incluindo parte da Alemanha. Duas out-ras nações comunistas, Albânia e Iugoslávia,formavam uma área isolada na metade ocidental.A tensão entre o comunismo e o capitalismodemocrático foi então chamada de Guerra Fria,embora, observando hoje o passado, na verdadehouve muito mais paz do que guerra.

A Alemanha, ocupada pelos vitoriosos,havia perdido praticamente todo o seu poder. Atémesmo a Inglaterra, a França e a Holanda tinhammenos poder do que em 1939. Os danos causadospela guerra tiveram enormes proporções, e essasnações haviam incorrido em pesadas dívidas ouvendido patrimônios no exterior para financiar aguerra. Além disso, suas colônias ultramarinas,

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que eram uma fonte de orgulho e de possívelrenda, mais do que uma renda real, pareciam dis-postas a buscar ou a forçar sua independência. Amaioria dos líderes se recusava a enfrentar o fatode que as nações se encontravam agora mais en-fraquecidas em sua influência. A Europa haviaseguido as pegadas dos centros de poder anteri-ores que, quando estavam no auge de sua confi-ança, acabavam brigando internamente. Ascidades-Estado gregas haviam travado guerrasautodestrutivas entre si e perdido coletivamentesua supremacia. O império de Roma havia sidoenfraquecido por conflitos internos e guerra civil.O Islã e o cristianismo também haviam sofridocismas. A China e o império sul-americano dosincas, exatamente quando sua autoconfiança es-tava em alta, foram dilacerados por disputas in-ternas. A colisão pós-guerra entre o comunismona Rússia e o capitalismo no ocidente foi outrafase na longa história da disputas europeias.Apesar disso, a Europa conseguiu ser salva dadecadência através de uma crescente união. Essa

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união começou simplesmente como a proposta deuma pequena zona de livre comércio, abrangendoas indústrias de carvão, ferro e aço dos tradicion-ais inimigos, Alemanha Ocidental e França.Quando foi inaugurada, em 1952, contava comseis nações membro. Em 1970, já era o maiormercado comum da história, envolvendo maispessoas e comércio do que o outro antigo mer-cado comum, os Estados Unidos da América. Em1993, quando se tornou uma união política e eco-nômica, abrangeu 15 nações, estendendo-se, comduas exceções, desde Portugal e Irlanda, a oeste,até a Grécia e a Finlândia, a leste. Conhecidacomo União Europeia, ela praticamente constituihoje uma nova nação. A Europa ressuscitou, em-bora tenha perdido quase todas as suas colônias.De alguma forma, as colônias eram um fardo,embora não tivessem sido vistas assim durante osquatro séculos e meio em que, uma a uma, foramadquiridas. Mesmo em 1945, a posse de colôniasultramarinas trazia prestígio e, por isso, não fo-ram rendidas tão facilmente. No início da

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Segunda Guerra Mundial, aproximadamente umterço dos povos do mundo ainda vivia sob odomínio europeu. Os altos e baixos da guerra,principalmente os apuros militares sofridos pelaFrança, Holanda e Inglaterra em 1940 e 1941,abalaram o controle europeu. As lutas mostraramque as potências coloniais europeias não eram in-vencíveis. Em muitas colônias, os lutadores daresistência aproveitaram sua oportunidade. Amoralidade das nações que possuíam colônias foidesafiada nos parlamentos europeus onde, após aguerra, os partidos de esquerda tornaram-se maisfortes. A primeira grande colônia a ser libertadafoi a Índia. Seu principal libertador foi MahatmaGandhi, um dos mais notáveis políticos doséculo. Em 1891, com vinte e poucos anos de id-ade, Gandhi tornou-se advogado em Londres,vestia-se elegantemente, aprendeu dança e eloc-ução. Já no fim da década, era um próspero ad-vogado na África do Sul, mas começando a viveruma vida ascética, fazendo suas próprias roupas esubmetendo-se a períodos de jejum, hábito

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aprendido com sua mãe. Em 1907, o parlamentoda região de Transvaal obrigou os residentes as-iáticos a portar carteiras de identidade, e Gandhi,pela primeira vez, aplicou sua "resistência pas-siva". Como resultado, passou um total de 249noites na cadeia. Ao voltar à Índia, em 1915, eleformulou a campanha pela independência da Ín-dia com uma estratégia de desobediência civil emrelação ao domínio inglês. Usando sandálias, umpedaço de pano branco em forma de xale jogadosobre o ombro e outro pedaço ao redor do quad-ril, formando um tipo de saia, geralmentemostrando seu sorriso desdentado para os fotó-grafos dos jornais, ele se tornou o mais famosode todos os indianos aos olhos do mundo exteri-or. Tentou mais do que qualquer outra pessoaunir uma terra que não podia ser unida.

Quando a Índia adquiriu sua independênciaem 1947, foi dividida em duas nações separadas,uma Índia hindu e um Paquistão islâmico; maistarde, Bangladesh tornou-se uma terceira nação.Nas convulsões sociais e políticas que cercaram a

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divisão de 1947, perto de 15 milhões de pessoassaíram como refugiados para que pudessem vivercom segurança na Índia de sua escolha. Gandhifoi vítima desse primeiro ano turbulento da inde-pendência, vindo a ser morto por um militantehindu. A Índia realizou sua primeira eleiçãonacional em 1952, com o direito de voto conce-dido a quase todos os adultos, alfabetizados ounão. Foi um dos eventos mais impressionantes dahistória política: a segunda nação mais populosado mundo estava em processo de implementaçãode um sistema de governo inventado, primeira-mente, para pequenas assembleias democráticasnas cidades da Antiga Grécia, numa época emque o mundo inteiro tinha menos pessoas do quea Índia democrática no ano de suas primeiraseleições.

A China também se libertou. Embora nuncativesse perdido a independência completamente,esta havia enfraquecido durante os últimos Cemanos, por resistir a russos, ingleses, franceses,alemães e, especialmente aos japoneses, para

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cada um dos quais ela havia feito concessões ouperdido território. Também foi enfraquecida pelasua própria guerra civil. Mao Tsé-tung, que lider-ou brilhantemente os comunistas durante umalonga guerrilha, finalmente saiu vitorioso em1949, deixando para seus opositores somenteTaiwan. Esperava-se que a nova República Popu-lar da China, sendo a nação mais populosa domundo, aos poucos readquirisse a autoridade quehavia tido há uns cinco séculos. Mas o relaciona-mento entre a população e o poder geralmentetem sido precário e complicado. Em vez detornar-se uma das principais potências, a Chinacomunista permaneceu em total atraso econ-ômico. O interior do país estava dominado pelapobreza, e o progresso econômico era mais umcântico de propaganda do que um fato real. Olíder da libertação da China, conhecido hojecomo "o grande timoneiro", acreditava que asmentes das pessoas eram felizmente "vazias" eque ele podia gravar sobre elas uma mensagemindelével. Em 1966, sua nação foi o grande

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cenário de uma revolução cultural ou um dramapopular de moralidade, estreada em grande es-cala, com mortes, prisões e exílio rural impostossobre aqueles líderes de opinião que fossem jul-gados como politicamente imorais ou incorretos.A nação que, cinco séculos antes, provavelmentehavia liderado o mundo na utilização dos talentosde seu povo, agora deliberadamente consignavacentenas de milhares de seus professores, artistase intelectuais às tarefas enfadonhas de criar por-cos, trabalhar na colheita e tirar água dos moin-hos para irrigação. Só na década de 1980 é que aChina começou a dar o grande salto adiante quehavia sido o orgulho de sua propaganda departido, três décadas antes.

