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Um botânico a favor da caatinga: o relatório “Notas Botanicas” e a Inspetoria de Obras Contras as Secas – IOCS (Nordeste/Brasil, 1909-1910) A botanist in Caatinga´s behalf: an analysis of the "Botanic Notes report" and the actions of the Inspectorate of Works Against Droughts (Northeast / Brazil, 1909-1910) Angela Lúcia Ferreira, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), [email protected]. Adielson Pereira da Silva, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), [email protected]. Yuri Simonini, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), [email protected].

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Umbotânicoafavordacaatinga:orelatório“NotasBotanicas”eaInspetoriadeObrasContrasasSecas–IOCS(Nordeste/Brasil,1909-1910)

AbotanistinCaatinga´sbehalf:ananalysisofthe"BotanicNotesreport"andtheactionsoftheInspectorateofWorksAgainstDroughts(Northeast/Brazil,1909-1910)

AngelaLúciaFerreira,UniversidadeFederaldoRioGrandedoNorte(UFRN),[email protected].

AdielsonPereiradaSilva,UniversidadeFederaldoRioGrandedoNorte(UFRN),[email protected].

YuriSimonini,UniversidadeFederaldeMinasGerais(UFMG),[email protected].

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SESSÕES TEMÁT ICA 7 : C IDADEE H ISTÓRIA

DESENVOLVIMENTO,CRISEERESISTÊNCIA:QUAISOSCAMINHOSDOPLANEJAMENTOURBANOEREGIONAL? 2

RESUMO

AIOCS,criadaem1909,tinhacomoatribuiçãoimplementaraçõespara“prevenir”e“atenuar”asconsequências das estiagens prolongadas. Os levantamentos, estudos e proposições realizadospelosprofissionaisda Inspetoriarenderamváriosrelatóriostécnicosque indicavamascondiçõesfísico-geográficas da região como as prováveis causas das irregularidades pluviométricas eindicavam soluções de engenharia ou provenientes da própria natureza. Muitos destes dadosarrolados foram convertidos em mapas que representavam elementos considerados essenciaisparaocombatedoproblema.Entreelesavegetaçãosedestacavanosentidodereflorestaráreasdevastadas, proteger os açudes e incrementar a economia. Assim, analisar o papel dos estudosbotânicosproduzidosnarepresentaçãoeinterpretaçãodanaturezacomorecursoparaamenizarosefeitosdassecaséoobjetivodestetrabalho.Paratanto,combasenospressupostosteórico-metodológicosdaHistóriaAmbientaledaCartografiaHistórica,avaliou-seoMappaBotânicodoEstadodoCearáeorelatórioNotasBotânicas,ambosassinadospelobotânicoAlbertLöfgren.Oestudo domaterial revelou que, ademais de servir aos planos da União no enfrentamento dassecas, esses mapas significavam também a intenção do Estado em transformar a natureza emrecurso natural sob seu controle e uso. As conclusões de Löfgren indicavam para o empregoracionaldavegetaçãoapartirdeintervençõessistematizadasparafomentaro“desenvolvimentoeconômico”daregião.

PalavrasChave:Cartografiahistórica,Históriaambiental,Territóriodassecas,Nordeste/Brasil.

ABSTRACT

The IOCS, established in 1909, had the task of taking actions to "prevent" and "mitigate" theconsequencesofprolongeddroughts. The surveys carriedoutby the IOCSprofessionals yieldedseveral technical reports that showed the physical-geographical conditions of the region as theprobablecausesoftherainfallirregularitiesandindicatedsolutionsofengineeringorcomingfromthe Nature. Many of these data have been converted into maps that represented essentialelementstocombattheproblem.Amongthemthevegetationshowedup,therefore,toreforestdevastatedareas,toprotecttheweirsandtoincreasetheeconomy.Thisstudyaimstoanalyzetherole of the botanic studies in the representation and interpretation of nature as a resource tounderminethedroughtseffects.Thus,weinvestigatetheBotanicalMapoftheStateofCearáandtheBotanicalNotesreport,bothsignedbybotanistAlbertLöfgren,basedonthetheoreticalandmethodological assumptions of Environmental History and Historical Cartography. The study ofthose documents revealed that, in addition to serving theUnion's plans to copewith droughts,thesemapsalsomeanttheState'sobjectivetotransformnatureintoanaturalresourceunderitscontrol. Löfgren's conclusions pointed to the rational use of vegetation through systematizedinterventionstofostertheregion's"economicdevelopment".

Keywords:HistoricalCartography,EnvironmentalHistory,Droughtterritory,Northeast/Brazil.

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CONSIDERAÇÕESINICIAIS

ArepresentaçãosobreoNordesteacompanha,comcertafrequência,aimagemdeumapaisagemárida repleta de cactos espinhosos e arbustos esbranquiçados desprovidos de folhas. Apesar dageneralizaçãocontidanesteexercíciomental,aosuprimirosoutrostiposdevegetaçãodaregião,trata-sedeuma referência aoelementomais característicodelae, especialmente, do complexogeográfico do Nordeste seco: a vegetação da província fitogeográfica das caatingas (Ab’saber,1999). Essa característica marcante ainda não era completamente entendida pelo GovernobrasileironoiníciodoséculoXX.

Com a criação de comissões técnicas da Inspetoria de Obras Contra as Secas para realizarlevantamentosinlocodasreaiscondiçõesdaregiãoassoladapelassecasem1910,oinspetorgeralMiguelArrojadoRibeiroLisboaalmejavaimplementaroefetivocombateaosefeitosdassecaspormeiodediversasmedidas,comoaconstruçãodeaçudesedeestradasdeferro.Aimportânciadosmapas elaborados pela IOCS entre 1910 e 1915, a série I-G, por trazerem diversos elementossíntese dos levantamentos realizados – localização de aglomerações urbanas (vilas, povoações,cidades), cursos d’água, vegetação, clima – e das obras projetadas e/ou concluídas como, porexemplo,asjámencionadasestradasdeferroecarroçáveiseosaçudes.

Seosestudoshidrográficosseriamfatorescentraisnaconstruçãodeaçudes,o levantamentodotipodevegetaçãoexistentedemonstrariaas“uberdades”ou“esterilidades”doterreno(Löefgren,1910);ouseja,buscavadescobriraspotencialidadesdeusoeconômicodosolodaregião.EssefoiumdosmotivosdacriaçãodeumacomissãoentremembrosdoServiçoGeológicoeMineralógicodoBrasiledaIOCSparaumextensolevantamentonoNordestedopaís,emespecialoCeará,entre1909 e 1910 (Crandall, 1910). Dentre omaterial arrolado, os relatórios elaborados e osmapasproduzidos,umemparticularchamaatenção:o“NotasBotânicas”eoprodutocartográficoqueoacompanha. O responsável pela obra foi o botânico sueco radicado no Brasil, Johan AlbertConstantinLöefgren,aoserconvidadopeloengenheiro,eentãochefedaIOCS,ManuelArrojadoLisboa,aintegraressacomissão.

