"tiras cômicas e piadas:duas leituras, um efeito de humor
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PARTE III
LENDO
TIRAS
CMICAS
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CAPTULO 10
LEITURA CRTICA DE TIRAS CMICAS
Cirne (1975, p. 14) diz que para se compreenderem os mecanismos
comunicacionais de uma estria em quadrinhos torna-se necessrio que se saiba ler os
componentes sgnicos que forjam a sua temperatura esttica. E acrescenta: os quadrinhos
so menos simples do que aparentam. O que ou parece ser bvio para alguns leitores j
iniciados no tema pode no ser para outros, por mais letrados ou bem informados que
sejam. Acevedo (1990, p. 67) tem raciocnio semelhante: a leitura dessas histrias
pressupe um ato complexo de abstrao e de sntese por parte do leitor.
Eco (1993) responsvel por uma das anlises mais conhecidas na literatura das
histrias em quadrinhos. Por isso, ser nosso ponto de partida na busca por um mecanismo
de leitura da tira cmica, objetivo deste captulo. O mtodo de Eco se baseia na
contextualizao do texto e na descrio dele. Qualquer interesse alm, como discutir
aspectos ideolgicos, teria de partir da descrio como base para a eventual pesquisa.
O pesquisador italiano estudou a primeira histria do personagem norte-americano
Steve Canyon, criao de Milton Caniff. Trata-se de uma pgina, publicada em 11 de
janeiro de 1947. Era o primeiro contato que os leitores tinham com Canyon. A nica
informao complementar era que Caniff tinha sido o autor de outra srie, Terry e os
piratas. Segundo Eco, o desenhista tinha o desafio de, nesta histria inicial, chamar a
ateno do pblico que o acompanhava at ento, algo em torno de 30 milhes de pessoas
(op. cit., p. 131). Essa seria a contextualizao. Na seqncia, inicia a descrio.
Eco faz um relato de que se trata de uma pgina inteira, composta de quatro
seqncias de tiras horizontais. O autor, a seguir, expe os elementos visuais e verbais
presentes em cada um dos quadrinhos (ou vinhetas, nomenclatura utilizada pelo tradutor da
obra). Observa desde os enquadramentos utilizados at a forma como as palavras so
escritas nos bales. Tenta, enfim, verbalizar todos os elementos depreendidos nos
quadrinhos, destacando aspectos aparentemente bvios, como o contedo lido no balo, at
outros mais complexos, que exigem do leitor um conhecimento mais aprofundado. Ao fim
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da descrio, fica evidente que a histria possui um grande volume de informaes, mais
at do que se imagina.
O processo de leitura de uma histria em quadrinhos automtico. Observa-se a
figura, lem-se os elementos verbais, muda-se de quadrinho. O mtodo adotado por Eco
extremamente simples de ser realizado e d uma ntida idia das etapas que o leitor deve
seguir no processo de compreenso da histria. Alguns aspectos so facilmente percebidos;
outros so inferidos naturalmente; um terceiro grupo, dada a complexidade, exige
conhecimento prvio. Este caso pode ser exemplificado por meio de um dos dilogos da
histria (figura 1). Em determinado momento, Canyon pergunta se o elevador vai subir.
Duas moas respondem. A primeira diz que, para ele, no h necessidade de esperar que
fique lotado. Pede o consentimento da segunda: no verdade, Irma. A resposta da
colega R-r-rajah. Segundo Eco, a expresso corruptela de Roger que, no jargo dos
pilotos, equivale ao O.K.. O fato de que a moa o use para exprimir entusiasmo- com
Steve, d a entender que ele conhecido como aviador (op. cit., p. 136).
Figura 10.1 Steve Canyon
Outro conhecimento prvio que esperado do leitor, de acordo com Eco, o
domnio dos recursos grficos utilizados nos quadrinhos. H uma expectativa de que o
leitor tenha cincia do que seja balo, onomatopia e outros elementos: o tipo de
estilizao grfica examinado funda-se numa srie de convenes bastante pacficas,
baseado nas quais todo bom leitor de estrias em quadrinhos est em situao de colher de
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pronto o inteiro alcance da mensagem (1993, p. 141). Autor e leitor compartilhariam um
mesmo cdigo, refletido no texto. Isso formaria uma espcie de comunidade da qual fariam
parte (o que aproxima viso de comunidade discursiva de Swales).
Um dos domnios do cdigo ter conscincia de que h necessidade de
preenchimento das informaes entre os quadrinhos, espao chamado de hiato (sarjeta,
para Eco). A histria quebra o continuum em poucos elementos essenciais. O leitor, a
seguir, solda esses elementos na imaginao e os v como continuum (...) (op. cit., p. 147).
Quando liga uma informao outra, esperado que o leitor infira informaes. Eco
menciona pesquisa de Evelin Sullerot sobre fotonovelas, que apresenta estrutura
semelhante dos quadrinhos. O estudo revelou que as leitoras analisadas se lembravam de
cenas que no existiam nas pginas, mas eram inferidas no processo de leitura. Para Eco,
isso mostra que h tendncia eliminao de redundncias. McCloud (2005, p. 84-89)
tambm v nesse processo uma economia no uso das imagens. O leitor capta fragmentos de
cenas e, a partir delas, constri idias completas.
O fim da anlise de Eco procura mostrar que os quadrinhos so ideologicamente
determinados. Os autores s sugeririam no texto informaes que fossem compartilhadas
pelos leitores. Deve haver, segundo afirma Eisner (2005, p. 51) um pacto entre os dois.
O modelo de Eco semelhante ao adotado por Ferrara (2001) e Joly (2005). A
anlise partiria de dados contextuais (que criam uma expectativa de leitura) para, depois,
explicar verbalmente os elementos presentes na cena. A noo de expectativa na recepo
de uma mensagem absolutamente capital. E, claro, est intimamente ligada de
contexto. Ambas as noes condicionam, a interpretao da mensagem e completam as
noes de instrues de leitura (JOLY, 2005, p. 61). Acrescentaramos que a percepo do
gnero tira cmica envolve um conhecimento genrico, que tambm cria expectativas e
interfere no processo de leitura.
Ferrara delega ao leitor um papel importante no ato de compreenso do texto no-
verbal. A autora prope um mtodo de leitura, que passa por uma srie de etapas a serem
depreendidas pelo leitor, que podem ser resumidas desta maneira:
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contextualizao socioeconmica e histrica do texto lido; segundo a autora, a
representao sgnica uma maneira de representar o prprio sistema
socioeconmico-cultural;
identificao de qual a dominante do texto, um elemento central ante os
demais; a dominante fundamental para garantir a coeso textual e dar nfase a
um determinado aspecto durante a leitura;
observao e comparao (analogia a outros elementos) do objeto lido.
Esse mecanismo de leitura nos parece apropriado para ser aplicado nas tiras. Ele
parte de uma anlise dos aspectos contextuais para, depois, deter-se na explicao verbal
dos elementos da cena narrativa presentes em cada um dos quadrinhos. Mas o modelo pode
ainda ser aprofundado, principalmente na questo da articulao sgnica presente dentro das
vinhetas e entre um quadrinho e outro.
10. 1 - A articulao entre os signos
Figura 10.2 cios do ofcio
O contexto: a imagem pertence tira cmica cios do ofcio, criao do
desenhista Gilmar. O ttulo um trocadilho da expresso ossos do ofcio e sintetiza o
tema abordado abordado nas histrias, sempre ligado ao universo do trabalho e do
emprego, independentemente da profisso. Podemos perceber (ou ler visualmente) dois
homens, um em cada canto da cena. Inferimos que sejam bombeiros. o que sugerem o
uniforme, as luvas e, principalmente, o chapu vermelho. Nosso conhecimento de mundo
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confirma que tal traje prprio de bombeiros. A cena tambm indica essa percepo.
Ambos seguram uma rede elstica, comum em salvamentos de incndios.
Os dois homens olham para o alto, com expresses faciais tensas (bocas abertas,
olhos arregalados). Dentro dos dois bales, que reproduzem turnos conversacionais, h uma
mesma frase: Pula!!. Como as letras esto em negrito e em caixa alta, as falas adquirem
expressividade que sugere voz alta. Gotas saindo das bocas acentuam a verbalizao feita
de maneira gritada. As exclamaes reforam o tom emotivo. Atrs dos bombeiros, h uma
parede e possveis destroos caindo. Todas essas informaes nos levam inferncia de que
se trata mesmo de um incndio, que a parede possivelmente pertena a um prdio ou
sobrado (um imvel alto) e que haja uma vtima, prestes a pular. Instaura-se um tpico
ligado idia de salvamento de incndio.
Essa leitura apenas explicou o que foi possvel perceber e inferir a partir da cena. O
que foi feito encontra reforo na discusso sobre os elementos visuais presentes num texto,
feita no capitulo 2. Apenas para relembrar. Vimos que um texto como as tiras cmicas
composto por diferentes signos. H os signos verbais escritos, que reproduzem os
elementos da fala por meio de letras, com diferentes expressividades. H tambm os signos
de ordem visual: signo icnico (que representa as figuras por meio de transformao do
real; percebido por analogia), signo plstico (cor, textura, formas) e de contorno (a linha
que envolve os bales, por exemplo). Cada um apresenta significantes visuais (mais
abstratos ou menos abstratos) e significados depreendidos por meio da percepo do
significante e do contexto.
Um signo no se sobrepe ao outro. O processo de formao do sentido surge da
articulao entre eles, dentro do contexto sugerido pela histria. Todos os signos so
explicados por meio da verbalizao escrita, tal qual fizemos anteriormente (e como
propem tambm ECO, JOLY e FERRARA). No caso do signo icnico, o significado pode
eventualmente ser explicado por meio de uma expresso, algo como bombeiro em
desespero segura rede de salvamento.
Vimos tambm no captulo 2 que o signo icnico apresenta uma dupla articulao:
com relao a outros signos e consigo mesmo. Um bombeiro se relaciona narrativamente
com o outro bombeiro, mas a boca de cada um se articula com o todo do corpo. A boca
aberta mantm relao com a cabea do bombeiro, que, por sua vez, pertence ao corpo dele.
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Boca, cabea e corpo so todos signos icnicos, estabelecendo relaes entre um e outro
(sendo um signo dependente ou no do outro, conforme a referncia adotada).
Na articulao entre os signos icnicos, h diferentes processos: o da figura
(bombeiros com a rede) em relao ao fundo (a parede e os destroos), o dos personagens
com o leitor (so ou no observados por ele), entre um elemento dado (o percebido
esquerda) e um novo (o da direita). Se o leitor est familiarizado com as regras prprias
leitura das tiras, faria uma leitura linear do texto. Se no estivesse familiarizado, se tivesse
de reconstruir o processamento da linguagem, seria uma leitura no-linear.
