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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA - MAE LABORATRIO DE ESTUDOS SOBRE A CIDADE ANTIGA - LABECA

    UM DEUS A CU ABERTO: DINISOS E A EXPRESSO MATERIAL DO TEATRO NA PAISAGEM DA PLIS NA GRCIA ARCAICA E CLSSICA SEC. VI-III A.C

    Joo Estevam Lima de Almeida

    Teatro de Delfos. Fomte: Acervo Laky, 2009.

    Verso revisada.

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Arqueologia (PPgArq-MAE/USP) com vista a obteno do ttulo de mestre.

    Orientador: Maria Beatriz Borba Florenzano Linha de Pesquisa: Cultura material e Representaes simblicas em Arqueologia

    SO PAULO 2014

  • minha me, Helena, possuidora da mesma beleza e do nome da flama que um dia incendiou a

    esplendente Tria.

    In memorian.

  • AGRADECIMENTOS

    minha orientadora, Profa. Dra. Maria Beatriz Borba Florenzano, que

    semelhana de Palas Atena, ao dotar Ulisses de tino e sageza para vencer as duras

    imposies de Poseidon, me concedeu um elmo, lana e hplon para que realizasse esta

    pesquisa, desenvolvesse o meu tema e me lanasse a tentar desvendar a expresso

    material do exuberante Dinisos.

    Profa. Dra. Elaine Farias Veloso Hirata, por me fazer atravessar os trigais de

    Demter, pelos ensinamentos no momento da qualificao e pelo aprendizado nos

    tempos em que fiz parte da segunda gerao do Laboratrio de Estudos sobre a Cidade

    Antiga.

    Profa. Dra. Maria Cristina N. Kormikiari, a Tanit da bela Cartago, que com seu

    jeito calmo, leve e sorridente me ensina que o conhecimento uma trirreme lanada no

    azul de pntos para que possamos singrar o mar da Hlade.

    Profa. Dra. Maria Isabel dAgostino Fleming, Juno destes tempos a decifrar as

    margens argnteas de Tevere, com quem tive o prazer de conviver no transcurso da

    organizao da II Semana de Arqueologia do MAE. Por seu humanismo, seu exemplo

    de carisma e simpatia a todos os alunos do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

    No poderia deixar de agradecer aos professores que me receberam em Portugal

    para que desenvolvesse parte desta pesquisa: Prof. Dr. Rui Lopes Morais, poca da

    Universidade do Minho e agora na Universidade do Porto, e Profa. Dra. Maria de Ftima

    Silva da Universidade de Coimbra. A eles este sincero agradecimento pela acolhida

    calorosa, pelo aprendizado constante em solo lusitano. Agradeo tambm Profa. Dra.

    Manuela Martins que permitiu que fizesse parte da escavao na rea do teatro romano

    de Bracara Augusta. Viva!

    Profa. Dra. Fabola Andrea Silva, possuidora de enkrtea, aret e eudaimonia,

    por me ensinar que a lana do hoplita Binford quando atinge o peito do hoplita Schiffer

    nos faz entender o quo fascinante ser um nthropos arkeologiks.

    Ao Prof. Dr. Fbio de Souza Lessa, sempre pela musa Clio, da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro, pelo apoio constante nesse longo priplo e pela filia.

  • Profa. Dra. Adriene Baron Tacla, decifradora do modelo foceu, da Universidade

    Federal Fluminense, pelo apoio nos tempos iniciais desta pesquisa.

    Aos funcionrios da biblioteca do MAE, Hlio, Eliana, Eleuza, Marta, Alberto,

    Gilberto, Washington, Ana e os bolsistas Thiago, Henrique e Brenda, incansveis

    hoplitas e amazonas na sua batalha de nos fazer chegar os opsculos que tanto

    almejamos.

    Ao Prof. Ms. Galba di Mambro e Profa. Dra. Snia Cristina Lino, ambos da

    Universidade Federal de Juiz de Fora, pelos ensinamentos partilhados no tempo da

    minha graduao nas Minas Gerais. Que Apolo, com suas flechas argnteas lanadas

    ao Parnaso, esteja sempre a iluminar o nosso dilogo.

    Ao CNPq por ter me concedido uma bolsa de pesquisa e Universidade de So

    Paulo juntamente com o Santander por me conceder a bolsa de Mobilidade Internacional.

    Aos deuses olmpicos pela poesia de sempre habitarem dentro do corao dos

    poetas. Principalmente a Dinisos Eleuthrios, na liberdade nica de transpor os grilhes

    da antiguidade e estar para sempre no nosso mundo contemporneo.

    minha famlia, bero original do meu destino. Principalmente a ti, Helena de

    Lima, que agora vive no esplendente lugar onde s os coraes altivos e nobres podem

    viver. Agradeo-te pelos ensinamentos nos dias em que atravessvamos os Portes de

    Fogo, em que me e filho luziam na mesma dor. A ti, mame, o eterno agradecimento.

    minha v Dalila Braga e minha prima Ivonete Cavalcante que j ultrapassaram o

    Estige e residem em Campos Elseos. Aos meus irmos Helena, Loureno, Fernando e

    Antnio. Pelas lembranas nas aleias pernambucanas e pelo retorno deste hoplita a sua

    taca. Terezinha Machado, minha tia de corao, que me fez presenciar uma amizade

    que venceu e sempre vencer khronos e Kairs.

    Aos inestimveis amigos: Peterson Rodrigues, Helayne Boaventura, Jnia

    Andrade, Nara Casar, Eurpides Francisco, Socorro van Keulen, Ariadne Carneiro

    Mendes, Jlio Satyro, Bella Mendes, Wedna Galindo, Joo Filho, Daniela Alves, Lorena

    Rodriugez Galo, Cleberson Moura, Markelly Fonseca, Renata Ribeiro, Cristiana

    Bertazoni, Graciema Vargas; belos e luzentes atores no palco do meu existir, pela

    partilha do vivido.

  • Aos meus raros amigos italianos: Viviana Lo Monaco, Marta Cavallini e Filippo

    Stampanoni, numes belos e luzentes que aportaram em terras brasilis para que

    pudssemos partilhar vida, trabalho, alegria e coragem.

    Um agradecimento especial Lilian Laky, pela esplendente amizade; Ana Tauhyl

    pelas imagens aladas e presteza sempre; Regina Helena Rezende pelo belo trabalho

    com a capa e contracapa, feito com aret; Juliana Figueira da Hora, bela amiga, pela

    simpatia e charme de nos fazer decifrar a tirania de Siracusa; Cludio Duarte pelo apoio

    e discusses instigantes sobre a Hlade, Danilo Tabone, pelas interessantes

    discusses sobre a teoria arqueolgica no momento de atravessar As Termpilas para

    entrar na Ps-Graduao, Irmina Doneux, pelo convvio amigvel, pela simpatia e

    solidariedade, na certeza de continuarmos indestrutveis perante os golpes do destino e

    Luciano Knopo, amigo de tantos anos, companheiro dos tempos de Juiz de Fora em

    que lutvamos pela musa Clio e j dava os primeiros passos rumo arqueologia.

    Aos labequianos da primeira, segunda e terceira gerao: Paulo Marcondes,

    Cibele Aldrovandi, Slvio Cordeiro, Patrcia Pontin, Maria Cristina Abramo, Daniela

    Puccini, Tatiana Bina, Christiane Teodoro, Gustavo Peixoto, Isabel Catnio, Rodrigo

    Lima, Giovanna Quatrini, pelo espao de pensar a Cidade Antiga, de conviver, trabalhar,

    discutir e estreitar os laos da Filia.

    Por fim, aos amigos que conquistei na ptria de Ricardo Reis: Manuela Roriz,

    Nuno Alves, Miguel Pires, Nuno Partidrio, Simona Vermeire e Ana Vieira, por tornarem

    o meu idlio lusitano um belo passeio existencial.

    Sbio o que se contenta com o espetculo do mundo, E ao beber nem recorda Que j bebeu na vida,

    Para quem tudo novo E imarcescvel sempre.

    Coroem-no pmpanos, ou heras, ou rosas volteis,

    Ele sabe que a vida Passa por ele e tanto

    Corta flor como a ele De tropos a tesoura.

    Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,

    Que o seu sabor orgaco Apague o gosto s horas,

    Como a uma voz chorando O passar das bacantes (...).

    Riardo Reis, Odes

    19 de junho de 1914

  • Resumo

    Na contemporaneidade nenhum deus da Grcia antiga exerce tanto fascnio

    quanto o deus do vinho, Dinisos. Filho de Zeus e de Smele, perseguido por Hera,

    protegido por Hermes e duas vezes nascido, estranho estrangeiro, veste mscaras,

    coroado de hera, senhor da videira, impera nas Antestrias e nas Lenias, est

    representado nos textos antigos, em vasos, frisos, frontes e nos legou o lugar de sua

    identidade, o teatro. O teatro por excelncia o espao de Dinisos. Livre e libertador, o

    deus a cu aberto, com o passar do tempo tem para si um espao singular. A presente

    pesquisa se detm na arquitetura teatral como uma tecnologia simblica e sua

    disposio na paisagem para tentar compreender os cdigos implcitos que denotam

    indcios de uma comunicao no verbal, presente no ambiente construdo. Entendemos

    lugar como um conceito relacional, repositrio de sequncias e aes que se torna parte

    da tradio de um povo. Aliamos documentao textual s fontes materiais e, para

    desenvolver nosso tema, selecionamos um repertrio com dezesseis teatros do mundo

    grego. Na Grcia situam-se nas seguintes cidades: Atenas, Argos, Delfos, Delos,

    Dodona, Epidauro, Mileto, Priene e Sicione. Na Itlia eles esto localizados em Heracleia

    Minoa, Lcris, Metaponto, Morgantina, Segesta, Siracusa e Taormina. Utilizamos o

    nosso corpus documental como um registro a revelar aspectos do culto dionisaco na

    plis grega do sc. VI ao III a.C.

    Palavras-Chave: Dinisos, Teatro Grego; Arquitetura Teatral; Plis; Paisagem.

  • Abstract

    In the contemporary world, there is no other ancient Greek god who is found as

    fascinating as Dionysus, the god of wine. Son of Zeus and Semele, pursued by Hera,

    protected by Hermes and twice-born, strange foreigner, wearer of masks, crowned with

    ivy, lord of the vines, he is represented in ancient texts, vases and friezes, and he

    bequeathed to us the home of his identity: the theatre. The theatre is the Dionysian space

    par excellence. Liberated and liberating, the god of the open sky, with the passing of time

    he comes to possess a singular space for himself. This research project focuses on

    theatrical architecture as a symbolic technology, and on its use within the landscape, with

    the aim of understanding the implicit codes that denote the indices of a non-verbal

    communication present in the built environment. Space is understood as a relational

    concept, a repository of sequences and actions that become part of a peoples tradition.