A Indonésia foi outra das extraordináriasnações que emergiram na década após a SegundaGuerra Mundial. Em 1940, as ilhas da Indonésiatinham aproximadamente 70 milhões de habit-antes, somente três milhões menos que o Japão.Depois de um pouco mais de um século, a In-donésia já tinha mais de 200 milhões de pessoas,

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sendo excedida somente pela China, Índia e Esta-dos Unidos; tornara-se também a nação islâmicamais populosa do mundo.

A Indonésia foi erguida e, em seguida,quase destruída pelo presidente Sukarno. Nascidode mãe balinesa hinduísta e pai javanês muçul-mano, ele desenvolveu um talento para palavras elínguas. Finalmente, aprendeu a falar holandês,em cuja língua recebeu a maior parte de sua edu-cação, e inglês, francês, alemão, japonês, javanês,balinês e sudanês (língua falada na parte ocident-al de Java). Obviamente, aprendeu árabe tambémpara que pudesse estudar o Alcorão. Ao mesmotempo, tinha mais conhecimento de tecnologia doque a maioria dos outros que vieram a liderarnovas nações e, em 1925, formou-se em engen-haria pela Universidade de Bandung, em Java.Confiante, exuberante, um mágico dos discursos,Sukarno protestou contra o domínio holandêsnuma época em que as revoltas coloniais nomundo ainda não eram frequentes. Durante trezeanos, ele era encontrado ou na prisão, ou exilado

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de sua pátria, a ilha de Java. Quando os japonesesocuparam as índias Orientais Holandesas em1942, Sukarno acolheu-os e tornou-se consultorespecial, bem como líder de seu povo. Após oJapão ter sido derrotado, ele recomeçou sua lutacontra os holandeses, conquistando a inde-pendência de sua nação em 1949. Permitiu umaeleição parlamentar em 1955 e, não gostando doresultado inconclusivo, acabou escolhendo o quechamou de "democracia guiada", com ele mesmocomo guia e com uma democracia não tão visívelassim. Como muitos dos fundadores de novasnações, acabou sendo derrubado de seu pedestal.Entre 1945 e 1960, as colônias, que somavam umquarto da população mundial, ganharam liber-dade. A maioria dos líderes das novas nações nãotinha nenhuma experiência de governo. Sua buro-cracia não era treinada, sua ansiedade em con-seguir dinheiro emprestado excedia em muito suacapacidade de quitar as dívidas. Guerras contravizinhos ou preparos de guerra absorviam din-heiro que poderia ser usado na construção de

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ferrovias, barragens, hospitais, escolas e cidades.Encontravam-se poucos empreendedores com ha-bilidade para desenvolver os recursos naturaisdisponíveis nas nações recém-criadas.

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O Terceiro Mundo, nome inventado naFrança para descrever as novas nações pobres enão estruturadas, ficava em terceiro da lista emtudo, fosse renda média ou taxa de alfabetização.Em um aspecto, porém, ocupava o primeirolugar: sua população crescia a uma velocidadecomo nenhuma outra nação havia vivenciado nahistória do mundo até então conhecida. A difusãodo conhecimento em Medicina, a presença demais médicos e enfermeiros, a vacinação de cri-anças, a luta contra a malária e as melhorias nahigiene pública fizeram baixar a taxa de mortal-idade, enquanto a taxa de natalidade continuavaalta. Entre 1950 e 1980, numa época em quenovas atitudes e a nova pílula anticoncepcionalpuseram um freio na taxa de natalidade daEuropa, a população de várias terras mais pobrespraticamente dobrou. O principal desafio, tão for-midável quanto o vivido em possivelmentequalquer outra fase da história humana, erasimplesmente como alimentar o povo em rápidamultiplicação. A assim chamada revolução verde,

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com suas novas espécies de arroz e outras plantascomestíveis, salvou inicialmente a situação, masa população ainda se multiplicava. A China játinha perto de um bilhão de habitantes quando,em um dos experimentos mais raros da históriamundial, tentou restringir as famílias a terem umsó filho.

A África, a arena mais movimentada dadescolonização, em pouco tempo chegou a ternações demais, palácios presidenciais demais emuitos embaixadores vivendo no luxo em cid-ades no exterior. Em 1982, a África já contavacom 54 nações, mais de duas vezes a quantidadede nações da Ásia inteira. Algumas nações afric-anas tinham, cada uma, menos de um milhão dehabitantes. Em nenhuma nação africana, a edu-cação superior recebeu prioridade e, como con-sequência, o continente inteiro, em 1980, tinhamenos universidades que o estado americano deOhio. A África Negra foi prejudicada pelo tribal-ismo, e mesmo os colonizadores brancos daÁfrica do Sul inventaram sua própria forma de

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tribalismo, chamado de apartheid. Como regrageral, no espaço de uma década, o padrão de vidada maioria das nações africanas permanecia omesmo.

Fora a Europa, a América do Norte e asoutras terras colonizadas Principalmente poreuropeus, as conquistas econômicas no períodoP0s-guerra ficaram bem aquém das expectativasiniciais. O leste da Ásia era uma exceção es-petacular. O Japão apresentou, entre 1945 e 1990,um sucesso econômico como nenhuma outranação europeia. Cingapura, Malásia, Tailândia,Hong Kong, Coréia do Sul e Taiwan, a maioriadas quais tinha um grande setor de linhagemchinesa, também começaram a ter um desem-penho impressionante. Ao contrário, a China emsi, por desprover o povo de incentivos econômi-cos, mal conseguiu rastejar-se no espaço de trêsdécadas. Na história do pós-guerra, havia umcontraste notável entre a lentidão da China e aenergia sistemática dos relativamente poucos

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milhões de imigrantes chineses que viviam emterras capitalistas do outro lado do mar.

Nos negócios militares, a Ásia não podiamais ser deixada de fora. Nenhum cientista, emsua posição de neutralidade, havia previsto, em1945, que a China e a Índia testariam suas própri-as armas nucleares dentro de um quarto deséculo, ou que nações tão pequenas como oIraque e a Coréia do Norte levariam em frentesuas ambições nucleares, ou que o Paquistão pos-suiria sua própria bomba no fim do século.

