trabalho e sobrevivÊncia polÍtica: mÉtis, a outra instÂncia da razÃo

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Resumo:Uma das armas mais eficazes na luta pela sobrevivência nas organizações é a da ação política.A compreensão da métis, a inteligência não lógica, é um fator decisivo para o entendimentodos elementos e processos dessa luta. Não entanto, o estudo da métis vem sendo sistematicamenterelegado a um plano secundário ou reduzido a aforismos e máximas. Pouco ou nada seacrescentou a sua compreensão desde que os antigos gregos a identificaram e explicaram.Nesse texto procuramos demonstrar que o aperfeiçoamento do saber sobre a condução da economiae da gestão das organizações impõe uma retomada da discussão sobre a métis em basesatuais.Palavras-chaves: Administração, política, racionalidade, métis, sobrevivência.

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  • REAd Edio 32 Vol. 9 No. 2, mar-abr 2003

    TRABALHO E SOBREVIVNCIA POLTICA: MTIS, A OUTRA INSTNCIA DA RAZO

    Hermano Roberto Thiry Cherques 1

    Praia de Botafogo, 190 - Sala 426 Botafogo CEP: 22250-040 Rio de Janeiro/RJ Brasil

    Tel.: (21) 25595777 E-mail: [email protected]

    1 Fundao Getlio Vargas - FGV-RJ Escola Brasileira de Administrao Pblica Centro de Formao Acadmica e Pesquisa CEP: 22250-040 Rio de Janeiro/RJ Brasil Resumo: Uma das armas mais eficazes na luta pela sobrevivncia nas organizaes a da ao poltica.

    A compreenso da mtis, a inteligncia no lgica, um fator decisivo para o entendimento

    dos elementos e processos dessa luta. No entanto, o estudo da mtis vem sendo sistematica-

    mente relegado a um plano secundrio ou reduzido a aforismos e mximas. Pouco ou nada se

    acrescentou a sua compreenso desde que os antigos gregos a identificaram e explicaram.

    Nesse texto procuramos demonstrar que o aperfeioamento do saber sobre a conduo da e-

    conomia e da gesto das organizaes impe uma retomada da discusso sobre a mtis em ba-

    ses atuais.

    Palavras-chaves: Administrao, poltica, racionalidade, mtis, sobrevivncia.

  • Trabalho e sobrevivncia poltica: mtis, a outra instncia da razo

    REAd Edio 32 Vol. 9 No. 2, mar-abr 2003 2

    TRABALHO E SOBREVIVNCIA POLTICA:

    MTIS, A OUTRA INSTNCIA DA RAZOi.

    O emprego, tal como o conhecemos, est desaparecendo. A mutao nas formas de or-

    ganizar e nas tecnologias tornou a atividade assalariada um fator menor de produo. A so-

    brevivncia do trabalhador est ameaada por um adversrio impiedoso: o da sua dispensabi-

    lidade. O sonho do progresso indefinido e do seu correlato, o trabalho perene, no mais pos-

    svel. O montante de energia e inteligncia gastos para obter e reter uma ocupao j se iguala

    ao do esforo produtivo. A iluso da confraternidade, aos poucos, sufocada pela automao.

    Lutamos por permanecer no trabalho e por resistir ao trabalho.

    Essa uma luta que se d em muitas frentes. H pessoas que isolam a vida no traba-

    lho da vida social. Outras que se entregam cegamente, que no tm outra vida que no seja

    trabalhar. H os que se distanciam, se profissionalizam. H os que conseguem se tornar inde-

    pendentes. Cada um se mantm no trabalho e sobrevive ao trabalho como pode.

    Desde h alguns anos pesquisamos a luta que se trava para permanecer nas organiza-

    esii. Dos dados e informaes que levantamos, os mais difceis de apreender e analisar so

    os referidos sobrevivncia poltica. Denominamos sobrevivncia poltica a capacidade que

    tem algumas pessoas de ingressar e se manter no mundo do trabalho pela via das artimanhas,

    das aparncias, das espertezas. So especialistas em tarefas inteis, peritos no trabalho que

    ou se tornou suprfluo. So pessoas que produzem pouco ou nada, que vivem do esforo a-

    lheio, cujo trabalho consiste principalmente em se manter empregado.