    We will link textual documents to material sources and, in order to develop the subject

    further, we have made a selection of sixteen theatres in the Greek world. In Greece, they

    are situated in the following cities: Athens, Argos, Delphi, Delos, Dodona, Epidaurus,

    Miletus, Priene and Sicione. In Italy, they are located in Heracleia Minoa, Locri,

    Metaponto, Morgantina, Segesta, Syracuse and Taormina. We will use our body of

    documents as a register through which to reveal aspects of the Dionysian cult in the Greek

    polis during the period VI-III BC.

    Key words: Dionysos, Greek Theatre; Theatrical Architecture, Plis; Landscape.

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    . , , , Metaponto, Morgantina,

    Segesta, Taormina.

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    VI - III . .

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  • SUMRIO

    PRELDIO .................................................................................................................................... CAP. 1. O DEUS TRGICO NA GRCIA PAROUSA, EPIFANIA E ERRNCIA...................

    01 08

    1.1. Dinisos Eleuthrios e seu espao ............................................................................... 08 1.2. Dinisos e seus eptetos o inventrio de um deus elusivo .................................... 21 1.3. O deus, seu nascimento e sua errncia ........................................................................ 25 1.4. Dinisos e seu culto na Hlade...................................................................................... 37 1.5. Os mistrios dionisacos ............................................................................................... 47 CAP. 2. DINISOS NA PLIS: O DEUS, O TEATRO E SUAS FESTAS................................... 56 Intrito: O teatro, a plis.............................................................................................................. 56 2.1. Dinisos na khra ............................................................................................................ 58 2.2. O calendrio tico. ...................................................................................................... 58 2.3. As festas em honra ao deus ............................................................................................ 60 2.4. Dionsias Rurais - ta katagrous Dionsia ...................................................................... 62 2.5. Leneias............................................................................................................................... 63 2.6. Antestrias ....................................................................................................................... 65 2.7. Dinisos na sty ............................................................................................................... 67 2.8. Dionsias Urbanas ou Grandes Dionsias - Dionsia ta astik/Dionsia ta en stei... 68 CAP. 3. TRAGDIA GREGA ESPETCULO E DIONISIMO NA PLIS .................................. 73 3.1. Theatron As origens religiosas da tragdia ................................................................. 75 3.2. Tragdia, tirania e dionisismo na plis grega .................................................................. 85 3.3. Um novo reordenamento polade e o discurso visual do tirano ................................... 90 3.4. khra e sty para um deus a cu aberto ......................................................................... 93 3.5. Dinisos Trannos o espao selvagem espao domesticado no contexto das grandes dionsias ........................................................................................................................

    97

    CAP. 4. DINISOS DESMTES O DEUS EM PEDRA NA PLIS E A SUA EXPRESSO MATERIAL ....................................................................................................................................

    103

    4.1. Corpus documental o repertrio dos teatros da Grcia e do Ocidente grego ......... 103 Apresentao ............................................................................................................................... 103 4.2. O teatro e seus elementos essenciais forma e disposio .......................................... 106 4.3. Grcia ................................................................................................................................ 112 4.4. Ocidente Grego ................................................................................................................. 147

    VENERI, A. Dionysos in: LIMC, vol III/1 e 2,

    n. 151.

  • SUMRIO

    4.5. Grafar a plis em pedra: a questo da agncia e a singularidade do teatro grego antigo ............................................................................................................................................

    176

    4.6. Sntese interpretativa do corpus documental ................................................................... 179 CAP. 5. DINISOS ELEUTHRIOS O DEUS A CU ABERTO E SUA PAISAGEM ....... 188 5.1. Introito: pontos de uma paisagem apreendida pelo olhar ............................................... 188 5.2. Espao, lugar, paisagem ..................................................................................................... 191 5.3. A paisagem como conceito ................................................................................................. 194 54. Oinops pontos: Dinisos, o teatro e o mar da cor do vinho ............................................. 201 5.3. Dinisos a cu aberto materializado na paisagem da plis ............................................. 204 CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 225 REFERNCIAS ............................................................................................................................. 229 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................. 231

    VENERI, A. Dionysos in: LIMC, vol III/1 e 2,

    n. 151.

  • PRELDIO

    Pelo seu fascnio o dionisismo chamou a ateno de inmeros

    estudiosos, inspirando reflexes sobre sua natureza e funo na plis grega.

    Algumas delas, por sua importncia e originalidade, j so consideradas

    clssicas, como os trabalhos desenvolvidos por Nietzsche (1992), Otto (2001),

    Jeanmaire (1980) e Kernyi (2004). No que concerne ao dionisismo tais

    contribuies carregam consigo anlises profcuas ao arquelogo e historiador,

    bem como problemas de interpretao e leitura.

    Numa dissertao que tenha como ponto central o teatro antigo de

    dezesseis pleis do mundo grego e sua inter-relao com o culto de Dinisos

    impossvel no citar alguns autores. Nietzsche (1992) e o seu Nascimento da

    Tragdia constantemente revisto no mundo contemporneo. Sua viso tem

    sido revista, muitas vezes criticada, mas ainda assim, continua sendo uma

    referncia nos estudos sobre o dionisismo.

    Quanto a W. Otto, que define o deus como um deus delirante, o faz

    utilizando Homero, sem o citar, pois o autor da Ilada se refere ao deus como

    mainmenos Dionsos, o delirante Dinisos. Segundo Kernyi, se por um

    lado Otto acerta, indo buscar em Homero a melhor definio para o deus do

    vinho, por outro ele se equivoca ao alertar para o mundo dionisaco como um

    mundo de mulheres, aludindo parturio e cuidado de crianas. Na

    percepo de Kernyi a comparao do dionisismo com uma epidemia

    religiosa consiste no nico elemento que se configura aceitvel para o

    pensamento cientfico, e isto foi resgatado por E. Rohde, que levantou a tese

    de uma religio estrangeira na Trcia, Rodhe deu tese de Nietzsche uma

    sustentao histrica e ao mesmo tempo corrigiu-a (Kernyi, 2004: 113-121) e

    pintou o quadro de um deus estrangeiro sensibilidade helnica (Trabulsi,

    2004: 13). Para Rodhe o dionisismo representou, na cultura grega um corpo

    estranho, alhures, sua origem vinha da Trcia, muito particularmente entre

    suas estirpes trcias meridionais (Rohde, 1973: 308-317). J segundo Vernant,

    no h como sair do problema do carter estrangeiro do dionisismo, pois essa

    estranheza o historiador a assinala ao rejeitar a origem do deus fora das

    fronteiras da Grcia, na Trcia. Mas essa exterioridade de origem , ela

  • 2

    prpria, um postulado que se imporia ao helenista como uma evidncia

    (Vernant & Vidal-Naquet, 1999: 338). Para W. Burkert, com a anttese entre

    Apolo e Dinisos, Nietzsche pensou ter encontrado a chave para a histria

    espiritual dos gregos, bem como a chave para a essncia da arte, o sonho em

    oposio ao devaneio, a forma e a definio em oposio dissoluo e

    destruio. Assim, o apolneo e o dionisaco, para Burkert, ganharam

    significado e uma vida prprios, tornando-se desse modo quase independentes

    da sua origem na religio grega (Burkert, 1993: 434). A interpretao do autor

    do Nascimento da Tragdia hbrida, um de seus erros, mesmo se valendo

    da tradio e inspirando-se em Eurpides, ignorar as mnades que, depois de

    Dinisos, so as personagens mais importantes no mito. O prevalecimento de

    um exagerado lance explosivo a retratar o dionisaco , segundo Kernyi, a

    contribuio de Nietzsche, posio que influenciar as obras de Otto, Nilsson,

    Jeanmaire e Dodds, que identificaram o ncleo da religio dionisaca na

    experincia orgistica do deus e seus fiis (Kernyi, 2004: 119-122).

    H. Jeanmaire outro importante estudioso que analisa o dionisismo.

    Segundo Trabulsi, ele tem o grande mrito do comparatismo antropolgico,

    mas nem sempre foi capaz de evitar, ao estabelecer uma analogia entre os

    diversos xtases contemporneos e o dionisismo antigo, os preconceitos que o

    nosso mundo carrega. No entanto, Trabulsi salienta proficuamente que

    Jeanmaire, mesmo tendo a grande desvantagem de escrever seu livro antes da

    decifrao da linear B, detm uma anlise e uma obra cuja solidez faz com que

    conserve uma atualidade impressionante (Trabulsi, 2004: 14). J Kernyi, por

    um lado, se fundamenta numa ampla pesquisa com um incomensurvel

    nmero de fontes, o que d ao seu trabalho um inegvel reconhecimento; por

    outro lado, ele se atm a um modelo Junguiano, estabelecendo arqutipos a

    partir do mundo antigo, o que para Trabulsi, um caso mais grave que o de

    Nietzsche, no que concerne anlise do dionisismo (Trabulsi, 2004: 13-14).

    Entendemos que, eventualmente, a abordagem Junguiana de Kernyi no

    contribui para o nosso conhecimento do dionisismo, uma vez que prende o

    culto antigo a arqutipos fixos, concebidos para explicar a psiqu humana

    contempornea, desconfigurando uma anlise histrica do deus do vinho e de

    seu culto. No entanto, preciso frisar que mesmo com sua abordagem

    junguiana a documentao levantada por este autor imprescindvel a

  • 3

    qualquer pesquisador que se debruce sobre Dinisos. Seu levantamento

    exaustivo de fontes textuais e arqueolgicos consiste num valioso inventrio ao

    pesquisador. O trabalho de Marcel Detienne, Dioniso a cu aberto (1990) um

    importante contributo aos estudos sobre o deus do vinho. Detienne procuro o

    aspecto de um deus a cu aberto, o que nos interessa na nossa prpria

    interpretao da documentao material.

    No Brasil os estudos acerca do dionisismo tm avanado

    paulatinamente, existem algumas produes acerca da iconografia de Dinisos

    desenvolvidas na Universidade de So Paulo: dentre estas destaquemos o

    trabalho de M. B. Florenzano acerca da representao de Dinisos nas

    moedas gregas e o trabalho de H. Sarian, com sua leitura iconogrfica dos

    personagens Hracles e Dinisos na nfora tica do Museu de Arqueologia e

    Etnologia da Universidade de So Paulo. Citemos enfim, um dos trabalhos

    mais significativos sobre o dionisismo desenvolvido por um pesquisador

    brasileiro: Dionisismo, poder e sociedade na Grcia at o fim da poca

    clssica, obra de Jos Antnio Dabdab Trabulsi. Trabulsi analisa num perodo

    de longa durao, que vai da poca arcaica at o fim da poca clssica, o

    dionisismo e sua relao com o poder no sistema polade, demonstrando que

    Dinisos ao ser domesticado serve como aparelho ideolgico do Estado

    (Trabulsi, 2004: 145). O referido trabalho uma importante e valiosa referncia

    para os pesquisadores que abordam o tema.

    Entre as contribuies mais recentes sobre o dionisismo devemos citar

    ainda os autores vinculados ao Centro Louis Gernet da Frana. Alm do

    prprio Gernet, Detienne, Vernant, Vidal-Naquet, Daraki, Lissarrague,

    Villanueva-Puig, pesquisadores que se atm a uma leitura antropolgica, alm

    de acrescentar ao debate inaugurado pela obra de Nietzsche importantes

    reflexes acerca de Dinisos, seu culto e sua permanncia na Grcia antiga.

