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ESTUDOS FEMINISTAS 1/2001 299 299 299 299 299 Resenhas Resenhas Resenhas Resenhas Resenhas Uma análise crítica do direito à diferença Uma análise crítica do direito à diferença Uma análise crítica do direito à diferença Uma análise crítica do direito à diferença Uma análise crítica do direito à diferença Ciladas da diferença. PIERUCCI, Antônio Flávio. PIERUCCI, Antônio Flávio. PIERUCCI, Antônio Flávio. PIERUCCI, Antônio Flávio. PIERUCCI, Antônio Flávio. São Paulo: 34, 1998. 222p. São Paulo: 34, 1998. 222p. São Paulo: 34, 1998. 222p. São Paulo: 34, 1998. 222p. São Paulo: 34, 1998. 222p. Muito pouco se discutem os efeitos políticos e as conseqüências sociais de um determinado tipo de discurso, típico dos movimentos sociais de esquerda: o discurso do “direito à diferença”. Cila- das da diferença, de Antônio Flávio Pierucci, é um livro que se presta a fomentar esse debate, e como o próprio título nos sugere, aponta os dilemas e os riscos de se eleger a atenção social à diferença como um princípio das lutas políticas. Formalmente, o livro se divide em sete capí- tulos, distribuídos em duas partes, e resulta da com- pilação de artigos já publicados pelo autor em periódicos, conferências e capítulos de outros li- vros. Grande parte dos argumentos desenvolvidos por Pierucci tem o apoio de dados empíricos colhi- dos e analisados pelo autor em pesquisas anterio- res, tendo como sujeitos pessoas pertencentes às camadas médias da cidade de São Paulo. A se- guir, destaco os principais temas e teses em que o autor se detém, sem necessariamente seguir a ordem em que eles aparecem. Interessa mais, para os fins desta resenha, sublinhar a necessidade de analisarmos com maior cuidado o “discurso da diferença”. Vale dizer, antes de tudo, que o autor não está questionando a diferença de fato, a con- dição singular de cada pessoa, mas a emergên- cia de “novos” modos de se exigir o reconheci- mento político e social da diferença. O primeiro argumento desenvolvido por Pierucci é na verdade uma lembrança, encoberta pelo “charme” e pelo “fascínio” dos discursos de esquerda que afirmam o primado da diferença. Trata-se do fato de que a obsessão pela diferença é originalmente uma característica da direita polí- tica. É a direita que, historicamente, nega-se a aceitar o princípio de igualdade entre os seres humanos, justificando a desigualdade pelo fato “concreto” das diferenças entre os grupos coleti- vos étnico-culturais. Assim, tudo o que parece ino- vador nos discursos da diferença é na verdade um retorno a uma velha pauta de princípios da direita. O próprio racismo está centrado na ênfase à dife- rença, no caso, rejeitando-a e a indicando como a fonte “natural” da desigualdade social. Em razão disso, Pierucci assinala a aproximação dos discur- sos de esquerda que enunciam o “direito à dife- rença” aos velhos argumentos da direita, pelo fato de ambos apoiarem a diferença em um dado natural e sensível: o corpo. O contraste entre a direita e a esquerda em relação à diferença se realiza pelo fato de que, para a segunda, não há razão em se optar ou pela igualdade ou pela diferença. Supõe-se, inclusive, nos meios intelectualizados de esquerda, que a desigualdade nada tenha a ver com a diferença. Para Pierucci, é nesse ponto que reside o equívoco que constitui uma das “ciladas” da diferença: a cren- ça de que a defesa da diferença possa se desvincular das relações de valor que fundamen- tam a desigualdade. A partir do antropólogo Luis Dumont, o autor demonstra que não há como enfatizar a diferença sem afirmar ao mesmo tempo uma distinção de valor. Por essa razão, anunciar a condição de “diferentes, mas iguais”, ou de “igual- dade na diferença” é correr o risco de eleger uma luta possível mais no discurso do que na realidade. Nesse sentido, a conclusão do autor é que anunci- ar o “direito à diferença” é uma postura mais coe- rente na direita do que na esquerda política. Estranha Pierucci que certos movimentos identitários de esquerda tenham como mote a ênfase numa diferença sensível (cor da pele, sexo etc), através de discursos pautados em políticas do corpo que lembram o peso fornecido pela di- reita aos dados naturais. Para o autor, a esquerda sempre esteve mais próxima das lutas pela igual- dade, que implicam uma postura de abstração das particularidades, enquanto a direita é que tem enfatizado os dados concretos oferecidos à esfera sensível. Se antes era a direita que exigia a manu- tenção de mecanismos de pertencimento dos sujeitos que valorizam dados naturais, agora é a esquerda que defende políticas do corpo que se utilizam dessas estratégias políticas. Pierucci esforça-se em elucidar seus argu- mentos à luz da análise de acontecimentos de

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ESTUDOS FEMINISTAS 1/2001299299299299299

ResenhasResenhasResenhasResenhasResenhas

Uma análise crítica do direito à diferençaUma análise crítica do direito à diferençaUma análise crítica do direito à diferençaUma análise crítica do direito à diferençaUma análise crítica do direito à diferença

Ciladas da diferença.

PIERUCCI, Antônio Flávio.PIERUCCI, Antônio Flávio.PIERUCCI, Antônio Flávio.PIERUCCI, Antônio Flávio.PIERUCCI, Antônio Flávio.

São Paulo: 34, 1998. 222p.São Paulo: 34, 1998. 222p.São Paulo: 34, 1998. 222p.São Paulo: 34, 1998. 222p.São Paulo: 34, 1998. 222p.

Muito pouco se discutem os efeitos políticose as conseqüências sociais de um determinadotipo de discurso, típico dos movimentos sociais deesquerda: o discurso do “direito à diferença”. Cila-das da diferença, de Antônio Flávio Pierucci, é umlivro que se presta a fomentar esse debate, e comoo próprio título nos sugere, aponta os dilemas e osriscos de se eleger a atenção social à diferençacomo um princípio das lutas políticas.

Formalmente, o livro se divide em sete capí-tulos, distribuídos em duas partes, e resulta da com-pilação de artigos já publicados pelo autor emperiódicos, conferências e capítulos de outros li-vros. Grande parte dos argumentos desenvolvidospor Pierucci tem o apoio de dados empíricos colhi-dos e analisados pelo autor em pesquisas anterio-res, tendo como sujeitos pessoas pertencentes àscamadas médias da cidade de São Paulo. A se-guir, destaco os principais temas e teses em que oautor se detém, sem necessariamente seguir aordem em que eles aparecem. Interessa mais, paraos fins desta resenha, sublinhar a necessidade deanalisarmos com maior cuidado o “discurso dadiferença”. Vale dizer, antes de tudo, que o autornão está questionando a diferença de fato, a con-dição singular de cada pessoa, mas a emergên-cia de “novos” modos de se exigir o reconheci-mento político e social da diferença.

O primeiro argumento desenvolvido porPierucci é na verdade uma lembrança, encobertapelo “charme” e pelo “fascínio” dos discursos deesquerda que afirmam o primado da diferença.Trata-se do fato de que a obsessão pela diferençaé originalmente uma característica da direita polí-tica. É a direita que, historicamente, nega-se aaceitar o princípio de igualdade entre os sereshumanos, justificando a desigualdade pelo fato“concreto” das diferenças entre os grupos coleti-

vos étnico-culturais. Assim, tudo o que parece ino-vador nos discursos da diferença é na verdade umretorno a uma velha pauta de princípios da direita.O próprio racismo está centrado na ênfase à dife-rença, no caso, rejeitando-a e a indicando comoa fonte “natural” da desigualdade social. Em razãodisso, Pierucci assinala a aproximação dos discur-sos de esquerda que enunciam o “direito à dife-rença” aos velhos argumentos da direita, pelo fatode ambos apoiarem a diferença em um dadonatural e sensível: o corpo.

O contraste entre a direita e a esquerda emrelação à diferença se realiza pelo fato de que,para a segunda, não há razão em se optar ou pelaigualdade ou pela diferença. Supõe-se, inclusive,nos meios intelectualizados de esquerda, que adesigualdade nada tenha a ver com a diferença.Para Pierucci, é nesse ponto que reside o equívocoque constitui uma das “ciladas” da diferença: a cren-ça de que a defesa da diferença possa sedesvincular das relações de valor que fundamen-tam a desigualdade. A partir do antropólogo LuisDumont, o autor demonstra que não há comoenfatizar a diferença sem afirmar ao mesmo tempouma distinção de valor. Por essa razão, anunciar acondição de “diferentes, mas iguais”, ou de “igual-dade na diferença” é correr o risco de eleger umaluta possível mais no discurso do que na realidade.Nesse sentido, a conclusão do autor é que anunci-ar o “direito à diferença” é uma postura mais coe-rente na direita do que na esquerda política.

Estranha Pierucci que certos movimentosidentitários de esquerda tenham como mote aênfase numa diferença sensível (cor da pele, sexoetc), através de discursos pautados em políticasdo corpo que lembram o peso fornecido pela di-reita aos dados naturais. Para o autor, a esquerdasempre esteve mais próxima das lutas pela igual-dade, que implicam uma postura de abstraçãodas particularidades, enquanto a direita é que temenfatizado os dados concretos oferecidos à esferasensível. Se antes era a direita que exigia a manu-tenção de mecanismos de pertencimento dossujeitos que valorizam dados naturais, agora é aesquerda que defende políticas do corpo que seutilizam dessas estratégias políticas.

Pierucci esforça-se em elucidar seus argu-mentos à luz da análise de acontecimentos de

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nível internacional e que demonstram como po-dem se evidenciar as “ciladas da diferença”. Umdeles é a efervescência política e conceitual ge-rada no campo jurídico norte-americano atravésdo caso Sears, onde duas posições opostas dediferentes vertentes do movimento feminista en-traram em confronto, no intuito de verificar a pre-sença de discriminação sexual nos processos decontratação de uma grande empresa varejista nosEstados Unidos. Entre a demanda política pela igual-dade dos sexos e a emergência do discurso da“diferença” da experiência das mulheres, engen-drou-se um debate histórico de repercussões atéhoje discutidas.

Cumpre destacar que uma das autoras femi-nistas enquadradas por Pierucci como represen-tante do “discurso da diferença” é a historiadoraJoan W. Scott. Essa autora, analisando os dilemasdo feminismo a partir do caso Sears sob a ótica pós-estruturalista, desconstrói o pensamento dicotômicoque opõe a igualdade à diferença. 1 Para ela, taisaspectos, no contexto das relações de gênero, es-tão em uma relação de interdependência onde “aigualdade não é a eliminação da diferença, e adiferença não exclui a igualdade” (Ibid. p. 209).Embora aponte os riscos que a ênfase na diferençaincorre, como o da naturalização dessa condição,Scott propõe que não se perca o poder analíticodessa categoria. Seu argumento aponta a relevân-cia de se insistir no caminho da diferença como aprincipal forma de se superar o absolutismo domasculino. Na análise de Scott, o reconhecimentoda diferença e o resgate das “experiências dasmulheres” são estratégias políticas necessárias aomovimento feminista.

Pierucci se contrapõe ao ponto de vista daautora, mostrando ser difícil ir a fundo na lógicadiferencialista sem incorrer em algum modo dediscriminação. A tentativa de conciliar a luta pelaigualdade com a defesa do “direito à diferença”,para o autor, ignora a impossibilidade de se sepa-rar a diferença dos atributos sociais de valor. Nessesentido, aprofundar esse debate inclui considerarque “o jogo político é também uma guerra semân-tica” (p. 43).

É na tese da produtividade da diferença queo autor sofistica sua análise, mostrando o quantoa diferença se destina a gerar mais diferença. Odiscurso do direito à diferença tem como pautaprincipal a contraposição ao princípio universalistamoderno, defendendo que a condição específi-ca de alguns sujeitos não está contemplada nesseâmbito social e político. É o caso do movimento

feminista de “segunda onda”, nos termos do autor,cuja ênfase na não adequação dos “direitos hu-manos” à condição da mulher resulta por exigir o“direito à diferença”. Afirmando que os sujeitos sãosexualmente engendrados, essa vertente do mo-vimento feminista aponta a inexistência do sujeitoabstrato dos direitos humanos e a necessidade dese incluir a “diferença” das mulheres nesse contex-to. É nesse ponto que se produz a grande “ciladada diferença” proposta por Pierucci, instalando-seum dilema entre abstrato/universal e concreto/particular. Esse discurso, ao se desvincular do com-promisso com a abstração das particularidades,assume a demanda pelo reconhecimento e pelavalorização de novas diferenças que atravessamseu caminho. No exemplo de Pierucci, tão logo seobservou a diferença das mulheres, emergiram as“diferenças de dentro”: as mulheres não-brancaspassaram exigir que se contemplasse sua diferen-ça, não mais de gênero, mas de etnia. O argu-mento permanece o mesmo: a noção de “mulheruniversal” é criticada como mera abstração, váli-da apenas para as mulheres brancas. É próprio dadiferença, portanto, abrir demandas pelo apareci-mento de outras diferenças, sempre pautadas noque é no fundo um dado natural e visível. O as-pecto irônico de todo esse processo, para o autor,traduz-se no fato de que são esses mesmos discur-sos os primeiros a se contraporem a todo tipo deessencialismo.

No apogeu da produção da diferençaPierucci identifica as perspectivas que se anunci-am como “multiculturalistas”, tão comentadas nomeio acadêmico atual. Junto com as críticas pós-modernas ao sujeito universal, afirma-se cada vezmais o primado da diferença, onde as “múltiplasetnicidades”, as “múltiplas culturas”, são categori-as de análise que caracterizam todo o processogerado pela valorização da diferença no mundocontemporâneo. O autor resume esse processodizendo que se trata do desdobramento da igual-dade na diferença e desta última nas diferençaspresentes em todo tipo de “múltiplos” que se de-fende nas teorias pós-modernas. Por isso, dizPierucci, “a diferença jamais é uma só, mas sem-pre já-plural, sempre sobrando, muitas; sem uni-dade e sem união alguma possível” (p. 150).

Pierucci não se arrisca tão explicitamente aapontar algum caminho, mas dá indícios de queum modo de superarmos os dilemas da diferençaé reconstruir o “geral”, sem essencializar as dife-renças. Reconhece o autor que, a despeito deseus efeitos perversos, o discurso da diferença tem

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produzido interessantes formas de emancipaçãohumana. No entanto, ao denunciar os labirintosque construímos pela ênfase na diferença, alerta-nos contra as ciladas que possamos eventualmentecair sem considerar as implicações dos lemas queembandeiramos.

1 SCOTT, Joan. W. “Igualdade versus diferença: os usosda teoria pós-estruturalista.” Debate Feminista (Cidada-nia e Feminismo), nº especial, 2000, p. 203-222.

ADRIANO HENRIQUE NUERNBERG ADRIANO HENRIQUE NUERNBERG ADRIANO HENRIQUE NUERNBERG ADRIANO HENRIQUE NUERNBERG ADRIANO HENRIQUE NUERNBERG !!!!!

PPPPPara a re-inscrição das estórias do gê-ara a re-inscrição das estórias do gê-ara a re-inscrição das estórias do gê-ara a re-inscrição das estórias do gê-ara a re-inscrição das estórias do gê-nero no romance português contempo-nero no romance português contempo-nero no romance português contempo-nero no romance português contempo-nero no romance português contempo-râneorâneorâneorâneorâneo

Gênero e história no romance por-tuguês contemporâneo: novos su-jeitos na cena contemporânea

SCHMIDTSCHMIDTSCHMIDTSCHMIDTSCHMIDT, Simone P, Simone P, Simone P, Simone P, Simone Pereiraereiraereiraereiraereira.....

Porto Alegre: PUC/RS, 2000. 215p.Porto Alegre: PUC/RS, 2000. 215p.Porto Alegre: PUC/RS, 2000. 215p.Porto Alegre: PUC/RS, 2000. 215p.Porto Alegre: PUC/RS, 2000. 215p.

É curioso que num país em que se publicou,a princípios dos anos setenta, o modelo pioneirode escrita feminista, intitulado Novas Cartas Portu-guesas, ainda se registre uma quase completaausência de uma crítica literária voltada para aluta por uma sociedade mais justa que vem a ser,em termos latos, o feminismo. E feminismo, nosingular, apesar de todas as variações e tensõesque o caracterizam nas últimas três décadas, eque o texto híbrido das famosas três Marias já dra-matiza. Sem querer privilegiar um ponto de vistaqualquer, não imiscuído nas peias discursivas einstitucionais que em Portugal têm impedido maisdo que uma ou outra expressão isolada de críticaacadêmica feminista, é evidente que só à distân-cia tem sido factível levar a cabo esse labor deforma assumida e sistemática. É isso o que nossugere o recente livro da investigadora brasileiraSimone Pereira Schmidt, Gênero e história no ro-mance português: novos sujeitos na cena con-temporânea, um olhar tão distanciado quantoempático e específico sobre a emergência dosujeito feminino, ou melhor, feminista, na produ-ção ficcional portuguesa na segunda metade doséculo XX.

Diferentemente de estudos temáticoscentrados tão só em romances de autoria femini-na ou masculina, o trabalho de Simone PereiraSchmidt põe em movimento uma complexidadede perspectivas, não só ao nível de teorizaçãocomo também de análise e de ilações histórico-literárias, confrontando textos de homens e mu-lheres dos anos cinqüenta e dos anos oitenta. Oresultado não é simplesmente “uma leitura”, outramais, de textos particulares. É antes um exemploda pluralidade de preocupações, e por conse-guinte de enfoques, que a teoria crítica feministaelaborada a partir do anti-fundacionalismo pós-moderno traz à crítica literária, que equivale tam-bém a dizer à interpretação de processos históri-cos e culturais, neste caso portugueses. Estamosperante uma práxis feminista interdisciplinar guia-da pelo objetivo de trazer para o centro dos estu-dos literários uma reflexão atuante em torno dapolítica do gênero que lhes é inerente de formaprofunda e difusa, mas não imutável. Daí (tam-bém) a importância de não valorizar enunciadosou figurações femininos ou masculinos, colocan-do-os em diálogo crítico ou, para usar o conceitobakhtiniano que engloba a metodologia do pre-sente estudo, um “cruzamento” de vozes, deideologemas, de tempos, espaços e locais deenunciação. O que oferece não poucas surpre-sas, se não à teoria crítica feminista per se, certa-mente ao entendimento de como o romance por-tuguês contemporâneo é locus de codificação,transformação e reinvenção de identidades con-vencionais do gênero.

Gênero e história no romance portuguêscontemporâneo surpreende primeiro pelo rigor daproblematização teórica que a autora elabora deantemão, e à luz da qual vai cerzindo posterior-

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mente suas análises; em segundo lugar, pela es-colha dos quatro romances que integram o corpusprimário de investigação. Representando não sódois grandes momentos da história do romanceportuguês contemporâneo, como também doisgrande autores e duas grandes autoras, esses ro-mances são A sibila (1954), de Agustina Bessa-Luís,Aparição (1959), de Vergílio Ferreira, Notícia dacidade silvestre (1984), de Lídia Jorge, e História docerco de Lisboa (1989), de José Saramago. Cadatexto é objeto de minuciosa análise na procura domodo como seu discurso releva histórias do gêne-ro sexual, incluindo as relações de poder em quese apóiam, e sobretudo como esse discurso traz àtona transgressões ao domínio difuso dessas estó-rias. Colocam-se assim em evidência não só jun-ções de polifonia e ambivalência discursivas comotambém a insinuação, e mesmo a auto-afirma-ção, de sujeitos liminares femininos (mas tambémnão só, como é o caso de Raimundo Silva, daHistória do cerco de Lisboa). A definição deBoaventura Sousa Santos relativa à identidade defronteira de Portugal é nesse sentido propícia, indoao encontro de sugestões teóricas de LindaHutcheon e Donna Haraway sobre identidades “ex-cêntricas” ou estratégias recombinatórias (o“cyborg”) típicas de sujeitos não hegemônicos pós-modernos. Esse olhar simultaneamente abstrato-teórico, especificado num argumento, ou fontesecundária de fundamento local, torna possível arecuperação de vozes e identidades que, não sepodendo considerar típicas de um tempo dito pós-moderno, continuariam enterradas num ou nou-tro discurso hegemônico, como acontece comSofia em Aparição, personagem que Schmidt lêcontra o grão da voz narrativa de Vergílio Ferreira.

