tragédia e reconhecimento em ifigênia em tauris, de eurípedes - adriane da silva duarte

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5/20/2018 TragdiaeReconhecimentoEmIfigniaEmTauris,DeEurpedes-AdrianeDaSilvaD... http://slidepdf.com/reader/full/tragedia-e-reconhecimento-em-ifigenia-em-tauris-de-euripedes- O reconhecimento na tragédia grega: a Ifigênia em Tauris, de Eurípides Adriane da Silva Duarte FFLCH/USP As cenas de reconecimento est!o "resentes em diversos gêneros liter#rios gregos, desde a $"ica om$rica at$ a com$dia nova% Seu em"rego, no entanto, est# mais associado & trag$dia, sendo consideradas "or Arist'teles um elemento constitutivo da trama com"le(a em con)unto com a "eri"$cia e o "at$tico *en(erto +% Ao menos, $ o -ue )ulga Arist'teles na Poética *.I, +01a 22, -ue define assim a sua nature3a *en(erto 14 56 reconecimento *anagnórisis , como indica o "r'"rio significado da "alavra, $ a  "assagem do ignorar ao conecer * ex agnoías eis gnósin metabolé, -ue se fa3 "ara a ami3ade *  philían ou inimi3ade *échthran das "ersonagens -ue est!o destinadas "ara a dita ou "ara a desdita5% 6u se)a, o reconecimento consiste em um "rocesso cognitivo, a desco7erta de algo -ue era desconecido "reviamente% Tal movimento mental o"era uma mudan8a no relacionamento entre as "essoas nele envolvidas, -ue "ode ser "ara melor *ami3ade ou  "ara "ior *inimi3ade% 9o entanto, alguns comentadores da  Poética, notadamente :lse *+;0<4 2;, n!o têm d=vidas de -ue o termo  philía, nesta defini8!o, designa n!o a ami3ade, mas o "arentesco, uma ve3 -ue a maioria a7soluta dos casos citados revela a e(istência de la8os de sangue entre os agentes% Portanto, mais do -ue o sentimento de ami3ade ou ostilidade, o -ue est# em -uest!o $ o estado a -ue o ato de reconecimento condu34 o er'i desco7re>se philós de algu$m, seu "arente ? a ostilidade s' $ significativa, e "or isso mesmo ines"erada, na medida em -ue adv$m de um familiar% @esmo -ue n!o se concorde com a leitura estrita de :lse, deve>se conceder -ue, no mnimo, # uma  "otenciali3a8!o do efeito tr#gico -uando essas condi8Bes est!o "resentes% :m outra "assagem de seu Tratado, Arist'teles afirma *+017 2 -ue o reconecimento se d# entre "essoas, em7ora n!o "recise necessariamente ser m=tuo > uma  "essoa "ode reconecer outra, sem ser "or ela imediatamente reconecida *en(erto % @ais adiante, ele oferece uma ti"ologia das cenas de reconecimento, ierar-ui3ando>as a "artir do efeito emocional "rodu3ido ? tendo em vista a "rodu8!o da

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O reconhecimento na tragdia grega: a Ifignia em Tauris, de Eurpides

O reconhecimento na tragdia grega: a Ifignia em Tauris, de EurpidesAdriane da Silva Duarte

FFLCH/USP

As cenas de reconhecimento esto presentes em diversos gneros literrios gregos, desde a pica homrica at a comdia nova. Seu emprego, no entanto, est mais associado tragdia, sendo consideradas por Aristteles um elemento constitutivo da trama complexa em conjunto com a peripcia e o pattico (enxerto 1). Ao menos, o que julga Aristteles na Potica (XI, 1452a 33), que define assim a sua natureza (enxerto 2):

"O reconhecimento (anagnrisis), como indica o prprio significado da palavra, a passagem do ignorar ao conhecer (ex agnoas eis gnsin metabol), que se faz para a amizade (philan) ou inimizade (chthran) das personagens que esto destinadas para a dita ou para a desdita".