Com base na documentação gráfica e do relatório de Löefgren, e apoiado pelos pressupostosteórico-metodológicosdaHistóriaAmbientaledaCartografiaHistórica,opresentetrabalhobuscaanalisar o papel do produto cartográfico na representação e interpretação como recurso paraamenizarasconsequênciasdasestiagensprolongadasnosestadosnortistas.Ajustaposiçãodessasduas vertentes de análises se deve a uma melhor compreensão das ações empreendidas porengenheiros, geólogos, botânicos, os quais, em conjunto, contribuíram para a nascente culturatécnicabrasileira,comoseconvencionoudenominarnesselivro.

Por se tratar de questões ligadas ao meio ambiente, adotou-se os pressupostos de Fra PaleoUrbano (2008, p.377) acercadaHistóriaAmbiental: “[...] o estudodas interaçõesentre culturashumanas e a natureza por meio do tempo e do espaço, examinando como o meio ambienteinfluenciou o processo histórico, e inversamente, como as pessoas reorganizaram etransformaramo seumeiousando tecnologia”1.Apartirdisso,épossívelumaaproximação,deacordo com Inês Aguiar Freitas (2007, p.31), com a Geografia, uma vez que omeio, entendidopelosengenheirosenquantoproblema,demandavadohomemreaçõesqueaconteceramdentrodepossibilidades:

1Dooriginal:“(...)thestudyoftheinteractionsbetweenhumanculturesantenaturethroughtimeandspace,examininghow the natural environment had influenced the historical process and conversely, how people have reorganized andtransformedtheirenvironmentusingtechnology”.

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Ambasencaramohomemcomotransformadordomeioambientefísico.Semqualquer referência a um determinismo ambiental, o que se quer é deixarclaroque,apesardetodaculturaetecnologiahumanas,ohomemaindaestásujeito,mesmoqueemporçõesmínimas,àsrestriçõesnaturais.

Por sua vez o mapa botânico, como fonte de informação subsidia a discussão acerca daquelemomento,vistoqueparaKarlSchögel(2007,p.95),“[…]losmapasestánligadosaunlugaryuntiempo, no se ciernen en un lugar abstracto espacio vacío, se hallan en determinado contextohistóricoycultural”.Seráevidenciadaaevoluçãodochamado“pilardeenfrentamentoflorestal”,dado que este é o motivo explicito e oficial para a elaboração do relatório e do produtocartográfico aqui estudado. No entanto, investiga-se para além da linha que delineia o oficial,buscando entender, em conformidade ao pensamento de John Brian Harley (2009, p.5), “nãoapenasosmotivosquesustentamoseventoscartográficos,mastambémosefeitosqueosmapastiverameacargadeinformaçãoqueelesveiculamemtermoshumanos”.

Incialmente, este trabalho faz uma breve reconstrução histórica da problemática da seca e dopensamentodediversosintelectuaisacercadoambientehostildosemiáridobrasileiroenfatizandoaspropostaseteoriasqueenvolviamasespécieseousodavegetação,para,emseguida,analisaro relatórioNotas Botânicas e a síntese cartográfica denominadaMappa Botânico do Estado doCeará.

ESTUDOSDASECAEAVEGETAÇÃOCOMOFORMADEENFRENTAMENTOATÉOINÍCIODOSÉCULOXX

DeacordocomJoaquimAlves(1982),ohistóricodeobservaçõesdassecasnaregiãosemiáridadoBrasil remonta os idos do século XVII. Entretanto, este período inicial é pobre em registros derelatos devido ao pequeno contingente populacional europeu que ali vivia e à inexistência derelatos orais por parte das populações indígenas. Não era de interesse para o colonizadorportuguêsadentraraointeriordascapitaniasquehojecompreendemaRegiãoNordeste,jáqueacana-de-açúcar, sua maior fonte econômica e principal vetor de ocupação, não encontravacondiçõesideaisparaseudesenvolvimentoemáreasmaisdistantesdolitoral,ondeoclimaésecoeaterraárida,paraalémdaZonadaMata.

Fernão de Cardim, jesuíta que frequentou Pernambuco no século XVI, descreve uma secaacontecida no ano de 1583, que parou os engenhos d’água e causou muita fome no sertão,fazendocomquegrandequantidadedeindígenasbuscasseajuda(apudAlves,1982).Adimensãodo problema da falta de chuva se agravaria nos séculos seguintes proporcionalmente aocrescimento dos rebanhos de gado e das plantações de algodão, aumentando a população nointeriordasprovínciasdonorte.

SerianaprimeirametadedoséculoXIXqueoproblemaclimáticoganhariamaiorvisibilidade,aoaparecernos relatosdos viajantesestrangeirosquepercorrerama região.Posteriormente, após1877,figurariamosprimeirosestudoseproposiçõestécnico-científicasparaminorarosefeitosdoproblema.Algunsestudiososacreditavamnasuaresolução,apesardeque,emmuitoscasos,nãopassavam de especulações retóricas. Pode-se citar as hipóteses da relação entre estiagemprolongadaeasmanchassolares,feitapelogeólogoestadunidenseOrvilleDerby,em1878,ouda

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sugestão do engenheiro cearense Viriato de Medeiros feita em 1877, na qual defendeu aimplantaçãodeestaçõesmeteorológicasparapreverassecas(Alves,1982).2

As análises sobre a vegetação e a recomendação do seu uso contra a seca figurariam diversasvezes nos debates e nos discursos dos diversos estudiosos que abordaram o tema das secas,estando estreitamente vinculadas a construção de reservatórios de água, proposta largamenteutilizadapeloGovernodesdeofinaldoséculoXIX.

SegundoAdrianoWagnerdaSilva,YuriSimoninieAngelaLúciaFerreira(2012),umdosprimeirosestudosadefenderessaformadeenfrentamentofoielaboradopelosenadorThomazPompeudeSouza Brasil, sob o títuloO Clima e as Secas do Ceará, de 1877, no qual o elemento vegetal jáfiguravanumaopçãoaserempregadajuntamentecomaaçudagem.Estasoluçãoseriadefendidapor muitos outros profissionais, entre eles os engenheiros André Rebouças, Zózimo Barroso eHenrique Carlos de Beaurepaire Rohan, os quais acreditavam que, com a ampla construção deaçudes e o plantio de árvores seria possível mudar o clima da região semiárida brasileira, demaneiraachoveremumvolumemaiorqueonormal.

Emseuescritode1877,intituladoConsideraçõesAcercadosMelhoramentosdeque,emRelaçãoasSeccassãoSusceptíveisAlgumasProvínciasdoNortedoBrazil,RohancriticaaideiadaprevisãodassecasdefendidaporViriato,eapresenta,comoalternativa,aconstruçãodeaçudescombinadacomavegetação, sebaseandoemargumentações técnicasdetalhadas referentesaevaporação,dinâmicadosventoseorografia.Paraele,mesmosendopossívelprevê-lo,seriadispendiosoparaos sertanejos se locomoveremcomsuas famíliase seus rebanhosa cada tempode seca. Sendoassim, eramais importante encontrar umamaneira de evitar a necessidade de fugir das áreasatingidaspelofenômenoresolvendooproblemaapartirdealgumasmedidas.Nessecaso,apontaosaçudeseavegetaçãocomoopçãopararesolveroproblema:

[...] as árvores que se acham acidentalmente à margem de algum riopermanente, ou que foram plantadas nas de um açude, não sentem essestristes efeitos da seca, e se mostram virente em todas estações; d’ondedevemos concluir que, ainda pelo lado da arboricultura, são os açudes damaior importância. Escolham-se pois, as árvores frutíferas, quer indígenas,quer exóticas, que melhor acomodam nos climas quentes e mais serecomendampelasuacopa[…].