    A pesquisa nesse terreno difcil. A observao direta inexiste. A indireta imprati-

    cvel. Questionrios e entrevistas so invalidados pela natureza escorregadia das personalida-

    des objeto da investigao. Os truques e expedientes so tantos e to variados que seria im-

    possvel, alm de intil, como veremos, tentar list- los. A nica possibilidade de avanar no

    conhecimento sobre a natureza da sobrevivncia poltica a da anlise dos seus fundamentos.

    Nesse texto discutimos um dos pontos focais desses fundamentos: o da forma de raciocnio

    que anima e condiciona o modo poltico de sobreviver no mundo do trabalho.

  • Hermano Roberto Thiry Cherques

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    Mtis

    Se h um ponto em que as teorias e as observaes concordam, o de que a astcia

    e no a razo lgica que governa a sobrevivncia poltica. A racionalidade que informa as ha-

    bilidades, que tece as relaes, que permite visualizar e executar as aes que do o poder de

    estar e reger as organizaes no deriva do logos, mas da mtis, a razo da sagacidade. Os que

    chegaram a dominar o prprio destino e o dos outros o fazem atravs dessa inteligncia espe-

    cial.

    Falamos em sagacidade, em maquiavelismo, em habilidade, mas esses termos so

    imprecisos. Os gregos falavam da mtis. Nem a palavra nem a idia tm traduo. Como era

    costume, eles o explicavam atravs de um mito: o da constituio da sabedoria divina. Conta-

    va esse mito o seguinte: a um determinado ponto da conquista do poder, Zeus uniu-se a astu-

    ciosa deusa Mtis. Temendo as intrigas dos seus inimigos, Zeus a devorou quando ela engra-

    vidou de Atenea. A sua inteno era dupla: se livrar da concorrncia e adquirir a agudeza de

    esprito prpria das mulheres. Nas entranhas de Zeus, Mtis deveria advertir sobre quem o

    tentasse enganar. Depois, Zeus esposou Themis, a deusa das leis eternas, nica capaz de im-

    pedir que outros pudessem dispor de habilidade e de autonomia para amea- lo. De modo que

    Mtis, dentro de Zeus, o adverte sobre o futuro imprevisvel e instvel, enquanto Themis, ao

    seu lado, o adverte sobre o futuro previsvel e estvel. Esse duplo conhecimento que permite

    a Zeus reinar sem rival.

    A mtis serve a muitos propsitos. um dos fundamentos da ao poltica, da inteli-

    gncia maquiavlica. Consiste, em grande parte, no exerccio de artimanhas. Desde a antigui-

    dade, os manuais de sobrevivncia poltica aconselham os mesmos estratagemas: absorver as

    ameaas virtuais sobrevivncia (casar com a astcia), cooptar o adversrio potencial (devo-

    rar a me da futura Athenea), estar atento tanto para as ameaas posio na estrutura organi-

    zacional como para as oportunidades de ascenso hierrquica (casar com Themis), entravar

    burocraticamente o acesso dos outros (criar e fazer cumprir as regras), jogar com a inseguran-

    a alheia (aparentar conhecer o futuro). Os que sobrevivem no trabalho pela via da poltica

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    usam esse tipo de inteligncia, essa razo que no se funda na lgica convencional, que no

    pode ser descrita.

