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TRAVESSIAS DIFÍCEIS, DIVISÕES DIVERTIDAS E QUADRADOS MÁGICOS: EVOLUÇÃO HISTÓRICA DE TRÊS RECREAÇÕES MATEMÁTICAS 1 Josinalva Estacio Menezes UFRPE/UFRN [email protected] Os jogos em geral sempre estiveram ligados à vida social, como à religião, às artes e outras manifestações culturais do homem. Entre suas várias funções têm sido sempre instrumentos de aprendizagem; vêm a ser também uma forma de linguagem usada para a transmissão das conquistas da sociedade em vários campos do conhecimento, pois ao ensinarem o jogo, estão ensinando a própria vida. Alguns jogos, tais como o cabo-de-guerra, o xadrez e os wargames são considerados o espelho da cultura e da sociedade. Os jogos de estratégia ou matemáticos, que se incluem entre as recreações matemáticas, se constituem num tema de forte interesse para os pesquisadores da Educação Matemática. Nos dias de hoje, existem registros sobre sua existência, discussão e tratamento matemático desde o século XIV. Ênfase é dada, também hoje, ao estudo da História da Matemática, com indicações para sua inclusão nos currículos de matemática das escolas em geral. No que tange aos jogos, no entanto, as divulgações históricas mais comuns têm-se limitado à propagação de algumas lendas, evidências históricas da existência de determinados jogos em alguns locais (SEABRA, 1979) e a uma discussão matemática mais profunda sobre algumas recreações específicas (LUCAS, 1882). Assim, escolhemos como tema para o nosso trabalho foi a evolução histórica do tratamento matemático dado a três recreações matemáticas. A razão de tal escolha vai desde as experiências pessoais e profissionais do dia a dia – onde os questionamentos mais comuns sobre os que tomam contato com a matemática levam à idéia de que as circunstâncias nas quais o processo de ensino e aprendizagem de matemática ocorre leva o aluno a conhecer o lado mais penoso e obscuro da 1 Agradecemos ao Professor Doutor John Andrew Fossa pela orientação dada neste trabalho.

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TRAVESSIAS DIFÍCEIS, DIVISÕES DIVERTIDAS E QUADRADOS

MÁGICOS: EVOLUÇÃO HISTÓRICA DE TRÊS RECREAÇÕES MATEMÁTICAS1

Josinalva Estacio Menezes

UFRPE/UFRN

[email protected]

Os jogos em geral sempre estiveram ligados à vida social, como à religião,

às artes e outras manifestações culturais do homem. Entre suas várias funções têm sido

sempre instrumentos de aprendizagem; vêm a ser também uma forma de linguagem

usada para a transmissão das conquistas da sociedade em vários campos do

conhecimento, pois ao ensinarem o jogo, estão ensinando a própria vida. Alguns jogos,

tais como o cabo-de-guerra, o xadrez e os wargames são considerados o espelho da

cultura e da sociedade.

Os jogos de estratégia ou matemáticos, que se incluem entre as recreações

matemáticas, se constituem num tema de forte interesse para os pesquisadores da

Educação Matemática. Nos dias de hoje, existem registros sobre sua existência,

discussão e tratamento matemático desde o século XIV. Ênfase é dada, também hoje, ao

estudo da História da Matemática, com indicações para sua inclusão nos currículos de

matemática das escolas em geral. No que tange aos jogos, no entanto, as divulgações

históricas mais comuns têm-se limitado à propagação de algumas lendas, evidências

históricas da existência de determinados jogos em alguns locais (SEABRA, 1979) e a

uma discussão matemática mais profunda sobre algumas recreações específicas

(LUCAS, 1882). Assim, escolhemos como tema para o nosso trabalho foi a evolução

histórica do tratamento matemático dado a três recreações matemáticas. A razão de tal

escolha vai desde as experiências pessoais e profissionais do dia a dia – onde os