Com o andar do tempo se irão estendendo essas florestas artificiais, e umaépocachegaráemque,obumbradaaterra,afaltadechuvanãofarámaisosestragosqueselamentamhoje[…]eoshabitantesdaquelaregiãonãoterãomais a dor de abandonar seus lares em procura de meios de subsistência(Rohan,1877,p.19-20).

Rohan citava o juazeiro (Zizyphus joazeiro) como exemplo de plantas locais que poderiam sercultivadas em larga escala no semiárido, devido sua resistência até nos períodos de secasmaisseveras, sendoútil, inclusiveparaproteger as espéciesmais sensíveis. Em contrapartida, outrosprofissionais criticaramduramenteaquelesquedefendiamserpossível amudançado climaporinterferênciahumana.GuilhermeSchüch,oBarãodeCapanemafoiumdeles.EmartigodaRevistado Instituto Polytechnico Brazileiro, datado de 1878, é possível entender seu ponto de vistaquandodeclaraqueo“melhoramentodoclimaéproblemadesoluçãoimpossível”,pois“provamos factosqueesse clima jáexistiuem remotasépocas geológicas, comcertezadesdeoperíodo2ViriatodeMedeiros,aopropor,em1877,acriaçãodosobservatóriosmeteorológicoscomaexclusivafunçãodealertarossertanejos paramigrarem em direção ao litoral, em períodos de forte estiagem, foi duramente criticado pelos demaismembrosdoInstitutoPolitécnico(Silva,Simonini,Ferreira,2012).

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terciário;talvezcomeçassemjánocretáceo”(Capanema,1878,p.3)e,sendoassim,estavaalémda capacidade do homemmodificá-lo. No entanto, os profissionais da Escola Pluvífera – comoficaramconhecidososdefensoresdamudançado clima regional– tiveramgrande influêncianadecisãodeincluirosaçudeseasárvorescomoumaformadeenfrentamentodosefeitosdasecadesdeentão(Silva,Simonini,Ferreira,2012).

OcitadoBarãoCapanema,aovisitararegiãomaisafetadapelassecas,fezalgumasobservaçõesarespeito da geologia e da vegetação, as quais serviriam de argumento ao criticar os quedefenderam a mudança do clima em sessão do Instituto Polytechnico voltada para discutir oproblema em 1877. Apesar de defender o “reflorestamento” de áreas devastadas, Capanemadesmitificava as ideias que a falta de vegetação se relacionava com o fenômeno climático aoenfatizarqueelahaviaemabundâncianosertão,masqueperdemasfolhasduranteaestiagem.Segundoele,

[…] alegam falta de vegetação que contribui para a seca, esta falta porém nãoexiste;enquantosubsistemascondiçõesquepromovemchuvasnãohálugarondea vegetação seja mais luxuriante: com as primeiras águas ela brota como porencanto,osermosporonde lavrouo fogo […]parecemmodeladosemcarvãoesemvidaempoucosdiasestãocobertosdedensaverdura(Capanema,1877,p.9).

Importantedestacarquenãomaissefalacomavisãodequeamesmamudariaoclimadaregião,masdarecuperaçãodeáreasquehaviamsidodevastadas,dadaopapeldavegetaçãoemprotegeras águas subterrâneas e superficiais. Segundo Hélio Takashi Maciel de Farias (2008), diversosprofissionaisenvolvidosnaproblemáticadasecacompactuavamcomestas ideiasdeCapanema,como José Bonifácio e os engenheiros André Rebouças e Saturnino Brito. Os engenheiros, deacordo com Farias (2008), apesar de pertencerema umaprofissão de pensamento progressistaantagônico ao da simples preservação da natureza, mas enxergando-a como uma fonte derecursosecampodeatuação,faziampartedogrupodeautoresqueemsuasobras“apontamparaconhecimentos que, se não podem ser chamados de uma ecologia propriamente dita, jádemonstramumcertoentendimentodasrelaçõesnaturaiseumapreocupaçãocomaconservaçãodas matas e rios” (Farias, 2008, p. 63). A conservação da vegetação, nesse sentido, tinha porintenção o aproveitamento da natureza como recurso natural, mediante uso racional para finseconômicos.

Paulo José Lisboa Nobre (2010) chama atenção para a existência de ressonâncias acerca dapreservaçãodasflorestasanterioresaoperíododemaiorinfluênciapositivistanoBrasil.Segundoo autor, a preocupação para proteção das matas visando proteger os cursos d’água e águassubterrâneas remontam os períodos colonial e imperial. Todavia, o que prevaleceu, naquelemomento, foiapredominânciadopensamentodanaturezaapenascomoummeiopotencialdetransformação para se atingir o progresso, ou até mesmo como um empecilho para odesenvolvimento.

Após a virada do século XX, já no regime republicano, o problemada falta de chuva na porçãonorte do território brasileiro ganhou maior atenção por parte do Estado, o qual adotou umaatitudeatéentãoinéditaqueconsolidariaoviéstécnicoparaotratamentodaquestão,acriaçãoda InspetoriadeObrasContraasSecas,pormeiododecretonº7.619,de,de21deoutubrode1909,comovistonocapítulo9.Diversos levantamentospassaramaserrealizadosapartirdesteperíodo para, assim, serem convertidos em relatórios técnicos e nosmapas da série I-G. Estesdocumentos seriam essenciais para a elaboração e aplicação dos projetos de engenharia deaçudesedeestradas (de ferroe/oude rodagem)assimcomopara sua representaçãonoXXXà

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propostasanteriores.Valesalientarquetaisprojetosjávinhamsendofocodedebatesrealizadospor políticos e por engenheiros desde meados do fim do século XIX, como discutidoanteriormente.

AoutraincorporaçãodasproposiçõesanterioresaodecretodecriaçãodaIOCSpodeservistanaproposta da utilização de vegetação contra os efeitos da seca. De acordo com o art.1º domencionadodecretode1909,dosdez itensenumeradospara “prevenir” e “atenuar”osefeitosdassecas,doisdelesteriamrelaçãodiretacommanejoflorestal:

III. Conservação e restituição das florestas, com ensaios sistematizados dasculturasquemelhorseprestemáscondiçõesespaciaisdessaregião.

X.Outros trabalhos– taiscomoapiscicultura,oshortos florestaisetc., -quepossam contribuir para ativar e desenvolver a ação da INSPETORIA. (Brasil,1909,p.7905).