Rumo à Lua

A Segunda Guerra Mundial havia desper-tado a necessidade de novas formas de propulsão.Em 1944 e 1945, na França ocupada, os alemãesusaram foguetes poderosos para lançar mísseisque podiam voar em linha reta e atingir Londres,do outro lado do mar. Em períodos de paz, esses

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mesmos foguetes ofereciam uma forma de lançartransmissores de rádio que, de lá de cima, podiamemitir sinais amplificados a todos os cantos daTerra.

Em 10 de julho de 1962, um dia tão import-ante quanto qualquer outro do século 20, imagensde televisão e conversas ao telefone entre aEuropa e os Estados Unidos foram transmitidasvia satélite. Os satélites logo tomaram conta domundo. Tornaram-se fundamentais para a comu-nicação mundial e para tarefas tão diversasquanto a previsão do tempo, a exploração deminerais e para permitir que navios e aeronavesconseguissem marcar sua posição nos gráficos.No Golfo Pérsico, em 1991, os satélites foramusados pelos Estados Unidos para guiar suasarmas a alvos distantes, alguns dos quaissituavam-se no local daquelas mesmas civiliza-ções dos vales que haviam se desenvolvido hámilhares de anos.

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Com os novos foguetes, o espaço sideralpodia ser explorado. Na corrida para exploraresse novíssimo mundo, os soviéticos assumirama liderança inicial. Em outubro de 1957,lançaram sua primeira nave espacial, que girouna órbita da Terra; não havia piloto a bordo. Noano seguinte, os russos puseram dois cães em ór-bita, a bordo da Sputnik III, onde, confinados emum espaço mínimo, passearam em, estado deglória, a 500 quilômetros acima da Terra. Nacaríssima competição para enviar a primeirapessoa ao espaço, os russos ganharam por 23 di-as, enviando Yuri Gagarin e sua cápsula espacialem uma impressionante órbita em torno da Terra,em 12 de abril de 1961. Esse foi um dos notáveisdias na história da raça humana, sem que nenhumoutro feito espacial subsequente pudesse superá-lo. O corajoso sonho de colocar uma pessoa naLua foi realizado pelos Estados Unidos em 20 dejulho de 1969, quando, diante de uma enormeaudiência de televisão, Neil Armstrong e "Buzz"Aldrin, usando roupas um tanto esquisitas, saíram

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de sua nave e andaram na Lua. Em 1976, uma es-paçonave americana não tripulada pousou emMarte. Como Marte fica mil vezes mais longe daTerra do que a Lua, foi o equivalente ao navio deVasco da Gama finalmente chegando à Índia, emvez de a Gibraltar. A exploração do espaço foium triunfo para os russos e para os americanos.Mas, no final, a enfraquecida economia russa nãoconseguia financiar os altos objetivos militares ecientíficos da nação. O custo dos mísseis maismodernos, das enormes forças armadas, da cor-rida espacial e o golpe sofrido pelo moral nacion-al, causado por uma guerra frustrada com oAfeganistão, se mesclaram para enfraquecer aUnião Soviética. Uma economia ineficiente nãopodia se dar a esse luxo e, assim, o padrão devida da União Soviética ficou bem atrás do daEuropa Ocidental. Enquanto isso, os cidadãos daPolônia, impulsionados pela greve dos estaleirosem 1980, e da Tchecoslováquia, começaram a serebelar contra o comunismo. De Moscou, nãochegou nenhuma retaliação efetiva. As nações do

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Leste Europeu desligaram-se da União Soviéticae do comunismo. Até mesmo aos estados quecompunham a União foi permitido separar-se.Em dezembro de 1991, a própria União Soviéticadeixou de existir. Seu colapso foi outro passo,embora tardio e imprevisto, no processo dedescolonização. De uma só vez, a Rússia perdeuseu império em terra, assim como Inglaterra,Holanda, França e Portugal, no período de 1945 a1975, haviam perdido a maior parte de seus im-périos ultramarinos. Quando a União Soviéticaestava em alta, parecia ser possível que o russo setornasse a principal língua internacional; já era alíngua da diplomacia do segundo maior bloco depoder do mundo. Na década de 1950, era a prin-cipal língua estrangeira ensinada na China. Vistacomo a língua do futuro, foi estudada com avidezpelos jovens socialistas na África; no fim doséculo, entretanto, a língua russa havia perdidosua importância. A popularidade do inglês comolíngua mundial era apenas um dos sinais da cres-cente influência americana durante o século 20.

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Durante os primeiros quarenta anos do século, ainfluência americana no mundo era bem menordo que seu tamanho e seu possível poder sugeri-am. Não era uma nação comercial dominante e,em política externa, tendia a manter oisolamento.

As décadas de 1940 e 1950 foram asprimeiras em que os Estados Unidos exerceraminfluência contínua e profunda sobre o mundo, epoderiam igualmente ser chamadas de as décadasda Rússia, pois essa nação desempenhou o prin-cipal papel na derrota de Hitler, ajudando ocomunismo a vencer na China e conquistandopara si a liderança inicial na corrida espacial. Daíem diante, os Estados Unidos dominaram oséculo; nem mesmo o Império Britânico, quandotinha colônias em todos os continentes em quasetodas as rotas marítimas importantes, exerceu in-fluência comparável ao atual poder dos EstadosUnidos em assuntos econômicos, militares,políticos e culturais. O poder dos Estados Unidosdependia principalmente de seu tímido império

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de idéias, atitudes e inovações. Suas idéias se es-palhavam sem esforço algum em terras es-trangeiras, independentemente de quem possuíssea terra. Uma grande parte de sua influência vinhade inovações como o telefone, a eletricidade, asaeronaves, o carro a preços mais acessíveis, asarmas nucleares, as naves espaciais, os computa-dores e a Internet. Sua influência vinha do jazz,dos desenhos animados, de Hollywood, da tele-visão e da cultura popular; vinha de uma certaexcitação pela tecnologia e pelas mudanças econ-ômicas e da crença nos incentivos e nosempreendimentos individuais. Era também o mis-sionário mais fervoroso pela crença da democra-cia; embora o poder militar e econômico fossemfundamentais para o sucesso dos Estados Unidos,o poder de seu império de idéias foi provavel-mente ainda mais abrangente.

O papel mundial dos Estados Unidos talvezseja o último capítulo do longo período de ex-pansão europeia, que começou na EuropaOcidental, principalmente nas margens do

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Atlântico, durante o século 15. A Europa, aospoucos, ultrapassou sua terra original, e seu im-pério cultural acabou formando uma longa faixaque atravessava a maior parte do HemisférioNorte, mergulhando do outro lado, no HemisférioSul. Na historia dos povos europeus, a cidade deWashington talvez seja o que Constantinopla, acidade criada pelo imperador Constantino, foipara a última fase do Império Romano, pois épouco provável que os europeus, daqui a umséculo, continuem a marcar o mundo de formatão decisiva com suas idéias e invenções.