questionamentos mais comuns sobre os que tomam contato com a matemática levam à

idéia de que as circunstâncias nas quais o processo de ensino e aprendizagem de

matemática ocorre leva o aluno a conhecer o lado mais penoso e obscuro da

1 Agradecemos ao Professor Doutor John Andrew Fossa pela orientação dada neste trabalho.

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matemática, passando pela inexistência de textos sobre o tema escolhido; encontramos

coleções de jogos organizadas de acordo com diversos critérios (desafio, cronologia,

assunto, tratado de um único ou alguns jogos, etc.), de textos escritos por matemáticos

ou não, sobre o que podemos chamar de “o lado lúdico da matemática”, inclusive textos

em prosa, passando também pela fascinação exercida pelas lendas e pelo mistério de

que se revestem as recreações matemáticas - motivo de encantamento e interesse por

parte dos que tomam contato com estes elementos narrativos, encantamento que parece

ser o que impulsiona a produção das recreações matemáticas, sempre presente nos

depoimentos dos autores em seus prefácios ou introduções das publicações até as razões

acadêmicas: o tema está relacionado a duas áreas de interesses do atual contexto da

Educação Matemática: a História da Matemática e os jogos.

Neste trabalho, realizamos uma pesquisa com mais efetiva sobre a história

de algumas recreações matemáticas, a partir dos textos, tanto reais quanto virtuais,

acessados sobre o assunto. Hoje, existem várias terminologias para o termo recreações

matemáticas, o qual não parece se restringir a uma época ou a um local. Desde as

primeiras publicações até o século passado, porém, notamos o uso do termo jogo

matemático ou recreação matemática. Seria, contudo, impossível abranger todos as

recreações matemáticas que a humanidade já produziu. As causas vão desde o extravio

ou destruição de material antigo, que possa comprovar as origens, passando pelo acesso

a todas as publicações existentes, nem sempre em locais abertos ao público ou

acessíveis pela pesquisadora, até a exaustão: ainda que conseguíssemos catalogar todos,

a lista não estaria esgotada, pois a cada dia novas recreações podem surgir, isso sem

considerar também suas mais diversas formas de apresentação. Existem as poesias,

desafios, pensamentos, estórias e várias manifestações artísticas, o que torna ainda mais

abrangente seu âmbito. Assim, delimitamos nosso estudo a três recreações matemáticas:

As travessias difíceis, as divisões divertidas e os quadrados mágicos. Para nosso

trabalho utilizamos a pesquisa bibliográfica. Para isso, buscamos textos impressos,

periódicos especializados, e internet, com os textos virtuais e livros on-line que são

disponibilizados para os “internautas”2. Assim, nossa questão de pesquisa foi a seguinte:

ao longo do estudo das recreações matemáticas em questão, a evolução do

conhecimento matemático, as idéias de rigor na construção das teorias, e as novas

teorias que surgem tendem a se refletir no tratamento dado à discussão e na busca de

solução das versões dos problemas recreativos?

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Acreditamos que esse trabalho pode vir a ser uma contribuição que

permitirá, além do esboço de uma evolução histórica de algumas recreações

matemáticas, aprofundando o que se sabe sobre o tema, reforçar as razões para utilizar

recreações matemáticas no processo de ensino e aprendizagem, acrescentar mais

elementos aos já existentes para a melhor compreensão de conceitos e estruturas dos

componentes da matemática, tais como escolha de soluções e de estratégias vitoriosas,

vir a auxiliar nos elementos que poderão ajudar na motivação para a busca do

conhecimento matemático, o que poderá se refletir no conjunto de contribuições às já

existentes para a melhoria do processo de ensino-aprendizagem da matemática.

De um modo geral, as recreações matemáticas têm sido produzidas por

pessoas que lidam profissionalmente com matemática no seu dia-a-dia, pesquisadores,

professores ou estudiosos de matemática que produzem novos conhecimentos ou novas

teorias matemáticas. Os autores que discutem as recreações e, portanto, as diferentes

versões dos problemas, são apresentadas em ordem cronológica, para facilitar a análise

da evolução do tratamento matemático dado à busca da solução das mesmas.

