trajetória de martim

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5/11/2018 trajetriademartim-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/trajetoria-de-martim 1/10 1 MARTIM CORREIA VASQUES: FIDALGO DE SUA MAGESTADE, MESTRE DE CAMPO E GOVERNADOR DO RIO DE JANEIRO (XVII-XVIII). 1 Denise Vieira Demetrio Doutoranda – UFF e-mail: [email protected] Martim Correia Vasques (1627-1710), natural da capitania do Rio de Janeiro, descende do tronco da família Sá fixada na capitania cuja trajetória na política local pode ser  percebida desde a conquista e fundação da cidade no século XVI. Em sua trajetória política Martim fora cogitado para assumir o governo interino do Rio em três ocasiões, sendo que em duas exerceu o cargo efetivamente (1697-1700 e 1704-1705). As fontes que embasam este texto dividem-se entre os documentos do conselho ultramarino (coleção resgate) e registros eclesiásticos (batismos, casamentos, óbitos e testamentos) das freguesias do recôncavo da Guanabara; a partir do cruzamento delas e sob a perspectiva da micro-história o objetivo desta comunicação é descortinar não só o processo de sua ascensão como a de seus filhos (Tomé, Salvador, Manoel e Martim), cujo sobrenome Correia Vasques ou Correia de Sá, figuram tanto na ocupação dos “cargos honrosos da república” quanto do recôncavo da capitania com suas famílias, engenhos e escravos, tornando-se expoentes do conceito de potentado local. Palavras-chave: poder, família, potentados, escravos. Martim Correia Vasques: ascendência e descendência. Gonçalo Correia (da Costa) casou-se em primeiras núpcias com D. Felipa de Sá, dando origem à família Correia de Sá, mais tarde Correia de Sá e Benevides. Desta união descende a geração a casa dos viscondes de Asseca, em Portugal. Em segundas núpcias (por volta de 1580) casou Gonçalo Correia com Maria Ramires. Deste matrimônio vieram para o Brasil os dois filhos: o capitão Manuel Correia e o capitão Duarte Correia Vasqueanes. Da união de Manuel Correia com Maria de Alvarenga nasceu o sargento-mor Martinho (ou Martim) Correia Vasques (1627-1710) que teve, por sua vez, numerosa prole: duas filhas naturais com Joana da Fonseca e catorze com D. Guiomar de Brito, de Lisboa, filha do capitão Luís de Brito e de D. Guiomar de Brito. 2 Ainda ignoramos a data deste casamento. 1 Pesquisa financiada com bolsa de doutorado pelo CNPq (2010-2014).

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MARTIM CORREIA VASQUES: FIDALGO DE SUA

MAGESTADE, MESTRE DE CAMPO E GOVERNADOR DO

RIO DE JANEIRO (XVII-XVIII).1

Denise Vieira DemetrioDoutoranda – UFF

e-mail: [email protected]

Martim Correia Vasques (1627-1710), natural da capitania do Rio de Janeiro,

descende do tronco da família Sá fixada na capitania cuja trajetória na política local pode ser 

 percebida desde a conquista e fundação da cidade no século XVI. Em sua trajetória política

Martim fora cogitado para assumir o governo interino do Rio em três ocasiões, sendo que em

duas exerceu o cargo efetivamente (1697-1700 e 1704-1705). As fontes que embasam este

texto dividem-se entre os documentos do conselho ultramarino (coleção resgate) e registros

eclesiásticos (batismos, casamentos, óbitos e testamentos) das freguesias do recôncavo da

Guanabara; a partir do cruzamento delas e sob a perspectiva da micro-história o objetivo desta

comunicação é descortinar não só o processo de sua ascensão como a de seus filhos (Tomé,

Salvador, Manoel e Martim), cujo sobrenome Correia Vasques ou Correia de Sá, figuram

tanto na ocupação dos “cargos honrosos da república” quanto do recôncavo da capitania com

suas famílias, engenhos e escravos, tornando-se expoentes do conceito de potentado local.

Palavras-chave: poder, família, potentados, escravos.

