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253 Tribunais de contas e a abstrativização do controle de constitucionalidade: relativização da Súmula n. 347 do STF Resumo: O presente artigo tem por objetivo demonstrar a importância do controle de constitucionalidade exercido pela via difusa no âmbito dos tribunais de contas. A matéria tratada já foi discutida amplamente em outras ocasiões, sendo, inclusive, objeto do Enunciado de Súmula n. 347 do Supremo Tribunal Federal, que permite aos tribunais de contas apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público no exercício de suas atribuições. O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, entretanto, discordou do posicionamento sumulado e trouxe a questão à tona após decisão monocrática cautelar proferida no Mandado de Segurança n. 25.888/DF. Procurou-se, então, por meio deste estudo explicitar o retrocesso que representaria para o cenário jurídico atual a retirada desta forma de controle e a desmedida abstrativização do controle difuso. Palavras-chave: Supralegalidade. Supremacia constitucional. Controle de constitucionalidade. Controle difuso. Controle concentrado. Tribunal de Contas. Súmula n. 347 do STF. Jurisdição constitucional. Abstrativização do controle difuso. Letícia Diniz Ferraz Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Reuder Rodrigues Madureira de Almeida Bacharel em direito pela Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Membro da Coordenadoria e Comissão de Jurisprudência e Súmula do TCEMG.

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Tribunais de contas e a abstrativização do controle de constitucionalidade: relativização da Súmula n. 347 do STF

Resumo: O presente artigo tem por objetivo demonstrar a importância do controle de constitucionalidade exercido pela via difusa no âmbito dos tribunais de contas. A matéria tratada já foi discutida amplamente em outras ocasiões, sendo, inclusive, objeto do Enunciado de Súmula n. 347 do Supremo Tribunal Federal, que permite aos tribunais de contas apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público no exercício de suas atribuições. O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, entretanto, discordou do posicionamento sumulado e trouxe a questão à tona após decisão monocrática cautelar proferida no Mandado de Segurança n. 25.888/DF. Procurou-se, então, por meio deste estudo explicitar o retrocesso que representaria para o cenário jurídico atual a retirada desta forma de controle e a desmedida abstrativização do controle difuso.

Palavras-chave: Supralegalidade. Supremacia constitucional. Controle de constitucionalidade. Controle difuso. Controle concentrado. Tribunal de Contas. Súmula n. 347 do STF. Jurisdição constitucional. Abstrativização do controle difuso.

Letícia Diniz Ferraz

Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Reuder Rodrigues Madureira de Almeida

Bacharel em direito pela Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Membro da Coordenadoria e Comissão de Jurisprudência e Súmula do TCEMG.

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TRIBUNAIS DE CONTAS E A ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: RELATIVIZAÇÃO DA SÚMULA N. 347 DO STF

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1 INTRODUÇÃO

A matéria escolhida não é nova, já tendo sido tratada com proficiência e maior fôlego em diversas publicações especializadas.

Com consciência dessa realidade, buscou-se relançar luzes ao tema afeto ao exercício do controle de constitucionalidade por parte dos tribunais de contas, tomando-se por fundamento os ditames do Enunciado de Súmula do Supremo Tribunal Federal (STF) n. 347 e o atual movimento perpetrado pela composição atual do Pretório Excelso de alterar, ou mesmo revogar, a tese outrora sumulada, colocando-se em xeque essa importante prerrogativa das cortes de contas.

O controle de constitucionalidade tem como pressupostos necessários e baldrames a teoria da supralegalidade, a rigidez constitucional e o respeito à hierarquia das leis e à supremacia da Constituição. Com base nessas premissas, o controle de constitucionalidade desenvolveu-se sob dois modelos distintos: o controle difuso ou concreto, cunhado na common law norte-americana, e o controle concentrado ou abstrato, cujas sólidas raízes remontam aos ensinamentos do jusfilósofo austríaco Hans Kelsen. No Brasil, após a introdução do modelo de controle difuso norte-americano na primeira Constituição do Império de 1891, observou-se um gradual desenvolvimento da teoria do controle de constitucionalidade, culminando na adoção, pela Carta Constitucional vigente, do sistema híbrido ou eclético, compreendendo os controles difuso, concentrado e incidental.

Ademais, foi com o advento da Constituição Cidadã que a jurisdição constitucional teve sua atuação significativamente ampliada.

O Tribunal de Contas é órgão de destaque constitucional, de suma importância na proteção dos interesses dos cidadãos e no fortalecimento do Estado Democrático de Direito. No País, o Tribunal de Contas foi instituído pelo célebre jurista Rui Barbosa e teve evolução histórica conturbada e permeada de significativos avanços e retrocessos ao longo do iter constitucional.

O fortalecimento da instituição e sua consolidação no cenário constitucional decorrem do processo de constitucionalização da separação de Poderes e da implementação do mecanismo de freios e contrapesos, bem como dos ditames impostos pelo Estado Democrático de Direito, responsáveis por alçar o controle à condição de categoria constitucional fundamental.

Nesse cenário, o Enunciado de Súmula n. 347 do STF prescreve que “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”. Com fulcro na súmula em tela, os tribunais de contas, no exercício de suas atribuições, exercem, de forma generalizada, o controle de constitucionalidade, por via difusa, afastando a aplicabilidade de leis ou atos normativos dissonantes aos princípios e normas da Carta Magna, sob o paradigma basilar de que todo e qualquer ato administrativo deve estar, necessariamente, pautado em normas constitucionais.

Com espeque nas decisões exaradas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG), abordar-se-ão tópicos acerca do controle de constitucionalidade exercido pelas cortes de contas, tais como a observância à cláusula de reserva

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de plenário, a possibilidade de exercício do controle de normas de efeitos exauridos, o monopólio jurisdicional do controle abstrato de constitucionalidade, entre outros.

Todavia, após decisão monocrática cautelar da lavra do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, exarada no Mandado de Segurança n. 25.888/DF, iniciou-se um movimento de alteração ou mesmo de superação do aludido Verbete Sumular n. 347 no âmbito do STF.

No caso submetido à apreciação da Corte Suprema, o TCU havia decidido pela inconstitucionalidade do art. 67 da Lei Federal n. 9.478/97 e do Decreto Federal n. 2.745/98, que admitem que os contratos celebrados pela Petrobrás, para aquisição de bens e serviços, serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, tendo determinado que a estatal procedesse a suas contratações em observância aos ditames da Lei Federal n. 8.666/93.

Essa decisão é coerente com o impulso hodiernamente verificado no âmbito do Pretório Excelso denominado, pela doutrina, de abstrativização do controle difuso, tendo a Corte Suprema envidado esforços para elastecer os efeitos ordinários das decisões exaradas em controle concreto de constitucionalidade.

Entende-se que a subtração da competência de apreciar, pela via difusa, a constitucionalidade de leis ou atos normativos admitida aos tribunais de contas acarretaria grave retrocesso e um descompasso total com os rumos do hodierno cenário delineado pelo constitucionalismo democrático, com o consequente enfraquecimento da função de controle da gestão pública.

2 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: GENERALIDADES

2.1 Supralegalidade e rigidez constitucional: pressupostos da teoria da constituição

O controle de constitucionalidade tem como alicerces a supralegalidade e a rigidez constitucional. Em relação ao último, cabe mencionar a classificação realizada pelo autor James Bryce, que diferencia as constituições rígidas das constituições flexíveis. De acordo com a classificação realizada pelo jurista britânico, seriam constituições rígidas aquelas cuja alteração depende de exigências e formalidades mais complexas do que as utilizadas para criação de leis complementares e ordinárias. As constituições flexíveis, por sua vez, não possuem um processo legislativo diferenciado para a modificação do texto constitucional.

Da rigidez constitucional em questão decorre a supremacia da Constituição sobre todas as outras leis. Essa supremacia viabiliza o exercício do controle de constitucionalidade, tendo em vista que, para que uma norma tenha validade, é necessário que ela esteja em conformidade com a constituição, colocada no ápice do sistema jurídico. Conforme explicita o Professor Alexandre de Moraes:

A existência de escalonamento normativo é pressuposto necessário para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo. Além disso,

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nas constituições rígidas se verifica a superioridade da norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo, no exercício da função legiferante ordinária. Dessa forma, nelas o fundamento do controle é o de que nenhum ato normativo, que lógica e necessariamente dela decorre, pode modificá-la ou suprimi-la.1

No mesmo sentido, Gilmar Ferreira Mendes assevera que “enquanto ordem jurídica fundamental, a Constituição contém as linhas básicas do Estado e estabelece diretrizes e limites ao conteúdo da legislação vindoura”. 2

É possível concluir, então, que a necessidade da existência de uma constituição rígida como pressuposto do controle de constitucionalidade é tamanha que, caso não haja, a constituição será considerada flexível. Uma constituição rígida é o parâmetro para criação de todos os demais atos normativos. Caso exista um confronto entre uma norma infraconstitucional e a Constituição, será considerada inválida a norma inferior em respeito ao princípio da supremacia constitucional.

2.2 Modelos de controle de constitucionalidade

Os ordenamentos constitucionais têm a previsão de dois modelos de controle de constitucionalidade, quais sejam o controle difuso e o controle concentrado.