Embora não se detendo em maiores deta-lhes historiográficos, sociológicos ou antropológi-cos, o estudo da face cambiante do gênero nosreferidos romances é desenvolvido a partir deamplos parâmetros contextuais atentos acondicionantes de tempo, espaço e inserção filo-sófico-literária, antes e depois da grande balizarepresentada pela revolução de 25 de abril de1974. Os trinta anos que separam as publicaçõesde A sibila e Notícia da cidade silvestre, por umlado, e as de Aparição e História do cerco de Lis-boa, por outro, assistem a não poucas reviravoltasna sociedade portuguesa, que a autora associacorretamente a um lento processo de moderniza-ção das estruturas sociais, econômicas e mentaisprecipitado no período pós-revolucionário com aentrada de Portugal na corrida neo-liberalista do

mercado europeu, de que o romance de LídiaJorge dá notícia. Com relação à perda de antigasutopias democráticas e à dissolução de algumas“grandes verdades” celebradas com o 25 de abril,talvez valesse a pena referir o efeito que o golpecontra-revolucionário de novembro de 1975 terianos romances dos anos oitenta. Uma ausênciamenor, que de resto não altera as sensíveis inter-pretações apresentadas à luz do mais amplo pa-norama histórico-cultural.

Após seu tratamento isolado em quatrosubcapítulos, formando a parte central do livro, osquatro romances são depois confrontados ou “cru-zados” num terceiro capítulo. Este é constituídopor uma série de análises intertextuais focalizadasem torno de constantes discursivas vindas à tonanas análises anteriores. Essas constantes, queSchmidt denomina “motes”, são “Espelhos narrati-vos”, “Subjectividades”, “O outro”, “Relações dogênero” e “Poéticas de localização”. Mais do quesíntese ou conclusão, que também não o deixamde ser, ficam assim traçadas novas linhas de leitu-ra. Estas funcionam como pontes de ligação entretextos teóricos e ficcionais, entre vozes “outras”recusando qualquer outra unidade (ou formaçãode comunidade) que as reduza a um qualquercentro ou mesmo neutralizador de diferenças. Seráesse o convite que o livro de Schmidt lança aposteriores incursões teórico-críticas relevantes aosestudos feministas do gênero a acontecer (e comque urgência) no campo específico do romanceportuguês contemporâneo.

O penúltimo capítulo da História do cerco deLisboa (1989), de José Saramago, põe em cenaum breve diálogo que poderá servir de fecho paraa presente resenha, na medida em que refratauma das transformações epistemológicas e políti-cas mais palpáveis vindas da história do feminismona época contemporânea. Nessa cena, MariaSara, uma figura de mulher independente, e avários níveis “idealizada”, como bem o afirmaSchmidt, imputa o problema da luta pelo poderque reduz as relações entre homens e mulheres à“macheza”, acabando por perguntar ao seuinterlocutor se os homens “alguma vez se decidi-rão a ser naturais na vida”. A tal provocação, o“feminino” ou “ex-cêntrico” revisor, Raimundo Sil-va, responde: “Nenhum ser humano é natural”. Sebem que ninguém precise ser licenciado paraconhecer na pele essa evidência, não há dúvidade que sua articulação e problematização teóricase devem, na época contemporânea, sobretudoao impulso de uma série de lutas locais e

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multifacetadas pela emergência civil, cultural epolítica das mulheres como sujeitos libertos de mitospatriarcais de femininidade. Mais à frente no diálo-go é a vez de Maria Sara negar toda e qualquerdivisão dicotômica entre as pessoas, postulando oideal resistente da negatividade — o “não” — comoforma última de afirmação da subjetividade con-tra tudo aquilo que a oprima e silencie.

Ora, as relações de gênero na vida privadasão apontadas no estudo de Schmidt como índi-ce, não simples reflexo, de tempos-espaços mar-cados ora pela repressão e pelos obscurantismossalazaristas, ora pela desilusão no termo da eufo-ria revolucionária e pela nova esperança no serhumano que se precisa continuamente reinventar.

O caráter movediço e polivalente desses índices éiluminado para sugerir sua historicidade radical emrelação ao presente, o da construção do textocrítico. É aqui o lugar onde o “não” de muitos sujei-tos renascidos ou redescobertos pelo sentido críti-co da autora reverbera com vistas ao “sim” para láde seu tempo e espaço. Eis o que nos vem ofere-cer Gênero e história no romance português: no-vos sujeitos na cena contemporânea. É de cele-brar a atitude distanciada e, contudo, de compro-metimento crítico e afetivo com uma literaturanacional em tudo também “ex-cêntrica” no con-texto das literaturas européias, e não só.

ANA PANA PANA PANA PANA PAULA FERREIRA AULA FERREIRA AULA FERREIRA AULA FERREIRA AULA FERREIRA !!!!!

“Novas” violências assolam o cotidiano“Novas” violências assolam o cotidiano“Novas” violências assolam o cotidiano“Novas” violências assolam o cotidiano“Novas” violências assolam o cotidiano

Assédio Moral. A violência perver-sa no cotidiano

HIRIGOYEN, Marie-France.HIRIGOYEN, Marie-France.HIRIGOYEN, Marie-France.HIRIGOYEN, Marie-France.HIRIGOYEN, Marie-France.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.224p.224p.224p.224p.224p.

Nesse livro notável, Marie-France mostracomo se processa um tipo de violência, que con-sidera perversa, no cotidiano de nossas vidas. Per-mite-nos observar pelo “olho da fechadura” o esta-belecimento e a evolução de relações interpessoaiscaracterizadas pela violência psicológica em dife-rentes espaços institucionais.

A autora concentra-se na definição e naanálise da violência perversa, ou assédio moral,enfatizando que determinados indivíduos podemexercer sobre os outros uma verdadeira edemolidora estratégia de produção de poder, nosentido da dominação, com o objetivo de eliminaraqueles que foram escolhidos como vítimas. Se-gundo a autora, essa violência emerge como umaestratégia de poder totalitário, pois a dominaçãoque se pretende implica a destruição/anulaçãodo outro diferente.

A análise desses relacionamentos invoca di-ferentes espaços sócio-institucionais: no mundodo íntimo, a família; no espaço público, a empre-

sa. Na família, a autora analisa a violência perver-sa no relacionamento entre pais e filhos e entre oscasais; na empresa, focaliza o relacionamento entrechefias e subordinados e entre os colegas. Cadarelacionamento é discutido teoricamente a partirde casos clínicos. Em três capítulos — “A violênciaperversa no cotidiano”, “A relação perversa e seusprotagonistas” e “Conseqüências para a vítima eresponsabilidade”— Marie-France coloca a nu oque denomina violência privada (na família) e naempresa, analisa as características psicológicasdos protagonistas do drama (o perverso narcísicoe sua vítima) e finalmente mostra as conseqüênci-as desse tipo de relacionamento para as vítimas,orientando sobre as estratégias que podem serutilizadas para se livrar dessa situação.

O poder, como catalisador das relaçõesinterpessoais nos diferentes espaços institucionais,não é discutido pela autora; ele é invocado e sefaz presente como um eixo da análise, emboranão seja suficientemente problematizado. Entre-tanto o discurso da autora deixa transparecer apresença de um ethos masculino no exercício dopoder totalitário nessas instituições, especialmen-te no espaço familiar, já que seus exemplos clíni-cos de vítimas da perversão entre casais são sem-pre mulheres.

Logo na introdução, a autora alerta para operigo que pode se esconder nos “encontros” comos semelhantes. Qualquer um de nós pode serinterpelado por um outro que poderá desejar nos

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destruir psicologicamente e quem sabe fisicamen-te. Como já foi dito, a autora chama esse proces-so destrutivo de assédio moral. Considera-o umaforma de violência indireta perante a qual a soci-edade ainda permanece “cega”. Em função dis-so, o livro tem o tom forte da denúncia e conse-gue transmitir, na análise dos protagonistas do dra-ma, um certo maniqueísmo ao apontar a existên-cia na sociedade de indivíduos bons e de indivídu-os maus. Há compromisso moral e ético por parteda autora, que sem abandonar a objetividade re-nuncia à neutralidade, colocando-se explicitamen-te do lado das vítimas da violência.

A perversão moral que caracterizaria algunssujeitos é considerada uma patologia. Fica claroque a posse de traços perversos e narcísicos é co-mum nos indivíduos, tanto quanto comportamen-tos sintonizados com esses traços são consideradosnormais em determinadas situações. Mas a perver-são moral que distingue o perverso narcísico cons-titui, segundo a autora, a única forma possível deesse indivíduo se relacionar com o outro.

Uma espécie de predador, animal sedento desangue, possuidor de uma especial sensibilidade paraidentificar suas presas, é apresentado como o algozda relação: o perverso narcísico. A autora reconhe-ce que o termo “perverso” é um tanto perturbadorporque tem conotações morais, relativas a meta-morfoses do bem em mal, mas aceita essa denomi-nação em função de sua vasta experiência clínicacom as vítimas do assédio moral, consideradas pelaautora como verdadeiras vítimas, não como cúmpli-ces masoquistas da relação.

Essa visão de uma vítima “realmente existen-te”, e não de cúmplice da relação, a levará poste-riormente a rejeitar todo e qualquer dogmatismoterapêutico, colocando-se do lado do ecletismona escolha das terapias que podem ajudar a víti-ma a romper com a relação de dominação.

Explicitamente, a vítima constitui o objetivode sua reflexão, embora ela dedique um espaçorelativamente importante ao algoz da relação,visualizado como a encarnação do próprio mal. Aautora descreve os perversos narcísicos como indi-víduos possuidores de um certo magnetismo, umaespécie de carisma que os tornaria sedutores aosolhos alheios. Mas a imagem que a autora constróidesse tipo de sujeito é verdadeiramente assustado-ra. Trata-se de alguém que possui o poder de mani-pular os outros; alguém capaz de se apropriar davida de outro: sanguessuga, vampiro. Enfim, um sermaligno, “sem vida própria”, que para viver precisada vitalidade e da energia de um outro, tido como

puro, vital, afirmativo, e com uma tendência aculpabilizar-se e sentir-se desvalorizado.

Sem ingressar em demasiados detalhes (por-que esse não é seu objetivo), a autora admite queo perverso narcísico é alguém que foi negado emsua individualidade, isto é, alguém que foi vitimana infância de um algoz, uma identidade feridaque por não conseguir sentir sua própria dor, infli-ge sofrimento aos outros.

O personagem Drácula de filme de Coppola,Drácula: Uma historia de amor, evoca essa constru-ção do perverso narcísico, alguém que sofrendo ador da perda do ser amado (uma relação funda-mental) amaldiçoa Deus, metamorfoseando-se numvampiro vingativo e sedento de sangue que vagarápelos tempos fazendo suas vítimas, que consegueatrair porque possui um magnetismo que lhes anu-la a vontade. O reencontro com sua amada numaoutra vida o redimirá de sua maldade, transforman-do-o num mortal que poderá finalmente descansarem paz. A recuperação do ser amado que evocauma relação afetiva fundamental o levará à com-preensão de sua própria dor.

Assim, tanto o filme de Coppola como o livrode Marie-France relembram que a violência naespécie humana não deriva de instintos animais,“ fora de controle”, mas de uma terrível dorrecalcada, impossível de ser reconhecida pelo in-divíduo, de uma violência que lhe foi infligida eque o levou ao limite de sua própria negação.Drácula vaga pelo abismo da eternidade sem po-der conter e sem entender seu ódio pelos outros,que se traduz na necessidade de beber-lhes osangue/vida, condenando-os por sua vez à imor-talidade e à maldade, isto é, trazendo-os a seupróprio “inferno”. Ele se distingue porque, à dife-rença dos humanos, o espelho não reflete suaimagem, ele é vácuo. O perverso narcísico deMarie-France procura nos outros sua própria ima-gem; sua dor é um vácuo existencial que nãoconsegue enfrentar.

O mal e a maldade existem, pois, na socie-dade, viabilizados por indivíduos perversos queencontrarão sua redenção ou justificação numahistória de vida que os fez também alvo da malda-de dos outros. Uma cadeia infernal e interminávelde “negados”. Mas a autora não se submete àsdores dos dráculas do século XXI. Seu alvo serãoas vítimas atuais desses relacionamentos.

Para a autora, as vítimas nunca são pessoasfrágeis. Muito pelo contrário, não é o déficit dooutro que atrai os perversos, mas o inflacionado,as qualidades, o êxito, a beleza, a força, a vitalida-

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de, enfim, o que tem valor positivo na sociedade.A vítima é alguém que pode ser alvo da inveja,que tem algo que o “predador” não possui, mes-mo que toda a construção do sentimento queleva à inveja se assente sobre um delírio. Ele inves-te a vítima de poderes que lhe resultam ameaça-dores; não suporta observar o que intui, o que ésua carência, no outro. Mas ele/a não quer possuiras qualidades do outro, simplesmente quer que ooutro não as possua, e por isso almeja destruir esseespelho perverso, interpelando no outro aspectosnegativos da personalidade. O sentimento queacompanha a inveja nesse caso é o ódio.

A estratégia de poder baseada no exercícioda violência psicológica, ou assédio moral, é umprocesso que começa com uma fase de seduçãoperversa e que avança a outra de violência mani-festa. Sedução, enredamento e controle, ou atra-ção, desestabilização e submissão, são as estraté-gias violentas empregadas pelos “predadores” parapoder destruir finalmente o outro. O prazer do pre-dador é o sofrimento do outro; mas esse outrodeve estar à altura, isto é, deve resistir tanto quan-to responder às provocações do perverso. A res-posta violenta da vítima o enche de regozijo, per-mite o espelhamento de sua própria maldade.

Talvez a fase mais importante desse proces-so seja a do enredamento e controle, quandouma verdadeira estratégia de guerra será desen-volvida pelo predador. Ele/a procurará desestabilizarpsicologicamente sua vítima para impedi-la dereagir. A forma eficaz para conseguir isso seria arecusa à comunicação. Os não ditos, os silêncios,os gestos, a utilização de outras formas de comu-nicação que permitem o estabelecimento da am-bigüidade, da confusão, serão freqüentes. O ob-jetivo é impedir a reação da vítima, com base naprodução de um ambiente confuso, que a leve àincerteza, à insegurança, a dúvidas com relaçãoao que acontece com o outro e com ela mesma.Deseja que o outro se sinta culpado pela relação,que sinta remorso por suas reações, que serãosempre por ele/a consideradas como “fora de lu-gar”, exageradas, e assim por diante.

Importante mencionar que a autora coloca anu um mundo de violências subterrâneas, extrema-mente trágico, porque geralmente invisível. Umaviolência geralmente sem sangue, sem marcas vi-síveis. Humilhação, desvalorização, agressões vela-das, subentendidos, um caminho que conduzirá avítima a uma crise de identidade e à doença.

Podemo-nos perguntar, entretanto, se essaanálise do assedio moral, de seus protagonistas e

dos contextos sócio-institucionais não exigiria umacontextualização histórica e cultural mais apropri-ada. É certo que a autora parece tentar suprir essacarência estabelecendo mediações, que podemser tidas como insatisfatórias, entre o excesso deindividualismo identificado na sociedade atual e oestabelecimento desse tipo de relações, ou talvezmais, a tolerância para com esse tipo de violên-cia, que existe atualmente nas empresas, devidoa fenômenos como o desemprego, que gerammedo nos trabalhadores e nas trabalhadoras, quepor isso se submetem ou se transformam em cúm-plices do algoz. Enfim, breves referencias são fei-tas a aspectos sócio-econômicos, culturais etc.Mas não se constroem mediações entre esses fe-nômenos psicológicos e o tipo de sociedade queos acompanha. É como se a subjetividade, seja ado algoz, seja a da vítima, não fosse construídanum espaço histórico singular. É por isso que aautora não consegue explicar porque, na relaçãode casais, geralmente as vítimas são as mulheres.Ela não enfrenta o fato gritante de que a perver-são narcísica masculina acontece numa socieda-de em que prevalecem os valores do machismo,ou mais ainda, em que os machistas se vêemcada vez mais acuados perante a superioridademostrada pelas mulheres em muitos dos espaçossociais. A negação do outro, o desconhecimentode sua diferença, tem uma base valorativa. Nocaso dos valores machistas, sua interiorização levaà negação do outro, à desvalorização, à humilha-ção, a uma espécie de anulação — um compor-tamento socialmente construído há até poucotempo bem aceito.

O machista pode ser considerado um per-verso narcísico? Ou, o quanto, ou como, os valo-res machistas reforçam ou possibil itam osurgimento dessa patologia? O quanto os atribu-tos ditos femininos transformam as mulheres empresas fáceis dos perversos? Qual a mediação queexiste entre, de um lado, a relação de domina-ção/poder que os homens estabelecem com asmulheres, e que é social e culturalmenteconstruída, e, de outro, a violência perversa entrecasais? Qual a relação entre a emancipação fe-minina, no sentido da produção de novos valorese atributos, e a violência perversa do homem comrelação à mulher?

Outras interrogações se impõem. Há socie-dades caracterizadas pela perversão narcísica, istoé, que negam as diferenças individuais, cujas ins-tituições permitem a manipulação, a mentira, quelevam a população a confusão, à ambigüidade,

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impedindo a reação à violência infligida? Há soci-edades em que esses processos são mais explíci-tos, ocorrem com maior freqüência?

Enfim, o livro de Marie-France é fundamen-tal pelos menos por duas razões. Primeiro porquedesnuda com maestria o universo quase invisívelda violência psicológica nas instituições, nummomento histórico em que o incremento de ou-tros tipos de violência na sociedade ocupa a aten-ção tanto de cientistas quanto de políticos, intro-

duzindo assim uma nova agenda nas discussões.Segundo porque estimula a refletir sobre a violên-cia psicológica nas organizações do mundo dotrabalho e sua relação com as novas formas degestão do trabalho, uma questão da maior impor-tância para os administradores preocupados coma gestão dos recursos humanos nas empresas.

ANALÍA SORIA ANALÍA SORIA ANALÍA SORIA ANALÍA SORIA ANALÍA SORIA !!!!!

Modos de serModos de serModos de serModos de serModos de ser, modos de ver la estirpe, modos de ver la estirpe, modos de ver la estirpe, modos de ver la estirpe, modos de ver la estirpede mnemosinede mnemosinede mnemosinede mnemosinede mnemosine

Refúgios do eu: educação, histó-ria, escrita autobiográfica.

MIGNOMIGNOMIGNOMIGNOMIGNOTTTTT, Ana Chr, Ana Chr, Ana Chr, Ana Chr, Ana Chr ystina Vystina Vystina Vystina Vystina Venancioenancioenancioenancioenancio,,,,,BASTOS, Maria Helena Camara eBASTOS, Maria Helena Camara eBASTOS, Maria Helena Camara eBASTOS, Maria Helena Camara eBASTOS, Maria Helena Camara eCUNHA, Maria Teresa Santos. (Orgs.)CUNHA, Maria Teresa Santos. (Orgs.)CUNHA, Maria Teresa Santos. (Orgs.)CUNHA, Maria Teresa Santos. (Orgs.)CUNHA, Maria Teresa Santos. (Orgs.)

Florianópolis: Mulheres, 2000. 239p.Florianópolis: Mulheres, 2000. 239p.Florianópolis: Mulheres, 2000. 239p.Florianópolis: Mulheres, 2000. 239p.Florianópolis: Mulheres, 2000. 239p.

Al explicar la ilustración escogida para laportada del libro Refúgios do eu, un grabado delsiglo XIX que nos presenta a una niña volcadasobre el papel en acto de escribir, las coordinadorasdel volumen, Ana Chrystina Venancio Mignot,Maria Helena Camara Bastos y Maria Teresa SantosCunha, profesoras de distintos postgrados enEducación en diferentes universidades de Brasil,apuntan que dicha imagen “sugere que ao sedebruçar sobre os papéis ela se debruça sobre simesma” (p. 17). Una sugerencia que tiene todaslas cartas para ser perfectamente verosímil, todavez que cada ejercicio de escritura personal es,en realidad, una suerte de viaje al interior de unomismo. Incluso, como a veces se ha dicho, laocasión para exorcizar nuestros propios fantasmasy hacerlos visibles.