Martim Correia Vasques: ascendência e descendência.

Gonçalo Correia (da Costa) casou-se em primeiras núpcias com D. Felipa de Sá,

dando origem à família Correia de Sá, mais tarde Correia de Sá e Benevides. Desta união

descende a geração a casa dos viscondes de Asseca, em Portugal. Em segundas núpcias (por volta de 1580) casou Gonçalo Correia com Maria Ramires. Deste matrimônio vieram para o

Brasil os dois filhos: o capitão Manuel Correia e o capitão Duarte Correia Vasqueanes. Da

união de Manuel Correia com Maria de Alvarenga nasceu o sargento-mor Martinho (ou

Martim) Correia Vasques (1627-1710) que teve, por sua vez, numerosa prole: duas filhas

naturais com Joana da Fonseca e catorze com D. Guiomar de Brito, de Lisboa, filha do

capitão Luís de Brito e de D. Guiomar de Brito.2 Ainda ignoramos a data deste casamento.

1 Pesquisa financiada com bolsa de doutorado pelo CNPq (2010-2014).

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Dos catorze filhos legítimos, quatro pertenciam ao sexo masculino e onze ao sexo

feminino. Excetuando-se duas que contraíram matrimônio e uma falecida ainda menor, as

demais foram feitas religiosas no convento da Esperança em Lisboa em 16963, destino

idêntico de suas primas, filhas de Tomé Correia de Alvarenga, irmão mais velho de Martim.

Já os herdeiros homens, (Tomé, Salvador, Manoel e Martim) ficaram notáveis pelas suas

trajetórias ao ocuparem importantes cargos militares e/ou administrativos na capitania, dos

quais falaremos daqui a pouco. Como sabemos as filhas representavam um ônus às famílias,

 já que constituir dotes significava a transferência de bens à família do noivo.

Esse dado fica melhor registrado em uma consulta do Conselho Ultramarino datada de

1688. Na ocasião o documento compõe um processo que se abriu na capitania em decorrência

do assassinato de Pedro de Souza Pereira, provedor da fazenda e sobrinho de Martim,

ocorrido em 1687. Nele Martim Correia Vasques diz que é o mais prejudicado pela morte de

Pereira, “com razão de que era o arrimo de minha velhice, e o remédio de sete filhas a quem

queria darlhes estado a custa de sua fazenda por se doer as minhas obrigaçoens portanto.” 4 

Pelo exposto, Martim perdera junto com o sobrinho os subsídios da constituição de dotes para

as filhas, não restando outra alternativa senão torná-las irmãs no sobredito convento, uma vez

que apenas os filhos de Martim se tornaram herdeiros do provedor da fazenda que morreu

solteiro.5 

Se por um lado havia se frustrado (ou quem sabe se aliviado) em entregar as filhas ao

convento, por outro, deve ter felicitado-se pelo casamento de seu filho Tomé Correia Vasques,

alcaide mor da cidade, com a filha de Garcia Rodrigues Paes (Antonia Maria Tereza Paes),

filha de Garcia Rodrigues Paes, guarda-mor das minas nomeado por Artur de Sá. O

casamento simboliza o consórcio entre paulistas e fluminenses por ocasião da descoberta e

exploração das minas, fomentado por Artur de Sá, e também materializado pela abertura do

caminho novo, empreitada do mesmo Garcia Rodrigues Paes. Como se sabe, o caminho novo

cortava algumas freguesias do recôncavo da Guanabara com a finalidade de encurtar o acesso

às minas e em sua rota uma de suas jornadas passava pela propriedade de Tomé.6 À exemplo2 RHEINGANTZ, Carlos Grandmasson,  Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Livraria Brasiliana Editora,1965, vol. 1 - pág. 374.3 Consulta do Conselho Ultramarino favorável a concessão da licença de dois anos que requerera Martim CorreaVasques, Sargento mor do Presídio da Capitania do Rio de Janeiro, para ir ao Reino. Lisboa, 17 de outubro de1692. AHU, RJ, CA, cx 10, doc. 1802-1803.4 Consulta do Conselho Ultramarino acerca da devassa sobre o assassinato de Pedro de Souza Pereira. Lisboa, 15de dezembro de 1688. AHU, RJ, CA, Cx. 9, docs. 1676-78.5

BN, 4ON, Mss 12,3,16, f. 87v.6 ANTONIL, André João. “Roteiro do caminho novo da cidade do Rio de Janeiro para as minas.” In: Cultura e

opulência do Brasil . São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007, pp. 263-268.

