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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Fortaleza ‐ CE – 29/06 a 01/07/2017
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Traços árcades no cinema: uma análise do filme Into The Wild1
Débora Marx Batista de Melo CHAVES2
Anacã Rupert Moreira Cruz e Costa AGRA3
Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, PB
RESUMO:
Esse trabalho tem como objetivo apontar e analisar como as premissas árcades se
manifestam no cinema para além de sua época e de sua própria dimensão literária. É
recorrente, nos filmes, observar um discurso narrativo e uma adoção de padrões estéticos
específicos que remetem ao cerne do arcadismo e evidenciam uma correspondência entre
a literatura e o cinema. Tal prática revela um “espírito de época” (PRAZ, 1982) que
ultrapassa as fronteiras de tempo e espaço e serve para estabelecer um elo afluente entre
as artes. Para este estudo inicial sobre a temática, foram contemplados, entre outros,
conceitos de SOURIAU (1983), VANOYE (1994) e LESSING (2011). O material
empírico observado foi o filme Into the Wild (2007). Esse estudo é um recorte inicial de
uma pesquisa que pode revelar uma ligação significativa e nova entre cinema e literatura.
Palavras-chave: Cinema; Arcadismo; Literatura.
INTRODUÇÃO
As relações entre cinema e literatura existem desde o surgimento da sétima arte,
tendo inspirado os primeiros filmes produzidos no início século XX e perpetuando-se até
1 Trabalho apresentado no IJ04 – Comunicação e Audiovisual, XIX Congresso de Ciências da Comunicação
na Região Nordeste, realizado de 29 de junho a 1 de julho de 2017. 2 Graduanda do 6° período do Curso de Jornalismo da UEPB, email: [email protected] 3 Doutor
em Literatura. Professor Efetivo do Departamento de Letras e Artes da UEPB, email:
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os dias atuais, em que encontramos adaptações, releituras, além de formatos e influências
narrativas típicas do universo literário transpostos para o cinema.
Contudo, esta ligação pode ser mais significativa para o campo artístico como um
todo. Correntes de pensamento literário podem ser refletidas na tela através do discurso e
da estética de alguns longas-metragens. Num estudo sistemático e profundo, é possível
que se encontre nas correntes literárias caminhos estéticos que tenham sobrevida para
além do sistema semiótico literário e para além do tempo em que ocorrem. A premissa é
a de que uma escola literária, como o Arcadismo, por exemplo, pode ser reveladora de
um “modo de construir” obras de arte, muito mais do que apenas um estilo de época.
Como trabalho inicial, a proposta aqui é destacar as principais premissas e características
do Arcadismo3 e verificá-las em filmes, no caso, Na natureza selvagem (Into the wild).
Entendemos que não existe uma obra cinematográfica árcade, por isso procuramos os
traços da escola como surgindo pontualmente no cinema, comprovando que é possível a
uma estética literária específica sair de seu meio comunicacional primeiro, romper a
barreira do seu tempo e influenciar produções, inclusive, atuais, no âmbito de outras artes,
como o cinema.
Para tanto, como exemplo introdutório da pesquisa, o filme selecionado, lançado
em 2007, será analisado enquanto amostra de material cinematográfico com traços
árcades.
CINEMA E LITERATURA: UMA LIGAÇÃO ESTREITA
Desde o surgimento do cinema, a vontade de filmar algo com caráter informativo
ficou latente entre os entusiastas da época. Alguns materiais, inclusive, foram produzidos,
provando a capacidade informacional do cinema enquanto meio. Assim, o cinema se
colocou para o mundo como um transmissor de notícias, o que deu origem aos noticiários
em filme, conhecidos como cinejornais. Após a segunda grande guerra, a TV aparece e
as telas de cinema focam no entretenimento e se consolidam, também, como arte.