Conforme añaden las coordinadoras, larapariga del grabado pudo enfrentarse a la pági-na en blanco tanto para dejar en ella su visión delmundo como para depositar su vida o una parte

de la misma, para confesar sus temores o pararevelar algunos de sus secretos, quién sabe si has-ta los más íntimos. Circunstancias que hacen decada evento de escritura el lugar donde se expe-rimenta el secreto encuentro del sujeto escritor, elrefugio del yo, justo cuando éste se hace visiblemediante la corporeidad que le otorga el texto. Heaquí buena parte de las interrogaciones, aspectosy problemas que alientan los productos autobio-gráficos sobre los cuáles se indaga y mucho en lascolaboraciones que integran este libro, un exce-lente y completo recorrido por el territorio de laescritura del yo. Que, por otro lado, se engarzacomo un eslabón importante en esa cadena deestudios sobre el escribir autobiográfico ymemorialista que en Brasil se ha ido soldando a lolargo de los años 90, con una mención destacadapara la labor desempeñada y promovida por elGEDOMGE (Grupo de Estudos Docência, Memóriae Gênero).

De igual modo que en otras latitudes,americanas y europeas, todo ello ha permitidofisgonear en los archivos personales y desempolvarno pocos «objetos autobiográficos», constituidosasí en rico filón para una amplia gama de investi-gaciones planteadas desde atalayas bien diversas– literaria, histórica, antropológica, de género,educativa, psicológica, etc. – demostrando, depaso, que el único camino que puede hacer pro-gresar los estudios sobre la cultura de lo escritotransita necesariamente por el abordajeinterdisciplinar y por la conjugación de miradas.Ese planteamiento, evocado también en esta obra,conduce a una clara valorización de los escritos

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autobiográficos en la medida que éstos son piezasllenas de información, ya sea para la evocaciónde las costumbres y mentalidades de un determi-nado momento, ya sea para la configuración delas identidades, ya sea, en fin, por las referencias yapuntes que proporcionan de cara a cualquierade las operaciones que tengan por objeto lareconstrucción del tiempo pasado.

Ana Chrystina Venancio Mignot abunda enestos pormenores basándose en el archivopersonal de Armanda Alvaro Alberto, profesora ydirectora de la Escuela Regional de Meriti, aménde una persona muy empeñada en la reformaeducativa y en la cuestión feminista en el Brasil delos años 20 y 30 del pasado siglo. La riqueza de suspapeles, conservados por la familia, le permite in-dagar en el recorrido vital de Armanda, y con ellaen el movimiento de renovación pedagógica y enel debate político de su tiempo. Partiendo de eso,la autora, quien tiene muy en cuenta las tesis dePhilippe Artières sobre los acervos personales,reconstruye la trayectoria de Armanda según serepresenta en cada uno de los documentosproducidos o guardados por ella (fotografías,memorias escolares, recortes de prensa),concluyendo que “ao guardar velhos papéis emseu baú de memórias, Armanda procurou legar àsfuturas gerações sua crença na importância daeducação, traduzida na intransigente defesa deuma escola de qualidade, sem discriminação eco-nômica, racial, sexual, social. Editou sua vida comouma mulher à frente de seu tempo, na dianteira,na vanguarda. Eternizou a imagem pioneira. Guar-dou para se guardar, para nos guardar do esque-cimento” (p. 139).

Nótese, para seguir, que mujer, educacióny cultura escrita son ejes principales que guían elconjunto de los trabajos. Sólo escapa parcialmentea esas coordenadas Jean Hébrard, cuya contribuciónexplora la genealogía de las escrituras personalesbuscando la conexión entre los diarios y memoriasde la época contemporánea y sus precedentes, másheterogéneos e híbridos, de la moderna. Recurrepara ello al análisis etimológico de los vocablosasociados a dichas prácticas (“cahier”, “carnet”, “li-vre”, “registre”) y rastrea sus significados en los tresprincipales dominios de producción que dieron lu-gar a dichas escrituras: el administrativo (civil, religio-so y judicial), el mercantil y el escolar, llegando a laconclusión de que uno de esos soportes, el cuaderno,tan ligado al mundo de la escuela, se convirtió en elsiglo XIX en el “espaço gráfico mais banal e comumque pode existir” (p. 59).

Cavilar sobre el vocabulario empleadopara designar los escritos personales y sobre lamaterialidad de los mismos conduceobligadamente a reflexionar sobre las condicionesque regulan dichas modalidades del escribir y lasestrategias diseñadas en cada “objeto autobiográ-fico”, ya que ello incide directamente en los hori-zontes de expectativas que cada persona se mar-ca al escribir su vida o algún aspecto de la misma.Es esto algo que inspira la factura de este libropues, como advierten las coordinadoras, su interéspor los escritos personales es parte de unacomprensión ampliada de la noción de documen-to según la ha formulado la historia cultural. Loque quiere decir que, al enfrentarse a dichos tex-tos, tanto importa el análisis de la forma materialde las prácticas y de las maneras de resolver larelación con el instrumento escritura, como aten-der a las comunidades discursivas que interpretandichos escritos y los inscriben en unas determina-das coordenadas espacio-temporales.

Así Zahidé Lupinacci Muzart estudia laspropiedades de los diarios personales femeninoscomparando determinados ejemplares del sigloXIX, sobre todo de viajeras extranjeras puesto quelos de escritoras brasileñas son más difíciles deencontrar, con otros de finales del XX, “llevados”directamente en la Red. Ello le ha permitido cons-tatar que los diarios en Internet han cedido en latradicional introspección íntima, mientras queseñalan más claramente la búsqueda de uninterlocutor con el que compartir “seu olhar pelomundo, por sua cidade, seu bairro, sua rua, numavolta à aldeia, ou seja, numa busca de solidarie-dade, de comunidade, de calor humano” (p. 188);por lo que, afirma, “o diário perdeu o segredo, aintimidade, mas continua a ser o registro do efêmeroe do descontínuo tal como no século XIX, e, antesde mais nada, continua a ser uma maneira deviver” (p. 189). Al decir de Régine Robin/ Rivka A.,una de las diaristas on line, el diario como testimoniode “a vida como um deambular urbano” (p. 188).

Pero en la medida que las escrituras del yomanifiestan la autoexploración del sujeto, leerlas yanalizarlas “é buscar o processo de significação, oprópio discurso numa prática significante”, confor-me sostiene Tânia Regina Oliveira Ramos, quiencentra su indagación en las agendas de unas ga-rotas de 13 a 17 años, esto es, auténticas piezasde formación. A través de ellas se percibe, señalala autora, cómo las niñas experimentan su crisis deidentidad, su camino de afirmación y, en fin, lavoluntad de mostrarse como personas completas,

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sin fisuras y sin brechas. Y lo hacen mediante undiscurso fragmentado y disperso a través del cualla vida se construye no como un acontecer conti-nuo y progresivo, sino como el resultado de “juntarpedaços do cotidiano” (p. 197). De ahí una prácticade escritura que juega con las palabras y lasimágenes, y que se materializa en un “libro de vida”formado por anotaciones de la más variada índole(preocupaciones personales, comentarios de pelí-culas o de canciones, declaraciones de amor, etc.),fotografías, recortes y testimonios varios, al puntode configurar un lenguaje muy simbólico en el que“querer dizer o indizível parece ser um traço recor-rente da escrita femenina” (p. 199).

Las cartas de adolescentes es el tema quedesarrolla Maria Rosa Rodrigues Martins deCamargo, cuyo enfoque, muy atento a las ideasde Roger Chartier, toma en consideración lasvinculaciones entre las prácticas y los soportes, ysus implicaciones en los procesos de apropiacióny representación. Enunciados dichosplanteamientos, la autora trata de aplicarlos a lacorrespondencia de dos adolescentes entrediciembre de 1990 y el mismo mes de 1996. Porun lado, estudia el objeto, es decir, la carta en símisma, atendiendo a los aspectos materiales(tipología de los soportes y de los sobres), perotambién a los lugares de la escritura y de la lectura,a la ceremonia epistolar; y por otro, reflexiona so-bre el acto mismo del escribir ahondando en lasfunciones y en las estrategias del discurso epistolar,para concluir que las cartas, en la medida queespacios de escritura y de lectura, son igualmentelazos de unión entre las personas: “A carta é oveículo. A escrita, modos de ser. E a leitura, modosde ver” (p. 227).

Asimismo, la memoria y la identidad, segúnse comparecen en los escritos personales deautoría femenina, asoman como otros de losvectores que recorren las páginas de esta obra.Lilian Maria de Lacerda analiza con detalle la litera-tura autobiográfica de las escritoras brasileñas entre1893 y 1998, cuyo itinerario está marcado “pordescontinuidades entre os processos de escriturada memória femenina e os processos de sua divul-gação, em função da censura social à mulher edas condições do própio comércio livreiro e edito-rial brasileiro” (p. 81). A partir de ahí se ocupa delbinomio memoria/verdad y de la función quedesempeña el olvido, ingrediente primordial en laconfiguración del recuerdo: “as fronteiras entrememória e esquecimiento são sutis” (p. 88); a lavez que disecciona la escritura memorialista como

una actividad que tiene mucho de catártica peroque tampoco es enteramente ajena a la culturadel ocio, esto es, a las maneras en las que cadacual trata de «matar o tempo» (p. 96), segúnpalabras de Maria Eugênia de Castro, una de lasautoras citadas.

Ana Canen y Libânia Nacif Xavier loplantean a partir de la obra Os meus romanos,alegrias e tristezas de uma educadora alemã noBrasil, de Ina Von Binzer, en la que se reúnen lascartas que esta preceptora escribió entre 1881 y1883, esto es, en el período anterior a la aboliciónde la esclavitud. Si inicialmente la educadora miray describe la realidad brasileña desde la pretendi-da superioridad europea, después irá cambiandosu óptica para incidir más en la riqueza y diversidadcultural que tiene delante de sus ojos, de modoque “de uma atitude profundamente etnocêntricamanifestada nas primeiras cartas, a autora vai,pouco a pouco, compreendendo melhor o com-plexo funcionamento da sociedade escravista im-perial, adaptando-se ao ethos brasileiro e efeti-vando uma nova síntese identitária” (p. 69). Ellosupone la discusión del concepto mismo dememoria nacional como algo uniforme ymonolítico, reemplazado por otro más adecuadopara definir una realidad social señalada por lamezcla de identidades.

Ahí la memoria de la profesora sirve paraanalizar el choque y el mestizaje de culturas,mientras que en el caso de la escritora SophiaLyra, su producción nos acerca a la situación de lamujer en el Brasil de los años 30. Es cierto, comoexpone Maria Arisnete Câmara de Morais, que laobra de Sophia y, en especial, su Vida íntima dasmoças de ontem (1980), “evidencia os mecanis-mos que enunciam e representam os papéis damulher na sociedade, fazendo sua própia história”(p. 113); pero ni muchos menos se debe obviarque su modelo de «mulher que contesta, quebatalha em busca de seu espaço» (p. 116),aunque fuera compartido por otras burguesas dela época, no tenía mucho que ver con las actitudesy los horizontes de vida de las mujeres de las clasespopulares, que, por supuesto, tampoco gozarondel mismo hábito de lectura seria y sistemáticaque Sophia Lyra tuvo desde niña.

La implicación de la lectura en la formacióny en la configuración de la identidad personal lavemos igualmente en el diario de la joven Cecíliade Assis Brasil, cuyo estudio aborda Maria HelenaCamara Bastos. Nacida en Washington, hija deJoaquim Francisco de Assis Brasil, un personaje de

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renombre, abogado, político, diplomático y poe-ta, el diario de Cecilia de Assis, escrito entre 1916y 1928, está repleto de anotaciones tocantes asus lecturas preferidas, a los libros que sus padresno le permitían leer, a los lugares donde leía y atantos otros aspectos cuyo tenor desvela que,efectivamente, “a leitura era central no universocotidiano de Cecilia” (p. 149). Casi no podía serde otra manera dados los más de 15.000volúmenes que había en la biblioteca del padre.

El diario como la práctica más genuina dela escritura íntima es también el “objeto autobio-gráfico” sobre el que tratan los trabajos de MariaTeresa Santos Cunha y los ya referidos de ZahidéLupinacci Muzart y Tânia Regina Oliveira Ramos. Siéstas los consideraron desde el hecho de la escri-tura y el orden del discurso, Maria Teresa Santosrevisa los de varias profesoras para profundizar enlas imbricaciones entre la memoria y la actividadeducativa, que, junto con la autobiografía, formanel trípode conceptual que sustenta Refúgios doeu. Pero no lo hace por lo que tengan de escritosíntimos, sino atendiendo a las observaciones yreflexiones sobre la vida pública, lo que, dicho seade paso, era también un rasgo bastante comúnen los objetos-memoria de la época moderna. Aquíesa mirada está ligada a los anhelos profesionalesde dos jóvenes catarineses que pergeñaron susnotas entre 1964 y 1974, justo cuando se estabanpreparando para ser maestras, por lo que sus diariossirven para mostrar cómo vivieron y representaronsu ingreso en la vida profesional, al punto decomponer “um mosaico que integra as maneirasde se perceber no mundo” (p. 178).

A la postre, las distintas colaboracionesexploran diferentes prácticas y modalidades de laescritura del yo, e insisten en el valor del testimonioindividual. Al hacerlo, Refúgios do eu deja ver susconexiones con la historiografía que más ha propi-ciado el retorno del sujeto y lleva dicho enfoque aun campo, el de la historia de la educación, don-de, en palabras de Antonio Viñao Frago,responsable del prólogo, “lo habitual, hasta fechasno muy lejanas, era tanto el predominio de losdiscursos esencialistas y normativistas, como el deuna historia abstracta e irreal de unas ideas o,como se decía, de un pensamiento pedagógico,desvinculado de sus contextos de producción yrecepción, al que se recurría como fondo de citasde autoridad, cuando no de recetas, para justifi-car o evaluar determinadas propuestas o medidaseducativas” (p. 9).

Rescatado el sujeto como protagonista deldevenir histórico y su palabra como testimonio

elocuente, cada una de las escrituras traza, defacto, un camino que siempre se mueve entre dosestaciones: la del individuo y la del colectivo, ladel sujeto personal y la del sujeto social. Lasautobiografías exploran la intimidad y lo específicodel ser humano; pero a la vez iluminan sobre lasconcretas coordenadas de espacio y tiempo enlas que se sitúan, según deja ver el aprovechami-ento que de ellas se hace y se propone en Refúgi-os do eu. El libro contiene un buen ramillete deincursiones en vidas anónimas e incluso corrientes,casi como si se tratara de un ladrón en casa ajena,al modo que Philippe Artiéres ha descrito su“intromisión” en las existencias de una decena decriminales de finales del siglo XIX y principios delXX.1 Sirviéndose de ese material, se desmenuzanmuchos ingredientes de la “educación de lossentimientos”, es decir, aquélla encargada de trans-mitir lo que se esperaba de la mujer, canalizada através de la familia, de los confesores y de loseducadores, tan determinante en la instrucción yen la formación lectora de las mujeres, sobre todoen el siglo XIX y en la primera mitad del XX;2 lomismo que se detiene en múltiples consideracio-nes sobre los avatares de la enseñanza en el Brasilde ambas centurias, singularmente conforme losvieron y experimentaron las mujeres protagonistasde estas “vidas de papel”.3

Sus páginas, comprometidas y rigurosas,demuestran que no hay escrito insignificante en laselva de los textos, pues, como afirma AnaChrystina Venancio Mignot, cualquiera de lospersonales “fornecem informações sobre o cotidi-ano, formas de ver o mundo através de fatos co-muns da experiência humana, hábitos, costumes.Contêm pequeninas coisas com grande poderlembrança” (p. 124). Representan fragmentos dememoria y, en consecuencia, según plantea Mar-garida de Souza Neves en el epílogo, incluso debenser explicados como ‘metáforas expresivas’ queconectan con los clásicos artes de la memoria, detal modo que los autores de la moderna escrituraautobiográfica “não deixam de assumir uma fun-ção análoga à do mnemom da mitologia grega, ade ser aquele que lembra. São eles que, comoSísifos ou como Penélopes, assumem moderna-mente a tarefa interminável de fazer da memóriaa arte de dizer a vida” (p. 236).

Por ello que, como sostuviera GiuseppeTommasi Di Lampedusa en sus Ricordi d’infanzia(1961), “quello di tenere un diario o di scrivere auna certa età le proprie memorie dovrebbe essereun dovere ‘imposto dallo Stato’”, agregando que “ilmateriale che si sarebbe accumulato dopo tre o

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quattro generazioni avrebbe un valoreinestimabile”,, para afirmar que “non esistonomemorie, per quanto scritte da personaggiinsignificanti, che non racchiudano valori socialee pittoreschi di prim’ordine”. Salvo la “certa età”como requisito para escribir un diario, que dejaríafuera tantas cartas y cuadernos de adolescentes yjóvenes, lo demás suena rotundo y enteramentecierto. Su mejor prueba, Refúgios do eu.

1 Le livre des vies coupables. Autobiographies de criminels(1896-1909), textes édités et présentés par Philippe Artières,

Paris, Albin Michel, 2001, p. 7.2 Maria Teresa Santos Cunha, Armadilhas da sedução.Os romances de M. Delly, Belo Horizonte, Autêntica edito-ra, 1999.3 Tomo el término de un reciente libro sobre los archivos ylas escrituras autobiográficas cuya lectura puede com-pletar la de la obra aquí comentada. Me refiero a Vite dicarta, a cura di Quinto Antonelli y Anna Iuso, Napoli,L’ancora, 2000.

ANTONIO CASTILLO GÓMEZ ANTONIO CASTILLO GÓMEZ ANTONIO CASTILLO GÓMEZ ANTONIO CASTILLO GÓMEZ ANTONIO CASTILLO GÓMEZ !!!!!

PPPPPedagogias do corpo ou a constituiçãoedagogias do corpo ou a constituiçãoedagogias do corpo ou a constituiçãoedagogias do corpo ou a constituiçãoedagogias do corpo ou a constituiçãode bons-moços e boas-moçasde bons-moços e boas-moçasde bons-moços e boas-moçasde bons-moços e boas-moçasde bons-moços e boas-moças.....

Corpo, Identidade e bom-mocis-mo: cotidiano de uma adolescên-cia bem-comportada.

FRAGA, Alex. B.FRAGA, Alex. B.FRAGA, Alex. B.FRAGA, Alex. B.FRAGA, Alex. B.

Belo Horizonte: Autêntica, 2000.164p.Belo Horizonte: Autêntica, 2000.164p.Belo Horizonte: Autêntica, 2000.164p.Belo Horizonte: Autêntica, 2000.164p.Belo Horizonte: Autêntica, 2000.164p.

O livro de Alex Fraga, produto de sua disser-tação de mestrado realizada na Universidade Fe-deral do Rio Grande do Sul, faz-nos enveredar pe-los meandros de uma adolescência bem-compor-tada na qual jovens de “boa cabeça” estão emestreita sintonia com os preceitos da escola, dafamília e da religião católica, diferentemente da-quilo que a mídia propala como característico dajuventude atual: a rebeldia, a revolta e o afasta-mento paulatino dos valores da família, o descasopara com a escola e um questionamento das dou-trinas religiosas.

A pesquisa, feita numa escola municipal deCachoeirinha, na região metropolitana de PortoAlegre, tomou como sujeitos alunos e alunas deuma 8ª série do Ensino Fundamental e analisouprincipalmente os comportamentos desses/as jo-vens durante as aulas de Educação Física — nasquais eles não eram separados por sexo. O autorbuscou tornar visíveis regras, modos de se com-portar, que representavam jeitos de ser voltados

para aquilo que tradicionalmente reconhecemoscomo os “bons costumes”. A análise incidiu naforma como a sujeição às regras que conformamos bons costumes, incitadas pela forte influênciado aparato escolar, e em consonância com odesejo das famílias, marcam os corpos dos sujei-tos/alunos e alunas, a fim de que se tornem “bons-moços” ou “boas-moças”.

Procurando dar forma e compreensão àsvozes dos sujeitos, articulando-as a sua própria voz,o autor apropriou-se dos Estudos Culturais,entrecruzando-os com os Estudos Feministas queenfocam o corpo, o gênero, a sexualidade e aeducação. Apropriou-se também dos conceitosde discurso e sujeito de Foucault, procurando darsentido às práticas que se produzem no ambienteescolar, mesmo que não sejam próprias unica-mente desse ambiente, porque fazem parte dacomplexa trama que produz relações de poder econfere lugares distintos aos sujeitos. É considerá-vel, então, o esforço do autor para não escorregarem análises de cunho psicologizante como o fazgrande parte da produção teórica desse campo.