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do pai, Tomé teve seis filhas com Antonia e um filho natural antes de seu casamento, por 

nome Martim Correia Vasques (1700-1729)7, feito legítimo herdeiro em seu testamento.8 

Abaixo a foto de época situando a antiga fazenda da cachoeira, propriedade de Manoel

Correia Vasques e depois do Barão de Mesquita, que atualmente corresponde ao município

de Mesquita-RJ.

Figura 1: Mesquita, 1932. Esquina das Ruas da Cachoeira (atual Mister Watkins)com Emílio Guadagny. No Outeiro: Casa Grande da Fazenda da Cachoeira e sua capela.Fonte: Coleção Arruda Negreiros.

De sargento-mor a governador interino.

7 RHEINGANTZ, Carlos Grandmasson,  Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Livraria Brasiliana Editora,1965, vol. 1 - pág. 374.

8 Testamento de Thomé Correa Vasques. Livro de óbito 9 (notação 362), folhas 323 a 326. Cópia da Certidão000033/04 do Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro – ACMRJ depositada pelo Sr. FredericoFernandes no Arquivo da Cúria da Diocese de Nova Iguaçu – ACDNI datada de 01/12/2004.

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Apesar de casado em Lisboa e de ser o terceiro filho de Manoel correia, não é pelo

casamento nem pelo nascimento que vemos a ascensão social de Martim. Esta pode ser 

compreendida a partir de dois momentos-chave, ambos situados na segunda metade do século

XVII: o primeiro, quando recebe a patente do cargo de sargento-mor em 1656 e o segundo em

1696 quando recebe a patente de mestre-de-campo e logo em seguida a de governador 

interino do Rio de Janeiro.9 Em ambos se destacam seus serviços no reino, em Angola, em

Pernambuco além da própria capitania do Rio de Janeiro, onde atuou como soldado e depois

capitão de infantaria.

 No decurso de sua trajetória é necessário considerar todo o prestígio que tivera sua

família no centro sul da América portuguesa desde a fundação da cidade do Rio de Janeiro no

século XVI, prestígio estendido, pelo menos, durante todo o século XVII. É notória a

 participação da família Correia ou Sá no controle dos mais destacados postos administrativos

da capitania do Rio de Janeiro, encabeçada por Salvador Correia de Sá e Benevides, três vezes

governador dela, além de membro do Conselho Ultramarino.

 Não cabe aqui discorrer sobre sua trajetória e influência no império português, já

amplamente propaladas pela bibliografia coeva, mas interessa-nos reiterar que, em parte, a

ascensão experimentada por Martim dela é tributária; neste ponto, não devemos nos espantar 

ao constatar que uma das assinaturas de sua carta patente em 1656 (sargento-mor) seja a de

seu parente Benevides, que à época exercia o cargo de Conselheiro do Ultramarino junto à D.

João IV. Cabe lembrar que em 1658 Salvador retorna ao Rio de Janeiro nomeado Governador 

e Capitão-General da Repartição do Sul, dispondo efetivamente de amplos poderes e de

 jurisdição independente do governador-geral na Bahia. Sua nomeação como governador da

Repartição Sul significava o reconhecimento de seus serviços e o exercício de seu poder sobre

toda uma extensa região que possuía como epicentro ou, como se dizia então, cabeça, a

cidade do Rio de Janeiro.10

Mafalda Soares da Cunha em seu estudo Governos e governantes do império

 português do Atlântico (século XVII) reporta-se ao importante número de brasílicos nomeados

