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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS UM CORPO PARA O TRÁGICO Corporeidade e Erotismo na tragédia Fedra de Sêneca LEYLA THAYS BRITO DA SILVA 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    UM CORPO PARA O TRGICO

    Corporeidade e Erotismo na tragdia Fedra de Sneca

    LEYLA THAYS BRITO DA SILVA

    2016

  • UM CORPO PARA O TRGICO

    Corporeidade e Erotismo na tragdia Fedra de Sneca

    LEYLA THAYS BRITO DA SILVA

    Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Letras, da Universidade Federal da Paraba, como requisito para obteno do ttulo de Doutor em Letras, na rea de concentrao Literatura e Cultura, e linha de pesquisa Tradio e Modernidade, sob a orientao da Prof. Dr. Sandra Amlia Luna Cirne de Azevedo.

  • CDU: 821.124(043) UFPB/BC

    S586c Silva, Leyla Thays Brito da. Corporeidade e erotismo na tragdia Fedra de Sneca /

    Leyla Thays Brito da Silva. - Joo Pessoa, 2017. 227 f.

    Orientadora: Sandra Amlia Luna Cirne de Azevedo. Tese (Doutorado) UFPB/CCHL

    1. Literatura Latina. 2. Sneca, Luciu Aneu, 4aC - 65. 3. Corpo Smbolo (Linguagem). 4. Erotismo. 5. Tragdias (Literatura) Interpretao. I. Ttulo.

  • Esta tese foi julgada e aprovada para a obteno do ttulo de doutor em

    letras, no Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal da

    Paraba.

    Joo Pessoa, 16 de junho de 2017

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________________

    Sandra Amlia Luna Cirne

    Orientadora

    Profa. Dra. Ana Luisa dos Santos Camino

    ________________________________________________________

    Prof. Dr. Romero Jnior Venncio Silva UFS

    Prof. Dra. Danielle Dayse Marques de Lima - UFPB

    ________________________________________________________

    Prof. Dr. Abraho Costa Andrade - UFPB

  • A urgncia de uma necessidade: Aquela de suprimir a ideia e seu mito,

    E de fazer reinar, em seu lugar A manifestao dessa explosiva

    necessidade: Dilatar o corpo de minha noite interna,

    Do nada interno De meu ser Que noite,

    Nada Irreflexo

    Mas que uma explosiva afirmao:

    De que h qualquer coisa a dar espao: O meu corpo.

    (Antonin Artaud)

  • DEDICATRIA

    minha v, Quinlia (in memoriam), que inundou minha imaginao

    com seus contos e mitos.

  • AGRADECIMENTOS

    Prof. Dr. Sandra Luna, pela formao literria, potica, ertica, enfim, humana, e pelos desafios para uma escrita harmnica, em que o logos e o mythos estejam em equilbrio, e, sobretudo, pelo exemplo da escrita como lugar de afirmao do Eros particular. Prof. Dr. Eunice Simes, por me apresentar a Teoria do Imaginrio, sob um ponto de vista potico e sagrado. Prof. Dr. Neide Miele, pelo referencial acadmico e existencial do sagrado feminino como substncia e alimento.

    Ao Prof. Dr. Fabrcio Possebon, pela confiana, pelo ensino do latim, pelos inmeros livros concedidos e pelas palavras amigas.

    amiga Gracilene Flix, pelo Eros fraterno de completa dedicao e cuidado.

    A Cdric Hello, pelo mergulho ertico, que nutriu parte desta tese.

    Ao cl feminino, Marleide Brito (me), pelo aconchego do tero e do colo; Geyziana Brito e Mrcia Brito (irms), pelo amor externado nas discusses e nos carinhos; e Maria Jlia Brito (sobrinha), pela florescncia dos dias.

    Dr.a Ivone Vita, guia do retorno e renascimento, para a vida ps-erotismo.

  • RESUMO

    Este trabalho dedicou-se ao estudo da tragdia Fedra, do poeta latino Sneca (sc. I

    a.C), tendo como impulso investigativo a descoberta de que o enredo da referida obra

    trazia uma matria simblica, que convidava a um olhar para alm da doutrina estoica,

    na qual a obra de Sneca se insere, e da tradio crtica que o alijara de uma posio

    central na dramaturgia ocidental. Apesar da formao do poeta no Estoicismo e das

    suas vrias produes de carter doutrinrio, supomos que a Fedra apresentava

    componentes poticos e dramticos que levavam a outra leitura. Tambm na

    contramo de uma tradio crtica que menosprezou os valores estticos ultrapatticos

    e terrificantes da obra trgica de Sneca, procuramos identificar exatamente nesses

    componentes, to atuantes no texto do poeta, a estrutura potica e dramtica da pea

    em anlise. Portanto, consideramos que a base mtico-simblica, formuladora de

    imagens cruas, passionais e violentas, revelava uma coeso, ainda no vista pela

    crtica. A identificao dessa matria particular considerou elementos fundamentais ao

    contedo trgico da pea, a relao entre corpo, erotismo e morte e sua poetizao

    atravs do signo simblico. Nesse sentido, entendemos que o smbolo o vetor da linguagem da Fedra; a investigao sobre sua natureza, identificada na corporeidade,

    pediu a perquirio de uma forma particular de conhecimento, aquele que advm do

    corpo. Assim, o termo corporeidade, como totalidade da condio humana, em que

    corpo e a mente atuam conjuntamente na elaborao dos saberes, aparece como

    conceito terico importante para esta pesquisa. O smbolo como uma linguagem que

    advm do corpo, tal como identifica o antroplogo Gilbert Durand, ajudou-nos a

    identificar o principal conhecimento da Fedra de Sneca, de que pelo corpo que os

    grandes conhecimentos e eventos da vida so formulados.

  • RESUM

    Ce travail est consacr l'tude de la tragdie Phdre, du pote latin Snque (1er

    sicle ap J.-C), afin didentifier la matire symbolique dans le noyau tragique de cet

    oeuvre. Bien que le pote Snque aie une enorme production de caractre doctrinal

    dorientation stocienne , nous supposons que sa Phdre a des lments potiques et

    dramatiques qui nous conduisent une autre lecture. Malgr une tradition critique qua

    dnigr les aspects ultrapathtiques, des valeurs esthtiques terrifiantes, nous essayons

    d'identifier exactement ces aspects comme composants actifs de la structure potique et

    dramatique de la Phdre. Par consquence, nous considrons que la base mythique-

    symbolique, formulatrice des images brutes, passionnes et violentes, rvle une

    cohsion, pas encore vu par la critique. Donc, nous essayons de trouver les concepts

    cls du contenu tragique de la pice, dans la relation entre corps, rotisme et mort et

    aussi sa potisation travers les signes symboliques. En ce sens, notre recherche

    conprend le contenu tragique au niveau de la corporit des personnages. Ainsi, le

    terme corporit, en tant que totalit de la condition humaine, dans laquelle le corps et

    l'esprit sont impliqus dans le dveloppement des connaissances, apparat comme un

    concept thorique important pour cette recherche. Le symbole comme un signe qui vient

    du corps, telle que la thorization de l'anthropologue Gilbert Durand, nous a aid

    identifier la connaissance principal de la Phdre de Snque: le drame entre l'amour et

    la mort a toujour lieu dans le corps.

  • ABSTRACT

    This work dedicates itself to the study of the Senecas Phaedra a tragedy written by the

    Latin poet in the 1st century BC. The research has as its investigative urge the

    identification of symbolic as the core of the plays tragic plot. Despite the poets

    education in Stoicism and his various doctrinal dramatic productions, we assume that Phaedra features poetic and dramatic components that evoke the possibility of a

    different reading. Against a critical tradition that underestimated the ultra-pathetic and

    appalling components of Senecas tragic work, we try to find in these aesthetic features Phaedras poetic and dramatic structure. Therefore, we consider that the mythic-

    symbolic basis, expressed through raw, passionate and violent images, reveals a

    cohesion still not seen by critics. Thus, we propose that the relationship between body-

    eroticism-death and its poetization through symbolic signs constitute the fundamental

    elements of the plays tragic content and structure. In this sense, this research identifies

    the tragic in the characters corporeality. Consequently, the term corporeality, as a

    totality of the human condition in which body and mind are involved in the development

    of knowledge appears as a fundamental theoretical concept. The symbol as a sign that

    emerges from the body, as proposed by the anthropologist Gilbert Durand, serves to recognize that the Senecas Phaedra implies in its composition uninterrupted drama between love and death affecting the body and the whole of human existence.

  • SUMRIO

    INTRODUO..........................................................................................................12 I CORPO E CONHECIMENTO...............................................................................19

    1. Corpo X Alma.......................................................................................................22 1.1. Corpo e conscincia na mitologia grega........................................................22

    1.2. Lgos x corpo no pensamento platnico.......................................................25

    1.3. Corpo, imaginao e entendimento no pensamento aristotlico...................31

    1.4. Uma Fenomenologia do corpo.......................................................................39

    1.4.1. A fenomenologia transcendental de Husserl..................................................42

    1.4.2. Merleau-Ponty: corpo, luz natural e verbo......................................................49

    2. Smbolo no Corpo: a teoria do imaginrio de Gilbert Durand........................66 2.1. A Hermenutica Simblica: para uma definio do smbolo.........................69

    2.1.1 O Smbolo no Contexto Sagrado: o conceito de hierofania em Mircea Eliade........................................................................................................................70

    2.1.2. O smbolo no universo dos sonhos.................................................................73

    2.1.3. O smbolo na imaginao potica...................................................................74 2.2. O smbolo como Signo.......................................................................................76

    3. Smbolo e trajeto antropolgico.........................................................................84 3.1. Os gestos dominantes................................................................................................................84

    3.2. A organizao das imagens: as estruturas do imaginrio e seus

    Regimes....................................................................................................................90

    3.3. Por um mtodo mtico-cientfico: a itodologia.....................................................93 3.4 O imaginrio e a integralidade do ser.................................................................99

  • II. O EROTISMO E O TRGICO.............................................................................103 1. Um rendez-vous com o Erotismo...................................................................103

