um esboÇo sobre o sistema de movimento de ......sistema de movimento de transporte público... -...

21
Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 261 UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE TRANSPORTE PÚBLICO E AS AMBIVALÊNCIAS DA MOBILIDADE URBANA NA CIDADE DO RECIFE Diana Cecília de Souza 1 RESUMO Neste artigo, busca-se refletir sobre alguns aspectos que permeiam a mobilidade urbana na cidade do Recife, tendo como foco seu sistema de movimento de transporte público. Para tanto, faz-se inicialmente uma reflexão sobre a gênese da imobilidade urbana atual e, em seguida, tecem-se algumas considerações sobre a crise do sistema de transporte público e as ambivalências da mobilidade urbana no Recife. Palavras-chave: Sistema de movimento, transporte público, mobilidade, Recife. ABSTRACT In this article, we try to reflect on some aspects that permeate the urban mobility in the city of Recife, focusing on its public transport system of movement. Thus, it was initially a reflection on the genesis of the current urban immobility and then to weave some considerations about the crisis of the public transport system and the ambivalence of urban mobility in Recife. 1 Mestra e Licenciada em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco. É professora da rede estadual de ensino em Pernambuco e, atualmente, encontra-se cedida à Universidade de Pernambuco - Campus Garanhuns, onde leciona no Curso de Licenciatura em Geografia. ([email protected])

Upload: others

Post on 17-Nov-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 261

UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE

TRANSPORTE PÚBLICO E AS AMBIVALÊNCIAS DA

MOBILIDADE URBANA NA CIDADE DO RECIFE

Diana Cecília de Souza1

RESUMO

Neste artigo, busca-se refletir sobre alguns aspectos que

permeiam a mobilidade urbana na cidade do Recife, tendo como

foco seu sistema de movimento de transporte público. Para tanto,

faz-se inicialmente uma reflexão sobre a gênese da imobilidade

urbana atual e, em seguida, tecem-se algumas considerações

sobre a crise do sistema de transporte público e as ambivalências

da mobilidade urbana no Recife.

Palavras-chave: Sistema de movimento, transporte público,

mobilidade, Recife.

ABSTRACT

In this article, we try to reflect on some aspects that permeate the

urban mobility in the city of Recife, focusing on its public

transport system of movement. Thus, it was initially a reflection

on the genesis of the current urban immobility and then to weave

some considerations about the crisis of the public transport

system and the ambivalence of urban mobility in Recife.

1 Mestra e Licenciada em Geografia pela Universidade Federal de

Pernambuco. É professora da rede estadual de ensino em Pernambuco e,

atualmente, encontra-se cedida à Universidade de Pernambuco - Campus

Garanhuns, onde leciona no Curso de Licenciatura em Geografia.

([email protected])

Page 2: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 262

Keywords: Motion System, public transport, mobility, Recife.

1. Introdução

Dada a expansão do meio técnico-científico-

informacional, construíram-se os sistemas técnicos necessários à

realização da produção e das trocas globalizadas, destacando-se,

nestes, os sistemas de movimento do território - conjunto

indissociável de sistemas de engenharia (fixos) e de sistemas de

fluxos (materiais e imateriais) que respondem pela solidariedade

geográfica entre os lugares (CONTEL, 2006). Neste contexto,

ressalta-se a importância dos sistemas de movimento de

transporte público de passageiros na organização espacial das

cidades, destacando-se o seu papel na questão da mobilidade

urbana. Esta é assunto de pauta da atualidade, pois a falta de

investimento no sistema de transporte público, associada ao

expressivo aumento do número de automóveis em circulação, na

última década, fez parar as grandes cidades. Embora a gênese da

atual imobilidade urbana seja antiga, somente em 2013, com os

eventos da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, somado às

manifestações, em que o transporte era uma das principais

reivindicações, é que governantes passam a ver o transporte

Page 3: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 263

público como prioridade, viabilizando a política nacional de

mobilidade urbana, cujos desdobramentos ainda estão por vir.