9 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João IV sobre o requerimento do sargento-mor Martim CorreiaVasques, solicitando que se lhe declare a sargentia-mor do Rio de Janeiro. AHU, AV-RJ, Cx. 3, D. 288;Consulta do Conselho Ultramarino sobre o requerimento em que Martim Corrêa Vasques pedia a patente deMestre de Campo, com o soldo de posto de Sargento-mor que occupava no Rio de Janeiro. Lisboa, 3 de agostode 1696. AHU, cx 11, CA, doc. 2032; Consulta do Conselho Ultramarino, em que propõe a nomeação de MartimCorrêa Vasques para governador interino da Capitania do Rio de Janeiro, emquanto Arthur de Sá e Menezesestivesse ausente, na inspeção das minas das capitanias do sul. Lisboa, 13 de dezembro de 1696. AHU, CA, cx

11, doc. 2045.10 BICALHO, Maria Fernanda e LIMA, Daiana Torres. “Governo, Governadores e Centralidade do Rio deJaneiro na América e no Atlântico Sul: dois tempos, séculos XVII e XVIII”. Texto inédito, 2011.

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e abrange tanto os governadores das principais capitanias quanto aos capitães-mores. A autora

afirma que mesmo de uma forma ainda imprecisa, pode-se afirmar que existem dois grandes

grupos familiares que são os principais responsáveis por essa reincidência de naturais na

titularidade dos governos. Os Sá ou Correia de Sá, sobretudo no Rio de Janeiro, e os

Albuquerque com suas várias ramificações familiares nas capitanias do Nordeste. Como já

apontamos, o seu enraizamento nessas regiões data do século XVI, e por lá construíram

importantíssimas bases econômicas e políticas, com a inevitável estruturação de redes de

dependentes. Todavia mantiveram ligações ao centro político, e supõe-se que essa presença,

mesmo que temporária, no reino e em órgãos de decisão centrais deve ter contribuído

decisivamente para a manutenção do pode político nas capitanias de origem.11 A trajetória de

Martim parece seguir as proposições da autora, embora ele não seja titular, mas interino.

O segundo momento dessa ascensão, distante quarenta anos do primeiro, nos adverte

 para outro contexto que é o das primeiras descobertas de ouro no centro sul e início de sua

exploração de forma mais sistemática, ocorrida no governo de Artur de Sá e Meneses (1697-

1702). Ao que parece, Martim parte para o reino em 1694 para resolver vários problemas de

ordem pessoal, para qual viagem obteve licença do monarca em 1692, ou seja, dois anos

antes, pelo menos, a viagem já estava sendo arquitetada.12 Segundo Diogo de Vasconcelos

quando do governo interino de André Cusaco (1694), Martim Correia Vasques só não fora

nomeado pelo Vice-Rei do Brasil em lugar deste porque se achava na Corte 13, ou seja, já

existia uma intenção de nomeá-lo.

É flagrante que no mês de dezembro de 1696, ao final de sua estadia em Lisboa,

Martim receba as patentes de Mestre de campo e governador interino do Rio de Janeiro.

Ambas diferem apenas pelo fato de que a primeira é uma solicitação de Martim e a segunda

uma indicação do Conselho Ultramarino, o qual já ciente da nomeação de Artur de Sá um ano

antes (1695)14 e de sua missão de passar às minas logo ao assumir o cargo, antecipa ao

11 CUNHA, Mafalda Soares da. “Governo e governantes do Império português do Atlântico (século XVII). In:Maria Fernanda Bicalho e Vera Lúcia Amaral Ferlini. Modos de Governar. Idéias e práticas políticas no

império português. Séculos XVI a XIX . São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2005, p. 83.12 Consulta do Conselho Ultramarino favorável a concessão da licença de dois annos que requerera MartimCorrea Vasques, Sargento mor do Prezídio da Capitania do Rio de Janeiro, para ir ao Reino. Lisboa, 17 deoutubro de 1692. AHU, CA, cx 10, doc. 1802-1803.13 VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais; introdução de Basílio de Magalhães. Rio deJaneiro: Instituto Nacional do Livro, 1948, v. 1, p. 213. Sobre o governo de André Cusaco ver: Maria de FátimaSilva Gouvêa. André Cusaco: o irlandês “intempestivo”, fiel súdito de Sua Magestade. Trajetóriasadministrativas e redes governativas no Império Português, ca. 1660-1700. In: Retratos do Império – Trajetóriasindividuais no mundo português nos séculos XVI a XIX / Ronaldo Vainfas, Georgina Silva dos Santos,