Localizando geograficamente os sujeitos eos espaços de sua pesquisa, no capítulo “Sujeitose Lugares”, Fraga não só nos leva através da carto-grafia de Cachoeirinha, mas também chama aatenção para o fato de que a localização geográ-fica não é suficiente para entender como os sujei-tos constroem o que, a partir de Certeau, ele de-nomina “sentimento de cidade”. A partir disso, Fra-ga analisa as maneiras como os/as alunos/as cons-

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truíam um lugar particular que estava inserido numespaço urbano mais amplo. Ou seja, o autor inte-ressou-se pelo mapa da cidade que era desenha-do a partir dos/as alunos/as pesquisados/as A mo-vimentação dos alunos e das alunas por diferen-tes lugares conferia sentidos particulares a esseslocais. Portanto, ao cruzarem diferentes fronteirasterritoriais no município, teciam suas imagens doterritório a partir de seus valores e crenças.

O sentimento de cidade é uma construçãoque se desenvolve a partir de múltiplos fatores,como as histórias e as memórias contadas, quepromovem imagens e que possibilitam às pessoasse conectarem, ou não, umas as outras. Para os/as alunos/as, os diferentes lugares por onde circu-lavam produziam uma visibilidade de diferentesmodos de vida, nem sempre compatíveis com amoral e os bons costumes praticados por eles/aspróprios/as.

A maneira como iam sendo produzidos osvalores morais incorporados pelos/as jovens esta-va em estreita consonância com os relatos deuma escritora local, Isabel Mombach, dos quais opesquisador se apropria e que evidenciam um in-tenso poder da igreja na regulação dos modos devida daquela população. Outras instituições, comoa escola por exemplo, vão conformando-se a essepoder, que dita as normas morais e as regras debons costumes. Evidentemente essas normas nãosão absorvidas de forma consensual por todos os/as moradores/as da localidade.

No caso dos/as moradores/as deCachoeirinha, há construções identitárias diferen-ciadas entre aqueles/as que habitam o lado direitoda avenida central da cidade e aqueles/as quehabitam seu lado esquerdo. Há inclusive rivalidadesque se evidenciam entre esses dois lados. Duranteo deslocamento da professora de educação físicajuntamente com os/as alunos/as a um complexoesportivo onde seria ministrada a aula, as diferen-ças de posições e de submetimento aos discursosiam se desenhando de forma mais nítida, ensejandosentidos diferenciados para cada lugar.

A turma de 8ª série possuía algumas peculi-aridades, como o fato de a maioria de seus com-ponentes estudarem há algum tempo juntos nummesmo grupo e serem caracterizados pela maio-ria dos/as professores/as como uma “boa turma”ou, como alguns/mas professores/as se referiam aeles/as, eram “uns amores”. A constituição dessessujeitos também está suscetível aos rituais dedisciplinamento organizados pela escola, comopor exemplo no conselho de classe, onde são su-

geridos os comportamentos ideais para os alunose alunas no bimestre seguinte.

Assim como vários estudos têm demonstra-do, e à luz de Foucault, é possível distinguir a esco-la como espaço de disciplinamento dos corpos edas mentes humanas. Com um poder de sedu-ção tenaz, a instituição escolar promove a culpa eincita o castigo no caso de qualquer resistência asuas regras. No caso da adolescência, torna-senecessário compreendê-la melhor, a fim de en-tender os efeitos do discurso da escola e da famí-lia sobre ela.

Mas como entender melhor a adolescênciasem enquadrá-la em recortes temporais? No capí-tulo “O tempo ‘tatuado’ no corpo”, Fraga faz umabusca na produção teórica sobre o tema, tratan-do das questões pertinentes à adolescência e tra-zendo de antemão uma de suas mais difundidasdescrições: a de uma “etapa” da existência huma-na marcada pela instabilidade das emoções e porcomportamentos impulsivos. Essas formulações, jásuficientemente criticadas pela produção teórica,demarcam a adolescência não só por suatemporalidade, mas igualmente pela negatividadedesse tempo.

No entanto, outras tentativas mais recentesde caracterização da adolescência, que se basei-am na noção de dependência/independência dafamília, também parecem ser insuficientes, por-que, respaldando-se em compreensões meramen-te biologicistas, negam a inserção cultural que osconceitos de dependência ou independênciaengendram. Na verdade, essa compreensão nãoavança em relação a “etapização” imposta pelasciências dominantes à compreensão da vida hu-mana em sociedade.

A educação, e conseqüentemente a esco-la, são fortemente influenciadas pelos discursosda Psicologia evolutiva e da Biologia, que institu-em os regimes de verdade quanto aos comporta-mentos normais, próprios aos adolescentes. Há acrença, inclusive, de que a propalada “crise daadolescência” é, ao mesmo tempo, a constantedessa fase e seu tempo de passagem, exigindodos/as professores/as, por exemplo, muita paciên-cia e abnegação para que num dado momentotudo chegue a um bom final.

A natureza biológica das explicações ditas“científicas” sobre a adolescência, por seu viéspsicologizante, vai estruturando as subjetividadese desenhando o padrão de normalidade para oscomportamentos, de forma que qualquer viola-ção pode provocar atitudes fora-de-controle, o

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que justifica a necessidade de uma constante vi-gilância sobre os/as jovens, assim como faz a insti-tuição escolar.

Qualquer transgressão juvenil aparece nosenunciados como uma ameaça à vida em socie-dade e é apresentada como produto dodesmantelamento dos valores da família. Os paistambém aparecem em inúmeras pesquisas comoos responsáveis pelos comportamentosincontroláveis dos/as filhos/as adolescentes. No en-tanto, e como ressalta Fraga, não só a família,mas também a escola é responsabilizada pelaconturbação dessa fase da vida. Uma alternativaé evitar o contato com as ruas para conseguirmanter uma atmosfera de bons princípios. O filmeKids tem sido utilizado como um exemplo da“demonização” dos corpos adolescentes, demons-trando o discurso da adolescência perdida dosanos 90.

Diante de atos de demonização — uso dedrogas, sexo fácil e agressividade — a escola pre-tende garantir a correção dos corpos desajustadosatravés dos rituais de confinamento e purificação.Na escola aprende-se a controlar não só os própri-os corpos, mas também os corpos dos outros.

O pesquisador observou que boa parte dos/as jovens da escola pesquisada apresentava umcomportamento coerente com aquilo que pode-ria ser denominado uma adolescência endeusada— mais ajustada à mecânica social e conduzidapor valores tradicionais como a família, a igreja e aescola — em contraposição à disseminadademonização. Uma moralidade cristã de orienta-ção católica perpassava o modo de ser de alguns/mas desses/as jovens, que afirmavam ter Deusdentro de si.

A estreita ligação de boa parte dos/as ado-lescentes com movimentos vinculados à igrejacatólica era o fio condutor das relações que esta-beleciam dentro e fora da escola. De diferentesmaneiras, meninos e meninas iam concretizandoformas de controle ou de “exorcismos” uns/massobre os/as outros/as, com o consentimento dasfamílias em estreita relação com aquilo queFoucault denominou “tecnologias do Eu”. A buscada pureza, da felicidade, a assepsia do espírito,tornava-se um sonho a ser alcançado. Entretanto,o texto parece ocultar algumas contradições de-correntes da submissão aos valores religiosos. Emalgumas falas dos sujeitos está presente a nega-ção desses valores, o que é sabidamente motivode desavenças e conflitos entre adolescentes.Assim como a escola oculta as diferenças, o texto

permite somente esparsos momentos em que es-sas diferenças debatem entre si, do mesmo modocomo a orientação da escola parece serconsensual em relação às normas de controle.

Nos processos de construção das identida-des adolescentes, o autor enfatiza que elas não seconstituem a partir de uma referência binária dotipo endeusado/endemoniado. Háentrecruzamentos que não permitem demarcarfronteiras muito nítidas entre um e outro modo deser. A escola, porém, insiste em atuar diretamentenos processos de recristianização, através da ele-vação e do reforço de condutas condizentes como “tenho Deus dentro de mim”, acentuando com-portamentos positivos e banindo aqueles que elaenquadra como negativos.

Aqueles/as que se salvam das garras da pro-miscuidade, do sexo desmedido, do uso de drogas,da violência, da agressividade, e aceitam os pre-ceitos dos bons costumes vão formando a legiãode bons-moços e boas-moças. Essas duas classifi-cações adquirem algum sentido a partir de umasérie de categorias, como classe social, gênero,sexualidade, etnia, nacionalidade, distinção etária.

Quanto às distinções de gênero, Fraga tomacomo referências Scott e Connell e, a partir destes,destaca que é nos corpos que as práticas sociaisgenerificadas atuam, especialmente aquelas quese constituem na escola. A Biologia ainda se man-tém como a ciência que promove as distinçõesentre homens e mulheres. Nesse caso, as práticassociais estariam biologicamente determinadas.

Nessa perspectiva, as meninas precisam terum cuidado especial com seus corpos, objetivandoa futura maternidade, necessariamente associa-da ao recato e à decência necessários a uma boamãe de família. Aos meninos que desejam serbons-moços, é exigida uma masculinidade basea-da em traços tradicionais: é preciso ter um corpoativo e desbravador.

De acordo com Scott (1995, p. 93), “homeme mulher são, ao mesmo tempo, categorias vaziase transbordantes. Vazias, porque não têm nenhumsignificado último, transcendente. Transbordantes,porque mesmo quando parecem estar fixadas,ainda contêm dentro delas definições alternati-vas, negadas ou suprimidas”. O autor identificainúmeros momentos, em sua estada junto aosmeninos e meninas de sua pesquisa, que ratifi-cam esta afirmação. Ou seja, em algumas passa-gens, as meninas julgam comportamentos de co-legas do sexo masculino a partir de valores moraiseminentemente masculinos. Igualmente, entre as

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meninas, há julgamentos morais acerca do que éfeio ou permitido para elas, mas tanto os meninosquanto as meninas enunciam dúvidas, interroga-ções, e deslizam constantemente em campos epapéis nos quais a masculinidade e a femininidadeestão em construção.

Esses achados são mais bem compreendidosquando tomamos o capítulo “Corpo em Discurso”,no qual o autor chama a atenção para o poder depenetração dos discursos que vão sendo inscritosnos corpos dos sujeitos de forma imperceptível. Osdiscursos possuem um duplo efeito: ao darem umsentido à normalidade, apresentam o anormal. Oscorpos são artefatos produzidos por tecnologias quemarcam as diferentes épocas. Os limites e as possi-bilidades do corpo são, então, determinados porpedagogias e poderes reguladores que se apresen-tam de maneira sutil e de diferentes formas no co-tidiano dos sujeitos.

Historicamente é perceptível que a narrativacristã sobre a bondade e a maldade está vincula-da à oposição entre corpo e alma. O corpo, impu-ro, precisa ser transformado, controlado, discipli-nado para atingir a perfeição ou a imagem e se-melhança de Deus. A negação do próprio corpoconstitui, dessa forma, a elevação da alma cristã.A integridade da alma depende diretamente dacontenção dos gestos, dos movimentos, da ex-pressividade.

Os/as adolescentes observados davam for-ma ao discurso do bom-mocismo: a discrição comque se portavam, a atenção e a concentraçãonas aulas, a sujeição às normas da escola. Atémesmo as roupas que usavam, que pouco distin-guiam os meninos das meninas, destacavam ascores sóbrias, os modelos largos, enfatizando quea exposição do corpo não era uma preocupaçãodesses/as jovens.

Nas aulas de educação física, mesmo na-quelas atividades pouco prazerosas, como o futsalpara algumas meninas, e nos movimentos gimno-desportivos para os meninos, havia uma sujeiçãocom discretas resistências dos/as adolescentes.Sabidamente, há fortes resistências culturais àdança pelo sexo masculino, assim como as meni-nas rejeitam os esportes mais agressivos. A turma

observada apresentava somente discretas resis-tências a propostas como essas. Parece que aprofessora de educação física exercia um fortepoder de sedução sobre a turma, convencendo-aem vários momentos a se “integrar” na atividadepor ela proposta. Aparentando um diálogo cons-tante com os/as alunos/as, determinava aquilo queera para ser realizado ou não. No esforço de nãodesautorizar uma professora “legal”, “amiga”, nummeio onde há tantos supostos “inimigos etários”,sabemos que muitos/as adolescentes acabamaceitando propostas nem sempre consoantes comaquilo em que acreditam, e até mesmo se subme-tendo a alguns “vexames” ou micos.

Através dos relatos é possível identificar quehavia no grupo sexualidades em questão. Porém,esse é um tema constantemente silenciado pelaescola e pela família, que jogam uma para outra aresponsabilidade da formação de seus/as filhos/asou alunos/as. Quando necessário, a escola, comotrata do conhecimento, invoca aqueles que se-guem o estatuto científico para falar do assunto,ou seja, médicos e psicólogos, como os especia-listas na matéria, o que impede outras formas dese compreender esse tema, estreitando o olhar.

Para finalizar, cabe destacar que a conforma-ção ao bom-mocismo entre os/as jovenspesquisados/as não era um comportamento ho-mogêneo. No entanto, mesmo para aqueles nãotão bons moços ou moças, as regalias conquista-das pela turma eram vantajosas, o que nos leva apensar que alguns eram bons-moços de crença, eoutros, de interesse. Uma dúvida que permaneceapós a leitura do texto diz respeito àquilo que vemsendo denominado de conformação ao discurso.Há uma conformação incondicional ao discurso daescola e da família? Ou um certo adultocentrismonão nos permite ver que arranjos são elaboradospor muitos/as adolescentes para que uma “aparen-te” conformação torne mais suportável a passa-gem pelo ambiente escolar, tornando tambémmenos tensa a vida no meio familiar, ambos demar-cados pela “adultês”, que não consegue concebê-los para além de “meramente jovens?”

DÉBORAH THOMÉ SAYÃO DÉBORAH THOMÉ SAYÃO DÉBORAH THOMÉ SAYÃO DÉBORAH THOMÉ SAYÃO DÉBORAH THOMÉ SAYÃO !!!!!

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Cenas da vida amorosa brasileira naCenas da vida amorosa brasileira naCenas da vida amorosa brasileira naCenas da vida amorosa brasileira naCenas da vida amorosa brasileira namodernidade tardiamodernidade tardiamodernidade tardiamodernidade tardiamodernidade tardia

Reinvenções do Vínculo Amoroso

MATOS, Marlise.MATOS, Marlise.MATOS, Marlise.MATOS, Marlise.MATOS, Marlise.

Belo Horizonte: UFMG/IUPERG, 2000.Belo Horizonte: UFMG/IUPERG, 2000.Belo Horizonte: UFMG/IUPERG, 2000.Belo Horizonte: UFMG/IUPERG, 2000.Belo Horizonte: UFMG/IUPERG, 2000.332p.332p.332p.332p.332p.

As relações de parentesco sempre foram,para as ciências sociais, um tema fecundo parase pensar a sociedade, de forma a poder compre-endê-la em seus diferentes níveis institucionais. Afamília, território geográfico e rede social onde semantêm as relações mais próximas, é um dos as-pectos fundantes da sociedade por se constituircomo uma estrutura dentro de muitos grupos soci-ais. Na realidade, a família é, depois da revoluçãoburguesa e industrial, a “cápsula mãe” (atualmen-te já bastante terceirizada) do cidadão livre. Atra-vés das transformações da família moderna, asrelações de parentesco vêm configurando novasredes amorosas junto com as sociais e as políticas.É nesse contexto que a ideologia do amor conju-gal desempenha um papel importante no queconcerne à estabilização e/ou transgressão deregras sociais na mudança da sociedade. A famí-lia, ou melhor, a relação conjugal, é um estadosocial no qual podemos renovar projetos individu-ais e ampliar o campo de possibilidades.

O belo trabalho desenvolvido por MarliseMatos em Reinvenções do vínculo amoroso – cul-tura e identidade de gênero na modernidade tar-dia vem nos mostrar o surgimento de outras iden-tidades de gêneros e de vínculos amorosos namodernidade. O livro está dividido em seis capítu-los, nos quais a autora traça uma longa reflexãoentre as macro teorias sociológicas, as psicanalíti-cas e os estudos de casos realizados por terceiros(nesse último aspecto, HEILBORN, 1992, 1996 pa-rece ser a grande mentora intelectual da autorano que diz respeito à conjugalidade homossexualna cidade do Rio de Janeiro).

A pesquisa se baseou nos contatos realiza-dos com 11 casais, hetero ou homossexuais, quemantinham relações estáveis, entre 3 e 15 anos(capítulo IV, p. 164). Exclusivamente membros daclasse média carioca, o grupo de informantes foiconstituído por profissionais de nível técnico espe-

cializado e por profissionais liberais de idades entre22 e 54 anos. O trabalho de campo foi realizadona aplicação de survey. Os locais das entrevistasvariaram entre os lares, os bares e o trabalho.

O primeiro capítulo é dedicado à análise dogênero em suas dimensões culturais, tanto objeti-va quanto subjetivamente. Partindo de Simmel,sobre a questão da experiência da modernidade,da dominância da cultura objetiva sobre a culturasubjetiva (p. 36), Marlise Matos reafirma que a se-xualidade é uma forma de hierarquizar a socieda-de e portanto uma forma de estabelecer relaçõesespecíficas entre homens e mulheres. Nesse sen-tido, ao estabelecer a dominação do masculinosobre o feminino, na sociedade burguesa, temosa predominância da “cultura fálica do gênero” (p.40), na qual as relações patriarcais permeiam asmúltiplas dimensões da sociedade — sexual, soci-al, cultural, econômica e política. Dados os as-pectos patriarcais dominantes na relação conju-gal que a sociedade ocidental adotou como pa-drão e portanto uma “normatização compulsóriada heterossexualidade” (masculina), assistimos emnossos dias ao surgimento de novas formas deestabilidade conjugal. Não só as relaçõeshomoeróticas tomaram maior visibilidade social epolítica, reivindicando direitos cívicos, como oheteroerotismo buscou outras combinações derelações conjugais (casamentos não formais, mo-radias separadas, mãe provedora do lar etc).

Atualmente, se o multiculturalismo entroudefinitivamente na pauta das discussões sobre pós-modernidade, o tema do multissexualismo inova asreflexões sobre o que a autora denominou “culturasalternativas de gênero”, ou ainda “experiências al-ternativas de conjugalidade”. Indo além dos estere-ótipos dos modelos exclusivamente hetero ou ho-mossexuais de casais, a autora aborda outras for-mas de relações amorosas, e conseqüentementeoutras identidades de gênero, como os bissexuais,os travestis e os “trans”. De fato, Marlise opta poranalisar uma sexualidade heterogênea nos aspec-tos em que ela se apresenta em nossos dias.

O segundo capítulo é dedicado à contribui-ção teórica entre sociologia e psicanálise no queconcerne às identidades de gênero. Tomando ointeracionismo simbólico como referência teóri-ca, Matos perpassa suas reflexões entre o plano

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individual e o coletivo. Uma vez que “a condutahumana é social e não pode ser explicada mera-mente como resultado de esforços individuais, eque, portanto, a tarefa do interacionismo simbóli-co foi tentar dar conta da formação e variedadesdas condutas humanas” (p. 76), Matos analisa asidentidades de gênero, enfocando tanto a pesso-al e a subjetiva quanto a coletiva e a social.

Posteriormente, a autora passa por meta-doutrinas como as de Freud e Marx, pela Escola deFrankfurt e chega à teoria dos papéis de Parsons,com o objetivo de discutir a divisão sexual do tra-balho no interior da família e como essa divisãoinfluencia na formação de gêneros coletivos, se-jam eles pessoais, sexuais, afetivos ou emocionais.Finalmente, o último item do segundo capítuloaborda a estética e a ética na identidade de gê-nero. Performance e moral constituem uma dinâ-mica específica dos gêneros, dando à relaçãoconjugal uma dimensão polit icamentetransgressora e ao mesmo tempo estabilizadora.Na realidade, Matos acredita que a ética e a esté-tica são aspectos culturais e podem ser vistas comofronteiras (ou coexistência de vários gêneros) notempo e no espaço. Segundo ela, “são formassócio-culturais criativas, esteticamente reflexivas eeticamente orientadas de interação e reinvençãodo vínculo amoroso” (p. 120).