Ou seja, o reconhecimento consiste em um processo cognitivo, a descoberta de algo que era desconhecido previamente. Tal movimento mental opera uma mudana no relacionamento entre as pessoas nele envolvidas, que pode ser para melhor (amizade) ou para pior (inimizade). No entanto, alguns comentadores da Potica, notadamente Else (1957: 349), no tm dvidas de que o termo phila, nesta definio, designa no a amizade, mas o parentesco, uma vez que a maioria absoluta dos casos citados revela a existncia de laos de sangue entre os agentes. Portanto, mais do que o sentimento de amizade ou hostilidade, o que est em questo o estado a que o ato de reconhecimento conduz: o heri descobre-se phils de algum, seu parente a hostilidade s significativa, e por isso mesmo inesperada, na medida em que advm de um familiar. Mesmo que no se concorde com a leitura estrita de Else, deve-se conceder que, no mnimo, h uma potencializao do efeito trgico quando essas condies esto presentes.

Em outra passagem de seu Tratado, Aristteles afirma (1452b 3) que o reconhecimento se d entre pessoas, embora no precise necessariamente ser mtuo - uma pessoa pode reconhecer outra, sem ser por ela imediatamente reconhecida (enxerto 4).

Mais adiante, ele oferece uma tipologia das cenas de reconhecimento, hierarquizando-as a partir do efeito emocional produzido tendo em vista a produo da catarse (1454b 20ss, enxerto 6). Levando em conta um critrio esttico, as melhores so (1) as que esto associadas peripcia e so conseqncia da ao dramtica, cujos exemplos so a do dipo Rei e a da Ifignia em Tauris. Tais reconhecimentos seriam mais eficientes no despertar do terror e da piedade, emoes trgicas por excelncia. Seguem-se as derivadas de um silogismo (2), como o reconhecimento de Electra n' As Coforas, que antecipa o retorno do irmo valendo-se no apenas dos sinais que encontra, mecha de cabelo e pegadas, comparveis aos dela, mas de um clculo de probabilidade (quem mais teria caractersticas comuns a ela e motivos para sacrificar sobre o tmulo de Agameno seno Orestes?). Associa-se a essa, ao meu ver, o reconhecimento derivado de uma falsa inferncia feita pela audincia, o chamado "paralogismo da parte dos espectadores". O exemplo o de Odisseu que, sob o disfarce de mendigo, afirma reconhecer o arco do heri. Como no era provvel que algum de sua condio gozasse dessa liberdade junto ao dono da casa, a audincia presume que ele seja o prprio Laertada.

Os reconhecimentos oriundos de um despertar da memria (3) e os que se devem meramente arte do poeta (4) tm menor valor. Aqueles ocorrem quando um estmulo sensvel produz lembranas capazes de revelar sentimentos profundos, como o caso do pranto de Odisseu diante dos Fecios ao ouvir a cano de Demdoco sobre Tria, na Odissia. Os ltimos so arbitrrios, portanto, j que decorrem da manipulao de cenas e falas.

Por fim, o menos sofisticado, embora largamente empregado, o reconhecimento por sinais, sejam eles inatos (uma mancha de nascena, por exemplo) ou adquiridos (como ocorre com a famosa cicatriz de Odisseu ou com os vrios objetos que permitem o estabelecimento da identidade de um determinado personagem anis, colares ou bordados).

A classificao de Aristteles reflete, antes de tudo, a sua viso da questo e no pode ser tomada como evidncia de que os autores que o antecederam (e mesmo os que o sucederam) dividissem as cenas de reconhecimento nas categorias acima descritas. Uma primeira discordncia parece residir na predileo que os poetas gregos tinham pelo uso de sinais nos reconhecimentos, recurso que o filsofo considera grosseiro. Inegvel tambm a constatao de que os dramaturgos do sculo V a.C. demonstram ter conscincia desse recurso e das possibilidades por ele oferecidas, como atestam Eurpides, em sua tragdia Electra, e Aristfanes, na comdia As nuvens, em que aludem cena de reconhecimento criada por squilo em Coforas.

Mas o fato que com Aristteles, reconhecimento (anagnrisis) torna-se um termo de potica, associado fbula (muthos), da qual faz parte em conjunto com a peripcia e o pattico. Alm de ser um recurso estruturador da narrativa, capaz de promover o desenlace de um conflito e dotado de alto potencial emocional, sua vasta presena, igualmente atestada nos mitos, sugere que o reconhecimento seja antes uma resposta s inquietaes do homem a cerca de sua origem e de sua identidade.