Procuramos manter o enunciado original dos problemas como foram historicamente

formulados, seguidos de uma tradução livre ou acessada nas consultas bibliográficas.

A primeira recreação discutida foi intitulada travessias difíceis, que

correspondem aos problemas originais constantes na obra de Alcuíno de York e suas

variações e ampliações ao longo do tempo.

2 Termo atual e comumente utilizado referindo-se a todos os que utilizam ou “navegam” na Internet.

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Desenho de Alcuíno de York.3

Pesquisamos alguns dados de Alcuíno, a quem é atribuída a autoria da

primeira versão do problema das travessias, intitulada o problema do lobo, a cabra e a

couve: “Homo quidam debebat ultra flavium transferre lupum, capram, et fasciculum

cauli. Et non potuit aliam navem invenire, nisi quae duos tantum ex ipsis ferre valebat.

Praeceptum itaque ei fuerat ut omnia haec ultra illaesa omnino transferret. Dicat, qui

potest, quomodo eis illaesis transire potuit.”, cuja solução é “Simili namque tenore

ducerem prius capram et dimitterem foris lupum et caulum. Tum deinde venirem,

lupumque transferrem: lupoque foris misso capram navi receptam ultra reducerem;

capramque foris missam caulum transveherem ultra; atque iterum remigassem,

capramque assumptam ultra duxissem. Sicque faciendo facta erit remigatio salubris,

absque voragine lacerationis.”4 o enunciado original do problema e as formas de

discussão e interpretações encontradas à luz de teorias posteriores. Em seguida,

mostramos a versão do problema da travessia do casal e dois filhos, também proposta

3 O desenho de Alcuíno de York foi capturado no site http://www.malhatlantica.pt/mathis/Europa/Medieval/Alcuin/Alcuino.htm ...em 16/02/2003 4 Uma tradução livre para o enunciado seria “Um homem se encontra na margem de um rio com um lobo, uma cabra e uma couve. Para atravessar o rio existe apenas um barco tão pequeno, que cabe apenas o homem e um de seus pertences. Pergunta-se como pode atravessar em segurança o homem junto com seus pertences”. E para a solução seria: “Primeiro ele atravessa com a cabra, deixando a couve e o lobo. Depois, volta para o outro lado do rio e atravessa com o lobo, trazendo de volta a cabra para a outra margem; deixando lá a cabra, leva a couve para o outro lado do rio, e volta para buscar a cabra que havia deixado. Assim, o lobo não ficaria sozinho com a cabra, nem esta com a couve. Feito isso, ele pode continuar a travessia em segurança.”. O enunciado e a solução em latim deste e do problema seguinte estão disponíveis no site: <http://www.gmu.edu/departments/fld/CLASSICS/alcuin.propos.html>. Acessado em 27/06/2002.

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por Alcuíno de York, com soluções e discussões constantes em obras posteriores e

algumas variações, correspondentes a duas cargas maiores (adultos) e duas cargas

menores (contendo crianças, animais ou pertences). O quarto tópico correspondeu à

discussão do problema do pelotão e os nativos, parecendo uma generalização do

problema anterior, onde temos duas cargas menores e várias cargas maiores. No quinto

tópico, tivemos a quarta versão, com diversas variações, corresponde ao problema dos

três maridos ciumentos, onde temos dois grupos de três pessoas, havendo algumas

incompatibilidades quanto a quais duas pessoas podem ficar juntas no barco ou na

mesma margem, apresentando diferentes tipos de esquemas para interpretar a solução.

No sexto tópico discutimos o problema da travessia dos quatro casais, nas mesmas

condições do problema anterior, mostrado ser insolúvel e a mostra de um erro histórico

de Tartaglia, o qual afirmou haver solução. No sétimo tópico apresentamos a versão do

problema da travessia dos cinco casais, generalizado para o problema de qualquer

quantidade de casais, cabendo no barco uma quantidade menor de casais por viagem.