“As parcerias” são recortadas por seis cenase “montadas” (p. 186-205) para demonstrar asnovas “estabilidades conjugais” nas experiênciasalternativas amorosas, homo ou heteroeróticas. Acrise de certos paradigmas nos tempos atuais le-vou necessariamente a uma revisão das relaçõesconjugais, e a família moderna se viu obrigada ase reorganizar e a flexibilizar os modelos tradicio-nais dos papéis masculinos e femininos. Essa mu-dança de papéis e o surgimento (maior visibilida-de) de outras sexualidades, essas últimas não an-coradas no modelo heterossexual tradicional, per-mitiram que novos “códigos” e estéticas de rela-ção conjugal pudessem aparecer.

No capítulo seguinte, Matos discute a cons-trução de identidades de gênero segundo a visãopsicanalítica.1 Caracterizando a personalidade mo-derna a fim de distinguir os conceitos de subjetivi-dade e identidade, o objetivo é se “libertar” teori-camente das amarras das discussões estruturalis-tas da psicanálise, não raro incisivas e “fundamen-talistas” (a autora se refere ao aspecto“fundacionista” dessas teorias). Essas meta-teorias,nas análises do comportamento sexual humano,“pensa[m] a subjetividade como um statusontológico universal” (p. 209). De forma oposta, a

intenção da autora é introduzir o conceito detransperformance, não apenas para pensar asnovas identidades (hetero-)sexuais mas igualmen-te para confrontar outros estilos de gênero comogays, lésbicas, bissexuais, travestis. Mesmo que aautora analise as múltiplas e diversas formas desexualidade e culturas de gênero, ela procurademonstrar formas de estabilidade conjugal a par-tir de comportamentos “marginais”.2 Principalmen-te no que diz respeito aos homossexuais, o movi-mento de libertação do modelo hetero-fálico desexualidade é visto, num primeiro momento, comotransgressor e renovador. Sincronicamente, existeum esforço (político e científico) em encontrar nasexualidade de gays e lésbicas uma situação denormatização como “prova” de idoneidade social.

De qualquer maneira, nas diversas e varia-das identidades de gênero produzidas atualmen-te, e ao contrário das visões médica e psicanalíti-ca tradicionais, Matos reconhece que as novasformas de sexualidade não são desvios ou distúrbi-os. Para ela, a multissexualidade se apresentacomo novos campos de possibilidades na afirma-ção de diferentes “estilos de vida”.

Por fim, Matos aborda a dimensão espaço-temporal do gênero e da sexualidade, e por exten-são das relações conjugais. Assim como Butler(1993), a pesquisadora acredita que o gênero possase transformar num espaço de renovação de iden-tidades capaz de contestar a hegemonia do mo-delo hetero-fálico da sexualidade. Se novos espa-ços para novas relações estão em jogo, o tempoigualmente toma um aspecto particular. Já nãopodemos pensar o tempo das relações conjugaiscomo fatos ordenados, fixados em rituais determi-nados. A dimensão espaço-temporal se transfor-ma num “lugar” de fronteira onde os diferentescorpos e as mais diversas identidades e culturasde gênero se cruzam, se confrontam e se relacio-nam, produzindo novas configurações e sentidosàs relações amorosas.

Sem dúvida, o trabalho de Marlise Matos éintelectualmente instigante. Ela conseguiu, comcompetência, reunir teorias da sociologia e da psi-canálise para refletir as novas configurações amoro-sas na modernidade brasileira. Trabalhando comautores clássicos e pós-modernos de ambas as áre-as, a autora procura demonstrar como a transgres-são sexual se tornou um campo de inovação e reno-vação das identidades e das culturas de gênero.

A partir dos movimentos das minorias sociaisnos anos 60 e 70, gays e lésbicas (entre outros)passaram da imagem de desviantes, com algumdistúrbio psicológico, para um grupo de pessoas

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normais, livres e cidadãs. Antes da Aids, principal-mente os gays incorporaram a imagem de “foras-teiros”, verdadeiros cowboys da modernidade, semregras, sem lei ou territórios fixos nos quais se pu-desse controlá-los. No entanto, depois da Aids,social e politicamente os fatos tomam outra dire-ção. Vinculados a uma necessidade de maiorgarantia civil, a Aids veio impulsionar, ao menosnos debates políticos, gays e lésbicas a lutar pelanormatização de suas relações conjugais. Atual-mente, as pautas de reivindicação são a parceriacivil e também a adoção e a criação de filhos.Para tanto, é preciso que os homossexuais “pro-vem” que são passíveis de assimilar certas regrassociais como a redução e a fixação do/a parceiro/a sexual. Mais importante do que isso é a durabili-dade das relações. Esse era o modelo heterosse-xual tradicional. Enfim, a identidade sexual e degênero de gays e lésbicas, que antes era umatransgressão, uma atitude contestatória, tornou-se uma modalidade de relação normal e estável.

No que concerne aos casais heterossexuais,houve um movimento inverso. Durante muito tem-po, presos ao rígido modelo fálico-patriarcal da clas-se burguesa, o movimento feminista trouxe, aindaque de forma um tanto eclipsada, a consciência“masculinista”. Não só as mulheres heterossexuaisreivindicam a mudança de papéis e comportamen-tos para ambos os sexos, como também obrigam

os homens a se reposicionar com relação à famíliae ao gênero feminino. Mas as mulheres tambémmudaram ao liberar os homens da fidelidade eter-na, entrando no mercado de trabalho, tornando-seprovedoras dos lares e não se fixando a um sóparceiro3 (mesmo que a fidelidade seja ainda umacaracterística bastante feminina).

De fato, a grande renovação dos vínculosamorosos está, na modernidade tardia, nos casaisheterossexuais que procuram outras formas derelações como moradias separadas, parceiros/asextra-conjugais, mulheres como chefes de famíliaetc. Apesar da transgressão e da renovação queuma relação homossexual pode trazer às pessoasenvolvidas, a conjugação amorosa homoeróticaparece estar “condenada” a reproduzir o modeloheterossexual de relação estável.1 Essa discussão, na realidade, se inicia no segundocapítulo do livro, quando a autora se propõe a fazeruma reflexão teórica entre a psicanálise e a sociologia.2 Marlise Matos possui discussões interessantes acercadas relações amorosas na modernidade, sobretudo noque concerne às novas identidades de gênero. Porém,a autora está à procura de características estabilizadorasdas relações conjugais nos tempos atuais.3 Esse aspecto implica que os parceiros extra-conjugais,tanto das mulheres quanto dos homens heterossexuais,não se definam pelo sexo oposto.

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DEERE, Carmem Diana y LEON, Mag-DEERE, Carmem Diana y LEON, Mag-DEERE, Carmem Diana y LEON, Mag-DEERE, Carmem Diana y LEON, Mag-DEERE, Carmem Diana y LEON, Mag-da lena .da lena .da lena .da lena .da lena .

Bogota: Tercer Mundo y UniversidadBogota: Tercer Mundo y UniversidadBogota: Tercer Mundo y UniversidadBogota: Tercer Mundo y UniversidadBogota: Tercer Mundo y UniversidadNacional, 2000. 501pNacional, 2000. 501pNacional, 2000. 501pNacional, 2000. 501pNacional, 2000. 501p11111

El libro de Carmen Diana Deere y MagdalenaLeón presenta los resultados de una investigacióncomparativa sobre los derechos de las mujeres ruralesa la tierra en 12 países de América Latina y analizafundamentalmente dos períodos: los procesos dereforma agraria de los años 60 y 70’s y la fase quelas autoras denominan las contrareformasneoliberales para referir a la nueva etapa dereestructuración del sector agrícola que, entre otrascosas, implicó la promulgación de nuevos marcoslegales en diversos Estados, que tuvieron comodenominador común la privatización y/oindividualización de los derechos a la tierra.

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A través del análisis de estos dos procesos lasautoras discuten una diversidad de temas quealimentan el debate de varios campos: los estudiosagrarios, los estudios sobre género y desarrollo, losdesafíos del feminismo en América Latina. En estecomentario me quiero concentrar en los aportesque esta empresa comparativa hace a la reflexiónsobre la construcción de la ciudadanía de lasmujeres en general, y de las mujeres rurales enparticular y lo haré resaltando tres puntos:

1 La investigación ofreceun análisis de las vicisitudes del largoy a veces sinuoso proceso deimplementación de políticas públi-cas de género en nuestros Estados,demostrando los mecanismoslegales, institucionales, culturales yestructurales que acaban por excluira las mujeres campesinas de lapropiedad y control sobre la tierra.Se trata de un estudio pormenoriza-do de los diferentes actoresinvolucrados en estos procesos polí-tico-institucionales, de los tiempos ylos contextos económicos y socialesen que se desenvuelven dichosactores y de los marcos normativosque los rigen. Esto con el fin dedemostrar cómo el engranaje decada uno de estos temas devela laforma en que opera lo que las auto-ras denominan la brecha entreigualdad formal e igualdad real, quetambién podríamos denominarigualdad de derechos y desigualdadde oportunidades para las mujerescampesinas en el neoliberalismo.

1. En segundo lugar, untema central en el l ibro es larelevancia de la propiedad parapensar en procesos de empodera-miento de las mujeres, es decir larelación entre bienes materiales ypoder de negociación, entrederechos económicos y sociales yla necesidad del reconocimiento dela diferencia. Las autoras recons-truyen para el caso de la tierra laforma en que se presenta esta

imbricación entre redistribución yreconocimiento en la construcciónde la ciudadanía de las mujeres.

2. En tercer lugar, quisieraresaltar en este comentario la formaen que es tratada en el libro laarticulación entre género y etnicidadcomo uno de los temas de mayorrelevancia para el caso ecuatoriano.En este punto, las autoras presentanun interesante análisis de las tensionesentre feminismo y relativismo cultu-ral, entre derechos colectivos yderechos individuales, entre elrespecto a usos y costumbres yprocesos de exclusión de las mujeres.En definitiva entre concepciones es-táticas de la cultura y perspectivasque apuntan a recrearla o, como loseñala una indígena mexicana en ellibro, visiones que permitan pensar lacostumbre desde una perspectivaque las incluya.

Por ultimo quiero presentar algunos aspec-tos generales que me parecen necesariosseñalarlos como aportes para la investigación degénero en América Latina.

Respecto a la brecha entre igualdad formale igualdad real, ésta aparece como una caracte-rística fundamental de la forma como se construyela ciudadanía de las mujeres y de las mujeres ruralesen particular. Me parece que el estudio compara-tivo de cómo este proceso ocurre de manera dis-tinta y similar a la vez en 12 países de AméricaLatina nos ayuda a complejizar los procesos deconstrucción de la ciudadanía de las mujeres. Nosubica por un lado, todos los actores que estáninmersos en esta construcción: el Estado, con susleyes y sus funcionarios, el movimiento de mujeresy sus coyunturas, la agenda internacional feminis-ta, las organizaciones campesinas. Y por otro lado,analiza cómo los valores, prácticas y en general lacultura de género que permea instituciones yactores presenta obstáculos para que estaconstrucción de la ciudadanía de las mujeres seaun proceso lineal, en consonancia con los avan-ces en el terreno de la igualdad formal.

Encontramos en el libro un análisis detalladono solo de los efectos que ha tenido las políticasneoliberales en el agro sobre la propiedad de latierra para las mujeres sino también del complejo

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proceso institucional y cultural que implica laaplicación de políticas publicas de género en elcontexto neoliberal. El estudio está lleno de ejemplosde cómo desde México a Chile y Brasil, a pesar delos logros legales, alcanzados recién en la décadade los noventa en América Latina, de la existenciade determinadas reglamentaciones y hasta deinstituciones encargadas de su aplicación, laimplementación de estas políticas se topa con lareacción negativa de los propios funcionarios, deun “habitus” que puede implicar desconocimientode la ley, falta de voluntad para aplicarla, ignoranciafrente a la problemática de género, pero tambiénla falta de información por parte de las mujerescampesinas de sus derechos. Si bien el estudio señalaque en el ámbito latinoamericano se están conso-lidando las organizaciones de mujeres ruralestambién nos dice que uno de los problemas entodo el engranaje de aplicación de las políticaspublicas es el desconocimiento por parte de lasmujeres de su situación jurídica y de sus derechos.

Así, la igualdad formal se traduce de maneramuy diversa en políticas en el contexto de las re-formas neoliberales. En algunos países comoEcuador el nuevo código agrario si bien ya noconsidera al varón jefe de hogar como únicodestinatario de la titulación de la propiedad,tampoco establecen ninguna medida explicitasobre la igualdad de oportunidades entre hombresy mujeres puesto que asume la figura de “personasnaturales y jurídicas”. Este no es el caso de Boliviaen donde el marco normativo hace explícito laigualdad entre hombres y mujeres.

Esta misma brecha aparece al examinarel tema de la herencia, principal fuente deobtención de tierra para las mujeres, en donde lasautoras observan una profunda distancia entrenormas igualitarias y practicas locales. Demuestranpor ejemplo como sistemas de herencia bilateral –igualitaria- en la forma, entran en contradiccióncon patrones de residencia virilocal y esto deter-mina a la larga que las mujeres se retracten de unreclamo sobre la propiedad de la tierra.

Por otro lado, dentro de este mismo procesoal examinar las diferentes políticas emprendidas porlos Estados respecto a la titulación: conjunta, indivi-dual y de acción afirmativa para las mujeres jefesde hogar, las autoras demuestran que si bien algunasde ellas han representado un mayor acceso a lapropiedad para las mujeres, como en el caso co-lombiano con la titulación conjunta obligatoria, elsustento de estas políticas no es un reconocimientoexplícito de la equidad entre hombres y mujeres.Estas políticas se legitiman en todos los casos ya sea

con un discurso a favor de bienestar de los niños,de la reproducción de la familia, para contrarrestarsituación de violencia, de migración de loshombres, entre otros, pero nunca como un derechode las mujeres. Es decir, el discurso de la mujervulnerable prima por sobre el discurso de losderechos de la mujer.

Un segundo tema que me gustaría resaltardel libro es el uso del concepto de empoderami-ento y su relación con la propiedad. El empodera-miento es una palabra que empieza a formar par-te del sentido común del discurso del desarrollo ysu uso ha estado asociado cada vez mas como loseñalan las autoras con bienestar, estrategias decombate a la pobreza, participación social perono necesariamente ha estado relacionado con laposesión de bienes materiales. Las autoras usan alempoderamiento como un proceso no lineal, con-tingente a las experiencias individuales, sociales yculturales de cada persona o grupo. Esto implicafundamentalmente una visión del poder no solocomo subordinación sino como un potencial trans-formador. Lo que me parece interesante de lainvestigación es el argumento de cómo esteproceso no puede sino estar estrechamente liga-do con la propiedad, no sólo con el acceso arecursos, como usualmente se lo entiende, sinocon el control y propiedad de los mismos, en estecaso la tierra, poniendo al centro de la discusión larelevancia de los factores materiales y de laredistribución para el empoderamiento.

Retomando las reflexiones de algunas eco-nomistas feministas sobre la autonomía económicay su relación con mayores niveles de negociaciónen el hogar, la comunidad y la sociedad, las autorassostienen la importancia de la propiedad y controlde la tierra como un mecanismo fundamental quefortalece la capacidad de negociación de las mujeresal incrementar lo que las autoras denominan lacapacidad de resguardo. La propiedad en ese senti-do es una forma de empoderamiento de las mujeresrurales, una estrategia para alcanzar una mayorparticipación en la toma de decisiones en la familia,la comunidad a nivel de sus organizaciones y portanto una ciudadanía mas acabada.

En ese sentido, la propiedad y el empode-ramiento son procesos concretos encaminados adisminuir la brecha entre igualdad formal eigualdad real. Aquí, el interés central es demostrarla relevancia de los bienes materiales para alcanzarmayores niveles de autonomía y de autodetermi-nación de las mujeres y cómo este proceso deafirmación coadyuva en mayores niveles debienestar para ellas y sus hijos.

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Me parece importante resaltar la forma enque las autoras utilizan el concepto de empodera-miento, éste aparece como un proceso social,dependiente de cambios y políticas estructuralesy no solo de procesos identitarios individuales. Almismo tiempo es un proceso que afectadirectamente el entorno inmediato de las mujeres,cambia sus relaciones familiares y sus actividadesal interior de su comunidad. En otras palabras nosllaman la atención para volcarnos a un tratamientode la discriminación de género desde los ámbitosestructurales, de las políticas publicas y de laeconomía, de la relación con el Estado y con elmercado. Es decir cómo el empoderamiento delas mujeres debe disputar espacios con el podereconómico y político además de los identitarios.Aspectos que si bien los han mencionado las femi-nistas la practica del desarrollo tiende a olvidar.

Me parece que subrayar la relevancia delcontrol y propiedad de la tierra para el empodera-miento vuelve a poner sobre el tapete la discusiónsobre la creciente importancia de los derechoseconómicos y sociales de las mujeres en el marcode las políticas neoliberales en América Latina.Tema que ha sido central para las feministaslatinoamericanas y las ha diferenciado de losprocesos reivindicativos del feminismo del norte.Pero además de ello, se analiza la estrecha relaciónentre la demanda por los derechos económicos ysociales, en este caso el control y propiedad sobrela tierra y los temas del reconocimiento, la profun-da imbricación entre discriminación material ydesconocimiento o desvalorización de las diferen-cias que implica el género. En otras palabras, cómoestas diferencias se pueden transformar en desi-gualdades. El estudio me parece es un ejemplosistemático de cómo se entretejen elementosculturales y económicos que se refuerzan mutua-mente para producir desigualdad.

En tercer lugar, me gustaría comentar so-bre la tensión entre demandas étnicas y deman-das de género en el contexto del derecho a latierra que las autoras presentan al analizar los pa-íses con mayor población indígena. Este capítuloes un esfuerzo especialmente valido para enten-der un matrimonio difícil, de intereses bifurcados,y en muchos casos infeliz para las mujeres. Enefecto, el capitulo analiza los avances en lasreivindaciones étnicas respecto a la tierra y lalegitimidad que ha logrado el tema de la propiedadcolectiva como la garantía indispensable para lasupervivencia de los pueblos. Pero también señala

que en muchos países estos avances han sidociegos al género. Esto ha implicado contradiccio-nes entre el respecto a los usos y costumbres, a laautoridad ancestral y el reconocimiento de quevarios de estos sistemas culturales discriminan yexcluyen a las mujeres. Las autoras analizancríticamente el discurso étnico sobre la estrechaidentificación entre mujer y naturaleza destacan-do que si bien existe un reconocimiento simbólicoimportante para las mujeres éste por el momentono se traduce en mayores niveles de participaciónde las mujeres en los espacios de toma de decisión,en la política comunal y tampoco en mejorar elacceso y control sobre bienes económicos de lasmujeres campesinas.

En ese sentido el capítulo concluyeseñalando el complejo desafío de lasorganizaciones de mujeres indígenas que estáncada vez más llamadas a reconstruir estaarticulación de manera que las beneficie, sin re-nunciar a sus derechos como pueblos.

Para terminar quisiera señalar que ademásde los debates en que nos permite incursionar ellibro, una de las cualidades fundamentales delestudio es precisamente su perspectiva compara-tiva. Me parece necesario resaltar que los estudiosde género en América Latina rara vez hanemprendido ese tipo de empresa, la gran mayoríase ha centrado en los espacios nacionales y conello no hemos podido sino producir muy pococonocimiento de la región sino es con un enfoqueacumulativo más que comparativo. El mérito deeste trabajo es precisamente el haber delineadoejes comparativos pertinentes y haber desafiadolas dificultades que este tipo de enfoques presentapara el proceso investigativo; me refiero a laslimitaciones en cuanto a la información disponible,la incoherencia de las fuentes, el desigualdesarrollo de los estudios agrarios y de género enlos distintos países analizados, entre otros. Laestrategia comparativa adoptada permite brindaruna mirada general y particular al mismo tiempoque pocas veces hemos logrado en los estudiosde género en América Latina.

1 Próximo a salir en ingles como Empowering Women:Land and Property Rights in Latin America (Pittsburgh:University of Pittsburgh Press, 2001) y en traducción alportugués por Editora da Universidade, UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul.