    Mximas

    No saber administrativo e de conduo da economia, a mtis aparece como requisito

    aos esquemas de construo, de aprovao social e de conquista do poder (Blau 1964) iii. Des-

    de a era dos mitos, construiu-se toda uma literatura sobre os pequenos truques que os hbeis

    utilizam para serem estimados, para alcanar o poder e nele se manter. Para dominar a vida

    nas organizaes e garantir o prprio futuro. So adaptaes das mximas helnicas, romanas,

    medievais. Foram restauradas no Renascimento por Maquiavel. Depois, com os modernos,

    como Gracin, e mais recentemente, com La Rochefoucauld, se consolidaram. Determinadas

    frmulas foram reelaboradas por filsofos, como Schopenhauer e Nietzsche. Outras, recupe-

    radas do antigo oriente, como as mximas de Sun Tzu (1983). Algumas so poticas. Arrazo-

    ando sobre a flexibilidade, Tzu diz que a gua modela o seu curso de acordo com a natureza

    do solo por onde passa. Outras beiram a velhacaria. Gracin (1998) diz que o trabalho dignifi-

    ca porque com ele se compra a reputao.

    Estas regras e recomendaes so teis para compreender a natureza humana e para

    deitar sabedoria. Mas no criam nem ajudam a desenvolver a mtis. Em um texto clssico da

    administrao, Hebert Simon (1946) denunciou a impropriedade das mximas e provrbios

    para orientar a ao dentro e fora das organizaes. Seu esforo foi intil. A sabedoria de al-

    manaque continua a assolar os textos de administrao e de economia. Ela serve para confor-

    tar os politicamente incapazes, mas no se aplica fugacidade da luta cotidiana pelo apreo e

    pelo poder. A mtis indecifrvel justamente porque ela no tem normas. Aquele que disputa

    a sobrevivncia seja na esfera do poder do Estado, seja na da economia, seja no interior das

    organizaes, age de acordo com uma racionalidade original, com uma forma particular de

    usar a inteligncia, que combina sagacidade, astcia, perspiccia, e sutileza. No algo que se

    possa apreender com leituras e discusses. Por que razo alguns a desenvolvem e outros so

    politicamente simplrios, um mistrio que a psicologia ainda est por resolver. Talvez ela s

    possa ser obtida pela prtica, como queriam os sofistas iv. Talvez seja atvica.

    A mtis operacionaliza o saber conjetural. muitas vezes confundida com o maquia-

    velismo, com o uso indiscriminado de expedientes para alcanar o poder. Mas ela o antecede.

    Para os gregos, abarcava desde a armadilha de caa maestria do piloto, desde o olho clnico

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    do mdico aos ardis de Ulisses. uma divindade feminina, uma prudncia astuciosa. Ela faz

    o fraco vencer o forte, como no canto XXII da Ilada, onde Nestor sugere truques para ganhar

    batalhas quando o oponente mais poderoso. Ela faz o pequeno vencer o grande, como quan-

    do Opiano, que tratou da pesca e da caa, ensina sobre as armadilhas e as tcnicas. Ela permi-

    te o subalterno enfrentar o senhor, como quando Hesodo e squilo, explicam os enganos e

    desvios de Prometeu para resistir ao poder de Zeus. Ela permite iludir, como a mtis de hyp-

    nos, o sono, faz as vezes do seu irmo gmeo, Tanatos, a morte (Vernant 1978)v.

    Os fracos, os pequenos, os subalternos, os que no encontram outro meio para sobre-

    viver no trabalho do que a ao poltica so usurios da mtis. So, e sempre foram, mal com-

    preendidos. A fora do pensamento platnico, que propunha a verdade eterna, terminou por

    anular no ocidente o saber e o estudo da sagacidade. A tica crist repudiou o maquiavelismo.

    Aristles ainda coloca a mtis como um dos esteios da phronesis, que mais do que a prudn-

    cia no sentido que damos hoje. a capacidade prtica que permite o domnio das aes teis

    conservao nossa e da sociedade. Mas nem s os fracos, os pequenos, os subalternos fazem

    uso da astcia para sobreviver. Tambm muitos dos fortes, dos grandes, dos poderosos alcan-

    am sobreviver nas organizaes unicamente graas ao uso da razo poltica.

    Maquiavelismo

    A poltica a arte de Janus, a divindade bifrontevi. Como os rostos de Janus, o polti-

    co olha para frente e para trs porque persegue objetivos dspares, usualmente antagnicos.