A via concentrada tem sua origem no pensamento de Hans Kelsen, que questionava o modelo norte-americano de controle de constitucionalidade segundo o qual a declaração de inconstitucionalidade de uma norma tinha efeitos ex tunc e declaratório. Para Kelsen, efetividade seria sinônimo de validade, logo uma norma que gerou efeitos seria válida e, portanto, constitucional. A decisão judicial que invalidava a norma deveria, pois, ser constitutiva e com efeitos ex nunc. Kelsen defendia também que o controle deve ser feito por um tribunal especial, com competência exclusivamente para julgar questões relativas à constituição. Segundo o referido jurista:

Se o controle da constitucionalidade das leis é reservado a um único Tribunal, este pode deter competência para anular a validade da lei reconhecida como inconstitucional não só em relação a um caso concreto mas em relação a todos os casos a que a lei se refira — quer dizer, para anular a lei como tal. Até esse momento, porém, a lei é válida e deve ser aplicada por todos os órgãos aplicadores do Direito. 3

O controle concentrado, ou abstrato, teve início no Brasil por meio da Emenda Constitucional n. 16, de 1965. A referida emenda conferia ao STF a competência para julgar originariamente a representação de inconstitucionalidade apresentada pelo Procurador-Geral da República. Por meio do aludido controle busca-se alcançar a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo independentemente da existência de um caso concreto, sendo esta declaração o objeto principal da ação. São espécies de controle concentrado a Ação Direta de Inconstitucionalidade Genérica, a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e a Ação Declaratória de Constitucionalidade. 1 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 557.2 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 1050.3 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 290.

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Após ser declarada a inconstitucionalidade pela via concentrada a decisão terá efeito, em regra, retroativo e erga omnes, desfazendo desde a origem o ato declarado inconstitucional. É importante observar que, tratando da inconstitucionalidade declarada pela via abstrata, a lei sairá do ordenamento jurídico imediatamente à decisão da Suprema Corte, não sendo necessária a suspensão pelo Senado Federal, como é no caso do controle difuso.

Cabe salientar que, no cenário jurídico brasileiro, apesar de o Supremo Tribunal Federal ter competência exclusiva para julgar matéria constitucional pela via concentrada, a Corte não está qualificada como Corte Constitucional no modelo proposto por Kelsen, tendo em vista que, para se adequar como tal, deveria tratar apenas de matéria constitucional e ser independente dos três poderes clássicos, sem fazer parte do Judiciário.

O controle de constitucionalidade difuso, também chamado de via indireta ou incidental, foi inserido no contexto brasileiro pelo trabalho de Rui Barbosa, especialmente em virtude da sua expressividade em causas referentes às liberdades e direitos fundamentais perante o Supremo Tribunal Federal. O controle de constitucionalidade concreto tem como principal particularidade a existência de uma controvérsia real, decorrente de uma situação jurídica submetida à apreciação.

O método difuso consiste na autorização conferida aos juízes de primeira instância e aos tribunais em qualquer grau de jurisdição para exercer a chamada jurisdição constitucional ordinária. Cabe ressaltar que, no cenário jurídico brasileiro, o método difuso confunde-se com o método incidental, que estipula que o controle não declarará a inconstitucionalidade da norma em si, apenas no que tange à existência ou não de ameaças ou violações a direitos subjetivos. É possível inferir que o controle difuso de constitucionalidade aproxima a jurisdição constitucional da sociedade, uma vez que não está limitada apenas aos tribunais superiores e que qualquer pessoa pode vir a arguir a constitucionalidade de lei ou ato normativo, desde que seja no bojo de um processo que trate de ameaça ou lesão a direito subjetivo.

Nessa seara, cabe citar o Professor Alexandre de Morais:

Na via de exceção, a pronúncia do Judiciário, sobre a inconstitucionalidade, não é feita enquanto manifestação sobre o objeto principal da lide, mas sim sobre questão prévia, indispensável ao julgamento do mérito. Nesta via, o que é outorgado ao interessado é obter a declaração de inconstitucionalidade somente para o efeito de isentá-lo, no caso concreto, do cumprimento da lei ou ato, produzidos em desacordo com a Lei maior. Entretanto, este ato ou lei permanecem válidos no que se refere à sua força obrigatória com relação a terceiros.4

Ainda acerca do controle difuso é importante discorrer acerca da competência do Senado Federal para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei que, através da via difusa, for declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, conforme preceituado no art. 52, X, da Carta Magna. Ao Senado Federal cabe também analisar o aspecto formal da decisão declaratória verificando se foi alcançado o quorum necessário e indagar a conveniência dessa decisão. Cabe salientar, ainda, que essa competência do Senado Federal se dá em relação a leis federais, estaduais,

4 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 587.

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distritais ou municipais, desde que declaradas inconstitucionais, incidentalmente, pelo Supremo Tribunal Federal.

A declaração de inconstitucionalidade pela via incidental produzirá efeitos ex tunc entre as partes e no processo em que houve a referida declaração. A Constituição Federal, ao garantir ao Senado a prerrogativa de suspender a execução da lei declarada inconstitucional, proporciona também o efeito ex nunc aplicado aos demais.

2.3 O controle de constitucionalidade na Constituição da República de 1988

Inicialmente foi adotado no Brasil o modelo norte-americano de controle de constitucionalidade. O ordenamento jurídico brasileiro evoluiu gradativamente para o sistema misto, atualmente adotado, que combina os modelos difuso e concentrado.

Com a promulgação da Carta de 1988, manteve-se o sistema misto, mas trouxe mudanças significativas para o controle de constitucionalidade brasileiro. A competência para intentar a ação, que antes era prerrogativa apenas do Procurador-Geral da República, foi ampliada a diversos órgãos e entidades elencados no art. 103, in verbis:

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

 I — o Presidente da República;

II — a Mesa do Senado Federal;

III — a Mesa da Câmara dos Deputados;

IV — a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;

V — o Governador de Estado ou do Distrito Federal;

VI — o Procurador-Geral da República;

VII — o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

VIII — partido político com representação no Congresso Nacional;

IX — confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Cumpre ressaltar que ao conferir legitimidade para propositura da ação aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional, abraçou-se a ideia de representação das minorias. Isso se dá, uma vez que a possibilidade de arguir inconstitucionalidade é assegurada até às frações menos significativas de representação.

Diante da ampliação do rol de legitimados para intentar ação direta de inconstitucionalidade, é possível entender que a Constituição Federal de 1988 trouxe mudanças substanciais para o modelo de controle de constitucionalidade vigente até então. Ao permitir que todas as controvérsias significativas fossem submetidas ao controle do STF, foi reduzida a aplicabilidade do controle difuso, antes predominante no cenário jurídico brasileiro. Acerca do tema, Gilmar Ferreira Mendes leciona:

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Assim, se se cogitava, no período anterior a 1988, de um modelo misto de controle de constitucionalidade, é certo que o forte acento residia, ainda, no amplo e dominante sistema difuso de controle. O controle direto continuava a ser algo acidental e episódico dentro do sistema difuso.

A Constituição de 1988 alterou, de maneira radical, essa situação, conferindo ênfase não mais ao sistema difuso ou incidente, mas ao modelo concentrado, uma vez que as questões constitucionais passam a ser veiculadas, fundamentalmente, mediante ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.5

A par dessas mudanças, o legislador instituiu novas ações no que diz respeito ao controle concentrado de constitucionalidade, como a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Outra introdução expressiva foi o controle de constitucionalidade por omissão e o mandado de injunção, ambos com o intuito de reparar a omissão legislativa inconstitucional.

Em relação ao controle abstrato, ficou instituído que os Estados Membros possuem competência para estabelecer o controle em seus respectivos âmbitos. Sendo assim, o controle será realizado sobre a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais frente à Constituição Estadual.

Com a Emenda Constitucional n. 3, de 1993, foi criada a ação declaratória de constitucionalidade (ADC). A partir de então, a declaração de constitucionalidade de uma lei ou ato normativo federal passou a ser pleiteada diretamente ao STF. As decisões de mérito referentes a esses processos teriam eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação ao Executivo e Judiciário.

Outra alteração de grande valia foi a criação da figura da inconstitucionalidade pro futuro. A Lei Federal n. 9.868/1999 instituiu a possibilidade de o STF outorgar eficácia não retroativa ou fixar outro momento para início dos efeitos da decisão que proclama inconstitucionalidade de uma lei.

Cumpre mencionar também que a Emenda Constitucional n. 45 trouxe três importantes inovações. Publicada em 2004, alterou a redação do art. 103, ampliando a legitimação para propositura de ação declaratória de constitucionalidade. Além disso, instituiu a súmula vinculante do STF e incluiu a necessidade de repercussão geral como requisito de admissibilidade para o recurso extraordinário.

3 TRIBUNAL DE CONTAS: ORGÃO CONSTITUCIONAL DE CONTROLE

3.1 Breve delineamento constitucional das Cortes de Contas no Brasil

A instituição Tribunal de Contas no Brasil, hodiernamente de matriz constitucional, teve início nos idos de 1890 com a edição, em 7 de novembro, do Decreto n. 966-A, da lavra do então Ministro da Fazenda do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, Rui Barbosa, em cuja exposição de motivos asseverou:

5 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 208-209.

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Faltava ao Governo coroar a sua obra com a mais importante providência, que uma sociedade política bem constituída pôde exigir de seus representantes.

Referimo-nos à necessidade de tornar o orçamento uma instituição inviolável e soberana, em sua missão de prover as necessidades públicas mediante o menor sacrifício dos contribuintes, à necessidade urgente de fazer dessa lei das leis uma força da nação, um sistema saibo, econômico, escudado contra todos os desvios, todas as vontades, todos os poderes que ousem perturbar-lhe o curso traçado.

[...]

O Governo Provisório reconheceu a urgência inadiável de reorganizá-lo; e a medida que vem propor-vos é a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediaria à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com attribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias – contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil.

[...] Não basta julgar a administração, denunciar o excesso cometido, colher a exorbitância, ou a prevaricação, para as punir, circunscrita a estes limites, essa função tutelar dos dinheiros públicos será muitas vezes inútil, por omissa, tardia ou impotente. Convém levantar, entre o Poder que autoriza periodicamente a despesa e o Poder que quotidianamente a executa, um mediador independente, auxiliar de um e de outro, que, comunicando com o Legislativo, e intervindo na Administração, seja não só o vigia, como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetração das infrações orçamentárias, por um veto oportuno nos atos do Executivo, que direta ou indireta, próxima ou remotamente, discrepem da linha geral das leis de finanças6.