Nesta conjuntura, busca-se aqui refletir sobre alguns

aspectos que permeiam a mobilidade na cidade do Recife, tendo

como foco seu sistema de transporte público, fazendo-se

inicialmente uma reflexão sobre a gênese da imobilidade urbana

atual e tecendo-se algumas considerações sobre a crise do sistema

de transporte público e as ambivalências da mobilidade urbana no

Recife.

2. A Gênese da imobilidade urbana atual é antiga, só não

afetava a todos!

Nas cidades brasileiras, configurou-se um sistema de

transporte público de passageiros, constituído pelas modalidades

ônibus, metrôs e trens, sendo o primeiro modal a sua espinha

dorsal, responsável pelos deslocamentos da maioria das pessoas

que vive nas cidades. Embora este transporte público represente a

única possibilidade de ir e vir de grande parte da população no

espaço urbano, a falta de prioridade e de investimentos neste

segmento há muito tempo compromete a mobilidade daqueles

que dele depende exclusivamente.

Page 4: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 264

Um breve olhar sobre a origem e a evolução dos

transportes públicos no Brasil, mostra-nos como este sempre

esteve em segundo plano. Na década de 1950, o país ainda não

tinha uma estratégia para os seus transportes públicos. Funda-se a

PETROBRÁS e se implanta a política de criação de uma

indústria automobilística, visto que o aumento nas importações de

veículos e petróleo no pós-guerra gerou problemas com a balança

comercial. A indústria automobilística nacional – na verdade

dominada por empresas multinacionais – passou a representar

progresso e desenvolvimento para o país. Neste sentido,

governantes e técnicos priorizaram o uso do automóvel no espaço

urbano, procurando adaptar as cidades, com a construção de vias

expressas, túneis e viadutos, para receberem um número cada vez

maior de automóveis.

Nesta época, os bondes, que se encontravam em situação

decadente, foram sendo gradativamente extintos em todas as

capitais brasileiras. Segundo Stiel (1984), os bondes foram se

extinguindo por serem um entrave para a indústria

automobilística e petrolífera. Nas palavras do referido autor, a

extinção do bonde elétrico: “[...] foi habitualmente forçada pela

crescente e devastadora presença do transporte individual,

admitido na década de 1960 como a solução definitiva da

mobilidade urbana”.

Page 5: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 265

Nas décadas de 1960 e 70, na cidade de São Paulo, o

Estado direcionou a política de circulação urbana no sentido de

privilegiar o papel do motorista, ou melhor, da classe média

enquanto motorista, conforme explicita Vasconcelos:

[...] a política de circulação vai privilegiar o

papel da classe média enquanto motorista, em detrimento do papel do proletariado enquanto

passageiro de ônibus, mostrando que nem

todas as mercadorias em trânsito tiveram o

mesmo tratamento. (VASCONCELOS, 1991, p.44)

As décadas de 1960 e 1970 marcaram a fase inicial do

processo de metropolização nas grandes cidades brasileiras. Estas

passaram por um intenso processo de crescimento, fruto da

expansão populacional e industrial caracterizada por um modelo

de crescimento urbano baseado na existência de um centro e uma

periferia tentacular em permanente expansão, que em geral

seguiu os eixos viários. A posterior conurbação do núcleo

original em expansão com os núcleos urbanos vizinhos

completou este processo (LACERDA; ZANCHETI; DINIZ.

[2000?]).

Neste contexto, em 1973, o Governo Federal, na busca da

integração regional, no âmbito da perspectiva desenvolvimentista

do Estado brasileiro, institui as Regiões Metropolitanas no país e,

Page 6: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 266

nos últimos anos da década de 1970, época de regime militar,

marcada por uma cultura brasileira de planejamento centralizado,

com a implementação e a construção de uma política

metropolitana, passa-se a conceber o sistema de transporte dentro

de uma visão metropolitana. Decorre disso a construção de

grandes eixos para deslocamentos segundo uma lógica centro-

periferia.