    1.1. O Profano e o Sagrado na Experincia Ertica............................................105

    1.2. Freud e as pulses de vida e de morte........................................................110

    1.3. Erotismo e morte: descontinuidade e continuidade do ser..........................115

    1.4. Erotismo, uma experincia interior.............................................................123

    1.5. Interdito e Transgresso.............................................................................127

    1.5.1. Os interditos ligados morte ............................................................. 131

    1.5.2. Os interditos ligados reproduo .................................................... 132

    1.6. Erotismo e Transgresso..............................................................................134

    2. Tragdia ou o ritual de Eros........................................................................140

    2.1. A tragdia: forma e contedo.............................................................140

    2.2. Filosofia do trgico.............................................................................152

    2.3. O erotismo como fenmeno trgico...................................................161

    2.4. Erotismo e tragdia............................................................................167

    III. A TRAGDIA DE SNECA: Erotismo e Crueldade............................................173

    1. Sneca e o teatro da carne.........................................................................173

    1.1. A mimesis do monstruoso humano.........................................................177

    1.2. Carne crua ou o teatro da crueldade.......................................................185

    1.3. Corporeidade e Erotismo..........................................................................190

    2. Fedra: um corpo para o trgico..................................................................192

    2.1. A mulher est condenada a amar...........................................................192

    2.2. O mito de Fedra ..................................................................................... 196

    2.3. Enredo da Fedra .................................................................................... 198

    3. Uma mitocrtica da Fedra de Sneca ....................................................... 200

  • 3.1. O dardo e a espada: Arma guerreira ou arma ertica? ......................... 201 3.2. O amor no corpo ou o furor ertico ........................................................ 207

    3.3. Corpo e Sacrifcio: a morte inicitica de Hiplito .................................... 226

    3.4. O nos da Fedra ................................................................................... 235

    IV. CONSIDERAES FINAIS ............................................................................ 237 V- REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................. 245

  • 12

    INTRODUO

    A investigao que constitui este trabalho foi motivada pelo desejo de

    compreender a particular modelagem ertica e mtica dada ao mito da herona

    grega Fedra, na tragdia homnima, escrita pelo filsofo estoico e poeta latino

    Sneca, no sculo I a.C. A imagtica da pea Fedra, permeada por um tom

    terrificante, fantasmagrico e onrico, incitou o estudo dos signos mtico-

    poticos que pareciam se contrapor, numa certa medida, ao discurso estoico-

    moralizante j notrio na obra de Sneca.

    Como se sabe, a produo filosfica senequiana uma das principais

    propagadoras do Estoicismo, na Roma imperial de Cludio e Nero. Em funo

    disso, sua tragediografia terminou por ser considerada, por parte da crtica,

    como tratados filosficos guisa de dramas. Ao se refletir sobre a escolha de

    Sneca pelo gnero trgico, enquanto uma das formas literrias a que se

    dedicou, foi-se motivando, por um lado, a questionar essa superioridade do

    discurso doutrinrio em relao a um gnero literrio, cuja composio

    marcada por um ato de transgresso humana e seus desdobramentos

    trgicos1. Por outro lado, a caracterstica majoritariamente simblica da

    potica de Sneca leva a uma certa dificuldade na apreenso de categorias

    fundamentais ao gnero dramtico, tais como as noes de enredo e ao.

    Uma definio limitada dessas categorias ver, nas peas senequianas,

    apenas um aglomerado de imagens dispersas, contraditrias noo de

    unidade de ao, to cara aos estudos do drama. Diante dessa dificuldade,

    optou-se por investigar a possibilidade de uma unidade dramtica, em que

    enredo e ao adquirem um tom particular, a partir do substrato dos smbolos

    mticos e poticos constitutivos da Fedra. Uma vez que se suspeitou de que a

    linguagem simblica e suas relaes com a corporeidade so as linhas de

    fora de sua potica, parece indispensvel uma investigao sobre a questo

    da corporeidade e suas elaboraes de significados na estrutura dramtica da

    pea.

    Para alcanar tal compreenso, no primeiro captulo, ser feita uma

    leitura da tradio filosfica ocidental, tendo como ncleo de investigao a

    1 Potica hybris

  • 13

    relao entre corpo e conhecimento. Ao longo desse percurso, identifica-se

    que a constituio do pensamento filosfico, com Plato, deu-se a partir de

    uma separao entre corpo e alma. A tentativa platnica de definir o que o

    conhecimento elege os componentes do logos, o raciocnio e o pensamento,

    como os nicos capazes de alcanar a verdade, o ser. As sensaes

    corporais, sendo a forma de primeiro contato com o mundo fenomnico, so

    imediatas, precipitadas e, por isso, podem confundir o logos. Assim, o corpo,

    imerso no mundo contraditrio dos fenmenos, no poderia favorecer a

    apreenso das ideias eternas.

    Contudo, os avanos alcanados por Aristteles garantem o lugar do

    corpo na constituio do conhecimento racional, ao dar destaque

    imaginao, como primeiro passo decisivo para a formao das abstraes

    formuladas pela inteleco. Segundo Aristteles, a imaginao est

    diretamente ligada percepo, e seu procedimento, no percurso cognitivo,

    converte esse contato do corpo com o mundo em signos imagticos. As

    imagens elaboradas impulsionam o percurso notico para as elaboraes

    refinadas do intelecto.

    Assim, identificadas as duas principais vias de apreenso da relao

    entre corpo e pensamento, ser visto por que a tradio filosfica ocidental

    termina por afastar o corpo dos aspectos racionais e espirituais da psique.

    Como se partir do pressuposto de que a mimesis da Fedra senequiana traz

    conhecimentos da ordem da imaginao simblica e suas razes corporais,

    buscar-se- compreender, a partir da fenomenologia da percepo de

    Merleau-Ponty, como se d esse processo notico, em que o corpo aparece

    como agente decisivo na constituio do conhecimento humano.

    Para tanto, procurar-se-, primeiramente, entender em que consiste a

    epistemologia fenomenolgica. Portanto, a leitura sobre o conceito geral do

    mtodo fenomenolgico, definido por Hurssel, faz-se necessria, para que,

    enfim, possa-se alcanar a nosis corporal, discernida por Merlau-Ponty, no

    seu livro Fenomenologia da Percepo. Com Hurssel, ser identificada uma

    nova crtica filosofia do conhecimento. Em vez de se considerar as razes

    puras como as verdades universais, s alcanadas pela inteleco, a crtica

    fenomenolgica entende que o conhecimento se d na relao do cogito com

  • 14

    um algo cogitato, isto , o conhecimento tem suas origens na vivncia

    espontnea do sujeito com os objetos, a qual configura a intuio emprica,

    que aparece como raiz de nossas elaboraes cognitivas.

    Mediante a proposio de que o conhecimento tem origens na

    intencionalidade, isto , na abertura e disposio do sujeito para o objeto, a

    teoria de Merleau-Ponty surgir como um aprofundamento da noo

    hursserliana de que o conhecimento se opera a partir de nossas experincias

    imediatas e das elaboraes intuitivas. Logo, Merleau-Ponty ser aqui

    utilizado para esclarecer a relao do sujeito-encarnado com o mundo, na

    medida em que o corpo e suas elaboraes sensveis e perceptivas

    constituem o ncleo da investigao do filsofo para estabelecer um novo

    conceito de conhecimento, que ser a noo de corporeidade.

    O conceito de corporeidade, que prope a integrao entre corpo e

    inteleco, refuta a dicotomia clssica corpo-alma e reconhece que o

    conhecimento humano, em sua integralidade, acolhe camadas de significao

    inapreensveis pelo lgos. Diante disso, os signos simblicos aparecem como

    uma tentativa de exprimir, atravs da(s) linguagem(s), os significados ligados

    cogitatio corporal.

    A partir do conceito-chave de corporeidade, intentar-se- uma reflexo

    sobre o smbolo, como orientador das linguagens que buscam alcanar essas

    dimenses pr-reflexivas e gensicas do conhecimento. Para tanto, ser

    eleita a teoria do imaginrio de Gilbert Durant, a qual se revela mais

    abrangente, na medida em que, partindo de uma perspectiva antropolgica,

    associa a disposio visceral humana ao smbolo na produo de sentidos

    culturais. A amplitude de tal teoria se verifica pela conduo epistemolgica

    que Durand utiliza para alcanar suas categorias tericas, as quais tero

    como esqueleto estruturante o prolongamento de gestos fundamentais do

    desenvolvimento corporal e psquico humano ao meio cultural. Tal

    prolongamento se opera, primeiramente, a partir da criao de utenslios e

    ferramentas de trabalho, sendo essa transitividade corpo-instrumento um dos

    primeiros passos de desenvolvimento da cultura humana. Assim, a criao

    das tcnicas de trabalho ser produzida graas doao de significados

  • 15

    formulada pelo homem aos seus gestos corporais e sua interferncia no

    mundo natural. Assim, a criao do objeto de trabalho ser um dos pontos de

    abertura constituio da conscincia, que tira o homem de uma condio de

    imanncia absoluta com a natureza, para uma postura de distanciamento

    desta, tendo aqui os esboos do desenvolvimento da categoria do sujeito. A

    identificao desse processo de prolongamento dos gestos do corpo para o

    desenvolvimento das tcnicas de trabalho resultar na elaborao de um

    conceito fundamental teoria do imaginrio, o trajeto antropolgico, o qual

    estabelece as linhas de fora do imaginrio. Assim, o imaginrio humano se

    estrutura a partir das trocas entre os imperativos pulsionais psicofsicos com o

    meio social. Esse trajeto dos gestos em direo ao mundo estabelece o

    processo de elaborao das imagens como primeiro passo das elaboraes

    sgnicas da cultura, os signos primitivos, aos quais d-se o nome de smbolo.

    Diante dessa constatao, Durand, tentar investigar as estruturas

    biopsquicas que iro engendrar os smbolos. Suas investigaes partem de

    uma busca por protocolos normativos que determinam a organizao das

    estruturas do imaginrio. Tais estruturas sero discernidas a partir de uma

    recolha das vrias imagens simblicas reincidentes nas narrativas fundantes

    de todas as culturas, o mito. Ao identificar algumas repeties imagticas em

    vrios mitos, Durand define grupos de classificao das imagens,

    considerando suas razes corporais como ponto de partida para tal

    categorizao.

    Logo, Durand agrupa essas imagens em dois regimes, o diurno e o

    noturno. Como o mito, enquanto narrativa gensica das culturas, trata da

    relao do homem com as divindades, a definio desses regimes resulta na

    anlise de vrios sistemas sociorreligiosos, os quais Durand divide,

    basicamente, em dois grandes ncleos, o uraniano ou celeste-solar, e o

    ctnico-lunar. Enquanto os deuses relacionados ao grupo uraniano orientam o

    homem para uma transcendentalidade de iluminao e combate armado

    contra a condio de mortalidade, o ncleo ctnico, ligado dimenso da

    terra e s trevas noturnas, enfrenta a mortalidade, a partir de uma potica de

    eufemizao dos seus horrores. Definidas as dinmicas de cada regime do

    imaginrio, na elaborao das imagens simblicas, determina-se, portanto, o

  • 16

    instrumental terico de investigao das energias simblico-poticas do texto

    da Fedra de Sneca.