dipo o exemplo mais acabado desta necessidade de saber quem somos, condio para definirmos nosso comportamento ante os outros, e das possveis conseqncias de o ignorar. De fato, provem da tragdia homnima de Sfocles, o exemplo melhor acabado de cena de reconhecimento, segundo Aristteles na Potica (cf. quadro tipolgico e tambm enxerto 3). No entanto, outra tragdia se destaca nesta avaliao, trata-se da Ifignia em Tauris, de Eurpides, que disputa com a pea de Sfocles a preferncia do Filsofo. Alm de estar, junto com o dipo, no topo da classificao aristotlica, tambm ilustra duas outras categorias reconhecimento urdido pelo poeta e por silogismo (cf. quadro) , recebendo diversas outras menes ao longo do texto (enxertos 4, 5 e quadro). Sem dvida, um de seus atrativos desdobrar o reconhecimento em duas etapas trata-se de um reconhecimento mltiplo (enxerto 4). Examinando a pea mais de perto, notamos que ela foi composta tendo em vista fazer da cena de reconhecimento o seu clmax. Passo, ento, ao exame da tragdia Ifignia em Tauris, de modo a ilustrar melhor meu ponto de vista.

Ifignia em Tauris, de Eurpides, foi composta em algum momento entre os anos 414 a. C. (Dale) e 411 a. C. (Lesky). Com esta tragdia, Eurpides prope uma seqncia para a histria de Orestes e de sua famlia, a dos Atridas, tantas vezes tratada pelos tragedigrafos (cf. quadro, A lenda de Ifignia). Sua absolvio pelo crime de matricdio, encenado por squilo nas Eumnides, relativizada. Algumas erneas, que discordaram do veredicto, ainda perseguem o heri at que ele traga de Tauris, uma terra brbara (atual Crimia), para Atenas uma esttua de rtemis. Os tarios so hostis aos gregos, tendo sido determinada a captura e subseqente sacrifcio a rtemis dos que se aventurassem em seu territrio. No obstante, a sacerdotisa encarregada de consagrar as vtimas para a morte grega. Trata-se de Ifignia, irm de Orestes, que todos na Grcia julgavam morta. rtemis exigira de Agameno, seu pai, seu sacrifcio em Aulis, de modo a permitir o avano das tropas gregas at Tria. A deusa, entretanto, substitura Ifignia por uma cora, transportando-na a Tauris, onde a encarregou de seu culto.

Essa situao inicial potencialmente explosiva, j que, ao chegar a Tauris, Orestes corre o risco de ser morto, seno pelas mos da prpria irm, com seu auxlio, acrescentando mais um captulo triste saga funesta dos Atridas. Isso teria de fato acontecido no fosse os jovens se reconhecerem antes da execuo ter lugar.

A tenso gerada pelo encontro dos irmos que desconhecem quem so cuidadosamente preparada desde as cenas iniciais. No prlogo da tragdia, Ifignia conta, perturbada, um sonho que tivera durante a noite. Em suas vises, o palcio em Argos era destrudo por um terremoto s restando a coluna central. Esta coluna estava adornada com uma cabeleira loura e emitia sons humanos. Ifignia, como sacerdotisa, o aspergia para que fosse sacrificado. Embora bvio, este sonho premonitrio, pois de fato Orestes j est na ilha e em breve ser levado presena da sacerdotisa, mal compreendido pela moa. Para ela, a coluna representa Orestes, j que os filhos homens so o esteio da casa o que est certo , mas o sacrifcio iminente era indcio de que j estava morto. Tal concluso, a lana no maior desespero, j que sua salvao e repatriamento tornam-se cada vez mais difceis.

Essa pressuposio da morte de Orestes constituir um grande obstculo para que Ifignia reconhea o irmo no jovem grego que aporta a ilha. O mesmo ocorre com Orestes, que cr que sua irm no vive mais, sacrificada que fora pelo pai em Aulis (cf. v. 564: ou)dei/j ge [lo/goj e)/stin], plh\n Janou=san ou)x o(ra=n fa/oj.). O estado de ignorncia que afeta os irmos supera a mera questo de identidade, pois ambos, ao se defrontarem, partiro da falsa premissa da morte um do outro, o que os deixa cegos para os indcios que apontam para o parentesco, como o fato de serem originrios da mesma cidade, de conhecerem em detalhe a vida familiar, de sofrerem, especialmente Ifignia, ao serem informados dos sucessivos infortnios que abalaram os Atridas. Por outro lado, esta situao guarda alto potencial dramtico, j que os espectadores, que conhecem a identidade dos irmos, temem que o engano em que esto mergulhados termine por determinar a morte de Orestes.