Brasileiro (2002) ressalta que, do final dos anos de 1970

até o início dos anos de 1990, os deslocamentos eram tipicamente

pendulares - deslocamentos casa-trabalho - e, a concepção de um

espaço funcional, através de um planejamento de um sistema de

transporte organizado segundo a citada lógica, atendia

inicialmente a uma demanda cativa, que, com o passar do tempo

foi se diversificando e necessitando de novos serviços em função

das mudanças ocorridas na estrutura e funcionamento das

cidades. Com o crescimento das cidades, com surgimento e

crescimento de outros núcleos, com a intensificação das

atividades de comércio e serviços, os deslocamentos além de se

intensificarem, modificaram-se. Porém, com o passar do tempo as

empresas do setor de transporte não foram melhorando e nem

ampliando os serviços prestados, acomodadas que eram com uma

demanda praticamente cativa há anos, e o órgão gestor de

transporte coletivo também não o priorizou.

Page 7: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 267

E na configuração do espaço urbano, os interesses

imobiliários produzem um espaço cada vez mais disperso e

rarefeito, levando a desníveis tanto em termos de densidade como

de qualidade de equipamentos e de serviços de consumo coletivo.

Assim, a forte especulação imobiliária expulsou as camadas

pobres para áreas cada vez mais periféricas, carentes de infra-

estrutura e de serviços, fazendo-as percorrer grandes distâncias

para chegar ao seu local de trabalho, tornando-as totalmente

dependente do transporte público e cada vez mais distante do

direito à cidade. Neste contexto, os anos se passaram e na política

de mobilidade, a estrutura da cidade é voltada para o transporte

individual, na medida em que a política de transporte público é

deixada de lado pelo poder público, cujas ações, na maioria das

vezes, estão articuladas com os interesses do capital que

produzem e reproduzem a cidade. Até recentemente, em prol do

crescimento econômico do país, o Governo Federal, que hoje

investe em projetos de mobilidade urbana, incentivou (crédito,

IPI reduzido e facilidades de pagamento) a compra de

automóveis, como também de motocicletas.

Todavia, o sistema de engenharia para o automóvel não

tem mais como se expandir, daí o congestionamento inevitável e

a falta de mobilidade que afeta a todos, mas, sobretudo, os

pobres, tal como enfatiza Maricato:

Page 8: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 268

[...] é com a condição dos transportes que as

cidades acabam cobrando maior dose de

sacrifícios por parte de seus moradores. E embora a piora da mobilidade seja geral – isto

é, atinge a todos -, é das camadas de rendas

mais baixas que ela vai cobrar o maior preço em imobilidade (MARICATO, 2013).

O cerne desta problemática de mobilidade atual é a crise

do sistema de movimento de transporte público, que remonta de

várias décadas, traduzida pela falta de abrangência e ineficiência

quanto ao serviço prestado. A falta de pontualidade, os grandes

intervalos entre as viagens, a superlotação, a lentidão nos

deslocamentos, a falta de conforto, as altas tarifas, a falta de

informação, a saturação dos terminais de integração etc, têm

caracterizado este transporte nas últimas décadas. Mas, enquanto

ele não representava um empecilho aos fluxos econômicos e

somente a população dele dependente pagava um alto custo por

sua ineficiência, sempre fora deixado em segundo plano.

Esta crise do sistema de transporte público se tornou mais

explícita já nos anos de 1990, quando se intensifica

significativamente, nas grandes e médias cidades brasileiras, o

chamado transporte informal, realizando o transporte de

passageiros através de veículos de pequeno porte (kombis ou

peruas, vans, bestas, topics, motocicletas - mototáxis - e até

Page 9: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 269

mesmo automóveis particulares), que passam a atuar em paralelo

ao transporte coletivo por ônibus, com a ocupação dos centros

das cidades e dos grandes corredores viários. Tal fenômeno está

intrinsecamente atrelado não só ao contexto de crise

socioeconômica, iniciada nos anos de 1980, mas, sobretudo, à

crise do chamado transporte coletivo formal ou regulamentado,

crise esta que se perpetuou dos anos de 1990 aos dias atuais.

Associado a isto, o aumento expressivo do número de automóveis

em circulação, sobretudo neste último decênio, não só fez piorar a

situação da falta de mobilidade daqueles que sempre dependeram

do transporte público, mas de todos que transitam no traçado

viário das grandes cidades.