    Tendo em vista que a forma potica da pea estudada tem como

    matria conteudstica a entrega da mulher ao desejo ertico, como motivo do

    trgico, tenta-se, no segundo captulo, uma definio substancial de tal tema

    e suas articulaes com a noo de trgico. A leitura do imaginrio revela que

    a conscincia de mortalidade teria impulsionado o homem a criar signos

    doadores de sentido ao no-ser inapreensvel da morte. A experincia sexual,

    diante dessa constatao de finitude da vida, adquire um valor existencial que

    resultar no erotismo, enquanto transformao de um gesto animal, o coito,

    em elaboraes humanas de sentido vida. Assim, o coito, sendo o ato de

    gerao da vida humana, transmuta-se em matria psquica de

    problematizao da condio de morte. A partir dessa constatao, o filsofo

    francs George Bataille define o erotismo como uma experincia interior,

    psquica, que tem como motor o questionamento da organizao da vida e

    sua relao com a morte.

    Para a leitura dessa abstrao do ato sexual, promovida pela psique

    humana, Bataille investiga as razes biolgicas do erotismo, identificadas na

    unio

    sexual. Prximo da leitura de Gilbert Durand sobre o imaginrio, o erotismo

    batailleano provm de gestos fundamentais celulares, cuja dinmica se d

    pela unio dos gametas masculinos e femininos, que perdendo sua forma

    individual, fundem-se para a gerao de uma nova vida. Dessa fuso, Bataille

    considera a instncia de morte, isto , da diluio das individualidades

    celulares numa continuidade informe, agenciadora do processo de surgimento

    da vida. Desse modo, nas bases da procriao sexual haveria instncias de

    morte como movimentos vitais.

    A dimenso biolgica do ato sexual e do processo de fencundao

    promover o prolongamento dessa experincia genuna de criao da vida

    para as bases psquicas humanas de formulao de significados. Assim, o

    erotismo, oriundo da sexualidade, no se reduz a ela, mas constitui a postura

    espiritual humana diante da vida e sua imbricao na morte. Essa converso

    de um gesto gensico da vida numa base psquica ser uma das linhas de

  • 17

    fora de constituio da cultura. Diante disso, o ato sexual e a morte estaro

    no ncleo das principais preocupaes humanas na organizao de seu

    mundo civilizado. Na tentativa de preservar a vida e estabelecer regras de

    sobrevivncia, ser preciso cercear as pulses sexuais, uma vez que elas tm

    ligao direta com a morte.

    Contudo, esse mundo organizado de preservao das formas

    individuais inquietante, porque constrange as razes gestuais da

    sexualidade, a qual se processa na fuso entre vida e morte celular. Assim,

    esse constrangimento, sobretudo da dimenso de morte, leva experincia

    ertica, como busca interior de afirmao da vida na morte. O ser humano,

    vivendo o erotismo, angustia-se com as condies de constrangimento da

    vida regulada e busca uma nova vida a partir de instncias de negao da

    condio anterior, promovendo instncias de aniquilao e morte.

    O trgico surge, portanto, nesse embate fundamental entre o mundo

    formal e organizador da vida e a anarquia destrutiva e transformadora do

    erotismo. Destarte, identifica-se, com a filosofia do fenmeno trgico, que tal

    fenmeno diz respeito condio da existncia humana. Enquanto uma

    categoria filosfica, o conceito de trgico apresenta a situao do homem no

    mundo, que tem por base o conflito entre a preservao da integridade da

    vida, a qual se sustenta no sistema organizacional da cultura e o desejo ou as

    pulses, que vo de encontro manuteno desse mundo, sendo a

    conscincia de morte a fonte desses questionamentos. Ento, o erotismo,

    fundado no mesmo conflito entre vida e morte, constitui uma experincia

    mobilizada por esse drama fundamental.

    Como o conceito de trgico tem como essncia os efeitos conflituosos

    da conscincia de morte sobre o homem, a tragdia, sendo a manifestao

    artstica desse conflito existencial, forja uma experincia ficcional que discute

    essas realidades. Ao entender-se que o erotismo constitui um dos percursos

    trgicos fundamentais vida humana, prope-se a investigar, no universo da

    Fedra, a conjuno de suas razes somticas com as elaboraes sgnicas do

    texto literrio. Aps a verificao de que toda forma de conhecimento tem,

    como base, as articulaes entre corpo e pensamento, o estudo dos

    smbolos, pela perspectiva durandiana, fez-se indispensvel para nossa

    interpretao do sentido de trgico ertico veiculado na pea.

  • 18

    Toda essa articulao terica entre erotismo e imaginrio tem como

    finalidade a investigao dos smbolos poticos da Fedra, a qual ser feita

    pela busca das dimenses somticas que o texto apresenta e sua reverso

    em signo potico, para, a partir da, compreender-se o trgico potico da pea

    e a ao dramtica subjacente no tecido simblico.

  • 19

    CAPTULO I

    CORPO E CONHECIMENTO

    A mitologia uma cano, a cano da imaginao inspirada pelas energias do

    corpo. [Joseph Campbell]

    Diante da escrita potica e inspiradora do opsculo de Stanley

    Keleman Mito e Corpo: uma conversa com Joseph Campbell (1999), houve o

    confronto com a materializao de uma intuio que se formulara nas

    pesquisas sobre as tragdias de Sneca, em que o corpo dos heris trgicos

    parecia ser o halo que iluminava o complexo mtico tecido pelo tragedigrafo

    romano, cujas tragdias esto plenas de corpo, carne, vsceras e sangue.

    Portanto, a identificao com o sentido de trgico visceral de Sneca,

    clarificada com as insinuaes e sugestes presentes em Mito e Corpo,

    inspirou a feitura deste captulo.

    Keleman, fundador da Psicologia Formativa, prope como tese os

    processos biossomticos como emoldurantes de vrios aspectos da

    existncia humana, pondo em xeque a dicotomia alma-corpo. Em uma

    parceria de quinze anos com o mitlogo americano Joseph Campbell,

    Keleman agregou o conhecimento mtico como suporte metodologia

    somtico-emocional da psicologia formativa, de modo que o mito teria como

    funo colocar a experincia em histria, porque as histrias so

    organizadoras da experincia corporal, das maneiras de moldar a ns

    mesmos como indivduos. Apesar de uma longa tradio que subestimou e

    deslegitimou as potencialidades da imaginao mtico-somtica no ser

    humano, h que se considerar que estudos como os de Keleman e Campbell

    apontam para as novas abordagens que reconhecem o valor cognitivo do

    pensamento mtico, no qual so gerados conhecimentos to importantes

    quanto os promovidos pelo pensamento lgico-racional.

    Considerando-se que o conhecimento, grosso modo, d-se pela

    elucidao e apreenso de uma realidade a partir de uma determinada

  • 20

    linguagem, os mitos ancestrais, buscando conhecer (latim: gnoscere2) os

    mistrios das origens e dos tempos primordiais, possibilitam instncias de

    cognoscibilidade, atravs de sua estrutura narrativa. Assim, a partir de uma

    sistematizao de ideias operadas pelo fio do discurso, o texto mtico d

    forma a realidades afetivo-corporais que no se acomodam facilmente dentro

    de uma discursividade lgico-racional.

    A palavra mtica, ao elucidar tais realidades misteriosas, configura-se

    como uma gnosis, no sentido de um conhecimento ligado ao inefvel que,

    essencialmente, diz respeito ao sagrado ou numinoso, no sentido proposto

    pelo telogo alemo Rudolf Otto3. Supe-se que o mito pe numa ordem que

    lhe prpria experincias fundadas nos afetos e no corpo, ligadas ao

    numinoso. Ter de se presumir com essa reflexo que a linguagem mtica

    constitui-se, por um lado, de uma certa esquematizao intelectiva afervel

    pelo entrecho narrativo, forjado a partir de determinadas relaes causais a

    que a lgica discursiva submete os eventos mticos e, por outro lado, de

    componentes da ordem do sensvel. Essa conjectura parte, na verdade, do

    pressuposto das estruturas e experincias somticas como participantes, no

    apenas do pensamento mtico, mas de toda a rede de sentidos que erige as

    experincias humanas e suas produes culturais, na medida em que o

    homem um ser inescapavelmente corporificado. Sob essa tica, os

    contedos mticos seriam, portanto, provenientes de um princpio de

    mediao entre corpo e pensamento, a partir de uma certa cumplicidade

    entre as manifestaes sensveis e as percepes promovidas pelo corpo

    fsico e as estruturaes do cogito para, ento, compor-se uma determinada

    ordem de conhecimento. Nesse sentido, uma abordagem pela corporeidade

    que valorize os componentes da percepo e das sensaes na formulao

    2 Do lat. gnosco, palavra proveniente do grego (gignosko), que significa, de acordo

    com o dicionrio Anatole Bailly, conhecer, dar uma opinio, celebrar, cantar. Da se

    entende a gnosis mtica como um canto sagrado, considerando-se que o ato de cantar primordialmente est atrelado celebrao dos deuses ou a uma interveno mgica. 3 Em seu livro O Sagrado, Rudolf Otto cunha o termo numinoso em substituio ao termo sagrado, o qual j estaria encoberto por atributos morais das doutrinas religiosas que incluem a noo de bem absoluto. O numinoso (do latim numen + omen presena divina e augrio ou pressgio positivo ou negativo, respectivamente) implica aspectos que abarcam tanto os significados morais posteriores a que o termo foi submetido, como acolhe, sobretudo, um sentido mais primitivo, irracional, que nada tem a ver com o conceito de bem, mas que, mesmo assim, constitui como que a alma das religies.

  • 21

    do conhecimento reconhece no mito sua atuao permanente no espao

    humano. No ser mais como uma sorte de pensamento falso e ingnuo de

    uma conscincia primitiva que, ao longo dos sculos de entronizao da

    razo, foi desvalorizada e inferiorizada por abordagens reducionistas que a

    conceberam como um estgio de limitaes e de insuficincia racional, mas

    como agenciador de um conhecimento que visa integralidade corpreo-

    espiritual humana.