Trs pontos precisam ser reforados. Primeiro: a leitura do quadrinho de cios do
ofcio envolveu inferncias e conhecimentos prvios e de mundo por parte do leitor. No
apenas conhecimentos de que bombeiros usam uniformes e chapus vermelhos mas
tambm que se trata de uma histria em quadrinhos em um de seus gneros, a tira cmica.
O conhecimento do gnero estabelece uma automtica expectativa de leitura: o texto (tira)
teria um formato fixo, curto e um desfecho inesperado, que levaria ao humor, tal qual uma
piada. Essa informao genrica, parte integrante do contexto, envolve um necessrio
conhecimento da linguagem dos quadrinhos para o processo de construo do sentido.
como uma pessoa que trabalha num computador. Precisa saber uma srie de comandos para
poder utilizar os programas da mquina. Assim tambm ocorre nos quadrinhos.
Segundo ponto: a leitura comeou pela imagem dos bombeiros. Isso o que Ferrara
chamou de dominante do texto e encontra reforo em outros autores. No entender de
Cagnin (1975, p. 61), a figura a unidade mnima da imagem. O autor a nomeou de
unidade-imagem (que lemos como signo icnico). a partir dela que se podem perceber os
signos visuais que envolvem a figura central (no caso, os bombeiros) e a articulao deles
com o fundo da cena.
Terceiro ponto a ser reforado: os primeiros pargrafos da anlise da tira cios do
ofcio fizeram uma explicao da cena sem que fossem expostos todos elementos tericos
descritos nos pargrafos seguintes. Isso quer dizer que os elementos tericos so
desnecessrios? No. Quer dizer apenas que os alicerces tericos, discutidos anteriormente
e revisados aqui, so percebidos automaticamente na verbalizao da cena e justificam esse
mtodo de anlise. No precisamos dizer que os bombeiros so a figura e a parede, o fundo.
Nem que compem signos icnicos distintos. Os elementos tericos instrumentalizam a
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descrio, mas ficam aparentemente escondidos. Vm tona apenas em caso de uma
eventual necessidade de aprofundamento durante a anlise. Ora uns tm maior relevncia
para a leitura, ora outros, ora todos.
Vimos que o mecanismo de leitura possvel de ser aplicado em uma vinheta de
tira. Mas uma leitura ainda parcial, porque no foi analisada a seqncia da tira, que d
coerncia ao conjunto do texto.
Figura 10.3 cios do ofcio
A cena a segunda e ltima vinheta da tira cios do ofcio. o desfecho da
narrativa. Ela pode ser explicada verbalmente da mesma forma como fizemos antes. Mas
com uma diferena: h informaes novas e informaes antigas, vistas na vinheta
anterior. So elementos de sentido que no podem ser ignorados, porque acrescentam
informaes leitura da vinheta. Vemos, pelos elementos sgnicos icnicos e plsticos, que
so os mesmos bombeiros, segurando a mesma rede, prximos mesma parede. O ngulo
de viso, agora de baixo para cima, evidencia o que antes era apenas inferncia: realmente
se trata de um incndio (percebe-se pela presena de chamas e fumaa) e a parede pertence
mesmo a um prdio. Num dos andares do edifcio, h um terceiro homem, de boca aberta,
com metforas visuais em volta da cabea indicando nfase na frase que fala (o apndice
torto do balo adquire expressividade de tenso ou algo equivalente): No posso! Se eu
sair antes do final do expediente, meu patro me mata!. A frase uma resposta fala dos
bombeiros, dita na vinheta anterior (Pula!) e recuperada no processamento textual.
Espera-se que a vtima de um incndio queira se salvar, pulando na rede elstica
segurada pelos bombeiros. a informao que nosso conhecimento de mundo refora. A
inteno do homem de permanecer no prdio em chamas porque o chefe probe que saia
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antes do fim do expediente de servio cria um desfecho completamente inesperado: ele tem
mais medo da ameaa de morte do chefe (supostamente apenas uma ameaa para
intimidar) do que de morrer queimado (uma ameaa real e presente). Essa quebra de
expectativa lida no final que criaria o efeito de humor da tira cmica, como nas piadas.
A tira de cios do ofcio apresenta duas vinhetas. , ento, um texto, com signos
verbais e visuais, cujo conjunto formado por duas vinhetas, como visto a seguir. a partir
do conjunto que se forma produz coerncia e se forma o sentido.
Figura 10. 4 cios do ofcio
H casos de tira que apresentam apenas um quadrinho. Nessa situao, a cena
narrativa se resolve dentro da nica vinheta existente e o modelo discutido at aqui pode ser
perfeitamente aplicvel (veremos um caso adiante). Mas, na maioria dos casos, a tira
composta por mais de uma cena, que se relaciona com outras cenas em outros quadrinhos,
como o caso de cios.de ofcio. A leitura se d a partir da articulao das vinhetas: a
seguinte acrescenta informaes anterior, j pressupostas no ato da leitura. O raciocnio
inverso tambm verdadeiro: as informaes que aparecem antes, novas, portanto, so
recuperadas depois. Essa articulao entre o antes e o depois o que d rumo narrativa da
tira com mais de uma vinheta e que gera a coerncia do texto aps sua leitura completa.
Ocorre como a leitura de um texto verbal escrito. Temos o contexto de produo e
informaes prvias que nos preparam para a leitura. Numa reportagem de um caderno de
poltica de um jornal, a expectativa encontrar informaes sobre poltica. A partir de
ento, passamos de palavra por palavra, de frase por frase, de pargrafo por pargrafo at
terminarmos o contato com o texto para, enfim, articularmos todos os elementos com
nossos conhecimentos prvios e de mundo para produzir o sentido pretendido. No texto
hbrido, que inclui a imagem, as palavras e frases seriam o equivalente aos signos visuais.
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O pargrafo, ao quadrinho. O texto verbal, ao texto formado pela tira cmica, com
elementos visuais ou verbo-visuais.
o caso de investigar como se processa essa relao entre as vinhetas.
10.2 - Articulao entre os quadrinhos
A literatura sobre a leitura de imagens tem uma clara preocupao com a cena fixa.
Moles (1991, p. 76) chega a levantar a questo de uma justaposio entre as cenas e cita
especificamente as tiras cmicas. Mas no avana o raciocnio por ter optado pela anlise
de imagens paradas. So poucos os estudos que aprofundam os mecanismos de articulao
entre uma cena e outra, elemento particularmente presente na linguagem dos quadrinhos.
Cagnin (1975, p. 159) toma a vinheta como a unidade-narrativa dos quadrinhos, que
reune as unidades-imagem (ou signos icnicos). a partir da leitura dela que podemos
conduzir a ao narrativa. A soluo encontrada pelos quadrinhos para baixar o custo da
mensagem foi a de escolher um momento da ao que contivesse quantidade de
informaes capazes de sugerir a ao toda, condensando em si os momentos anteriores e
posteriores da ao. Ao receptor cabe exatamente o inverso: decodificar aquela imagem
nica e reconstruir os elementos ausentes do conjunto significante para chegar ao
significado (op. cit., 1975, p. 161).
O leitor, no entender de Cagnin, deve articular trs mecanismos para reconstruir o
sentido pretendido. O primeiro o da reduo. Ocorre quando todas as informaes esto
condensadas num nico quadrinho. o caso das histrias que conseguem articular a
narrativa em uma s vinheta:
Figura 10.5 Nquel Nusea
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A leitura sugere que girafas adultas, com pescoo mais comprido, conversam numa
posio mais alta. Os filhotes de girafa, que ainda no cresceram, no conseguem ouvir o
que os adultos dizem porque ainda tem um pescoo muito curto. Os vrios bales de
risadas, com apndices indicando o alto da tira, trazem duas inferncias: os risos vm das
girafas adultas e fica pressuposto que as cabeas estejam acima do contorno do quadrinho
(elas no aparecem na cena narrativa). Teria surgido algum assunto engraado, que a
girafinha (figura central) no ouviu: Criana nunca entra nas conversas dos adultos. A
frase traz duas leituras, dado o conhecimento de mundo que se tem sobre a relao
pais/filhos. Os pais geralmente mantm conversas que excluem os filhos. No caso da tira, a
excluso no tanto pela girafa ser criana, mas porque ela no consegue alcanar
fisicamente o dilogo dos adultos. Essa oposio de idias, a de que os pais excluem filhos
das conversas por no quererem que ouam algo e a de que a girafa fica excluda por uma
limitao fsica (ter pescoo curto), cria o efeito de humor inesperado.
O segundo mecanismo seria o da expanso. Os movimentos ocorreriam como numa
cmera lenta, mostrada em seqncia, etapa por etapa. No caso da tira a seguir, de
Mafalda, de Quino, a personagem observa a lenta passagem de uma tartaruga. O processo
toma os cinco primeiros quadrinhos, at ter o desfecho, na ltima vinheta. A menina diz:
Parace o txi em que viajam as solues. A tartaruga seria, ento, uma metfora do
processo lento de tomada de solues.
Figura 10.6 Mafalda
O terceiro mecanismo seria a elipse. Entre duas vinhetas, h um hiato, uma mudana
de espao e tempo a serem preenchidos mentalmente pelo leitor. Quanto maior o corte
entre as duas imagens, maior o esforo para compreender a relao estabelecida. Quanto
menor o corte, menor a necessidade de inferncias (caso das figura 4 e, principalmente, 6).
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Entendemos que nos trs processos descritos por Cagnin ocorram inferncias de
diferentes nveis. Os casos com uma s vinheta exigem articulao dos elementos para
entender o que ocorreu antes e o que veio depois e para depreender o final inesperado, fonte
do humor. Nem sempre essa articulao simples. Muitas das informaes precisam ser
inferidas pelo leitor (s vezes, com ateno e esforo extra, dado o alto grau de
informatividade).
As situaes em que h mais de um quadrinho geram um espao entre as vinhetas, o
hiato. Concordamos que ele propcio para a criao da elipse. Ao contrrio de Cagnin,
vemos a elipse tambm no processo de expanso. A diferena que seria menor o processo
de inferncia exigido do leitor (raciocnio mencionado tambm por EISNER). uma
interpretao semelhante de Cirne (1975, p. 41), j discutida no captulo 6. O autor
defende que h diferentes elipses. Quando ocorre uma grande elipse entre as cenas, a
inferncia maior. Caso ocorra um pequena elipse, a inferncia menor.