É neste contexto que se insere a cidade do Recife, onde,

similarmente a muitas outras cidades brasileiras, o sistema de

movimento de transporte público há décadas vem apresentando

claros sinais de esgotamento, sobretudo a partir dos anos de 1990,

quando da proliferação do chamado transporte informal.

Page 10: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 270

3. Os Sinais do esgotamento do sistema de movimento de

transporte público e as ambivalências da mobilidade urbana

na cidade do recife

Na cidade do Recife, o sistema de movimento de

transporte público há décadas vem apresentando sinais de

esgotamento. As empresas de ônibus não foram melhorando e

nem ampliando os serviços prestados, assim como o sistema

metroviário, além de não ser eficiente e nem abrangente - possui

uma rede pequena e atende a poucas áreas da Região

Metropolitana do Recife (RMR) - sempre foi esquecido, não

apresentando quase nenhuma intervenção que propusesse a sua

ampliação e melhorias de seus serviços.

Este esgotamento do sistema de transporte público se

tornou mais explícito, em especial a partir dos anos de 1995,

quando se intensifica o chamado transporte informal, realizando o

transporte de passageiros principalmente através das kombis e

vans. Houve uma ocupação dos centros das cidades e dos grandes

corredores viários não só de Recife, mas de toda a RMR, na qual

a atividade se expandiu, chegando a apresentar cerca de 7.000

veículos em circulação, cuja maior atuação se dava na capital. Tal

atividade foi encarada como um delito diante da série de

problemas que ocasionou nas áreas urbanas e, sobretudo por não

Page 11: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 271

se enquadrar nas normas regulares do transporte coletivo

convencional, fazendo-lhe uma concorrência acirrada (SOUZA,

2006).

Tanto no âmbito dos técnicos da área de transportes

quanto dos gestores públicos, costumou-se colocar o problema de

forma dicotômica: transporte informal (o clandestino, o pirata, o

ilegal, o irregular), considerado concorrente desleal e prejudicial

ao transporte dito oficial, versus transporte formal (o dito

convencional, oficial, regulamentado). No entanto, diante do

intenso crescimento do chamado transporte informal, Brasileiro

(1999) já destacava que esta oposição transporte informal

versus transporte formal é uma falsa questão, visto que, em

diversos países e cidades, observa-se a coexistência e a

articulação entre múltiplas formas de transportes coletivos. Neste

sentido, Brasileiro (2002) ressaltava que o grande desafio era

pensar uma rede de transporte no espaço metropolitano, buscando

uma articulação, uma integração, uma coexistência entre

múltiplas formas de transportes, com tecnologias diferenciadas,

desde a bicicleta ou a van até o metrô, com regulamentos

diferenciados, em função de tecnologias, de horários, etc., com

um modo de gestão diferenciado, com uma forma de organização

diferenciada. Esta rede deveria ser concebida e planejada pelo

Poder Público, podendo ser operada pelo setor privado, seja pelas

Page 12: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 272

empresas, quer seja pelos operadores de veículos de pequeno

porte (associados em cooperativas).

Contudo, tanto gestores públicos como grande parte dos

técnicos do setor de transporte não percebiam ou não queriam

perceber que, o que estava intrinsecamente associado ao

fenômeno da proliferação do chamado transporte informal era,

principalmente, a crise do chamado transporte coletivo formal ou

regulamentado. Grande parte dos técnicos, treinado sobretudo nos

anos de 1970 dentro de uma visão fortemente estatal de

construção de grandes corredores de transportes para ligar o

trabalho à casa, não viam que, com as crises dos anos de 1990, os

padrões de deslocamentos se modificaram, surgindo novos

hábitos, novas necessidades de deslocamentos, novas

possibilidades ofertantes de transporte para que a população

pudesse se deslocar. Havia a necessidade de mudança de visão do

segmento técnico.