EssasideiasdeconservaçãodasflorestasdeterminadaspelaInspetorianasuaorigem,deacordocom Farias (2008), aconteciam no mesmo momento em que se estabeleciam na legislaçãobrasileiraasorientaçõesoficiaisparaaçõesdeproteçãoambiental,pormeiododecreto7.619de21 de outubro de 1909. Destamaneira, os dois itens acimamencionados, em conjunto comosdemaisexpostosnalei,podemsersintetizadosnum“triodepropostasoupilaresdoCombateàsSecas,quaissejam:obrasdeirrigação(açudesecanais);obrasdeviação(ferroviaseestradasderodagem);eacriaçãoeaconservaçãodasflorestas”(NOBRE,2010,p.62).Noquedizrespeitoaessa última, e foco desse capítulo, diversas excursões seriam realizadas pelo sertão nordestino,que posteriormente renderiam relatórios e cartografias. Os estudos consagrados nas peçassupracitadassubsidiariamasaçõesempregadaspelaIOCS,sobretudoatravésdosHortosFlorestaisparaoaproveitamentodapróprianaturezacontraosefeitosdassecas,conformeanalisaremosaseguir.

AIOCSEOSLEVANTAMENTOSDAVEGETAÇÃONOSEMIÁRIDOBRASILEIRO

Diantedafuncionalidadedousodavegetaçãocomoferramentaprovenientedapróprianaturezana lutacontraaseca,sejapelousoemconjuntocomosaçudesparaprotegeroentornodestesreservatórios,sejacomoumaformaderenderretornoseconômicosàpopulaçãosertaneja,aIOCSestabelecerianonordestebrasileiroHortosFlorestaisnaprimeiradécadadoséculoXX.Ademais,realizaria um extenso inventário da vegetação do Ceará, devido o limitado tempo e suaspotencialidadesapartirdoestabelecimentodeumacomissão formadapormembrosdoServiçoGeológicoeMineralógicodoBrasiledaprópriaInspetoria,quepercorreuonordestedopaís,emespecialoCeará,entreosanosde1909e1910.Oprodutodasanotações realizadasemcampopode ser observado no relatórioNotas Botânicas, o qual descreve e analisa os dados coletadosparaindicarsoluçõesqueviessemaservirnoenfrentamentodaseca.Alémdisso,disponibilizaemsua2ªediçãode1922umtotalde48fotografiasfeitasduranteaviagem,representandoespéciesepaisagensdosertãonordestino.

Odito relatopertenceà série I-A– referentesaosestudosvoltadosparaa flora–e consistenapublicação número 2 da Inspetoria, sendo assinado pelo profissional incumbido doslevantamentos,obotânicoJohanAlbertConstantinLöefgren,quefoiconvidadopeloengenheiroInspetorManuelArrojadoLisboaaintegraracomissão.

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Sueco radicadonoBrasil, Alberto Löefgren, comoeramais conhecido, formou-seemFilosofia eCiências Naturais pela Uppsala Universitet/Suécia. A vinda ao país se deu sob os auspícios daAcademiadeCiênciasNaturaisdeEstocolmo,emumaexpedição,entreosanosde1874-77,comafinalidadedeestudarafloranasprovínciasdeSãoPauloeMinasGerais.Decidiupermanecernopaís,primeirocomoengenheirodaCia.PaulistadeViasFérrease,posteriormente,professordeciênciasnaturaisdoColégioMorton/SãoPaulo (Persiani,2012).Em1886, integrou,aconvitedeOrvilleA.Derby,aComissãoGeográficaeGeológicadeSãoPaulo.De1886a1910,sededicouadiversosestudosbotânicosecoletadeespécimesvegetaisparaoshortosporelecriados.ChefiouaSecçãoBotânicadaIOCSnoperíodoemqueintegrouaComissão(1910-1913).FaleceunoRiodeJaneiro,em1918(Persiani,2012).

Oreferidorelatórionãopossuidivisãoformaldecapítulosouitens,sendoorganizadoapartirde“notas” e “medidas”. Os primeiros subdividem em “Explicativas”, “Climatéricas”, “Botânicas”,“Gerais” e “Econômicas”, expondo as descrições e observações da região, enquanto os demaisconsistemem“Preventivas”,“Impeditivas”e,por fim,“RestaurativaseProgressivas”,ouseja,osresultadoseconclusõesdobotânico.Osobjetivosdarealizaçãodoslevantamentosencontram-seexpressos no item primeiro, “Nota Explicativa”. Nele, Löefgren chama atenção para o fato davegetação nativa de um determinado lugar ser indicador da “uberdade” ou “esterilidade” doterreno,apontandoassimsuaspotencialidadesparaousoounãoparafinseconômicos.Apartirdisso, buscava-se com os estudos acerca do Ceará, determinar “a verdadeira natureza das‘caatingas’daqueleEstado,poralgunsconsideradasidênticasàsdaBahiaeporoutrostidascomo‘cerrados’ iguais aos de S. Paulo e deMinas Gerais” (Löefgren, 1910, p. 3). Esta constatação olevouaestabelecerduashipótesesquantoaindicaçãodaqualidadeeusodoterreno:

Na primeira hipótese, indicarei isso um solo ingrato, impróprio para finsagrícolas e, na segunda seria ainda bastante aproveitável para odesenvolvimento de uma indústria pastoril, por sistema moderno, compastagenspermitindoafenaçãoe,portanto,oarmazenamentodeabundantealimentoparaosustendodogadonasépocasdepenúria.

Os levantamentoselaboradospela comissão foram realizadosno “inverno”, ou seja, noperíodochuvosononordestebrasileiro.Istosedeu,segundoobotânico,porcausadaépocadoano“seramais apropriadapara avaliar a verdadeira capacidadedo solo e formar uma ideia da totalidadedaquelaflora”(Löefgren,1910,p.3).Noentanto,segundoorelatóriode1911do,então,Ministrodo Estado da Viação e Obras Públicas – José Gonçalves Barroso –, para complementar osresultados anteriores outra excursão botânica foi nomeada, nomesmo ano ano, no período dasecaparaobservarosefeitosdaestiagemsobreavegetação.

Apesardetercomofocoavegetaçãodosemiárido,osestudosnãose limitaramasomenteesteaspectojáqueinformaçõescomplementaresdoclimaedageologiatambémforamcoletadas.Noque tange as primeiras, sua importância se deve à próxima relação que há entre clima evegetação, mas no geral tais observações tiveram a função de aprimorar o conhecimento dascaracterísticas da região atingida pelas estiagens prolongadas. No tópico “Notas Climatéricas”contempla dados referentes a umidade, a precipitação, aos ventos e a temperatura, que foramrecolhidos nos pontos por onde se realizaram os “caminhamentos” da comissão. O estudo dosventosparaavegetação,segundoorelatório,seriadegrandevalia,pois,

[…]estesconstituemumfatordeconsiderável influência.Apartirdosefeitosque produzem sobre a vegetação, quer diretamente, aumentando aevaporação tanto das plantas como do solo, quer diretamente secando,pulverizando e transportando as folhas e outros órgãos que caem, privandoassimosolodecobertaedefertilizante,sãotambémverdadeirosagentesde

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devastação.Quentesesecos,ressecamasuperfíciedosolo.Quesepulverizaem partículas quase impalpáveis, as quais, em seguida são varridas etransportadas para longe, chegando assim a desnudarem-se extensõesconsideráveis,queaumentamanualmente(Löefgren,1910,p.3).