Dessa forma, entendendo-o como produto comunicacional, que não deixou de ser,
e artístico, que é, encontramos o relacionamento cinema/literatura que, desde a criação da
sétima arte, é estreito e muito particular. Já em 1903, na infância da sétima arte, Cecil
3 Também conhecido como Neoclassicismo, o Arcadismo foi uma escola literária do século XVIII.
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Hepworth e Percy Stow dirigiram o filme Alice no País das Maravilhas, baseado no livro
homônimo de Lewis Carrol. Este é o lugar mais óbvio da intercessão entre os dois
formatos artísticos: as adaptações das obras literárias para a tela. Inclusive, sobre isso,
ainda existem muitas controvérsias acerca de qual seria a primeira adaptação da história
do cinema, mas o clássico de 1902, “Viagem à lua”, do francês George Méliès, inspirado
no livro “Da Terra à Lua”, é considerado, por alguns, como a pioneira de muitas outras
que surgiriam (como Sherlock Holmes Baffled, de 1900, baseado nas obras de Sir Arthur
Conan Doyle).
A própria narrativa cinematográfica deve muito à literatura. David W. Griffith, um
dos criadores dos modos narrativos fílmicos, já explicitava seus métodos de montagem
enquanto devedores da literatura de Charles Dickens, como atesta Vanoye
(1994).
Psicose (1960), Bonequinha de Luxo (1961), O Poderoso Chefão (1972) e Cidade
de Deus (2002) são exemplos de filmes de grande sucesso (alguns se tornando clássicos
do cinema que foram baseados em livros). Trilogias e sagas como Harry Potter, O senhor
dos Anéis e Crepúsculo são bons exemplos de parcerias bem-sucedidas entre literatura e
cinema, o que comprova a validade cultural do fenômeno da adaptação, desde o
surgimento até hoje, como meio de comunicação de massa.
No que diz respeito aos estudos das relações entre literatura e cinema, fica patente
o foco nas adaptações. Inúmeros são os trabalhos dedicados ao assunto, tendo como
pioneiros Seymour Chatman, Linda Hutcheon, Brian McFarlane e Robert Stam, entre
outros.
Contudo, não só de adaptações se sustenta essa relação, podendo esta ser ainda
mais profunda, no sentido de inspirar conceitos, fenômenos linguísticos e narrativos, e
cinematografia. Na verdade, é bem recorrente acharmos recursos, referências e traços
narrativos próprios do universo literário transcodificados de maneira subjetiva, ou não,
para os filmes. No caso de Dickens e Griffith, por exemplo, o cineasta tirou do escritor a
estrutura de montagem paralela, até então inexistente no cinema, mas corrente na
literatura.
Um modo particular de enxergar a relação entre esses dois sistemas semióticos é
através das formas como o cinema se apropriou da linguagem literária para o seu espaço
por meio das passagens de tempo e dos resumos de vida de um personagem. Antes de
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Hitchcock4 (1899-1980), que criou a máxima “não me conte, me mostre”, a sétima arte
usava os personagens como uma espécie de narrador, preso aos moldes dos romances.
Torre Nilson (1924-1978) foi um cineasta argentino com grande consciência da dimensão
literária que carregava. “O cineasta deve ser um romancista”, diz Nilson, e acrescenta:
“Sei que sou duas pessoas: uma que escreve e outra que filma. Gostaria que as duas se
juntassem e pressinto que em minha carreira devem ter-se juntado”.
O ARCADISMO
De origem italiana, o Arcadismo, ou Neoclassicismo, foi uma escola literária do
século XVIII, influenciada pelos ideais Iluministas e pela filosofia francesa. Tinha como
características fundamentais o bucolismo, o nativismo, a exaltação de poetas simples e
puros e a busca pela vida campesina. “Vinha significar a associação de poetas em busca
de um ideal de simplicidade, do homem em seu estado natural” (MEGALE, 1975, p.124).
Este movimento literário, que surgiu em resistência ao Barroco5, rejeitava os
exageros, tanto na forma quanto no conteúdo, considerados inúteis pelo movimento.
Prezava pelos conhecimentos humanos, pelo domínio da razão e pela reflexão.