Guilherme Pereira das Neves (orgs). Niterói: EdUFF, 2006, pp 155-175.14 Consulta do Conselho Ultramarino sobre a nomeação do Governador da Capitania do Rio de Janeiro, a cujocargo eram pretendentes João Corrêa de Lacerda e Manoel Antônio Pinheiro. Lisboa, 28 de novembro de 1695.

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monarca a indicação de seu interino. Será que Martim e Artur se conheceram no reino em

1696? Será que vieram juntos ao Rio em 1697? Isso ainda é apenas especulação, mas é

intrigante que ambos tenham sido nomeados na ocasião em que estavam no reino.

Artur, após governar o Maranhão (1686-1690) retorna ao reino e de lá ao Rio em

1697. Sua carta patente é de janeiro de 1697 tomando posse em abril do mesmo ano.15 Logo,

se Martim está no Reino em dezembro de 1696 fazendo petição ao Conselho do posto de

mestre de mestre de campo, é provável, sim, que tenham viajado juntos do reino ao Rio. Por 

outro lado cabe a pergunta: por quê o Conselho esperou um ano para nomear o interino de

Artur, já que, como dissemos, este fora nomeado governador titular em 1695? Talvez porque a

nomeação de Artur não tenha passado pela indicação de nenhum conselheiro: Artur, reinol,

fora nomeado diretamente pelo monarca, desbancando cinco candidatos apoiados pelos

conselheiros do ultramarino e do conselho de estado.16 Isso demonstra a especial atenção que

a nomeação deste cargo merecia do rei, jogando luz sobre qual seria a medida da dependência

do rei ante as propostas dos conselheiros.

Assim, coube ao conselho a possibilidade de indicar um governador interino, natural

da terra, reforçando o papel fundamental que lhe era atribuído, o de cuidar dos assuntos do

ultramar e a oportunidade de exercer sua influência era única, posto que, não podemos ignorar 

as redes acionadas por Martim naquele momento, que podem ter contribuído para sua

nomeação. Assim temos confrontadas duas lógicas, segundo Mafalda, que são as lógicas

 políticas das nomeações da coroa e as estratégias dos grupos politicamente dominantes nas

diferentes capitanias. Se num primeiro momento Martim possuía um interlocutor no conselho,

(Benevides), desta vez restava estar no centro pessoalmente para garantir os interesses de seu

grupo político e familiar ao mesmo tempo, traduzido na manutenção de seu poder via

ocupação de cargos.

Pois bem, se por um lado a trajetória de Martim fica evidenciada pela sua articulação

direta com o centro do poder não deixaremos escapar que sua ascensão e a conseqüente

manutenção de seu poder e o de sua família também se dava ao nível local, no âmbito das

freguesias rurais onde possuía engenhos, escravos, parentes, amigos e inimigos. Para

 pertencer à elite econômica da época era fundamental ter acesso aos postos de comando da

AHU. RJ. Cx 010, Doc. 02002 e 02003.15 Registo da Carta Patente de Sua Mag.de que Deus Guarde para servir de Gov.or e Cap.m g.nal Artur de Saa eMenezes Arquivo Nacional. Provedoria da Fazenda. Códice 61, Livro 11, pp. 203v a 212v.

16 Consulta do Conselho Ultramarino sobre a nomeação do Governador da Capitania do Rio de Janeiro, a cujocargo eram pretendentes João Corrêa de Lacerda e Manoel Antônio Pinheiro. Lisboa, 28 de novembro de 1695.AHU. RJ. Cx 010, Doc. 02002 e 02003.