Em seguida, num subtópico, tratamos de duas versões curiosas: numa delas foi

introduzida uma variação na qual havia um marido bígamo, em vista de um dos

estudiosos ter vivido na Algéria, onde a bigamia era válida por fatores culturais, e na

outra variação havia uma ilha entre uma margem e outra do rio. Depois, no oitavo

tópico, veio a versão intitulada o roubo do tesouro, onde havia duas pessoas pesando

tanto quanto a terceira e as cargas, em condições de peso estabelecidas, e um limite de

transporte entre uma viagem e outra. Finalmente, nos dois últimos tópicos,

apresentaremos alguns problemas que surgiram posteriormente e que parecem ter sido

sugeridos pelos problemas das travessias e alguns dados de variações problema pelo

mundo.

Vimos que de uma maneira geral, todos os problemas de travessias que

foram discutidos neste capítulo puderam ser resolvidos usando lógica. Com a evolução

das teorias matemáticas e a generalização de algumas versões, surgiram esquemas para

explicar as travessias, contendo algumas ou todas as soluções, a exemplo de AGOSTINI

(1987).

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Esquema de Agostini.

No caso do problema do lobo, a cabra e a couve, a primeira versão de

Alcuíno apresentou apenas uma solução mas, sendo estas em número de duas, surgiram

os esquemas posteriores que vieram a contemplar todas as soluções. Apenas esta versão

e a dos três maridos ciumentos tiveram apresentadas soluções mais matemáticas; as

outras apenas soluções lógicas.

As soluções discursivas apenas descrevem as etapas, embora parecem ser

as primeiras apresentadas pelos mais antigos autores, mas as soluções matemáticas,

surgidas mais tarde, dão uma interpretação mais enriquecedora no sentido de melhorar a

visualização das soluções apresentadas, embora no caso da representação de

STEWART (1992), alguns elementos correspondentes a alguns vértices do cubo são

inúteis, uma vez que não fazem parte da trajetória referente às soluções do problema.

Em suas exposições, os autores dessas interpretações matemáticas levam à

idéia de utilizá-las para tornar mais fácil compreender a solução, embora os esquemas

que utilizam simplesmente símbolos para descreverem cada margem dos rios e os que

devem atravessá-lo, etapa por etapa, parecem ser de mais fácil compreensão,

principalmente para os não matemáticos. Segue a representação de Stewart:

y

z (0,1,1) (1,1,1) (0,0,1) (1,0,1) (0,1,0) (1,1,0)

(0,0,0) (1,0,0) x

Representação de Stewart.

Por outro lado, as leituras que temos feito a respeito da busca de solução

para problemas recreativos têm mostrado uma tendência a buscar a solução mais geral

possível, o que se repete no caso das travessias; neste aspecto, os modelos matemáticos

mostrados parecem desempenhar um papel efetivo de interpretar essa generalização.

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Devemos notar aí que as teorias matemáticas envolvidas são consolidadas mais tarde,

em relação à época em que o problema foi criado, o que parece fazer com que a

generalização venha a ocorrer depois; cada teoria nova desenvolvida ou teoria existente

ampliada aumenta as possibilidades de novas soluções para os problemas existentes, e

novas interpretações para serem acrescidas segundo outras diferentes abordagens.

O capítulo seguinte foi dedicado às divisões divertidas, dividido em três

tópicos.

Capa do livro de Jean Leurechon/Henry van Etten intitulado Mathematicall

Recreations.