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CAPÍTULO 31 - Nemfrutas, nem pássaros

Uma das profundas mudanças ocorridas nahistória da humanidade é tão óbvia que raramenteé comentada: apesar de um dia terem sido de ex-trema importância, as diferenças gradativamentedeixaram de ser tão nítidas. As estações perderamsuas características de distinção; e assim aconte-ceu com as diferenças entre noite e dia, verão einverno. À medida que o céu noturno se tornavamenos importante, a Lua também diminuía suainfluência sobre as atividades humanas. Trabalhoe lazer, cidade e campo deixaram de proporcionaresses contrastes.

No imenso espaço de tempo em que pre-dominaram os caçadores e agricultores, as es-tações foram de extrema importância. O verão eo inverno, a primavera e o outono determinavamo que as pessoas comiam, as cerimônias de que

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participavam, os confortos e dificuldades de suasvidas cotidianas. A maioria dos seres humanos,mesmo em 1800, ainda era composta de agri-cultores e criadores de rebanhos, e profunda-mente afetada pela mudança das estações. Assim,no inverno, ovos, frutas e até mesmo carne, a nãoser que tivesse sido salgada, eram luxos. O verãoda fartura cedia seu lugar a um inverno de con-tenções. Thomas Hood, poeta inglês, uma vezescreveu:

"Nem frutas, nem flores, nem fol-has, nem pássaros, Novembro."

Manuscritos religiosos feitos mil anos antesenfatizavam como as estações eram distintasumas das outras. Para cada mês, pintavam umcenário diferente ou propiciavam um determ-inado tipo de tarefa, dando um sabor especial acada período. Hoje em dia, nenhum mês con-segue ser marcado da mesma forma por um tra-balho ou uma tarefa específicos. Hoje, se é quehá uma tarefa típica de um determinado mês, essa

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provavelmente seria uma atividade de lazer: ar-mar a árvore de Natal ou assistir à final docampeonato de futebol. Ao contrário, ummanuscrito bizantino datado do ano 1100 escol-hia as tarefas mensais típicas de um dia de tra-balho nos Bálcãs e na Ásia Menor. Em abril, opastor era representado preparando-se para tirarseu rebanho do curral e levá-lo aos pastos frescosdas colinas, após ter passado o invernoalimentando-se do feno previamente estocado.Maio era simbolizado pelas flores. Junho repres-entava homens cortando a grama viçosa para opreparo de feno. Já em outubro, o verão estavaterminando, e os caçadores traziam em seuspulsos um pequeno pássaro chamariz para atrair ecapturar outros pássaros comestíveis de maiortamanho, antes que migrassem. Em novembro, oslavradores preparavam a terra para a semeadurada safra do ano seguinte. E assim, numa sequên-cia ordenada, o ano de trabalho era ditado pelasestações, embora as tarefas reais variassem de re-gião para região.

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Até os combates de guerra eram afetadospelas estações. No Hemisfério Norte, as guerrasinternacionais geralmente eclodiam na primaveraou no verão. Nos anos entre 1840 e 1938, umtotal de 44 guerras foram travadas nas terras doNorte, onde havia um nítido contraste entre in-verno e verão. Dessas guerras, somente 3começaram nos meses de inverno e 26começaram durante os meses mais quentes de ab-ril a julho. A chegada da primavera oferecia achance de atacar e derrotar o inimigo, pois os rioseram atravessados com maior facilidade, as estra-das rurais ficavam menos obstruídas pela lama epelo gelo, os dias eram mais longos e os exérci-tos, que avançavam pelo interior em época deplena floração, podiam roubar ou comprar seusalimentos. Na China, a época tradicional para oscombates rápidos era o outono, pois a colheitaacabara de ser feita, os rios eram mais fáceis deatravessar, e a terra seca permitia que as tropasmarchassem com maior rapidez até a localidadeescolhida para seu primeiro ataque. As viagens

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eram sempre reguladas pelas estações. Na Ásia, oinício ou fim da monção anual indicava a partidadas esquadras mercantes fossem os típicos navioscosteiros árabes, de um mastro e uma só vela, ouos paraus, embarcações típicas da Malásia. NaEuropa, a maioria das viagens era adiada até queas tempestades de inverno tivessem cessado. Noséculo 16, a maior parte dos peregrinos alemãessaía de Veneza rumo à Terra Sagrada, em junhoou julho, partindo da Alemanha logo que a nevedos Alpes tivesse derretido. Na Europa, oprimeiro dia de maio homenageava o limite entrefrio e calor, entre fome e fartura. A meia-noite davéspera do dia 1º de maio era recebida com otoque de tambores e o sopro de berrantes. Haviadanças em torno de mastros enfeitados, às vezesenvolvendo tantas brincadeiras sexuais que,como consequência, o dia acabou sendo denun-ciado pelos sacerdotes, na época da Reforma reli-giosa. De repente, o leite e a nata se tornavamabundantes. Em partes da Inglaterra, um dos pon-tos altos do dia 1º de maio era ordenhar vacas

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diretamente num balde contendo vinho xerez oudo porto, de forma que os jatos de leite quente ecremoso tornassem a bebida mais saborosa. Acelebração do 1º de maio se estendeu às cidades,cada vez mais populosas. Em Londres, no século18, as mulheres que trabalhavam na ordenhafizeram deste também o seu dia. Um séculodepois, tornou-se o dia dos limpadores de cham-inés que, com a chegada de noites mais quentes,espanavam sistematicamente a fuligem que sehavia acumulado nas chaminés das casas duranteo inverno. Na parte continental da Europa, os so-cialistas e sindicalistas acabaram tomando para sio dia 1º de maio. Sua escolha era natural, pois,por muito tempo, fora considerado um dia de es-perança e renovação. Nas regiões da China ondeo inverno era rigoroso, a visão de flores frescasnos mercados das cidades era o equivalente aodia 1º de maio. As primeiras peônias amarelaseram as favoritas e, até mesmo no século 8º, elasjá impunham o alto preço equivalente a "cincocortes de seda".

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A chegada de maio e sua enxurrada deleite, carne, ovos, manteiga e flores tornaram-semenos excitantes devido a certas inovações comoo barco a vapor, as ferrovias, as fábricas de en-latados e as máquinas de refrigeração. Na se-gunda metade do século 19, chegou à Europauma chuva de novos tipos de alimentos vindos deterras distantes. Já em 1850, um quarto dos pãesconsumidos na Inglaterra vinha de grãos produz-idos nos Estados Unidos e na Ucrânia. Na mesmaépoca, alimentos enlatados eram despachados denavio pelo Atlântico até a Europa: latas de carnebovina, carne de carneiro e peixe seguidas delatas de vegetais, frutas e geleia. Em 1880, carnebovina e ovina eram despachadas para a Europade lugares tão distantes quanto Buenos Aires eSydney. No ano 2000, em cidades prósperas, to-das as grandes lojas de departamento exibiammorangos, abacaxis e rosas, todos fora de es-tação, mas trazidos de longe. Nos séculos anteri-ores, fosse ao longo do Rio Amarelo, na China,ou do Rio Avon, na Inglaterra, não fazia sentido

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pedir uma fruta ou uma flor que estivesse fora daestação.