Não tardaria para que a primeira Constituição Republicana, promulgada em 1891, ainda sob os auspícios de Rui Barbosa, institucionalizasse definitivamente o Tribunal de Contas, conferindo-lhe competência para liquidar as contas da receita e da despesa, bem como para verificar a sua legalidade antes de serem prestadas ao Congresso Nacional, consoante exarado em seu art. 89.

A instituição teve seu rol de competência ampliado com a promulgação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, cujas atribuições e composição foram reunidas na Sessão II do Capítulo VI, atinente aos órgãos de cooperação nas atividades governamentais, arts. 99-102.

Com o advento da Constituição outorgada de 1937, de cunho ditatorial e retrógrado, o Tribunal de Contas passou a receber tratamento esparso e vago, decorrência de um Estado extremamente centralizador e autoritário, avesso, por óbvio, às instituições democráticas. Assim, à Corte de Contas, inserida no âmbito do “esvaziado” Poder Judiciário7, competia apenas, com fulcro no

6 Trechos extraídos da “Exposição de Motivos de Rui Barbasa sobre a Criação do TCU”, publicada na Revista do Tribunal de Contas da União, Brasília: v. 30, n. 82, p. 253-262, out/dez. 1999.

7 O Judiciário, contudo, foi “esvaziado”. Como exemplo, nos termos do art. 96, parágrafo único, no caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, fosse necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderia o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmasse por 2/3 dos votos em cada uma das Câmaras, ficaria sem efeito a decisão do Tribunal. Outra demonstração de “força” do poder central está no art. 170, ao estabelecer que, durante o estado de emergência ou o estado de guerra, os atos praticados em virtude deles não poderiam ser conhecidos por qualquer Juiz ou Tribunal. (LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 116).

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art. 114 da “Carta Polaca”, o julgamento das contas dos responsáveis por haveres públicos e dos contratos celebrados pela União.

Devido à queda do regime ditatorial e no afã de se organizar um regime democrático no Brasil, a Assembleia Constituinte promulgou uma nova Carta Constitucional em 18 de setembro de 1946. Nela, o Tribunal de Contas recebeu tratamento na Sessão VI, denominada “Do Orçamento”, compreendido no Capítulo II, que dispunha acerca do Poder Legislativo, competindo-lhe, conforme o art. 77, “acompanhar e fiscalizar diretamente, ou por delegações criadas em lei, a execução do orçamento; julgar as contas dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos, e as dos administradores das entidades autárquicas; e julgar a legalidade dos contratos e das aposentadorias, reformas e pensões”. 

Em novo retrocesso na história constitucional do País, a Carta decretada em 1967 e sua Emenda Constitucional de 1969 concentraram novamente o poder na esfera federal, especialmente na figura do Presidente da República8, escancarando seu viés autoritário e alheio às garantias mais comezinhas de um Estado de direito. No que tange ao Tribunal de Contas, a Constituição cometeu-lhe, nos termos do § 1º do art. 71, a função de auxiliar o deveras enfraquecido Congresso Nacional no exercício do controle externo, compreendendo “a apreciação das Contas do Presidente da República, o desempenho das funções de auditoria financeira e orçamentária, e o julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos”. Competia-lhe, também, apreciar e julgar a “legalidade das concessões iniciais de aposentadorias, reformas e pensões, independendo de sua decisão as melhorias posteriores”.

Após os anos nefastos e obscuros da tirania ditatorial, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 procurou resgatar a participação popular e a efetivação da cidadania, inspirada no consenso estatuído em torno da democracia constitucional como o regime de governo ideal, em superação aos regimes socialistas totalitários vigentes até o último quadrante do século XX9.

Esse impulso democrático e a retomada do Estado de Direito impulsionaram o estabelecimento do controle como princípio constitucional, de tal maneira que a inobservância do dever de prestação de contas da administração direta e indireta foi alçada à condição de princípio sensível, podendo ensejar a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal, consoante preceituado no art. 34, VII, d10.

8 Tamanho era o grau de concentração de poderes no âmbito do Poder Executivo que o constitucionalista Celso Ribeiro Bastos adverte que, embora a Carta de 1967 tenha mantido, formalmente, a tripartição de Poderes, “no fundo existia um só, que era o Executivo, visto que a situação reinante tornava por demais mesquinhas as competências tanto do Legislativo quanto do Judiciário [...]”. (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 134).

9 Na dicção do jusfilósofo Norberto Bobbio (2004, p. 1), “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tomam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo”.

10 O ínclito constitucionalista José Afonso da Silva conceitua como princípios sensíveis aqueles enumerados no art. 34 da Constituição da República de 1988, quais sejam: a) da forma republicana de governo; b) do sistema representativo e regime democrático; c) dos direitos da pessoa humana; d) da autonomia municipal; e) da prestação de contas da administração pública, direta e indireta. (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 612).

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Nesse diapasão, Rodolfo Viana Pereira11 pontifica que o núcleo basilar de todo o movimento constitucionalista reside no controle do modo pelo qual o poder deve ser exercido, tanto nas revoluções liberais com o advento do Estado de Direito, quanto, posteriormente, nas cartas resultantes dos influxos sociais e democráticos.

A Constituição de 1988, inspirada por essa esplendorosa marcha de democratização e respeito à cidadania no País, com sólidos baldrames no fortalecimento do controle, erigiu o Tribunal de Contas à condição de “coprotagonista” no cenário constitucional democrático, como legítimo canal de concretização da fiscalização da gestão e das políticas públicas, ampliando-lhe, sobremaneira, as competências e delineando um novo perfil para o controle externo das finanças públicas.

O Tribunal de Contas, então, foi alçado à condição de órgão constitucional de relevo, independente e autônomo, que atua em cooperação com o Poder Legislativo para dar cabo da prestigiosa e relevante função de fiscalização e controle, não estando subordinado ou vinculado a qualquer dos Poderes, nem mesmo ao Legislativo, detentor da titularidade do controle externo.

Nesse sentido, traz-se a lume excerto de voto prolatado pelo Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.19012, no qual asseverou que:

Os Tribunais de Contas ostentam posição eminente na estrutura constitucional brasileira, não se achando subordinados, por qualquer vínculo de ordem hierárquica, ao Poder Legislativo, de que não são órgãos delegatários nem organismos de mero assessoramento técnico. A competência institucional dos Tribunais de Contas não deriva, por isso mesmo, de delegação dos órgãos do Poder Legislativo, mas traduz emanação que resulta, primariamente, da própria Constituição da República.

A relevância do mister constitucional e a sobrelevada importância institucional conferida aos tribunais de contas pode ser dessumida do extenso rol de competências que lhe foram conferidas, no teor do art. 71 da Carta Cidadã, in verbis:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I — apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II — julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

III — apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;

11 PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito constitucional democrático: controle e participação como elementos fundantes e garantidores da constitucionalidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 16.

12 STF. ADI n. 4.190 MC-REF / RJ. Relator: Ministro Celso de Mello. Tribunal Pleno. Julgamento em: 10 mar. 2010. DJe: 11 jun. 2010.

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IV — realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II;

V — fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo;

VI — fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;

VII — prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;

VIII — aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

IX — assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;

X — sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;

XI — representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.

Destarte, o Tribunal de Contas, órgão de tessitura constitucional, não pode estar subordinado a qualquer dos Poderes da República, tamanhas e valiosas as atribuições que exerce, tendo papel ímpar no cenário de controle estatuído na Carta Magna vigente, com vistas à compatibilização e consecução do constitucionalismo democrático, ao assegurar e proteger os anseios dos cidadãos por uma gestão transparente, eficiente e eticamente correta da coisa pública.

3.2 Teoria da Separação de Poderes: Tribunal de Contas como agente de controle

A Teoria da Separação de Poderes remonta à filosofia de Aristóteles, que em sua obra A Política dividiu as funções do Estado em três Poderes, a saber: Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário13.

Inspirando-se nos ensinamentos do estagirita acerca do Estado e as suas funções primordiais, vários pensadores, ao longo da história, debruçaram-se sobre o tema da separação dos poderes, em um gradativo e progressivo iter de formação da teoria, que alcançou seu ápice e sua configuração moderna na obra do filósofo francês Charles de Montesquieu, que em seu propalado livro O Espírito das Leis, sistematizou-a e deu-a ela contornos especiais a fim de assegurar a liberdade dos indivíduos.

13 Nesse sentido, o jurista Dalmo de Abreu Dallari assevera que o “antecedente mais remoto da separação de poderes encontra-se em ARISTÓTELES, que considera injusto e perigoso atribuir-se a um só indivíduo o exercício do poder, havendo também em sua obra uma ligeira referência ao problema da eficiência, quando menciona a impossibilidade prática de que um só homem previsse tudo o que nem a lei pode especificar”. (DALLARI, p. 217-218)

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Tal processo evolutivo de forja da Teoria da Separação de Poderes foi descrito pelo autor Dalmo de Abreu Dallari:

117. [...] a concepção moderna da separação de poderes não foi buscar em ARISTÓTELES sua inspiração, tendo sido construída gradativamente, de acordo com o desenvolvimento do Estado e em função dos grandes conflitos político-sociais. Já no século XIV, no ano de 1324, aparece a obra Defensor Pacis, de MARSÍLIO DE PÁDUA, estabelecendo uma distinção entre o poder legislativo e o executivo. A base do pensamento de MARSÍLIO DE PÁDUA é a afirmação de uma oposição entre o povo, que chama de primeiro legislador, e o príncipe, a quem atribui função executiva, podendo-se vislumbrar aí uma primeira tentativa de afirmação da soberania popular. Segundo informação contida em “O Príncipe”, de MAQUIAVEL, no começo do século XVI já se encontravam na França três poderes distintos: o legislativo (Parlamento), o executivo (o rei) e um judiciário independente. É curioso notar que MAQUIAVEL louva essa organização porque dava mais liberdade e segurança ao rei. Agindo em nome próprio o judiciário poderia proteger os mais fracos, vítimas de ambições e das insolências dos poderosos, poupando o rei da necessidade de interferir nas disputas e de, em consequência, enfrentar o desagrado dos que não tivessem suas razões acolhidas.