No primeiro tópico discutimos os problemas com recipientes vazios, meios e

cheios, juntamente com suas variações e versões. Já encontrado na obra de Alcuíno,

datada do século IX, esse problema versa sobre dividir uma quantidade (correspondente

a um múltiplo de três) de recipientes por um número de pessoas, sendo que cada terça

parte do total corresponde a recipientes vazios, cheios e pela metade (meios) de algum

líquido. O que se pede é que cada pessoa receba simultaneamente a mesma quantidade

de recipientes e a mesma quantidade de líquido. No tópico seguinte discutimos o que

chamamos de problemas com M. M. C. Consideramos interessante esclarecer que

chamamos assim a esses problemas porque hoje vemos claramente que bastaria usar o

M. M. C. de vários números dados no problema para encontrar a solução do problema,

embora nem sempre se fez uso desse mecanismo ao longo do tempo. Finalmente, no

último tópico, discutimos os problemas para obter medidas desejadas para com

medidas diferentes, problema que consiste, de modo geral, em obter parte de uma

quantidade total de certos líquidos, sem lançar mão de recipientes que correspondem a

uma unidade de capacidade em questão.

Sabemos que por volta da Idade Média, predominava mais fortemente no

contexto da Matemática as idéias da Aritmética e da Geometria Euclidiana. Assim um

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tipo de problema que se destacou na obra de Alcuíno corresponde aos problemas de

divisões em diversas formas, presente até hoje até em livros didáticos, e que atravessou

os tempos. Escolhemos então três tipos de problemas de divisão que têm sido até hoje

bastante discutidos, e fartamente referenciado em obras antigas e atuais.

Pudemos observar que, nos caso das últimas versões que aparecem,

correspondentes a problemas propostos em livros sobre recreações matemáticas, as

soluções são expressas na forma de tabelas, onde apresenta-se todas as soluções

possíveis. Labosne, em versão corrigida da obra de Bachet, é que apresentou uma

solução geral, a que chamou de demonstração com idéias algébricas.

Vimos assim que os problemas que discutimos neste capítulo são

problemas simples que requerem aplicações de idéias matemáticas também simples e

raciocínio lógico. Atuais revistas de passatempos – como as do grupo Coquetel – ou

revistas que contém colunas de quebra-cabeças apresentam ocasionalmente problemas

como esse. Esses fatos nos dão o testemunho do fascínio que estes problemas sempre

exerceram, e ainda exercem sobre os leitores nos dias de hoje.

A terceira recreação discutida é intitulada quadrados mágicos. Por causa da

farta literatura sobre o assunto, trazendo muitas informações importantes, o capítulo

ficou dividido em noves tópicos alguns dos quais contêm subtópicos.

O lo shu

O Melancholia

No primeiro tópico, apresentamos as definições básicas sobre os quadrados

mágicos; depois, os primeiros dados históricos sobre os quadrados mágicos, e sobre o

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mistério e a magia que os envolvem, principalmente ao lo shu e o Melancholia; após

isso, no terceiro tópico, as principais classificações dos quadrados mágicos referentes

aos elementos básicos que os compõem, indicando exemplos ao longo do capítulo.

No tópico seguinte, apresentamos e discutimos os métodos de construção

dos quadrados mágicos de ordem par (duplamente pares e simplesmente pares) e ímpar,

criados por vários estudiosos e que encontramos na bibliografia consultada, com

exemplos de construção e as observações que consideramos pertinentes. No próximo

subtópico, destacamos os métodos de construção de quadrados mágicos de MELLO

(1957, 1959). As razões de tal destaque são duas: primeiramente, o autor é brasileiro e

depois, tendo publicado uma obra manuscrita, é provável que poucos estudiosos dos

quadrados mágicos tenham tido acesso às obras, em uma das quais o autor apresentou

dois métodos gerais para construir quadrados mágicos de qualquer ordem, o que ainda é

tido como desconhecido na literatura sobre o assunto; depois, apresentamos outras

construções para quadrados mágicos. Como último subtópico, apresentamos os

quadrados mágicos geométricos, como quadrados mágicos mais curiosos que serão

tratados especialmente quanto aos métodos de construção. Assim, destacamos os

métodos para construir quadrados mágicos geométricos, chamados método exponencial,

método exponencial de La Hereian, método da razão e método fatorial. No dois tópicos

seguintes, apresentamos alguns quadrados mágicos especiais de estudiosos notáveis e

alguns dados que relacionam quadrados mágicos e arte.