    Numa tentativa de elucidar as instncias de conhecimento promovidas

    pela corporeidade, confrontou-se com conceitos e reflexes que tm uma

    longa tradio crtica e filosfica, da qual no se pode prescindir, a comear

    do prprio termo corporeidade, que se situa entre aqueles vastos conceitos,

    os quais, na falta de uma diretriz analtica, terminam por nada significar ou, do

    contrrio, por fomentar noes cristalizadas e reducionistas que engessam a

    prpria vastido do conceito. Assim, no parece difcil perceber o risco de se

    cair numa aporia terica entre a necessidade de amplitude e de preciso de

    um dado conceito. Diante disso, o excurso em torno desse conceito confronta-

    se com a necessidade de delimitao, a qual se supe encontrar nas

    diretrizes das discusses em torno do simbolismo fisiolgico-mtico

    desenvolvido na Teoria do Imaginrio do socilogo e antroplogo francs

    Gilbert Durand (1921-2012), que buscou determinar um esquema de

    compreenso do trajeto antropolgico da cultura ocidental afervel por

    espaos e produes artsticas, literrias, sociais, econmicas, polticas etc.

    Para Durand, o imaginrio o conjunto das imagens e das relaes de

    imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens e o grande e

    fundamental denominador onde se encaixam todos os procedimentos do

    pensamento humano.4 Portanto, a dinmica da imaginao, em sua

    composio de imagens, apresenta um mundo particular, que, segundo

    Durand, deve ser entendido dentro da semntica do smbolo. O mito entra

    nessa teoria como o produto final das estruturas imaginrias, enquanto

    combinao discursiva das imagens e dos smbolos, de sorte que, se o

    4 DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio. So Paulo: Martins Fontes,

    2002, p. 18.

  • 22

    imaginrio o manancial de todas as instncias do pensamento humano, o

    mito deve ser encarado como um discurso genuno e diuturnamente atuante.

    Considerando-se que os termos imaginrio, imaginao, imagem,

    smbolo e mito constituem as bases da teoria de Durand, v-se um

    vocabulrio vasto e complexo diante do qual no se pode perder de vista a

    necessidade de elucidao desse conjunto de termos, a comear dos

    conceitos imagem e imaginao, desenvolvidos numa ambincia de

    censura forjada pela tradio filosfica que embalou uma desmitologizao

    do pensamento ocidental. Portanto, h que se percorrer algumas discusses

    importantes em torno do que se entendeu como razo e verdade para se

    compreender as fontes filosficas da dicotomia corpo-alma. S assim se

    chegar com maior clareza ao entendimento mtico, enquanto gnose do

    corpo, e preciso dessa nova epistemologia que vislumbra no conhecimento

    corpreo-mtico uma das competncias fundamentais do homem.

    1. Corpo x Alma

    1.1. Corpo e conscincia na mitologia grega

    Nas narrativas mticas gregas, a relao entre corpo e conscincia

    constituiu-se, como se pode verificar na da poesia homrica, num estado de

    imbricao e interdependncia absolutas. A relao entre a identidade

    pessoal do heri e sua existncia corporal apresenta uma noo da existncia

    humana como que constituda numa espcie de unidade entre a pessoa e a

    phsis.

    Prova disso verifica-se no pensamento homrico acerca da morte em

    suas narrativas sobre o alm, as quais apontam para uma dominncia ou

    centralidade das instncias do corpo vivo sobre o aparato psquico. No canto

    XI da Odisseia, ou o livro da catbasis, Odisseu precisa sacrificar dois animais

    de cor negra para que o sangue seja bebido pelos mortos, sendo condio

    nica para que estes recuperem a conscincia. Apenas com a energia

    proveniente do sangue ainda quente da vtima sacrificial, os mortos, que so

    em Homero sombras (eidolons) sem conscincia, saem desse estado de

  • 23

    letargia do pensamento (nema), recuperando, ento, suas faculdades

    espirituais, como a memria, a linguagem e o poder de reflexo. Na verdade,

    como nos informa Andr Simha (2009), essa recuperao do ato de pensar

    ocorre graas ao retorno da sensibilidade corporal, que aparece sob o

    conceito grego de thymos, termo que se acha na Odisseia para designar o

    princpio que mantm a alma (psych) no corpo, princpio que anima o

    corao e os rgos dos sentimentos (diafragma e vsceras).5 A energia vital

    que liga o corpo e a alma est no thymos que, ao se esgotar, faz do corpo um

    soma (cadver) e da psych, desligada da carne, uma sombra do corpo sem

    as faculdades pensantes.

    Termos como thmos e soma, nous e psych sinalizam uma

    diversidade do lxico grego em torno da realidade corprea e imaterial do ser

    humano. O vasto vocabulrio da lngua grega no que diz respeito realidade

    corprea parece estar eclipsado ou reduzido em uma dimenso mais

    propriamente carnal e orgnica quando se vale apenas do termo vernculo

    corpo para traduzi-la.

    No por acaso que a identidade e o destino dos heris homricos

    conectam-se diretamente com sua condio corporal. Prova disso o fato de

    que alguns nomes prprios ou eptetos que indicam uma caracterstica fsica

    marcante do heri tambm aludem, por vezes, atuao e ao destino

    heroicos. Um dos eptetos mais importantes atribudo a Aquiles na Ilada

    ilustra bem essa relao da condio fsica do heri com o seu destino

    pessoal, a saber, o de ps ligeiros. Conhecido por ser imbatvel nas

    corridas, Aquiles, entretanto, carrega uma vulnerabilidade em seus geis ps,

    que, ao nascimento, foram a nica parte do corpo a no receber as guas

    imortais do rio Estige. Com se sabe, a deusa Ttis, na tentativa de imortalizar

    o filho, banhara o beb no rio da imortalidade. Contudo, num lapso que seria

    fatal para Aquiles, a deusa segurara seu filho pelos calcanhares, de forma

    que estes se tornaram o ponto de mortalidade do guerreiro. Com o epteto o

    de ps ligeiros, Homero localiza a aptido e excelncia fsica de Aquiles

    5 SIMHA, Andr. A conscincia, do corpo ao sujeito anlise da noo; estudo de textos:

    Descartes, Locke, Nietzsche, Husserl. So Paulo: Vozes, 2009, p.20.

  • 24

    sobre o ponto mais vulnervel do heri, que, ironicamente, morrer com uma

    flechada desferida em seu calcanhar pelo prncipe troiano Pris.

    Ainda considerando a estrutura corporal do heri grego e a irrupo do

    seu destino, o nome do rei dipo ( o de ps inchados) tambm se

    apresenta em conformidade com sua atuao heroica e, at se poderia supor,

    numa dimenso ainda mais complexa, em que corpo, divindade e intelecto

    encontram-se de tal forma atrelados, que se faz imprescindvel avaliar as

    camadas de sentido desses tais ps inchados. Para alm da marca fsica

    que sinaliza o beb que teve os ps agrilhoados, os quais serviro,

    posteriormente, na tragdia de Sfocles, como um componente de

    reconhecimento do filho-marido por Jocasta, o enigma da esfinge desvendado

    por dipo, o tirano coxo, no por acaso, constitui-se de um campo

    semntico em que a prpria condio fsica do heri est aludida. pergunta

    da esfinge Qual o ser que anda, pela manh, em quatro ps, ao meio-dia,

    com dois e, tarde, com trs?, tem-se como resposta o ser humano, na

    medida em que este engatinha quando beb, bpede na vida adulta e na

    velhice vale-se de um terceiro p, que seria uma metonmia para bengala.

    No parece difcil aferir que dipo, em seu nome, j carregava algo do

    enigma esfngico. A presena da questo dos ps e da locomoo na

    pergunta da esfinge e no nome do heri constitui uma rede de sentidos to

    imbricada que motiva uma suposio de que o nome de dipo o capacita para

    descobrir o enigma, tendo em vista que os ps podem possuir relevncia

    fsica e intelectiva na constituio do heri. A natureza corprea dos ps,

    atrelada a estruturas de pensamento de dipo, talvez o habilite ou o

    predestine para o alcance do raciocnio que desvendar o mistrio da esfinge.

    Com isso, fica patente que, no mundo mtico, pelo menos entre os

    gregos, a conscincia e o corpo unem-se para compor a integralidade dos

    sentidos e ensinamentos que os mitos apresentam acerca da condio

    humana. A partir das narrativas sobre os heris, tais ensinamentos apontam

    os perigos da ao do homem vista sob o ngulo da posio limtrofe desses

    grandes personagens, que, agindo sempre entre o divino e o humano,

    mostravam os excessos das aes que punham em evidncia ou

    questionavam noes de limite e interdito. Desse modo, como acertadamente

  • 25

    disse Jean-Pierre Vernant, a empresa heroica condensa todas as virtudes e

    todos os perigos da ao humana (...), assim os gregos exprimiram sob a

    forma do heroico os problemas ligados ao humana e sua insero na

    ordem do mundo.6

    1.2. Lgos x corpo no pensamento platnico

    A tradio da filosofia ocidental postulou a separao mente e corpo no

    mbito da noo do conhecer, enquanto encontro com a verdade que no

    se deixa arrefecer pelas falsas impresses do mundo sensvel. Todos os

    homens, por natureza, desejam conhecer. Essa afirmao de Aristteles, que

    consiste na primeira frase do tratado da Metafsica, aponta para uma das

    principais reflexes que constituram a histria do pensamento ocidental: a

    investigao sobre o conhecimento como mtodo necessrio formulao

    dos conceitos filosficos. A tentativa por definir e distinguir o ser humano dos

    demais seres vivos levou, desde o princpio da histria da filosofia, eleio

    das faculdades de inteleco como sendo o que, de fato, prprio do homem.

    Graas sua racionalidade, esse ser que pensa, que tem ideias, que analisa

    e que, por isso, produz conhecimento seria,

    por definio, um animal que se conduz em funo do saber, ou mesmo o

    animal racional por excelncia. Contudo, a partir do momento em que

    ocorrer a entronizao das faculdades cognitivo-racionais em virtude da

    ascenso do logos filosfico na antiguidade grega, produzir-se- uma

    resistncia entre as correntes filosficas em considerar outras realidades

    cognitivas do homem, como as disposies sensveis e imaginativas.