O poeta vai explorar esta situao tensionando ao mximo as questes relativas identidade. Assim, quando o mensageiro tario vem anunciar a captura de dois jovens estrangeiros que sero encaminhados para o sacrifcio, Ifignia pergunta de onde so e qual seu nome (v. 246-248). Diante da resposta de que so gregos e que um deles se chama Plade, que ela ignora ser o companheiro inseparvel de seu irmo, insiste em saber o nome do outro (250), mas seu informante no sabe dizer.

A partir do verso 490, Ifignia interroga Orestes, que se nega a revelar quem seja. Sua recusa advm do desejo de morrer no anonimato, de modo a no se tornar alvo de escrnio alheio (v. 502, a)nw/numoi Jano/ntej ou) gel%/meJ a)/n.). Declara o jovem heri a sua algoz (v. 504, to\ sw=ma Ju/seij tou)mo/n, ou)xi\ tou)/noma.):

O meu corpo sacrificars, no o meu nome.

No entanto, diante da insistncia da sacerdotisa, o jovem termina por fazer algumas revelaes. Diz que nasceu em Argos (v. 508), mesma cidade de Ifignia, que a evocao de Tria lhe funesta (v. 518) e que Helena lhe custou a vida de um ente querido (v. 522).

Ifignia, por sua vez, no esconde suas emoes ao saber das mortes de Calcas, o adivinho que determinara o seu sacrifcio (v. 532), e de Aquiles (v. 538-539). A jovem fora atrada a Aulis por Agameno sob o pretexto de se casar com Aquiles, o principal heri grego; ele, por sua vez, ignorava a armadilha e se disps a salv-la quando a verdade veio tona (cf. Ifignia em Aulis, de Eurpides). Tamanha familiaridade e interesse da jovem acabam por atiar a curiosidade de Orestes, que, por sua vez, deseja saber quem ela (v. 540, ti/j ei)= poJ;). A resposta vaga (v. 541):

Sou de l [i.e, de Argos], mas ainda criana fui de l arrancada.

O interrogatrio prossegue e Ifignia sofre com a notcia da morte do pai, Agameno, pelas mos da me, Clitemnestra (v. 549). Por fim, ao inquerir sobre Orestes, descobre que aps matar a me vive num exlio perptuo (v. 567). Esta ltima informao crucial para o desenrolar da trama, pois a moa fica sabendo, ironicamente da boca do prprio irmo, de que se enganara ao interpretar o sonho (v. 569, yeudei=j o)/neiroi, xai/ret: ou)de\n h)\t a)/ra.):

Sonhos mentirosos, adeus! Nada reis, enfim.

Com um dos obstculos ao reconhecimento removido Ifignia sabe agora que Orestes vive , o poeta comea a prepar-lo. A esperana de rever a terra natal e a famlia renasce em Ifignia que prope a Orestes poupar sua vida, desde que ele entregasse uma carta para os conhecidos dela em Argos (v. 584). Mas Orestes declina da oferta em nome de Pilade, que arriscou a vida para acompanha-lo no fosse por lealdade a ele, nenhum perigo estaria correndo.

Ifignia e Orestes, ainda ignorando o vnculo que os une, ironicamente, exprimem desejos relacionados a seus irmos ausentes. Ifignia declara sua admirao pelo carter de Orestes e faz votos que seu irmo seja assim nobre (611-613). Orestes, por sua vez, diante da morte prxima, expressa a vontade de ser sepultado por sua irm. Na impossibilidade de ver cumprido este desejo, Ifignia se compromete a prestar-lhe as honras fnebres. Ou seja, indiretamente Ifignia v em Orestes algum que poderia ser o seu irmo e se apieda dele, ao mesmo tempo, ele receber da parte dela os cuidados de uma irm. Essa proximidade espiritual entre os jovens tocante, sobretudo neste momento em que o vnculo que os une a morte dele por parte dela.

Ifignia sai de cena um instante para buscar a carta que Plade deve entregar (640-641). Orestes, uma vez mais, se pergunta sobre a identidade da sacerdotisa, que parece conhecer intimamente sua famlia (660-668), mas Plade no compartilha suas dvidas. Dos sofrimentos dos reis todos sabem (670-671), diz ele pondo fim discusso. Depois de prometer erguer um monumento em memria do amigo em Argos e desposar sua irm, Electra, Plade declara (721-722, a)ll e)/stin e)/stin h( li/an duspraci/a | li/an didou=sa metabola/j, o(/tan tu/x$.):

Mas a infelicidade em demasia

traz mudanas em demasia, se h sorte.