    No plano maior da nao e do Estado, persegue, ao menos em teoria, o bem estar do povo e,

    simultaneamente, o bem estar prprio. No plano das organizaes no diferente. As faces de

    Janus se contrapem. Uma se volta para o bem privado, outra, para o da organizao. Num e

    noutro plano a dificuldade de decidir entre a moral e a sobrevivncia a mesma: para onde

    olhar? A que interesse servir primeiro? O que sabemos da natureza humana no nos deixa

    margens a dvidas. A escolha puramente moral exceo. Mas tambm o a escolha pura-

    mente interesseira. S uma razo parte da lgica, s a mtis, pode conciliar as duas faces de

    Janus, pode objetivar a ao poltica.

    Maquiavel foi quem primeiro retomou a idia antiga da racionalizao fria do poder.

    Da instrumentalizao das habilidades e do intelecto. Do uso pratico das fraquezas e das pai-

    xes, da cobia, da ambio, da vontade de poderio. So dele conceitos como o do distancia-

    mento do lder, da aliana com os subordinados e tantos outros. Alguns so espantosos, como

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    a da crueldade que leva ao bem. Outros, incomuns poca em que escreveu, como o da cola-

    borao dos opositores. Quase todos so utilizados ainda ho je sob diversos disfarces. Por e-

    xemplo, sua a frmula para o aliciamento dos adversrios, que na luta pela sobrevivncia no

    trabalho leva o nome de cooptao, de compromisso, de pacto, mas, tambm, de quinta colu-

    na, de traio.

    Maquiavel foi mal interpretado: ele descreveu o que viu da conduta do prncipe. Ele

    no inventou uma forma de agir. Ele no exaltou o poder, que apresenta como contestvel e

    ameaado. O que ele demonstrou foi que o jogo poltico uma condio, no um fim. Que

    preciso entend-lo. Principalmente no cotidiano das organizaes, onde esse jogo uma con-

    dio de sobrevida. s vezes a nica. A inteno de Maquiavel, escorraado de Florena, no

    era nem o poder nem a posteridade. Ele queria sobreviver. Se possvel com conforto.

    O saber sutil

    Tudo que no pode ser esquematizado constitui a mtis. A governana vigilante do

    piloto que enfrenta os ventos e as ondas, a inteligncia prtica, fonte dos ofcios, do saber fa-

    zer. Para os antigos, ela era um dos atributos de todos que podem viver em dois mundos, das

    focas escorregadias, dos anfbios, do caranguejo que caminha em todas as direes, exceto

    para frentevii. Era a faculdade de produzir e fazer produzir, de acender uma vela a Deus e ou-

    tra ao diabo. Aristteles mesmo era dotado da mtis. Por exemplo, ele ensinou que tudo tem

    um fim, mas nunca definiu o que o fim. Alegava que ningum estaria de acordo com a defi-

    nio. A indefinio do fim uma das condies do exerccio da prudncia. At hoje, a inde-

    finio de propsitos, objetivos e misses um dos esteios da sobrevivncia no poder dos e-

    xecutivos. Definir significa etimologicamente estabelecer um limite, um fim, dotar de preci-

    so o que no pode, por social e econmico, ser preciso e rigoroso. Uma das atitudes mais sa-

    gazes da mtis consiste em calar, em no denunciar essa impossibilidade. A alegao de que a

    empresa, o governo ou qualquer que seja a organizao vive melhor tendo um sentido fictcio

    do que no tendo nenhum sentido tpica da mtis, essa forma de raciocinar que beira a frau-

    de.

    A mtis a capacidade intelectual orientada para a vida prtica, para o xito atravs

    da ao. Como a raposa ela flexvel, como o polvo, ela enlaa o objeto e o paralisa. Ela

    sutil. Os que a usam navegam no nebuloso e no incerto. Sobram exemplos do seu uso. No

    mundo do trabalho que a est, arrisca a sobrevivncia quem declara a ineficcia da razo im-

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    perante. Por isso, nas organizaes, h, como sempre houve, uma permanente cortina de fu-

    maa pairando sobre o entendimento dos mecanismos de admisso, de ascenso hierrquica,

    de obteno de privilgios. Ainda nos primrdios do estudo cientfico da administrao, Ches-

    ter Barnard (1938) d a perspiccia poltica como condio de persuaso e de obteno de

    vantagens viii. Mas sequer tenta explicar como ela funciona. Intil procurar na literatura poste-

    rior e nos dados e tabelas das pesquisas. A mtis to recatada que apenas se deixa vislum-

    brar nas entrevistas e conversas laterais. Recebe o nome de instinto, experincia, estilo ix. Nem

    os prprios detentores dessas virtudes, das diversas faces da sagacidade poltica, sabem ou

    querem explic- la.