A respeito das chuvas, Löefgren diz que a quantidade de postos pluviométricos impedia aconstrução de “curvas udométricas” para um melhor conhecimento das particularidades daprecipitação na região seca. No entanto estabelecia paralelo com o clima de países de regiõesdistintas do mundo para, depois, relacionar as soluções encontradas em cada caso com oobservadonoBrasil.ParaelearealidadeclimáticavividanosemiáridocearenseémuitopróximacomadoOestedaAméricadoSuledepaísescomoMarrocos,Tunísia,Egito,EstadosUnidos,nosquaismuitosdesseslugaresqueapesardechovermenosdoquenointeriornordestino,osefeitosnãoeramtãointensosparaapopulaçãodevidoaomelhorusodosrecursosdisponíveis.

Comoumexemplodeexperiênciainternacionalbemsucedidaemclimasemiárido,obotânicocitaumestudodeDerby,publicadonoJornaldoCommercioemjaneirode1912,oqualrelataousodo “cultivo inteligente” nos Estados Unidos, cuja escolha de plantio de produtos apropriados acultivar foi proveitoso naquele país. Se praticada no sertão, segundo ele, essa proposta deagriculturatrariabonsresultadosemelhorandooconvíviocomosperíodosde longasestiagens.Aofinalizarotópico,obotânicoexpressaumavisãootimistafrenteaosproblemascausadospelassecas prolongadas aomencionar que estava “fora de dúvida” a questão de “[…] que os efeitosdestassecas,quernormais,queranormais,poderão,emlargoâmbito,sermuitoatenuadospeloengenhohumanoe,talvez,comotempo,inteiramenteeliminados”(LÖEFGREN,1910,p.7).

Otópicoseguinteédedicadoaosresultadosdasobservaçõesdavegetaçãoarroladosemcampoeé denominado “Notas Botanicas”. Nele, o botânico dividiu a vegetação do Ceará em “trêsprincipais agrupamentos florísticos: o do litoral, o das serras e o das planícies, ou do interior”(LÖEFGREN, 1910, p.8), correspondendo às três zonas climáticas do estado. O autor utilizoutambémadenominaçãodesociedadesflorísticasparaassubdivisõesdoagrupamentoflorísticodolitoral,umavezque,nesseambiente,atopografiaeaconstituiçãodosolodeterminamvariaçõesvegetaisquedemandavamumadivisãoouumaclassificaçãoprópriaqueconsiderasseamaioroumenorresistênciaàsalinidadeouapredominânciadeareiaoudeargila.Assim,eleclassificouasseguintes subdivisões: “a sociedade florística das plantas das areias, ou “psammophilas”; asociedadedasquehabitamosterrenosbaixos,húmidoseargilosos,ouhydrophilas,eadasquepovoam asmontanhas costeiras, ou plantas “hygrophilas”, que, por issomesmo pertencem aoagrupamento das serras ou Dryadico” (Löefgren, 1910, p.8). No entanto apenas alguns desseselementosdadivisão feita pelobotânico, osmais significativosnapaisagem, sãodetalhadosnorelatórioerepresentadosnacartografiaconformeserádemonstradoaseguir.

SobreaSociedadeHydrophila (oudo litoral),aqual seestendeemumafaixade10a30kmdomar, o botânico não se ateve demasiadamente. Limitou-se apenas a tecer rápidos comentáriosdevidoalimitaçãodetempo,umavezqueorealobjetivoeradeexplorarointerior,sobretudo,acaatinga.Relata sero litoral a áreaondemelhor sedesenvolveo coqueirodaBahiaeque teriapotencialparaocultivodatamareira.Paraanomenclaturadavegetaçãoencontradanessaregião,Löefgren definiu o termo Nhundú, nome que figura no mapa anexo ao invés de usar adenominação restinga como em outras partes do litoral cearense. Isso se deu, segundo oprofissional, pelo conjunto de espécies encontradas na costa cearense não ser “[...] limitada deuma maneira definida, nem apreciável” (Löefgren, 1910, p. 10) e por se misturem,gradativamente,aosagrupamentosvizinhos.

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No que foi convencionado chamar de Agrupamento Dryadico (ou das serras) pelo autor, há norelatório informações sobre as características do ambiente das serras de Baturité, Ibiapaba eAraripe entre outros, desde a nomenclatura das elevações, serras, a partir de suas altitudes, apresençademananciaissubmersosatéamaiorhumidadeemrelaçãoàsoutrasáreasdoterritóriocearensequeseencontramnadepressãosertaneja.Diantedessadiferençadeambiente,ondehámaiordisponibilidadedeágua,avegetaçãosemostradistintadacaatinga,como identificadonotrechoa seguir, quando compara comaMataAtlântica: “[…] a vegetaçãodas serras ébastanteuniforme na sua composição, e apresenta não somente simples analogias, mas verdadeiraidentidadecomafloraemgeraldetodoosistemaorográficolitoraldoBrasiltropical”(Löefgren,1910,p.11).

Paraavegetaçãoencontradanasproximidadesdasgrandesravinasourios,ficouadenominaçãode Sociedade Mofumo-Marmeleiro. Nessas áreas de aluvião, devido as boas condições defertilidade que propiciam o desenvolvimento de lavouras, a vegetação original já não eraencontrada naquela época, sendo observadas, no entanto, a presença de algumas espécies emgrandesquantidadescomooMufumoeoMarmeleiro,quedãonomeàestacategoria,alémdapalmeira de Carnaúba existente em grandes extensões nas proximidades do Rio Jaguaribe,chegando até 150 km da foz. Para esta região foi chamada atenção do grande potencial deagricultura, havendo apenas a necessidade de intervenções que propiciassem a drenagem dasáreasalagadas.

As sociedades citadas anteriormente são relacionadas ao Agrupamento Dryadico, devido à suacaracterísticadelocalizaçãoemáreascommaiordisponibilidadedeágua,sejanasserrasúmidas,nos brejos ou no litoral. Ao último grande grupo da vegetação estudado, se refere àqueleadaptadoàescassezdeáguaeencontradonossolosférteiserasosdadepressãointerplanaltica.LöefgrenatribuiuaoconjuntoadenominaçãodeAgrupamentoHamadryadico.Essedizrespeitoàcaatinga,queposteriormentefoidivididaemduassociedades:hamadryadesxerophilas–espéciespermanentes, sobretudo os cactos; e hamadryades hygrophytas – as que figuram apenas noperíodo chuvoso. Segundo o botânico, a vegetação da depressão sertaneja se mostrouhomogêneanasáreasvisitadas,masadiminuiçãodeprofundidadedosolofezcomquealgumasplantas, como o xique-xique e a jurema, figurem em menor número e, até mesmo, sedesenvolvammenosrobustas.

Fato interessante é a íntima relação identificada entre a vegetação das serras e a da caatingaapontada nas Notas Gerais do relatório. Isso foi destacado, principalmente, na época chuvosa,quandoasdiferençasentreambosagrupamentossãodiminuídas,oquefoiatribuídoporLöefgren(1910) aos fatos geológicos observados na excursão e corroborados por diversos estudiosos daépoca.Paraele,oCearáeraumagrandebaciaque,emtempospretéritos,foibanhadaporáguasoceânicas,explicandoascondiçõesatuaisdetopografiaeestratigrafia,estasquesãochaveparaentender a origem da flora das planícies secas. Assim, acrescenta, com o recuo das águas, avegetaçãoteriaseadaptadoàscondiçõesdesemiaridez.