De certo, o transporte, dito informal, configurou-se

enquanto alternativa aos deslocamentos da população,

propiciando-lhe mais mobilidade e, ao mesmo tempo,

representou, num contexto de crise socioeconômica, uma

alternativa de emprego (SOUZA, 2006). No âmbito do circuito

inferior (SANTOS, 1979) da economia urbana, pode-se apreender

que esta forma de transporte passou a atuar de forma

Page 13: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 273

complementar ao transporte coletivo convencional à medida que

atendia (e ainda atende em certas localidades) a uma demanda

que aquele não conseguia mais abarcar, apresentando algumas

vantagens comparativas como maior flexibilidade de itinerários,

tarifas, paradas, e não estando dissociado da oferta de transporte

como um todo. Entre ambas as formas de transporte, os ditos

informal e formal, havia e ainda há, portanto, uma

interdependência e uma complementaridade e não uma oposição,

uma dualidade, uma vez que um depende do outro e se

complementam2.

Diante da proliferação do chamado transporte informal na

cidade do Recife, o gestor público municipal junto ao estadual,

alinhado ao segmento técnico, que adotou uma postura dual face

ao problema, e, sobretudo, pressionado pelos empresários do

setor de transporte, que se vêem como “proprietários” do sistema

de transporte de passageiros, reprimiu e, posteriormente, depois

de quase uma década de intensa operação deste transporte,

praticamente o extinguiu da cidade do Recife, ampliando esta

ação para vários outros municípios metropolitanos através da

antiga Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos

2 Saliente-se também que, à medida que o circuito inferior constitui uma

estrutura de abrigo para aqueles desprovidos de capital e de qualificação

profissional, o transporte coletivo por veículos de pequeno porte representava

uma alternativa uma possibilidade de inserção no mercado de trabalho.

Page 14: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 274

(EMTU/Recife), que era responsável pelas linhas de ônibus

intramunicipais do Recife e intermunicipais do aglomerado

metropolitano3. Assim, volta-se à situação de monopólio das

empresas de transporte, eliminando-se o “grande vilão da

mobilidade” naquele momento: o transporte informal que finda

sua operação no Recife em 2003 sob forte fiscalização e com a

criação do Serviço de Transporte Complementar de Passageiros

do Recife – STCP/Recife (RECIFE, 2003). Evidentemente, fazia-

se necessário definir o papel do dito transporte informal no

quadro urbano. Todavia, a criação do STCP/Recife nem de longe

conseguiu abarcar a demanda de passageiros servida pela citada

atividade. O transporte complementar, desde os primórdios de sua

operação, já apresentava as mesmas mazelas que assolava e

assola o transporte coletivo no Recife há décadas.

Neste contexto, a despeito das promessas das empresas de

transporte por ônibus quanto à melhoria dos serviços prestados

diante da retirada das kombis e vans da cidade, poucos foram, se

houveram, os investimentos ao longo da última década no sistema

de transporte público do Recife. A isto, acresce-se ainda o

aumento expressivo do número de automóveis em circulação,

sobretudo neste último decênio, cuja frota cresceu 80% e, cerca

3 Após a extinção da EMTU/Recife, cria-se, em 2008, o Grande Recife

Consórcio de Transporte, empresa responsável por planejar e gerir o Sistema

de Transporte Público de Passageiros da RMR.

Page 15: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 275

de três mil novos carros entram em circulação a cada mês

(PASSOS, 2013), fazendo de Recife uma das capitais mais

congestionadas do país.

Hoje, reflexo de uma política nacional de mobilidade

urbana, Recife passa por um controverso processo de intervenção

pública, com a construção de vários equipamentos urbanos e com

a requalificação e a ampliação dos seus sistemas de engenharia

voltados para a mobilidade urbana marcada pela morosidade em

sua execução, devido a atrasos de muitas obras e de algumas nem

iniciadas. Durante todo esse processo, que ainda não se

concretizou, a população dependente do transporte público foi

quem mais padeceu e nunca viu tão comprometido o seu direito

de ir e vir na cidade.