No h um critrio para dizer at onde vai uma pequena elipse. No exemplo de
cios do ofcio (figura 4), o hiato formaria uma pequena elipse, j que o espao da cena
o mesmo. Na tira de Mafalda (figura 6), tambm teramos um caso de pequena elipse,
mas evidentemente diferente do anterior. O salto de tempo entre uma vinheta e outra
muito mais lento. Adotaremos o critrio, neste estudo, de nos limitarmos ao conceito de
elipse, evidenciando se houve maior ou menor inferncia apenas quando for relevante
anlise. Elipse, como se v, est umbilicalmente atrelada inferncia.
O leitor, como visto, tem o papel de (re)construir as relaes contidas dentro do
quadrinho. Feito isso, compara o que leu com a vinheta seguinte. Esse processo estabelece
uma inevitvel relao entre o que veio antes e o que se l depois. Cirne (1975, p. 44)
afirma que a narrativa dos quadrinhos se d por meio de saltos grfico-espaciais.
Estabelece-se uma seqncia temporal de acontecimentos (h um antes e um depois) e, em
parte dos casos, espacial tambm (a cena pode ocorrer no mesmo local ou em outro). Dessa
oposio possvel formar relaes de semelhana e dessemelhana. Ou, usando termos de
Cagnin (1975, p. 158-159), identidade ou no-identidade. dessa associao que se forma
o sentido. A articulao entre duas ou mais unidades-quadrinho tira a imagem do seu
estatuto analgico, da representao pura e simples do objeto e a transforma num elemento
de discurso (op. cit., 1975, p. 159).
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McCloud (2005, p. 104) sintetiza a relao entre presente (quadrinho atual), passado
(quadrinho anterior) e futuro (quadrinho seguinte, quando h). Um quadrinho atrai o outro,
tal qual um m. Cirne (1975, p. 61) chama de atrao de quadros ou quadro-puxa-
quadro. Esse mecanismo de um antes e um depois se assemelha muito idia de dado e
novo, defendida por Kress e Leeuwen (2001, p. 186-192) e j discutida no captulo 6. O
elemento da esquerda tido como informao j conhecida pelo leitor. O da direita possui
elemento novo. O princpio de particular interesse para as tiras cmicas, que tm a leitura
feita da esquerda para a direita (ao menos nos pases do ocidente; no oriente, a conveno
de leitura da direita para a esquerda).
A ligao entre dado e novo articula um processo textual que recupera elementos
sgnicos presentes na vinheta anterior. O ponto saber quais os mecanismos de
processamento textual envolvidos nessa retomada. Em outras palavras: como se d a
articulao coesiva entre uma vinheta e outra? Nisso, a rea da Teoria do Texto tem muito a
contribuir.
10.3 - O processo coesivo dos objetos-de-discurso visuais
Figura 10.7 Cebolinha
A tira acima do personagem Cebolinha, de Maurcio de Sousa. Pelo que
discutimos at aqui, saber que uma tira cmica envolve uma srie de conhecimentos do
gnero: trata-se de uma narrativa que ter um desfecho inesperado, o que levar ao humor.
Infere-se tambm que o texto usa recursos sgnicos de diferentes ordens. Outra informao
dada pelo ttulo da tira, Cebolinha. Percebe-se que uma tira com personagem fixo, que
possui caractersticas prprias. No caso, um garoto de cabelos espetados que troca o r
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pelo l quando fala. So informaes que muitos leitores tm ou precisariam ter- como
conhecimento prvio.
Revelada a parte contextual, parte-se ento para a leitura de quadrinho por
quadrinho, da esquerda para a direita, procurando nas vinhetas a figura central para op-la
ao fundo. aqui que propomos a insero de alguns elementos tericos novos. Novos ao
menos a este debate, porque j foram expostos no incio desta tese, no captulo xx.
O texto instaura objetos-de-discurso, percebidos pelo processo de referenciao e de
inferncias. Entendemos que possvel aproximar o princpio terico da Teoria do Texto
leitura dos signos visuais. A figura principal da primeira vinheta, que aparece pela primeira
vez, o personagem-ttulo. Dois motivos levam a essa concluso: o conhecimento prvio
das caractersticas icnicas do personagem (camisa verde, calo preto, cabelos espetados,
formato do rosto) e a representao da fala, feita por meio de um solilquio e contida no
balo: O Casco vai gostar do plesente que complei pla ele. O negrito, no caso, no tem
a funo expressiva de indicar tonalidade mais alta da voz. usado apenas para evidenciar
a mudana de articulao fontica do fonema vibrante simples /r/, que usado como uma
lateral: /l/. Na prtica, Cebolinha usa plesente em vez de presente; complei no lugar
de comprei; pla, e no pra.
Podemos dizer que o signo icnico principal o objeto-de-discurso visual
instaurado no texto. Trata-se de um personagem que caminha sobre uma calada (h
metfora visual de uma nuvenzinha prxima aos ps, que indica movimento) e que
segura nas mos um presente (o formato do pacote, envolto por um lao, remete ao
conhecimento prvio do modelo de um presente). O fundo, os elementos que ficam no
entorno da imagem central, so signos que acrescentam informaes cena narrativa. O
espao em frente a uma loja que vende artigos impermeveis (est escrito, inclusive). O
tempo indeterminado, mas supe-se pelas cacactersticas visuais do espelho na porta da
loja que seja a simulao de um momento contemporneo ao do leitor.
O segundo quadrinho (informao nova) mostra outros elementos se comparado ao
anterior (informao dada). O objeto-de-discurso visual retomado anaforicamente. A
diferena em relao ao texto escrito que a retomada (ou no) se d pelo signo icnico.
o mesmo personagem, mas muda a feio do rosto: parece preocupado. Essa informao
encontra reforo no olhar, voltado para o alto, e nos signos de fundo. H gotas que indicam
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chuva. Infere-se que a preocupao seja pela possibilidade de se molhar (algo que, supe-
se, ningum gosta). O espao narrativo mudou. H novas informaes visuais, percebidas
por oposio entre os quadrinhos. A indicao do local feita por meio de um signo
plstico de colorao rosa, que domina toda a rea da vinheta e impede de saber por onde o
personagem caminha.
O hiato entre um quadrinho e outro gerou a inferncia de que Cebolinha saiu de
frente da loja, que continua a caminhada e que comeou a chover. Essas informaes
tornam-se dadas quando observada a ltima vinheta, com elementos novos.
O terceiro quadrinho cria automaticamente a expectativa no leitor de que a histria
ter um desfecho inesperado, que levar ao humor. H necessidade de maior inferncia na
retomada anafrica do objeto-de-discurso visual. A semelhana se d pelo rosto e pelos
sapatos marrons, sinalizando tratar-se do mesmo personagem. Os signos icnicos e
plsticos da roupa (calo preto e camiseta verde) mudam. No lugar, h uma capa azul e um
gorro da mesma cor. O contexto da histria sugere que se trata de uma capa de chuva,
comprada numa loja de artigos impermeveis (como mostrado na primeira vinheta).
Cebolinha teria colocado a capa para se proteger da chuva, que aumentava (h mais gotas
em relao ao quadrinho anterior). O espao tambm outro: ele caminha por uma calada
(que tem cor rosa) e em frente a um outro local (um muro amarelo em vez da loja). O hiato,
vale reforar, exigiu maior necessidade de inferncia por parte do leitor.
O desfecho inesperado est no fato de Cebolinha ter usado para si prprio o presente
que iria dar a Casco, a prpria capa de chuva. O leitor com maior volume de informaes
prvias saberia que Casco recebe esse nome por ter pavor de gua e por no gostar de
tomar banho (da o presente ser uma capa impermevel chuva e, por conseqncia,
gua).
Outras relaes coesivas podem ser percebidas, como no prximo exemplo, tambm
de Mauricio de Sousa (do mesmo personagem para que a comparao com o caso anterior
fique mais evidente):
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Figura 10.8 Cebolinha
O quadrinho inicial instaura um objeto-de-discurso visual que, supomos, seja o pai
de Cebolinha, a quem ele (o pai) se dirige (como indica o contedo do balo). A suposio
se d pelo traje masculino do personagem, pelo tom repreensivo de sua fala e pela
semelhana fsica com o personagem-ttulo, que ainda no aparece, mas fica impltico que
esteja por perto. O pai pede que o filho no desa a ladeirona correndo com o carrinho de
rolim.
O segundo quadrinho no apresenta linha de contorno. A borda (o signo de
contorno) inferida no processo de leitura. O objeto-de-discurso pai retomado
anaforicamente pela semelhana fsica, depreendida pela comparao dos signos icnico e
plstico (a cor da camisa, principalmente). Ele diz que a brincadeira de Cebolinha era muito
perigosa e pede que o filho v para o quarto. Os olhos serrados e o brao estendido, dedo
em riste, indicam que seria uma espcie de castigo. O balo adquire dentro do contexto
expressividade que refora essa interpretao. O contorno ondulado, percebido pelo signo
de contorno, sugere fala em tom enrgico. As letras em negrito indicam tambm voz alta.
O plano de viso mais aberto em relao ao quadrinho anterior.
A vinheta final apresenta um plano de viso total ou de conjunto (que mostra o
personagem inteiro), que revela enfim a presena de Cebolinha, algo pressuposto at ento.
O quadrinho instaura um segundo objeto-de-discurso, no visto nas duas vinhetas
anteriores: o prprio Cebolinha. Seria o equivalente visual coeso catafrica: antecipa-se
o objeto-de-discurso. Essa estratgia textual essencial para o desfecho inesperado da tira
(por isso, o plano de viso aberto somente no fim). Cebolinha se pergunta como os pais
descobrem as brincadeiras que os filhos fazem (no caso, descer ladeira abaixo, em alta
velocidade, com um carrinho de rolim). A leitura sgnica do cabelo a chave para o efeito
de humor. O leitor aciona o conhecimento prvio de que Cebolinha tem os cabelos
-
espetados, bem diferente do que mostra a vinheta. A alta velocidade teria lanado os
cabelos para trs e seria a forma como o pai o flagrou na brincadeira.
Este outro exemplo mostra uma situao diferente dos dois casos anteriores:
Figura 10.9 - Casco
Apesar de Cebolinha aparecer logo na primeira vinheta, a tira cmica de Casco.
Essa informao traz um conhecimento necessrio para o compreendimento do texto: uma
tira com um personagem fixo, que tem como a caracterstica de destesta gua, como j foi
comentado anteriormente.
A diferena em relao s demais tiras que cada quadrinho instaura objetos-de-
discurso diferentes, dentro do que seria uma cena de beijo de boa noite, dado nos filhos
pelos pais. A primeira vinheta mostra o pai de Cebolinha beijando o filho. importante
observar que no temos mais dvida de que se trata do pai do personagem, porque temos o
conhecimento prvio e acumulado da tira anterior (figura 8). A onomatopia chuac! tenta
simular o som do beijo.