Ao tecer comentários gerais sobre os principais problemas identificados, Löefgren faz críticasacerca da devastação da vegetação nos vários pontos visitados, devido as constantes queimasrealizadas antes do plantio da lavoura. Juntamente a isso, a criação de cabras estavatransformando as matas das serras em “caapuêras” em uma progressão chamada por ele deassustadora. Naquela época, já eram raras as árvores de maior porte nas serras, locais que,comumente, encontravam-se espécies vegetais mais robustas, como visto no agrupamentoDryadico. Löefgren (1910) comenta de não ter observado nenhuma mata virgem encontradaduranteaexcursãoàregião.

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Para as planícies, a crítica do botânico se direcionou a forma de se criar gado que demandavacercas,queraramenteeramdearame,masconfeccionadasemmadeiraretiradatantodasmatasda serra comoda caatinga. Alémdisso, a devastaçãoda caatinga era amplificada pelas práticasquestionáveisdemelhoramentodospastosnaturaispormeiodaqueimadaque,paraobotânico,nãoeracontroladaeatingiagrandesextensõesdevegetação.ApreocupaçãodeLöefgren(1910,p.14)acercadadevastaçãodesse tipoemparticulardevegetaçãoerano tocanteao seupapel“nas condiçõeseconômicase climatológicasdeuma região,na suaqualidadede reguladoradasprecipitaçõeseprincipalmente,comomelhoradorasdoterrenoesuascondiçõeshidrográficas”.

Comopartedasobservaçõesrealizadaspelacomissão,afertilidadedosoloeraitemimportanteaser relatado visando um aproveitamento para fins econômicos. Nesse sentido, Löefgren chamaatenção para a possibilidade de colonização da Serra Grande 3 , onde as condições eramdiferenciadasdorestodoterritóriocearense.Deacordoseuinforme:

Nesta Serra Grande, principalmente na Viçosa, S. Benedito, Campo Grande,Assauan,S.Feliz,etc.,a lavouratemtomandograndeincrementoe,umavezintroduzidososmétodosmodernose científicosdaagriculturaemelhoradasas vias da comunicação desta região, o desenvolvimento econômico não sedeixaráesperar,porqueaamenidadedoclimaeafertilidadedosoloindicamesta serra como a principal região para uma colonização futura (Löefgren,1910,p.14).

OautorcolocaoCariri4naencostadaSerradoAraripe5comoumbomconcorrenteparaaSerraGrande, no sentido de apresentar boas condições de desenvolver lavoura e se tornar um dosprincipais centros produtores regionais. Para tal, bastava apenas a modernização de suaagricultura, sobretudo com a irrigação, além do necessário estabelecimento de vias decomunicaçãoparadentroeforadoestado,visandoassim“tornar-seagricolamenteindependente”(Löefgren,1910,p.26).

Paraapecuária,o relatórioapresentaconclusões igualmenteotimistas,necessitando–comonocaso da agricultura – práticas, no entendimento de Löefgren, mais modernas. O controle nareproduçãoeraumadelas, uma vezque a práticada criaçãoextensivado gadona épocahaviaproporcionado a consanguinidade, prejudicando a qualidade do rebanho.O botânico, portanto,exigia amudança desse costume de liberdade absoluta do gado. Alémdisso, foramobservadasgrandesquantidadesde forragemnaturalque,seaproveitadas,proveriamalimentoparaogadoduranteasestiagens.Esta seriaumadasmedidaspreventivasapontadasno relatório, conformecomenta-se-ámaisafrente.

Juntoao relatório “NotasBotânicas”, encontra-seuma cartografia síntesedosdados levantadospela expedição que percorreu o estado do Ceará. Trata-se da espacialização dos trêsagrupamentosflorísticosdavegetaçãodaqueleterritório,alémderepresentarasáreasdematasdevastadas e de carnaubais. Conhecer a verdadeira natureza da caatinga implicava saber adelimitaçãodaocorrênciaedostiposdevegetaisaliexistentes.

3TambémconhecidacomoSerradeIbiapaba,localiza-seentreosestadosdoPiauíedoCeará.4O Cariri é uma região, atualmente, composta por oito municípios cearenses no extremo sul do estado, divisa comPernambuco.5Conhecida como Chapada do Araripe, é uma formação do relevo localizado ao Sul do Ceará na divisa com Piauí ePernambuco.

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UMMAPAFITOGRÁFICODONORDESTE

Denominadode“MappaBotânicodoEstadoCeará”(Figura1),oprodutocartográficotambéméassinadopelobotânicosuecoeéreferenteaonúmero5dasérieI-GdosmapasorganizadospelaInspetoriaeseencontranofinaldorelatório.

A carta geográfica foi elaborada emuma escala de 1:3.000.000 e representa também, além doestadoqueonomeia,osvizinhosestadosdaParaíbaeRioGrandedoNorte, incluindootraçadodosseusprincipaiscursosd’água.Porsetratardeummapatemáticodevegetação,foramusadascores que se relacionam a esse elemento geográfico, sendo a cor amarela, cujo significado noprodutocartográficoemquestãoremeteaotomdacor,característicodasáreasdevegetaçãosecada caatinga, ou como chamado pelo autor de Agrupamento Hamadryadico, onde os efeitos daestiagemsãomaisobservados.

Contrastandocomoamarelo,ressalta-sedoistonsdeverdeutilizadosnasáreasdevegetaçãodemaiorportepertencentesaoAgrupamentoDyadico,encontradanasserras,quedevidoaoefeitoorográficopossuiumamaiordisponibilidadedeumidadedoqueasáreasdadepressãosertaneja,sendo,destaforma,menosatingidascomosefeitosdoproblemaclimático.Otomdeverdeescurofoiutilizadoparaasáreasdematapreservadaeomaisclaroparaaschamadas“caapuêras”.Aoserem delimitadas e representadas no mapa botânico, estas áreas passaram a evidenciar seugrande potencial seja para reflorestamento, seja para sua exploração de forma ordenada epautadanumaperspectivadeusoracional,tãoenfatizadopelosdefensoresdoreflorestamento.

Figura1.PublicaçãoNº5referenteaoMappaBotânicodoEstadodoCeará.

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Fonte:BibliotecaMáriodeAndrade/SãoPaulo.AcervodigitalHCUrb.

Para as áreas litorâneas de dunas e de vegetação Nhundú, chamada pelo autor de SociedadeHydrophila,foramescolhidasascoresbrancaeamareloescuro,respectivamente.Jáacorazulfoiutilizadapararepresentarasáreasdevárzea,nasquaisháapresençadaCarnaubeira(coperniciacerifera),umadasespéciesrepresentantesdaSociedadeMofumo-Marmeleiro.

Os levantamentos feitos por Löefgrene sua equipe sãoumverdadeirodiagnósticodo territóriocearense no que tange a vegetação. Caracterizadas e mapeadas as formações vegetais,identificados os problemas e suas potencialidades, o relatório caminha para “MedidasPreventivas”,“MedidasImpeditivas”eas“MedidasRestaurativaseProgressivas”aseremtomadastendoemvistaummelhorconvíviocomefeitosdasestiagens.