No conjunto das ações implementadas, sob o rótulo da tão

propalada mobilidade, dentre aquelas voltadas para o transporte

público, como a construção de viadutos, elevados e terminais

integrados de ônibus, passarela que liga o aeroporto ao metrô, a

finalização de algumas obras do metrô, as quais já se arrastavam

por mais de décadas, destaque-se a requalificação e a ampliação

de corredores exclusivos para ônibus, com a implantação do

sistema BRT (Bus Rapid Transit) na Região Metropolitana do

Recife, denominado de Via Livre. Este sistema compreende dois

corredores: o Leste-Oeste (12 km), que liga o centro da cidade do

Page 16: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 276

Recife aos bairros e municípios metropolitanos situados a oeste, e

o Norte-Sul (33 km), que conecta o centro do Recife a municípios

metropolitanos ao norte. Ambos os corredores, cujas obras de

execução estão notadamente lentas, marcadas por improvisos e

atrasos, e ainda com indícios de irregularidades nos contratos, não

foram concluídos e nem entraram em funcionamento, mesmo

antes do evento da Copa do Mundo.

Paralelamente, em processo ainda incipiente, também vem

sendo demarcados corredores exclusivos de BRS (Bus Rapid

Service) para o transporte coletivo por ônibus na cidade do

Recife, denominados de Faixas Azuis, havendo hoje três faixas

implantadas, que totalizam cerca de 22 km. Já se fala em

diminuição do tempo de viagem nestas faixas, no entanto, urge a

necessidade de a Prefeitura do Recife implantar equipamentos de

fiscalização eletrônica para evitar a invasão das mesmas pelos

automóveis, fato que frequentemente vem ocorrendo.

Ressalte-se que, a implantação de corredores exclusivos

para o transporte público - o BRT e o BRS – tão mencionados na

atualidade, não são ideias novas. Cidades como Curitiba, São

Paulo, Rio de Janeiro e Recife, adotaram as faixas exclusivas

ainda nas décadas de 1970 e 1980. No Recife, por exemplo, as

primeiras faixas exclusivas foram implantadas na Av. Sul e na

Av. Caxangá, no início da década de 1980. Porém, estes

Page 17: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 277

corredores exclusivos foram esquecidos por 20 ou 30 anos em

várias cidades, a exemplo do Recife.

Ainda no conjunto de ações, no contexto da efervescência

dos projetos sob rótulo da mobilidade, outras iniciativas e

projetos também foram engendrados. Neste sentido, o governo do

Estado busca desenvolver o Projeto de navegabilidade do Rio

Capibaribe, cujo objetivo é tornar este rio uma hidrovia para

transporte público de passageiros, além da utilização turística

deste e de suas margens. O projeto prevê a intermodalidade deste

sistema de transporte fluvial com os demais modais de transporte

a partir de estações de embarque e desembarque de passageiros

com integração ao sistema de transporte urbano já existente.

No que tange ao transporte não motorizado, através de

bicicletas ou mesmo a pé, por exemplo, as iniciativas são de

pouca monta, pois estão muito aquém da possibilidade de prover

a cidade de uma infra-estrutura compatível com as necessidades

de pedestres e ciclistas. Hoje, as medidas tomadas pela prefeitura

foram as de instalar bicicletários em alguns pontos da cidade e

ciclofaixas móveis com funcionamento aos domingos e feriados,

das 7h às 16h. Trata-se de medidas pontuais e que não atingem a

população pobre, pois estas ciclovias móveis são instaladas em

áreas privilegiadas da cidade – que convergem para área central

do Recife – onde circulam as classes mais abastadas. Assim, tal

Page 18: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 278

iniciativa de simplesmente demarcar no asfalto as ciclovias com

temporalidade e áreas restritas, não favorece a mobilidade de

qualquer cidadão no espaço da cidade, mas representa, de certa

maneira, uma medida elitista, cuja intencionalidade é mais um

mote de propaganda política da gestão municipal para a classe

média do que de fato promover mais mobilidade para a

população.

Em meio a este controverso processo das atuais

intervenções públicas destinadas à mobilidade, em que se

preconiza o transporte público, contraditoriamente, na cidade do

Recife, finalizou-se uma grande obra viária – a Via Mangue –

cujo projeto data de mais de uma década e visa proporcionar

maior mobilidade à zona sul da cidade, privilegiando a fluidez

dos automóveis a partir desta via expressa.

Diante dessas ambivalências, questiona-se: Que

mobilidade se pretende para a cidade do Recife? Em que medida

as intervenções no sistema de movimento de transporte público

que está se configurando proporcionará de fato mobilidade à

maioria das pessoas que dele depende?