O segundo quadrinho apresenta a mesma situao, mas a cena ocorre num quatro
diferente. A cama, os lenis (agora rosas) e os personagens narrativos so outros. Entre
uma vinheta e outra, houve mudana dos objetos-de-discurso visuais. Percebe-se a troca
pela comparao visual entre uns e outros. O hiato leva a inferncia de que semelhante
situao, no se sabe se no mesmo momento, ocorre no quarto de Mnica (sabemos quem
ela por conhecimento prvio). Infere-se tambm que o homem que a beija seja seu pai.
O ltimo quadrinho traz nova troca de objetos-de-discurso (Casco e seu pai), mas
j permite perceber que a estratgia textual de provocar o humor se pauta na repetio de
uma mesma situao. Como prprio do gnero tira cmica, de se esperar que, na vinheta
final, ocorra algo inesperado. O pai (percebe-se que o seja pela semelhana fsica e em
-
comparao situao dos quadrinhos anteriores), em vez de beijar o filho, d apenas um
aperto de mo. Uma suposio seria que a relao entre Casco e o pai menos afetiva. O
conhecimento prvio de que o protagonista no gosta de tomar banho justifica o
distanciamento na hora de dizer o boa noite. O filho ou estaria sujo ou cheiraria mal (ou
ambos), motivos que levaram ao simples aperto de mo, que estabelece um contato fsico
mnimo e mais distante do que um beijo no rosto.
H, seguramente, outras situaes possveis, que devem aparecer na anlise do
corpus desta tese. Mas um dos pontos centrais, cremos, est posto. Estratgias de
processamento textual usadas para textos escritos podem ser adaptadas tambm para a
leitura dos signos visuais. E trazem uma boa contribuio para a leitura de tiras que
contenham apenas elementos visuais, como a selecionada a seguir, do personagem Nico
Demo, ainda uma vez mais de Maurcio de Sousa:
Figura 10.10 Nico Demo
Instauram-se no primeiro quadrinho dois objetos-de-discurso icnicos: Nico Demo,
direita (sabe-se por conhecimento prvio que o personagem-ttulo) ao lado de uma
menina. Infere-se pela presena de metforas visuais de corao que sejam namorados ou
que tenham algum relacionamento ou pretenso amorosa. Eles esto para entrar no Cine
London, que somos levamos a crer que seja uma sala de cinema (por causa do nome
Cine).
O hiato para o segundo quadrinho produz a inferncia de que o casal assistiu ao
filme e est saindo do cinema (atrs dos dois personagens est escrito sada). Um objeto-
de-discurso visual, Nico Demo, retomado anaforicamente. O outro muda e se instaura um
novo objeto de referncia, outra garota (percebe-se pela mudana dos signos icnicos,
como o cabelo, traje etc.). Ambos tambm esto enamorados, como indicam as matforas
-
visuais dos coraes. O leitor levado a entender que, no cinema, o protagonista trocou de
garota. o desfecho inesperado da tira cmica. Houve uma mudana de garota. inusitado
e no esperado na leitura. E o que provocou o efeito de humor.
10.4 - O elemento verbal no processo de leitura
Um ponto quem merece ser mais bem discutido o papel dos bales e o da relao
entre palavra e imagem no processo de leitura. Cagnin (1975, p. 140) defende a idia de
que existam graus de quadrinizao. H narrativas com predomnio da parte verbal (que ele
chama de texto, num sentido diferente do adotado neste estudo), outras com maior
presena e importncia da imagem. O espectro analisado por ele toma como ponto de
partida os textos literrios e se encerra na histrias em que h presena apenas de signos
visuais. Seriam cinco os graus de quadrinizao:
1. verbal sem imagem o caso de romances, de contos e de piadas escritas; h
palavras e ausncia de figuras.
2. verbal com imagem - ainda h predomnio do texto; a imagem tem carter
apenas ilustrativo; ocorre em algumas histrias em quadrinhos e na maioria dos
livros infantis.
3. verbal e visual - neste caso, h distribuio eqitativa dos dois cdigos.
4. visual com verbal - o predomnio do elemento visual; a parte verbal funciona
como reforo e tem papel secundrio.
5. visual sem verbal - h apenas o elemento imagtico.
Eco (1993, p. 146) v outras formas de relao:
1. nvel minimal, em que a imagem no consegue reproduzir a contento o contedo
da palavra;
2. excedncia pleonstica do falado, quando a fala reproduz exatamente o que
visto no desenho; era muito comum em antigas histrias de super-heris (o ato
-
de salvar a mocinha reproduzido nos bales com algo como Vou salv-la, o
que s repete verbalmente a cena narrativa);
3. independncia entre palavra e imagem;
4. independncia do visual em relao ao verbal.
5. fuso entre imagem e texto, criando ares de eficcia cinematogrfica.
McCloud (2005, p. 153-155) no faz meno ao estudo de Eco, mas chega a
concluses semelhantes, com outra nomenclatura. Para o autor, haveria diferentes
combinaes entre palavras e imagens:
1. especfica - pode ser de trs formas; na especfica de palavras, figuras ilustram,
mas no acrescentam informao parte verbal; na especfica de imagem, so as
palavras que no somam muito; no duo-especfico, palavras e imagens passam a
mesma informao;
2. aditiva - as palavras ampliam o significado da imagem;
3. paralelas - palavras e imagens seguem cursos diferentes;
4. montagem - as palavras so parte da imagem;
5. interdependente seria a mais comum, segundo o autor; os dois cdigos
transmitem idias que no poderiam ser expressas isoladamente.
comum a literatura sobre o assunto dividir as partes visuais das verbais escritas. A
separao, como lembra Vergueiro (2006, p. 31), tem carter apenas didtico ou
metodolgico e feita somente para fins ilustrativos. No ato de leitura, mesclam-se ou se
complementam. Esse o ponto que parece unir as classificaes de Cagnin, Eco e
McCloud. Elas, ou prevem uma articulao entre signos verbais escritos e signos visuais,
seja ela em maior ou menor grau, ou admitem a possibilidade de uma histria em
quadrinhos sem o recurso verbal escrito. Dessa articulao sgnica surgiria o sentido e seria
formado o tpico (ou tpicos) abordado na tira cmica. Esse o primeiro ponto que nos
parece central nessa discusso.
O outro ponto aborda o papel do balo no processo de leitura. Acevedo (1990, p.
115) afirma que a posio do balo no arbitrria, mas leva em conta duas idias: o
-
sentido da leitura e o sentido da composio. Vergueiro (2006, p. 57) refora que a
localizao do balo indica a seqncia de quem comeou o dilogo. Em geral, o
personagem da esquerda inicia o turno, por ser o primeiro a aparecer no quadrinho a ser
lido. Isso no ocidente, porque no oriente ocorre o contrrio. H uma conveno na
linguagem dos quadrinhos de que o balo lido da esquerda para a direita ou de cima para
baixo (QUELLA-GUYOT, 1994, p. 12). exceo do exemplo 10, que no usa o recurso
verbal, a regra perfeitamente aplicvel s demais figuras deste captulo. O mecanismo,
ento, indica quem fala primeiro dentro do espao da vinheta e um mecanismo de
orientao de leitura, embora haja casos que fujam regra e que exigem maior inferncia
para a compreenso.
Figura 10.11 Nquel Nusea
No primeiro quadrinho, h dois bales, um ao lado do outro. A inferncia que o
menino da esquerda fala primeiro. O outro comenta: No !. H uma simulao nos
quadrinhos de uma troca de turnos conversacionais, carcaterstica prpria da oralidade. Na
segunda vinheta, a leitura j um pouco mais difcil. H um balo maior no alto do
quadrinho e outro, menor, abaixo e esquerda. Quem falou primeiro? Duas informaes
conduzem leitura pretendida pelo autor: o contedo das falas (No ! indica um ato
reativo, ento teria sido dito depois) e a regra de leitura de cima para baixo. O leitor tem
um trabalho maior de articulao dos elementos, mas conclui que Meu pai muito mais
bravo que o seu falado antes. O ltimo quadrinho, com apenas um balo, no apresenta
problemas de leitura.
Outro aspecto que o balo leva a inferir que o tempo de durao da cena demora
exatamente o tempo de leitura das falas. Um balo com turno excessivamente longo
demoraria mais para ser lido e indicaria uma durao maior da cena, como neste exemplo
de Mafalda:
-
Figura 10.12 Mafalda
As letras pequenas dificultam a leitura dos bales iniciais. Parece ser esta a inteno
do autor, Quino: mostrar que a personagem fala demais, o que encontra reforo no rosto de
Mafalda, a interlocutora, e no desfecho da tira. O tempo de durao narrativo sugerido nas
duas primeiras vinhetas, que representam um turno, bem maior se comparado ao ltimo,
que mostra um balo com frase consideravelmente mais curta, Voc no aberta ao
monlogo.
H situaes, mais raras, em que realmente difcil discernir quem fala primeiro,
mesmo dentro do contexto.
Figura 10.13 Frank Capa
O quadrinho no de uma tira cmica, mas ilustra com propriedade o problema que
a disposio dos bales pode trazer no ato da leitura. A conveno ler da esquerda para a
direita, de cima para baixo. Tudo leva o leitor a bater os olhos primeiro no balo maior:
Sim, isso aqui est mais podre que o reino da Dinamarca. O balo seguinte, que
supostamente deveria ser lido depois, traz a pergunta que tinha sido respondida no balo
anterior: Vai embora, mesmo?. Aps a leitura das duas falas, o leitor infere que se trata
-
de um par pergunta/resposta e remonta as informaes. Essa inverso exigiu um processo
de inferenciao maior.
Figura 10.14 Mafalda
Esse outro exemplo se encaixa com perfeio no que temos repetido em captulos
anteriores: o limite da linguagem dos quadrinhos a criatividade do desenhista. Quino, o
autor da tira, usa o balo de uma maneira pouco convencional. Em vez de aparecer dentro
do quadrinho, ele se estende por cinco vinhetas, com apndices indicando a fala de
diferentes personagens. um balo-unssono (aquele que divide a fala com mais de uma
pessoa), mas funciona como se fosse um balo de fala simples. A mudana no uso da
linguagem dos quadrinhos exige do leitor uma srie de inferncias para compreender a tira.
A fala seria a mesma para cada um dos personagens. Mas a articulao do contedo
verbal com os signos icnicos que compem os personagens muda o sentido do que dito
no balo. Na primeira vinheta, uma idia empolgada da irmo de Mafalda: E se a gente
disser para o papai trocar de carro justo nesse momento? Vamos!.... Mafalda compra a
idia e a transmite me. Mantm-se a empolgao. O pai, o homem representado na
terceira vinheta, apresenta a mudana no rumo da narrativa. Ou, mais exatamente, a
expresso do pai, de espanto ou desalento. O rosto indica que no possvel comprar um
carro, principalmente por viverem num momento como esse, possivlemente de dificuldade
financeira ou de instabilidade econmica. A resposta, ento, faz o caminho inverso. Da me
para Mafalda, de Mafalda para a irm. Ao fim, a mesma fala inicial adquire o sentido de
uma idia exagerada (o que reforado pela leitura da mo). E se a gente trocasse o carro
justo nesse momento? Vamos!.... Pode-se inferir que o vamos signifique uma iniciativa
absurda. Vamos, de onde voc teve essa idia louca, pare com isso. Ou algo assim.