A noite e o dia já não se dis-tinguem mais

Durante a maior parte da história da hu-manidade, o contraste entre noite e dia era tãoacentuado quanto o contraste entre verão e in-verno. A escuridão mantinha as pessoas dentro desua caverna, em seus abrigos nas árvores, emsuas cabanas ou casas de fazenda. O medo de an-imais selvagens também servia de incentivo paraficarem dentro de casa ou próximos à luz protet-ora de uma fogueira. A noite estava ligada aosinistro. Dizia-se que o diabo conduzia orgias, eas bruxas voavam em suas vassouras no meio danoite. Pelo menos duas das principais religiõesviam a noite como uma hora em que, no silêncioe na escuridão, Deus poderia lhes falar. Maomérecebeu a maior parte do Alcorão quando já se

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fazia bem tarde da noite. Os primeiros cristãosviam virtude em rezar a noite porque podiamfazê-lo em silêncio. Muitos esperavam que Cristoretornasse à meia-noite. À medida que as cid-ades, pequenas e grandes, tornaram-se import-antes, a escuridão perdeu um pouco de seu terror.Mas, mesmo na época de Colombo e Lutero, asprincipais ruas das cidades eram pouquíssimo ilu-minadas ao anoitecer. Dentro das típicas casaseuropeias, a luz era fraca demais para se ler umlivro, e, de qualquer forma, na maioria das casas,nem mesmo havia um livro sequer.

Em muitas cidades europeias, a uma certahora após o anoitecer, foi decretado por lei que ofogo das casas deveria ser apagado ou coberto.Antes que a família fosse dormir, devia-se tercerteza de que o fogo estava sob controle. Essaregra simples ajudou a evitar que muitas cidades,onde as casas de madeira eram coladas umas àsoutras, pegassem fogo. Na Inglaterra, Guilherme,o Conquistador, recém-chegado da França, or-denou um toque de recolher às 20 horas, após o

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qual todo fogo era controlado. Durante a maiorparte da história do mundo, o advento da noiteera como o fechamento de uma porta. Poucasocupações continuavam à noite; ser vigianoturno, por exemplo, era seguir uma ocupaçãosolitária.

Durante o século 19, uma mudança ex-traordinária atingiu algumas cidades da Europa,Austrália, América do Norte e Ásia: a noite deix-ou de ter um contraste nítido com o dia. Dentrodas casas, pela primeira vez na história, a luz arti-ficial à noite era frequentemente mais clara que aluz natural do dia, graças à abundância de óleo debaleia, ao novo querosene extraído dos campospetrolíferos subterrâneos, à invenção do gás e daeletricidade. Muitas atividades diurnas podiam,se necessário, ser continuadas durante as primeir-as horas da noite. Além disso, em 1900, as ruasdas grandes cidades eram iluminadas por eletri-cidade e interligadas por bondes e trens, per-mitindo às pessoas viajarem pequenas distânciaspara executar suas atividades sociais após o

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anoitecer. As novas formas de fornecimento deluz também proporcionavam calor no inverno. Ascasas podiam ficar tão quentes quanto no verão.A lã havia sido a principal matéria-prima pararoupas de inverno e cobertores, mas, antes do fi-nal do século 20, o aquecimento das casas e es-critórios estava tão disseminado, e as fibrassintéticas tão baratas, que a lã não tinha mais umaforte demanda para esse tipo de roupa. A perdade distinção entre o dia e a noite foi auxiliada deforma inesperada pelas novas comunicaçõeseletrônicas. Estas proporcionavam contato in-stantâneo e, assim, alguém que vivesse em umalocalidade que estivesse sob a luz do dia poderiaconversar com alguém em outro lugar, muito dis-tante, onde já fosse noite. Foi o engenheiro itali-ano Guglielmo Marconi quem descobriu umaforma de transmitir mensagens através de ondaseletromagnéticas e enviou uma mensagem in-visível até o outro lado do estreito Canal de Bris-tol, em 1897. As experiências, aos poucos, ampli-aram o raio das mensagens. Quatro anos depois,

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Marconi estava na Terra Nova quando recebeu,de um transmissor de rádio situado na Cornualha,do outro lado do Atlântico, uma mensagem comsinal ainda bastante fraco. Era mais uma sequên-cia de sons do que uma mensagem, mas certa-mente causou uma grande excitação. Embora ovelho telégrafo não conseguisse transmitir a vozhumana, o rádio podia transmitir a voz a curtasdistâncias. A primeira estação de rádio para opúblico foi fundada por amadores em Pittsburgh,em 1920. Muitos americanos compraram oumontaram seus próprios aparelhos e puseram-se aescutar o rádio, pois este, em pouco tempo,preencheu outra função, a reprodução de músicagravada no gramofone. Raramente uma invençãonasce pronta e, na década de 1920, o gramofoneexistente transmitia um som lúgubre e, às vezes,meio arranhado. A transmissão de rádio foi-seaperfeiçoando e, em 1939, as pessoas que est-ivessem escutando seu rádio na Nova Zelândia, ànoite, podiam ouvir, embora nem sempre com

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muita nitidez, as notícias da manhã sendo trans-mitidas de Londres.

Enquanto isso, em 1926, um inventor es-cocês, John Logie Baird, transmitiu a primeiraimagem de televisão, em preto-e-branco, de umasala situada nos subúrbios de Londres. Sua in-venção, embora de grande impacto, apresentoude certa forma um impasse. Por mais de vinte ecinco anos, poucas pessoas fora da Inglaterra edos Estados Unidos puderam ver uma imagemtelevisionada. Em 1960, porém, na maioria dasnações prósperas, a televisão, com a ajuda desatélites, estava começando a fazer com que o diae a noite já não se distinguissem mais. Um es-pectador na Austrália, à noite, podia assistir aosJogos Olímpicos sendo disputados, em plena luzdo dia, do outro lado do mundo. Assim, o dia e anoite trocaram de lugar.

A Lua, por muito tempo, tivera um signific-ado especial. Na Assíria, a Lua crescente era osímbolo do rei; no século 9º a.C, Israel baseava

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seu calendário na Lua. A data das celebrações daPáscoa e do ramadã eram determinadas pela Luacheia. A Lua crescente tornou-se o símbolo doIslã e hoje aparece nas bandeiras do Paquistão, daTurquia e da maioria das nações islâmicas.