Passamos então a discutir, no sétimo tópico, algumas informações referentes

a teorias matemáticas existentes no contexto dos quadrados mágicos que os associam

com outras teorias, as investigações sobre o possível número de quadrados mágicos de

uma ordem dada, as propriedades dos quadrados mágicos, uma teoria algébrica para os

quadrados mágicos baseada na álgebra booleana. Finalmente, discutimos nos dois

últimos tópicos, algumas figuras mágicas e algumas aplicações de quadrados mágicos a

problemas.

Em matéria de fascínio, poucas recreações têm sido tão amplamente discutidas e

durante tanto tempo quanto os quadrados mágicos, que são a nossa próxima recreação

apresentada. Considerada milenar, até a atualidade são criadas novas abordagens para

seu estudo à luz de diferentes teorias, e descobertas também fascinantes. Encontramos

na literatura sobre o assunto tratado, ensaios e livros datados do século XVII.

Apesar da indiscutível racionalidade que permeia o contexto matemático, a

mente humana ainda é capaz de pasmar com algumas leis do pensamento formal que de

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alguma maneira acabam levando-o a atribuir poderes mágicos a números e figuras

geométricas. No caso dos quadrados mágicos, o homem é às vezes levado a acreditar no

misticismo. Segundo SCHUBERT (1903, p. 41), o autor de um pequeno artigo sobre

quadrados mágicos na English Cyclopaedia (vol III, p. 415), presumivelmente De

Morgan, afirmou: Though the question of magic squares be in itself of no use, yet it belongs to

a class of problems which call into action a beneficial species of

investigation. Without laying down any rules for their construction, we shall

content ourselves with destroying their magic quality, and showing that the

non-existence of such squares would be much more surprising than their

existence.5

A reflexão do autor deste artigo reflete bem essa perplexidade a respeito dos

fatos surpreendentes que são constatados freqüentemente no contexto das recreações

matemáticas, e em particular os quadrados mágicos. No entanto, matemáticos franceses

dos últimos séculos6 como OZANAM (1778) têm feito severas críticas e

escarnecimentos a essas crenças.

A origem dos quadrados mágicos tem sido apresentada nos textos sobre

recreações matemáticas como uma mistura de lenda, hipóteses e magia. Segundo

OZANAM (1778, p 217), deu-se a esses quadrados o nome de mágicos, porque os

antigos lhes atribuíam grandes virtudes, e que essa disposição de números formava a

base e o princípio de vários de seus talismãs. De acordo com Cornelius Agrippa(1486-

1535), o quadrado de uma casa cheio pela unidade, era o símbolo da divindade, por

causa da unidade de deus e de sua e imutabilidade; pois eles observavam que esse

quadrado era um único e imutável pela natureza própria, o produto da unidade por ela

mesma sendo sempre a própria unidade. O quadrado de ordem dois era o símbolo da

matéria imperfeita, tanto por causa dos quatro elementos, quanto pela impossibilidade

de arranjar esse quadrado magicamente. O quadrado de nove casas era consagrado a

Saturno; o de 16, a Júpiter; tinha se dedicado a Marte o de vinte e cinco; ao Sol o de 36;

a Vênus, o de 49; a Mercúrio o de 64; e enfim à Lua, ou de 81, ou de 9 de lado. Falharia

sem dúvida ter o espírito bem inclinado a visões, por encontrar alguma relação entre os 5 Embora a própria questão dos quadrados mágicos não tenha uso, ainda pertence a uma classe de problemas que levam a ações em espécies benéficas de investigação. Sem colocar quaisquer regras para sua construção, nós devemos nos contentar em destruir sua qualidade mágica, e mostrar que a não-existência de tais quadrados deveria ser mais surpreendente que sua existência.