Da mesma forma que os signos visuais instauram um objeto-de-discurso, merece
registro que a parte verbal tambm o faz. No exemplo de Mafalda, h dois objetos mais
-
evidentes: pai e troca de carro. A articulao deles com os objetos-de-discurso visuais
que formaria o sentido final da tira, com um desfecho que surpreenda o leitor. Isso
ocorreria com as demais tiras, desde que tenham parte verbal.
Apenas para registro: a tira cmica de Mafalda um bom exemplo para mostrar que
o limite fsico de um formato pequeno pode exigir ainda mais criatividade da parte de seus
autores.
10.5 - Fechando as idias
Este captulo funcionou como uma espcie de quebra-cabeas. Procurou juntar
muitas peas soltas desde os captulos iniciais, de modo a dar a elas um formato, uma
cara reconhecvel. Essa articulao terica prepara o terreno para a anlise do corpus, a
prxima etapa deste estudo.
As Teorias do Texto se baseiam na idia de que o sentido articulado por uma srie
de elementos depreendidos no texto pelo contexto. A formao da coerncia surge por meio
da articulao desses elementos, que acionaro conhecimentos e geraro inferncias. Esse
princpio vale tambm para textos no-verbais ou hbridos, que mesclem signos verbais e
visuais.
As tiras so vistas como narrativas que usam signos verbais e visuais dentro de uma
linguagem prpria, a dos quadrinhos. As tiras cmicas constituem um gnero e, como tal,
instauram expectativas genricas no leitor: um formato curto, com um ou mais quadrinhos,
e um desfecho inesperado, tal qual a piada. Os personagens podem ser fixos ou no, como
tambm ocorre na piada, o que tambm acrescenta informaes leitura.
No h propriamente um mtodo pronto de anlise das tiras. Por isso, adaptamos um
para ser aplicado nesta tese. O mecanismo est em consonncia com as premissas da Teoria
do Texto e com estudos que se preocuparam de alguma forma com o processo de leitura
visual. Temos plena cincia de que se trata de um mtodo sujeito a aprimoramentos e outras
interpretaes. Mas resolve o problema do corpus desta pesquisa.
O modelo de leitura passa pelas seguintes etapas:
-
contextualizao da tira, o que inclui o reconhecimento do gnero e a criao de
uma srie de expectativas genricas (histria curta de humor, desfecho
inesperado, quem so os personagens, qual o eventual tema da tira);
leitura dos quadrinhos presentes, da esquerda para a direita;
leitura individual da(s) vinheta(s);
definio e descrio do(s) objeto(s)-de-discurso presentes no quadrinho
(visuais, verbais ou verbais e visuais);
articulao do(s) objeto(s) com os demais signos presentes: visuais com visuais,
visuais com verbais, verbais com verbais; a tira pode ocorrer sem signos verbais
escritos; estabelece-se uma relao entre figura e fundo;
leitura do quadrinho seguinte e retomada coesiva (ou no) do(s) objeto(s)-de-
discurso; a mudana de vinheta vai gerar cotejo e comparao entre uma
informao dada (do quadrinho anterior) com outra nova (quadrinho lido) e vai
acarretar um fragmento de ao, inferido pelo leitor, caractersticas que sero o
motor da narrativa da tira;
desfecho inesperado provocado por alguma estratgia textual a ser evidenciada
(o desfecho articulado numa s vinheta, quando a tira apresenta apenas um
quadrinho);
explicao verbal das etapas importantes para a compreenso do texto (a
presena deste ou daquele termo terico vai depender do texto analisado).
Instaura-se sempre um tema na tira cmica, assim como nos demais textos. Mas
entendemos que nem sempre o tema o mote do efeito de humor. Por isso, a tendncia a
de nos atermos s estratgias que geram o humor, que, eventualmente, podem coincidir
com uma mudana temtica, como ocorreu na figura 4, de cios do ofcio. O interesse
observar quais foram os elementos textuais necessrios para a produo da coerncia.
A articulao de todos esses elementos se d automaticamente durante o processo
de leitura a anlise. O mesmo vale para muitos dos elementos tericos discutidos ao longo
dos captulos anteriores. Como j comentado, eles ficam escondidos e vm tona quando
houver necessidade. Tudo vai depender do caso analisado (desafio que se lana para o
corpus a seguir). Pode ser que a tira cmica seja to simples de ser compreendida que uma
-
abordagem superficial resolva sua leitura. Podem ocorrer casos mais complexos, que
exijam boa parte das informaes tericas discutidas nesta tese. Repetimos: tudo vai
depender do caso.
impossvel prever todas as situaes de uso da linguagem dos quadrinhos nas tiras
cmicas. O mesmo vale para as relaes estabelecidas dentro e entre os quadrinhos. Vimos
algumas, que compem os elementos bsicos para a formao de um conhecimento mnimo
da linguagem. Mostramos outros casos, que julgamos serem situaes-limite, quase como
excees regra. O importante que os alicerces estejam slidos para que possamos
colocar o cimento para construir a anlise.
-
CAPTULO 11
ANLISE DE TIRAS CMICAS
11.1 - Descrio do corpus
Ao longo dos captulos anteriores desta tese, j foram feitas anlises parciais de tiras
cmicas, com exemplos extrados de variados autores. A discusso j levantou vrios
pontos relevantes para este estudo. Entendemos, no entanto, ser necessrio um grupo
especfico de tiras, de modo a verificar tendncias de comportamento. Adotamos para esta
parte da anlise um corpus de 40 tiras, selecionadas de diferentes autores. Alguns j foram
citados em exemplos analisados em outros captulos. Todos so brasileiros, critrio adotado
para evitar eventuais problemas com traduo das obras. As verses para o portugus,
como concluiu Souza (1997), nem sempre so fiis idia original. Utilizar um grupo de
tiras cmicas produzido no pas contorna a questo e coloca o foco nos outros pontos que
nos interessam neste estudo.
O material selecionado apresenta aspectos comuns: narrativa tendencialmente curta
com desfecho inesperado que gera um efeito de humor, articulao de elementos verbais e
visuais, formato fixo, uso da linguagem dos quadrinhos, necessidade de inferncias na
leitura, representao da oralidade. Buscaram-se, no entanto, outras caractersticas que os
diferenciam, peculiaridades que permitem aprofundar as semelhanas entre tiras cmicas e
piadas. A busca se fixou em quatro tiras, de onde selecionamos dez de cada uma:
1. Casco
O critrio foi o personagem. Se o portugus nas piadas rotulado por possuir
pouca inteligncia, Casco conhecido por no gostar de tomar banho. Essa
caracterstica o torna um personagem fixo que, em tese, exige do leitor
conhecimento compartilhado para produzir a coerncia textual.
-
2. Classificados
O critrio de seleo o oposto do anterior. A tira cmica Classificados tem a
tendncia de no utilizar personagens fixos. O interesse estudar quais as
estratgias utilizadas para a produo do sentido numa situao sem um
personagem regular.
3. Nquel Nusea
Embora esta tira j tenha sido estudada com bons resultados por Nepomuceno
(2005), o interesse est no uso dos elementos narrativos. muito comum a
utilizao da figura do narrador, em geral apagado nas demais tiras.
4. As Cobras
O critrio que levou escolha de As Cobras foi a presena de continuidade
temtica em vrias tiras diferentes, o que exige , em princpio, um conhecimento
prvio do leitor. O interesse investigar at que ponto esse conhecimento
anterior necessrio para a leitura.
Todas as 40 tiras foram publicadas pela primeira vez nos jornais e, num segundo
momento, em livros de coletneas. Nossa seleo tomou cinco desses livros:
Coleo as melhores tiras - Casco, de 2006 (Editora Globo/Mauricio de Sousa
Editora); contm 182 tiras coloridas e 98 pginas (com capa e contracapa);
Classificados: Livro 3, de 2004 (Editora Devir); 183 tiras, parte colorida, parte
em preto-e-branco; a obra tem 68 pginas (com capa e contracapa);
Nquel Nusea Botando os bofes de fora, de 2002 (Editora Devir); possui 230
tiras coloridas e 52 pginas (com capa e contracapa);
-
As Cobras em: se Deus existe que eu seja atingido por um raio, de 1997
(L&PM); a obra tem 624 tiras em preto-e-branco e 168 pginas (com capa e
contracapa);
De cada livro, selecionamos 10 tiras para anlise. Procuramos um critrio de seleo
que fosse intencionalmente aleatrio. Tomamos a primeira tira das pginas mpares
compreendidas entre os nmeros 11 e 29. A nica exceo so as tiras de As Cobras, que,
pela peculiaridade do objeto, necessita ter duas tiras seguidas para serem analisadas. Por
esse motivo, selecionamos as duas primeiras das pginas mpares compreendidas entre os
nmeros 11 e 15, perfazendo 10 ao todo. Cada tira ser rotulada com um nome e um
nmero, que obedecer ordem de aparecimento na revista. Um exemplo. A histria de
Classificados que aparecer na pgina 11 ser chamada de Tira/Classificados 1. A da
pgina 13, Tira/Classificados 2. E assim sucessivamente.
A anlise vai trabalhar de forma mais objetiva e detalhada um recorte mnimo de
duas a cinco tiras consideradas relevantes para o estudo, de modo a no tornar a abordagem
redundante. As tiras que no constarem especificamente na anlise faro parte dos anexos
de 1 a 4. No incio da abordagem de cada uma das tiras, faremos uma breve
contextualizao da tira e de seu autor. Como defendido no captulo anterior, defendemos
que o contexto relevante para a compreenso textual e vo ao encontro dos princpios
tericos das Teorias do Texto.
O objetivo da anlise, no custa reforar, buscar semelhanas entre tiras cmicas e
piadas, de modo a confirmar a hiptese inicial de que o funcionamento textual dos dois
gneros semelhante. Esse ser o mote da anlise.
11.2 - Casco
Mauricio de Sousa desenhista e um dos mais bem-sucedidos empresrios da rea
de quadrinhos da histria do pas. Criou um rol de personagens, a Turma da Mnica, muito
conhecidos tanto no Brasil como no exterior. O volume de publicaes em jornais e revistas
em quadrinhos o afastou do trabalho dirio de desenhar e escrever histrias. A tarefa foi
delegada a funcionrios do estdio criado por ele, que recebe seu nome.