    Tais contribuies, entre outras, associadas aos textos antigos e

    documentao material nos permitiro ter uma percepo mais acurada sobre

    o problema de Dinisos e sua expresso material no teatro grego antigo das

    pleis da Grcia e de suas apoikias.

    Com relao materializao do dionisismo na cidade grega, devemos

    citar os estudos que lidaram, aqueles que se debruaram sobre o teatro como

    espao fsico definido na plis. Um importante passo na sistematizao dos

  • 4

    estudos do teatro antigo foi dado por Daremberg e Saglio no sculo XIX com

    seu Dictionnaire des Antiquits grecques et romaines, fornecendo informaes

    sistematizadas acerca da histria e da forma do teatro, inclusive alguns

    resultados das escavaes no teatro de Dinisos em Atenas, realizadas pelo

    pesquisador alemo M. Drpfeld. Nos anos subsequentes. Nas dcadas de 40

    e 50, tem-se o trabalho de Pickard-Cambridge e Roland Martin, quase

    contemporneos a trazer importantes contribuies acerca do teatro, o primeiro

    com uma anlise cuidadosa e acurada do teatro de Dinisos em seu Theatre of

    Dionysus in Athens (1946), e o segundo com o j clssico LUrbanisme dans la

    Grce Antique (1956), a discutir o princpio funcional nos planos ortogonais e a

    especializao de zonas de agrupamento, percebendo nos ambientes

    construdos como santurios e goras, teatros e ginsios, peas constitutivas

    da monumentalizao da cidade que modelam traos originais da vida

    helnica. Embora criticado por alguns autores, a originalidade do trabalho de

    Martin revela importantes questes no que tange ao urbanismo na Grcia

    antiga.

    M. Bieber deu um passo significativo ao publicar, na dcada de 60, seu

    livro The History of the Greek and Roman Theater, (1961) ainda hoje uma obra

    de referncia para os estudiosos do teatro grego e romano no que concerne ao

    seu aspecto material. Tais autores se empenharam em recolher provas

    materiais acerca do teatro antigo, mas foi T. B. Webster, segundo J. Green,

    particularmente quem se ateve necessidade de sistematizar o diversificado

    corpo material at ento utilizado como prova (Green, 1994: xiii). Dentre as

    produes de T.B. Webster mais significativas esto: Greek Theatre Production

    e Ilustrations of Greek Drama, esta ltima em coautoria com A.D. Trendall

    (1971), a sistematizar valiosas informaes sobre a iconografia do teatro

    presente nos vasos ticos. Ainda sobre o aspecto iconogrfico no poderamos

    deixar de citar o significativo trabalho de T. Carpenter (1986), publicado na

    dcada de 80, um estudo minucioso a traar o desenvolvimento da imagem de

    Dinisos nos vasos ticos de figuras negras, percebendo a originalidade da

    criao da imagem do deus por toda a tica. No rol das produes mais

    recentes no deixemos de citar os trabalhos de J. Green (1994),

    particularmente seu Theatre in Ancient Greek Society, influenciado por

    geraes de estudiosos do tema, mais especificamente M. Bieber, A.D.

  • 5

    Trendall e T.B. Webster, citados acima. Temos ainda os trabalhos

    desenvolvidos por L. Polacco: Il teatro de Dioniso Eleutereo ad Atene (1980) e

    Il teatro antico di siracusa. (1992). Por ltimo mencionemos o inovador trabalho

    de M. Pearson & M. Shanks com seu Theatre Archaeology, publicado em 2001,

    que se prope a lanar novos enfoques sobre o tema, abordando questes que

    envolvem a complexa interpretao de dois discursos, aproximando projetos

    que fundem performance e arqueologia na dinmica interpretao do passado

    material. Dentre os trabalhos atuais no poderamos deixar de lado o

    importante trabalho de Jean-Charles Moretti (2011) e seu Thatre e Societ

    dans la Grce Antique (2011) e Peter Wilson que editou a obra The Greek

    Theatre and Festivals (2007). Tais autores matizam com novas cores os

    estudos sobre o teatro grego antigo.

    Concordamos com R. Martin ao afirmar: A histria da Arquitetura do

    teatro grego no perfeitamente clara; muitos edifcios so ainda mal

    conhecidos porque a explorao permanece inacabada ou porque a publicao

    insuficiente (Martin, 1956: 281). Por certo, o avano nas pesquisas, por meio

    dos novos problemas colocados pela Arqueologia clssica e pela Histria

    antiga, tem propiciado resultados profcuos e alterado o cenrio apontado por

    Martin.

    Ante tantas contribuies o nosso intuito foi tecer algumas

    consideraes acerca do dionisismo sob o prisma da arqueologia, tentando

    estabelecer alguns elementos que configurasse a expresso material do deus,

    aspectos do seu culto, bem como reflexes acerca do teatro na paisagem da

    plis.

    No primeiro captulo: O deus trgico na Grcia parousia, epifania e

    errncia, procurou-se estabelecer algumas consideraes acerca do espao

    do deus, seu mito e seu culto. Priorizamos a narrativa para estabelecer uma

    sntese do culto dionisaco do perodo arcaico at o helenstico.

    No segundo captulo: Dinisos na plis: o deus, o teatro e suas festas

    foi estabelecida uma discusso sobre o teatro no contexto das festas

    dionisacas para visualizarmos um quadro da institucionalizao do teatro na

    Grcia.

    J o terceiro captulo: Tragdia grega espetculo e dionisismo na

    plis, evisitou o debate sobre o surgimento da tragdia e sua inter-relao com

  • 6

    a tirania. Procuramos tecer algumas consideraes acerca da relao sty e

    khra na Grcia e finalizar com a questo da tirania e do agrilhoamento do

    deus no contexto das dionsias urbanas.

    O quarto captulo: Dinisos Desmtes - O deus em pedra na plis e a

    sua expresso material composto pelo nosso corpus documental, com

    aspectos fsicos materiais dos dezesseis teatros que ora analisamos. Ao final

    fizemos uma pequena sntese interpretativa da nossa documentao,

    priorizando os aspectos do teatro relacionado aos espaos sagrados e aos

    espaos cvicos.

    O quinto e ltimo captulo: Dinisos Eleuthrios - o deus a cu aberto e

    sua paisagem na plis, se atm a reflexes sobre o teatro grego e a paisagem.

    Foi estabelecido um pequeno debate sobre os conceitos de espao, lugar e

    paisagem. Como em nosso repertrio alguns teatros esto voltados para o mar,

    resolvemos tocar na questo do mar para os gregos. Estabelecemos uma

    pequena discusso sobre esta questo, utilizando dois tipos de documentao:

    a textual e a iconogrfica. A saber o hino homrico a Dinisos e a cena da

    famosa taa de Vulci, pintada por Exquias. Ambos a tratar do episdio de

    Dinisos e os piratas. Estes dois tipos de documentao, bem como uma

    pequena sntese acerca da metfora oinops pontos, so uma introduo para a

    analisarmos os dezesseis teatros que compem o nosso repertrio. Ao ler a

    documentao material priorizamos qual a configurao do teatro grego em

    relao paisagem polade da Grcia e do Ocidente grego. A nosso ver, esta

    materializao do deus do vinho que expressa, por meio do seu espao, a

    totalidade da plis.

  • 7

    PARTE I

    DECODIFICAR DINISOS DO ARCAISMO AO PERODO HELENSTICO

  • 8

    CAP. 1

    1. O DEUS TRGICO NA GRCIA PAROUSIA, EPIFANIA E ERRNCIA

    O teatro , no mundo grego, uma forma de se tornar outro.

    Jean-Pierre Vernant

    1.1 Dinisos1 Eleuthrios e seu espao

    No Panteo faltavas. Pois que vieste

    No Panteo o teu lugar ocupa,

    Mas cuida no procures

    Usurpar o que aos outros devido.

    Panteo que preside

    nossa vida incerta.

    Nem maior nem menor que os novos deuses,

    ()

    Trouxeste algo que faltava

    Ao nmero dos divos.

    Por isso reina a par de outros no Olimpo

    Odes, Ricardo Reis

    O aedo Ricardo Reis nas trs estrofes acima est a falar de Cristo e diz

    no menosprez-lo ou odi-lo. Para alm dos inmeros paralelos que j se fez

    entre Cristo e Dinisos, ocultado o sujeito a quem se dirige o belo poema do

    aedo, ele poderia sim, referir-se ao deus do vinho. Por muito tempo, ele reinou

    a par de outros no Olimpo, mas foi reconhecido e seu culto penetrou na Hlade

    com uma fora que o fez materializar-se em estelas, vasos, moedas e esttuas,

    dentre outros suportes materiais, e a ter para si um lugar a cu aberto, o teatro,

    em certa medida a par dos deuses no Olimpo, numa epifania e parousa

    prprias, onde sua presena se firma ante o grego antigo como um deus

    1 Sabemos que o nome Dioniso j est consagrado no vernculo, mas preferimos na presente dissertao

    utilizar o nome Dinisos, por estar mais prximo da grafia do nome do deus em grego.

  • 9

    diferente, estrangeiro e livre dos grilhes de um templo; seu lugar o torna livre

    em sua prpria expresso material.

    importante salientar que todo estudioso, seja este arquelogo,

    historiador ou de outras disciplinas, que se debrua sobre a histria da Grcia

    se depara com o paradigma de Atenas. Ela um paradigma tanto pelas fontes

    textuais, quanto pela documentao material. Isso no diferente nos estudos

    que se referem a Dinisos. O volume de documentao textual sobre o deus e

    suas festas, bem como sua presena nas obras dos trgicos e dos

    comedigrafos, muito vasto. Mesmo tentando sair de uma posio

    atenocntrica, tomaremos este paradigma como ponto de partida para tentar ir

    alm desta viso e chegar a algumas reflexes acerca do culto de Dinisos em

    dezesseis pleis do mundo grego, situadas geograficamente na Grcia e na

    Itlia.