    Se o homem, como afirmou Aristteles, possui um desejo natural por

    conhecer, a vida humana parece pautar-se por um esforo permanente em se

    atribuir significados multiplicidade e contingncia das coisas. No parece

    ilegtimo conceber que o concurso da vida humana d-se, desde sempre, em

    funo do conhecer. Paulatinamente, as condutas de autopreservao

    desenvolvidas pelo animal humano passaram a operar-se sistematicamente

    6 VERNANT, J-P. Mito e Pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p, 432.

  • 26

    pela via da compreenso terica do meio. Desde as formas iniciais de

    inteleco sobre a existncia, consideraram-se aqui os mitos como um desses

    gneros primordiais de esclarecimento. At nas especulaes tericas da

    filosofia e das cincias, o acordo do homem com o mundo passa pela

    tentativa permanente de imprimir sentidos a uma natureza muda e opressora

    e de, portanto, reconstru-la sob o signo da cultura. Se levado em conta que

    o homem detm uma conduta natural ou pulsional por nomear, significar e,

    enfim, conhecer, cabe considerar quais so as formas e os meios de criao

    de sentidos que constituem esse percurso antropolgico por apreender e

    construir saberes.

    Com a insurgncia da filosofia grega no sc. VI a. C, preconizou-se o

    logos racional como o vetor principal do conhecimento em detrimento dos

    esquemas de percepo e elaborao sensveis e simblicos do mythos, cuja

    funo explicativa e educacional, na Grcia antiga, ser questionada e

    substituda pelo logos filosfico. Como informa Arthur Giannotti7, a racio grega

    se opera fundamentalmente pelo questionamento em funo de se verificar

    outros pontos de vista, numa conduo dialgica que d a ver as

    ressonncias do sentido de democracia na cultura da plis. Questionar o que

    est posto como verdade, isto , a palavra mtica, o passo decisivo para a

    formulao do pensamento filosfico grego.

    As duas diretrizes da cognio, inicialmente classificadas por Plato

    como conhecimento sensvel e conhecimento inteligvel, so tomadas como

    polos em que se produzem as operaes de relao do homem com o

    mundo. No entanto, ambas as dimenses foram apreciadas, desde a filosofia

    antiga grega, numa atmosfera cambiante entre conflitos e acordos tericos,

    promovendo assim a antiga dualidade ocidental corpo-alma, que, no campo

    da filosofia, resultar ora na separao ora na comunho entre sensibilidade e

    conhecimento. De fato, poder-se-ia dizer que a relao ou contradio entre a

    sensibilidade e o inteligvel constitui um dos pilares do pensamento ocidental.

    Em seu dilogo intitulado Teeteto, Plato apresenta uma das

    exposies capitais da filosofia antiga acerca da dualidade corpo-alma e do

    logos como essncia do conhecimento. Em tal dilogo, o personagem do

    7 GIANNOTTI, A. J. Lies de Filosofia Primeira. So Paulo: Cia das Letras, 2011.

  • 27

    filsofo Scrates intenta, com a colaborao do jovem Teeteto, uma definio

    do que seria o conhecimento. A investigao desse dilogo tem como ponto

    de partida a refutao ao relativismo em que o sofista Protgoras enquadra o

    conhecimento a partir de sua teoria do homem-medida, isto , do homem

    como medida de todas as coisas, das coisas que so, enquanto so, e das

    coisas que no so, enquanto no so. Para Scrates, a teoria de Protgoras

    sinaliza para que a percepo seja idntica ao conhecimento. Na medida em

    que uma coisa para cada indivduo o que parece ser a ele8. A percepo,

    que varia de acordo com a constituio individual de cada sujeito, falsa,

    porque faz de cada homem juiz da existncia das coisas.

    O percurso analtico do Teeteto passa, inicialmente, pela tentativa de

    definio do termo conhecimento. Uma definio s ser legtima se alcanar

    a sntese da multiplicidade externa das coisas numa unicidade, num conceito,

    sendo esse o imperativo que rege a identificao de um ser. Diante disso,

    quando o jovem Teeteto declara que o conhecimento trata-se de toda arte9 e

    cincia, como por exemplo a carpintaria e a geometria, Scrates o adverte de

    que a resposta no deve se voltar identificao dos tantos ramos de

    conhecimentos existentes, mas o que o conhecimento em si, ou seja,

    identificar um conceito que abarque a diversidade dos tipos de

    conhecimento10. Alis, quando, em oposio multiplicidade e diversidade

    das coisas existentes, a conscincia desperta para a unidade do ser, a partir

    desse instante que surge a maneira filosfica de considerar o mundo

    (CASSIRER, 2001, p. 1).

    Assim, a diversidade do mundo sensvel deveria ser sintetizada numa

    unidade conceitual de um nome. Nesse sentido, pelo esforo do

    pensamento e do discurso, ou melhor, pelo esforo do logos, numa

    colaborao dialgica de exames das teses levantadas, que se poderia atingir

    a verdade.

    Da as reflexes platnicas se encaminharem no sentido de definir que

    o raciocnio e o pensamento, enquanto componentes do logos, assumem

    lugar central na apreenso do ser. No cabe, portanto, s sensaes o

    8 PLATO, Teeteto. 162e.

    9 O termo arte, em grego, aqui empregado no sentido de um meio de produo.

    10 Cf. PLATO. Teeteto. In: Dilogos Plato, Vol. I. Traduo e notas de Edson Bini. Bauru:

    Edipro, 2007, 146e-147a.

  • 28

    alcance do que o filsofo prope como verdade ou ser, porque elas estariam

    presas ao estado de vir-a-ser das coisas, as quais esto em constante

    mutao. Por isso o conhecimento estaria nas articulaes e reflexes da

    alma, que, agindo por si mesma, alcana tal conhecimento. Considere-se o

    seguinte fragmento do Teeteto, em que Scrates traa uma polarizao

    conhecimento-sensibilidade.

    [...] que a alma, embora considere algumas coisas pela faculdade do corpo, considera outras sozinha e atravs de si

    mesma. [...] A concluso que o conhecimento no est nas sensaes, mas no raciocinar sobre elas, uma vez que aparentemente possvel apreender o ser e a verdade pelo

    raciocnio, mas no pelas sensaes.11

    Para Plato, a sensibilidade corprea, sendo a forma de primeiro

    contato com o mundo, oferece um foco turvo e perturbador alma. Logo,

    apenas o pensamento capaz de deslindar o emaranhado de contradies

    em que se apresenta a realidade sensvel. A respeito das limitaes

    cognitivas da sensibilidade, considere-se o seguinte trecho do Fdon:

    Mas ela [a alma] raciocina melhor quando nenhuma destas

    coisas a perturbam, quer a audio quer a viso, quer a dor quer o prazer, estando ela sim, tanto quanto possvel, sozinha

    e isolada, apartada do corpo e evitando, na medida do

    possvel, toda associao ou contato com o corpo, na sua

    busca da realidade.12

    A esse respeito, conforme orienta Ernest Cassirer, o principal

    contributo de Plato estaria na explicitao do pressuposto espiritual como

    essencial a toda compreenso filosfica, uma vez que o mtodo dialtico,

    adotado como meio de investigao das verdades, ou das ideais

    no se prende simples existncia do ser, buscando, ao invs, tornar visvel o seu sentido intelectual, a sua organizao sistemtica e teleolgica. E com isso, o pensamento (...) adquire um significado mais profundo. Somente quando o ser vem a ter o sentido rigorosamente definido de um problema, o pensamento vem a ter o sentido e

    11

    Ibd. 185e-186c 12

    PLATO. Fdon. In: Plato Dilogos, Vol. III. Traduo Edson Bini. So Paulo: Edipro, 2008. 64c,198. p.

  • 29

    o valor rigorosamente definidos de um princpio. (CASSIRER, 2001, p. 13)

    Veja-se que o estatuto do ser como problema evoca um mtodo

    racional de perquirio, que ser a dialtica. Como se sabe, a dialtica

    platnica foi herdada da dialtica socrtica fundada no dilogo, atravs do

    qual se determinava o mtodo de questionamento como conduo da

    investigao sobre a verdade, em que dois participantes assumiam, cada

    qual, o papel de questionador e o de respondente. A dinmica desse dilogo,

    diferente da erstica ou disputa sofstica, no se pautava no arbtrio do

    discurso mais persuasivo nem, consequentemente, na derrota do interlocutor.

    O discurso filosfico platnico forjado no dilogo dava-se pela exposio de

    algum que supostamente sabe acerca de determinado tema e da

    interlocuo de um outro que no sabe, cabendo a este conhecer mediante

    perguntas e exames. Da, para o alcance do ser, pretendia-se obstaculizar

    relaes de poder e um percurso meramente persuasivo e dissimulado. Uma

    vez que havia nos dilogos socrticos uma exposio e partilha do mtodo

    discursivo e analtico, o instrumental analtico do tema em discusso parecia

    ser forjado pela coparticipao do locutor e seu interlocutor. O adgio s sei

    que nada sei, dito na Apologia a Scrates, traduz, num certo sentido, o

    cuidado em se impedir cristalizaes de falsos saberes, por isso, para

    determinada tese ser validada, fazia-se necessrio exp-la ao exame. Logo,

    Scrates concedia a palavra quele que assumia o posto de quem

    supostamente sabia, para, ento, examinar sua tese, a qual, exposta ao longo

    da conversao, sairia legitimada ou refutada, uma vez que s a refutao

    poderia libertar da iluso de saber e promover a purificao da alma atravs

    do verdadeiro conhecimento. Da se segue que, para Plato, a refutao a

    melhor e a mais eficiente forma de purificao, e aquele que permanecer no

    refutado ainda que seja o grande rei no foi purificado de suas maiores

    ndoas, sendo, portanto, destitudo de educao.13

    Assim, pensamento e discurso, enquanto constituintes do logos, devem

    se encaminhar no sentido de evitar o relativismo como conduta importante

    para a legitimao terica que se pauta na ideia do ser-um no contraditrio.

    13

    PLATO. Sofista. In: Dilogos Plato, Vol. I. Traduo e notas de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2007, 230e.

  • 30

    Essa noo do ser-um em relao com o mltiplo o que fundamenta a

    Teoria das Ideias. Acima da multiplicidade do sensvel estaria a unidade das

    ideias que so eternas e estveis, diferente da instabilidade e contradio da

    realidade sensvel. As coisas que compem o mundo sensvel, embora

    diversas e mutveis pela condio de vir-a-ser, relacionam-se a uma ideia ou

    forma (eidos), um critrio de unidade em que participam como decalques.

