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OS SENTIDOS DA
ARTE CONTEMPORNEAKATIA CANTON[Professora livre-docente da USP
e curadora do MAC-USP]
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Diferentemente da tradio do novo, conceito-motor que engendrou
uma sucesso de experincias estticas, materializadas durante o
sculo XX sob as vanguardas, a arte contempornea se constitui de
campos de foras que tomam corpo a partir de uma evocao ampla dos
sentidos, de uma negociao constante entre vida e arte, arte e vida.Os artistas contemporneos no compartilham da atitude
moderna, que buscava na arte a ocupao de um espao suspenso,
puro, sinttico e abstrato, situado em um plano acima das coisas que
formam a complexa tessitura do mundo real. No mundo contem-
porneo demarcado por acontecimentos como a derrocada do
comunismo, a queda do Muro de Berlim, o fim da bipolarizao,
o redimensionamento das geografias mundiais e a institucionali-
zao do terrorismo como grande narrativa global , a arte no mais
redime. Pelo contrrio, a prtica artstica passa a assumir-se como
um projeto de negociao incessante com os acontecimentos e as
percepes da vida, incorporando-a e comentando-a em suas grande-
zas e pequenezas, em seus potenciais de estranhamento, em suas
banalidades e seus afetos.
Artistas contemporneos buscam sentido. Sentido que pode
ser materializado incorporando-se as preocupaes formais que sointrnsecas arte e que se sofisticaram no desenvolvimento dos pro-
jetos modernistas do sculo XX. Sentido que finca seus valores na
compreenso (e apreenso) da realidade, infiltrada na passagem do
tempo e na formatao da memria, na constituio dos territrios
que constituem e legitimam a vida, nos meandros da histria, da
poltica e da economia, nas vias do corpo como carne e smbolo, nos
territrios da afetividade.Como declarou a artista contempornea Barbara Kruger,
em uma entrevista revista Art in Amrica (November, 1997:97):
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Fazer arte materializar sua experincia e percepo sobre o mun-
do, transformando o fluxo de momentos em alguma coisa visual,
textual ou musical. Arte cria um tipo de comentrio.
Em outras palavras: a metodologia que emoldura a produo con-
tempornea substitui a noo de arte per se por uma juno en-
tre esttica e tica, na configurao de potncias polticas. E por intermdio de uma convocao em rede dos sentidos, capaz
de furar o espetculo da fugacidade fosforescente do cotidiano, e
criar algum tipo de densidade ou comentrio, que essas potncias
tomam corpo.
A arte como pele historiada
Na arte contempornea, o sentir se potencializa medida que se
expande, se espalha e alcana mltiplas relaes com as experincias
vividas. O filsofo italiano Mario Perniola fala de um sentir compar-
tilhado, que ganha corpo numa estrutura em rede:
O sentir partilhado e participado constitui o aspecto essencial
da esttica da vida; alcano um sentir em conjunto no mesmo
momento em que perco o sentir individual: com a mesma mo
dou e tiro. A esttica da vida animada por uma pulso de identi-ficao imediata, de participao, por um alento de comunho das
almas; todo um mundo de sussurros e de confidncias, de tremo-
res e de consonncias, de contgios e de fuses, de silncios elo-
qentes e de palavras cmplices, de recordaes e de nostalgias,
de angstias, de emoes, de afetos, de sensaes, que se alimen-
tam da reciprocidade das trocas e de sentir o sentir (...)1
OS SENTIDOS DA ARTE CONTEMPORNEA
1. Mario Perniola. Do sentir. Lisboa: Editorial Presena, 1991, p. 52.
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Sentidos e sensaes so compartilhados na experincia artstica
contempornea, que passa a historiar a vida e demarcar a fluidez de
seus contornos, materializando suas passagens, atribuindo densi-
dades a seus corpos e a suas memrias no tempo e no espao.
No presente seminrio, elegemos grandes temas que costu-
ram e sustentam esse debate, permeando-o com discusses em
camadas que tocam as interseces entre arte e vida, tempo e espa-o, corpo e memria, macro e micropolticas que se entrelaam nas
teias da construo de sentidos polifnicos.
Identidades e alteridades so debatidas como peas de um
jogo de comentrios sociopolticos que so materializados via trans-
gresses de representao, estranhamentos diante do mundo, tentati-
vas de identificao.
A evocao das memrias pessoais vista como construo
de um lugar de resistncia, demarcaes de individualidade, impres-
ses que se contrapem a um panorama de comunicao distn-
cia e tecnologia virtual, que tendem a gradualmente anular noes
de privacidade. tambm um territrio de recriao e de reordena-
mento da existncia, um testemunho de riquezas afetivas, que o
artista oferece ou insinua ao espectador, com a cumplicidade e a
intimidade de quem abre um dirio.