A fala de Plade prepara os espectadores para a reviravolta na tragdia, reviravolta esta coincidente com a cena de reconhecimento. Vale lembrar que o termo usado para indicar a mudana (de estado, da infelicidade para a felicidade), metabolh/, empregado, na Potica, tanto na definio de peripcia ei)j to\ e)nanti/on tw=n prattome/nwn metabolh/ , quanto na de reconhecimento e)c a)gnoi/aj ei)j to\ gnw=sin metabolh/. isso que faz desta cena to especial aos olhos de Aristteles (cf. quadro).

Mas, afinal de contas, como se d o reconhecimento? Plade aceita fazer o papel de mensageiro, mas diante da insistncia de Ifignia para que preste um juramento de que far as notcias suas chegarem aos seus sob pena de vir a morrer se descumprir a promessa, prev o caso de que venha a sofrer um naufrgio em que ele se salve, mas a carta, no. Ifignia, ento, resolve ler a carta (760 ss.) para que Plade fixe seu contedo e possa repeti-lo de viva voz aos interessados, caso as tabuinhas se percam.

Logo no comeo dessa leitura, revela-se a Orestes a identidade da sacerdotisa (769-771):

Anuncia a Orestes, filho de Agameno:

a que foi sacrificada em Aulis envia esta carta

estando viva, Ifignia [...].

A notcia to espantosa que ele, num primeiro momento, no associa a sacerdotisa irm, que reafirma sua identidade (772 e 773):

OR.: Onde est ela? Est de volta aps ter morrido?

IFI.: esta que est diante de teus olhos.

O reconhecimento se d em duas etapas. Primeiro, Orestes reconhece Ifignia ao tomar conhecimento do teor da mensagem. A fora da revelao faz com que ele interrompa vrias vezes a leitura da carta, incomodando Ifignia. Finda a leitura, Plade cumpre o juramento e, recebendo a tabuinha das mos de moa, a entrega a Orestes (791-792):

Veja, trago e te entrego,

Orestes, esta carta da parte de tua irm.

Orestes, tomado de alegria, faz um movimento para abraar a irm, que, no entanto o afasta. Nem ela, nem o coro, formado por cativas gregas, podem crer que o estrangeiro seja Orestes. Embora a histria dela seja mais difcil de aceitar do que a dele, j que envolve a sua miraculosa troca pela cora na cena do sacrifcio, troca que passou desapercebida dos que a testemunharam, no fcil acreditar na declarao do jovem condenado morte, que poderia passar por oportunista. Assim, Ifignia pede que ele prove o que diz (808, tekmh/rion).

As provas de identidade que Orestes oferece so evocaes de objetos ou de fatos cuja memria compartilhada por ambos. So eles: 1) um bordado, feito por Ifignia, que mostrava a disputa entre Atreu e Tiestes pelo Carneiro do toso dourado; 2) detalhes da breve passagem da moa em Aulis banho nupcial e o corte dos cachos de cabelos para oferenda fnebre; 3) a lana de Plope, pendurada na parede do quarto da moa em Argos.

Diante dessas evidncias, Ifignia se rende e tambm ela reconhece o irmo, entregando-se a uma longa celebrao do encontro (827-901).

Cumpri-se, assim, a predio de Plade (721-722) com a mudana da infelicidade extrema para a felicidade completa, apesar dos problemas dos jovens estarem longe de acabar eles devem encontrar um meio de deixar a ilha e regressar a sua ptria, burlando a severa vigilncia dos tarios, tema de que se ocupar a tragdia daqui por diante. O sentimento jubiloso, no entanto, se justifica tendo em vista 1) o que h de implausvel no reencontro e 2) o fato de a revelao abortar a ao fratricida.

A implausibilidade do reconhecimento notada pelo coro, que aps testemunha-lo, declara (900-901):

Maravilhoso e alm das palavras

o que eu mesma vi no ouvi de um outro.