Noquetangeas“MedidasPreventivas”,foichamadaaatençãoparaanecessidadedoscriadoresdegadodosemiáridoarmazenaraabundanteforragemnaturalatravésdafenaçãooupormeiodasilagem, que seriam acumulados nos períodos de fartura, evitando, assim, a mortandade dosanimais durante a seca. Além de permitir continuação da criação, haveria ainda, segundo ele,outravantagem:avalorizaçãodasforragens,dadasuaimportânciaparaaatividadeagropecuárianordestina,queaumentariaovalordasterrasse fazendonecessáriaademarcaçãodasmesmas.Isto implicaria, finalmente, na passagem da criação extensiva de gado para intensiva, que nãosomente é mais produtiva, como causaria menos danos ao ambiente. No entanto, segundo oautor,essaalteraçãodemandariaigualmudançadecostumesdossertanejoseapenasocorreriaapartirdoensinodetaispráticasemestabelecimentooficiais,comonocasodoshortosflorestaisque, já em 1911, seriam estabelecidos pela inspetoria em Juazeiro, no estado da Bahia, e emQuixadá, no Ceará, conforme o ministro de Obras e Viação Pública, José Barboza Gonçalvesinformaemrelatóriode1911.

OshortosforamrecomendaçõesdiretasdeLöefgren,principalresponsávelpelasuaimplantação,umavezquepossuíamafinalidadedecultivarárvoresaseremusadasnoreflorestamentoecomoum elemento conjunto à açudagem. O trecho a seguir, extraído do informe do ministro JoséBarboza Gonçalves (1911, p.499), ratifica a visão do botânico ao definir que essesestabelecimentos:

[…] visam principalmente a criação de viveiros de árvores florestais tantonacionaiscomoexóticas,apropriadasàproteçãodosterrenosadjacentesaosaçudeseásnascentes,paraondedeverãosertransplantadas,distribuindo-seoexcessoaosparticularesinteressados,quedesejatratardoreflorestamentonassuaspropriedades,deacordocomas regrase instruções fornecidaspeladireçãodoshortos.

Alémdeespéciesdestinadasaproteçãodosaçudesenascentes,oministrocitaaimportânciadaintrodução dos denominados, “vegetais econômicos”, adaptados às condições do semiáridobrasileiroeque serviriamà “formaçãodepastagensdediversasplantas, fenaçãodegramíneas,construçãodemedas,emaistarde,experiênciadeensilagem”(Gonçalves,1911,p.500).

Löefgren reconhecia ser difícil de colocar em prática as “Medidas Impeditivas” contra adesnudação dos terrenos, pois demandava uma mudança de postura e conscientização dapopulação,conformeexplica:

[...]ter-seprimeirodevenceroscostumesinveteradosecombaterafaltadecompreensão, muitas vezes, do próprio interessado, para conseguirdemonstraravantagemdeconservarasmatas,cobrirosolocomplantasúteis

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eperenescomoaportuchariaeaalphaecriaranteparosaosventospormeiode plantação de árvores úteis, que, ao mesmo tempo, representem lucro,aindaquenãodeimediato(Löefgren,1910,p.32).

Noentanto,acriaçãodeleisqueestabelecessemregrasdemanejodasterraseamultasseverasparaosproprietários infratoreseramapontadascomoessenciaispara impedira continuaçãodadevastação da caatinga. As “Medidas Restaurativas e Progressivas” estabelecidas pelo botânicodiziamrespeitoaoreflorestamentodasáreasdevastadas,àcriaçãodematasnovas,àampliaçãoeaperfeiçoamentodasculturasexistentesea introduçãodealgumasespéciesexóticasapontadasno informe como úteis. Por exemplo, o Cacto apuntia, que além de sua utilidade noarmazenamento de água, pode ser usado na construção de cercas, evitando o problema dadevastação da vegetação nativa para este fim. Já a alpha (Stipa tenacíssima) poderia ser usadacomoalimentodorebanhoenoaproveitamentocomercial,conformeédestacadoaseguir:“[...]umagramináceamarroquina,que forneceumadasmelhoresmatériasprimasparao fabricodepapel.Ninguémignoraagrandeimportânciadestaindústrianemaescassezdasmatériasprimasparaela,oqueatécomeçaafetaroserviçoflorestaldeváriospaíses”(Löefgren,1910,p.30).

No entorno dos reservatórios, se estabeleceria os primeiros campos de experiência e dedemonstração, em conjunto com redes de irrigação, viveiros e campos de cultura.O foco seriaproduzir ali mudas para serem usadas na arborização, reflorestamento de áreas devastadas ecriação de novasmatas, sobretudo nos arredores dos açudes para demonstrar as vantagens davegetaçãopróximode suas cercanias, sendo imprescindível a divulgaçãopara apopulação ruralcomoumaformadeconscientização.Nessesentido,orelatóriodoMinistroGonçalvesdoanode1912mostraosbonsresultadosobservadosnoshortos florestais,a fimdemunirosertanejodemelhorespráticas,ouseja:

O ensino prático compreendeu o uso de instrumentos agrários, traçado decanaisdeirrigaçãoeotratamentodasdiversasafecçõesaquesãosujeitasasplantas. Os seus resultados já se fazem sentir, principalmente quanto avulgarizaçãodosmodernosaparelhosdelavoura,sendodenotarqueantesdacriaçãodohorto,existiaapenasumaradonomunicípio,ondeatualmentejásecontam16tendosidoencomendadomuitosoutros(Gonçalves,1912,p.321).

Os números apresentados no relatório nos dão ideia da dimensão das atividades desenvolvidasnoshortos.SegundoGonçalves,no fimde1912havianohortodeQuixadáumtotalde104.265plantas.Destas,29.788seencontravamcultivadasnoterreno,outras15.139nosvasose59.338nassementeiras.Haviamsidolavrados60.000m²commilho,100m²comfeijãoe53.500m²comcapim. A distribuição de mudas também ocorreu de maneira significativa. De acordo com oministro, 1.000 mudas de árvores frutíferas foram entregues a particulares, além do uso naarborização das cidades de Quixadá e Quixeramobim. Vale destacar que estas ideias deconservação da cobertura vegetal discutidas noNotas Botânicas não se restringiamàs áreas deseca, mas estavam em ampla discussão no Brasil. Na edição de janeiro de 1911, a Revista deEngenhariadeSãoPaulotrazumartigodoengenheiroHypolitoGustavoPujolJunior(1911,p.63)comentando sobre o projeto que tramitava no Congresso Nacional sobre a criação do ServiçoFlorestal, o qual teria comoobjetivo “a conservação, reconstrução, formação e aproveitamentocomercialdasflorestas”.

Assim,asproposiçõesdostécnicosdaIOCSparaosemiáridobrasileiro,sobretudoaspresentesnorelatórioanalisado,iamdeencontroaoqueestava,portanto,sendodiscutidoarespeitodotemaem âmbito nacional. Nesse sentindo, esses profissionais se alinhavam aos defensores daconservaçãodasmatasaoseoporaosqueapoiavamousoindiscriminadodasflorestasemnomedo progresso e àqueles que clamavam pela sua preservação, mediante a criação de reservas

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florestais.Ouseja,haviamdiversasmatizesdepensamentosobrequalseriaamelhormaneiradelidar coma cobertura vegetal doBrasil e a produçãoda inspetoria se somavaaodebate.Destaforma,osestudosbotânicosdeLöefgrenpermitiramsuacontribuiçãoaotemavegetaçãodentrodo extensomaterial levantado pela IOCS nas primeiras décadas do século XX. Significaram umavanço no conhecimento da região semiárida brasileira, com grau de detalhamento nasobservaçõesedelimitaçõesqueserviramdeapoioparaestudosposteriores.