    Retomando ao lugar do deus que configura sua expresso material nos

    perguntamos: se o deus, transposto da Becia at Atenas se firma num lugar,

    tem seu prprio espao, onde Dinisos est? Esse deus livre, libertador, com o

    passar dos anos vai se materializando, primeiro em madeira, depois em pedra,

    a sua expresso material ganha formas. Primeiro um crculo de terra batida se

    firma no cho, em seu centro os gregos dispem a Thymle, e este o local

    onde se canta e se dana em honra ao filho de Zeus. Paulatinamente seu

    espao toma a seguinte forma: bancos retos numa estrutura de madeira,

    depois de aproveitado o sop da encosta da Acrpole, o lugar do deus se firma

    em pedra e passa a ter a forma de uma ferradura, o theatron ou kolon, lugar

    para ver, se abre para a cidade. Firmado na plis, o teatro torna-se seu

    espao e associado a ele h sempre um santurio. Dinisos no tem para si a

    grandiosidade de um templo, como seu pai o Porta-gide tem em Olmpia. O

    seu lugar a cu aberto. Em Bacchos au coeur de la cit, ao falar acerca do

    thasos dionisaco e seu espao poltico, os autores demonstram bem a

    dimenso potico-religiosa do deus evidenciada pela sua materializao no que

    tange ao seu lugar

    A verdade que o lugar da possesso dionisaca no em certos

    lugares da cidade, mas nos antros rochosos das colinas arborizadas

    que circundam as plancies cultivveis. O imaginrio nos mostra o

  • 10

    deus a chegar primeiro entre caadores, ele desce para cidade num

    segundo momento. Se ele obtm direitos de permanecer na cidade

    graas ao teatro. E verdade que a grande maioria dos templos

    dionisacos esto estreitamente articulados a um teatro. No

    deixemos de mencionar Atenas e Ertria, para nos ater a um conjunto

    bem conhecido. No entanto, no devemos esquecer que o quadro

    arquitetural do teatro grego pode abrigar reunies das mais diversas

    origens e que as origens religiosas do teatro pode abarcar ainda

    inmeras questes. O teatro de Dinisos em Atenas possui um

    santurio muito modesto que se apaga no flanco sul da Acrpole. No

    IV sec. em Ertria, no entanto, o teatro, graas aos trabalhos de

    terraplanagens colossais, se integra harmoniosamente ao lado do

    templo de Dinisos, num ambicioso programa de delineamento que

    remodela completamente o norte da cidade. Mas, como escreveu

    Roux, Dinisos tem que ser bloqueado no quadro suntuoso e

    artificial da arquitetura humana (Brard & Bron, 1986: 13-14).

    Os autores acima evidenciam o aspecto poltico do espao dionisaco e

    Rush Rehm na sua obra The Play of Space Spatial Transformation in Greek

    Tragedy, nota que h vrias categorias de espao no teatro, dentre estas o

    espao arquitetural (Rehm, 2010: 1-3). Ainda no tocante leitura do espao,

    temos a leitura de Amos Rapoport (1982: 58), a nos mostrar que o espao

    fsico fornece indcios que limitam ou guiam, sem contudo determinar o

    comportamento do indivduo em uma situao social, havendo um cdigo que o

    ambiente construdo detm. O espao, na anlise de Rapoport, ao fornecer tais

    indcios do comportamento em cada contexto, viabiliza uma comunicao no

    verbal que pode ser apreendida, sendo possvel distinguir os seus efeitos

    diretos e indiretos nas pessoas (Rapoport, 1978: 16-7). Interligando a leitura de

    Rapoport de Chouquer, entendemos que a anlise das formas construdas

    no coloca o pesquisador diretamente na presena de fatos antigos, mas o

    coloca diante dos fatos antigos transformados. Assim, para este autor o espao

    uma fonte essencial de anlise e as redes de formas so o material desta

    anlise, havendo a necessidade de espacializar, de integrar a uma rede

    quando esta existe, eis uma necessidade fundamental para poder compreender

    o sistema do passado (Chouquer, 2000:104;115). Tanto em Rapoport quanto

    em Chouquer o espao e a anlise das formas construdas nos fornecem

  • 11

    cdigos que podem ser decodificados pelo pesquisador, colocando-o mais

    prximo possvel do passado. Sob essa perspectiva, ao analisar o teatro

    antigo, o entendemos como um ambiente construdo e como tal, configurado

    como um registro da histria da sociedade grega, como um artefato histrico

    (Florenzano: 2006: 1). Mike P. Pearson e Colin Richards concebem o ambiente

    como um artefato cultural e veem a arquitetura como uma tecnologia simblica

    e por isso afirmam que

    O espao uma prtica (ou nossas aes cotidianas), mas tambm

    smbolo e poderamos conceber a arquitetura como tecnologia

    simblica. Os significados que so dados a lugares e ordem

    espacial, no so fixos ou dados aleatoriamente, mas podem ser

    evocados no contexto da prtica e de sua recorrente utilizao. Os

    significados aderem a um quadro somente por meio da mediao da

    atividade humana. No entanto a capacidade de reinterpretar e alterar

    significados e ideologias limitado pela ordem espacial j existente.

    Em outras palavras podemos fazer histria no como queremos, mas

    em circunstncias que no somos ns prprios que as escolhemos. A

    relao entre forma espacial e ao humana mediada pelo

    significado. As pessoas ativamente do seus significados ao

    ambiente fsico, e costumam agir de acordo com esses significados

    (Pearson & Richards, 2005: 4).

    Poderamos dizer ante as consideraes sobre o espao como uma

    prtica e o ambiente como artefato cultural, que estas perspectivas de anlise

    nos levam a visualizar o teatro grego antigo disposto na paisagem, que

    manifesta um simbolismo prprio a revelar aspectos do culto e suas interaes

    na sociedade da Grcia e de suas apoikias. Ainda sob o prisma dos autores

    acima citados a relao que se d entre forma espacial e ao humana

    mediada pelo sentido pode ser visualizada na arquitetura e ordem de

    determinado ambiente construdo, por isso Pearson e Richards novamente

    sinalizam que:

    A arquitetura incorpora e expressa certos princpios de ordem e

    classificao. Pois um espao cultural construdo num contexto

    definido, onde as pessoas realizam atividades especficas em

    determinados momentos. Elas se movem atravs de seus limites e

  • 12

    realizam aes em lugares apropriados. Assim, o significado

    realizado atravs de prticas sociais. Tal contingncia permite uma

    redefinio do espao sem necessariamente alterar as suas

    propriedades fsicas. Para o arquelogo a cultura material e sua

    natureza reflexiva podem ser reveladas nas possveis mudanas do

    significado espacial de uma dada forma arquitetnica (Pearson &

    Richards, 2005: 36).

    Esta perspectiva claramente problemtica, segundo os autores. No

    entanto, no seu entender, ela no representa um obstculo intransponvel e os

    dados arqueolgicos, se analisados com um rigor metodolgico, podem nos

    mostrar a arquitetura e sua ordem num contexto social. Ao expressar princpios

    de ordem e classificao, o teatro antigo grego, sua insero no lugar, delineia

    o que podemos chamar de contexto arqueolgico; como um dos elementos

    constitutivo da plis, o teatro um artefato cultural e pode, como registro

    arqueolgico, nos remeter a uma importante reflexo, para isso nos atemos

    percepo de John Barret, a notar que determinadas prticas levam ao

    conhecimento do registro arqueolgico e por isso ele nos mostra que

    A evidncia arqueolgica no precisa ser vista como o "registro"

    significativo de vrias manifestaes sobre o passado. Em vez disso,

    pode ser vista como vestgios residuais de uma gama muito

    diversificada de materialidades. Estas materialidades eram

    interpretadas luz de pressupostos e preconceitos sobre a natureza

    do mundo. A validade dessas hipteses foi experimentada e

    monitorada atravs da prtica, uma avaliao emprica levada adiante

    por disposies corporais e sensoriais, bem como discursivamente.

    Como arquelogos, podemos investigar como essas diferentes

    materialidades podem ser conhecidas, as prticas atravs das quais

    os conhecimentos foram realizados e monitorados, e as

    consequncias dessas prticas (Barret, : 81).

    As nossas consideraes sobre o teatro grego antigo e os indcios que

    ele nos fornece para entender aspectos sociais da Grcia antiga nos fazem

    alinhar as perspectivas tericas visualizadas acima com a discusso sobre o

    lugar na arqueologia. Maria Nieves Zedeo e Brenda Bowser no texto The

    Archaeology of Meaningful Places, concebem lugar como a juno entre

  • 13

    ambiente, povo e significado convergindo em mltiplas escalas, em processos,

    criando o registro do comportamento, percepo e cognio. Para as autoras o

    lugar transformado devido aos prprios agentes sociais que estabelecem e

    mantm esta transformao. O registro arqueolgico quando relacionado com

    o lugar pode revelar aspectos sociais. Lugar um repositrio de sequncias e

    aes, que atravs do tempo torna-se parte da tradio de um povo (Bowser &

    Zedeo, 2008: 1). Isso nos fez lembrar Julian Thomas que concebe lugar no

    como uma coisa ou entidade, mas um conceito relacional. O espao

    transformado em lugar atravs da interveno humana. Nesse sentido, se

    tomarmos lugar como paisagem, esta pode ser vista como uma estrutura

    integradora, como um contexto que interconecta os atos humanos dispersos,

    significativamente. A paisagem, para Thomas um mundo familiar no qual as

    pessoas realizam suas tarefas. (Thomas, 2001: 171-3). Tanto as autoras

    quanto Julian Thomas nos mostra que os lugares no so simplesmente

    passivos, mas eles exercem agncia sobre ns e ns sobre eles. O homem

    no est dentro de um ambiente totalmente inanimado, mas ele interage com o

    territrio e medida que o cria, o territrio interage com ele. Sob esta

    perspectiva terica, a da Arqueologia da paisagem, buscaremos entender o

    teatro grego antigo inserido na planta da cidade, como parte integradora do

    lugar que ao ser colocado na malha urbana e ser integrado aos elementos

    geogrficos sua volta, a expresso material do teatro revela-nos aspectos do

    culto dionisaco. Este ponto da nossa reflexo ser abordado no captulo de

    anlise do nosso corpus documental.

  • 14

    O teatro de Delfos de frente para o templo de Apolo, integrado paisagem do Parnaso. Acervo Laky 2009.

    Na perspectiva aqui adotada h uma convergncia entre arqueologia e

    histria. No tocante ao trabalho ora desenvolvido e a linha adotada no Labeca,

    Laboratrio de Estudos sobre a Cidade Antiga, nos deparamos com um mundo

    grego rico e diversificado. A documentao material e textual nos coloca ante

    um verdadeiro caleidoscpio que o mundo helnico, seja na Grcia seja em

    suas apoikias. O passado, especificamente o passado materializado, atua

    singularmente na formao de identidades de grupos e indivduos. O vis

    adotado em nosso trabalho estabelece uma conexo entre textos e artefatos.