-
Pode-se dizer que a trajetria de Sousa vitoriosa. Nascido em 1935, na cidade de
Santa Isabel, no interior de So Paulo, ele passou a maior parte da infncia em Mogi das
Cruzes, outro municpio paulista. Saiu de l para se arriscar como desenhista na capital
do estado. Procurou emprego no jornal Folha da Manh. Conseguiu se tornar funcionrio,
mas no no que queria inicialmente. Ele ficou com a nica vaga ento existente, a de
reprter policial, cargo que ocupou por cinco anos.
Em 1959, Mauricio de Sousa apresentou ao jornal uma tira de Bidu e Franjinha,
respectivamente cachorro de estimao e seu dono. Conseguiu espao para publicar as
histrias e abandonou a atividade jornalstica. Com os anos, criou outros personagens, entre
eles os meninos Casco e Cebolinha, inspirados em colegas de infncia. O primeiro tem a
caracterstica de no gostar de gua e banho. Est sempre sujo, por isso chamado de
Casco, gria atribuda a pessoas excessivamente sujas. Cebolinha troca fonemas quando
fala. Ao invs de r, pronuncia l. Com o surgimento de Mnica, a personagem mais
famosa de Mauricio de Sousa, inspirada em sua filha, os dois garotos passaram a provoc-
la, rotulando-a como gorda ou dentua (ela tem os dentes dianteiros para fora da boca).
Muito do humor das tiras vem dessas caractersticas.
Em 1970, Mauricio de Sousa deu um novo impulso carreira. No abandonou as
tiras dos jornais, mas passou a publicar os personagens tambm em revistas em quadrinhos
publicadas pela Editora Abril. Primeiro foi Mnica. Depois, Cebolinha e vrias outras.
Paralelamente, licenciou produtos com a imagem de suas criaes, o que contribuiu para
torn-las ainda mais populares.
Na dcada de 1980, ele trocou a Editora Abril pela Globo, numa tentativa de criar
desenhos animados com os personagens. Em 1 de janeiro de 2007, ele trocou de editora
uma segunda vez. As revistas passaram a ser publicadas pela editora multinacional Panini.
A mudana uma estratgia para tornar a Turma da Mnica ainda mais conhecida no
exterior. No Carnaval paulistano de 2007, Mauricio de Sousa foi tema do Grmio
Recreativo Escola de Samba Unidos do Peruche, como o ttulo Com Mauricio de Sousa, a
Unidos do Peruche abre alas, abre livros, abre mentes e faz sonhar.
As tiras da Turma da Mnica veiculadas diariamente nos jornais alternam os vrios
personagens e so produzidas pela equipe de desenhistas do estdio de Mauricio de Sousa.
-
O livro adotado como corpus compila apenas as histrias que mostram Casco como
protagonista.
Tira/Casco 4
No primeiro quadrinho, a cena mostra Cebolinha (inferimos quem seja por
conhecimento prvio) lavando algo verde dentro de uma bacia de madeira. Duas
informaes visuais reforam a leitura de que esteja dando banho: 1) a postura do
personagem e passagem das mos sobre o que lavado; 2) as bolhas que saem da bacia,
indicando espuma. A cena traz ao leitor o script de um dono banhando seu animal de
estimao.
O banho se d ao ar livre, sobre uma grama, representada plasticamente por uma cor
prxima a um preto mais claro. O ambiente aberto encontra reforo na ausncia do signo de
contorno em parte da primeira vinheta (no h contorno nas laterais e na parte de cima).
Como lembra Vergueiro (2006, p. 26), o contorno no funciona como uma gaiola. o
caso. No canto direito, o personagem-ttulo da tira (tambm infere-se a informao por
conhecimento prvio) representado dando uma espcie de salto (os ps no tocam o solo).
Linhas cinticas perto do corpo reforam a idia de que o corpo est em movimento.
Casco tambm apresenta aspectos de ordem corporal: os braos abertos e a expresso
facial de preocupao (corroborada por metforas visuais de gotas de suor acima da
cabea). So recursos cinsicos, segundo classificao de Guiraud (1991). A linguagem do
corpo, para o autor, passa informao.
O contexto da cena e o comportamento de Casco indicam que ele levou um susto
ao ver o banho, o que confirmado pela fala, Uaaaiii!!! O grito dito em voz alta e de
-
maneira emotiva. H repetio das vogais a e i, indicando prolongamento na pronncia
delas. outro recurso da linguagem do corpo, segundo Guiraud: o prosdico. O tom
emotivo ganha reforo no signo plstico usado nas letras, maiores e em negrito, na
representao grfica das exclamaes e no uso de um balo-berro, de acordo com
nomenclatura de Cagnin (1975).
Se o leitor j conhece os personagens e tem o conhecimento prvio de que Casco
no gosta de gua (e, por conseqncia, de banho) j tem uma dica de qual a razo do susto.
Espantou-se ao ver o amigo dar um banho em algo verde, que configura outra informao
que tem de ser inferida, porque o quadrinho no d pistas. O algo verde Floquinho, o
animal de estimao de Cebolinha.
A segunda vinheta apresenta a mesma cena narrativa, com sutis mudanas. H o
contorno do quadrinho e a cor de fundo mudou de branca para amarela. Cebolinha d
seqncia ao banho, mas muda a expresso facial. Arregala os olhos, fecha um pouco a
boca e inclina sutilmente a cabea para ver Casco, que sai correndo dali. Percebe-se a
pressa e o movimento pelas linhas cinticas e pela metfora visual de poeira, que conota
movimentao rpida. H apenas parte do corpo de Casco. Infere-se que seja ele pela
roupa, igual do quadrinho anterior. Para que esse recurso fosse possvel, o quadrinho
aparece com signo de contorno.
Tanto Cebolinha quanto Casco formam objetos-de-discurso visuais. So categorias
referenciais instauradas no primeiro quadrinho e retomadas no segundo. So os mesmos
objetos-de-discurso, mas em posies diferentes, com expresses diferentes. Pode-se dizer
que houve uma recategorizao de ambos, baseando-nos na acepo terica apresentada por
Koch e Marcuschi (1998) e Mondada e Dubois (2003). O contexto que vai atrelar o signo
visual categoria anterior e permitir, por meio de inferncias, a ligao de sentido entre
ambos. O leitor, ento, infere que o Cebolinha da segunda vinheta o mesmo da primeira,
apenas com a posio e as expresses modificadas. O Cebolinha foi, portanto,
recategorizado visualmente. A mudana depreendida pelo contexto e ocorre, em geral, no
hiato entre uma vinheta e outra. O mesmo raciocnio vale para Casco, o outro objeto-de-
discurso alvo de recategorizao.
A mudana entre o segundo e o terceiro quadrinhos alterou a cena narrativa. Casco
est junto a um orelho e h uma casa pequena ao fundo. Infere-se que o personagem tenha
-
corrido at o aparelho telefnico. possvel que ele esteja prximo a Cebolinha. Est
pisando numa grama, como indica o signo de contorno usado na parte de baixo da vinheta.
A mo direita, em movimento (h linhas cinticas), indica a direo onde, infere-se, esteja
Cebolinha dando o banho. H uma representao visivelmente ditica nesse caso, atrelada a
um recurso cinsico.
Casco apresenta expresso de preocupao, reforada por linhas cinticas
(indicando movimento) e metforas visuais de gotas (sugerindo contextualmente afobao)
perto da cabea. Ele diz: Al!? da Sociedade Protetora dos Animais?. A fala dita em
tom de voz alto e emotivo. Vrios elementos reforam a leitura. A representao das letras
feita com apoio plstico: em itlico negrito. H tambm uma conotao de afobao
quando fala al, por ser seguido de exclamaes, que graficamente indicam emotividade.
O signo de contorno mostra que se trata novamente de um balo-berro, prprio para falas
em voz alta e emocionais. Infere-se pelo contedo do balo que Cebolinha est mesmo
dando banho num animal de estimao. O desfecho inesperado, que gera o efeito de humor,
algum denunciar Sociedade Protetora dos Animais uma pessoa por dar banho num
animal.
O leitor tem de inferir que Casco tem averso gua, por isso julga ser mau trato
dar banho a um animal. H a necessidade de outra inferncia, a de que est dentro da bacia
de banheira o animal de estimao de Cebolinha, Floquinho. Ao menos o nome de Casco
pode ser obtido por fatores de contextualizao, expresso usada por Marcuschi (1983) para
identificar elementos extra-texto que influenciam na compreenso textual. A capa do livro
mostra a imagem do personagem abaixo do ttulo Coleo as melhores tiras Casco.
Nos 10 casos analisados, o nome Casco citado em cinco. Nas demais, h a
necessidade de o leitor compartilhar um conhecimento previsto pelo autor. Outra
informao que o leitor precisa dominar a predileo do personagem pela sujeira, motivo
de seu nome. O tema abordado em maior ou menor grau em seis tiras. Percebe-se que o
produtor da histria trabalha com um leitor-modelo que domina todas essas informaes,
que tendem a ser recorrentas nas tiras. Em outras palavras, o processo de interao que leva
produo do sentido trabalha necessariamente com a inferncia do leitor, pressuposta pelo
produtor.
-
O mesmo comportamento se d com Cebolinha. Ele aparece em 8 das 10 tiras.
exceo de um caso (Tira/Casco 7), ele exerce o papel de coadjuvante que, ou por alguma
atitude, ou por alguma frase dita, leva a uma atitude inesperada no ltimo quadrinho. No
teatro, esse comportamento chamado de escada. Uma pessoa age apenas para que a
outra cause o riso ou ganhe evidncia. O nome do personagem aparece apenas duas vezes e
h a necessidade de inferir que troque as o r pelo l, como acontece nos exemplos Tira/
Casco 5, 6 e 9.
Em todos os casos analisados, h interao verbal entre personagens. O narrador
no utilizado em nenhuma das tiras. No tocante linguagem dos quadrinhos, as 10 tiras
somam 30 quadrinhos. Em 26, h uso do plano total ou de conjunto, que mostra o corpo
inteiro dos personagens. O ngulo de viso o mdio, ou seja, na altura dos olhos, como
afirma Vergueiro (2006). Houve exceo em apenas um caso. Na Tira/Casco 8, o ltimo
quadrinho mostra dois anjos em cima de uma nuvem, observando, do alto, a casa de
Casco. O recurso utilizado foi o de um ngulo de viso superior, de cima para baixo.