GIOCONDA HERRERA GIOCONDA HERRERA GIOCONDA HERRERA GIOCONDA HERRERA GIOCONDA HERRERA !!!!!

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Práticas de cuidado e trabalho docentePráticas de cuidado e trabalho docentePráticas de cuidado e trabalho docentePráticas de cuidado e trabalho docentePráticas de cuidado e trabalho docente

No coração da sala de aula: gê-nero e trabalho docente nas sériesiniciais

CARVCARVCARVCARVCARVALHOALHOALHOALHOALHO, Maríl ia P, Maríl ia P, Maríl ia P, Maríl ia P, Maríl ia Pinto deinto deinto deinto deinto de.....

São Paulo: Xamã/ Fapesp, 1999. 247 p.São Paulo: Xamã/ Fapesp, 1999. 247 p.São Paulo: Xamã/ Fapesp, 1999. 247 p.São Paulo: Xamã/ Fapesp, 1999. 247 p.São Paulo: Xamã/ Fapesp, 1999. 247 p.

Há algo de diferente no ensino das sériesiniciais do ensino fundamental, em comparaçãocom outros níveis de ensino? O fato de ser umlocal de trabalho com grande maioria de mulhe-res desempenhando a função docente conferealguma peculiaridade a este ambiente? O quesignifica ser mulher professora, principalmentequando essa prática se realiza nas primeiras sériesdo ensino fundamental? E como decifrar esse fa-zer diário, dissolvido nas rotinas escolares e muitasvezes sufocado pelos controles, pelos preconcei-tos e por pequenas disputas de poder? Essas sãoalgumas das questões que orientam o estudo deMarília de Carvalho, elaborado originalmente comotese de doutorado, defendida na Faculdade deEducação da USP em 1998 e transformada emlivro no ano seguinte.

A partir de um longo contato com algumasprofessoras e um professor das séries iniciais deuma escola pública da cidade de São Paulo, rea-lizando entrevistas e observações, a autora contri-bui para um melhor entendimento das funçõesdocentes, das relações professor/aluno e das rela-ções de gênero dentro e fora da escola. A reflexãoacerca do cuidado é um dos aspectos maismarcantes dessa pesquisa, conceito de inúmerassignificações, que é aqui detalhado tanto em rela-ção a estas várias conotações teóricas quanto emrelação a seus múltiplos significados nas práticasdos professores.

O livro começa com um mapeamento devárias concepções ligadas ao gênero, deixandobastante claros os pressupostos teóricos adotadospela autora ao longo de sua investigação. A idéiade maternação, proposta por Nancy Chodorow, odesenvolvimento moral e a ética do cuidado tra-

balhados por Carol Gilligan, as elaborações mui-tas vezes identificadas como feminismo da dife-rença, defendidas por várias autoras e, finalmen-te, concepções de autores como Joan Scott eRobert Connell são alvo de análises críticas e tam-bém fonte de colaborações para o arcabouçoteórico construído ao longo da pesquisa.

Em seguida, o conceito de cuidado é anali-sado mais aprofundadamente, também sob o pon-to de vista de vários autores, atuantes em diferen-tes áreas do conhecimento. A autora faz uma re-construção desse conceito, considerando-o comouma construção social. Tenta afastar conotaçõesde cunho universalista e a-histórico, negando se-rem as atitudes de cuidado referentes unicamen-te às mulheres, ou mesmo exclusivas de certosgrupos sociais. Para isso, foi elaborada uma con-textualização tanto para a origem histórica daspráticas de cuidado, quanto para outros elemen-tos que devem ser considerados nas análises daspráticas escolares: a questão social, a de gêneroe mesmo a relação entre adultos e crianças.

Uma especificidade do estudo é a iniciativade compor a teoria e a empiria. Embora a autoratrate alguns aspectos teóricos de maneira maisaprofundada no início do livro, como uma opçãopara a exposição de pressupostos e concepçõesque fundamentaram sua investigação, observa-se que a construção de idéias ocorre de maneiraconcomitante entre a esfera teórica e a empírica.Dessa forma, o trabalho não tem como caracterís-tica somente a discussão incansável sobre a teo-ria e, do mesmo modo, não traz apenas dadosempíricos dispersos. Há um equilíbrio entre essasduas esferas, e a leitura torna-se com isso bastan-te agradável e interessante.

Quanto ao referencial empírico, de aborda-gem etnográfica, pode-se verificar a explicitaçãoe as justificativas dos procedimentos metodológicosescolhidos pela autora, bem como as dificuldadese os sentimentos que perpassaram o período deestudo. As relações entre a pesquisadora e as pes-soas envolvidas no trabalho escolar também seencontram presentes no texto, bem como as mo-dificações ocorridas nessas relações em funçãode um maior tempo de convivência.

Tem-se então a oportunidade de entrar emcontato com os relatos sobre a atividade profissio-nal de quatro professoras e um professor, relatos

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que conseguem delinear muito bem seus perfisindividuais, seus posicionamentos e suas práticaspedagógicas. Além disso, dada a enorme dificul-dade de se obter depoimentos pessoais, o querequer a construção de uma relação de confian-ça entre a pesquisadora e os depoentes, pode-sedizer que a autora teve sucesso em sua aproxima-ção a certos acontecimentos da vida pessoal eprofissional de cada um, facilitando assim o en-tendimento de determinadas situações e da atua-ção dos participantes.

Em todos esses relatos de trabalho pedagógi-co estão presentes as práticas de cuidado, naconcepção adotada pelo estudo, e é interessanteverificar como a autora apresenta os diferentesgraus de significado e de importância dessas práti-cas na docência de cada um dos professores en-volvidos na pesquisa. Torna-se bastante clara tam-bém a vinculação dessas práticas de cuidado coma natureza relacional da atividade docente, anali-sada no livro sob o aspecto da significativa afetividadeobservada entre, de um lado, o professor e as pro-fessoras mencionadas e, de outro, seus alunos,verificada em suas várias formas de expressão.

O conceito de cuidado aparece então comoparte daquilo que é considerado pelos sujeitos umbom trabalho pedagógico e que pode ser obser-vado, de forma geral, tanto no desempenho dasprofessoras quanto no do professor participante,eliminando a idéia de que tal categoria faria parteapenas do conjunto de características femininas.

Considerando que o conceito deprofissionalismo costuma estar associado muitomais à masculinidade, uma vez que se espera dosindivíduos técnicas e domínio de um determinadocampo do saber, verificou-se que para as profes-soras investigadas, este conceito parecia definir-se a partir do envolvimento pessoal, da realizaçãoe do prazer obtido no trabalho. Mesmo assim, asdimensões intelectuais eram sempre considera-das e mostravam que todos os sujeitos envolvidosse preocupavam também com ensinar, transmitirconteúdos, formas de raciocínio e técnicas, espe-cialmente porque era de conhecimento geral quea desvalorização da carreira do magistério muitasvezes surge ao se levar em conta apenas o ladodo envolvimento pessoal.

Por outro lado, por se associar muitas vezes ocuidado infantil à femininidade, constatou-se queo professor (homem) investigado apresentava maio-res dificuldades com relação a sua prática docen-te. Porém, ao mesmo tempo, tinha maior liberdadepara se distanciar desse conceito, o que, no caso

das mulheres, ocasionava uma certa culpa.Segundo a autora, essas práticas de cuida-

do, embora marcantes no trabalho docente comcrianças, integram-no de forma contraditória e semlhe conferir legitimidade profissional, passandogeralmente despercebidas em muitas pesquisasacadêmicas, porque não possuem estatuto teóri-co e dificilmente se constituem em objeto de estu-do. No entanto, ficou patente ao longo dessa in-vestigação a necessidade de se continuar estu-dando tais práticas, já que elas podem estar estrei-tamente vinculadas ao trabalho pedagógico dasprofessoras e professores das séries iniciais do en-sino fundamental.

Ao longo de toda a elaboração teórica eempírica apresentada no livro, nota-se a discus-são de questões importantes que acabamfragilizando algumas polaridades presentes no dis-curso pedagógico de muitos professores e mesmoem certas produções acadêmicas, polaridadesque associam certos atributos como a afetividade,intensas relações interpessoais, o comportamentomaternal e o cuidado à femininidade e, por outrolado, a racionalidade, as relações pessoais maisdistantes, a disciplina e a competência profissio-nal à masculinidade.

Além disso, abordando mais especificamen-te a freqüente associação realizada entre o cuida-do, o comportamento maternal e a femininidade,em oposição a padrões de atuação masculinos,que não apresentariam tais características, as prá-ticas de cuidado verificadas parecem ser própriasdo ensino primário, não correspondendo, portanto,a uma transposição direta de práticas domésticaspara o ambiente escolar. Marília de Carvalho afirmater ocorrido, então, ao longo do tempo, uma cons-trução social de pressupostos comuns a um idealde mãe e de professora primária, realizado tanto naescola quanto fora dela. Tais práticas de cuidadoestariam associadas à feminilidade e à maternida-de, o que remete a uma concepção de infância, aum conceito de cuidado infantil e a normas sobre aadequação das mulheres a essas tarefas. Esse mo-delo ideal de professor seria produzido, transmitidoe reproduzido no interior da própria escola, comoparte de uma cultura escolar partilhada pelos queali trabalham. Uma dimensão do conceito defeminização aqui apresentada é referente à escolae ao ensino primários, independentemente do sexodo profissional docente.

Pode-se dizer que as reflexões e análises con-tidas nesse trabalho condensam, com grandeharmonia, um longo caminho de inquietações te-

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óricas e uma perspicaz prática de pesquisa. Alémdisso, suas contribuições não se esgotam apenasna compreensão do fazer docente à luz das rela-ções de gênero e do universo relacional que ca-racteriza essa profissão. O estudo apresenta tam-bém um quadro rico e cuidadoso da cultura esco-lar e dos aspectos menos visíveis das rotinas eafazeres em que professores e professoras, porcaminhos diversos e muitas vezes contraditórios,procuram tornar-se sujeitos de sua própria prática.

Por tudo isso, o trabalho de Marília de Carvalhodeve figurar como referência básica não só paraos estudos sobre a educação fundamental, comotambém para todos aqueles que se interessampor uma reflexão mais aprofundada sobre as rela-ções de gênero.

LUCIANA MARIA VIVIANI LUCIANA MARIA VIVIANI LUCIANA MARIA VIVIANI LUCIANA MARIA VIVIANI LUCIANA MARIA VIVIANI !!!!!

DAIANE ANTUNES VIEIRA DAIANE ANTUNES VIEIRA DAIANE ANTUNES VIEIRA DAIANE ANTUNES VIEIRA DAIANE ANTUNES VIEIRA !!!!!

Ações afirmativasAções afirmativasAções afirmativasAções afirmativasAções afirmativas, mulheres e mercados, mulheres e mercados, mulheres e mercados, mulheres e mercados, mulheres e mercadosde trabalhode trabalhode trabalhode trabalhode trabalho

Mulher e Trabalho: experiências deação afirmativa

DELGADODELGADODELGADODELGADODELGADO, Dídice, Dídice, Dídice, Dídice, Dídice, CAPELLIN, CAPELLIN, CAPELLIN, CAPELLIN, CAPELLIN, P, P, P, P, Paola &aola &aola &aola &aola &SOARESSOARESSOARESSOARESSOARES, V, V, V, V, Vera (orgsera (orgsera (orgsera (orgsera (orgs.).).).).)

São Paulo: ELAS/Boitempo Editorial,São Paulo: ELAS/Boitempo Editorial,São Paulo: ELAS/Boitempo Editorial,São Paulo: ELAS/Boitempo Editorial,São Paulo: ELAS/Boitempo Editorial,2000. 144p.2000. 144p.2000. 144p.2000. 144p.2000. 144p.

Parte conclusiva de um programa de semi-nários e publicações mais amplo, de dois anos deduração, esse livro reúne os aportes apresentadospor especialistas de diversos países no semináriointernacional As mulheres no mundo do trabalho:experiências internacionais de ações afirmativas,realizado no Brasil de 14 a 19 de abril de 1997,organizado pela Fundação Friedrich Ebert-Ildes (FES-Ildes), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),Elisabeth Lobo Assessoria (Elas), e Centro Feministade Estudos e Assessoria (CFEMEA), com apoio dediversas instituições internacionais e nacionais (sin-dicais, empresariais, governamentais e não gover-namentais).

O Seminário teve por objetivo o de “possibili-tar o contato do público brasileiro com experiênci-as consolidadas de ação afirmativa que revelas-sem: (1) a viabilidade da medida como um cami-nho para a construção da igualdade de oportuni-dades entre homens e mulheres no trabalho; (2) aparticipação dos diferentes atores sociais na cons-trução e na implementação das experiências; (3)

o arcabouço legal no qual se inserem as açõesafirmativas; (4) as dificuldades e os desafios daimplementação das propostas em cada realida-de” (p. 9).

Martine Voets discorreu sobre a ação afirma-tiva como parte da política de igualdade de opor-tunidades desenvolvida pela União Européia;Jacqueline Laufer analisou a experiência francesana matéria; Etta Olgiati comentou o caso italiano;Kimberley Pate abordou o tema das ações afirma-tivas nos Estados Unidos; e finalmente Laís Abramoapresentou linhas de reflexão sobre as mudançasnos mercados de trabalho latino-americanos e ascondições das mulheres.

O livro é introduzido pelas organizadoras, inte-grantes da Elas e da UFRJ, com o texto “A mulher nomundo do trabalho: Perspectivas e desafios paraconstruir a igualdade de oportunidades no Brasil”.Tributárias de uma publicação anterior do mesmoprograma,1 as organizadoras do livro começam pordefinir o conceito de ações afirmativas: “A afirma-ção do princípio de igualdade de oportunidadesentre homens e mulheres e sua aplicação no mun-do do trabalho já tem uma história no cenário inter-nacional. São denominadas ações afirmativas es-sas políticas que têm como meta corrigir antigas enovas discriminações” (p. 11).

As organizadoras contam essa história, cujosprimórdios vinculam-se à eliminação de todos oselementos discriminatórios contidos nas legisla-ções, seguidos de um esforço adicional para esti-mular, através de procedimentos práticos, a efeti-va mudança nos comportamentos discriminatóriosnos locais de trabalho: “A força moral e coercitiva

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dos mecanismos punitivos legais muitas vezes nãoconsegue ser propulsora da inovação de compor-tamentos. Assim, o desenho de metodologias, deplanos e de estratégias concretas de políticas deintervenção foi um propósito comum em várioscontextos nacionais nos anos 80” (p. 12).

Segundo Cappellin, Delgado e Soares, o de-safio pragmático da mundialização da economia,com suas exigências no que diz respeito à adequa-ção das organizações produtivas, foi o cenário queestimulou alguns agentes econômicos a aderirema esse tipo de estratégia, com o intuito de experi-mentar uma aliança entre a rentabilidade dos ne-gócios e o êxito de novas estratégias de recursoshumanos que promovessem a igualdade de opor-tunidades. Para as organizadoras da publicação,“[a] leitura das experiências internacionais ofereceoutro ensinamento: a implementação das açõesafirmativas pressupõe uma vontade política social-mente compartilhada de realizar inovações” (p. 14).Nesse sentido, são levantadas as batalhas ganhasdesde a sanção da Constituição de 1988 pelosdiferentes setores e atores interessados (governa-mental, parlamentares, movimento de mulheres,sindicatos, organizações empresariais, etc.), comosinais de um processo de mudanças em direção auma abertura maior para formular políticas de igual-dade de oportunidades no Brasil.

A seguir, encontramos o texto de MartineVoets, “A estratégia européia para a ação afirmati-va” (p. 21), que possibilita uma compreensão maisampla dos textos de Laufer (“Igualdade profissionale ações afirmativas”) e de Olgiati (“As ações afir-mativas na Itália e um olhar sobre a Europa”), refe-ridos às experiências nacionais francesa e italiana,respectivamente. O grande ponto de destaque,considerando esses três textos em conjunto, ana-lisados em contraposição à experiência nos Esta-dos Unidos, é a importância dos processos deintegração supra-nacional como motor propulsorda adoção de medidas de ação afirmativa nosdiversos países europeus, com grande participa-ção dos estados em sua aplicação nacional.

A história das ações afirmativas na Europaencontra-se pautada pela história dos acordos deintegração que, no caso específico das diretrizespara a consecução da igualdade de oportunida-des de gênero nos mercados de trabalho, come-ça em 1957 com o próprio Tratado de Roma (queestabeleceu a Comunidade Econômica Européia):“[o]s artigos desse tratado diziam respeito essenci-almente às questões econômicas. As disposiçõesda legislação social européia referiam-se a aspec-tos muito restritos, tais como a liberdade de movi-

mento das pessoas e a livre concorrência. Foi nes-se contexto que nasceu a legislação européia so-bre a igualdade de remuneração entre trabalha-dores dos sexos feminino e masculino. Assim, asdisposições do artigo 119 do tratado foramadotadas com a finalidade de evitar deformaçõesna concorrência entre os países, devido aos bai-xos salários pagos às mulheres” (Voets, p. 22).

Os anos 70 trouxeram a preocupação comformular, nacionalmente, o arcabouço legal quepudesse gerar maior igualdade de oportunidadesnos mercados de trabalho envolvidos na Comuni-dade. Os anos 80, após a comprovação de que oarcabouço legal era necessário porém não sufici-ente, trouxeram as primeiras preocupações com apromoção da igualdade e, conseqüentemente,com as medidas de ação afirmativa. Finalmente, oviés dos anos 90 está constituído pela compreen-são das condições de trabalho das mulheres nocontexto mais amplo da condição das mulheres nasociedade (preocupações com a saúde e a segu-rança das gestantes, licença parental etc), pelaconstrução de parcerias (mobilização e estabeleci-mento de acordos mediante negociações de par-ceiros na vida econômica e social) e pelomainstreaming ou transversalidade (inclusão daproblemática das relações de gênero como princi-pio transversal integrado à formulação e à imple-mentação de todas as políticas e planos de ação).

“Uma década de ativo fomento à ação afir-mativa para as mulheres trabalhadoras produziuum considerável conhecimento prático sobre esseassunto, que era relativamente inexplorado até ocomeço da década de 1980” (Voets, pág. 36). Naúltima década do século passado, a Comunidadedesenvolveu diversas iniciativas com a finalidadede disseminar e debater estes conhecimentos,entre elas, a realização de seminários e conferên-cias, a consolidação e a circulação da informa-ção, o financiamento de projetos de pesquisa, oapoio a projetos inovadores de ação afirmativa, oestabelecimento de redes para a implementaçãode programas específicos.

O caso francês resulta ilustrativo para com-preender a importância do papel do estado naconsecução dos objetivos colocados na aplica-ção de medidas de ação afirmativa, principalmen-te no que diz respeito à promoção, desde 1983,de três tipos de instrumentos: (1) a introdução doprincípio de negociação específica no tocante àigualdade profissional entre homens e mulheresnas negociações coletivas; (2) a obrigação dasempresas com mais de cinqüenta empregados,de elaborar um relatório anual das condições de

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emprego de mulheres e homens; (3) a negocia-ção de planos de igualdade, com previsão deauxílio financeiro por parte do estado aos planosexemplares.

A partir de 1987, esse conjunto de instru-mentos foi complementado por outros dois instru-mentos de promoção da igualdade profissional: ocontrato para empregos mistos e os acordosinterprofissionais.

“Esse contrato para empre-gos mistos permitiria que empresascom até seiscentos empregados re-cebessem subsídios do Estado parafinanciar 50% dos custos de forma-ção e 30% do salário durante a for-mação de uma mulher contratadaou promovida para um empregousualmente exercido por homens em80% dos casos. Enquanto a negoci-ação coletiva relativa à igualdadeprofissional prevista pela lei de 1983dizia respeito antes de tudo à em-presa, os acordos interprofissionaissobre a igualdade profissional foramassinados em 1989, preconizando aincorporação de objetivos de igual-dade profissional nas negociaçõesentre setores sobre as novastecnologias ou sobre a duração notrabalho” (Laufer, p. 45).

Já o caso italiano especifica as estratégiasinstitucionais dirigidas à adoção de programas deação afirmativa de caráter voluntário, ilustrandoesta análise através de uma grande empresa, aItaltel (a maior empresa italiana de telecomunica-ções). A experiência pioneira da Italtel aconteceunum ciclo caracterizado por importantes transfor-mações em sua estrutura técnico-organizativa eobedeceu a uma combinação de diversos fato-res: o compromisso pessoal da administradora comas políticas de igualdade, o salto tecnológico daempresa, suas conseqüências negativas sobre opessoal — especialmente sobre as mulheres — eo compromisso de um grupo de sindicalistas deMilão com as diretrizes européias sobre igualdadede oportunidades no trabalho.