No século XVII é que vai surgir, entretanto, uma primeira sistematização doutrinária da separação de poderes, com a obra de LOCKE. Baseado, evidentemente, no Estado inglês de seu tempo, LOCKE aponta a existência de quatro funções fundamentais, exercidas por dois órgãos do poder. A função legislativa caberia ao Parlamento. A função executiva, exercida pelo rei, comportava um desdobramento, chamando-se função federativa quando se tratasse do poder de guerra e de paz, de ligas e alianças, e de todas as questões que devessem ser tratadas fora do Estado. A quarta função, também exercida pelo rei, era a prerrogativa, conceituada como “o poder de fazer o bem público sem se subordinar a regras”. Embora opondo-se expressamente ao absolutismo defendido por HOBBES, LOCKE não considerou anormal o reconhecimento de uma esfera de poder discricionário do governante, sem atentar para a circunstância de que o bem público, impossível de ser claramente definido, sempre seria um bom pretexto para as decisões absolutistas14.

O Barão de Montesquieu é tido como o precursor da constitucionalização da Teoria da Separação de Poderes, como afirmação da liberdade política em face dos nefastos anseios absolutistas. Sua sobrelevada importância não está na criação de um modelo de governo moderado, com repartição das funções do Estado, mas sim na formulação do denominado sistema de

freios e contrapesos às funções legislativas, executivas e judiciais, ensejando que estas sejam distribuídas a instâncias organicamente distintas e aptas a exercer legitimamente o poder, no sentido de cooperação e controle mútuo entre as funções desempenhadas, buscando-se o equilíbrio das instâncias governamentais e a concretização dos princípios da liberdade política15.

Gilmar Ferreira Mendes (2010, p. 118), com espeque na doutrina de Peter Härbele, sustenta que:

Superada essa fase da sua evolução histórica — fase dialeticamente absorvida, conservada e transformada nas etapas seguintes, que dependem daquele estágio inicial para o seu próprio desenvolvimento —, cumpre repensar o paradigma da separação dos poderes em perspectiva temporalmente adequada, porque a sua sobrevivência, como princípio,

14 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 218-219. 15 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: introdução. 2. ed. rev. atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 71.

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dependerá da sua adequação, como prática, às exigências da sociedade aberta dos formuladores, intérpretes e realizadores da Constituição.

Em observância aos ditames impostos pelo mecanismo de freios e contrapesos e às exigências impostas por uma sociedade aberta e democrática de intérpretes da Constituição, o controle passou a ter especial relevo na seara constitucional, com vistas a limitar o exercício do poder, que tende a ser efetivado com abuso e autoritarismo. Assim, nas constituições modernas, foram criados órgãos para exercer o controle externamente aos Poderes, a fim de salvaguardar os interesses do Estado e da coletividade, entre os quais o Tribunal de Contas, dotado de independência funcional e garantias capazes de assegurar a eficácia e a efetividade de sua atuação.

Aliás, o emérito jurista Rui Barbosa já se referia ao Tribunal de Contas como corpo de magistratura intermediária entre a administração e a legislatura, autônomo e detentor de garantias e prerrogativas, a fim de bem exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, tendo-se em conta, sobretudo, que em um regime republicano é legitimo que o povo, detentor da soberania, saiba como os seus mandatários gerem os dinheiros públicos.

Ademais, o influxo democrático reforça a necessidade de institucionalização de controle do poder, em especial da gestão pública, que deve ser exercida sempre com foco no interesse público, a fim de atender aos anseios e mitigar as mazelas de uma sociedade ainda tão desigual e dependente das políticas públicas, essenciais à eficácia social dos direitos fundamentais.

Por fim, cumpre altear que a Constituição da República de 1988 erigiu a Teoria de Separação de Poderes à categoria de cláusula pétrea (ou garantia de não retrocesso), consoante preceituado no art. 60, § 4º, III, ao asseverar que não será objeto de deliberação nenhuma proposta de emenda tendente a aboli-la.

4 OS TRIBUNAIS DE CONTAS E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

4.1 Controle de constitucionalidade pelos tribunais de contas e a relativização da Súmula n. 347 do STF

A Constituição da República vigente elasteceu, significativamente, o rol de competências e prerrogativas afetas aos tribunais de contas, conforme alhures explicitado. Todavia, entre as competências arroladas não se encontra a possibilidade de apreciar, ainda que pela via difusa, a constitucionalidade de leis ou atos normativos.

Contudo, tem-se entendido que os tribunais de contas, ao exercerem as suas atividades, poderão, sempre no caso concreto e de controle difuso, apreciar a constitucionalidade de uma lei e, se for o caso, deixar de aplicá-la16.

Assim, o Tribunal de Contas pode, em sua análise e interpretação, afastar a aplicabilidade de leis e atos normativos do Poder Público, na medida da competência que lhe confere a Constituição para exercer o controle externo. 16 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 265.

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Tal prerrogativa encontra-se sedimentada no Enunciado de Súmula n. 347 do STF ao assentar que “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”.

A súmula, aprovada na Sessão Plenária de 13/12/1963 do Pretório Excelso, teve como baliza o art. 77 da Constituição de 1946, que dispunha acerca da competência do Tribunal de Contas, in verbis:

Art. 77 — Compete ao Tribunal de Contas:

I — acompanhar e fiscalizar diretamente, ou por delegações criadas em lei, a execução do orçamento;

II — julgar as contas dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos, e as dos administradores das entidades autárquicas;

III — julgar a legalidade dos contratos e das aposentadorias, reformas e pensões.

§ 1º — Os contratos que, por qualquer modo, interessarem à receita ou à despesa só se reputarão perfeitos depois de registrados pelo Tribunal de Contas. A recusa do registro suspenderá a execução do contrato até que se pronuncie o Congresso Nacional. 

§ 2º — Será sujeito a registro no Tribunal de Contas, prévio ou posterior, conforme a lei o estabelecer, qualquer ato de Administração Pública de que resulte obrigação de pagamento pelo Tesouro nacional ou por conta deste.

§ 3º — Em qualquer caso, a recusa do registro por falta de saldo no crédito ou por imputação a crédito impróprio terá caráter proibitivo. Quando a recusa tiver outro fundamento, a despesa poderá efetuar-se, após despacho do Presidente da República, registro sob reserva do Tribunal de Contas e recurso ex officio para o Congresso Nacional.

§ 4º — O Tribunal de Contas dará parecer prévio, no prazo de sessenta dias, sobre as contas que o Presidente da República deverá prestar anualmente ao Congresso Nacional. Se elas não lhe forem enviadas no prazo da lei, comunicará o fato ao Congresso Nacional para os fins de direito, apresentando-lhe, num e noutro caso, minucioso relatório de exercício financeiro encerrado.

Nessa linha de entendimento, o Tribunal de Contas da União consolidou jurisprudência no sentido de que

ao examinar um ato na sua esfera de competência, pode, para decidir um caso concreto, apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, interpretando-os para conformá-los à Constituição ou afastando a sua aplicação, no caso em que a incompatibilidade não puder ser superada17.

Colaciona-se elucidativo excerto que ratifica tal posicionamento, extraído de recente decisão prolatada pelo TCU:

30.18. [...] cumpre destacar o enunciado da Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal (STF). De acordo com essa súmula, o Tribunal de Contas da União, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e atos do poder público. Essa faculdade, entretanto, somente pode ser exercida pela via concreta, uma vez que o controle em abstrato de constitucionalidade compete ao STF, haja vista o disposto no art. 102, inc. I, alínea a, da Constituição Federal.

17 Resenha de jurisprudência do TCU, elaborada pela Secretaria das Sessões. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pls/apex/ f?p=175:11:460054173690602::NO::P11_NO_SELECIONADO:0_11_645_1206_706>. Acesso em: 8 out. 2012.

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30.19. Desse modo, compete ao TCU, no caso concreto, considerar inaplicável dispositivo de lei ou ato normativo que, segundo seu entendimento, esteja em desacordo com a Constituição Federal ou à legislação infraconstitucional, ou seja, ao detectar flagrante inconstitucionalidade ou ilegalidade, o TCU pode considerar como inaplicável a parte do ato normativo que esteja eivado desse defeito jurídico.

30.20. São nesse sentido os Acórdãos 5.354/2009 — 2ª Câmara, 3.807/2007 — 1ª Câmara, 1.732/2009 — Plenário, 710/2008 — 1ª Câmara, 708/2008 — 1ª Câmara e Decisão 663/2002 — Plenário.

30.21. Assim, a destinação de 7% (sete por cento) da receita auferida em projetos contratados ou conveniados com fundações de apoio, como forma de remuneração das referidas fundações, ainda que fundamentada no art. 1º, inc. II, das Resoluções 11, de 14/03/2002, e 36, de 28/11/2002, do Conselho Diretor da [omissis], é nula e deve ser retirada do mundo jurídico [...]. (TCU. Processo n.  021.410/2007-8. Acórdão n. 3.351/2011. Sessão: 24 maio 2011. Grupo: I Classe: II Relator: Min. AROLDO CEDRAZ. Tomada e Prestação de Contas. Iniciat

Ademais, o Regimento Interno do TCU, em seu art. 19, I, e, dispõe de forma expressa acerca da competência daquela Corte de Contas para aferição da constitucionalidade de normas18, nos seguintes termos:

Art. 19. Compete privativamente ao Plenário, dirigido pelo Presidente do Tribunal:

I — deliberar originariamente sobre:

e) conflito de lei ou de ato normativo do Poder Público com a Constituição Federal, em matéria de competência do Tribunal.