    Um trabalho que verse sobre Arqueologia Clssica necessita dar conta da

    materialidade do texto, assim nos valemos das reflexes de Anders Andrn, a

    salientar que

    Como objetos, os artefatos e os textos so idnticos, uma vez que

    todos os textos so artefatos. Esta perspectiva material da escrita

    importante a partir de vrios pontos de vista. (...) O estudo dos

    primeiros textos levam a questes, tais como: o material em que os

    textos so escritos e a forma da escrita. A perspectiva do objeto

    tambm pode explanar que h grandes semelhanas entre a crtica

    das fontes histricas e arqueolgicas. Em ambos os casos, a fonte

    escrita pode incluir a questo do grau de preservao da fonte

    material. E em ambos os casos o grau de preservao depende das

    aes dos homens bem como dos processos naturais no decurso dos

    sculos. A caracterstica material dos textos tambm tem sido usada

    metodologicamente em larga escala nos estudos histricos (Andrn,

    1998: 147). (Grifo nosso)

  • 15

    A perspectiva material da escrita faz com que a musa Clio se apresente

    unida arqueologia. Carlo Ginzburg, ao discutir sobre o paradigma indicirio,

    nos mostra que o conhecimento histrico indireto, conjectural e que a histria,

    como cincia sui generis, est irremediavelmente ligada ao concreto (Ginzburg,

    1989:156-7). Nesse sentido ela se aproxima da Arqueologia. A. Snodgrass

    ressalta a convergncia entre a arqueologia e a histria e mostra que a

    arqueologia, com sua anlise cuidadosa de um vasto corpo de documentao

    material, pode lanar luz sobre questes muitas vezes inacessveis ao

    historiador. Sob esse prisma a aliana entre histria e arqueologia muito

    profcua e tais resultados arqueolgicos podem dizer tanto quanto a linguagem

    usada pelas fontes documentais (Snodgrass, 1985: 193-5). A. Chevitarese nos

    faz refletir sobre os mecanismos que o pesquisador pode utilizar para se

    chegar confirmao de sua hiptese: a realidade documental subentende um

    conjunto de informaes potenciais de diversas naturezas: textos antigos

    diversificados e vestgios materiais heterogneos (Chevitarese, 1997: 14).

    Refletindo sobre esta aliana, a associao dos vestgios materiais s fontes

    textuais e documentao dos teatros nos coloca ante um quadro em que

    possvel analisar o dionisismo no contexto da plis grega antiga, aspectos do

    culto dionisaco e de sua expresso material no urbanismo e relacionado

    paisagem da Grcia arcaica e clssica. O teatro grego antigo disposto num

    espao prprio na paisagem nos fornece aspectos da vida cvica da sociedade

    grega que est amalgamada vida religiosa. O aspecto religioso diretamente

    relacionado ao teatro pode ser evidenciado por meio de trs fontes: os

    vestgios arquiteturais, os quais demonstram que associado ao espao do

    teatro, para alguns casos, h um local de culto; as fontes textuais que incidem

    num j consolidado debate sobre as origens da tragdia associada ao deus e a

    suas festas, tratada mais adiante num outro captulo; a imagtica do deus

    presente nos vasos ticos de figuras negras e figuras vermelhas que associa

    as imagens do deus e seus seguidores s tragdias e comdias, tanto em

    vasos da Grcia como da Magna Grcia e Itlia do Sul. Jean-Charles Moretti

    salienta que em Atenas, como em outros lugares, o teatro servia tambm

    regularmente s reunies da assembleia do povo ou outras reunies polticas.

    As reunies da ekklesa, segundo o autor, eram mais frequentes que os

  • 16

    concursos musicais. Portanto, a cada ano o teatro foi mais utilizado para

    reunies polticas que religiosas (Moretti, 2009: 23).

    Planta da Acrpole de Atenas. O teatro de Dinisos direita e sua ligao com a sto de Eumenes e o Odeon de Herodes tico (Benevolo, 2003: 90).

    O fato do teatro estar intrinsecamente ligado vida cvica notado por

    inmeros autores, os outros edifcios prximos a ele demonstram esta relao.

    Segundo Hurwit, ao estudar o teatro de Atenas, a relao entre o teatro de

    Dinisos e o Odeon visvel na documentao arqueolgica. Na segunda

    metade do sculo V o Odeon tomou um lugar de maior importncia sob a

    administrao de Pricles. Hurwit salienta que a evidncia arqueolgica e

    literria sugere que nesse perodo o teatro de Dinisos permaneceu um lugar

    modesto, no sendo aumentado nem reconstrudo at o sec. IV a.C (Hurwit,

    1999: 217).

  • 17

    Planta do teatro de Dinisos. Ao seu lado direito o Odeon de Pricles (Connolly, 1998: 99).

    Outra relao entre o teatro e uma construo pblica se torna evidente

    na forma da Pnyx. Como o teatro, a Pnyx tem uma centralidade em sua

    localizao, como salienta Malaco, ela tambm combinava a altitude do terreno

    com a inclinao de sua cvea, aproveitando sua declividade (Malaco, 2002).

    Na Pnyx a ateno estava centrada no orador. O teatro numa situao

    semelhante amarrava uma percepo visual ntida de uma figura distante a

    uma voz que soava mais prxima (...) sendo a ateno do espectador

    focalizada no plano central (Sennett, 2006: 51-2). Por estas evidncias

    apontadas pelos estudiosos, importante que aprofundemos tal relao entre o

    teatro antigo e estas construes pblicas e isso ser feito quando da anlise

    dos dados sistematizados dos vrios teatros elencados em nosso repertrio.

    Por ora, vejamos a interconexo entre o espao teatral e a prtica de culto.

    Tomemos como exemplo o caso paradigmtico de Atenas, para no quarto

    captulo abordarmos outros teatros do mundo grego.

    O deus duas vezes nascido, vindo dos campos congrega duas esferas

    no seio da plis: a cnica e a religiosa. Assim, no que tange evidncia fsica,

    e num outro captulo iremos abordar o problema mais profundamente, os

    vestgios de centenas de teatros gregos e romanos so conhecidos; vo desde

  • 18

    os principais locais de Atenas, Delfos, Epidauro, Dodona, Siracusa, e feso,

    por exemplo, at pequenos teatros localizados no interior das cidades e que

    no so muito conhecidos. A maioria dos teatros no conserva sua estrutura do

    V sec. a.C. - reconstrues importantes ocorreram no sculo IV a.C. e no

    perodo helenstico, e principalmente sob a ocupao romana. O teatro de

    Dinisos em Atenas, com suas vrias fases, um exemplo elucidativo deste

    processo. Quando o passante, seja este turista ou pesquisador visita Atenas,

    hoje, o teatro que ele v no tem a mesma estrutura do teatro que squilo ou

    Aristfanes conhecia. O que se v so assentos de pedra em disposio

    curvas, "tronos" individuais na linha da frente, um piso pavimentado, a

    orquestra e uma estrutura elaborada criada no meio da orquestra. O teatro do

    perodo clssico teve bancos em linha reta na encosta, um piso de terra batida,

    a orquestra, o que faz com que os autores chegassem concluso que nesse

    perodo a orquestra no poderia ter sido um crculo perfeito e uma construo

    de madeira na parte de trs da orquestra, a Sken.

    Estamos influenciados pela perfeio clssica do famoso teatro em

    Epidauro. No tocante a Atenas e Siracusa, o teatro foi reconstrudo, enquanto

    em Argos o impressionante e grande teatro do sculo III a.C. foi construdo em

    um novo stio, o teatro do sculo V deveria ser mais compacto e estreito, em

    vez de circular. Para os autores, os teatros que ns temos, de qualquer perodo

    da Antiguidade grega, nos faz, no entanto, lanar um inestimvel lume sobre a

    mecnica da produo. Os kolons eram grandes e uma comunidade sentava-

    se ao ar livre - este no era um teatro de espao fechado e privado, como mais

    tarde se tornar em Roma (Storey & Allan, 2005: 11).

  • 19

    Reconstituio hipottica do teatro de Atenas no V sec. a.C (Moretti, 2011: 50).

    O teatro grego em sua essncia era a cu aberto, a aproveitar a

    paisagem como cenrio, mais que isso. A paisagem faz parte dele que est

    visivelmente interconectado mesma. Disposto no assentamento e integrado a

    ela, o teatro, a expresso material do deus, pode revelar tanto o carter

    desmtes, agrilhoado, de Dinisos, por estar fixo em um lugar, inserido no

    dispositivo social, quanto seu carter lsios ou eleuthrios, ou seja, livre,

    libertador, por continuar em certa medida a cu aberto. importante salientar

    aqui no incio de nossas reflexes o que estamos a entender por agrilhoado.

    Se Dinisos foi por muito tempo um deus de carter selvagem, que muitos

    aludem a uma origem estrangeira, seja da Ldia ou da Frgia. Este deus,

    segundo alguns helenistas, ao ser inserido no centro do dispositivo social,

    principalmente no tempo de Pisstrato e a instituio da tirania em Atenas,

    passa a ser agrilhoado. Quais so ento os grilhes impostos ao deus? Como

    podemos analisar seu agrilhoamento por meio da documentao material?

    possvel que Dinisos seja agrilhoado em seu prprio espao? Se estamos

    abordando lugar como um conceito relacional, que nos fala Julian Thomas

    (2001) estamos a refletir que o agrilhoamento, e consequentemente as

    implicaes que ele acarreta na sociedade grega, pode ser analisado sob a

  • 20

    perspectiva da materialidade. As tenses e ambiguidades inerentes ao deus

    continuam a existir, justamente porque o deus passa a habitar num nico lugar,

    mas ele continua a ser de todo lugar. As pedras do teatro, sua fixao no

    assentamento poderiam ser vistas como os grilhes do deus? Em certa medida

    sim. Mas se o deus agrilhoado, ele tambm Eleuthrios ou lsios, e seu

    carter de libertador tambm est presente ali, no assentamento. Quando o

    teatro disposto de frente para a paisagem, a expresso material do deus lhe

    permite, estar agrilhoado, fixo num lugar, mas tambm liberto. Quando o teatro

    fechado, e nenhum horizonte est vista de quem se senta nos bancos do

    kolon, o deus est completamente agrilhoado. No caso do teatro romano, este

    agrilhoar perfeitamente visvel pois o teatro ali completamente coberto.

    Frente leitura dos helenistas, a nossa posio que a partir de um deus

    agrilhoado, preso nas amarras da esfera social, pode-se estabelecer

    parmetros para tentarmos entender aspectos de um culto que est na esfera

    cvica. O teatro, esse lugar, que no um templo, que serve s reunies

    cvicas e ao divertimento dos gregos, tambm um espao que traz seu

    carter religioso. Aberto para a paisagem, a morada de Dinisos revela o duplo

    aspecto do deus: agrilhoado por estar num local fixo e libertador, por manter-se

    a cu aberto. O deus parte os seus grilhes quando neste espao a ordem

    contestada, o homem se pensa filho de uma ordem divina, mas com suas

    prprias questes a debater e a questionar. No o teatro o lugar onde

    Antgona contesta o sepultamento do seu irmo, opondo-se s leis de Creonte,

    que representa a plis? No tambm no teatro que o poeta Eurpedes d voz

    s mulheres e retrata to bem a sua condio na sociedade grega?

    A palavra agrilhoar traz em si um simbolismo e no teatro, numa das

    peas de squilo, Prometeu agrilhoado por conceder aos homens o fogo de

    Zeus. Condenado a ter seu fgado devorado por uma guia, pssaro que

    simboliza o poder do soberano do Olimpo, a imagem imortalizada por squilo

    do mito, j traz em seu cerne a chave deste conceito. Como o Tit que roubou

    o fogo do soberano do Olimpo, Dinisos est preso a grilhes quando

    retirado dos campos e alocado num local fixo no espao urbano. Os gregos em

    certa medida agrilhoam o deus quando o deslocam de uma esfera selvagem

    e o fazem habitar num espao civilizado. Mas este agrilhoamento o que

    simboliza a totalidade do territrio da plis. Refletimos que so os grilhes que

  • 21

    aprisionam o deus que interconectam khra e sty. Como tantos outros deuses

    da Hlade, quando o deus do vinho veste o hbito de cidado, lembrando uma

    expresso de Sissa e Detienne (1990), ele traz para a cidade aspectos de sua

    fora centrpeta que confunde as fronteiras. Se o deus antes era inslito, ele

    passa a habitar na plis, a ter um local fixo, a se fazer presente no espao, a

    ser delimitado no territrio; o santurio e o teatro fixam Dinisos no

    assentamento, seus grilhes so de pedra, de mrmore. Os tronos honorficos

    sintetizam bem que o deus, agrilhoado a um local, tem para si uma

    institucionalizao, que antes no havia. Assim podemos dizer que h vrios

    aspectos que demonstram os grilhes que em certa medida prendem o deus.