H uso freqente de metforas visuais e linhas cinticas. Chamou a ateno a alta
incidncia de bales-berro. Eles somaram 14 dos 34 bales analisados. 19 foram bales-
fala. O balo restante merece uma abordagem mais minuciosa. Est no exemplo a seguir:
Tira/Casco 2
Os personagens so os mesmos do exemplo anterior. Imagina-se que o leitor j
tenha conhecimento prvio de quem sejam os dois garotos. A cena narrativa se passa num
gramado, prximo a uma casa (vista direita do quadrinho). onde esto Cebolinha e
Casco. So novamente os objetos-de-discurso visuais da tira. Cebolinha aparece na
vinheta caminhando, como se deduz pela posio das pernas. Parte do corpo tambm est
-
em movimento ou balanando. H linhas cinticas ao lado do tronco e da mo direita, que
est se mexendo. O dedo indicador aponta na direo de Casco e adquire valor ditico.
para o colega que Cebolinha fala, por meio de um balo de fala: , Casco, voc acha que
hoje vai chover? Trata-se da primeira seqncia de um par dialgico pergunta/resposta
(termo usado por FVERO, ANDRADE e AQUINO, 2006).
Casco, imvel, apenas olha para Cebolinha neste primeiro quadrinho. A
sobrancelha fecha metade dos olhos e indica uma expresso de aparente desdm, de
desinteresse pela pergunta. Na conversao, o par pergunta/resposta prev uma resposta do
interlocutor. Como ela no apareceu nesta vinheta, cria no leitor a expectativa de qual ser
a resposta.
No segundo quadrinho, o signo plstico de fundo mudou de um quadrinho para o
outro. Passou de rosa para azul. Pode conotar um incio de mudana de tempo ou apenas
troca de cor entre uma vinheta e outra. O relevante est nos signos de foco, retomados por
meio de recategorizao anafrica inferida contextualmente. Casco mantm a mesma
expresso facial. A diferena que abre os braos, com as mos bem abertas e balanando
(como indica a linha cintica ao lado das mos). A representao corporal cinsica refora
o ar de desinteresse pelo assunto e casa com a resposta dada por ele: Talvez! Infere-se
que o corte do hiato entre as duas vinhetas tenha sido mnimo, apenas o tempo de o
personagem movimentar os braos e responder pergunta da vinheta anterior.
A frase de Casco dita dentro de um balo-especial, segundo terminologia de
Eguti (2001). O balo em voga tem a caracterstica de usar o signo de contorno do balo
para representar algo que lembre um signo icnico. No caso, trata-se de uma guarda-chuva,
que observado de forma assustada por Cebolinha. O balo corresponderia parte do pano
do guarda-chuva, usada para recobrir a cabea, e o apndice seria a haste do guarda-chuva
(alm de indicar de quem a fala). O recurso de metalinguagem o que leva ao desfecho
inesperado. O ar de desdm apenas aparente. O personagem estaria, sim, preocupado
com a chuva, tanto que, ao menor sinal de que pudesse chover, j usa o balo como abrigo.
o desfecho inesperado.
Esse um exemplo do que Souza (1997) chamou de metatira, ou seja, o texto se
vale de recursos da linguagem dos quadrinhos para gerar o efeito de humor. o nico caso
encontrado no corpus, mas uma estratgia comum em tiras produzidas pela equipe de
-
Mauricio de Sousa. J vimos outro caso assim no captulo 8, numa tira de Cebolinha. O
personagem se segura no apndice do balo (figura 21) para no cair de um penhasco.
Apenas para reforo do que j foi comentado: na Tira/Casco 2 no mencionado o
nome de Cebolinha, nem que Casco tem averso gua. O autor da tira trabalha com a
idia de que o leitor domina as duas informaes. Ao leitor cabe inferi-las. Casco se torna
um personagem fixo, com caractersticas prprias e recorrentes, necessrias compreenso
do texto, a exemplo do que ocorre nas piadas com os portugueses, os japoneses, os
argentinos, as loiras e outras figuras estereotipadas.
11.3 - Classificados
O desenhista Laerte um dos que mais produzem tiras cmicas no pas. No raro
ele ter mais de uma histria publicada no mesmo dia no jornal Folha de S.Paulo, onde
veicula suas produes desde 1991. um feito raro se comparado a outros autores do ramo.
A srie Classificados um desses casos. A tira cmica foi feita para ser publicada
especificamente aos domingos nos cadernos de classificados da Folha, o que justifica o
nome que recebeu. Era publicada nos suplementos Veculos, Imveis e Empregos
do jornal. As histrias, em princpio, deveriam abordar o universo ligado ao tema dos
cadernos. Tambelli (2002), em anlise de 26 tiras da srie, observou os temas excluso do
mercado de trabalho, violncia, discriminaes, ascenso na escala social e
poltica habitacional. Alguns realmente reforam o assunto dos suplementos. Outros,
como discriminaes, fogem bastante proposta dos classificados.
O ponto que nos interessa no tanto a temtica, mas sim o uso de personagens
desconhecidos, vistos em situaes supostamente diferentes umas das outras. a mincia
desse material, j que, na maioria dos autores, a preocupao trabalhar com um grupo fixo
de personagens e coadjuvantes.
As tiras cmicas de Classificados foram compiladas em trs livros, publicados
pela editora Devir (2001, 2002 e 2004). A editora programou um quarto volume para 2007.
Para esta tese, estamos trabalhando com o livro 3, lanado em 2004. Atualmente, Laerte se
dedica a outras tiras da Folha. Em fevereiro de 2007, ele atuava nos cadernos
-
Informtica, com uma tira semanal, e Ilustrada, com um cartum e uma tira diria, a
Piratas do Tiet, publicada desde 1991 (e que mescla personagens fixos com no fixos).
Laerte fez o primeiro desenho profissional em 1970 na revista SIBILA. Dois anos
depois, ajudou a criar a Balo, uma das primeiras revistas independentes do pas, surgida na
USP (Universidade de So Paulo). O trabalho, desenvolvido at 1975, foi o trampolim para
a imprensa. Ele trabalhou em jornais sindicais e em veculos de grande porte, como as
revistas Veja, Isto, Placar e os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo,
permanecendo nesta at esta data. Paralelamente, atuou como roteirista de programas da
TV Globo e participou de diferentes revistas em quadrinhos, algumas prprias, e lanou
diversas coletneas. Classificados apenas uma delas.
Tira/Classificados 1
H dois homens, um em cada canto do quadrinho. O do lado esquerdo, com culos,
palet rosa, cabelos grisalhos e um possvel topete, mostra-se como algum ligado a um
processo de seleo de uma empresa. Ou at mesmo o proprietrio da firma. Seria dele a
palavra final na hora de contratao. A inferncia percebida pela articulao com a parte
verbal, contida no nico balo da vinheta, que representa o turno conversacional: Seu
currculo bom... mas antes de contrat-lo quero lembrar nossa exigncia bsica.... As
palavras currculo (que pode ser o papel mesa) e contrat-lo do a entender que a
conversa se passa numa entrevista ou reunio para futura contratao. O dedo em riste
(recurso cinsico) e a expresso facial de seriedade reforam o ar de rigor da empresa
-
quanto exigncia bsica, ainda no revelada. E d ao personagem o esteretipo de um
chefe, em geral visto como uma pessoa mais sria.
Numa conversa, deve haver pelo menos duas pessoas. A outra o suposto candidato
vaga, a pessoa que tem o currculo bom, sentada frente na mesa. Ela aparece no canto
direito do quadrinho. careca e traja palet verde. Estar bem vestido (nosso conhecimento
de mundo refora a informao de que palet uma vestimenta de prestgio na sociedade)
apia a situao instaurada na conversa, a de que uma entrevista de emprego. comum
que o pretendente vaga tome cuidado com o visual para causar uma boa impresso. Neste
quadrinho, ele apenas escuta e observa.
Uma parte do balo da vinheta seguinte se sobrepe ao que aparece neste quadrinho
inicial. Isso poderia sugerir sobreposio de vozes, porm no o caso, j que a mesma
pessoa a dona do turno. H, no entanto, outra forma de ligao com o balo seguinte: pelas
reticncias. Esse sinal grfico usado duas vezes, com funes diferentes. Na primeira
ocorrncia, indica pausa na fala. Na segunda, mostra como a fala vai continuar na vinheta
seguinte. Cremos que se trata de pausa como recurso prosdico de expectativa. um
recurso que cria um suspense, mesmo que mnimo, sobre qual seria a exigncia bsica da
firma para a contratao.
Este primeiro quadrinho instaura dois objetos-de-discurso visuais, que chamaremos
de empregador e candidato. Eles so o foco visual da ao narrativa. A mesa e o signo
plstico branco, que aparece atrs de ambos, so o fundo. Verbalmente, o objeto-de-
discurso se refere exigncia bsica para a contratao, ainda em segredo.
A atitude dos dois personagens reproduz as idias de Goffman (2001). Para o autor,
as pessoas adotam atitudes teatrais conforme o contexto da situao. O comportamento dos
atores sociais centrado no gerenciamento da imagem transmitida ao interlocutor,
buscando a manuteno de uma face positiva. Isso ficar mais evidente nos quadrinhos
seguintes.
A segunda vinheta d seqncia conversa, iniciada antes. Percebe-se isso pelas
reticncias no incio do balo: ... no toleramos puxasaquismo!. Revela-se, enfim, a
exigncia para a contratao: os funcionrios no devem bajular os chefes, o que
percebido pelo neologismo puxasaquismo, uma aluso pessoa que procura elogiar em
excesso algum apenas para receber algo em troca. Seriam, ento, falsos elogios.
-
Ao contrrio do primeiro quadrinho, neste h troca de turnos conversacionais. O
candidato diz concordar com a exigncia da empresa: E fazem muito bem! Infere-se, pela
resposta, que seja uma pessoa austera e tica no trato profissional. Algum que priorize o
esforo pelo trabalho e que no compactua ou d impresso de no compactuar com
artifcios de outra ordem para subir profissionalmente. O balo do trecho dito pelo
candidato se sobrepe sutilmente ao do empregador. A situao conota uma situao de
engate fala anterior. Nem bem um terminou o raciocnio e o outro j emendou o
comentrio.
Recuperamos anaforicamente os dois objetos-de-discurso visuais. Mesmos signos
icnicos, mesmos signos plsticos, mesma cena narrativa (mesa, fundo branco, possvel
folha do currculo). Inferimos que sejam os mesmos personagens, recategorizados
contextualmente H mudanas fisionmicas e posturais. O empregador coloca o dedo na
mesa, indicando reforar que no admite o puxasaquismo. O gesto tem funo ditica,
algo como aqui na empresa, no toleramos puxasaquismo. O corpo est inclinado para a
frente, outro recurso cinsico, que indica convico e tom incisivo. O outro fecha os olhos
e, com a mo, sinaliza concordar. Os dois gestos so esteretipos das situaes que
sugerem.