Registra-se, ainda, que no âmbito do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo o Enunciado de Súmula n. 6 assevera que “compete ao Tribunal de Contas negar cumprimento a leis inconstitucionais”.

O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, por sua vez, editou o Enunciado de Súmula n. 10319, com espeque na súmula n. 347 do STF, nos seguintes termos:

Admissão de pessoal. Com arrimo na Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais não reconhece a constitucionalidade do art. 106 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado de Minas Gerais, por contrariar os arts. 37, II, e 41 da Constituição da República e o art. 19 do seu ADCT.

Outrossim, o exame de pertinência constitucional das leis e normas invocadas pelos administradores das finanças públicas tem sido objeto de inúmeras decisões do TCEMG, em respeito aos misteres que recebeu de coguardião dos anseios da cidadania e, por que não, das balizas do Estado de Direito, sob o importante influxo democrático.

No entender dos autores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, o Tribunal possui a prerrogativa de exercer o controle de constitucionalidade, por via difusa, desde que observe, necessariamente, a cláusula de reserva de plenário, estampada no art. 97 da Constituição da República, nestes termos:18 Cumpre mencionar, por oportuno, que o Regimento Interno do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (Resolução n.

12/2008), preceitua, de igual modo, em seu art. 26, que “Compete, ainda, ao Tribunal Pleno: V — apreciar, incidentalmente, a constitucionalidade das leis ou de atos do poder público”.

19 O aludido verbete encontra-se com a aplicabilidade suspensa até o julgamento de mérito da ADI n. 3.842 pelo Supremo Tribunal Federal.

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Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os tribunais de contas, no desempenho de suas atribuições constitucionais, possuem competência para realizar o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do Poder Público, podendo afastar a aplicação daqueles que entenderem inconstitucionais.

Exemplificando, suponha que determinada Corte de Contas — da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios — esteja apreciando um processo de aposentadoria de servidor público e que recentemente tenha sido publicada uma lei que incida sobre a questão. Nessa hipótese, caso a Corte entenda que essa lei é inconstitucional, poderá, por maioria absoluta de votos (CR, art. 97), declará-la inconstitucional, afastando a sua aplicação ao caso concreto.

Destacamos, porém, que essa atuação dos tribunais de contas não afasta a possibilidade de posterior apreciação da lei ou ato normativo pelo Poder Judiciário, se provocado20.

Esse também é o entendimento esposado pelo constitucionalista Pedro Lenza:

Parece razoável exigir o cumprimento da regra contida no art. 97, CF/88, que trata da denominada cláusula de reserva de plenário, segundo a qual somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público21.

Todavia, em recente julgado proferido pela Corte de Contas mineira decidiu-se por afastar, por unanimidade, a vinculação dos tribunais de contas à denominada cláusula de reserva de plenário, de cunho constitucional, sedimentada no Enunciado de Súmula Vinculante n. 10 do STF22, conforme se infere dos seguintes trechos extraídos do voto da relatora Conselheira Adriene Andrade:

Alega o recorrente que a decisão da Primeira Câmara, ora impugnada, é nula porque o Relator do processo principal, ao desprezar as frações resultantes da aplicação do percentual de reserva para os portadores de deficiência, constante da Lei Municipal [omissis], para aplicar a regra do arredondamento para cima, infringiu a Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal, que determina que somente por voto da maioria dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

O recorrente assinala que o relator deveria ter submetido a matéria ao Plenário, nos termos do que determina a referida Súmula, por estar em jogo a autonomia municipal, essencialmente no que se refere à competência suplementar caracterizada, principalmente, nos termos do art. 30, II, da Constituição da República, pela autorização conferida ao ente municipal para que, presente o interesse local, legisle sobre a matéria.

[...]

Trata-se, na verdade, do controle difuso da constitucionalidade das leis e atos normativos, que se caracteriza por permitir que todo e qualquer juiz ou tribunal possa realizar, no caso concreto, a análise sobre a compatibilidade entre a norma infraconstitucional e a Constituição Federal. No controle difuso, discute-se o caso concreto. Verificando-se que o ato esteja fundado em lei divergente da Constituição, o órgão fracionário poderá lhe negar a aplicação, devendo no caso, a questão ser submetida, preliminarmente, conforme determina a Súmula Vinculante n. 10, ao órgão especial dos tribunais, que deverá, por

20 PAULO, Vicente ; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 7. ed. São Paulo: Método, 2011. p. 800.21 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 618-619.22 Dispõe a súmula vinculante n. 10 do STF que: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CR, art. 97) a decisão de órgão fracionário

de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.

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maioria absoluta, reconhecer ou não a inconstitucionalidade ou sua desconformidade com a Constituição da República.

Os Tribunais de Contas podem e devem manifestar-se acerca da constitucionalidade de leis e atos normativos, negando-lhes a aplicação, no caso concreto, quando conflitarem com a Lei Maior, mesmo porque a Súmula n. 347 do Supremo Tribunal Federal lhe autorizou a fazê-lo. Entretanto é preciso esclarecer, por oportuno, que nos termos do art. 97 da Constituição Federal, a competência, para a declaração de inconstitucionalidade está restrita, apenas, aos tribunais enumerados no art. 92 da Constituição da República, ou seja, do Poder Judiciário, não lhe cabendo a competência para declarar inconstitucional a lei ou ato normativo, competência esta adstrita ao Supremo Tribunal Federal.

Desta forma, sabendo-se que o Tribunal de Contas não está incluído dentre os Tribunais do art. 92 da Constituição da República, sua competência se encerra apenas na inaplicabilidade de norma legal, em face de conflito com a Constituição em razão do seu objetivo precípuo que é a proteção do erário que poderia vir a ser afetado por despesas respaldadas em leis ou atos normativos inconstitucionais. Entretanto, lhe é vedada a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, na medida em que representaria invasão da competência do Supremo Tribunal Federal, razão pela qual não vislumbro a aplicabilidade da Súmula Vinculante nº 10 ao Tribunal de Contas.

Cumpre ressaltar, ainda, que apesar de estar previsto no inciso V do art. 26 do Regimento Interno, a apreciação do incidente de “constitucionalidade” pelo Tribunal Pleno, tal competência não está autorizada pela Lei Complementar n. 102/2008, Lei Orgânica deste Tribunal e, muito menos, está normatizado o incidente de inconstitucionalidade, ferramenta prevista pelos artigos 480 a 482 do Código de Processo Civil.

[...]

[Ademais,] o relator não afastou a aplicação da Lei Municipal n. 743/07, por afronta à Constituição da República. Ele procurou adequar o edital ao entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no RE 227.299 de relatoria do Ministro Ilmar Galvão, in verbis:

‘A exigência constitucional de reserva de vagas para portadores de deficiência em concurso público se impõe ainda que o percentual legalmente previsto seja inferior a um, hipótese em que a fração deve ser arredondada. Entendimento que garante a eficácia do art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal, que, caso contrário, restaria violado. Recurso extraordinário conhecido e provido.’

Cumpre destacar que o Supremo Tribunal Federal no Agravo Regimental n. 814.519 da relatoria da Ministra Ellen Gracie, julgamento em 12/04/2011, decidiu que:

‘[...] para a caracterização de ofensa ao art. 97 da Constituição da República, que estabelece a reserva de plenário é necessário que a norma aplicável à espécie seja efetivamente afastada por alegada incompatibilidade com a Lei Maior. Não incidindo norma no caso e não tendo ela discutida, a simples aplicação da legislação pertinente ao caso concreto não é suficiente para caracterizar a violação à Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal. O embasamento da decisão em princípios constitucionais não resulta necessariamente em juízo de inconstitucionalidade.’

De acordo com o entendimento acima, a não aplicação de lei ao caso concreto não pressupõe necessariamente o seu afastamento, que se equipara à declaração de inconstitucionalidade. Para que esteja consubstanciada a caracterização da ofensa ao princípio da reserva de plenário é necessário que haja o afastamento da lei, de forma implícita ou explícita, em razão de incompatibilidade com a Constituição.

No caso dos autos, verifiquei que não houve o afastamento da Lei Municipal por afronta à Constituição da República. O relator apenas aplicou um princípio constitucional,

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consagrado pela Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, qual seja, o da máxima efetividade. Mesmo se houvesse a possibilidade de se aplicar a Súmula Vinculante n. 10, neste Tribunal, não se configuraria a hipótese pelo entendimento da Corte Suprema citado acima.

Pelo exposto, não acolho, também, a preliminar de nulidade da decisão por não ter sido a mesma submetida à apreciação do Pleno, em razão da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal. Isto porque não houve questionamento de constitucionalidade que foi aventada pelo Ministério Público. Então não foi utilizada nem pela Câmara e nem pelo próprio Ministério Público. Então esta é a razão que também não acolho essa Preliminar de Nulidade (TCEMG. Recurso Ordinário n. 837.100. Relatora: Cons. Presidente Adriene Andrade. Sessão: 26 set. 2012)

Ademais, o Tribunal de Contas mineiro já reconheceu a impossibilidade de as cortes de contas efetuarem o controle abstrato ou concentrado de constitucionalidade, incumbência privativa do Supremo Tribunal Federal, de modo que a decisão de afastar a aplicabilidade de uma lei ou ato normativo só tem efeitos em seus julgamentos, não tendo o condão de retirar o dispositivo ou diploma do ordenamento jurídico, nos seguintes termos:

No caso concreto, observa-se que a servidora cujo ato de aposentadoria teve seu registro denegado ingressou no serviço público, sem concurso, após a promulgação da Constituição da República de 1988, não tendo adquirido estabilidade nos termos do disposto no art. 19 do ADCT da citada norma constitucional. Ocorre, no entanto, que a Emenda Constitucional n. 49 à Constituição Estadual, de 14 de junho de 2001, efetivou todos os detentores de função pública admitidos até 01/08/90, o que inclui a Senhora [omissis], admitida em 01/06/90.