Dentro do arcadismo, alguns slogans se destacaram, sendo eles: Inutilia truncat
(rejeite as coisas inúteis); Fugere urbem (fuga da cidade); Locus amoenus (lugar ameno)
e Carpe diem (aproveite o dia). Estas frases reforçam as características da escola, que
buscava exaltar a felicidade do simples, do puro e da natureza.
INTO THE WILD: UM OLHAR SOBRE A VIDA DE CHRISTOPHER
MCCANDLESS
Into the Wild (Na Natureza Selvagem) é um filme de 2007, com direção de Sean
Penn. O longa é baseado no livro-reportagem de Jon Krakauber e conta a história
verdadeira de Christopher McCandless, jovem de classe média-alta, dos Estados Unidos,
que, aos 22 anos, após concluir a faculdade, resolve mudar de vida, doar todas as suas
economias para a caridade e viver desprendido de dinheiro.
4 Cineasta britânico aclamado como o Mestre do suspense. 5 Escola literária do século XVII, caracterizada pelos exageros formais e de conteúdo.
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No decorrer do filme, Chris troca de nome para Alex Supertramp. Essa troca de
nome revela muito fortemente uma característica do Arcadismo. Os escritores da escola
mudavam seus nomes, adotando alcunhas de pastores, como se fossem poetas
grecoromanos6.
Por meio de muitos caminhos que toma, entre tantas pessoas que conhece,
dificuldades que passa, abdicações que faz, Chris percebe que sua jornada precisa
desaguar no Alasca, onde, segundo ele, sua conexão com a natureza seria total e plena. O
filme é narrado em terceira pessoa pela irmã de Chris e faz uso de flashbacks para orientar
o espectador dentro da narrativa, explicando os motivos que o fazem tomar sua decisão.
No ano de seu lançamento, Into the Wild foi bem aceito pela crítica e se manteve
entre os 10 melhores filmes do ano, segundo vários veículos de comunicação como, por
exemplo, o jornal The New York Times e a revista Rolling Stone.
A LIGAÇÃO ENTRE AS ARTES
Partindo da premissa de que a arte é híbrida e que diferentes manifestações se
tocam em pontos convergentes, acreditamos que uma escola literária pode ultrapassar a
fronteira do tempo e do sistema verbal para influenciar produções cinematográficas em
uma época e contexto diferentes. Afinal, para Souriau (1982), as artes existem de forma
completa e essencial, única e singular, mas, nem por isso, deixam de estabelecer em vários
planos relações e modos de existência. Isto é, por mais que a dança, a pintura, ou a
literatura, por exemplo, sejam completas em suas esferas, não deixam de se tocar em
determinados momentos e terem correspondência entre si.
Desse modo, podemos intuir que literatura e cinema se tocam e conseguem
coexistir em um mesmo espaço, em que uma não se sobrepõe à outra, mas somam suas
linguagens para um produto mais completo e afluente.
Percorrendo este mesmo caminho da busca pelos pontos de encontro e
convergência entre as artes, Lessing (2011) acredita que a poesia só se iguala à
naturalidade da pintura quando recorre a uma escrita dramática.
6 O Neoclassicismo é um novo retorno aos ideais da antiguidade clássica, como o foi antes do Barroco o
Classicismo. No Brasil, por exemplo, Tomás Antônio Gonzaga era “Dirceu”, Cláudio Manuel da Costa se
nomeava “Glauceste Satúrnio” e Basílio da Gama seguia a alcunha de “Termindo Sipílio”.
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O único oficio verdadeiro do poeta é o de fingir palavras de
pessoas que falam entre si, e apenas essas palavras são
representadas naturalmente para o sentido da audição porque
apenas estas palavras são criadas naturalmente pela voz humana,
e em todos os aspectos ele é superado pelo pintor (LESSING,
2011, p. 12)
Sendo assim, podemos intuir que, hoje, Lessing exaltaria não a pintura, mas o
cinema como arte que dominaria a naturalidade dramática proposta pelos poetas e, assim,
consideraria sua relação com a literatura estreita e particular.
