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Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2012
A ESTEREOTIPIZAÇÃO DA MULHER EM PROPAGANDAS DE
AUTOMÓVEIS: UMA ABORDAGEM DIACRÔNICA
Antonio Lemes Guerra Junior1
Roberta Maria Garcia Blasque2
Resumo
Muitas vezes, por meio da figurativização discursiva, o mundo real é transposto para o
discurso publicitário, a partir de uma linguagem sincrética altamente persuasiva. É
natural que vários aspectos dessa chamada “realidade” sejam utilizados, como, por
exemplo, os diversos estereótipos e imagens que circulam na sociedade. Assim, a
mulher acaba sendo escolhida para protagonizar peças publicitárias de automóveis,
figurando como um dos alvos preferidos pelos enunciadores que produzem e
direcionam tais textos. O objetivo deste trabalho, portanto, está centrado na análise de
algumas propagandas de automóveis, que trazem a figura feminina para o centro de sua
atividade manipulatória. A intenção é avaliar o modo como ocorre essa representação e,
principalmente, como podem ser percebidas as transformações sociais que levaram à
(re)construção da figura da mulher ao longo da história.
Palavras-chave: Mulher; Estereótipo; Argumentação; Publicidade; Automóveis.
THE WOMAN STEREOTYPING IN CAR ADVERTISEMENTS:
A DIACHRONIC APPROACH
Abstract
Many times, by the discursive figurativization, the real world is transposed to the
discourse of advertising, with a highly persuasive syncretic language. It is natural that
several aspects of the so called "reality" are used such as, for example, the various
stereotypes and images that circulate in society. Thus, the woman often is chosen to
play cars advertising, appearing as one of the favorite targets of the enunciators who
produce and direct such texts. This work, therefore, focuses on the analysis of some car
advertisements, which drive the female figure to the center of their manipulative
activity. The intention will be evaluating how this representation occurs and, especially,
how may be perceived the social transformations that led to (re)construction of women
image throughout history.
Keywords: Woman; Stereotype; Argumentation; Publicity; Cars.
1 Mestre em Estudos da Linguagem, pela Universidade Estadual de Londrina (2011). Doutorando em
Estudos da Linguagem, pela Universidade Estadual de Londrina. 2 Mestre em Estudos da Linguagem, pela Universidade Estadual de Londrina (2011). Doutoranda em
Estudos da Linguagem, pela Universidade Estadual de Londrina.
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Introdução
A arte de argumentar, uma atividade histórica, é constantemente utilizada em nosso dia
a dia, para fins diversos, assim como também são diversos os textos que se constroem
na tentativa de manipular o outro, convencê-lo acerca de uma (suposta) verdade. As
propagandas, no entanto, podem ser consideradas tipos de textos em que essa atividade
persuasiva é empregada de modo mais saliente, mais abrangente, haja vista que o
convencer é seu objetivo último e, para tanto, devem lançar mão de incontáveis
mecanismos, capazes de recriar a realidade.
A transposição da realidade em textos publicitários ocorre para que o discurso
seja colocado o mais próximo possível diante do leitor/consumidor; é essa proximidade
que, na maioria das vezes, fará com que ele se identifique com o produto e,
consequentemente, opte por sua aquisição. Assim, muitos aspectos sociais são
representados nas propagandas, a partir de imagens que resgatam valores ideológicos e
estereótipos que transitam no chamado “mundo real”. Isso é o que confirma Fiorin
(2000, p. 33), ao dizer que “as idéias e, por conseguinte, os discursos são expressões da
vida real. A realidade exprime-se pelos discursos”.
Cada enunciador vai elaborar uma representação da realidade a partir de
imagens que estejam ligadas ao produto pelo qual é responsável. Os automóveis não
fogem a essa regra e, por isso, diversas imagens são empregadas no intuito de fazer com
que os consumidores vejam-se reproduzidos e sejam persuadidos. Dentre os indivíduos
escolhidos para figurarem o discurso desse tipo específico de texto, estão as mulheres,
cujas características são frequentemente expostas, com base nas concepções correntes
sobre sua personalidade. No entanto, enquanto agente manipulador, a propaganda tende
a direcionar as pessoas a caminhos que elas julgam ter escolhido, e elas ficam sujeitas a
assumirem para si imagens que, na verdade, não as representam, conforme aponta
Fracasse (2004, p. 37):
Em contato com o poder ideológico da propaganda, o indivíduo passa a crer
que o seu pensamento, sua maneira de agir, seu comportamento, sua maneira
de ver o mundo surgem exclusivamente em si mesmo. A propaganda fornece
a ele esse sentimento de ser único e exclusivo, fazendo com que não perceba
que suas atitudes são moldadas pela ideologia veiculada.