Essa emenda constitucional teve sua inconstitucionalidade reconhecida pelo Tribunal de Contas o que motivou a edição da Súmula n. 103. Esse enunciado, entretanto, teve sua eficácia suspensa em 04/11/09, decisão que foi mantida em 05/05/11, até que a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.842 fosse julgada pelo Supremo Tribunal Federal — STF, órgão competente para decidir em controle concentrado-abstrato sobre a compatibilidade entre a emenda à Constituição Estadual e o disposto na Carta Republicana.

O STF ainda não se pronunciou sobre a inconstitucionalidade da emenda constitucional que garantiu estabilidade à servidora, de modo que o art. 106 do ADCT da Constituição mineira continua vigente, gozando inclusive da presunção de constitucionalidade inerente às normas expedidas pelo Poder Público. O reconhecimento da inconstitucionalidade pelo Tribunal legitima apenas que este afaste em seus julgamentos a aplicabilidade do dispositivo legal. (TCEMG. Recurso Ordinário n. 769.497. Relator Cons. Cláudio Couto Terrão. Sessão: 28 mar. 2012)

Em outra oportunidade, a Corte de Contas do Estado de Minas Gerais, em julgamento pelo Tribunal Pleno, em respeito à cláusula de reserva de plenário exarada no art. 97 da Carta Magna pátria, afastou a aplicabilidade de norma infralegal estadual por afronta ao princípio constitucional da isonomia nos certames licitatórios, para efeito de julgamento dos procedimentos de licitação sub examine, invocando, uma vez mais, o teor da Súmula n. 347 do STF:

[...] o deslinde do mérito da questão controvertida versada nos presentes autos depende do exame do requisito estabelecido no citado normativo à luz de preceptivos e princípios constitucionais. No particular, o inciso V do art. 26 do Regimento Interno estabelece a competência do Tribunal Pleno para apreciar, incidentalmente, a constitucionalidade das leis ou de atos do Poder Público.

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Embora esta Corte não tenha competência para declarar, mas tão somente apreciar a constitucionalidade das leis e atos do Poder Público e deixar de aplicar aqueles que julgar inconstitucionais no exercício de suas atribuições, conforme entendimento sedimentado pela Súmula n. 347 do Pretório Excelso, é imprescindível que o faça pelo voto da maioria absoluta de seus membros, em consonância com a norma prescrita no art. 97 da Carta Republicana, que estabeleceu a chamada cláusula de reserva de plenário, nos seguintes termos:

‘Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.’

[...]

Dadas as circunstâncias da matéria tratada nestes autos, torna-se incontroversa a competência do Tribunal Pleno para apreciar e julgar essa questão incidental, cuja decisão irá balizar o exame do mérito da denúncia pela eg. Primeira Câmara.

Mérito

[...]

Da forma como os atos convocatórios examinados estabelecem a avaliação do preço das propostas comerciais dos licitantes sediados em Minas Gerais, restou instituída inequívoca preferência em razão da sede, prática expressamente vedada pelo § 1º do art. 3º da Lei de Licitações. É que o menor preço das propostas comerciais dos licitantes sediados em Minas Gerais será aferido tomando-se como base aquele resultante da dedução do ICMS, ao contrário do que ocorrerá com possíveis pretendentes de outros Estados que terão suas propostas avaliadas pelo preço de mercado dos produtos ou serviços, que inclui o ICMS. A adoção desse critério díspar, e isso se percebe sem grande esforço, gera desequilíbrio nas condições de participação entre os licitantes e, por conseguinte, viola o princípio constitucional da isonomia, prescrito pelo inciso XXI do art. 37 da Carta Republicana, às escâncaras.

[...]

Necessário observar que a adoção da isenção do tributo aos fornecedores pelos Estados da Federação cria certa uniformidade entre estes em relação à questão tributária, mas gera, internamente em cada Estado, o desequilíbrio das condições de participação entre os licitantes locais e aqueles sediados em outros Estados, não alcançados pela isenção.

[...]

O inciso XXI do art. 37 da Carta Republicana estabelece que “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes (...)”.

A isonomia é, portanto, princípio de ordem constitucional que foi reproduzido e disciplinado no diploma geral das licitações, cuja competência legislativa é privativa da União, conforme disposto no inciso XXVII do art. 22 da Constituição da República de 1988.

[...]

III — DECISÃO

Pelas razões expostas, tendo em vista o disposto no art. 97 da Constituição da República de 1988, na Súmula nº 347 do STF e no inciso V do art. 26 da Resolução nº 12/08, que instituiu o Regimento Interno desta Corte, considero inconstitucional o § 1º do art. 4º da Resolução

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Conjunta nº 3.458/03 da Secretaria de Estado do Planejamento e Gestão – SEPLAG e da Secretaria de Estado de Fazenda – SEF, para efeito no julgamento dos procedimentos de licitação de que tratam os presentes autos, bem como de outros correlatos. (TCEMG. Denúncia n. 803.361. Relator: Cons. em exercício Gilberto Diniz. Sessão: 24 fev. 2010)

O âmbito de atuação dos tribunais de contas foi tratado com completude em parecer da lavra do Conselheiro Substituto Licurgo Mourão23, ao abordar a questão do afastamento de normas temporárias eivadas de inconstitucionalidade, tais como as leis orçamentárias municipais, retorquindo a alegação de incompetência da Corte de Contas para tal apreciação, sob os seguintes e sólidos fundamentos:

É certo que o Supremo Tribunal Federal não realiza controle concentrado de constitucionalidade de normas com efeito exaurido, uma vez que o objetivo deste tipo de controle é extirpar do ordenamento jurídico as normas que estejam em confronto com a Constituição. Se elas não estão mais vigentes, já não pertencem ao ordenamento, não havendo razão para a realização do controle, havendo a perda do objeto do processo, como ensina o Des. Kildare Gonçalves Carvalho, in verbis:

‘[...] a cessação superveniente da norma, inclusive por auto-revogação, ou seja, pelo exaurimento de seus efeitos jurídicos, faz com que a ação perca o objeto, ou leva à perda do interesse processual, já que a medida não é mais útil ou necessária. (CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional — Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positivo. 15. ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2009, p.454.)’

Essa limitação, no entanto, não existe no controle difuso de constitucionalidade, já que o que se busca tão somente é garantir aos cidadãos que não sejam compelidos a cumprir ou aceitar os efeitos de normas inconstitucionais. Nesse giro, quando do controle realizado pelo Tribunal de Contas, no exercício de suas funções, faz-se necessário verificar a legalidade e a constitucionalidade dos atos administrativos objeto de sua análise. Segundo Roberto Rosas, in verbis:

‘[...] cabe à Corte de Contas o exame das exigências legais nos casos enunciados e em geral a ela submetidos, colocando seu exame em confronto com a Constituição, não procedendo o argumento da privatividade da interpretação das leis pelo Poder Judiciário. Se os atos submetidos ao Tribunal de Contas não estão conforme a Constituição, logo, são atos contra a lei, portanto, inconstitucionais. (ROSAS, Roberto. Direito Sumular. 12. ed. Malheiros, São Paulo, 2004, p. 153)’

[...]

Diferentemente do controle abstrato de constitucionalidade, no controle realizado pelo Tribunal de Contas o fato de a norma já ter exaurido seus efeitos é irrelevante para a análise. Isso porque, o que interessa a esta Corte, in casu, é a conformidade dos atos praticados com o ordenamento jurídico como um todo, no qual figura a Constituição Federal como pedra angular.

Nesse sentido, veja-se a lição de Jacoby Fernandes, in verbis:

‘[...] cabe asserir que a Constituição Federal confere ao Tribunal de Contas competência para:

I — julgar as contas dos administradores e demais... (art. 71, II) [...];

II — apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos... (art. 71, III) [...].

23 Parecer pendente de deliberação final, tendo em vista que na sessão do dia 21/08/2012 o Cons. Substituto Cláudio Couto Terrão pediu vista dos autos, cujo parecer, até a data de conclusão do presente artigo, não havia sido submetido ao Plenário.

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Nesse passo, se o Tribunal julga determinado ato, frente a determinada lei e, atuando em maior amplitude, verifica que esta lei encontra-se em atrito com aquela de maior hierarquia — Constituição Federal — e partindo do pressuposto lógico de que não pode eximir-se do julgamento, deverá dizer do conflito de normas e de suas consequências sobre o caso concreto, tratando-se tal dicção de um juízo de constitucionalidade.

O poder de apreciar leis e atos do poder público decorre, portanto, da própria Constituição Federal.

[...]

No tocante à incidentalidade para o controle em concreto dos casos previstos no art. 71 da Constituição Federal, pode-se verificar que eles, obviamente, estão referidos à manifesta instrução de processos de julgamento de contas, que se incluem nos atos e contratos do universo da execução dos fatos administrativos, objeto, portanto, da ação corretiva do controle externo a posteriori. [...]

Como bem se vê, são diferentes momentos e dimensões distintas da ação do Controle Externo, que a sabedoria do enunciado da Súmula n. 347 do excelso Tribunal soube alcançar, sob pena de quedar-se disposição inócua.

[...]