A seguir, Olgiatti comenta o resultado daanálise horizontal de 18 experiências de ação afir-mativa em empresas, apresentadas no Fórum Eu-ropeu sobre as Ações Afirmativas (primeira ativida-de anual de um grupo de especialistas constituído

pela Comissão Européia para os Direitos da Mulherem 1994):

“Em primeiro lugar, essaanálise confirma que os programasde ação afirmativa podem constituirum ponto de encontro real entre asnecessidades de empresas eficien-tes e competitivas e as aspiraçõesprofissionais e as necessidades daspessoas. A análise também forneceuindicações significativas sobre as va-riáveis que influenciam positivamen-te a implementação de ações afir-mativas nas empresas” (Olgiatti, p. 75).

As variáveis consideradas foram: fatoresexógenos (como as mudanças no mercado, as di-nâmicas do mercado de trabalho e o quadroinstitucional), fatores endógenos (como a inova-ção tecnológica, as estratégias organizativas, asparcerias sociais e a adesão da alta direção daempresa com as políticas de igualdade), instrumen-tos (modalidades de implantação e procedimen-tos, opções organizativas, entre outros aspectos) econteúdos das ações afirmativas (voltadas para aintrodução de mudanças culturais, que visam àsuperação da segregação vertical e da horizontalpara a conciliação entre vida profissional e vidafamiliar, para garantir o pleno respeito à dignidadehumana, entre outros conteúdos possíveis).

Por trás da experiência dos Estados Unidosaparece outro tipo de integração almejada: aintegração à sociedade daqueles que lá são de-nominados “as minorias” (mulheres, negros, “lati-nos”, índios, asiáticos, entre outros). A análise docaso norte-americano traz à tona não só uma outraorigem, mas também outros componentes possí-veis na adoção de medidas de ação afirmativa: aforça da sociedade civil e o papel do litígio e doacordo judicial.

Muito especialmente envolvidos com a ques-tão racial,

“[o]s programas de açãoafirmativa para mulheres foram igual-mente limitados nas decisões da Su-prema Corte. Na ação da ‘Universi-dade para Mulheres do Mississipi con-tra Hogan’ (1982), a escola de enfer-magem para mulheres foi proces-sada por um homem que não foiadmitido num programa de gradu-ação sob o argumento de que a

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instituição violara a Cláusula de Pro-teção à Igualdade da 14a Emendada Constituição dos Estados Unidos.A Suprema Corte extinguiu a políticada universidade de admitir apenasmulheres na escola de enfermagem,julgando que uma classificação porgênero somente seria válida se hou-vesse uma prova de que aquelapolítica pretendia compensar mu-lheres por discriminação sofrida naenfermagem, em oposição a umadiscriminação mais generalizadaenfrentada na escola ou no empre-go” (Pate, p. 91).

Após comentar brevemente os mitos e asrealidades sobre as ações afirmativas e suas con-seqüências, Pate analisa os efeitos produzidos pe-los ataques às ações afirmativas durante o gover-no Clinton, principalmente a Proposição 209, “ini-ciativa popular anti-ação afirmativa” que os eleito-res da Califórnia votaram em 1996. A mobilizaçãoda sociedade civil é ressaltada como via para pro-teger e ampliar as conquistas obtidas em prol daigualdade de oportunidades e pelo fim da discri-minação e do preconceito.

A contribuição de Abramo tem característi-cas completamente diferentes. Após retratar ascondições das mulheres trabalhadoras na Améri-ca Latina entre 1970 e 1990, com base na análisedos dados produzidos pelo Projeto de PesquisaRegional da Flacso,2 a autora se propõe a analisaralgumas experiências atuais de inserção femininanos mercados de trabalho. Com um enfoque ana-lítico e crítico, fundamentado numa diversidadede pesquisas, Abramo desmonta algumas das cren-ças em torno dos supostos benefícios que trazemàs mulheres trabalhadoras os processos deglobalização, de flexibilização, de reestruturaçãoprodutiva, e de inovação tecnológica (principal-mente no que diz respeito ao estabelecimentodas cadeias produtivas).

A autora também desafia alguns dos mitossobre as cadeias produtivas na América Latina,destacando sua real verticalização, sua assimetriade poder e de competitividade, e chamando aatenção para o fato de que a integração supra-nacional poderia trazer aspectos positivos e nega-tivos. É importante permanecer atento a essas duaspossibilidades, na hora de elaborar e implementar

políticas públicas tendentes à superação da discri-minação de gênero na área de trabalho e renda.Nesse sentido, Abramo afirma:

“Os processos de integra-ção regional enfatizam a importân-cia de introduzir essa perspectiva tan-to na análise dos tecidos produtivoscomo na discussão das políticas pú-blicas, em especial aquelas relacio-nadas aos processos de fomento pro-dutivo, desenvolvimento econômicolocal e geração de emprego. Se écerto que entender esse tipo de arti-culação produtiva é cada vez maisimportante para caracterizar a confi-guração real dos tecidos produtivos,também é certo que as cadeias (ouos clusters de empresas) não se limi-tam necessariamente a apenas umpaís (Gereffy, 1993). É muito provávelque os processos de integração re-gional, como é o caso do Mercosul,estimulem (ou definam) os encadea-mentos ao longo do territórios queabarquem mais de um ou vários pa-íses. Esse fenômeno pode apresen-tar aspectos positivos e negativos parao emprego em geral e o trabalhofeminino em particular, dependendodas condições nas quais se desen-volva” (Abramo, p. 124).

A seriedade e a multiplicidade dos aportescontidos na publicação merecem uma leituradetalhada, meditada, que com certeza constitui-rá um estimulante motor de ricas e superadorasproposições no campo das políticas públicas detrabalho e renda com preocupações de gênero ejustiça social.

Os artigos que compõem essa coletânearefletem sistematicamente avanços e retrocessos,êxitos e fracassos na procura da igualdade profis-sional entre homens e mulheres: quais os limites aserem respeitados para que uma ação afirmativanão contradiga o princípio da igualdade formalentre os indivíduos? Como mobilizar os diferentessetores socioeconômicos com o intuito de cons-truir consensos em torno da necessidade e dapositividade das ações afirmativas? Como evitaros aspectos negativos da reestruturação produti-va e o ajuste estrutural no sentido de impedir que

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a discriminação baseada nas concepções de gê-nero assuma nova cara e continue marcando avida das mulheres?

A leitura do livro em seu conjunto permiterecuperar alguns dos dilemas colocados aosformuladores e gestores de políticas públicas detrabalho e renda preocupados com os aspectosda diversidade da população economicamenteativa, e principalmente com a discriminação ba-seada no sistema de sexo/gênero. Alguns gestoresoptam por apresentar esse tipo de políticas aosempresários como um derivado do princípio deeficiência, e portanto como baseadas na compe-titividade. Com esse enfoque, atender a proble-mática da discriminação das mulheres no traba-lho significaria agir a favor do desenvolvimentoeconômico (crescimento e competitividade), doaumento da produtividade (produção de bens eserviços), da melhoria da imagem da empresa nasociedade (atingindo a circulação de bens e servi-ços) e da utilização adequada da multiplicidade eda variedade de recursos humanos disponíveisnuma dada sociedade. No entanto, esse enfoquedesatende o outro lado da moeda, igualmenteimportante, que é o compromisso social doempresariado, no que diz respeito à atenção dacidadania e do princípio de eqüidade. Essa ótica,em contrapartida, privilegia o desenvolvimentosocial (isto é, o crescimento econômico comredistribuição da renda), os direitos humanos e asliberdades fundamentais, a justiça e a harmoniasocial e a igualdade de oportunidades e opções.3

O livro ainda estimula a refletir sobre algunspontos importantes para o desenvolvimento depolíticas sociais mais justas:

· É preciso olhar a temporalidade da proble-mática de gênero (processos);

· É preciso analisar a problemática em cadaregião, setor de atividade, grupos de mulheres etc(público específico);

· É preciso considerar diversos tipos de ra-zões para negociar com diversos atores (objetivos);

· Não há nem poderia haver uma única so-lução ou política pública para todas as mulheres.

Finalmente, podemos afirmar que esse livroconstitui um subsídio fundamental para todos aque-les interessados na formulação, na gestão e naavaliação de políticas públicas na área de traba-lho e geração de renda (governo, empresários,trabalhadores, movimentos de mulheres, ongs, le-gisladores, organismos intergovernamentais, en-tre outros), bem como a pesquisadores compro-metidos com a temática das relações de gênerono mundo do trabalho.

1 Discriminação positiva. Ações Afirmativas: em buscada igualdade. Brasília/São Paulo: CFEMEA/Elas, 1996.2 VALDES, Teresa, e GOMARIZ, Enrique. Mujereslatinoamericanas en cifras. Tomo comparativo. Santia-go de Chile: Flacso/Instituto de la Mujer de España,1995.3 Ver CUELLAR, Javier P. de et alli. Nuestra diversidadcreativa. Informe de la Comisión Mundial de Cultura yDesarrollo. México: Unesco, 1997.

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Falas de gênero

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Florianópolis: Mulheres, 1999. 343 p.Florianópolis: Mulheres, 1999. 343 p.Florianópolis: Mulheres, 1999. 343 p.Florianópolis: Mulheres, 1999. 343 p.Florianópolis: Mulheres, 1999. 343 p.

Marianne, olhando-se nos próprios olhos di-ante de um espelho — menos para se ver e maispara refletir sobre si mesma — fala em voz alta:“Pensem o que quiserem. Quanto mais vocês acre-ditam poder falar de mim, mais eu serei livre emrelação a vocês. Às vezes, me parece que as no-

vidades que aprendemos sobre as pessoas per-dem logo o valor. No futuro, se qualquer um meexplicar como eu sou — seja para me fragilizar oupara me tornar mais forte — eu não admitirei maisuma tal insolência”.1

Marianne é uma criação ficcional de PeterHandke, uma personagem do romance La femmegauchère. Essa fala (emitida logo depois de umdiálogo tenso com Bruno, o marido do qual ela,por sua vontade, se separa) sedimenta a ruptura einaugura seu processo de solidão, de descobertade si mesma.

A última frase da fala mencionada — extraídado contexto dessa intimidade entre Marianne e simesma (seus olhos em seus próprios olhos no espe-lho), individualidade e subjetividade extremas —

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poderia ser útil para esboçar a reação que os estu-dos de gênero prometiam diante de todas as defi-nições, classificações, unificação em uma catego-ria —naturalizada, essencializada, ou pretensamentehistoricizada —, a Mulher, as mulheres.

Os estudos de gênero prometiam; cumpri-ram?

Essa indagação pode ser explorada na leitu-ra da coletânea Falas de Gênero, que resultou doterceiro encontro Fazendo Gênero, admirável ini-ciativa da Universidade Federal de Santa Catari-na. Admirável pela contribuição que vem ofere-cendo ao enriquecimento do campo de estudosde gênero e da teoria feminista no Brasil, pelaspesquisas que nele são apresentadas e por suasdiscussões teóricas. Também, pela continuidadeque vem mantendo. O encontro Fazendo gênero3, aconteceu de 13 a 15 de maio de 1998 noCentro de Ciências da Saúde da UFSC e tevecomo tema geral “Gênero e Saúde”.

O livro, Falas de gênero, contém dezoito ar-tigos, os quais estão entre uma Apresentação2 eum Posfácio.3 Apesar de não ter sido esse o meupercurso de leitura, sinto-me tentada a recomen-dar a leitura da apresentação e do posfácio antesda leitura dos artigos; depois, sugiro que se leia aapresentação de novo, os artigos e então oposfácio outra vez. Certamente ambos, apresen-tação e posfácio, dirão bem mais do conjunto deartigos e de suas questões do que esta resenha ofará. Os dezoito capítulos estão organizados emtrês partes — “Teorias”, “Análises” e “Leituras” —, e oencadeamento é muito bem resolvido, inclusivepelo debate interno que sugere ao leitor, o quenão é muito comum em coletâneas.

Na impossibilidade de detalhar todos os arti-gos, vou me concentrar nas discussões da primeiraparte e na sugestão do debate possibilitado peloencadeamento ao qual me referi. O primeiro eestimulante artigo é de Joan Scott, sobre a noçãode experiência. Discutindo com autores comoRaymond Willians e Thompson, entre outros, a auto-ra reivindica ao mesmo tempo o aspecto discursivoda experiência e seu estatuto como fundamentoinquestionável da explicação. Ao criticar o projetode tornar a experiência visível, ela nos incita a pen-sar que é a própria produção desse projeto de co-nhecimento que caberia questionar. Para isso, aexperiência não é considerada nem como internanem como externa ao sujeito, ela o constitui; aexperiência não adquire significados: ela não acon-teceria fora de significados. Com essa crítica,retoricamente conduzida através de uma reflexão

sobre a meditação autobiográfica de SamuelDelanay, o artigo de Scott interessa não apenas aosestudiosos de gênero, nem apenas aos historiado-res (embora sejam estes seus interlocutores explíci-tos), mas também ao debate teórico das ciênciashumanas em geral. Se encontro nesse artigo a pro-messa bem cumprida dos estudos de gênero, ques-tão a que me referi no início, Scott fica nos deven-do maior extensão e precisão de frases muito joga-das, como “a linguagem é o local onde a história éencenada”. Muitos talvez sentir-se-iam à vontadepara inverter esta frase.

No artigo seguinte, Maria Ignez S. Paulillocontesta o que ela designa como maniqueísmometodológico, ou seja, a dicotomização entre ospositivistas e os não positivistas, e desafia algunsdos pressupostos feministas em sua rejeição aopositivismo. Rebatendo a associação entrepositivismo e método quantitativo, ponto alto doartigo, a autora chama a atenção para os aspec-tos importantes de muitas contribuições cujos au-tores foram taxados de positivistas pela preocupa-ção com o rigor das inferências e de demonstra-ções, por exemplo. É na relação entre objetivida-de e subjetividade que parece estar colocada aênfase do artigo. Em primeiro lugar, ao criticar adefesa da subjetividade na elaboração do conhe-cimento científico a autora diz que esse pressu-posto acaba adquirindo um estatuto tão universalquanto aquele que a objetividade teria para ospositivistas.

Em segundo lugar, ela expressa sua dúvidasobre a capacidade atribuída à ciência, uma vezsubjetivada, a decidir sobre valores. O que consti-tuiria um falso passaporte para posturas críticas. Oartigo, pela clareza e pela pontuação da crítica,abre um debate importante e que precisa seraprofundado. Inclusive porque a relação — entreobjetividade e subjetividade — que muitos acha-ram possível resolver com a intersubjetividade, coma objetivação da subjetividade ou com outras com-binações mais recentes, ainda constitui um pro-blema a resolver. E se ainda é necessário situarmelhor a discussão crítica em relação ao feminis-mo, ela seria voltada à teoria feminista? às teoriasfeministas? a uma ou a algumas perspectivas teó-ricas que as orientam?

O artigo de Claudia de Lima Costa situa-seexatamente numa discussão de crít ica aopositivismo (afirma inclusive sua derrocada desdeos anos 60) e tem como tema o debate em tornoda etnografia regida pela poética do poder, queconforme a autora deixaria em segundo plano

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uma política de poder no campo, particularmenteproblematizada a partir de uma perspectiva femi-nista. Entendendo que o feminismo deriva sua te-oria de uma prática fundamentada namaterialidade da opressão sofrida pelas mulheres(p. 78), Claudia de Lima Costa nos remete a algu-mas das tensões entre antropologia e feminismo,entre o trabalho de campo e o da escrita, entreuma genealogia masculina na antropologia e acontribuição de etnografias feministas, bem comoaos impasses políticos da representação daalteridade. O artigo é instigante. Principalmenteno critério que usa para a distinção entre a boa ea má etnografia, o qual se desloca dos procedi-mentos de condução da pesquisa e da escritapara sustentar-se no vínculo com o projeto ético-político que a sustenta. Mais especificamente aosugerir práticas etnográficas alternativas, geradaspor uma imaginação feminista (p. 94). E aindaporque complexifica seus próprios pressupostos eos dos textos com os quais dialoga. Entretanto, emalguns momentos, ao referir-se ao cânone antro-pológico, o artigo deixa de considerar os várioscontextos de embates, clássicos ou contemporâ-neos, nos quais a antropologia se constitui. Assim,supõe como canônico o que alguns debates ele-gem como tal. Além do mais, creio que é precisorepensar afirmações como “a atitude imperial deMalinowski de falar com a voz do outro”. A leiturade Os Argonautas do Pacífico Ocidental e deBaloma: o espírito dos mortos, mesmo para os crí-ticos de Malinowski e do contexto colonial ondesua etnografia se fez possível, revela a preocupa-ção com a transcrição (com minuciosa atençãolingüística) dos mitos e das fórmulas mágicas dostrobriandeses, com a viva descrição de suas cren-ças, que adquirem plena realidade na visita dosmortos às aldeias dos vivos, com a descrição mi-nuciosa da técnica de construção das canoas edas trocas intertribais. Essas etnografias permitiramcontestar pressupostos gerais sobre os “primitivos”,bem como o caráter universal de um valor históri-co (próprio do universo social do autor), o da lógi-ca estritamente econômica da troca. Efeitosconceituais e políticos nada desprezíveis, particu-larmente na época em que essas obras forampublicadas.

Também em outros momentos a discussãosobre uma “genealogia feminina” na antropologiaou sobre uma “tradição feminina de escritaetnográfica alternativa” deixa de levar em contaque a trajetória da antropologia é marcada porescritas bem convencionais de antropólogas e

escritas bem alternativas de antropólogos. O en-contro da antropologia com a literatura — na obrade Leiris por exemplo — resulta numa escrita an-tropológica “não canônica”. Seria feminina? Paraquem já leu Sexo e Temperamento, de Mead, aleitura do outro texto da mesma autora, escritoanos depois, “Macho e Fêmea”, é desconcertante.No primeiro, através de uma etnografia de trêssociedades relativamente adjacentes, Mead mos-tra a arbitrariedade de valores como feminino emasculino em relação à diferença biológica dosexo. Ou seja, não haveria uma conformidade,nem uma continuidade, entre o sexo biológico e oque a sociedade lhe atribuía como valor. Ou seja,não haveria uma conformidade nem uma conti-nuidade entre o sexo biológico e o que a socieda-de lhe atribuiria como valor. Assim, a divisão detrabalho e as qualidades que compõem as pesso-as, como exemplos, dependeriam deste valor cul-tural (o lugar destinado ao gênero) e não do sexobiológico. Essa perspectiva mais arrojada se perdeno livro de 1949. Embora mostrando como as so-ciedades investem culturalmente nos corpos e nosgestos das crianças para torná-las homens oumulheres, e em várias partes do mundo, Meadnão repõe com a mesma ênfase o argumentoanterior e vai buscar as lições que a ciência pode-ria dar em benefício da complementaridade (emoposição à competitividade) entre os dois sexos eseus diferentes “dons” (o termo é dela). Trata-seaqui mais de integrar as diferenças a serviço dahumanidade. Ou seja, reconhecemos nesse se-gundo livro de Mead o contexto político da época(logo após o final da Segunda Guerra Mundial).Enfim, genealogias e gerações, e mesmo gênero,parecem pedir para serem lidos em seus sentidos,raramente presumíveis a priori, de um contextocomplexo de relações.

A densidade do artigo de Claudia de LimaCosta, a amplitude de sua discussão bibliográfica,sua reflexão criativa no campo do feminismo eprincipalmente a contestação de umasupervalorização da poética do poder são umconvite aos interessados numa interlocução esti-mulante. Aliás, o pressuposto nuclear do artigo éretomado num dos capítulos da última parte, “Lei-turas”, no qual Simone Pereira Schmidt, a partir deduas páginas poéticas dedicadas à celebraçãoda vulva, no caderno Mais! (suplemento da Folhade São Paulo), de julho de 1997, afirma: “diferen-temente do que pensa Costa, pretendo defendera eficácia política de uma poética do lugar”. As-sim, como eu indicava no início, não só o encade-

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amento dos artigos sugere um debate. Há tam-bém um debate explícito. O que ainda mais reco-menda esse livro.