Como a noite era uma prisão, a Lua cheiaabria as celas, permitindo que atividades import-antes acontecessem. Algumas colheitas podiamser feitas sob a luz da Lua cheia. A determinaçãoda hora propícia para certas ações militares enavais de importância era, às vezes, influenciadapelo conhecimento de que a Lua estaria bril-hando. Na Austrália antiga, as danças cerimoniaisgeralmente eram realizadas sob a Lua cheia.Ainda na lembrança de muitos, nas áreas ruraisda África do Sul e do Canadá, os fazendeiros cos-tumavam realizar danças rituais e serviçosmaçônicos na noite de Lua cheia, e os parti-cipantes, então, guiados pela Lua, podiam ir paracasa a pé ou a cavalo, seguindo as trilhas. Nessaépoca, as casas possuíam um almanaque anualimpresso que lhes dizia quando a Lua seria cheia.

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A cúpula do céu noturno, que parecia estartão próxima, apresentava uma certa intimidadecom várias gerações. As estrelas previam o futurodas nações e dos indivíduos. Durante séculos, osfazendeiros plantaram de acordo com as estrelase a Lua. Em 4 de janeiro de 1948, a nação daBirmânia fixou a hora da criação de sua repúblicae de sua independência da Inglaterra após receberconselhos de astrólogos de que as 4 horas e 20minutos eram a hora propícia. Nos últimos quatroséculos, o telescópio e o rádio dispersaram partedesse mistério e encantamento. A eletricidadeque permitiu que o dia fosse prolongado nasgrandes cidades serviu também para enfraquecera majestade das estrelas. Por muito tempo, o céunoturno havia sido um templo e santuário bemconhecido aos olhos de dezenas de milhões depessoas espalhadas pela superfície da Terra. Mas,no século 20, pela primeira vez na história da hu-manidade, a luz artificial que envolvia as cidadesgrandes ofuscou o brilho das estrelas, diminuindoo que um escritor de baladas uma vez chamou de

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"o maravilhoso esplendor das eternas estrelas".Na verdade, se uma família de caçadores pré-históricos pudesse ser ressuscitada e levada aTóquio numa noite clara, primeiro ficaria impres-sionada pelos edifícios enormes e pelo número depessoas, e depois observaria com igual perplexid-ade que o céu noturno não brilhava mais.

O dia também se transformou. O trabalhodo dia seguiu um novo caminho nas prósperasnações ocidentais. Mesmo há um século, o tra-balho pesado necessário para produzir alimentos,abrigo e roupas era uma tarefa de uma vida in-teira para a maioria dos adultos e muitas crianças,e a penalidade pela ociosidade ou pelo infortúnioera a fome ou mesmo a morte. Mas a máquina enovas técnicas de produção transformaram amaioria dos empregos. As horas de trabalho setornaram mais curtas e havia menos tipos de ser-viço que exigissem o levantamento de peso ou ouso ininterrupto de braços e pernas. O aumentono lazer, especialmente para aqueles com din-heiro para gastar, era agora o impulsionador da

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vida econômica. Muitas das indústrias emexpansão centraram-se em turismo, esportes, re-creação, as chamadas artes de espetáculo, comomúsica, dança, teatro ou outras atividades delazer. Na Europa, no ano 1000, os heróis eramsoldados e santos. Em 2000, era mais provável,em muitas partes do mundo, que fossem atletas,atores, cantores, artistas e outros heróis das horasde lazer.

Grandes multidões, grandescidades

O renascimento e a difusão do esporte paraespectadores (esportes que atraem multidões) nomundo ocidental era um reflexo da reformulaçãodo trabalho e do lazer, do dia e da noite, do in-verno e do verão. A Inglaterra e a Austrália fo-ram as primeiras a se tornarem obcecadas pelosesportes para espectadores. Essa obsessão surgiuantes nas cidades do que no interior: mais em

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cidades como Birmingham e Melbourne do quenos vilarejos rurais. Refletia a riqueza crescenteproduzida em menos horas de trabalho, facilit-ando assim o recebimento de uma folga de meiodia, aos sábados ou quartas-feiras, em cidadescomerciais e industriais. Inicialmente, o surgi-mento dos esportes para espectadores refletia an-tigos padrões. Não eram realizados aos domin-gos, pois a atividade fora proibida nos dias desabá nos países protestantes, seu primeiro lar.Entre os próprios jogadores, havia claras dis-tinções entre profissionais e amadores, ou entreparticipantes da classe trabalhadora e das classesmais altas. A designação restrita de estações paracada esporte popular refletia o antigo contrasteentre verão e inverno. Assim, o futebol foi fixadono inverno, enquanto críquete, tênis, beisebol, at-letismo, remo e boliche de grama eram realizadosno verão. No fim do século 20, os esportes paraespectadores conseguiram descartar algumas dascondições originalmente impostas pelas estações,pelo calendário, pelo sabá e pelo cair da noite.

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Com o advento da luz elétrica, uma competiçãodiurna pôde se tornar um jogo noturno. Com oaparecimento de estádios cobertos, o contrasteentre o verão e o inverno também desapareceu.Com o declínio do protestantismo, os domingostornaram-se dias profanos em que eram realiza-dos eventos esportivos e podia-se ir às compras.Além disso, com a facilidade das viagens aérease a difusão da cultura do esporte, os jogadoresprofissionais podiam jogar o mesmo esporte oano todo, mudando de hemisfério, aproveitando amudança das estações. Como reflexo da difusãoextraordinária do lazer, o esporte para especta-dores está quase se tornando a linguagem inter-nacional. Enquanto em 1900 havia poucas com-petições esportivas que despertassem o entusi-asmo internacional, e a ressurreição dos JogosOlímpicos ainda era uma festa de pouca im-portância, hoje as datas marcadas para as com-petições esportivas internacionais se estendem dejaneiro a dezembro e mostram possíveis sinais dese tornarem o foco de orgulho e agressão

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internacional, que tradicionalmente eram descar-regados nos conflitos de guerra. Em toda ahistória da humanidade, praticamente todos ospovos estavam ligados ao solo. Por isso, suas vi-das eram profundamente afetadas pela alternaçãode inverno e verão, pelo início e fim da Luacheia, pelos padrões de chuva e períodos de seca,e pela colheita anual. Com bastante firmeza, ascidades em constante crescimento desbancaram ointerior como o lar da maioria das pessoas domundo. As cidades grandes agora fazem com quea maior cidade de alguns séculos atrás pareça in-significante. Em 1995, pelo menos 25 cidadestinham mais de sete milhões de habitantes cadauma. Só quatro delas, Londres, Paris, Moscou eIstambul, ficavam na Europa. Em compensação,13 das maiores cidades estavam na Ásia e outrassete nas Américas, incluindo quatro na AméricaLatina. A África tinha somente uma, Cairo, noNilo. No espaço de dois mil anos, quantas dessascidades ainda serão expressivas? A cidade dearranha-céus parece a mais duradoura das