Não pretende o Tribunal de Contas julgar a constitucionalidade de lei, com o mesmo objetivo do Excelso Supremo Tribunal Federal. O Supremo julga as leis, dizendo de seu valor objetivo em nosso ordenamento jurídico. Vale dizer, a competência do Supremo Tribunal Federal abrange a própria lei, emprestando-lhe validade, ou suprimindo a sua existência no campo da realidade jurídica. O Tribunal de Contas, por outro lado, aprecia a constitucionalidade. Não é o fato de ser incidental, ou não, que retira a faculdade de julgamento, o que importa é o que o efeito decorrente deste, diversamente do que o Supremo Tribunal impõe, é tão somente o de conduzir a interpretação de lei a parâmetros centrados na Constituição Federal, sem, de fato, implicar em efeito objetivo sobre a norma. (Grifos nossos) (FERNANDES, J. U. Jacoby. Tribunais de Contas do Brasil: jurisdição e competência. 2. ed. 1. reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 325-328)’

O controle realizado pelo Tribunal de Contas, quando da apreciação da execução orçamentária dar-se-á, em regra, a posteriori, posto que a LOA tem vigência adstrita ao exercício financeiro que rege. Assim, os atos já se concretizaram e as leis orçamentárias nas quais se basearam já tiveram seus efeitos exauridos. Portanto, só é possível verificar a conformidade dos atos com o ordenamento jurídico, verificando-se a constitucionalidade da norma, após o seu exaurimento, nos exercícios financeiros seguintes.

Destarte, afasto a tese de que os Tribunais de Contas não podem se manifestar pela inconstitucionalidade da lei orçamentária por se tratar de norma temporária (TCEMG. Prestação de Contas Municipal n. 750.047. Relator: Auditor Edson Arger. Parecer do Cons. substituto Licurgo Mourão. Sessão: 21 ago. 2012).

Destarte, não há declaração de inconstitucionalidade por parte das cortes de contas, mas somente afastamento da norma, excluindo-se sua incidência no caso concreto, sob o fundamento de afronta à Constituição e prejudicialidade ao ordenamento jurídico vigente.

Verifica-se, portanto, que as cortes de contas são uníssonas em reverberar o entendimento esposado na Súmula n. 347 do STF e exercem o controle de constitucionalidade, na via difusa, no exercício de suas atribuições constitucionais.

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Por outro lado, o constitucionalista e Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes (2009, p. 284), em sua obra Curso de direito constitucional, enuncia o seguinte entendimento doutrinário acerca do tema:

É interessante notar que, entre nós, uma jurisprudência antiga abre ensejo a que o Tribunal de Contas deixe de aplicar uma lei a um caso sob o seu exame por estimá-la inconstitucional. Decerto que se trata de entendimento que está por ser reavaliado à luz da mais recente compreensão do papel do Judiciário no âmbito do controle de constitucionalidade.

De fato, a tese estampada na Súmula n. 347 do Pretório Excelso tem sido alvo de constantes ataques, no sentido de sua relativização ou mesmo de sua superação absoluta. Aliás, o leading case dessa nova sistemática de interpretação foi exarado em decisão liminar monocrática, da lavra do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no Mandado de Segurança n. 25.888 / DF24, na qual asseverou:

Não me impressiona o teor da Súmula n. 347 desta Corte, segundo o qual “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”. A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional n. 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional. No entanto, é preciso levar em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988. A urgência da pretensão cautelar também parece clara, diante das consequências de ordem econômica e política que serão suportadas pela impetrante caso tenha que cumprir imediatamente a decisão atacada. Tais fatores estão a indicar a necessidade da suspensão cautelar da decisão proferida pelo TCU, até o julgamento final deste mandado de segurança. Ante o exposto, defiro o pedido de medida liminar, para suspender os efeitos da decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União (Acórdão n. 39/2006) no processo TC n. 008.210/2004-7 (Relatório de Auditoria). (STF. Medida Cautelar em Mandado de Segurança n. 25.888 MC. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgado em 22 mar. 2006 e publicado no DJ de 29 mar. 2006)

24 Esse entendimento tem sido reiterado em diversas decisões em mandados de segurança nos quais se discute questão idêntica à destes autos: MS-ED 25.986, Rel. Min. Celso de Mello; MS-MC 26.783, Rel. Min. Ellen Gracie; MS 27.232, Rel. Min. Eros Grau; MS 27.743, Rel. Min. Cármen Lúcia; MS 28.745, Rel. Min. Ellen Gracie; MS 28.626, Rel. Min. Dias Toffoli; MS 27.796, Rel. Min. Carlos Britto; MS 28.897, Rel. Min. Cármen Lúcia; MS 26.410 MC, Rel. Min. Ricardo Lewandowisk; MS 28.252 MC, Rel. Min. Eros Grau; MS 26.783 MC, Rel. Min. Marco Aurélio; MS 27.796 MC, Rel. Min. Aires Brito; MS 29.468 MC, Rel. Min. Dias Toffoli e MS 29.123, Rel. Min. Gilmar Mendes.

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Cumpre observar que no caso posto à apreciação da Corte Suprema, o Tribunal de Contas da União declarou a inconstitucionalidade do art. 67 da Lei Federal n. 9.478/97 e do Decreto Federal n. 2.745/98, que determinam que os contratos celebrados pela Petrobrás, para aquisição de bens e serviços, serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, e determinou que a estatal procedesse a suas contratações em observância aos ditames da Lei Federal n. 8.666/93.

Assim, o Tribunal de Contas da União melindrou, com sua decisão, interesses econômicos de alta monta de uma megaestatal. Tem-se entendido que com a “pseudoquebra” do monopólio na exploração do petróleo, a Petrobrás passou a atuar em regime de livre concorrência com outras empresas, razão pela qual estaria enquadrada na exceção constitucional aplicável às estatais exploradoras de atividade econômica.

Sem entrar no mérito da questão, até porque foge ao objetivo do presente artigo, impõe-se indagar, tomando por base os argumentos aludidos na referida decisão monocrática, se o Supremo Tribunal Federal pode se arvorar como o único e exclusivo legitimado a desvelar a “real” interpretação válida da Constituição, a ser observada por todos?

O autor Gustavo Binenbojm (2010) leciona, com percuciência, que:

O Estado Democrático de Direito é a síntese histórica de duas ideias originariamente antagônicas: democracia e constitucionalismo. Com efeito, enquanto a ideia de democracia se funda na soberania popular, o constitucionalismo tem sua origem ligada à noção de limitação do Poder. A democracia constitucional, conquanto proclamada neste final de século como regime de governo ideal, vive sob o influxo de uma tensão latente entre a vontade majoritária e a vontade superior expressa na Constituição25.

O constitucionalista alemão Peter Härbele, preconiza não haver normas constitucionais puras, mas normas constitucionais interpretadas26 e assevera que:

[...] no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição27.

O jurista germânico reconhece que a última interpretação deve estar a cargo da jurisdição constitucional, sem excluir a necessária democratização do desvelar da Constituição, conforme se infere da seguinte passagem:

Subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação (com a ressalva da força normatizadora do voto minoritário). Se se quiser, tem-se aqui uma democratização da interpretação constitucional. Isso significa que a teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria

25 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional: Legitimidade democrática e instrumentos de realização. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 278.

26 Assevera o autor alemão que “a conformação da realidade da Constituição torna-se também parte da interpretação das normas constitucionais pertinentes a essa realidade”. (HÄRBELE, p. 24)

27 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional — A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. p. 13.

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democrática. Portanto, é impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas28.

Conforme já enunciado alhures, o sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, seja na via difusa ou concentrada, está a cargo do Poder Judiciário, cabendo ao STF a última palavra acerca da constitucionalidade de leis e atos normativos.

Entretanto, dos ensinamentos de Peter Häberle se dessume que a Constituição a todos pertence, fazendo-se necessário uma integração da realidade no processo de interpretação das normas constitucionais, mediante a ampliação do círculo de intérpretes, a fim de que a legitimidade do Direito decorra, com especial relevo, da efetiva participação dos cidadãos em sua formação. Assim, participar a Constituição é atribuição afeta aos cidadãos, órgãos estatais, potências públicas, sobretudo no processo de interpretação constitucional. Não se pode admitir, destarte, em um Estado que se autoproclama Democrático de Direito, que a verificação de adequação das normas à Constituição fique restrita aos órgãos judiciários.

Dessa forma, não se pode menoscabar a participação dos tribunais de contas nesse novo cenário de interpretação constitucional participativa e democrática. Sua “leitura” da Constituição não é feita a esmo, sem fundamentos, mas sim com espeque em profundo conhecimento das matérias que lhe são afetas.

Pode-se dizer, assim, que a competência dos tribunais de contas para afastarem a aplicabilidade de leis e atos normativos por ofensa à Constituição decorre, essencialmente, da sua tessitura constitucional e das relevantes atribuições que lhe foram conferidas, razão pela qual se sustenta que não lhe reconhecer tal prerrogativa afronta gravemente os corolários democráticos e republicanos.

Para dar cabo ao seu mister constitucional o Tribunal de Contas não pode deixar de proceder o exame de constitucionalidade das normas invocadas pelos administradores como legitimadoras dos atos praticados na gestão da coisa pública. Não se pode impor que o Tribunal simule não ter detectado qualquer descompasso normativo em face da Lei Maior, perpetuando a irregularidade porventura verificada, cabendo-lhe, sim, afastar a aplicação do dispositivo que destoi do arcabouço constitucional.

Daí se afirmar que não se pode ceder aos aparentes encantos da abstrativização do controle concreto de constitucionalidade e ao movimento perpetrado pela Corte Suprema do País no sentido de reduzir o exercício do controle difuso, buscando dar efeito erga omnes as suas decisões exaradas no âmbito do controle concreto.

4.2 Crítica à abstrativização do controle difuso de constitucionalidade

Os julgamentos que afastaram, liminarmente, a competência do Tribunal de Contas para realizar o controle concreto de constitucionalidade, remetem a uma tendência do STF de “abstrativização do controle difuso”, consoante alertado por parte da doutrina constitucionalista de escol, pela qual

28 HÄBERLE, Peter. Op. cit. p. 14.

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o STF busca transformar ou aproximar o controle difuso-concreto do controle abstrato, em grave afronta aos postulados de um Estado Democrático de Direito.