    Essas Formas [Ideias] existem na natureza como modelos, ao passo que as

    outras coisas assemelham-se a elas e so delas imitaes.14 Uma

    determinada ideia una e se propaga nas vrias formas de imitao que

    constituem o mundo sensvel.

    Como Plato exemplifica no livro X da Repblica, em que trata da

    mimesis potica, deus criou apenas um nico leito, que o leito na sua

    essncia, em sua forma genuna, e desse modelo o marceneiro produz o seu

    leito aparente, por conseguinte, o pintor, num nvel duas vezes inferior de

    imitao em relao forma criada pelo demiurgo, pinta um leito mimetizando

    a obra do marceneiro. Portanto, a teoria das ideias postula a existncia de

    realidades absolutas que transcendem o sensvel e por isso no podem ser

    apreendidas pelas sensaes, mas to somente pelas faculdades intelectivas,

    depuradas da interveno mals dos sentidos e da mera opinio (doxa), a qual

    fruto do pensamento sofstico.

    Considerando-se a estabilidade das Ideias, a opinio pessoal, que varia

    de homem para homem, no pode ser legtima, perdendo-se na diversidade

    das subjetividades. O conhecimento no comunga da doxa, de uma percepo

    subjetiva, por mais discursivamente articulada que ela seja. Apenas o

    pensamento inteligvel, que buscar identificar no mltiplo um conceito em

    comum, uno, alcanar as Ideias. Assim, verifica-se que na noo de Uno

    que se d o princpio das Ideias. Da o verdadeiro conhecimento consistir em

    saber unificar a multiplicidade numa viso sintica que rene a multiplicidade

    sensorial na unidade da Ideia da qual depende.15

    14

    PLATO. Parmnides. In: Dilogos Plato, Vol. IV. Traduo e notas de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2009, 132d, p.40. 15

    REALE, G. Histria da Filosofia Antiga II, So Paulo: Loyola, 1994, p.74.

  • 31

    1.3. Corpo, imaginao e entendimento no pensamento aristotlico

    Para Aristteles, o desejo humano por conhecer seria uma tendncia

    natural, a qual estaria presente em instncias mais elementares das

    sensaes do homem, de maneira que no se poderia prescindir do

    componente sensvel no percurso da cognio. Contrariamente clivagem

    corpo-alma desenvolvida pela filosofia platnica, o sistema aristotlico se

    encaminha para uma unificao entre a matria fsica e a metafsica. No

    haveria, portanto, uma oposio entre alma e corpo, mas sim uma relao

    complexa orientada por uma simbiose permanente.

    A alma, portanto, tem de ser necessariamente uma substncia, no sentido de forma de um corpo natural que

    possui vida em potncia. Ora a substncia um acto; a alma ser, assim, o acto de um corpo [...]. No preciso, por isso,

    questionar se o corpo e a alma so uma nica coisa, como no nos perguntamos se o so a cera e o molde nem, de uma maneira geral, a matria de cada coisa e aquilo de que ela

    a matria.16

    Como a alma a forma (eidon) e o corpo a matria (hyle), do mesmo

    modo que o molde a forma para a cera na composio de um objeto, no

    qual a unio da modelagem com a materialidade da cera so coparticipantes,

    para Aristteles, a realidade pensada sob uma tica naturalista, em que

    corpo e alma existem um para o outro numa interdependncia ontolgica.

    A declarao de Aristteles, h pouco mencionada, de que todos os

    homens naturalmente desejam conhecer, localiza na physis humana a busca

    pelo conhecimento, uma vez que por natureza ( - physei) se disporia

    de uma tendncia espontnea a conhecer. Essa relao da physis com o

    conhecimento, em Aristteles, fundamenta-se na importncia dada s

    sensaes no processo de cognio do homem, de maneira que os sentidos,

    para alm de suas funes mais imediatas no que toca sobrevivncia e s

    necessidades biolgicas, participam como agentes na elaborao de um

    determinado tipo de conhecimento.

    16

    ARISTTELES. Sobre a Alma. Traduo de Ana Maria Lia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010, II, 1, 412b, 5. P. 62.

  • 32

    Um prova disso [do desejo de conhecer] o prazer das sensaes, pois, fora at de sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, no s para agir, mas at quando no nos propomos a operar coisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista aos demais. A razo que ela ,

    de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as

    coisas e mais diferena nos descobre.17

    no prazer promovido pelas sensaes, no caso, da viso, que se

    busca conhecer as coisas. Obviamente, aqui, Aristteles se refere a um nvel

    mais elementar de conhecimento, que seria o conhecimento sensvel.

    Embora o filsofo reconhea que a verdade no pode ser atingida pelos

    sentidos, mas somente pela especulao teortica do pensamento cientfico,

    o elogio ora dado vida sensual diz respeito ao seu projeto filosfico oposto

    teoria do mestre das Ideias. Enquanto Plato pressupe que os processos

    sensveis do-se numa separao abismal do intelecto, Aristteles, embora

    reconhea a dimenso transcendental do conhecimento cientfico, concebe o

    mundo intelectivo em termos prticos, inseridos na prpria vida, de forma que

    no haveria separao instransponvel entre as ideias (eidon) e a natureza

    fsica. Sob uma tica biolgica, as formulaes intelectivas seriam estados

    avanados de um processo de interao com o mundo externo. Nesse caso,

    o corpo e suas sensaes assumem um valor positivo na constituio do

    conhecimento. A percepo, a memria, a experincia, a imaginao e a

    razo estariam interligadas por um mesmo vnculo, sendo, portanto, fases ou

    estgios de uma mesma atividade fundamental, que atinge o maior grau de

    desenvolvimento no homem com o conhecimento teortico.18

    No De Anima, Aristteles apresenta o seu conceito sobre alma, a qual

    seria, basicamente, a substncia do corpo, assim como a viso a substncia

    do olho material. Como a viso existe em funo do olho, a alma seria,

    portanto, dependente e inseparvel do corpo:

    A alma acto, como o so a viso e a capacidade do rgo. O corpo, por sua vez, aquilo que existe em potncia. Mas,

    17 ARISTTELES. Metafsica I, 980a22,1. 18 CASSIRER. E. Ensaio sobre o homem: introduo a uma filosofia da cultura humana. So Paulo: Martins Fontes, 2005.

  • 33

    como o olho a pupila e a viso, assim tambm o animal a alma e o corpo. Que a alma no separvel do corpo, ou pelo menos certas partes dela no so se que a alma por natureza divisvel em partes , isso no levanta dvidas, pois o acto de algumas o acto das partes mesmas . Nada impede, no entanto, que algumas partes sejam separveis, por no serem acto de nenhum corpo.19

    Enquanto princpio anmico do corpo, a alma possui algumas partes

    que no podem ser dissociadas das instncias corporais, uma vez que

    existem em funo de determinadas competncias orgnicas. Contudo, v-se,

    nesse trecho, uma referncia a partes que possivelmente so separveis do

    corpo, as quais estariam vinculadas ordem do entendimento e pensamento

    teortico ou discursivo:

    J no que respeita ao entendimento e faculdade do

    conhecimento teortico20

    , nada , de modo algum, evidente. Este parece ser um gnero diferente de alma, e apenas este pode ser separado, como eterno que , do perecvel.

    importante ressaltar que Aristteles descreve a relao entre cada

    parte da alma num continuum de atividades em que se verifica um processo

    de causalidade entre essas partes. Desde as instncias mais elementares

    ligadas nutrio at as elaboraes refinadas do pensamento terico e do

    entendimento (estritos ao homem), o trajeto de atividades da alma opera-se

    num encadeamento entre cada uma de suas faculdades, que so: nutritiva,

    perceptiva, desiderativa, deslocao, pensamento discursivo e entendimento:

    s plantas pertence apenas a faculdade nutritiva, ao passo que aos outros seres pertencem esta faculdade e tambm a perceptiva. E se estes dispem da faculdade perceptiva, possuem igualmente a desiderativa, pois o desejo , de facto, apetite, impulso e vontade. (...) A alguns animais pertence, alm daquelas faculdades, tambm a de deslocao; a outros, pertencem igualmente a faculdade discursiva e o entendimento21. o caso dos homens e, se existir, de outro

    ser de natureza semelhante ou superior.22

    19 ARISTTELES. Sobre a Alma. Traduo de Ana Maria Lia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010, 413a3-10, p.63.

    20

    Grifo prprio; . 21

    Grifo prprio; . 22

    ARISTTELES. Sobre a Alma. Traduo de Ana Maria Lia. Lisboa: Imprensa Nacional

  • 34

    Numa relao de consecutividade, as faculdades da alma, partindo da

    mais elementar, a nutritiva, at a do entendimento, articulam-se de forma

    causal, em que um estgio de atuao da alma respalda um estgio

    subsequente de funcionamento das competncias anmicas. Assim, o animal

    que detiver o pensamento discursivo e o entendimento, no caso, o homem,

    no poder prescindir das instncias preliminares para o funcionamento pleno

    de suas faculdades. Nesse sentido, orientado por um olhar naturalista,

    Aristteles estuda a alma em sua relao com a matria orgnica, no a

    separando completamente do corpo, at o ponto de consider-la como

    matria de estudo do fsico.23

    Aps discorrer sobre as faculdades de nutrio, percepo, deslocao

    e desiderativa, Aristteles chega reflexo das partes da alma ligadas

    inteleco, o pensamento discursivo ( - dinoia) e o entendimento

    ( nos).

    O chamado entendimento da alma (chamo entendimento quilo com que a alma discorre e faz suposies)24 no ,

    em actividade, nenhum dos seres antes de entender. No razovel, por isso, que o entendimento esteja misturado com o corpo, pois tornar-se-ia de uma certa qualidade, frio ou quente, ou possuiria algum rgo, como a faculdade perceptiva possui.25

    Veja-se que esse trecho d-se por dois estgios argumentativos: o

    primeiro volta-se conceituao do entendimento e o outro sua distino

    em relao ao corpo. Primeiramente, no que toca ao o conceito de nus,

    compreende-se aqui que se trata das aptides gerais intelectivas, nas quais a

    dinoia, traduzida por discorrer, revela-se como parte integrante. A noo de

    dnoia, em Aristteles, sugere um modo de pensamento de estruturao

    lingustica, uma vez que discorrer equivale ponderao e demonstrao de

    ideias num conjunto de regras, constitudo de proposies numa articulao

    de frases ou sentenas. Aqui tem lugar, sobretudo, o conhecimento cientfico

    (epistme), que silogstico, emoldurado por demonstraes e relaes

    Casa da Moeda, 2010, 414a, 30, p.68.