Page 19: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 279

4. Considerações finais

Em tempos atuais, é notório que a possibilidade para

desatravancar as cidades é tornar o transporte público eficiente.

Entretanto, mesmo diante da necessidade de priorizar este

transporte público, na cidade do Recife, percebe-se que, embora

várias iniciativas em prol da mobilidade urbana tenham sido

implementadas pelos governantes, no conjunto de medidas e

intervenções engendradas ainda prevalecem os interesses do

capital privado, sobretudo os imobiliários e os das empresas

prestadoras de transporte coletivo.

Para solucionar os problemas relacionados à mobilidade

na atualidade, é preciso que os gestores públicos assumam

realisticamente a prioridade que deve ser dada ao sistema de

movimento de transporte público, de forma que as necessidades

sociais não sucumbam aos interesses de uma minoria. É somente

desta maneira que este sistema de transporte pode passar a

representar um instrumento de justiça social, podendo conduzir

de modo mais racional o crescimento das cidades e das

aglomerações urbanas, tornando possível uma acessibilidade mais

equitativa à cidade e as suas possibilidades de emprego, de

cultura e de lazer. É uma questão política e não técnica!

Page 20: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 280

Referências

BRASILEIRO, Anísio. “Entrevista” In: ASSEMTU – Associação

dos Servidores da EMTU. Pensando o transporte do futuro.

Recife: 2002.

BRASILEIRO, Anísio. Informais, alternativos, clandestinos,

piratas, não regulamentados, ilegais, artesanais, concorrentes? In:

BRASILEIRO, A.; HENRY, E. (Org.). Viação Ilimitada.

Ônibus das cidades brasileiras. São Paulo: Cultura Editora

Associada, 1999.p. 33-36

CONTEL, Fabio B. Os sistemas de movimento do território

brasileiro. In: SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O

Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de

Janeiro: RECORD, 2002.

LACERDA, N.; ZANCHETI, S. M.; DINIZ, F. Planejamento

Metropolitano: Uma Proposta de Conservação Urbana e

Territorial. [ S. l.: s. n.], [2000?]

MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido! In:

___________ (et al). Cidades rebeldes: Passe Livre e as

manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1. Ed. São

Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013.

PASSOS, Tânia. Os donos das ruas, dos bairros e das cidades.

Até quando? Disponível em:

http://blogs.diariodepernambuco.com.br/mobilidadeurbana/2013/

11/os-donos-das-ruas-dos-bairros-e-das-cidades. Acesso em:

10/11/2013.

RECIFE. Lei Municipal No 16.856/2003. Dispõe sobre o Serviço

de Transporte Complementar de Passageiros do Município do

Recife – STCP/Recife. Disponível em:

<http://www.recife.pe.gov.br/pr/servicospublicos/complementar.

htm> Acesso em: Agosto, 2003.

Page 21: UM ESBOÇO SOBRE O SISTEMA DE MOVIMENTO DE ......Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza Revista Diálogos – N. 12 – Set. / Out. - 2014 264 Um breve olhar sobre

Sistema de Movimento de Transporte Público... - Souza

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. - 2014 281

SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da

economia urbana dos países subdesenvolvidos. Tradução de

Myrna T. Rego Viana. Rio de Janeiro: LIVRARIA FRANCISCO

ALVES, 1979.

SOUZA, Diana C de. As Territorialidades Flexíveis do

Transporte Alternativo na Cidade do Recife: Os Fluxos das

Kombis e Vans entre a Av. Caxangá e o Bairro de Boa Viagem.

Dissertação de Mestrado em Geografia. Recife: UFPE/DCG,

2006.

STIEL, Valdemar Correia. História do transporte urbano no

Brasil: história dos bondes e trólebus e das cidades onde eles

trafegaram. São Paulo: EBTU, 1984.

VASCONCELOS, Eduardo A. A cidade da classe média: Estado

e política de transporte. In: São Paulo em perspectiva - Vida e

poder na cidade de São Paulo. v.5, n.2, p. 38-46, abr-jun, 1991.