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cidade. Para tanto a primeira condição era pertencer ou estar ligado às melhores famílias da

terra, além de possuir engenhos. Segundo Antônio Carlos Jucá de Sampaio a reprodução

econômica na sociedade colonial se dava fora do mercado e mesmo naquelas ditas “de

mercado” não cessavam de interferir relações sociais mais amplas, como as políticas e

familiares, entre outras, ou seja, formas não-mercantis de reprodução social.17 

Entretanto, essas condições, por si só, não garantiam o acesso ao poder, que

 pressupunha outras condições. Entre elas, ter legitimidade social, ou seja, ter sua qualidade

reconhecida pela sociedade. Portanto, alianças com seus pares e negociação com outros

estratos sociais eram duas estratégias dos principais da terra na manutenção de seu poder, ao

menos no âmbito local.18 Para o Rio de Janeiro o professor e historiador João Fragoso tem nos

 brindado com inúmeros trabalhos que apontam desde longa data nesse sentido.19 Também a

documentação eclesiástica nos fornece vários caminhos para se pensar as relações de

compadrio entre livres e escravos. Na dissertação de mestrado defendida em 2008 demonstrei

que o compadrio com os escravos fez parte da rotina dos familiares de Martim na freguesia de

Santo Antônio de Jacutinga, onde a maior parte da família estabeleceu seus engenhos no

século XVII.20 

Para finalizar, resgatamos o infortúnio do falecimento do sobrinho de Martim, Pedro

de Souza Pereira, e o segundo casamento da viúva de Tomé, Antonia Paes, onde temos as

evidências tanto das inimizades mantidas com seus iguais, quanto à proteção que podiam

desfrutar junto a seus escravos, mas principalmente como a coroa é acionada para resolver 

seus conflitos locais. No primeiro caso Martim faz uma queixa a Vossa Magestade acusando

seus opositores João Velho Barreto e seu cunhado Antonio de Abreu de Lima e de Francisco

de Amaral e seus irmãos, de Claudio Gurgel de Amaral e seu irmão João Barreto de Amaral, e

de seu cunhado João de Campos acusados de assassinar seu sobrinho, dizendo:17 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “A produção política da economia: formas não-mercantis de acumulaçãoe transmissão de riqueza numa sociedade colonial (Rio de Janeiro, 1650-1750) In: Topoi: Revista de História.Rio de Janeiro: 7 Letras, vol. 4, n° 7, jul-dez, 2003, p. 304-305.18 Ibidem, p. 27.19 FRAGOSO, João L. R. Fidalgos e Parentes de Pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio deJaneiro. In: João Fragoso, Antonio Carlos Jucá de Sampaio, Carla Almeida (orgs). Conquistadores e

negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp33-120. V. 1: América Lusa, séculos XVI a XVIII. _______A reforma monetária, o rapto de noivas e o escravocabra José Batista: notas sobre hierarquias sociais costumeiras na monarquia pluricontinental lusa (séculos XVIIe XVIII). In: Cultura política, memória e historiografia / Orgs. Cecília Azevedo... [ET AL.] – Rio de Janeiro:Editora FGV, 2009. pp 315-341 _____ Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor do engenho do Rio Grande,neto de conquistadores e compadre de João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira (Rio deJaneiro, 1700-60). In: Maria de Fátima Gouvêa, João Fragoso (orgs).  Na trama das redes: política e negócios no

império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. pp 243-294.20 DEMETRIO, Denise Vieira.   Famílias escravas no Recôncavo da Guanabara. Séculos XVII e XVIII.Dissertação de Mestrado. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Niterói: UFF, 2008.

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(...) por serem todos na aleivosa morte q’ derão a meu sobrinho Pedro deSouza Pereira em hú dias de sabbado, q’ se contarão vinte de setembrodo anno passado de mil e seis sentos e oitenta e sete ao qual indo para oseu engenho q’ tem em Miriti partindo desta cidade no dito dia de

madrugada em hua embarcação ligeira (...) de porposito e cazo pensado oestavam esperando (...) com alguns mulatos, e negros todos armados demuitas armas de fogo (...) lhe dispararam de repente três ou quatroclarinassos com tanta cantidade de ballas que treze se empregarão nocorpo do dito meu sobrinho (...)21

O relato acima não encerrou as rivalidades entre os  Barreto e os Correia que

adentraram a primeira década do século XVIII. Contrariamente ao primeiro, no segundo caso

é José Velho Barreto quem acusa Manuel Correia Vasques de seqüestrar sua noiva, AntoniaMaria Tereza Pais, quando esta já se encontrava viúva de Tomé Correia Vasques, seu irmão.