Contudo, é importante ressaltar que não estamos buscando provar que há, no
século XXI, produções de filmes inteiramente ou genuinamente árcades, mas que o
“espírito de época”, proposto por PRAZ (1982), traz um sentido de arte que ultrapassa as
barreiras de sua redoma artística e do seu tempo, explicando assim essas referências
pontuais de uma corrente literária do século XVIII seguir inspirando a construção de
narrativas fílmicas em pleno século XXI.
INTO THE WILD E O ARCADISMO
Após o que já foi exposto acerca das afluências entre as mais diferentes
manifestações artísticas, o intuito desta análise não é verificar se um filme segue à risca
todas as características de um movimento literário específico, mas investigar se no filme
Into the Wild (2007) podemos encontrar algumas singularidades específicas do
Arcadismo.
Assim como os poetas propunham no arcadismo, considerando as diferenças de
valores e comportamentos sociais decorrentes do tempo em que o filme é ambientado em
oposição ao contexto em que o Neoclassicismo surge, Chris é um protagonista que nega
o supérfluo e o excedente, busca uma vida simples com total desapego de bens materiais.
O conhecido Inutilia truncat, do arcadismo, se referia ao corte dos apelos formais,
a recusa da rima e dos temas que evocavam riqueza, vida urbana e excessos. Pode-se
perceber que o protagonista traz essa marca de “livrar-se do inútil” em sua própria história
de vida, negando títulos, bens e dinheiro.
Esta marca da narrativa se destaca por meio de diversos diálogos ao decorrer do
longa e por cenas que o diretor opta por fazer sem narração ou falas, mas que deixam clara
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a ruptura do personagem com uma vida, tida por ele, como fútil, como, por exemplo,
quando ele corta seus documentos e cartões e queima seu dinheiro.
Figura 1 – Chris fala para seus pais (reprodução de diálogo do filme)
Figura 2 – Chris queima dinheiro (captura de tela Into the Wild)
Na maior parte do filme, a narrativa se foca em reforçar a jornada de Chris rumo ao
Alasca, o roteiro reforça a sua fuga de casa, da vida padrão que possuía e da sociedade a
qual ele chamava de doente, rumo à natureza. No Arcadismo, duas premissas caracterizam
esse desejo do personagem: Locus Amoenus e Fugere Urban. Chris possui o mesmo
desejo exaltado nas obras neoclássicas: sair da cidade, fugir dos grandes centros para
buscar por si mesmo em um “lugar ameno” que na escola literária seria um lugar bucólico
e campestre, exaltando a paisagem, os hábitos rurais e os costumes simples.
Into the Wild nos conduz por uma busca pela natureza mais selvagem em seu
estado de total virgindade, fúria e liberdade, porém o conceito base de anseios entre os
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poetas árcades e o protagonista é basicamente o mesmo: encontrar a tranquilidade, a paz,
o isolamento, em oposição às superficialidades da vida econômica urbana. Nos quadros
propostos por Sean Penn, o bucolismo, a vida distante da cidade e o sentimento de lugar
tranquilo são exaltados. Os diferentes tons de azul estão marcando a cartela de cores da
maioria das cenas do longa, reafirmando essa harmonia que o personagem busca e os
poetas declamam.
Figura 3 – Chris em “lugar ameno” (Captura de tela Into the Wild)
Figura 4 – Chris na “natureza selvagem” (captura de tela Into the Wild)
Talvez sendo o conceito mais famoso do arcadismo, devido à intensa popularidade
que adquiriu (provavelmente devido ao filme Sociedade dos Poetas Mortos, de 1989), o
Carpe Diem já foi exaltado em vários filmes. Na obra estrelada por Robin Willians, por
exemplo, o professor incentiva seus alunos a descobrirem o que realmente amam fazer e
repete essa expressão diversas vezes ao longo da narrativa. Em Into the wild, o sentido de
aproveitar o dia não é explicitado diretamente por meio da fala, mas pode ser intuído por
toda a busca do personagem principal. Todos os caminhos que levam Chris ao Alasca e a
iniciar essa jornada revelam a intensa vontade de viver, de levar uma vida da forma que
realmente acredita valer a pena e, assim, encontrar-se.