    23

    ID, 403b1, p. 35. 24

    Grifo prprio; . 25

    Id. III, 429a24-27, p.114.

  • 35

    propositivas encadeadas numa lgica esquemtica com vistas a uma

    definio conceitual. O pensamento discursivo, basicamente, consiste numa

    interao de sentenas que estruturam uma definio nominal de um

    conceito, um lgos. Por outro lado, embora Aristteles estabelea para o nos

    um sentido mais genrico das atividades de inteleco, esse termo,

    tradicionalmente desenvolvido pela filosofia grega, apresenta uma

    significao mais estrita, que se orienta para o reconhecimento de uma

    modalidade no discursiva do conhecimento.

    Para Plato, o acesso s ideias puras, enquanto fundamentos dos ser

    (n) est para alm do domnio discursivo. Enquanto o conhecimento do

    mundo visvel se limita mutabilidade dos fenmenos sensveis,

    configurando-se em opinies volteis e mutveis em acordo com o constante

    estado de devir das coisas, o conhecimento do mundo inteligvel tem como

    conduta a investigao do que dado pelo mundo visvel, a partir do

    esquema discursivo das hipteses, para ento se chegar a algumas

    construes tericas ou a conhecimentos absolutos, nesse caso, respeitantes

    s Ideias imutveis e eternas. Assim, verifica-se uma distino de duas

    faculdades de confronto com o inteligvel, o lgos e o nos, que

    correspondem, respectivamente, ao conhecimento cientfico restrito ao

    percurso lgico-racional da dinoia e sabedoria filosfica fundamentada

    pelo nos. Diferente do matemtico, que se utiliza da hiptese para chegar a

    determinadas concluses conceituais, o filsofo (dialtico) utiliza-se do

    sistema discursivo das hipteses para chegar aos princpios absolutos, cuja

    existncia no depende das formulaes hipotticas e intelectivas, uma vez

    que princpio ontolgico, e no uma elaborao da mente. Embora a dinoia

    seja um percurso intelectual de aproximao ao Uno verdadeiro, ela no d

    conta desse princpio ontognico que a transcende e supera a prpria

    discursividade das hipteses. Logo, o que se compreende da conduta da

    dialtica filosfica o desenvolvimento do pensamento discursivo, a dinoia,

  • 36

    em direo a um estgio intuitivo de conhecimento, o nos, para, enfim,

    chegar-se a essas realidades absolutas e divinas.26

    Mediante essa breve exposio sobre os conceitos platnicos de nos

    e de dinoia, a reflexo de Aristteles a esse respeito, ao considerar um

    sentido mais amplo para nos, desenvolve algumas crticas em torno da

    teoria do conhecimento platnica. O nos enquanto totalidade das faculdades

    do pensamento composto de imaginao (, phantasa), da dinoia,

    da opinio (, dxa), da suposio e de um nos mais especfico, cujo

    significado condiz com noes como razo, intelecto e conhecimento. Essa

    abrangncia conceitual que Aristteles concede ao termo nos espelha a

    dificuldade de fech-lo em um nico sentido, tendo em vista a amplitude das

    noes em torno das instncias cognitivas, que no esto rigorosamente

    definidas em conceitos fechados na obra aristotlica.

    Se esse nos especfico o ponto mximo das faculdades da alma,

    deve-se destacar o valor notico que Aristteles imprime imaginao. Para

    se entender essa nosis das imagens, inicialmente, h que se entender o

    arranjo do continuum orgnico-anmico no qual funcionam as faculdades mais

    corporais da alma e as faculdades de carter intelectivo. No livro III do De

    Anima, Aristteles trata da phantasia mais detidamente, em sua relao com

    os entes sensveis e inteligveis. As imagens no resultariam de uma

    articulao discursiva, mas de um desdobramento representacional do mundo

    sensvel. Portanto, a imaginao no ocorre sem a percepo sensorial, e,

    numa relao causal, sem a imaginao tambm no ocorrer o juzo27. As

    imagens (, phantasmi), enquanto formas elementares das

    elaboraes mentais, operam-se no entre-lugar das instncias corporais da

    sensibilidade com o pensamento. A imaginao, geradora desses

    fantasmas, vale-se, num certo grau, da relao da percepo sensorial com

    o mundo visvel para compor seus construtos imagticos.

    A imaginao ser um movimento gerado pela aco da percepo sensorial em actividade. Ora, uma vez que a viso o sentido por excelncia, a palavra imaginao ()

    26 Cf. PLATO. A Repblica. Traduo, introduo e notas de Eleazar Magalhaes Teixeira. Fortaleza: Ed. UFC, 2009. 508a 511a, p. 224 228.

    27 Cf. PLATO. A Repblica. Traduo, introduo e notas de Eleazar Magalhaes Teixeira. Fortaleza: Ed. UFC, 2009. 508a 511a, p. 224 228.

  • 37

    deriva da palavra luz (), porque sem luz no possvel ver. E por permanecerem e serem semelhantes s sensaes, os animais fazem muitas coisas graa a elas.28

    A relao do imaginado com a viso, em Aristteles, deve ser

    entendida num sentido mais amplo de visualidade, de forma a conceber que

    as outras modalidades de percepo sensorial tambm podem auxiliar na

    composio de imagens. As formas imaginadas, possivelmente, receberiam

    sua concretude por um complexo procedimento de forja em que, alm da

    viso, tambm entrariam em cena as outras impresses sensveis. Da poder-

    se-ia supor em que nvel se opera a relao do corpo com a imaginao, a

    qual, num processo de recodificao do contato do corpo com o mundo

    visvel, formula o mundo imaginrio. Para alm dos limites espao-temporais

    dos objetos concretos com os quais se relaciona a percepo, a imagem

    constitui um avano na hierarquia notica, exercitando as faculdades

    intelectivas para a formao do conhecimento que se sobrepe e reelabora o

    contato imediato das sensaes com o mundo.

    Assim, o concurso da imaginao est no alcance de um passo

    importante para as abstraes geradas pelo intelecto. As imagens em sua

    semelhana com as sensaes, mas destitudas de matria, colaboram no

    processo de refinamento que estrutura a inteleco, a qual, necessariamente,

    elabora suas ponderaes por configuraes imagticas:

    Mas como, ao que parece, nenhuma coisa existe separadamente e para alm das grandezas sensveis, nas formas sensveis que os objetos entendveis existem. [...] Estes so os designados abstraces e todos os estados e afeces dos sensveis. Mas, por isso, se nada percepcionssemos, nada poderamos aprender nem compreender. Alm disso, quando se considera, considera-se

    necessariamente, ao mesmo tempo, alguma imagem.29

    Uma vez que o ato de considerar (, theorein) s possvel por

    imagens, fica, aqui, patente o valor notico da imaginao. No processo de

    desenvolvimento das faculdades intelectivas, a alma eleva-se do imediato

    sensvel rumo ao conhecimento. A imaginao, aqui, ocupa o lugar de um

    28 De Anima, III, 427 b 14-16. 29 ARISTTELES. Sobre a Alma. Traduo de Ana Maria Lia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010, III, 429a1-5, p. 113.

  • 38

    ponto de passagem ou limiar necessrio da alma em direo aos

    refinamentos teorticos. Assim, uma vez que o entendimento no existe sem

    imaginao, que semelhante s sensaes do corpo, consequentemente,

    tambm o conhecimento no existe sem o corpo.

    Portanto, diferentemente de Plato, que considera as disfunes que a

    matria corporal pode ocasionar ao intelecto, Aristteles reconhece, numa

    escala hierrquica, as articulaes noticas entre corpo e conhecimento.

    Contudo, no se pode deixar de considerar que, embora Aristteles

    reconhea a importncia dos componentes corporais e sensveis no processo

    de cognio humano, a razo tida como faculdade superior, uma vez que s

    por meio dela possvel se conhecer a verdade. Como se viu, a imaginao e

    sua aproximao com o corpo colaboram no desenvolvimento da nosis,

    contudo ela

    passvel majoritariamente ao erro, pois apenas a cincia e o entendimento

    so verdadeiros.30 a ponderao orientada por critrios racionais que

    poder dar acesso ao esclarecimento das realidades ontolgicas.

    Numa progresso qualitativa, a alma humana conduz-se rumo a sua

    faculdade mais importante, o nos, a inteligncia, a partir da qual se alcana o

    maior grau de conhecimento, que consiste na apreenso dos princpios e

    causas de todas as coisas, isto , as realidades universais axiomticas de

    todas as substncias. Assim, essas unidades, que se identificam com a noo

    de Forma ou de Ser, s sero apreendidas por uma nosis altura,

    consagrada a uma cincia mais universal, que ser a Filosofia. Apenas o

    filsofo apreender o ser das coisas graas a uma educao em lgica e,

    consequentemente, ao raciocnio silogstico.31 Assim, so as motivaes

    lgico-racionais da dinoia que impulsionam a faculdade do verdadeiro

    entendimento, o nos, de forma que as instncias da sensao e da

    imaginao ainda aparecem como subalternas principal faculdade humana,

    a racionalidade.

    30

    De Anima III, 432a, 5-10. 31

    Cf. Metafsica. IV, 1005b1, 5-10.

  • 39

    1.4. Uma Fenomenologia do Corpo

    A partir das duas grandes teorias do conhecimento desenvolvidas por

    Plato e Aristteles, o pensamento ocidental definir as linhas de conduo

    de suas reflexes e demarcar suas fronteiras em relao a outros universos

    de pensamento, como, por exemplo, a tradio oriental. O afastamento do

    corpo dos aspectos racionais e espirituais constituir, por muito tempo, um

    dos fios condutores do enredo da histria da filosofia ocidental, entrelaando-

    se com os comportamentos que caracterizaro a experincia de nossa prpria

    corporeidade.

    Com a reabilitao do corpo pela filosofia, que, diga-se de passagem,

    deu-se muito recentemente, mais precisamente em fins do sculo XIX, com a

    inverso da hierarquia clssica proposta por Nietzsche, que adota o corpo

    como fio condutor de seu pensamento filosfico, a corporeidade se

    configurar como apangio das atuais abordagens filosficas. No obstante, o

    dualismo clssico corpo-alma ainda parece muito evidente e fortemente

    integrado na cultura, determinando os sentimentos mais profundos e

    inconscientes em relao a nossa experincia corporal, herdeira, sobretudo,

    de uma moral sexual crist, que imprimiu ao corpo aspectos demonacos, de

    desqualificao de sua nesis.