    Existem os grilhes institucionais, e aqui o caso mais emblemtico o da

    tirania que torna Dinisos representante de uma nova ordem vigente, um

    Dinisos Trannos, a ter para si festas no calendrio polade, a representar

    uma nova ordem estabelecida por meio de um golpe. Ento podemos salientar

    que existem os grilhes imateriais e os grilhes materiais. Porque a expresso

    material do deus nos revela aspectos sociais da cidade grega. Assim, com o

    tempo a prpria estruturao em pedra do teatro vai aos poucos agrilhoando o

    deus cada vez mais e a vista do mar ou da paisagem cede lugar a um edifcio

    cnico prprio. Um Dinisos mais urbanizado e menos en agrs vem se

    materializar no espao. Entretanto, ele continua ali de frente para a paisagem a

    revelar sua singularidade, um deus a cu aberto nas pleis do mundo helnico,

    seja na Grcia ou nas suas apoikias.

    1.2. Dinisos e seus eptetos O inventrio de um deus elusivo

    O intento deste tpico tecer breves, mas importantes, consideraes

    acerca das fontes textuais referentes a Dinisos. Por meio dos eptetos

    visualizaremos melhor a interconexo do deus com a khra, os eptetos ou

    suas nominaes nos fazem entender melhor como a divindade se estabelece

    no transcurso do tempo. No deixa de ser uma espcie de inventrio, que

    permite ao arquelogo saber como o deus se estabelece na Hlade. Tais

    nominaes inferem determinados temas implcitos, que nos ajudaro a

    entender o processo que d ao dionisismo sua singularidade e permite-nos

  • 22

    compreender melhor at mesmo nominaes que o firmam em seu prprio

    espao.

    A fonte mais antiga com o nome do deus est em duas plaquetas

    encontradas em Pilos (PY Xa 102 e PY Xb 1419). Na primeira plaqueta l-se Di

    wo nu so Jo. Dionysoio, como um fragmento feito a: tu ni Jo. No

    outro lado da plaqueta est registrado outro fragmento de algo que ainda no

    foi decifrado e diz: no pe ne o para wo no wa ti si, ou seja,

    oinoatisi, que quer dizer mulheres de oinoa. Em ambas as plaquetas

    encontramos a denominao o que Dioniso (Kernyi, 2002: 62). Dabdab

    Trabulsi retoma a questo dos tabletes para mostrar ao leitor a importncia da

    complexidade da tese de uma divindade estrangeira, exgena Grcia. O

    primeiro tablete foi descoberto em 1953 e o nome do deus acima especificado,

    segundo Trabulsi, aparece sozinho, o que levou os seus decifradores a duvidar

    de seu carter divino. Dinisos tido como libertador e este epteto est

    diretamente associado ao nome de Zeus, invocado como seu filho O deus do

    vinho chamado de Eleuthr, filho de Zeus, a quem so sacrificados touros. A

    fonte deste epteto so dois tabletes PY Cn 3 e PY Wa, e-re-te-re, bem como

    no tablete PY Na 18 que consta e-re-u-te-ri, o que pode equivaler a Eleuthr,

    como o deus chamado, que corresponderia ao lber pater dos romanos, o que

    remontaria, segundo Trabulsi ao indo-europeu Ieudh (Kernyi, 2002: 62;

    Trabulsi, 2004: 24). akkhon ou akkhron, banhado na suave luz de Zeus, este

    epteto nos remete ao nome i-wa-ko, cuja leitura em grego pode ser akos,

    achos ou akchos, assim as reminiscncias deste nome nos dizem que

    Tal luz se achava colocada, bem concretamente, sob a mo de um

    personagem divino considerado um duplo de Dioniso, seu nome,

    oriundo da mesma raiz que os dois personativos minicos citados h

    pouco, provavelmente assumiu a forma definitiva akkhos, com base

    no clamor insistente com que era repetido nas procisses (Kernyi,

    2002: 69).

    Assim tal epteto aco, poderia se referir ao nome chamado no clamor

    insistente com que era repetido nas procisses, ou a um tocheiro. Para

    Kernyi, Na figura de aco, preservava-se a ligao de Dioniso com luz e fogo

    (Idem).

  • 23

    Deus de mulheres, Dinisos foi chamado de Likntes, despertado pelas

    mnades, tal despertar se dava na forma de uma cerimnia mstica e tal nome

    indicava que o lkknon era seu receptculo, a saber a caverna que brilhava com

    um esplendor em determinados momentos (Plutarco, De Iside et osiride, 365

    apud Kernyi, 2004: 41). As fontes que ligam o deus ao vinho so inmeras.

    Onops ou wo-no-ko-so, cor de vinho, esse lquido ambivalente como o deus

    em que Homero afirma pela boca da me de Heitor:

    Tnico o vinho, excelente para o homem no extremo das foras, tal

    como te achas, de tanto lutar em defesa da ptria. Ao que o filho

    responde: Me veneranda, no tragas a doce bebida; receio que os

    fortes braos me enerve, vindo eu a perder toda a fora. A reverncia

    me impede de vinho ofertar a Zeus grande com mos impuras. (Hom.

    Ilid. VI, 60 e ss).

    interessante notar que o deus do vinho nunca recebeu o nome de

    mpelos videira, mas na tica era chamado pelo nome de kisss, florente de

    Hera, isso nos atesta Pausnias (I, 31,6). Para Carl Kernyi, possvel

    considerar hera um termo que simultaneamente faz aluso videira e a elude;

    para o autor o nome potico onops ou onopos faz aluso a Dinisos

    claramente (Kernyi, 2002: 56) e pode ser visualizada na tragdia de Sfocles,

    dipo em Colono (v. 675 e ss).

    Os eptetos do deus nos do indcios da forma como ele se insere na

    vida do grego. Como se o homem grego revelasse metforas para descrever a

    sua realidade. Tanto Dinisos, quando os outros deuses so nominados face o

    cotidiano que o circunda. Por exemplo, segundo Natalie Spneto (2005: 18-20),

    a ligao entre Dinisos e a festa das flores indicada em alguns eptetos do

    deus. O primeiro epteto Anthyos. Pausnias (I, 31, 4) o menciona e fala de

    um altar dedicado a ele, sem dar mais explicaes particulares. Um segundo

    epteto Antheus, que novamente Pausnias (VII, 21, 6) menciona ao falar de

    Patrasso, onde vizinho ao teatro era colocado um tmenos em que estavam

    algumas imagens do deus, uma delas de Dinisos Antheus. A terceira epiclese

    Anthister, um genitivo presente numa inscrio encontrada em Thera no sc.

    II a.C. Em todos os trs casos o referir-se s flores encontra-se na raiz dos

    eptetos. Na viso de Spneto, tais aluses no nos permitem ter absoluta

  • 24

    certeza se elas tm a ver ou no com o universo dionisaco. Em alguns casos o

    epteto liga o deus a uma determinada divindade feminina. Em Flia, por

    exemplo, h altares de Apolo Dionysodotos, rtemis Selasphros, Dinisos

    Anthyos e das ninfas Ismenides (Paus I, 31, 4). O quarto epteto que

    interconecta Dinisos com as Antestrias Euanthes citado por Fanodemo

    (FGrHist 325f 12 apud Spneto 2005: 20).

    H um Dinisos Bryktes, ou seja, exuberante. Sobre este aspecto

    Marcel Detienne, salienta:

    (...) um relevo do sculo IV antes da nossa era mostra esse

    companheiro de Dioniso (Briactes), deitado durante o banquete na

    mesma posio que Prxeno das orelhas pontudas sobre as

    montanhas de Delfos. Brukts o Exuberante. Dessa exuberncia

    que domina a cidade de Tebas quando, ao chamado de seu deus, ela

    comea a desabrochar em profuso (brein) desde a verde

    salsaparrilha aos belos cachos, quando se d por inteiro a Baco e se

    cobre de carvalhos e de pinheiros. Luxria vegetal da brinia ou da

    videira que cresce em estado selvagem. Em sua raiz e em seu timo,

    Brukts, o Exuberante (...). O Exuberante pe definitivamente seu

    senhor ao abrigo de uma interpretao que creditasse a Dioniso um

    poder que se dilui nas entranhas da terra, confundindo-o assim com

    deuses que desconhecem sua dnamis, sua potncia singular

    simbolizada pelo sangue e pelo vinho em estado de graa (Detienne,

    1988: 109-110).

    imenso o inventrio desse deus elusivo nas fontes textuais e em

    outros fontes de suporte material que trazem os seus inmeros aspectos. Ao

    longo do nosso trabalho, tais fontes textuais j esto evidenciadas. Dinisos

    grafado em sua histria, seja pelo mito, seja pela histria. Passemos s

    consideraes sobre sua origem e suas viagens pelo mundo helnico.

  • 25

    1.3. O deus, seu nascimento e sua errncia

    Meu corao vagabundo quer guardar o mundo em mim.

    Caetano Veloso

    Um dia Zeus Porta-gide se disfarou de mortal e manteve em segredo

    um caso amoroso com uma bela mulher de nome Smele, uma das filhas de

    Cadmo, rei de Tebas. O relacionamento extraconjugal de Zeus enfureceu a

    deusa Hera que, enciumada, disfarou-se de uma velha vizinha e aconselhou a

    bela amante de Zeus, nessa altura j grvida de seis meses, que pedisse ao

    soberano do Olimpo um favor, que seu misterioso amante no iria lhe poder

    negar: que o mais poderoso dos deuses a ela se mostrasse como de fato era

    em sua verdadeira natureza. Num primeiro momento, Zeus recusou-se a

    atender-lhe o pedido e Smele, resoluta, negou-se a deitar em seu leito. Ento,

    furioso, o Senhor do Olimpo se mostrou em toda sua fulgurncia, incinerando a

    me de Dinisos. No entanto, o deus Hermes salvou-lhe a criana divina, o

    costurou na coxa daquele que detm o raio e o trovo e reina por sobre todos

    os deuses, para que houvesse a sua segunda gestao. Por este fato, o

    exuberante Dinisos ficou conhecido em toda a Hlade como o deus duas

    vezes nascido, que pode, sobretudo, ser definido como a criana parente de

    Zeus-o-Pai. Portanto, o deus do vinho, mais que qualquer outro, a carne de

    Zeus (Apol. III. 4. 3; Apol. de Rodes IV. 1137; Graves, 2004: 62; Tassignon,

    2001: 324).