O autor Bernardo Gonçalves Fernandes, acerca do tema, adverte que:

[...] a tese da abstrativização do controle difuso-concreto reforça o controle concentrado e a objetivação que é adstrita ao mesmo, centralizando as decisões cada vez mais no STF, sob os auspícios de uma desmedida instrumentalidade e economias processuais, que acabam por deslegitimar o sistema de controle de constitucionalidade na via difusa de cunho democrático-discursivo, que se desenvolve por meio da crítica pública das decisões, minando, com isso, a base dos direitos fundamentais atrelada ao Estado Democrático de Direito29.

A tese da abstrativização ou objetivação do controle difuso de constitucionalidade mostra-se, a primeira vista, bastante sedutora e eficaz, em decorrência da funcionalidade que supostamente proporciona ao sistema de jurisdição constitucional, fulcrada na economia processual, da celeridade e da presteza na tutela jurisdicional constitucional, bem como da segurança jurídica em relação ao deslinde de determinada querela constitucional, ao obstaculizar diferentes decisões do Estado em face de uma mesma questão.

Dessa maneira, o STF tenciona ampliar, desmesuradamente, o alcance de suas decisões exaradas em sede de controle difuso de constitucionalidade, por intermédio da teoria da transcendência dos motivos determinantes, em nítida concentração do controle. Outrossim, tem limitado, com afinco, o espectro de atuação dos demais agentes de Poder no mister de salvaguardar a aplicação de normas conflitantes com a Constituição, conforme se pode verificar, além das decisões exaradas nos mandados de segurança acima arrolados, na Súmula Vinculante n. 10 do STF.

Tamanho é o afã do Supremo Tribunal Federal em se arvorar como único e exclusivo legitimado para “dizer” a Constituição, que a Suprema Corte, em aplicação do instituto da mutação constitucional, tem entendido que a regra estampada no art. 52, X da Carta Magna, que preceitua com clareza ofuscante competir privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, possui apenas o efeito declaratório, de publicizar a decisão da Corte Constitucional.

O jurista Gustavo Binenbojm advoga que:

[...] para que a Corte Constitucional não se torne uma instância autoritária de poder — compondo um governo de juízes — que dita, de forma monolítica, as interpretações oficiais a serem dadas aos diversos dispositivos da Constituição, é mister fomentar a ideia de cidadania constitucional, de forma a criar uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Todos têm o direito de participar ativamente do processo de revelação e definição da interpretação constitucional prevalecente, cabendo ao Tribunal Constitucional funcionar como instância última — mas não única — de tal processo. A maior ou menor autoridade da Corte Constitucional depende, necessariamente, de sua capacidade de estabelecer este diálogo com a sociedade e de gerar consenso, intelectual e moral, em torno de suas decisões30.

29 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 3. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 935.

30 BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 279.

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TRIBUNAIS DE CONTAS E A ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: RELATIVIZAÇÃO DA SÚMULA N. 347 DO STF

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O referido autor assevera, ainda, em passagem de relevância impar:

[...] Convém que o Supremo Tribunal Federal se utilize deste novo remédio [arguição de descumprimento de preceito fundamental] com prudência e parcimônia, a fim de não asfixiar, de forma prematura, a formação livre e espontânea da convicção dos juízes nas instâncias ordinárias. É preciso que esta competência seja exercida somente nos casos relevantes e no momento oportuno. Caso contrário, o Tribunal Constitucional deixará de ser o interprete último para se converter em intérprete único da Constituição, transformando-se numa instância autoritária e deslegitimada de Poder31. (grifo nosso)

Não se pode olvidar que a Constituição da República delimitou com esmero o âmbito de aplicação e os efeitos decorrentes do controle concentrado e do controle difuso, não sendo a princípio adequada a tentativa de o Supremo Tribunal Federal estabelecer que os efeitos do controle abstrato sejam extensivos ao controle concreto, de forma automática, sob o cariz de mutação constitucional.

Os juristas Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, em ácida crítica à abstrativização do controle difuso perpetrada pelo STF, sustentam que tal postura acarreta a inversão dos pressupostos da teoria da democracia moderna, nos seguintes termos:

[...] decisões do Supremo Tribunal Federal, como a da Reclamação sob comento, podem incorrer no equívoco de confundir as tarefas constituídas daquelas constituintes, o que traduziria, portanto, uma séria inversão dos pressupostos da teoria da democracia moderna a que se filia a Constituição da República. Volta-se à discussão acerca do direito enquanto paradigma, no seguinte ponto: qual é o papel do poder judiciário (ou da justiça constitucional?) É o de elaborar discursos de validade? É o de construir discursos de validade que “contenham” de antemão todas as hipóteses de aplicação? Mas, se assim fosse, a pergunta que sempre fica(ria) é: quais as condições de possibilidade que tem esse poder de Estado de ultrapassar esse limite tensionado e tensionante entre validade e aplicação? A discussão acerca da validade prescinde da aplicação?32

5 CONCLUSÃO

Os tribunais de contas não devem ficar alijados da seara de discussão de constitucionalidade das leis e atos normativos, importante prerrogativa para o exercício da função de controle, em que pesem os anseios de recrudescer o controle concentrado em detrimento do controle difuso ou concreto.

Com esteio nos sábios ensinamentos de Peter Häberle, reforça-se a ideia acerca da ilegitimidade da Corte Suprema de Justiça avocar para si e a priori toda a “verdade” constitucional, inclusive porque:

Muitos problemas e diversas questões referentes à Constituição material não chegam à Corte Constitucional, seja por falta de competência específica da própria Corte, seja pela falta de iniciativa de eventuais interessados. Assim, a Constituição material “subsiste” sem interpretação constitucional por parte do juiz33.

31 Ibidem, p. 280.32 STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A nova perspectiva do

Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional e limites da legitimidade da jurisdição constitucional. Disponível em: <http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&task=doc_details&gid=60&Itemid=40>. Acessado em: 17 set. 2012.

33 HÄRBELE, Peter. Op.cit. p. 42.

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Todavia, como se pode perceber, a tese de relativização do Enunciado de Súmula n. 347 do STF tem ganhado força, de modo que a tese inicialmente elaborada pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes tem sido reverberada em diversas medidas cautelares em mandado de segurança impetrados naquele Pretório Excelso.

A contrariedade da decisão do Supremo Tribunal em relação à decisão do Tribunal de Contas é consequência natural do debate democrático em torno da Constituição. As normas constitucionais não estão imunes a interpretações conflitantes e essa dialética hermenêutica é saudável ao desenvolvimento e fortalecimento do constitucionalismo cidadão no País. Não se desconhece que a última palavra em matéria constitucional cabe, sempre, ao órgão jurisdicional constitucional, mas não é a única.

Desse modo, ao afastar a aplicabilidade de uma lei ou ato normativo ao argumento de que estão em dissonância com o ordenamento constitucional vigente, o Tribunal de Contas atua como fiel guardião dos anseios da sociedade e do Estado Democrático de Direito, com vistas a evitar que inúmeros desmandos e malversações de dinheiro público se perpetuem sob a falaciosa proteção normativa, flagrantemente inconstitucional.

Nesse sentido, vejam-se os ensinamentos de Gustavo Binembojm:

[...] é preciso desmitificar a ideia de que ao Poder Judiciário esteja reservado um monopólio sobre o controle da constitucionalidade. Na verdade, todos os Poderes devem reverência à Constituição e, mais ainda, têm o dever de impedir, dentro de seu elenco de competências, qualquer atentado à Lei Fundamental.

Desse modo, ainda que a Súmula n. 347 do STF seja revogada e ainda que o legislador constituinte derivado proceda à necessária emenda da Constituição a fim de incluir o Presidente do Tribunal de Contas no rol de legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade (art. 103 da CR) ao STF, a prerrogativa da Corte de Contas exercer, no exercício de suas competências, o controle de constitucionalidade, pela via difusa, permanecerá.

De fato, a inclusão do Presidente do Tribunal de Contas permitiria que algumas questões típicas do controle externo, intimamente afetas às atribuições das cortes de contas, fossem diretamente submetidas ao crivo do Supremo Tribunal Federal a fim de serem apreciadas, na via concentrada, com efeitos erga omnes.

Todavia, essa providência não teria o condão de engessar a atuação cotidiana das cortes de contas, que ainda assim continuariam aptas a exercerem, no caso concreto, o controle de constitucionalidade, com efeitos inter partes e abrangência restrita aos julgamentos do próprio Tribunal.

Deve-se ter em mente, repita-se, que a retirada absoluta, se é que isso é possível, da prerrogativa de o Tribunal de Contas apreciar a constitucionalidade das leis ou atos normativos resultaria em grave enfraquecimento do controle da gestão pública, competindo-lhe, também, velar pela primazia da Constituição.

Portanto, aos tribunais de contas deve ser garantida a legitimação para, no desempenho de suas elevadas competências constitucionais, velar pela conformidade constitucional dos atos do poder público.

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Abstract: The present article aims to show the importance of the Control of Constitutionality by the Court of Accounts in the diffused control. The chosen subject has been treated in many other occasions and is the object of the STF’s Statement no. 347 which provides that the Court of Accounts, in the performance of its duties, can assess the constitutionality of laws and acts of the government. However, the Minister Gilmar Ferreira Mendes, draw up in the MS n. 25.888/DF his disagreement about it and started a movement to alter or even overcome the alluded statement. We sought through this thesis explain that cutting out this prerogative would represent a severe regression and a total mismatch with the direction of today’s scenario.

Keywords: “Supra-legality”. Constitutional supremacy. Constitutionality control. Diffuse control. Concentrated control. Audit Courts. Judicial precedent n. 347/STF. Constitutional jurisdiction. Diffuse control “abstraction”.