O outro caso, discutido por Aristteles na Potica, ao comentar a relao entre o agente e a conscincia do ato (XIV, 1453b 23). Nota o Filsofo que o agente age tendo plena conscincia de seus atos (o exemplo Medeia quando mata os prprios filhos), ou age sem ter pleno conhecimento da ao (dipo que mata Laio e desposa Jocasta ignorando que sejam estes seus pais biolgicos), ou, ento, est pretes a agir em ignorncia, mas percebe a tempo o erro e evita a ao. Esta ltima a situao trgica ideal (1454a 1):

Mas superior a todos o ltimo, por exemplo, o que se d no Cresfonte, quando Mrope est para matar o filho, e no Mara porque o reconhece; e na Ifignia, em que a irm vai matar o irmo; e na Helle, onde o filho, quando vai entregar sua me, ento a reconhece.

A vantagem de estruturar a fbula desta forma que o ato criminoso evitado sem que se perca o prazer advindo do reconhecimento. Este prazer at mesmo mais intenso na medida em que alivia a tenso advinda da possibilidade do ato criminoso vir a acontecer. Da a explorao que fazem os poetas, muito especialmente Eurpides, do potencial emocional do reencontro.

Apesar de admirar a soluo encontrada por Eurpides para aproximar os irmo na Ifignia em Tauris, Aristteles julgava a primeira revelao, da identidade da irm, superior segunda, da identidade do irmo. Isso porque, no primeiro caso, a carta surge como algo necessrio e verossmil no curso da trama, pois, como diz o Filsofo, natural que ela quisesse enviar alguma carta (XVI, 1455a 20). J, no segundo caso, Orestes diz o que o poeta quer que ele diga, e no o que o mito exige (XVI, 1454b 31). Para Aristteles como se Orestes levasse em si qualquer sinal (XVI, 1454b 31), revelando assim o que h de arbitrrio nessa espcie de reconhecimento o poeta pode produzir qualquer evidncia de parentesco que queira, sem que estas decorram da ao. Assim, Aristteles menciona uma outra soluo, mais do seu agrado, para a revelao de Orestes, criada pelo sofista Poliido (XVI, 1455a 4):

Reconhecimento por silogismo tambm aquele inventado pelo sofista Poliido para Ifignia, porque verossmil seria Orestes discorrer que, se a irm tinha sido sacrificada, tambm ele o havia de ser.

Embora esta sugesto entusiasme tanto Aristteles que ele a mencione duas vezes na Potica (enxerto 5), fico imaginando como ento Ifignia provaria ser quem sem recorrer a memrias comuns ou a algum objeto de famlia. Como a identidade dela mais difcil de se estabelecer que a do irmo, ento, talvez Eurpides tenha sido sbio ao faze-la revelar-se primeiro.

Apesar deste reparo, se juntarmos as observaes que Aristteles faz sobre a Ifignia em Tauris nos captulos XIV e XVI, podemos concluir que a tragdia de Eurpides leva pequena vantagem sobre o dipo Rei, de Sfocles, no conceito do Filsofo, j que traz o melhor reconhecimento aliado melhor forma de ao trgica.

ANEXOS

Enxertos da Potica, de Aristteles: sobre o reconhecimento

Partes da fbula potica (complexa): peripcia (mudana dos acontecimentos no seu contrrio); reconhecimento e catstrofe (pathos: ao perniciosa e dolorosa). (Potica, XI)

Reconhecimento , como o nome indica, a passagem da ignorncia para o conhecimento, que se faz para a amizade ou inimizade dos que esto delineados para a fortuna ou o infortnio. (Aristteles, Potica, XI, 1452a 22)*A mais bela de todas as formas de reconhecimento a que com peripcia, como, por exemplo no dipo [...], porque o reconhecimento com peripcia suscitar terror e piedade, e ns mostramos que a tragdia imitao de aes que despertam tais sentimentos. (Aristteles, Potica, XI, 1452a 33)

Posto que o reconhecimento reconhecimento de pessoas, certos casos h em que o somente de uma por outra, quando claramente se mostra quem seja esta outra; noutros casos, ao invs, d-se o reconhecimento entre ambas as personagens. Assim, Ifignia foi reconhecida por Orestes pelo envio da carta, mas, para que ela o reconhecesse a eles, foi mister outro reconhecimento. (Aristteles, Potica, XI, 1452b 3)

Chegado [Orestes a Taurida] preso, mas quando ia ser sacrificado foi reconhecido (ou maneira de Eurpides, ou maneira de Poliido, dizendo Orestes, como plausvel que o dissesse, que no s irm tivera que ser imolada, mas tambm ele tinha de ser) e assim ficou salvo. (Aristteles, Potica, XVII, 1455b 10)

CLASSIFICAO DOS RECONHECIMENTOS (Potica XVI)