A família Correia Vasques discordava de tal união e a solução encontrada fora invadir, com

20 índios armados, o engenho de Barreto e seqüestrar a noiva. 22 Diz José Barreto que primeiro

Manoel induzira os pais da noiva a impedirem o segundo casamento,

(...) ameaçando com a morte assim a viuva como a elle suplicante (...) ecom effeito veio da Parahiba a mãe da dita viúva ao Rio de Janeiro para a

levar, o que não conseguiu por esta se achar gravemente enferma, evendo o dito suplicante Manoel Correia Vasques que por este meio não pode desfazer o casamento (...) se valeu da força da violência e dello semamor ao respeito as leis e justiças de V Mag.de, e unindo-se com otenente general Luis de Saa e Manoel de Saa enemigos capitães dosuplicante, e p[ ]vando cavilosamente q o suplicante vinha de seuengenho com 40 escravos p.a por força levar a viúva do Rio de Janeiro

 para sua caza quando este se achava pacifico e quieto no tal seu engenhoasestindo aos desponsorios de hua sua irmã o dito Manoel Correa esocius com 20 indios armados obrarão a mesma insolência que queriãoemputar ao suplicante emtrando pella cidade, e violentamente pella caza

da viúva hua noite (...) a levarão e hua rede com violencia e forçaindecorosa (...)

Os dois casos são elucidativos de como as alianças e negociações com os escravos

eram fundamentais para a reprodução e legitimação daqueles potentados locais, mas também

21 Consulta do Conselho Ultramarino acerca da devassa sobre o assassinato de Pedro de Souza Pereira. Lisboa,15 de dezembro de 1688. AHU, RJ, CA, Cx. 9, docs. 1676-78.22 Requerimento de José Velho Barreto, natural do Rio de Janeiro, ao rei [D. Pedro II] solicitando ordens para

que Manuel Correia Vasques, cunhado de sua noiva, Antónia Teresa Maria Pais, seja preso e remetido para aCorte, por não querer restituir os bens móveis e de raíz e não aceitar o casamento dela. AHU, AV-RJ, Cx 5, doc.489. In: João Fragoso. A Reforma Monetária, o rapto de noivas e o escravo cabra José Batista, op. cit. p. 326.

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de como a coroa era acionada para dirimir os conflitos, afinal era dela que advinham as

mercês como prova de reconhecimento da lealdade e bons serviços de seus vassalos. Trata-se,

 portanto, de uma situação de mútuo equilíbrio, na qual aparentemente todo poder emana do

rei, mas que, na prática social, as contingências locais o limitam. Por outro lado, os poderes

locais reconhecem na Coroa a instância para a resolução de seus conflitos e na busca de

reconhecimento e legitimidade, oferecem à própria coroa sua sujeição e reconhecimento.23 

BIBLIOGRAFIA:

ANTONIL, André João. “Roteiro do caminho novo da cidade do Rio de Janeiro para asminas.” In: Cultura e opulência do Brasil . São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,2007.

BICALHO, Maria Fernanda e LIMA, Daiana Torres. “Governo, Governadores e Centralidadedo Rio de Janeiro na América e no Atlântico Sul: dois tempos, séculos XVII e XVIII”. Textoinédito, 2011.BRUGGER, Silvia Maria J. Minas patriarcal : família e sociedade (São João Del Rey – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2007.CUNHA, Mafalda Soares da. “Governo e governantes do Império português do Atlântico(século XVII). In: Maria Fernanda Bicalho e Vera Lúcia Amaral Ferlini. Modos de Governar.

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