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criações, já que o arranha-céu é praticamente aesfinge e a pirâmide de nossa época, mas, em al-gum momento de uma era ainda distante, essascidades altas presumivelmente seguirão o mesmocaminho de Nínive e Cartago. As cidades re-fletem a crescente população mundial. Obser-vadores no século 20, mais do que em qualqueroutro século, falavam com medo sobre a super-população mundial, ao passo que, por exemplo,em 1800, um estudioso como Robert Malthus, es-pecialista em população, dispunha de pouquíssi-mos meios para estimar com precisão a popu-lação mundial. Em sua época, uma grande partedo mundo ainda era esparsamente povoada, eseus povos ainda não haviam sido contados. Peloque se sabe, o mundo na época de Cristo nãotinha uma população que excedesse os 300 mil-hões. Em essência, a população dessa época equi-valia à dos atuais Estados Unidos. No ano de1750, o mundo tinha talvez 800 milhões de habit-antes, bem menos que a atual população da Ch-ina. Daí em diante, veio o drástico aumento. A

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população mundial passou de um bilhão por voltade 1800, duplicando-se nos 125 anos seguintes.O aumento mais notável aconteceu entre 1927 e1974, quando dobrou para aproximadamentequatro bilhões de pessoas. Nos 25 anosSeguintes, outros dois bilhões surgiram. Maispessoas foram acrescentadas à população mundi-al somente na década de 1990 do que em toda ahistória que ia desde as origens dos humanos aonascimento da Revolução Industrial, naInglaterra. A natureza era agora vista como umavelha e querida aliada, a ser protegida contra umapopulação crescente e uma tecnologia poderosa,mas, durante muito tempo, havia sido vista comoinimiga e amiga ao mesmo tempo. Desde que araça humana começou a existir, a natureza e seusextremos de enchentes, seca, animais selvagens,micróbios invisíveis, tempestades, florestas es-curas e oceanos temperamentais eram temidoscom bastante frequência. A natureza era capaz deinfligir, de um golpe só, mais danos do que a hu-manidade poderia infligir em si mesma, através

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de guerras e outras formas de ferimentos, no de-correr de um ano inteiro. A peste negra matoumais europeus do que a Primeira Guerra Mundialseis séculos mais tarde. Em alguns séculos, mil-hões de vidas foram eliminadas por ciclones,maremotos, terremotos e a erupção de vulcões.Nas décadas da era moderna, entretanto, a tecno-logia humana foi vista como mais devastadoraque a extravagante natureza.

Novos e antigos deuses

A tendência da religião era florescer commais vigor quando a vida cotidiana estava emperigo e quando havia muita dor. A religião flor-escia quando enchentes, secas e outras catástrofesda natureza eram mais destruidoras, quando afome estava às portas, e a morte precoce era a ex-pectativa da maioria das pessoas. A religião flor-escia quando as pessoas viviam da terra e sabiamcomo era fácil uma colheita, há tanto tempo

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esperada, ser arrasada por pestes, seca, exaustãodo solo ou tempestades. Durante a maior parte dahistória, a vida humana esteve em perigo. A reli-gião dava as respostas aos acontecimentos inex-plicáveis da vida de um estado, de uma região oude uma família. Satisfazendo uma ânsia profundae, às vezes, inexplicável, ela era também umafonte de força e inspiração.

A religião era a base de muitas sociedadesque, de outra forma, possivelmente teriam des-moronado. Monarcas poderosos ganhavam muitoao sustentá-la. A religião oficial lhes permitiaproclamar que eram mesmo descendentes dedeuses. Assim sendo, desobedecer ao rei indireta-mente significava desobedecer aos deuses. As re-voluções na França em 1789, na Rússia em 1917e na China em 1949 se empenharam em derrubaras antigas religiões porque sustentavam a antigaordem.

No século 20, a religião enfrentou outrasdificuldades. Com o aumento da prosperidade e

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da longevidade, parte do apelo da religião en-fraqueceu. Na Europa e em algumas regiões dosEstados Unidos, a frequência às igrejas decaiurapidamente, assim como a aceitação de códigossexuais e morais pregados por elas.

Apesar disso, no mundo como um todo, areligião permanecia poderosa. O cristianismo e oislamismo conseguiram muito mais adeptos doque o século anterior, e seus locais de reuniãotraçavam uma linha pontilhada por toda a Terra.O budismo, não mais tão poderoso na China,reteve sua vitalidade em muitas terras. Na Índia,os hindus, os jainistas, os parses e os sikhs eramextremamente presentes e atuantes. O judaísmoestava vivo e grato por estar vivo. Na África,havia mais pessoas praticando fervorosamente asreligiões do que na Europa, em qualquer época.De forma bastante expressiva, exatamente asmesmas igrejas que se recusavam a dar umatrégua às tendências profanas e continuavam aafirmar sua crença na importância do próximomundo, eram geralmente as mais vigorosas.

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O Islã não dava trégua; havia somente umDeus, e Alá era seu nome. A maioria de seuspregadores se opunha à profanação, ao consum-ismo, ao materialismo e ao que viam como umacultura cada vez mais atordoada e ímpia em NovaYork, Paris, Moscou e Cingapura. Dentro do Islã,os extremistas evangélicos eram evidentes. Elesnão eram típicos, mas eram forçados a serem típi-cos porque suas atividades estavam geralmentenos noticiários. Eram totalmente opostos aojudaísmo e ao cristianismo. Denunciavam omundo ocidental secularizado como decadente eextremamente permissivo e tolerante. Por suavez, eram denunciados como retrógrados e ex-tremamente intolerantes. Disputas tão arraigadascomo essas haviam ocorrido repetidas vezes nahistória da humanidade. Enquanto no ocidente adiversidade cultural e religiosa, talvez pelaprimeira vez na história, era aclamada por muitoscomo uma virtude suprema, nas mesquitas eravista quase como um pecado supremo.

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Predominantemente uma religião do interi-or e dos vilarejos, o islamismo no início doséculo 21 cresceu em ritmo acelerado, em parteporque acreditava em si e em parte porque acred-itava em famílias numerosas. Era agora a religiãode aproximadamente uma em cada cinco pessoasno mundo e estava crescendo mais rapidamenteque o cristianismo, embora ainda muito atrás emseu número total de adeptos. Hoje, os grandestemplos de adoração construídos no mundo sãoprovavelmente mesquitas islâmicas e não maiscatedrais cristãs. Na cidade marroquina de Cas-ablanca, foi recentemente construído o minaretemais alto do mundo e, até mesmo na Venezuela,considerada uma nação católica, os habitantes de-votos dos vilarejos do interior ficaram impres-sionados com o surgimento de uma dessas im-ponentes mesquitas em seu país.