    Finesse

    Periodicamente o assunto volta s estantes das livrarias de aeroporto, ao grosseiro

    marketing das consultorias. Regras para o xito so reconstrudas, escovadas e modernizadas.

    Os executivos da moda proferem listas e listas de mandamentos. Pesquisadores entrevistam os

    sobreviventes dos cataclismos da economia. Tudo isso , para dizer o mnimo, de utilidade

    discutvel. Nas pesquisas a que vimos nos referindo, entrevistamos gente de sucesso e, tam-

    bm, os que tinham fracassado. Eles conheciam e obedeciam as regras de sobrevivnciax. O

    que lhes faltava, e isso impossvel de provar, era a mtis. A informao para a ao poltica.

    O quid da finura, do descortino, da clarividncia sobre o prprio destinoxi.

    A argcia poltica sempre foi difcil de definir. Blaise Pascal (1940) sustentou, contra

    o geometrismo de Descartes, a existncia de duas espcies de compreenso, de dois espr i-

    tos (esprits)xii. Ao esprito geomtrico corresponderia uma perspectiva lenta e inflexvel. o

    que se aplica cincia. Tem princpios distintos do uso comum. Ao esprito afetivo (de fines-

    se) corresponderia uma perspectiva rpida e malevel. o que se aplica ao amor. Tem princ -

    pios comuns a todos. a razo do corao que a razo desconhece. Pois justamente esse co-

    eur de Pascal (1976) que parece sobrar aos que sobrevivem nas organizaes quando so ou

    se tornaram dispensveis do ponto de vista da produo.

    Pascal d a origem da finesse no exerccio espiritual, no sentir mais do que no pensar.

    Enquanto os gemetras querendo comear pelas definies e em seguida pelos princpios,

    se apoiando sobre o raciocnio lgico, o corao, o esprito de finesse , que pode compreen-

    der e justificar a moral, a religio e a filosofia. ele que permite adivinhar o prximo passo, a

    colher, das nuances das informaes que todos compartilham, o ensinamento do que rele-

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    vante e do que no . o esprito afetivo e no o geomtrico que permite ler nas entrelinhas

    dos demonstrativos financeiros, das peas de marketing, dos relatrios de progresso, dos co-

    municados imprensa. Pascal propunha que as duas inteligncias vivessem em equilbrio.

    Mas isso no parece possvel. Elas se aplicam a domnios diferentes. O racional no um cl-

    culo que anteceda o emocional. outra coisa. uma razo a posteriori, no antecipa o perigo

    nem a oportunidade. O emocional, por seu turno, no o sensvel, o percebido. O emocional,

    o afetivo, l`ordre du coeur de Pascal, como o volitivo, o querer: alguma coisa anterior ra-

    zo, ao logos que esquematiza e calculaxiii. O poder da ordem do tcito. Ele no coage nem

    persuade: ele aliciaxiv.

    O entendimento prtico

    A mtis a sabedoria prtica, que se aplica situaes transitrias, cambiantes,

    desconcertantes e ambguas, situaes que no se prestam mensurao precisa, a clculos

    exatos ou lgica rigorosa. Hume dizia que em todo o raciocino h um passo que no se a-

    pia em argumentos ou no processo de compreensoxv. nesse interstcio que a sagacidade

    parece operar. Por isso difcil entend- la. Todo saber ocidental no s louva a racionalidade

    lgica com sustenta que nenhum conhecimento pode ser obtido por revelao, intuio ou

    inspirao. A nossa prpria cultura, a forma como aprendemos a pensar, contribui para isso.