Simson Garfinkel, colunista do jornal Boston Globe e mem-bro do Centro Berkman para Internet e Sociedade, da Faculdade de
Direito de Harvard, atesta para o fato de que, na sociedade contem-
pornea virtualizada, a privacidade est ameaada, atestando para
a perda de autonomia e integridade, medida que os sistemas de
informao que se estruturam no mundo informatizado e ps-capi-
talista do sculo XXI controlam cada cidado.
O futuro de que nos aproximamos velozmente no aquele em
que cada movimento visto e registrado por um Grande Irmo
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onisciente (referindo-se a 1984, de George Orwell). Na verdade
um futuro em que 100 pequenos irmos observam e interferem
em nossa vida cotidiana. Orwell pensou que o sistema comunista
representasse a ameaa definitiva liberdade individual. Nos pr-
ximos 50 anos veremos surgir novos tipos de ameaa privacida-
de, cujas razes no esto no comunismo, e sim no capitalismo,
no mercado livre, na tecnologia avanada e na troca desenfreadade informao eletrnica.2
O tempo contemporneo surge como um elemento que perfura o
espao, substituindo a sensao de objetivao cronolgica por uma
circularidade plena de efervescncia e instabilidade. Turbulento, esse
tempo parece fugaz e raso, achatando, espiralando, afetando inexo-
ravelmente noes de histria, de memria, de pertencimento.
Noes tradicionais de pblico e privado se desfazem na cons-
tituio dos espaos, e o no-lugar toma corpo como territrio de deslo-
camento incessante. O corpo fsico e o corpo virtual se complementam
num jogo de foras, constitudo pelas trocas entre o desejo, a identi-
dade e as alteridades, o erotismo, as permeabilidades dos gneros.
As implicaes de um interesse da arte contempornea
pelas questes do corpo so complexas. Por um lado, ligam-se ao
contexto de mudana de sculo, globalizao, ao anonimato geradopelo sistema corporativista e pelos meios de comunicao virtual.
Doenas virais como a Aids, o Ebola, e outras epidemias novas e rein-
cidentes ameaam a cincia, como um culto obsessivo e crescente ao
corpo expande limites imaginveis, graas a transformaes e experi-
mentos fsicos, qumicos e genticos, gerando fisicalidades radicais.
Emerge, desse denso panorama sociohistrico, um corpo
que no mais representa e muitas vezes orquestra um jogo multi-
OS SENTIDOS DA ARTE CONTEMPORNEA
2. A guerra da privacidade. Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 5 de maro 2000, p. 10-3.
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facetado de contedos. Manipula materialidades e emoes e pode
escapar de suas conexes mais imediatas com a realidade, assumin-
do contornos rarefeitos, etreos, artificiais e, muitas vezes, irnicos.
Na construo desse jogo de sentidos, o corpo passa a mate-
rializar comentrios sobre sexo, morte, religio, decadncia e espiri-
tualidade, replicando um campo ilimitado de experimentaes, mui-
tas vezes catrticas e autobiogrficas.Nesse corpo, questes como identidade e sexualidade se
expandem. Saem do mbito individual para abarcar uma universa-
lidade virtual, globalizada, tingida por matizes de um mundo consti-
tudo de novos encadeamentos temporais.
No seminrio Sentidos na/da Arte Contempornea, assim
como na vida contempornea, a arte torna-se uma espcie de pele
historiada, porta-bandeira de impresses e sensaes do mundo.
Como evoca o filsofo Michel Serres:
Mas para cada epiderme seria preciso uma tatuagem diferente,
seria preciso que ela evolusse com o tempo: cada rosto pede uma
mscara ttil original. A pele historiada traz e mostra a prpria
histria; ou visvel: desgastes, cicatrizes de feridas, placas endure-
cidas pelo trabalho, rugas e sulcos de velhas esperanas, manchas,
espinhas, eczemas, psorases, desejos, a se imprime a memria;por que procur-la em outro lugar; ou invisvel: traos invisveis
de carcias, lembranas de seda, de l, veludos, pelcias, gros de
rocha, cascas rugosas, superfcies speras, cristais de gelo, chamas,
timidez do tato sutil, audcias do contato pugnaz. A um desenho
colorido ou abstrato, corresponderia uma tatuagem fiel e sincera,
onde se exprimiria o sensvel. A pele vira porta-bandeira, quando
porta impresses.3
OS SENTIDOS DA ARTE CONTEMPORNEA
3. Michel Serres. Os cinco sentidos. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2001, p. 18.