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Figura 5 – Chris e Wayne conversam (reprodução de diálogo do filme)
Figura 6 – Chris em estado de natureza (Captura de tela Into the Wild)
Figura 7 – Chris “aproveita o dia” (Captura de tela Into the Wild)
Diálogos como o representado acima e cenas como as dos primeiros dias de Chris
no Alaska deixam claro que o desfecho de sua jornada deságua no Carpe Diem. Ele
finalmente o encontra lá e vive intensamente, mesmo que por pouco tempo.
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Por fim, o arcadismo trazia em si a preocupação com o homem em seu estado
natural. “No sentido próprio, de primitivismo, como no figurado, de obediência ao que
em nós é sangue e nervo” (CANDIDO apud PROENÇA FILHO, 1978, p.159). Essas
características são expressas diversas vezes por Chris de maneira figurada durante o
longa, mas aparece em sua interpretação literal quando o personagem começa a enfrentar
dificuldades de ordem fisiológica em seus dias difíceis no Alasca. O homem em busca de
alimento, usando os instintos mais primórdios para obter sua caça, submetido à condição
de extrema fome e ficando entre o limite da razão e da loucura.
Nesse ponto, fica evidente a relação com o Discurso sobre a Origem e os
Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, de Jean-Jacques Rousseau, obra
justamente do século XVIII, quando floresce o Arcadismo. Nesse Discurso, Rousseau
enaltece o homem selvagem e o “estado de natureza”, o que influencia sobremaneira o
pensamento neoclássico. As condições extremas da natureza são o lugar em que o homem
atinge seu mais alto potencial e sua verdadeira condição enquanto animal.
Assim, a morte do protagonista no filme assegura a teoria de Rousseau, a de que
o homem citadino é incapaz de viver no estado selvagem. Somente o bom selvagem,
aquele adaptado à vida na natureza, é capaz disso. O homem civilizado fica, assim, como
inferior ao selvagem. Chris foge para o “lugar ameno”, mas encontra a natureza selvagem,
daí sua incapacidade de sobreviver, sendo ele, no final, um homem civilizado, agora
incapaz de viver plenamente.
Figura 8 – Sofrimento de Chris no Alasca (Captura de tela Into the Wild)
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Figura 9 – Reflexo físico da vida extrema na natureza (Captura de tela Into the Wild)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio do recorte aqui proposto, conseguimos identificar algumas características
árcades no filme Into the Wild, o que nos leva a refletir sobre uma influência maior que a
literatura e suas correntes possam ter sobre produções artísticas posteriores e de outras
esferas.
Percebe-se que o cinema bebe na fonte da ideia estética e construtiva da escola em
questão e traz traços dela para sua realidade que podem ser percebidos de maneira direta
e indireta na narrativa.
Este texto constitui um estudo inicial sobre uma temática que abarca várias
possibilidades de pesquisa. Portanto, trata-se de um primeiro passo em um estudo sobre
as afluências entre as artes, sobretudo voltado para o cinema e as escolas literárias, sendo,
apesar de modesto, pioneiro nessa perspectiva.
Desse primeiro passo, é possível continuar a pesquisa no sentido de ampliar o
corpus, bem como de examinar outras correntes estéticas literárias, o que pode revelar
sentidos novos para obras contemporâneas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia.
São Paulo: Iluminuras, 2011.
MEGALE, Heitor. Elementos da Teoria Literária. São Paulo: Editora Nacional, 1975
PRAZ, Mario. Literatura e Artes Visuais. São Paulo: Cultrix, 1982.
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PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de Época na Literatura: através de textos
comentados. 5 ed. São Paulo: Ática, 1978.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens [1755]; Discurso sobre as ciências e as artes [1750].
São Paulo: Martins Fontes, 1993.
SOURIAU, Étienne. A correspondência das artes: elementos de estética comparada.
São Paulo: Cultrix, 1983.
VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas:
Papirus, 1994.