    Mas, acima de tudo, a nos dificultar a compreenso da mtis est a emocionalidade envolvida

    no trabalho, na manuteno do emprego. A inteligncia emotiva, como argumenta Freud

    (1952), cria barreiras que no nos permitem aceitar as motivaes inconscientes. Na vida e no

    trabalho preferimos limitar-nos hiptese da escolha racional.

    A escolha racional, que tanto tem ocupado os tericos da economia e da administra-

    o, o contrrio da mtis. Ela pressupe a existncia de metas conhecidas, de propsitos ob-

    jetivos, de finalidades declarveis e de alternativas identificadas para alcan- las (Pfeffer

    1981). Mas as escolhas polticas no so assim. Operam sobre o que Paul Valry (1994) cha-

    mou de racionalidade instrumentalizada. Uma razo que se prope situaes-problema, no

    metas nem alternativas. Muito do que enfrentamos na vida e quase tudo que tange convi-

    vncia no admite soluo pelo clculo, como no o admitem os problemas do estar no mun-

    do, do conhecimento, da alteridade, do vivido.

    Mesmo Hebert Simon, que dedicou sua vida a entender a coerncia e propriedade das

    decises nas organizaes e na economiaxvi, e que morreu convencido que poderia substituir a

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    acuidade do esprito humano pelo clculo computacionalxvii, no foi capaz de definir clara-

    mente os limites da racionalidade nem de encontrar uma frmula para que pudesse ser cons i-

    derada pelos modelos econmicos e os esquemas estratgicos de gestoxviii. Peter Drucker

    (1993), com formao muito mais slida e melhor conhecimento das organizaes da natureza

    humana, declara ser isso impossvelxix. Mintzberg (1981) tentou enfrentar o problema sepa-

    rando as bases do poder nas organizaes em duas categorias. Uma, baseada na dependncia,

    constituda pelo controle dos recursos, pela habilidade tcnica e pelo conhecimento til. A

    outra est dividida entre os privilgios legais que so uma conquista mais do que uma fonte

    de poder e a capacidade de persuadir, essa sim poltica, constituda de elementos como apa-

    rncia, atratividade, etc, impossveis de precisar. Fora essa leves menes, o entendimento

    prtico e a prpria luta pela sobrevivncia poltica no trabalho, parecem no existir, como se o

    convvio e as disputas entre e pessoas e grupos fossem esquemticos e calculveis.

    Sobrevida

    possvel que a desconsiderao dos fundamentos da sobrevivncia poltica seja

    uma forma de os tericos sobreviverem eles mesmos inextricvel complexidade que a est.

    Tambm possvel que a mtis seja mal estudada porque a sua compreenso no a prov. Ela

    faltou a Maquiavel em toda a sua infeliz existncia. Ele desentendeu-se com os poderosos de

    Florena e foi exilado. No exlio, serviu aos Mdicis que, seguindo seus ensinamentos, jamais

    o empregaram. Republicano, ofendeu a Repblica, que nunca o perdoou. Intelecto superior,

    colocou sempre, ao contrrio do que pregava, o oportunismo acima da virtxx.

    Talvez a mtis seja omitida porque as tentativas recorrentes de reter e transferir co-

    nhecimento sob a forma de provrbios e mximas so inteis, porque os cenrios e as experi-

    ncias jamais se repetem. O saber que informa a ao poltica circunstancial e anterior re-

    flexo. A m fama que o cerca desembocou na idia do maquiavelismo, na condenao moral

    a priori, que decorre da ignorncia e a realimenta. O maquiavlico caracterizado como o

    astuto, o sutil, o enganador, o expedito e o desonesto. O termo aplicado, inclusive em psico-

    logia, queles que manipulam ou enganam para alcanar seus objetivos pessoais. Mas a ast-

    cia no exclui a honestidade. A moralidade tambm depende do raciocnio no lgicoxxi. A

    mtis no o maquiavelismo, mas a condio do maquiavelismo e de toda ao poltica.