    Diante dessa persistncia em se dicotomizar o homem em um lado

    corporal e outro espiritual, verifica-se o poder de atuao da oposio

    platnica entre ser e aparncia. Diante disso, uma nova corrente filosfica

    empenhar esforos para a elaborao de uma contraproposta

    epistemolgica, recusando-se ao modo clssico de perquirio da verdade

    por trs das aparncias. Trata-se, agora, de buscar o ser considerando a

    possibilidade de integrao entre a realidade sensvel com as estruturas de

    pensamentos, naquilo que Husserl, com sua Fenomenologia, entende como

    um retorno s coisas mesmas a partir do olhar transcendente da conscincia.

    O mtodo fenomenolgico interessa-se pelos modos como as

    ocorrncias do mundo vivido do-se a ver conscincia. Da se compreende

    a escolha do fenmeno como conceito axiomtico dessa abordagem, por

    evocar, eminentemente, noes ligadas aparncia ( o que se

  • 40

    mostra, aparece; derivado do radical , que compe o termo - luz.) O

    fenmeno seria, segundo Husserl, tudo que intencionalmente est presente

    conscincia, sendo para esta uma significao. O conjunto das significaes

    chama-se mundo.32

    A conduta do fenomenlogo de, portanto, alcanar o fenmeno puro,

    descrevendo o mundo como aparece ao esprito, por isso a orientao correta

    ser de suspender ou pr entre parnteses qualquer juzo em relao ao

    mundo exterior; tal suspenso configura a reduo fenomenolgica. Assim, a

    fenomenologia, enquanto cincia, procede como um mtodo descritivo das

    estruturas da experincia referentes conscincia do existir para, ento,

    descobrir as essncias do mundo vivido. A palavra vida aqui no tem sentido

    fisiolgico, uma vida cuja atividade possui fins que cria formas espirituais:

    vida criadora de cultura, em sentido mais amplo, numa unidade histrica33.

    O estatuto do corpo, no mbito da Fenomenologia, no corresponde

    quela ideia do corpo como objeto, o qual a biologia investiga, categoriza e

    classifica, nem tampouco concerne ao conceito de corpo-mquina, cujas

    engrenagens a medicina repara.

    A experincia corporal como se vivencia, como poeticamente a define

    Foucault, consiste numa topie impitoyable, uma presena que diariamente

    acompa-

    nha, sem que se d conta, por vezes, mas da qual no se tem escapatria,

    uma vez que s com ela se pode mostrar, ser.

    exatamente em funo desse topos impiedoso que, segundo

    Foucault, o principal mito criado pela cultura ocidental, o mito da alma, foi

    incessantemente perseguido, com fins a fornecer recursos para escapar da

    fatdica topologia do corpo. Consequentemente, em funo dessa utopia

    maior, que localiza o ser num outro lugar, o corpo desapareceu e com ele o

    olhar sobre a experincia permanente do sentir na pele. Porm, se o corpo

    o que articula o ser com o mundo, a relao entre sujeito e objeto se atualiza

    32

    ZILLES, Urbano. A fenomenologia husserliana como mtodo radical. In: HUSSERL. A crise da humanidade europeia e a filosofia. introd. e trad. Urbano Zilles. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002., p. 7. 33

    HUSSERL. E. Ibd. p.44.

  • 41

    de forma interdependente. Se por um lado, o corpo objetivo, na medida em

    que pode ser visto, tocado a partir das delimitaes espao-temporais, por

    outro lado, esse objeto est alm de um alcance evidente do olhar ou do

    toque, transbordando as instncias da objetividade, na medida em que, em

    dilogo permanente com a mente, compem a integralidade do nosso prprio

    ser.

    Corps incomprhensible, corps pntrable, et opaque, corps ouvert et ferm : corps utopique. Corps absolument visible, en un sens : je sais trs bien ce que cest qutre regard par quelquun de la tte aux pieds, je sais ce que cest qutre pi par-derrire, surveill par-dessus lpaule, surpris quand je my attends, je sais ce quest tre nu; pourtant, ce mme corps qui est si visible, il est retir, il est capt par une sorte dinvisibilit de laquelle je ne peux le dtacher.34

    justamente nessa dificuldade de uma apreenso corporal objetiva a

    que se refere Foucault, que se chega ao tema da corporeidade pelo escopo

    da fenomenologia, sobretudo com Merleau-Ponty, que observar o fenmeno

    da encarnao, para alm de uma objetividade de vsceras, como

    determinante da condio humana em sua experincia. Assim, o estudo do

    corpo deve ser orientado no sentido de considerar o mundo como vivido e

    sentido corporalmente. A crtica clivagem que afasta o corpo da alma ser o

    fundo das principais reflexes que orientam a fenomenologia do corpo

    merleau-pontyana.

    No lugar de se considerar um princpio psquico independente como

    fonte dos nossos sentimentos, h que se tomar em conta que o corpo capaz

    de sentir por si mesmo e que, por isso, como bem observou Foucault,

    apresenta instncias de inapreensibilidade, que correspondem vivncia

    cotidiana pr-reflexiva, pela qual todos passam diariamente, em que o corpo

    espontaneamente se comunica e se insere no mundo. Essa opacidade, a que

    34 FOUCAULT. M. Le corps utopique Les Htrotopies. Paris: ditions Lignes, 2009, p. 23. Corpo incompreensvel, corpo penetrvel e opaco, corpo aberto e fechado: corpo utpico.

    Corpo absolutamente visvel, num sentido: eu sei muito bem em que consiste ser olhado da

    cabea aos ps por algum, eu sei o que ser observado por trs e vigiado sobre os ombros,

    surpreendido quando se espera, eu sei o que estar nu; contudo, esse mesmo corpo que to

    visvel, ele est afastado, tomado de uma sorte de invisibilidade, da qual eu no posso

    desprend-lo. (traduo livre)

  • 42

    naturalmente o corpo est submetido pela experincia cotidiana, consiste

    exatamente na condio de seres encarnados cuja existncia corporal

    inalienvel.

    1.4.1. A fenomenologia transcendental de Husserl

    Edmund Husserl, nascido em 1859, em Prossnitz, atual Repblica

    Tcheca, iniciou sua carreira acadmica como matemtico. Apenas na virada

    do sculo XX que ir comear, efetivamente, seu projeto filosfico,

    sinalizado nas primeiras Investigaes Lgicas, nas quais declara o incio dos

    seus estudos fenomenolgicos. Ao longo de toda a obra de Husserl,

    verificam-se mudanas de paradigmas, reformulaes de ideias, que

    caracterizam uma perptua reelaborao do seu mtodo. A partir da

    conferncia de 1907, A ideia da fenomenologia, o filsofo sinaliza o seu

    projeto de definio de uma fenomenologia transcendente, ao qual se dedicou

    at o fim de sua vida, em 1938. Aps a publicao de A ideia da

    fenomenologia, s vir a pblico uma pequena quantidade de textos, que,

    possivelmente, no d conta das reflexes expressas em uma vasta produo

    de mais de trinta mil pginas estenografadas, ainda em processo de edio e

    publicao, em meio s quais se incluem o segundo e o terceiro volumes de

    As ideias.35 Talvez por isso Merleau-Ponty, em sua Fenomenologia da

    Percepo, tenha evocado a necessidade de uma reviso da obra

    husserliana, na tentativa de uma definio mais precisa da fenomenologia,

    que consiste num conceito longe de estar resolvido.

    De acordo com Terry Eagleton, a fenomenologia husserliana tem

    motivaes histricas e sociais das quais no se deve prescindir, quando da

    iniciativa de uma aproximao e leitura do pensamento de Husserl.36 Segundo

    Eagleton, em meio s runas de uma Europa devastada pela Primeira Guerra

    Mundial, inicia-se uma onda de revolues sociais que ir expandir-se por

    todo o continente. Embora tais mobilizaes tenham sido violentamente

    aniquiladas, a ordem do capitalismo europeu tinha sido profundamente

    35 Cf. CERBONE, D. R. Fenomenologia. Petrpolis: Vozes, 2012. 36 Cf. EAGLETON, T. Teoria da Literatura, uma introduo. So Paulo: Martins Fonte, 2003, p. 75-85.

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    abalada em funo da carnificina da guerra e de suas consequncias

    polticas.

    Com a desestabilizao das ideologias capitalistas e dos valores

    culturais que as governavam, as produes cientficas e artsticas passaram a

    refletir certa esterilidade e perda de referncias. A cincia no sara do plano

    da mera categorizao dos fatos; a filosofia ficara dividida entre o positivismo

    e o psicologismo; predominavam formas de relativismo e irracionalismo;

    consequentemente, a arte passara a expressar esse estado de coisas. Em

    meio a toda essa crise ideolgica, Edmund Husserl prope um novo mtodo

    filosfico que propiciasse certezas absolutas a uma civilizao em

    desintegrao. Segundo o filsofo, era preciso definir uma orientao

    espiritual clara ou, do contrrio, a barbrie irracional ocuparia todos os

    espaos, impedindo a compresso do homem e a elaborao de

    conhecimentos legtimos.

    Husserl investe na busca pela certeza a partir de uma afirmao inicial,

    que consiste no fato de no se poder ter acesso dimenso das coisas em si,

    de forma que os objetos s podero ser compreendidos como coisas

    postuladas pela conscincia. Embora no se possa apreender a realidade

    independente dos objetos, podem-se compreender os modos como eles

    aparecem conscincia. Com essa certeza, Husserl defende a legitimidade e

    possiblidade de o homem angariar o conhecimento.

    A rigor, a fenomenologia husserliana seria o estudo das essncias dos

    fenmenos, sobretudo a essncia da conscincia e da percepo na

    experincia existencial, isto , a relao do sujeito e sua apreenso do

    mundo. Assim, o entendimento sobre o homem deveria ser desenvolvido a

    partir da prpria facticidade da conscincia humana, sempre com vistas a

    algum objeto, uma vez que se h conscincia, ela existe em funo de algo.

    Portanto, o ato de pensar e o objeto pensando possuem uma relao de

    dependncia mtua.

    Para termos certeza, ento, devemos ignorar tudo, ou colocar entre parnteses qualquer coisa que esteja alm de nossa experincia imediata; devemos reduzir o mundo exterior apenas ao contedo de nossa conscincia. Isto, ou a chamada reduo fenomenolgica, a primeira medida importante de Husserl. Tudo o que no seja imanente conscincia