CONSIDERAÇÕESFINAIS

Aspeçascartográficas,assimcomoosdemaisdocumentosprovenientesdeestudosedeanálisesacercadeumdeterminadoproblemacarregamconsigosignificadosquevãoalémdomeroregistrográficooutextual;sãoigualmentecompostosporobjetivos,interesses,ideaiseprincípios.Seporum lado, o ato de levantar informações físico-geográficas do sertão nordestino tinha a funçãooficialdeservircomoferramentaparaosplanosdaUniãonoreflorestamentoenaconstruçãodediversasobrasparasocorrerosflageladosdassecas,poroutro,buscavaromperosobstáculosdeuma região improdutiva aodesenvolvimentodopaís. A retençãoe a posseda informaçãoedosaber cartográfico, juntamente comas obras hidráulicas e de estradas, ou seja, as intervençõescomoumtodo,constituíramumaformadeconsolidarnãosomenteodomíniosobreoterritório,mas,finalmente,pôrempráticaoantigoplanodeintegrararegião.Oslevantamentosbotânicoseaspotencialidadeseconômicasapontadasseriampeçachaveparaimplementarestasações.

Umaterceirafaceta,todavia,emergeeseagreganessaquestão:ousodeelementosnaturaisnocombateaosefeitosdasestiagens,semosquaisasobrasnãosurtiriamefeitoalgum.Nestepontodestaca-seacontribuiçãodaconstruçãodeaçudeseferroviasparaosabertécnicobrasileiro,dadoque diante das demandas sertanejas, os engenheiros foram encontrando alternativas para assoluçõesdosproblemascausadospelosprolongadosperíodosdecarênciahídrica.ParaentenderofenômenocausadordasestiagensdoNordestebrasileiro,aIOCSbuscavanapróprianaturezaumaforma de amenizar seus efeitos, além da aquisição do conhecimento das potencialidadeseconômicasdaregião.

Odesenvolvimentotécnicoerepresentativodosmapasevidenciavaaprópriaevoluçãodasaçõessistematizadas no território nordestino. Gonzaga de Campos, ao elaborar o relatório MapaFlorestal,de1912, sequeixa sobreaausênciade cartografiasdequalidadedeváriospontosdopaís,sobretudoemáreasdistantesdolitoral.Porém,CamposenalteceasáreascartografadaspelaIOCS: “as cartas dos Estadosdonordeste: Ceará, RioGrandedoNorte e Paraíba, recentementefeitasemcooperaçãodaDiretoriadeObrascontraasSecascomoServiçoGeológico,representamhojeverdadeiraaquisiçãodebonsmapasgeográficos”(Campos,1912,p.7).

ApartirdospressupostosdaHistóriaAmbiental,épossívelafirmarqueessaprocurapossui trêsníveisdeinterpretação.Aprimeirachavebuscacompreenderarelaçãodohomemcomnaturezaapartirdoconhecimentodaconfiguraçãooriginaldeumaáreaantesdas intervenções.Asegundaabarcaasformasdedomíniosocioeconômiconamedidaemqueohomeminteragecomomeioambiente. Por fim, a representação (imagética oumental) que se constrói a partir da ideia denatureza (Worster,1991;MendelésDobles2002). E comoaproduçãocartográfica se revelaumdocumento subjetivo que traduz a representação do conhecimento e do domínio de umadeterminada região, é válido apontar como isso se conforma nomapa do botânico sueco e nopróprioentendimentodacoberturavegetaldoNordeste.

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Pode-sedizer,assim,queo relatóriodoLöefgrenedomapabotânicosínteseporeleelaboradovãoalémdoconhecimentovisível.Obotânicobuscavaa“verdadeiranaturezadaCaatinga”:nãoapaisagemsecadevegetaçãomortaeraquítica,masumapaisagemcujavegetaçãodemonstravaovalor que aquelas terras, mediante o uso racional, poderiam ter para o desenvolvimentoeconômicodoCeará–equepodiaserextrapoladoparaosdemaisestados.Issopodeservistonasmanchasvegetativasqueeleconvencionounomapaquerepresentavanãosomenteoditoestado,masincluíaoRioGrandedoNorteeaParaíba,cujointeriortambémpossuiriaoselementosquepoderiamlevarestesestados,alémdeoutrosdoNordeste,aomesmodestinocearense.

Sabendo, tanto por informações como por indução, que a flora do restodaquela região interessante,que sedilatapormaisquatroestados, alémdoCeará,poucasinsignificantesdiferençasespecíficaspodeapresentarequeemtodaelavegetaçãodascaatingas,tantoapermanentecomoaperiódica,deveser mais ou menos uniforme na sua composição florística, constituindo umagrupamentodecertahomogeneidadenasuaflora[...](Löefgren,1912,p.4).

ConvêmapontarqueaobradeLöefgrenpossui,emseuconjunto,ideiaseprincípiosqueaindasemantémpresentesnaatualidade.Asobservaçõessobrecultivosinteligentesedousoracionaldafloracomomeiodecombateaosefeitosdassecassãoabasedeestudosmaisrecentes.Problemascomoaderrubadaindiscriminadadavegetação,asqueimadaseacriaçãoextensivadegadoedecabrastãonocivasàcaatinga,masqueconstituempráticasaindaobservadas.

Aliás,mesmo com as limitações da época, a pertinência e importância domapa elaborado porLöefgren se eleva, quando comparado com o produzido para o Atlas do Ceará pelaSuperintendência do Desenvolvimento do Estado do Ceará (1986), quase oito décadas depois,emboraainstituiçãotivesseacessoainformações,dadosetecnologiasmaisavançados.Issotalvezexplique,porexemplo,adivisãomelhordetalhadaemonzetiposdevegetaçãoenquantoLöefgrenofazemcincocategorias.Deve-senotaraindaquepelomenoscincodascategoriaspresentesnomapamaisrecenteconsistememsubdivisõesdasMataseCaatingaobservadasnoslevantamentosdoeminentebotânicoem1910.

Figura2.ComparativoentreomapadeLöefgreneomapadaSDEC.

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Fonte:Löefgren(1910);AtlasdoCeará(1986).

Logo,mais do que abordar a cartografia criada pelo botânico sueco, o presente estudo buscouultrapassar a própria representação gráfica para de fato, entender a importância da obraenquanto totalidade – relatório emapa. A natureza, portanto, teria o seu papel no auxílio aosesforçosdosengenheirosparasuperarosproblemascausadospelasestiagens.Porém,retratadanumapeçacartográfica,anaturezasetornariaumrecurso,seriaenfiminstitucionalizada,apartirde manejo racional com o emprego de espécimes nativas ou introduzidas para as atividadesagropastorisesobosauspíciosdosrepresentantesdoEstadobrasileiro.

REFERÊNCIAS

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