    Na antstrofe de uma das mais importantes documentaes textuais

    sobre o deus do vinho As Bacantes, belamente Eurpides em seus versos,

    canta deste modo o nascimento de Brmios2:

    Aquele

    que saiu das entranhas

    da me que, tomada

    das dores da maternidade,

    ao som do trovo alado de Zeus,

    fulminada pelo raio,

    abandonara a vida.

  • 26

    Mas logo o recebeu num abrigo,

    onde havia de nascer, Zeus Cronida

    ocultando-o na sua coxa

    prendendo-o com fbulas douradas,

    a ocultas de Hera.

    Deu-o luz, quando as Parcas

    fixaram, esse deus de chifres de touro,

    coroou-o com uma coroa

    de serpentes () (Eurpides, vv. 87-103).

    Assim nasceu o Filho de Zeus e de Smele. Hesodo, na Teogonia e nos

    Trabalhos e os dias (947; 614) o denominou Dinisos de ureos cabelos) e

    Dinysos Polyghets (Dinisos das muitas alegrias). J nos versos do maior

    aedo da Grcia, na Ilada (Hom.: VI, 130; XIV, 325), o deus surge como

    mainomnoio Dionsoioo delirante Dinisos) e khrma Brteion (alegria dos

    mortais).

    Devido s perseguies da deusa Hera3, um dos mitos mais recorrentes,

    que o deus fora criado no vale do Nisa. Seguindo instrues de Zeus,

    Hermes transformou Dinisos momentaneamente num cabrito e ofereceu-o s

    ninfas Mcris, Nisa, rato, Brmia e Baca, que habitavam no vale do Nisa,

    junto ao Monte Hlicon. As ninfas cuidaram do filho de Zeus, numa gruta, a

    nutri-lo de mel e leite, mimando-o com tal ternura que o Senhor do Olimpo as

    colocou entre as estrelas, nomeando-as de Hades (Apol. III. 4.3; Higino:

    Fbulas, 182; Tcon, Sobre os Fenmenos de Arato. 177; Diod. Sic. III. 68-69;

    Apol. de Rodes IV. 1131; Srvio: clogas de Virglio VI, 15). No monte Nisa,

    2 Brmios um dos nomes de Dinisos ou Baco, em honra de quem se grita Evo! Rocha Pereira,

    M.H. In: As Bacantes. Esclio. 3 O dio de Hera por Dinisos e por sua taa de vinho, bem como a hostilidade de Penteu e Perseu,

    demonstram a oposio conservadora face ao uso ritual do vinho e em relao ao comportamento

    extravagante das mnades que num verdadeiro surto de contgio se irradiou da Trcia at Atenas,

    Corinto, Sicione, Delfos e outras cidades civilizadoras por volta do final do sc. VII e incio do VI a.C.

    Graves nos lembra que Periandro, tirano de Corinto, Clstenes, tirano de Sicione, e Pisstrato, tirano de

    Atenas, teriam eventualmente decidido aprovar o culto e institudo festivais oficiais em honra ao deus do

    vinho. H que se fazer um paralelo entre o mito e a histria destas cidades. E por isso o autor argumenta

    que a partir da que se admite que Dioniso e a sua vinha tenham acabado por ser aceites no cu onde vai substituir Hstia no rol dos doze deuses do Olimpo em finais do V sec. a.C. (Graves, 2004: 116).

  • 27

    Dinisos teria inventado o vinho.4 interessante perceber aqui o deus, como

    um deus civilizador. Ao atentar para a fora do vinho, num dos tpicos do seu

    Dioniso a cu aberto, Detienne estabelece um paralelo entre Dinisos e

    Demter e percebe que este novo deus venerado sob o nome de Orths,

    ereto; tomando as palavras antigas de Filcoro o autor nos lembra que

    bebendo o vinho bem misturado que os homens deixam de ficar encurvados,

    como acontecia com o vinho puro. O vinho, como o prprio deus, tambm

    agrilhoado, por seu elemento oposto, a gua. Ao traar a homologia que h

    entre o deus do vinho e a senhora dos trigais, o autor nos coloca ante este

    ideal civilizador. Tanto Demter quanto Dinisos passam por este processo;

    vinho e po civilizaram o grego e por isso o autor nos mostra que

    Entre Dioniso e Demter, a homologia prolonga-se no plano dos

    alimentos: antes que os mortais descobrissem o trigo e o po,

    comiam razes, plantas e frutos silvestres, condenados a comer

    alimentos crus e pesados, submetidos a uma dieta destemperada,

    como narra o autor da Antiga medicina. Alimentos kreta como o

    vinho puro, e que produziam dores violentas, doenas e no raro

    morte sbita. O vinho bem temperado inaugura o gnero da vida

    cultivada, da mesma forma que a comida base do trigo modo de

    Demter se introduz em campos e aldeias. tambm, e sob a

    proteo de uma e de outra divindade, o incio de uma arte de viver

    cuja regra se reparte entre a reflexo diettica, as prticas culinrias e

    o saber mdico (Detienne, 1988: 68).

    Voltando s andanas do deus. O menino ento se tornara adulto e,

    apesar de seus ares afeminados, por ter sido criado entre as ninfas, a deusa

    Hera, o reconheceu e o ensandeceu, sendo o deus condenado a vagabundear

    4 Graves (2004: 114) faz uma importante observao sobre a inveno do vinho e sua origem lendria: A

    trama de toda a lenda mstica em torno de Dioniso assenta essencialmente na difuso do culto da vinha

    atravs da Europa, sia e norte da frica. O vinho, porm, no foi inventado pelos gregos, parecendo ter

    sido, muito pelo contrrio, importado inicialmente em botijas e garrafas, de Creta. Existiam uvas bravas

    na costa meridional do Mar Negro, cuja cultura se estendeu at o Monte Nisa, na Lbia, atravs da

    Palestina, e da, portanto, at Creta; atingiu a ndia atravs da Prsia, e a Gr-Bretanha, na Idade do

    Bronze, pela Estrada do mbar. As orgias em torno do vinho na sia Menor e na Palestina os tabernculos, solenidades dos cananeus, eram, originalmente orgias ao estilo de bacanais foram marcadas por estados idnticos de xtase aos das orgias em torno da cerveja na Trcia e na Frgia. O

    triunfo de Dinisos advm do fato de o vinho ter substitudo, praticamente em todas as regies, outros

    elementos excitantes, como a cerveja, por exemplo. Neste caso, o autor argumenta a supremacia do vinho

    e sua cultura em relao a outras bebidas no mundo grego.

  • 28

    pelo mundo afora (Eurpides, Bac. vv. 99-102; Onomacritus citado por

    Pausnias: VIII. 37.3; Diod. Sic. III. 62; Hino rfico XIV. 6; Clemente de

    Alexandria: Ex. aos gregos, II. 16; Graves, 2004: 111).

    Quem o acompanhava, onde quer que fosse era o seu tutor Sileno e

    seus seguidores, um verdadeiro exrcito de stiros e mnades, usando como

    armas bastes cobertos de hera, a ter na ponta uma pinha, conhecidos por

    tirsos. Conta o mito que o deus navegou at o Egito, a trazer consigo a vinha.

    Herdoto (II, 49) j h muito mencionou que Dinisos um deus estrangeiro,

    encontrado no Egito. Entretanto devemos constatar que o filho de Zeus no o

    nico deus grego que o historiador de Halicarnasso encontra entre as

    pirmides. Giulia Sissa e Marcel Detienne nos iluminam sobre a presena do

    deus nas terras de Osris

    () Sem dvida os egpcios conhecem Dioniso, so mesmos os

    primeiros a t-lo conhecido. Dioniso-Osris que eles celebram da

    mesma maneira que os gregos. Apenas com a diferena que em vez

    de passear o falo como as helenas, as mulheres do Egito

    processionam as estatuetas articuladas que fazem movimentar-se por

    cordas e cujo membro viril se agita vigorosamente () (Sissa &

    Detienne, 1991: 245-6)

    Ao chegar a Faro foi acolhido pelo rei Proteu. Ali o deus teria convidado

    certas rainhas amazonas a marcharem com ele contra os tits e a restiturem o

    trono ao rei Amon. Posteriormente o deus seguiu na direo leste e rumou para

    a ndia, prximo ao Eufrates. L teve que enfrentar o rei de Damasco, a quem o

    deus arrancou a pele em vida e sobre o rio construiu uma ponte feita de hera e

    de vinha; eis que surge logo em seguida um tigre, enviado por seu pai que o

    ajudou a atravessar o rio Tigre. Ao alcanar a ndia, em seu caminho, teve que

    lutar intensamente para conquistar o pas inteiro, onde instituiu a arte da

    viticultura, decretando ali leis e fundando magnficas cidades (Apol. III. 5. 1;

    squilo, Os ed. Frag.; Diod. Sc. III. 70-71; Graves, 2004: 111).

    As diversas variantes do mito de Dinisos, seu carter errante, reflete, o

    que poderamos chamar de uma expanso dionisaca, nas regies onde os

    gregos chegavam, pois

  • 29

    medida que se estendia o horizonte geogrfico dos gregos, o ciclo

    de lendas relativas a Dinisos e s suas expedies tomavam maior

    incremento. Este feito surpreendente, sobretudo, a partir das

    campanhas de Alexandre, que se assemelha a outro Dinisos, a

    avanar como vencedor at os mais remotos confins do globo

    terrestre conhecido pelos gregos. Reproduz-se a este respeito o

    fenmeno que notamos para outras divindades, em particular rtemis.

    Havendo encontrado no estrangeiro um deus que parecia ter, por sua

    essncia, certa semelhana com Dinisos, os helenos no vacilavam

    em estabelecer identificaes que estenderam singularmente ao

    domnio do filho de Zeus e de Smele. Conquistador este, de todos

    os pases com os quais os gregos estabeleceram relaes, ele se

    encontrava tanto na frica quanto na sia, no Egito, na Lbia, na

    Etipia, entre os pases rabes, e tambm na Bctria e at na ndia

    (Richepin, 1957: 394).

    Em seu regresso o deus foi surpreendido por um ataque de Amazonas,

    cujas hordas teria perseguido at feso, tendo algumas delas refugiando-se no

    santurio do templo da deusa rtemis, outras escaparam para Samos, mas

    estas o deus do vinho perseguiu de barco, matou tantas que o campo de

    batalha passou a se chamar Panema. Por fim, o deus regressou Europa,

    passando pela Frgia5, onde sua av Rea o purificou dos imensos crimes que

    cometera durante a sua loucura, iniciando-o nos segredos dos seus mistrios.