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planetas e suas disposições de números; mais tal era o tom da filosofia misteriosa dos

Jambliques, dos Porfírios, e de seus discípulos.7

RIOLLOT (1907, intr.), apresentou a suposição de que estes figuras seriam

tão antigas quanto o próprio jogo de xadrez sobre o qual os antigos se debruçavam, com

tanta habilidade, os peões e os dados, em seus jogos de tabuleiro favoritos. Sua

argumentação é que os exercícios do Chaturanga na Índia, do Ludus Calculorum nos

Romamos, do Shathanj na Idade Média e outros jogos de mesmo tipo se fariam

necessários, não somente à localização dos casos e a notação dos espaços, mas também

à prática da operação de fazer jogar constantemente os números no mesmo tempo que

os peões sobre o tabuleiro de xadrez. De fato, os antigos observavam rapidamente a

magia especial de certos números agrupados sobre o famoso quadro da Tábua de

Pitágoras e, enquanto os números prazeirosos a seus olhos de virtude, os mais estranhos,

ele atribuiriam, aos quadrados mágicos, qualidades também para eles, sem dúvida, as

qualidades maravilhosas. Os quadrados mágicos, que eram associados a uma forma de

magia antiga chamada Gematria, eram também construídos de foram que muito poucos

tinham acesso; eram interpretadas pelos divinos e os fazedores de talismãs, alguns dos

quais acreditava-se terem tais quadrados poderes de proteção contra a peste; sobre eles

se imbricam dos inverossímeis sistemas de astrologia, e eles se transmitem também,

envoltos de mistério, desde a Idade Média.

As menções mais antigas aos quadrados mágicos encontradas na literatura

diziam respeito às crenças e lendas que o envolviam, ao mistério e a magia em torno de

seus supostos poderes. Além disso, havia associações com os planetas conhecidos por

volta do século XV, mostrados em OZANAM (1778), e associações do lo shu com os

elementos básicos que dão forma às coisas (metal, fogo, madeira, água e terra), bem

como com a roda da vida Tibetana, mostradas em AGOSTINI (1987). Essas idéias

remetem às antigas idéias gregas de harmonia universal, que por sua vez estão

relacionadas à Geometria Sagrada vigente na Antiguidade.

Os quadrados mágicos que têm surgido no cenário das recreações

matemáticas parecem ter sua origem como um misto de descobertas maravilhosas e

processos de construção. Assim, as primeiras inferências matemáticas apresentadas 6 Vemos em OZANAM (1778) e KRAITCHIK (1930) comentários realmente depreciativos sobre a crença nos poderes sobrenaturais dos números, considerados ser metafísicos. 7 Ozanam mostrava em seus comentários um certo desdém pelos aspectos místicos das recreações ou produções da natureza. Isso foi manifestado em um comentário feito na obra, logo após as considerações:

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sobre os quadrados mágicos parecem corresponder a propriedades aritméticas

descobertas no estudo de quadrados construídos e métodos de construção.

Vimos que em torno do século XIV começou a difusão dos métodos para

construir quadrados mágicos. Iniciamos pelos quadrados mágicos de ordem ímpar.

O primeiro método para construir quadrados mágicos de ordem ímpar foi

atribuído a Moscopule, citado por OZANAM (1778). Tal método, junto com o de De La

Loubère, trazido dos hindus, são descritivos e ilustram com um exemplo, métodos

gerais; mesmo no século passado, ainda se descrevem métodos com esses, como o

chamado por BOLT (1995) de regra NE. Na obra de BACHET (1905), cuja primeira

edição data de 1612, vimos duas novidades: a primeira é que apareceram os esquemas

auxiliares dos processos de construção que ajudam a visualizar melhor, favorecendo

uma melhor compreensão, e a outra é que o autor propôs uma regra de construção onde

fez uma construção abstrata auxiliar para generalizar o método, embora ilustrasse com

um exemplo particular. No Século XVII veio a surgir um método com elementos

algébricos, representando a ordem do quadrados, o número de elementos, e o termo

médio respectivamente por n, n2, e (n2 + 1)/2 , citado por MIKAMI (1974).