    Vivemos em um mundo em que as mutaes da economia e das organizaes leva-

    ram exausto as formas de trabalho como as tnhamos conhecido desde os primrdios da era

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    moderna. Em que o trabalho se tornou precrio, instvel e incerto. Em que a poltica para so-

    breviver no e ao trabalho cada vez mais agressiva. Nesse mundo, a compreenso da astcia,

    h muito relegada, tem um papel primordial na explicitao acadmica, mas tambm na dos

    mveis e instrumentos de uma parte significativa da sobrevivncia nas organizaes.

    No contexto econmico e organizacional que a est, onde a educao confundida

    com a informao e a energia criativa com a arrogncia malcriada, o saber sutil permanece

    intocado, sustentando a sobrevida de quantos o possuem e cultivam. O conhecimento dos

    mecanismos intelectuais da gesto segue perrengue, acreditando e fazendo acreditar que a ra-

    zo lgica, a razo da econometria e dos algoritmos de deciso, suficiente para explicar a

    vida e a sobrevida no mundo do trabalho.

    Mal estudada, mal compreendida, desprezada, a mtis, a razo, ou a parte da razo

    que garante o ingresso e a permanncia nas organizaes de um sem nmero de pessoas. Os

    que a detm, detm a condio da virt, da exatido no entender e do esmero no fazer, tanto o

    bem como o mal. Detm a condio da persuaso contra a fora, a condio da fria serenidade

    contra a exaltao e a friaxxii. A mtis permite aos que no produzem se manter nas organiza-

    es, mas tambm d aos que produzem a condio de sobreviver trama de frivolidade, ga-

    nncia e inveja que transpassa as relaes humanas no mundo do trabalho.

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    Notas

    i O autor grato ao Prof. Enrique Saravia e a Roberto da Costa Pimenta pelos comentrios verso inicial desse texto. ii A mais extensa dessas pesquisas visou identificar modelos de sobrevivncia em indstrias. Esteve voltada

    para a sobrevivncia moral em ambiente industrial. [Cherques 2.000]. Outras pesquisas, como, a que rela-cionou o nvel tecnolgico produtividade, [Cherques - 1994] tiveram como objeto a sobrevivncia material.

    iii Sobre associao como meio de obter aprovao social, (Blau), e como coalizo poltica (ver March 1962). As organizaes j foram descritas como campo de barganhas e compromissos em que os atores usam o poder que tm para defender uma posio: a prpria. Ver Allison 1971.

    iv Maquiavel, com todo seu atilamento, foi incapaz de descrev-la. Apenas a assinala, como no Captulo XVIII do Prncipe (1952), quando diz que os homens em geral julgam mais pelos olhos do que pelas mos. Todo ho-mem pode ver, mas pouqussimos sabem tocar. Cada um v facilmente o que parecemos ser, mas quase ningum identifica o que somos, e esses poucos espritos penetrantes no ousam contradizer a multido ... v"um tipo de inteligncia e pensamento, um modo de conhecimento que implica num conjunto complexo e coe-

    rente de atitudes mentais e comportamento intelectual que combina gosto e aptido, sabedoria, antecipao, sutileza da mente, (...) abundncia de recursos, vigilncia, oportunismo, habilidades variadas, e anos de exp e-rincia adquirida (Vernant, 1978, p. 3). "

    vi Janus, a quem devemos o ms de janeiro, foi uma divindade romana. Era celebrado no primeiro dia do ano. Ele conhecia o passado e o futuro. O seu templo ficava fechado em tempos de paz. S abria quando Roma estava em guerra.

    vii Aristteles; Histria dos animais (566 B 28 ss) e (567A, E e 13). viii D o poder de racionalizar oportunidades (convencer os trabalhadores de que do seu interesse produzir mais

    e melhor) e a inculcao de motivos como condies da persuaso. A terceira condio a da coero ao tra-balho.