    Depois disso, ele invadiu a Trcia. No entanto, mal os seus homens chegaram

    foz do rio Estrimo, Licurgo, rei dos Ednios, conhecido como o repelidor de

    lobos os atacou selvagemente e com o aguilho de bois capturou-lhe o

    exrcito, enxotou as mnades atravs da plancie sagrada do Nisa e, todas

    simultaneamente deixaram cair os seus instrumentos sacrificais, fustigadas

    pelo matador de homens, salvo o prprio deus, que se lanou no mar e

    refugiou-se, amedrontado, nos braos de Ttis. Contrariada, a deusa Rea no

    s ajudou os prisioneiros a fugir, como ainda enlouqueceu Licurgo que,

    ensandecido, matou o prprio filho, Drias, com uma acha, supondo que estava

    5 Na Frgia e na Ldia, os documentos relativos ao culto de Dinisos so numerosos: algumas vilas

    frigianas, entretanto, aparecem como lares dionisacos porque vrios documentos votivos concentram-

    se a. A especificidade dessa documentao associada a essa densidade e paisagem religiosa geral

    desses territrios levam a considerar a Anatlia como uma das peas chave da histria do culto de

    Dinisos. De fato, mesmo se os tabletes em Linear B deram o nome que o deus devia ter na Grcia desde

  • 30

    a derrubar uma vinha e, antes de voltar a si, de recuperar a razo, pensou

    estar a podar uma videira, arrancando assim o nariz, as orelhas, os dedos dos

    ps e das mos do cadver. Este fora um crime to atroz que todo o solo da

    Trcia se tornou estril. Ao regressar do mar, Dinisos fez anunciar que os

    campos continuariam ridos se acaso Licurgo no morresse. Conta-se o mito

    que os Ednios conduziram o rei ao Monte Pangeu, atrelaram-no a quatro

    cavalos, fustigaram os animais, que lhe despedaaram o corpo (Apol. III. 5.1;

    Hom. Iliad. VI. 130-40; Burkert, 1993: 323; Graves, 2004:112).

    Findados seus problemas na Trcia o deus prosseguiu viagem e seguiu

    para a Becia, onde chegou a Tebas e convidou as mulheres a juntar-se a ele,

    nas suas orgias no Monte Citron. Isabelle Tassignon nos mostra que as fontes

    textuais e fragmentos literrios relatam a chegada de Dinisos numa plis

    grega e seu encontro com o rei situam sempre o deus no centro de uma ao a

    desenvolver-se sob as mesmas modalidades. Tassignon argui que na pea As

    Bacantes o deus descrito como um estrangeiro vindo da Ldia, a retornar para

    o seio da famlia materna para se fazer reconhecer como deus. O rei de Tebas,

    Penteu, seu primo. A autora salienta ainda que na Ilada Homero evidencia

    como seus parentes Tns, Tlefo, Perseus ou Orfeu, estes so reis e heris

    filhos de Zeus, Hracles ou Apolo, que, por sua paternidade divina, possuem

    um parentesco distante com Dinisos, que no so homens mpios: contudo

    estes jovens heris no o reconhecem como um deus e o excluem de seus

    sacrifcios, e preferem honrar a Apolo que aparece em cada um destes casos

    como uma grande divindade local (Tassignon, 2001: 309-310). Ao estabelecer

    um paralelo entre a pea de Eurpides e os versos de Homero, a autora

    evidencia uma matriz no mito que permeia a chegada de Dinisos e a sua luta

    para se fazer reconhecer como divindade. Basta que lembremos tambm das

    perseguies que a deusa Hera lhe infunde at que finalmente ele ascenda ao

    Olimpo, tome o lugar de Hstia que amistosamente o cede, e seja reconhecido

    no panteo. J em Tebas, que um modelo de cidade grega arcaica,

    Dioniso chega disfarado. No se apresenta como o deus Dioniso,

    mas como o sacerdote do deus. Sacerdote ambulante, vestido de

    a segunda metade do II milnio, vrios so os testemunhos literrios que descrevem Dinisos como um estrangeiro vindo da sia Menor como um ldio ou como um frgio. (Tassignon, 2002: 233).

  • 31

    mulher, ele usa o cabelo comprido batendo nas costas, tem tudo do

    meteco oriental, olhos escuros, ar sedutor, bem-falante tudo o que

    pode perturbar e irritar Penteu, o semeado do solo de Tebas

    (Vernant, 2000: 152).

    na bela passagem de Antgona que Sfocles d voz ao coro para

    caracterizar um Dinisos tebano, flamante e epifnico:

    (...)

    (Elusis)

    Em Tebas, mter-polis

    Baco,

    vives beira-Ismeno

    flmen sinuoso

    onde o drago

    foi semeado.

    O fumo flmeo,

    rocha duplicume acima,

    te escrutina,

    e a fonte castlia;

    (...)

    No universo das urbes,

    nenhuma angariou tanto de ti

    e de tua me,

    que o corisco eclipsou!

    Grave molstia empesta

    o bojo das cidadelas

    no presente:

    vem,

    transpe com teus ps

    (pura catarse!)

    as grimpas do Parnaso

    e o Euripo, estreito carpidor!

    Coreografas o estelrio

    flmeo-arfante,

    orquestras o vozerio noctvago,

    prole de Zeus;

    propicia tua epifania,

    prncipe,

  • 32

    precpuo no squito das Tades

    mnades noturnas

    em dana trbida

    por quem as inspira

    Iaco! (Sfocles, Ant. vv. 1120 e ss)

    Nesta Tebas, em que as tades noturnas danam e inspiram o deus, o seu

    primo Penteu, rei desta plis, ordenou que o prendessem e ao seu squito de

    mnades. Uma vertente do mito narra que enlouquecido, o rei, ao invs de

    agrilhoar o deus, agrilhoou um touro. As mnades fugiram num estado de

    completo frenesi e subiram s montanhas onde esquartejaram quantos animais

    de pequeno porte encontraram. Penteu quis det-las, mas estas, inebriadas

    pelo vinho e possudas pelo xtase arrancaram-lhe os membros um por um e

    a primeira a comear o ritual de morticnio a me, que cai sobre ele.

    Penteu atira com a mitra que tinha sobre o cabelo, para que,

    reconhecendo-o, o no imolasse a desventurada Agave. Toca-lhe na

    face e diz: Sou eu, me, o teu filho Penteu, a quem deste luz no

    palcio de Equon. Compadece-te de mim, me, no sacrifiques o

    teu filho por causa dos meus desvarios.

    Com a boca a espumar e revolvendo os olhos em todas as direes,

    sem saber pensar direito, e dominada por Baco, no a persuadiu o

    filho. Agarra-lhe o antebrao esquerdo, apia o p no flanco do

    desventurado e desarticula-lhe o ombro, no pela sua prpria fora,

    mas pela destreza que o deus infundira em suas mos (Eur. Bac. vv.

    1114-1128).

    O deus seguiu ento sua itinerncia e chegou a Orcmeno. L as trs

    filhas de Minos, Alctoe, Leucipa, e Arsnoe, recusaram-se a participar das

    orgias, ainda que Dinisos estivesse usando trajes feminis e viesse convid-

    las. Ante os olhares espantados das mulheres, devido sua decepo, o deus

    transformou-se primeiro em leo, depois touro, por fim, em Pantera. Por fim

    enlouqueceu as filhas de Minos. Leucipa ento ofereceu seu filho Hpaso em

    sacrifcio e as trs irms, aps o terem esquartejado e o devorado, correram

    para as montanhas em xtase, at que Hermes por fim as transformou em

    pssaros, embora se diga que o deus do vinho as tenha transformado em

    morcegos. Em Orcmeno, todos os anos se celebravam as chamadas

  • 33

    Agrionias, e se revivia o assassinato de Hpaso do seguinte modo nas

    cerimnias: as devotas fingiam procurar Dinisos e ao conclurem que este

    devia ter partido com as musas, sentavam-se em crculo trocando

    adivinhaes, at que surgisse de sbito do templo o sacerdote de Dinisos

    armado de lana a matar a primeira mulher que encontrasse (Ovid.

    Metarmofoses IV. 1-40; 390-415; Anton. Liberalis. 10; Eliano: Hist. Variae III.

    42; Plut. Questes gregas 38; Graves, 2004: 112-113).

    Quando enfim toda Becia o reconheceu ele partiu em viagem pelas ilhas

    Egeias, a espalhar, onde quer que passasse, a alegria e o terror. Ao chegar a

    Icria, como o barco que utilizava no possua condies adequadas para ficar

    no mar, o deus alugou outro de uns marinheiros tirrenos que diziam rumar para

    Naxos. No entanto, eram piratas, que ignoravam estar a transportar um deus,

    desviaram ento da rota e seguiram em direo sia com o intuito de vend-

    lo como escravo. Ao perceber as verdadeiras intenes dos piratas, conta-se

    que o deus fez brotar do convs do navio uma cepa de vinha que se enrolou ao

    mastro, exrcia cobriu-a de hera, dos remos fez serpentes, e ele prprio se

    transformou em leo e de todos os recantos do barco saam fantasmas de

    animais, bem como se ouvia sons de flautas. Os piratas, tomados pelo pnico,

    saltaram para fora do barco e foram transformados por Dinisos em golfinhos.

    (Hino Hom. a Dioniso 6 ss; Apol. III. 5. 3; Ovid. Metam. III. 577-699; Graves,

    2004: 113).

    Chegando a Naxos o deus conheceu a princesa Ariadne, abandonada na

    ilha por Teseu quando do regresso expedio em que matou o Minotauro6. O

    deus ento a toma por sua consorte, tendo com ela os filhos Enpion, Toas,

    Estfilo, Latromis, Euantes e Taurpolo. O mito narra que Dinisos a levou

    consigo e colocou seu toucado de noiva entre as estrelas (Esc. a Apol de

    Rodes: III. 996; Hes. Teog. 947; Higin. Astr. Potica: II. 5; Graves, 2004: 113).

    De Naxos o deus teria seguido para Argos e punido o heri Perseu por ter

    6 O mito de Dinisos e Ariadne, segundo Burkert (1993: 322-23), encontra-se no contexto das

    Antestrias. Na verso dominante Teseu abandona Ariadne, seja por vontade prpria ou no. Assim,

    Dioniso e Ariadne so representados sempre, de novo, como par amoroso. No ritual tico das Antestrias,

    a mulher do rei baslinna, oferecida a Dioniso como mulher, tal como Teseu abandona Ariadne ao deus. Este casamento sagrado, porm, rodeado de rituais sombrios e tem lugar entre um dia de

    aviltamento e sacrifcios em honra do Hermes Ctnico. Em Naxos, existem duas festas de Ariadne,

    uma alegre e despreocupada e outra com luto e lamentaes. O casamento com Dioniso ensombrado

    pela morte o consumo do vinho obtm uma dimenso profunda, comparvel satisfao pela ddiva de Demter.

  • 34

    combatido contra os seus seguidores e a muitos arrancado a vida. Como

    punio o deus enlouqueceu todas as mulheres do pas, as quais, sem juzo

    algum, colocaram-se a devorar os prprios filhos vivos. Perseu logo

    reconheceu seu erro e para apaziguar a fria de Brmios erigiu um templo em

    honra ao deus (Graves, 2004: 113).

    Finalmente, aps estabelecer seu culto no mundo, Dinisos ascendeu ao

    Olimpo e sentou-se ao lado de seu pai Zeus entre os doze grandes deuses.