A terceira vinheta apresenta algumas mudanas em comparao com a anterior. A
que chama a ateno num primeiro olhar que houve mudana do ngulo de viso. como
se fosse uma cmera de cinema, que tenha dado um giro de 180 graus. A cena narrativa,
porm, permanece a mesma. O contedo do balo essencial para a compreenso do
sentido da tira. Na segunda vinheta, o candidato se dizia contrrio ao puxasaquismo.
Neste terceiro quadrinho, ele afirma os benefcios de seguir essa postura profissional, mas
termina fazendo exatamente o que condena: elogia o penteado do chefe, o topete visto
desde a primeira cena narrativa. A posio dele, erguendo-se, e a expresso facial
bajuladora reforam a leitura sugerida no balo: ele condena elogios a chefes, mas apenas
da boca para fora. Interiormente, ele adepto do recurso. E passa a agir como tal.
O empregador tambm apresenta comportamento diferente do que vinha
defendendo, o que refora a leitura de que agiam de maneira teatralizada, segundo teoria de
Goffman. Ao elogio, responde com um Voc acha?..., pergunta que indica ter apreciado
as palavras ouvidas. um caso do que Fvero, Andrade e Aquino (2006) chamam de
-
pergunta retrica. Ocorrem quando o falante elabora uma P [pergunta] com o intuito de
que o ouvinte no responda, porque aquele j conhece a R [resposta] e s uma questo de
procur-la na memria (op. cit., p. 161). A representao grfica das reticncias, indicando
uma pausa, reala o teor retrico da questo. Segundo Marcuschi (2001, p. 28), entre outras
funes, a pausa tambm pode ter um efeito retrico, acompanhando perguntas que no
exigem resposta.
Infere-se que, durante a fala do elogio ou pouco depois, o empregador puxou um
espelho (no se sabe de onde) para observar o prprio penteado. Chega a passar a mo pelo
cabelo. Demonstra-se vaidoso. O rosto no mais aquele srio visto nas duas primeiras
vinhetas. Aqui, aparece sorrindo. Caractersticas que se opem ao esteretipo de chefe srio
apresentado nas duas primeiras vinhetas.
A ltima vinheta traz o balo ... Foi bico! Com essa fala, o leitor infere que o
candidato j no mais pretendente vaga, mas sim um funcionrio da firma. O foi bico
gria para indicar uma situao ou objeto fcil de conseguir. No caso, bastou bajular o
chefe.
Elementos visuais reforam a interpretao proposta pelo balo. Ele est com as
pernas sobre uma mesa, diferente da cena vista anteriormente (o signo plstico mostra outra
cor, alaranjada). A cadeira tambm diferente. O sorriso nos lbios e os braos atrs da
cabea, em sinal cinsico de satisfao, corroboram a conquista da vaga, numa empresa
possivelmente de uma cidade grande (a janela atrs dele indica que est num prdio
rodeado por outros edifcios). H at uma placa com o que seria o nome dele sobre a mesa,
algo comum em algumas firmas.
esse o desfecho inesperado. Ambos se diziam contrrios ao puxasaquismo. Os
dois, entretanto, mostraram-se propcios prtica. Bastou um elogio para conseguir a vaga.
A mudana no curso da narrativa comeou no terceiro quadrinho e se confirmou no quarto.
Formou-se uma mudana de focalizao no contedo da narrativa, que levou ao desfecho
inesperado da tira. Houve necessidade de articulao dos elementos verbais e visuais para a
produo do sentido.
O autor da tira procurou criar, principalmente nos dois quadrinhos iniciais da
narrativa, tanto o empregador quanto o funcionrio de forma estereotipada. Essa maneira de
construir a histria uma forma de facilitar a leitura dos papis exercidos pelos
-
personagens, ponto j levantado por Barbieri (1998, p. 216). Como eles no so fixos, o
leitor precisa se inteirar rapidamente das funes sociais exercidas por ambos para poder
compreender o sentido pretendido.
O recurso de caracterizar os personagens com elementos estereotipados ocorre em 8
das 10 tiras pesquisadas. So exercidas diferentes funes: funcionrio de parque aqutico
(o caso ser analisado mais adiante), motorista e passageiro (Tira/Classificados 4), esquim
e mecnico (Tira/Classificados 5), morador de apartamente e jogador de futebol
(Tira/Classificados 6), casal (Tira/Classificados 7), atendente e cliente (Tira/Classificados
8), capito e marujo (Tira/Classificados 9), garom e caixa (Tira/Classificados 10). A que
foge um pouco a esse comportamento a Tira/Classificados 3, que no aborda personagens
propriamente ditos. O foco visual est em um bonde e em uma van:
Tira/Classificados 3
O objeto-de-discurso um bonde. O leitor faz analogia a um bonde real, informao
que detm por conhecimento de mundo. O veculo de transporte, que j foi muito usado em
grandes cidades brasileiras, hoje utilizado como atrao turstica em algumas cidades,
como em Santos, no litoral paulista (o bonde circula por ruas do centro). As linhas na parte
de baixo da vinheta indicam os trilhos de rolamento percorridos pelo veculo de transporte
que, pelo que se v atravs dos vidros, est vazio. Ou quase vazio. Dentro, na frente do
vago, h um condutor, de azul. um signo icnico contido dentro outro signo icnico
maior. No vidro dianteiro, a palavra desejo est escrita numa placa ou cartaz. O signo
-
plstico de fundo apresenta uma colorao branca, que impede de saber onde exatamente se
passa a cena narrativa.
O objeto-de-discurso se relaciona com o contedo verbal, no canto direito superior
do quadrinho: O bonde chamado desejo no circula mais... As reticncias indicam que o
fim da frase fica em aberto ou que ter seqncia na vinheta seguinte, criando um suspense
e uma expectativa. Infere-se, pelos dados contextuais, que seja a voz do narrador. No h
balo ou legenda. Da mesma forma que temos na linguagem dos quadrinhos um balo-zero,
quando o signo de contorno fica subentendido, teramos aqui algo equivalente, um tipo de
legenda-zero.
A frase estabelece um dilogo intertextual com a obra norte-americana Um bonde
chamado desejo, de Tenessee Williams, obtida necessariamente por conhecimento prvio.
Na tira, pode-se visualizar o ttulo do livro por meio de um signo icnico. A informao de
que a frase provm de um ttulo literrio no seria essencial para fazer a associao. Mas
acrescentaria ainda mais ironia leitura.
No possvel dizer onde ou quando ocorre a ao. Por mais que bondes sejam um
veculo de transporte comum a geraes passadas, ainda existem como atrao turstica,
como j comentado. O que se pode afirmar, com base no contedo verbal, que
especificamente este bonde no circula mais. A representao da cena narrativa funciona,
dentro do contexto, como uma lembrana do tempo em que rodava pelos trilhos.
H uma tentativa, nesta vinheta, de conciliar os objetos-de-discurso visuais e
verbais. O bonde chamado desejo o signo icnico visto pelo leitor. Por isso, traz no vidro
os dizeres desejo.
O hiato entre as vinhetas mudou o objeto-de-discurso visual e tambm o signo de
foco. um veculo de quatro rodas de mdio porte. H um motorista. No possvel dizer
com segurana, pelos elementos sgnicos, se h passageiros ou no. No vidro dianteiro, h
uma placa ou cartaz com a palavra filosofia escrita (est em letras bem pequenas). O
veculo est em circulao. Infere-se a informao pela fumaa na parte de trs, que
subentende-se seja do escapamento. Novamente, o signo plstico branco, ao fundo, impede
de saber onde se passa a cena narrativa.
O trecho verbal aparece da mesma forma que na vinheta anterior, sem linha de
contorno na legenda. A frase se inicia com reticncias, indicando continuidade do
-
fragmento lido na vinheta anterior: ... s a van filosofia. a chave para entender a tira e o
desfecho inesperado. A frase estabelece uma relao intertextual com o livro Hamlet, de
Willian Shakespeare, informao inferida por conhecimento prvio. Na obra, h uma frase
clebre do protagonista: H muita coisa mais no cu e na terra, Horcio, do que sonha a
nossa pobre filosofia (trecho extrado de SHAKESPEARE, 2000, p. 40). Conforme a
traduo feita, podem ocorrer sutis mudanas, como estas: H multa [sic.] coisa mais no
cu e na terra, Horcio, do que sonha a nossa pobre filosofia (op. cit., 2007, p. 19). Houve
uma outra verso dessa frase num dos exemplos do captulo 6, no quadrinho inicial de
adaptao do conto A Cartomante, de Machado de Assis. Apesar das diferenas, a
expresso pobre filosofia se mantm nas duas verses traduzidas. De onde teria surgido,
ento, a construo van filosofia?
Entendemos que a clebre frase tenha se popularizado no Brasil com o adjetivo
v, verbete que consta no Vocabulrio Oficial da Academia Brasileira, disponvel para
consulta virtual. O sentido seria equivalente a pequeno, diminuto ou mesmo pobre,
conforme o contexto. Pesquisa virtual no site de busca eletrnica Google, feita no dia 20
de fevereiro de 2007, s 13h, acusou um caso com essa expresso em sites brasileiros: H
mais mistrios entre o cu e a terra do que a nossa v filosofia pode compreender. Embora
se faam (com razo) restries confiabilidade de levantamentos virtuais como esse,
acreditamos que ele serve para registrar formas de como expresses tm sido usadas
socialmente. Nesse caso, refora a hiptese de popularizao da expresso. O autor tem
optado por essa forma, e no a registrada nos dicionrios, refora a inteno de trabalhar
nas tiras elementos estereotipados, de modo a facilitar e tornar mais rpido o processo de
compreenso do texto.Na tira de Classificados, a diferena que a palavra v trocada
por van, que nos remete ao veculo representado, uma van. O verbete registrado pelo
Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa (2001, p. 2827) como sendo um termo vindo do
ingls, com sentido veculo automvel para transporte coletivo de um nmero limitado de
passageiros (geralmente entre oito e 16). exatamente o caso. V e van so palavras
homfonas, porm hetergrafas (mesma pronncia, diferente escrita), o que torna
inesperada a associao. Como no quadrinho anterior, h a associao entre os objetos-de-
discurso verbais e visuais. A van filosofia o veculo visto no quadrinho.
-
As duas vinhetas apresentam uma situao inesperada, resultado da ligao entre
signos verbais e visuais. Mas o efeito de humor surge por meio do recurso fonolgico da
oposio v/van. Na primeira vinheta, o bonde da frase o bonde da imagem. No
quadrinho seguinte, a van filosofia no s a imagem do veculo visto na vinheta.
tambm a dos dois sentidos sugeridos por um termo de mesma pronncia e escrita
semelhante: van (veculo) e v (situao pequena, diminuta). A jogada com a pronncia
e a relao i