Derivado da prpria intrigaOs melhoresdipo Rei; Ifignia em Tauris

Por Silogismo ou paralogismoOs segundos melhoresCoforas, Ifignia de Poliido

Atravs da memriaOdissia: Odisseu entre os Fecios

Urdidos pelo poetaInartsticoIfignia em Tauris

Atravs de sinais: congnitos ou adquiridosMenos artstic0, embora mais freqente Odissia: a cicatriz

A lenda de Ifignia na tragdia grega

1. Agameno sacrifica sua filha Ifignia a rtemis em Aulis (Ifignia em Aulis, de Eurpides).

2. Vitorioso em Tria, retorna casa onde assassinado por sua esposa, Clitemnestra, e pelo amante dela, Egisto. Dentre as motivaes para o crime est a morte de Ifignia (Agameno, de squilo).

3. Orestes, filho caula de Agameno, foge e abrigado por amigos do pai. Ao crescer, por determinao de Apolo, volta do exlio para vingar sua morte, assassinando a me e Egisto (Coforas, de squilo; Electra, de Sfocles; Electra, de Eurpides).

4. Aps o crime, passa a ser perseguido pelas Erneas, divindades que punem o derramamento de sangue entre parentes consangneos. Segundo algumas verses:

a) quando est prestes a ser lapidado pela populao de Argos, faz refns e foge. Apolo assume a responsabilidade pelos seus atos e o envia cidade da Atenas para ser purificado (Orestes, de Eurpides);

b) julgado pelo tribunal do Arepago, em Atenas, e absolvido pelo voto de Minerva de Palas Atena (Eumnides, de squilo);

c) enviado Tauris por Apolo com a misso de resgatar a esttua da deusa rtemis e lev-la a Atenas. Encontra Ifignia, a irm que julgara morta, servindo como sacerdotisa da deusa e encarregada de preparar para sacrifcio os estrangeiros que l aportam. Os dois fogem rumo a Grcia (Ifignia em Tauris, de Eurpides).

Cf. Aristteles, Potica (1452 b 9): So estas, duas partes do mito: peripcia e reconhecimento. Terceira a catstrofe [Traduo de Eudoro de Souza].

Cf. Aristteles, Potica (1450 a 28): Ajuntemos a isto que os principais meios porque a tragdia move os nimos (psukhagogein) tambm fazem parte do mito: refiro-me a peripcias e reconhecimentos.

Na Electra, de Sfocles, Orestes retorna casa incgnito e anuncia sua prpria morte como forma de pegar desprevenidos Clitemnestra e Egisto. Sua irm Electra, no entanto, se desespera com a notcia, pois contava com o irmo para vingar a morte do pai.

Sobre as cartas na tragdia e esta em particular, cf. Hirata, Filomena Y. As cartas na tragdia grega. In Clssica, v. 13/14, p.315-322, 2000-2001.

Em Antgone, de Sfocles, a herona homnima transgride um decreto da cidade para poder prestar os ritos fnebres ao irmo, Polinces.

Ifignia explica que um dos estrangeiros que sacrificou deusa, comovido com sua histria, escreveu por ela a carta, que ela guardou na esperana de fazer chegar aos seus um dia. Trata-se de uma ressalva para salvar as aparncias, uma vez que no seria verossmil que ela mesma a escrevesse, uma vez que as mulheres no recebiam uma educao formal.

Esta passagem pode ser mais um indcio do grau de conscincia que os tragedigrafos tinham da estrutura da tragdia. Neste caso, metbole poderia j ser empregado como um termo tcnico.

No obstante, ela sabe ler (cf. n. 6)!

Na verdade, apenas a ltima prova decorre da observao direta de Orestes (v. 822, a(\ d ei)=don au)to/j, ta/de fra/sw tekmh/ria:). Das outras duas, ele sabe a partir de Electra (811, le/goim a)\n a)ko$= prw=ton Hle/ktraj ta/de.) e, provavelmente, de Clitemnestra (818 e 820).

Nesse sentido, admirvel que, no dipo Rei, de Sfocles, os ps inchados do heri no sejam mencionados como evidncia de seu abandono pelos pais, mas que sua identidade venha tona a partir do testemunho do Mensageiro de Corinto, que vem sua procura para informar-lhe da morte do pai adotivo.

* Aristteles. Potica. Traduo, prefcio, introduo, comentrios e apndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986.