Mas, voltemos à seqüência do livro. O artigoseguinte ao de Lima Costa é “A pesquisa comoprática de cuidado na emancipação da Mulher”.Nele, Alcione Leite da Silva defende o que o pró-prio título indica. Remetendo aos efeitos da críticafeminista a um modelo de ciência (particularmen-te a objetividade, a verdade e a separação entreteoria e prática), a autora situa seu referencialnuma vertente feminista pós-moderna. Em fun-ção disso, explicita em seguida a definição defeminismo que defende, ou seja “um compromis-so político, uma consciência, uma forma de pen-samento e uma práxis” (p. 106). Depois, qualifica ofeminismo, o pós-moderno. Uma vez situada suaperspectiva, a autora refere-se maisdetalhadamente a sua sugestão da pesquisa comoprática de cuidado. Como tal, a pesquisa se des-locaria de uma preocupação com o avanço doconhecimento ou da resolução de uma questãoempírica para o compromisso entre a pesquisado-ra e as participantes. Nesse encontro, afirmadocomo dialógico, o propósito fundamental seriaestimular uma reflexão sobre a vida cotidiana, so-bre os processos políticos e sociais, numa relaçãode reciprocidade e intimidade, no estímulo à mu-dança. A autora, durante o artigo, vai explicitandoo que seria a qualidade da pesquisa proposta,através inclusive de noções como emancipação,ativismo político, espaço para o desejo e aberturade esperanças e possibilidades. Ou seja, a pesqui-sa como “instância de emancipação política esocial” (p. 116), ou ainda como meio para a cria-ção de “comunidades transformadoras de dife-renças” (p. 114). Não é a primeira vez que a pes-quisa é afirmada como meio para a prática políti-ca (aquela, por exemplo, que já foi chamada depesquisa-ação). Mas nesse artigo, a incógnita é oestatuto da noção de conhecimento. Pois se “opapel da pesquisadora deixa de ser avançar oconhecimento ou de resolver uma questãoempírica” (p. 110), e se um dos desafios para apesquisa feminista é que não “há clareza de comoconstituir um conhecimento de formaemancipatória” (p. 115), ou ainda se a reação aoque é designado como “modelo científico tradici-onal” é uma pesquisa que difira do “modelo patri-arcal”, tudo indica, estamos também diante deum diálogo com os “modelos” e com conheci-mentos científicos.

O último artigo dessa primeira parte, “Identi-dade: a fragmentação do conceito”, sintetiza al-

guns dos impasses em torno de identidade na te-oria social e ressalta a importância do recurso àpsicanálise. Esse recurso, conforme a autora, MaraCoelho de Souza Lago, permitiria tornar mais com-plexa a noção do sujeito como construção cons-ciente considerando a de sujeito inconsciente e ade sujeito do inconsciente (p. 122). Nessa pers-pectiva — no que se desloca para a noção “deconstituição simbólica do sujeito enquanto signifi-cado pela cultura” — não caberiam as dicotomiassociedade/indivíduo/cultura. A identidade, comoconstrução imaginária e organização ficcional, nãosuporia a separação entre um eu e a sociedade ea cultura (no que a autora tem razão, pois muitasteorias a efetuam e assim criam para si mesmas osproblemas de como juntar o que foi separado),nem a fragmentação do sujeito particular em suarelação com a fragmentação e a multiplicidadedo social. A identidade seria assim concebida comohistória de vida, com um mínimo de coerência eunidade interna imaginária.

O argumento é estimulante para os que sevêem diante das teorias que ainda procuram res-guardar o conceito de identidade, ou diante da-quelas que praticamente o dissolvem; para os queainda não se convenceram de que as redes objeti-vas em que se situam os agentes seriam suficientespara tornarem mais compreensíveis as trajetóriasde sujeitos particulares e os sentidos dessas trajetó-rias. Mas também no que nos incita a continuarmoscolocando sob suspeita o que Scott, em seu artigonesse livro, chama de evidência e autenticidadedas experiências e de naturalização e universalida-de de categorias “como homem, mulher, preto,branco, heterossexual ou homossexual ao tratá-lascomo características inerentes aos indivíduos” (p.30). Entretanto, nesse particular, o artigo de SouzaLago apenas indica algumas boas perguntas (inclu-sive sobre a identidade de gênero dos transexuais)e no final pára nos limites de uma perspectiva daidentidade como atribuição social. No plano políti-co, onde boa parte das identidades travam suaafirmação, a atribuição não apenas é uma daspedras do tabuleiro onde o jogo se faz, mas tam-bém, e principalmente, ela própria pede a conside-ração sobre relação entre atribuição e a auto-atri-buição, as mediações que sustentam as pertinênciase os repertórios narrativos disponíveis para a “cons-trução imaginária e organização ficcional”.

Na segunda parte do livro, “Análises”, os arti-gos tratam de políticas públicas e de saúde, escri-tos por Eva Alterman Blay, Clair Castilhos Coelho,Estela Maria Leão de Aquino; sobre a criminalizaçãode práticas abortivas, por Joana Maria Pedro; so-

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bre novas formas de paternidade, por Maria JuracyToneli Siqueira; sobre a incursão da medicina nodebate sobre a sexualidade no início do século noBrasil, por Maria Bernardete Ramos Flores; e sobreos desafios teóricos da corporalidade postos pelasações dos transgender, por Sônia Weidner Maluf.

Na terceira e última parte, “Leituras”, os arti-gos tratam de diários femininos, como faz o deMaria Teresa Santos Cunha; de uma nova matriznarrativa sobre paternidade e maternidade na lite-ratura feminista contemporânea, como o escritopor Susana Bornéo Funck; de um poema de Viníciusde Moraes como meio de entender as contradi-ções da masculinidade definida como machismo,numa leitura de Tânia Regina Oliveira Ramos; efinalmente de uma belíssima incursão, a de ZahidéLupinacci Muzart, no diário em formas de cartas àfilha escrito por Calamity Jane, pessoa-persona-gem do Velho Oeste.

Como se pode ver, o campo de estudos degênero e do feminismo é amplo, as Falas de Gêne-ro são múltiplas e ressoam em lugares e linguagensdistintos. Em algumas linguagens, recusa-se àstotalizações prévias e naturalizadas, que em outrasse fazem presentes. Em alguns lugares, os pressu-postos feministas aceitam o desafio de que “a iden-tidade é um mau sistema visual” (Haraway); emoutros ainda “se estabelece de forma incontroversaa identidade das mulheres como pessoas com

agenciamento” (Scott). Como diz Scott, sabemosque a diferença existe mas ainda estamos diantedo desafio de entendê-la como constituídarelacionalmente. Mesmo porque, como reclamaStrathern, estamos também aprisionados a ummodelo relacional que supõe que relações são re-lações entre entidades concretas e entre pessoas.

Assim, enquanto as pesquisas e discussõessobre (e entre) gênero e feminismo continuam,lembremos o desabafo ainda nada anacrônico(para o bem e para mal) de Simone de Beauvoirsobre sua insatisfação quando, falando como in-telectual, era interpelada naquele contextodialógico em sua condição de mulher. Assim comoa personagem Marianne que, lembremos também,desabafa dizendo: “no futuro, se qualquer um meexplicar como eu sou — seja para me fragilizar oupara me tornar mais forte — eu não admitirei maisuma tal insolência”. Essa é uma bela esquina ondepodem, quem sabe, se encontrar, os estudos degênero e as teorias feministas; as teorias, as análi-ses, as leituras e os atos.

1 HANDKE, Peter. La femme gauchère. Paris: Gallimard,1978, p. 34-35. Tradução minha.2 Escrita pelas organizadoras da coletânea.3 Escrito por Miriam Grossi.

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TTTTTransformações nas relações de gêneroransformações nas relações de gêneroransformações nas relações de gêneroransformações nas relações de gêneroransformações nas relações de gênero

Os Novos Desejos: Das academi-as de musculação às agências deencontros

GOLDENBERG, Mirian (org.).GOLDENBERG, Mirian (org.).GOLDENBERG, Mirian (org.).GOLDENBERG, Mirian (org.).GOLDENBERG, Mirian (org.).

Rio de Janeiro: Record, 2000. 192p.Rio de Janeiro: Record, 2000. 192p.Rio de Janeiro: Record, 2000. 192p.Rio de Janeiro: Record, 2000. 192p.Rio de Janeiro: Record, 2000. 192p.

Os Novos Desejos, coletânea organizada pelaantropóloga Mirian Goldenberg, reúne seis artigosque têm como proposta discutir as transforma-ções nas relações de gênero, tomando como palcoo dia a dia da cidade do Rio do Janeiro. O livrorevela diferenças significativas nas formas pelasquais homens e mulheres vivem seus cotidianos,analisando valores e concepções que orientam

práticas e visões de mundo dos universos sociaisobservados.

As questões que emergem dos estudos apre-sentados são relevantes para um entendimentomais abrangente da cultura brasileira, contribuin-do, pela observação das diferenças de estilos devida, para ampliar a discussão referente ao cam-po da antropologia urbana.

Além de dois artigos de sua própria autoria,Mirian Goldenberg trouxe a público quatro traba-lhos de alunos do Programa de Pós-Graduaçãoem Sociologia e Antropologia do Instituto de Filo-sofia e Ciências Sociais da Universidade Federaldo Rio de Janeiro. Todos se destacam pelas quali-dades inerentes às investigações de Goldenberge a seus ensinamentos como professora deMetodologia Científica: a leitura do significado dasrelações sociais, o entendimento de valores e re-presentações, a descrição das práticas em sua

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diversidade, o desenho de sistemas classificatórios,a captação do ponto de vista dos atores sociaisnas redes da cultura.

São expressivos os problemas abordados,cuja atualidade e relevância se confirmam emdistintas instâncias sociais. Parte das problemáti-cas científicas de prestígio, já legitimadas dentroda academia como objeto de estudo, as questõesde gênero não mais preocupam exclusivamenteo universo de militantes e feministas. Em torno dasrelações entre homens e mulheres existe um gran-de espaço de debate na mídia, e a diversidadedessas manifestações é indicadora de sua impor-tância social.

A produção científica sobre gênero teve etem grande impacto na desconstrução de estere-ótipos ligados a uma suposta essência ou nature-za feminina. Situar a questão na especificidade dosocial, como a produção científica vem realizan-do, significa “desnaturalizar” os fenômenos, ou seja,mostrar que fatores como atitudes, comportamen-tos, gostos, relações entre homens e mulheres sãofenômenos histórica e socialmente construídos enada têm de naturais, pois pertencem ao campoda cultura e dos sistemas de relações.

O livro organizado por Mirian Goldenberg éparte desse debate e dessa história de investiga-ções e, por isso mesmo, conduz o leitor a umavisão mais complexa e multifacetada da realida-de. Vale frisar que parte das perguntas que condu-zem os pesquisadores ao campo são universais edesde sempre fizeram parte do jogo e das inquie-tações teóricas ou existenciais. O que querem oshomens e as mulheres? Quais as diferenças e se-melhanças entre os desejos e as experiências dehomens e mulheres? O que é ser mulher ? O queé ser homem?

Essas e outras perguntas direcionam o olhardo pesquisador para as tensões da convivênciaentre “novos” e tradicionais modelos de masculini-dade e femininidade, causas das fricções e dosconstrangimentos vivenciados na atualidade.

Discutindo as transformações de papéis en-tre homens e mulheres, os autores, através dedescobertas e aproximações sucessivas, foram fo-calizando tanto as mudanças de valores quanto apermanência de outros que persistem, ambosigualmente atuais.

Dividindo o livro em duas partes, a autoradiscute, na primeira delas, a “(des) construção” domasculino, reservando a segunda parte aos pa-péis femininos, tanto no espaço público quantono mundo privado. Depois de décadas de estudospreferencialmente dedicados às mulheres, obser-

vamos hoje um interesse intenso sobre “o homemem crise”. São matérias escritas em jornais e revis-tas que foram tomadas como empiria para a cons-trução do objeto de pesquisa.

A pesquisadora circula igualmente bem tantonas artes da observação participante quanto nastécnicas de pesquisa quantitativa. Advoga, inclusi-ve, a importância de integrar na análise os dois mé-todos, tendo em vista maior compreensão dos fenô-menos sociais, a partir dos cruzamentos de dadosconstruídos pelo pesquisador. Essa é uma discussãoatual sobre a qual, em outro momento (em A Arte dePesquisar), foi do interesse da autora refletir.

No artigo “Um macho em crise”, a pesquisado-ra analisa matérias de jornais e revistas de grandecirculação, trazendo para sua análise dados da pes-quisa que vem realizando desde 1998, que abrangeaproximadamente 1300 homens e mulheres.

Concluindo o artigo, a autora esclarece quea década de 90 privilegia a reflexão sobre o ho-mem, da mesma forma que em 60 e 70, esseprivilégio pertenceu à mulher. A reflexão apresen-tada por Mirian Goldenberg gira em torno de umatemática que, segundo a pesquisadora, não per-tence apenas ao contexto acadêmico, mas ocu-pa obsessivamente a mídia. A pesquisadora tomaesses assuntos, recorrentes na mídia, imprimindoum outro tratamento, distante das análises apres-sadas. Por outro lado, é interessante registrar quea antropóloga é com muita freqüência convidadaa debater esses assuntos, tanto na imprensa escri-ta quanto na televisa, para um grande número depessoas fora das fronteiras acadêmicas. Merecedestaque, portanto, o fato de que suas contribui-ções extrapolam os muros da universidade: assim,suas interpretações sobre a sexualidade, aconjugalidade e gênero são socializadas no con-texto dos meios de comunicação de massa. Nes-se sentido seu trabalho de pesquisa adquire umadimensão sociocultural mais ampla, ao atingir umgrande número de “leitores” que se apropriam deseus trabalhos.

Como serão interpretados seus argumentose suas teses através das práticas leitoras dessepúblico mais amplo, por definição heterogêneo,com suas competências diferenciais e específi-cas? Essa interrogação me leva a pensar em ques-tões ligadas à teoria da leitura e problemas que eumesma enfrento em minhas pesquisas atuais so-bre a formação do leitor. Sem querer aprofundar,sinto, entretanto, que se coloca um problema in-teressante na linha da investigação sobre práticasleitoras. Roger Chartier diz que “não existe nenhumtexto fora do suporte que o dá a ler, que não há

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compreensão de um escrito, qualquer que seja,que não dependa das formas através das quaisele chega ao seu leitor”.

Uma das inúmeras perguntas que me ocorrepoderia iniciar uma outra pesquisa. Como circulana sociedade a produção científica legitimada nointerior da academia? Quais seus efeitos sobre asrelações sociais?

Voltando ao primeiro texto de MirianGoldenberg, quais os pontos emergentes? Comoa chamada “crise da masculinidade” é percebi-da? Trata-se de crise ou de outra forma de viver ospapéis masculinos? Outras possibilidades de exer-cício da paternidade e de direitos a serem con-quistados pelos homens?

Mesmo sendo considerados casos restritos,é ampla a discussão sobre homens que lutam pelaguarda de filhos e que cuidam deles sozinhos. Afigura distante, violenta e não participativa de paidá lugar à dimensão do afeto demonstrado, aocompanheirismo, ao uso do tempo em função dadedicação maior aos filhos, mesmo que em detri-mento de maior dedicação ao sucesso profissio-nal e financeiro.

Esses valores não só aparecem através deexemplos citados na mídia como também são es-timulados tendo em vista formas mais prazerosasde paternidade participativa. Como diz MirianGoldenberg, entre outras constatações referentesàs novas possibilidades de “ser homem” abrem-sealternativas de comportamentos maisdescontraídos, como o uso de cosméticos, as ope-rações rejuvenecedoras, os adereços. A modela-gem do corpo é um caminho também aberto aosexo masculino.

As alternativas postas são vividas por vezescom um certo pânico. As contradições e os valo-res conflitantes são interpretados por MirianGoldenberg através da metáfora do“desmapeamento”, utilizada por Sérvulo Figueirapara indicar a coexistência de códigos contraditó-rios no sujeito, gerados no processo de moderniza-ção da sociedade. O moderno e o arcaico convi-vendo em níveis dissociados.

A antropóloga nega a versão de crise paraos efeitos de mudança em curso. De fato não sepode mais pensar na hegemonia do típico ma-chão, pois existem hoje muitas vias para o exercí-cio da masculinidade. Nesse quadro, fica reitera-da a hipótese de identidade de gênero como cons-trução histórica e social.

Com o instigante título “De Amélias à operá-rias”, a antropóloga apresenta um ensaio que visaa discutir os conflitos de mulheres economicamen-

te ativas, tanto no mercado de trabalho quantonas relações de conjugalidade. Pontos relevantescomo o crescimento proporcional das mulhereseconomicamente ativas, a “feminização” da po-breza e a chefia familiar são analisados nesse tex-to em que Mirian Goldenberg comenta com agu-deza as queixas tanto de homens quanto de mu-lheres sobre os efeitos perversos das transforma-ções do papel da mulher.

Os conflitos entre os sexos são vistos comointensificados com a chamada libertação femini-na. De um lado as mulheres reclamam da falta dehomens e de outro os homens sentem-se pressio-nados pelas crescentes exigências femininas. Aautora leva ao leitor outras idéias para a discussãodas lutas entre os gêneros. No lugar das categori-as tão caras às feministas, como a igualdade e osdireitos da mulher, ela propõe o “respeito à dife-rença e ao espaço do outro, negociação diária,diálogo permanente, troca, crescimento mútuo”.Essas são modalidades dos que reinventam a par-ceria amorosa, nos segmentos médios, a partir docotidiano e não necessariamente tendo em vistaa reprodução de grandes modelos sociais.

Os demais artigos incluídos no livro foramselecionados pela relevância de suas contribui-ções para a discussão de gênero. Marcelo SilvaRamos pergunta-se sobre “o que mudou e o quepermaneceu em relação aos papéis de gênero”,montando sua reflexão tendo em vista matériasveiculadas na mídia escrita. Ao comentar a supos-ta crise de identidade masculina, enfatiza a impor-tância de associá-la às idéias de multiplicidade,plasticidade e flexibilidade de gênero. Cesar Sabinovisa a compreender as representações sociais epráticas de freqüentadores de academias demusculação, apostando que tais práticas de cons-trução do corpo são reprodutoras das desigualda-des de gênero. Sua etnografia é feita em acade-mias da zona norte da cidade do Rio de Janeiro,ressaltando aspectos das técnicas corporais utili-zadas para a intervenção no corpo humano ten-do em vista a produção de determinados padrõesde estética, segundo um esquema classificatórioque permite um olhar para o ethos masculino pre-ponderante nas academias de musculação.

Erika Souza Vieira pesquisa as agências deencontros, cujos clientes buscam formas alternati-vas de busca de parceiros. Como funcionam es-sas agências? Quais os motivos que levam ho-mens e mulheres a desistir das maneiras mais co-nhecidas de escolha de parceiros? Quais as ope-rações sociais em jogo? Quem são os clientes equais as suas expectativas? Seu trabalho não só

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produz conhecimento sobre o fenômeno em pau-ta como também contribui para as discussões re-lativas aos padrões de conjugalidade e para asreflexões sobre os estudos demográficos no Brasil,revelando outras faces da solidão feminina.

Renata de Melo Rosa tem como objetivo in-vestigar o imaginário de gênero, trabalhando aquestão do “parceiro desejável”. Com essa inda-gação ela investigou doze mulheres, negras e bran-cas, moradoras da zona norte e oeste do Rio deJaneiro. Uma peculiaridade era comum a todas:desenvolverem relacionamentos afetivos com es-trangeiros loiros e de olhos azuis. Símbolo de as-censão social, tal escolha passa por diferenças

internas à constituição do casal analisado, consi-derando, entre outros aspectos, as questões “raci-al”, de gênero e de identidade nacional.

A qualidade das pesquisas apresentadas, aescrita acadêmica e ágil, a consistência das aná-lises, a atualidade dos temas e a contribuição queo livro organizado por Mirian Goldenberg repre-senta para os estudos de gênero faz de NovosDesejos leitura obrigatória para os pesquisadoresda área e para todos aqueles curiosos sobretemáticas da atualidade da cultura brasileira.

TANIA DAUSTER TANIA DAUSTER TANIA DAUSTER TANIA DAUSTER TANIA DAUSTER !!!!!