Milhões de pessoas cultas no mundoocidental se distanciaram dos deuses a quem,quando jovens, haviam sido ensinadas a orar.Parte de sua autoconfiança veio das conquistas da

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ciência e da tecnologia. A própria ciência era umnovo deus racional e era aclamada como possuid-ora de todo o conhecimento, de toda a sabedoriae de ser capaz de produzir milagres materialistas.O marxismo, durante um tempo, foi uma religiãoalternativa poderosa. Karl Marx pregava ser oprimeiro a descobrir as leis científicas da históriada humanidade e que essas leis produziriam porfim um céu, muito embora esse céu ficasse naTerra. Se por um lado a ciência e o comunismoalegavam dispensar os deuses, elas praticamenteentronizavam a raça humana e seu potencial,transformando-a em um deus. Essa atitudeutópica, muito mais que a religião tradicional, en-trou em declínio no fim do século 20, com ocolapso do comunismo na Rússia e no LesteEuropeu. Ainda assim, é possível que volte aaparecer novamente com trajes diferentes. Aciência, aclamada no século anterior como a ben-feitora da raça humana, era agora condenada pormuitos críticos ocidentais como uma destruidora.Uma luta ambiental vigorosa resumiu a

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tecnologia e a ciência como inimigas que es-tavam poluindo o céu, a terra e o mar. A poluiçãotornou-se uma palavra que servia a todos ospropósitos de desaprovação. Esse era o primeiroséculo em que a poluição era vista como umaforça mundial. A hostilidade disseminada em re-lação à ciência e à tecnologia veio quando seustriunfos ainda eram muito mais abrangentes doque suas ameaças.

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EpílogoA história recente da raça humana é como

um maravilhoso renascimento. Quase todas aspartes do corpo ganharam um substituto. Há doismil anos, as pernas humanas eram indispensá-veis. Não havia substituto, exceto um cavalo ouum veleiro. Em todos os lugares, as pernas con-duziam as pessoas quando trabalhavam e quandopasseavam. As pessoas ficavam em pé durante amaior parte do tempo em que permaneciamacordadas, exceto uma pequena parcela daquelasque executavam serviços sentadas, como, por ex-emplo, os agiotas e os estudiosos, que talvezpudessem se sentar enquanto trabalhavam; o rest-ante ficava em pé, fosse semeando ou trabal-hando na colheita, para serem sacerdotes, solda-dos ou para cozinhar. Até mesmo o hábito da es-crita era geralmente executado em pé, diante deuma carteira mais alta. Hoje, porém, as aer-onaves, os trens, os carros, as motocicletas e os

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ônibus tornaram-se os substitutos das pernas. Damesma forma, há dois mil anos, os braços e mús-culos eram essenciais na maioria das tarefas. Nomar, o vento ajudava, mas os braços eram ne-cessários para içar as pesadas velas ou para remaro navio em águas paradas. A força dos bois erafundamental na aragem, mas a força dos braçoshumanos era necessária para guiar o arado. Osmúsculos do braço e os dedos eram fundamentaispara produzir alimentos, abrigo e segurança. Foientão que surgiu uma corrente de mudançasdrásticas, com o braço e a mão humanos sendoauxiliados ou substituídos pela roda hidráulica ea máquina a vapor, pelo carrinho de mão, pelapólvora e a dinamite, pelo guindaste hidráulico,pelo quebrador de concreto, pela máquina de ter-raplenagem, pela máquina de rebitagem, pela má-quina de lavar roupas e pelo aspirador de pó, pelamáquina de costura, escavadeiras, máquinas desondagem, teclados de computadores e inúmerosoutros substitutos. O braço e os dedos humanosforam transformados ainda mais que as pernas.

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Os dedos, por exemplo, podem enviar mísseisnucleares de um continente a outro.

A cabeça humana também sofreu mudançasinimagináveis. A visão foi realçada pelo telescó-pio, pelo microscópio, pela televisão, pelo radar,pelos óculos e pela imprensa. Os ouvidos escut-am mais, fala-se com mais clareza, e a voz viajachegando longe através do rádio, do microfone,do telefone e das fitas de música. A criatividadedo cérebro humano foi auxiliada e refletida pelocomputador. As atividades sexuais foram altera-das pela pílula. A eficácia dos dentes foi pro-longada não só pela odontologia e pelo dente arti-ficial, mas pelas mudanças na dieta e no proces-samento dos alimentos. O conhecimento docorpo humano foi ampliado ainda mais peloestudo dos genes.

Da mesma forma, a memória dos seres hu-manos, especialmente a memória coletiva, foiampliada pelas bibliotecas e pelos arquivos. Curi-osamente, essa ampliação da memória humana já

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era significativa muito antes da ascensão do Im-pério Romano, graças à inovação da contagem, àinvenção do calendário, ao surgimento da arte daescrita e a uma forma criativa de retenção damemória, a capacidade da rima. Em contra-posição, a maior parte dos surpreendentes ganhosna eficiência de pernas, braços, boca, dentes, ol-hos, ouvidos, memória e o diagnóstico dedoenças humanas vieram após o século 15. Nen-huma dessas profundas mudanças alterou a vont-ade humana, a inquietação humana, o desejo hu-mano de liberdade e de conformidade. Tantos tri-unfos da ciência e da tecnologia foram superfici-ais. Era mais fácil, nessa era de produção emmassa, no interior e na cidade, satisfazer o es-tômago do que a mente. Era mais fácil dominaras doenças do que dominar o comportamento hu-mano e colocar um fim nos conflitos de guerra.

Quase um único mundo

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Os avanços na tecnologia aumentaram opoder dos líderes ou grupos específicos. Há dezmil anos, o líder de uma tribo raramente eracapaz de exercer influência a mais de 100 quilô-metros de casa. O mundo era como um lago, comespaço para milhares de pequenas ondulações emsua superfície, cada uma refletindo a minúsculaesfera de influência de uma tribo. O raio dasondulações tornou-se maior após o surgimento deimpérios maiores, da China, da Índia, da Grécia,de Roma e dos Astecas.

Porém, a esfera de influência de cada umdesses impérios ainda era pequena. A tecnologiapredominante da guerra e do transporte era tãogrande que praticamente não havia outra formade alcançar o controle central da disseminação deuma população civil por todos os cantos. Há doismil anos, nenhum império podia se estender tãolonge assim. Roma, em seu auge, poderia ter con-quistado e governado partes da Índia e até mesmoda China, mas seu reino teria sido breve. Hitler,se tivesse saído vitorioso, provavelmente não

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teria conseguido controlar o mundo inteiro: atecnologia da guerra, das comunicações e da cen-sura não o permitiriam. Hoje, como nunca antes,é possível a uma nação forte controlar o mundointeiro. Nos dois próximos séculos, à medida queo mundo continue se encolhendo, e suas distân-cias diminuindo, uma tentativa bem que poderiaser feita, com consentimento ou à força, de se in-stalar um governo mundial. Se durará muitotempo é uma pergunta deixada em aberto. Nahistória da humanidade, quase nada pode serpredeterminado.

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