    ix Scrates, Plato, mas tambm muitos outros depois, como Goethe, mencionam esse demnio a que chamamos de gnio ou inspirao. A inspirao, o pneuma , corresponde ao de um esprito divino que d o conhecimen-to imediato. O instinto, que se opunha inteligncia, hoje no mais considerado isoladamente. evidente, por exemplo, que muitas vezes, entre o `instinto de sobrevivncia a ao correspondente h uma mediao lgica e cultural. (s nos protegemos do perigo que sabemos ou supomos existir)

  • Hermano Roberto Thiry Cherques

    REAd Edio 32 Vol. 9 No. 2, mar-abr 2003 13

    x A melhor sntese das regras bsicas para influenciar, obter e manter o poder nas organizaes ainda a constru-

    da por Cohen e March (1974) sobre a liderana nos ginsios e universidades americanas: 1) gaste tempo, 2) persista. 3) troque posio por substncia (por exemplo, troque status por reconhecimento social, posto por au-to-estima); 4) facilite a participao dos oponentes (no crie nem cultive inimigos); 5) sobrecarregue o sistema (no d espao para ociosidade); 6) proponha projetos que todos estejam de acordo (evite polmicas); 7) prefi-ra resultado do que visibilidade (evite reas sensveis). Ao convencer os outros: a) apresente as metas como hipteses (no force); b) use a intuio como se tivesse certeza; c) trate a hipocrisia como algo temporrio (se-ja hipcrita), d) trate a memria como inimiga (esquea), e) trate a experincia prtica como se tivesse base te-rica (o que todos sabemos).

    xi O nosso saber popular tem nos versos Dom Joo Manuel, camareiro-mor de Dom Manuel (ca. 1497) uma ex-presso melhor do que muita coisa que foi copiada posteriormente. Esse versos rezam: Ouve, v e cala / E v i-vers vida folgada; // Tua porta cerrars, / Teu vizinho louvars / Quanto podes no fars, / Quanto sabes no dirs, / Quanto ouves no crers / Se queres viver em paz. // Seis coisas sempre v, / Quando falares, te man-do:/ De quem falas, onde e qu, / E a quem, e como e quando. // Nunca fies nem porfies, / Nem a outro injuri-es, / No estes muito na praa, / Nem te rias de quem passa. // Seja teu todo o que vestes, / A ribaldos no do-estes, / No cavalgars em potro, / Nem tua mulher gabes a outro. // No cures de ser pico, / Nem travar con-tra a razo:/ Assim logrars tuas cs / Com as tuas queixas ss.

    xii O esprito aquilo que pensa, a substncia pensante de Descartes. Com Kant o esprito passou a se confun-dir com o gnio (Crtica do Juzo 46-50) para designar o poder produtivo e a originalidade criativa da razo. Hegel toma o conceito e o transforma em uma das mais intrincadas idias da filosofia, ao dividi-lo em subjetivo, objetivo e absoluto. xiii Ver Malinardi (1992) xiv Merleau- Ponti (1991) xv An enquiry concerning human understanding. Seo V, Parte I xvi Simon realizou progressos que lhe valeram um Nobel em 1978. Sua idia mais interessante a de que o que

    move a deciso no a maximizao isto , a obteno do mximo possvel mas a satisfao - a obteno do satisfatrio. A maximizao no possvel porque a informao necessria a deciso teria que ser comple-ta, o que impossvel, e porque teria que haver uma nica meta, no uma pluralidade de metas, como efetiva-mente ocorre. Outra idia de Simon e de que a escolha racional no considera a razo em sua plenitude, mas uma racionalidade limitada. Simon 1954

    xvii Ver, por exemplo, Simon 1995 xviii Um estudo completo sobre o tema o de Foss (2.002) xix Ele afirma que o planejamento estratgico no substitui a habilidade, a coragem, a experincia, a intuio e

    mesmo o pressentimento. xx Merleau-Ponty - 1991 xxi Maquiavel diz que s percebendo o mal com antecipao podemos evit-lo [Principe 3 e 13] xxii Aristteles (Retrica, Livro I, 2; 1355b, 20) ensina que para ser persuasivo h que usar, alm da razo lgica,

    o entendimento da natureza humana e o entendimento das emoes.