Quanto aos quadrados mágicos de ordem par, os métodos de construção

tendem a acompanhar a evolução dos anteriores. Em 1840, Gokai Ampon apresentou

um método de construção de quadrados mágicos onde apresentou uma distribuição geral

das casas do quadrado mágico usando alguns esquemas de distribuição dos números

pelas casas para ajudar na visualização do processo, e também variáveis, portanto

lançando mão de elementos algébricos. Mello também utilizou diversos esquemas

gráficos para facilitar a visualização dos processos de construção de quadrados mágicos

de ordem par.

Para a construção de quadrados mágicos geométricos, usam-se métodos

exponenciais, remontando algum deles provavelmente a antes do século XVII. Outro

método usado na construção de quadrados mágicos geométricos é o fatorial, com mais

um elemento da Análise Combinatória.

No século passado, MELLO (1957 e 1959) desenvolveu um método que ele

chama de “absolutamente geral”, usando a teoria dos determinantes das matrizes.

Quanto a uma teoria matemática para os quadrados mágicos,

matematicamente, os estudos para construir uma teoria matemática geral iniciaram a

segundo ele, os matemáticos modernos, divertem-se com esses arranjos, que exigem um espírito de combinação bastante estendido, não lhes dando mais importância do que eles merecem.

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partir do século XVI (secção 4.7). A teoria em questão é auxiliada por elementos

algébricos, como variáveis e expressões algébricas para exprimir dados numéricos

gerais, e esquemas gráficos para facilitar a visualização de algumas informações.

A partir do início do século passado, vimos um ensaio de PROSPER DE

LAFFITE (1904) sobre quadrados mágicos, o qual já citava um tratado mais completo

da autoria de Violle. Tal teoria já contemplava um maior rigor matemático e expressa

alguns teoremas e os respectivos corolários que enunciamos, mas não fizemos uma

demonstração detalhada, pois não foi nosso propósito nesse trabalho.

Vimos ainda que os quadrados mágicos têm sido associados de formas

interessantes com outras teorias matemáticas que foram surgindo com o passar do

tempo. Assim, RIOLLOT (1907) associou o problema de arranjar os primeiros n2

números naturais em configuração mágica à Aritmética de Grandeza e à Aritmética de

Posição. PAPPAS (1989) associou um quadrado mágico de ordem 3 à Seqüência de

Fibonacci, formando um quadrado com nove números da referida seqüência a partir do

terceiro. ANDREWS (1960) associou a construção de quadrados e retângulos mágicos à

Teoria ou método das diferenças complementares.

Existe ainda uma teoria algébrica para os quadrados mágicos baseada na

álgebra booleana, mostrada por KOLGOMOROV (2003).

Com o passar do tempo, surgiram novas configurações chamadas figuras

mágicas, para as quais não foram estabelecidos métodos de construção, e que têm

assumido diversas formas geométricas, ou e combinações destas. Finalmente, existem

problemas em aberto, tais como o problema de encontrar o número de quadrados

possíveis de serem formados de uma ordem dada. Como esse número aumenta

vertiginosamente com o aumento do número da ordem, são necessários aparelhos

simples de cálculos bastante sofisticados com capacidade de expressar quantidades

muito grandes, para fazer os referidos cálculos. Acompanhando a tendência, temos a

possibilidade que, as novas teorias que ainda estão por vir apresentem alguma

contribuição desse e de outros problemas igualmente encantadores e interessantes, no

contexto tão amplo das recreações matemáticas.

Concluindo, com esta pesquisa mostramos que, ao longo do estudo das

recreações matemáticas em questão, a evolução do conhecimento matemático, as idéias

de rigor na construção das teorias, e as novas teorias que surgem tendem a se refletir no

tratamento dado à discussão e na busca de solução das versões dos problemas

recreativos.

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PALAVRAS-CHAVE: jogos matemáticos; história da matemática, recreações

matemáticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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