Assim, este trabalho, a partir da análise de algumas peças publicitárias de
automóveis, as quais trazem a figura da mulher para o foco de sua argumentação, tecerá
algumas discussões acerca do modo como o “ser mulher” é abordado nesses textos, em
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uma progressão diacrônica, haja vista que foram selecionadas propagandas publicadas,
não só recentemente, mas também há algumas décadas. Nosso objetivo será verificar,
além dos recursos argumentativos empregados no engendramento de sentidos, as
possíveis alterações na maneira de situar a mulher na história da sociedade brasileira,
uma vez que, ao longo do tempo, sua imagem sofreu uma espécie de reposicionamento.
Mulher: força, luta e liberdade
O fato da visível disparidade entre a história do homem e a da mulher na sociedade
brasileira, bem como na mundial, não é nenhuma novidade. Inúmeros são os registros
que denunciam os diversos tipos de agressão, privação e humilhação que a mulher
sofreu durante muito tempo, sem que perdesse o desejo de lutar por mudanças, as quais
pudessem levá-la a um novo momento, no qual ela pudesse ser, efetivamente, percebida
como ser humano, e não apenas como simples objeto de satisfação das vontades
masculinas ou máquina reprodutora e trabalhadora.
Vemos, hoje, em nossa sociedade, um significativo avanço, que colocou a
mulher em uma posição diferenciada no que tange às condições de trabalho e às
atribuições, enquanto indivíduo de uma determinada comunidade. Assim, é comum
vermos mulheres ocupando cargos de alta responsabilidade, destinados,
inicialmente/historicamente, apenas aos homens. Essas diferenças sempre puderam ser
observadas em várias situações, em vários contextos e, também, em vários discursos.
Desse modo, as propagandas figuraram, ao longo da história, como importantes
veículos de disseminação dessas concepções acerca da posição ocupada por homens e
mulheres na sociedade.
A representação da realidade sugerida pelos textos publicitários, com o passar
dos anos, modelou “formações ideológicas”, entendidas como “a visão de mundo de
uma determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de idéias que
revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo” (FIORIN, 2000, p. 32).
Em outras palavras, os textos das propagandas tendem a mostrar como a sociedade é
percebida por seus enunciadores, disseminando, assim, conceitos estereotipados, que
cristalizam imagens as quais não podem ser generalizadas, uma vez que não atingem a
totalidade dos indivíduos que pretende representar. Como aponta Nascimento (2006, p.
05), “a ilusão estimulada pela publicidade ao induzir os seres humanos a se acharem
especiais caso adquiram a mercadoria em destaque, também cria a sensação de que
serão mais bem aceitos socialmente”.
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Diante disso, é possível afirmar que muitos aspectos da realidade foram
representados nas propagandas de modo errôneo, forçado, não condizente com a
verdade, pois partiram da observação de uma parcela limitada de componentes dessa
mesma realidade (os enunciadores). De acordo com Oliveira et al. (2005, p. 01), “todo
ato de linguagem está impregnado de subjetividade, em menor ou maior grau,
conferindo existência ideológica e afetiva a uma pessoa, que se transforma em sujeito,
sujeito de um ato histórico e irreversível, que é o momento da enunciação”. Ou seja, a
visão da realidade nas propagandas é produto da subjetividade, por ser fundamentada
apenas em impressões dos grupos que as elaboram, e o discurso que veiculam, por sua
vez, deixa marcas profundas na história.
A figura feminina enquadra-se no conjunto desses aspectos subjetivos
reproduzidos no discurso publicitário e será alvo das discussões formuladas no decorrer
deste trabalho, com as quais será possível perceber o papel atribuído às mulheres na
sociedade, a partir do modo como elas são e participam dos anúncios de automóveis.
O papel da mulher na publicidade de automóveis
Alguns indivíduos, pertencentes a uma sociedade que, ainda, carrega ranços de
machismo, costumam afirmar que a relação entre mulher e automóvel pode não parecer
tão natural, quanto o é se substituírem a figura feminina pela masculina. No entanto, a
imagem da mulher é comumente empregada na construção de comerciais que têm como
objetivo a divulgação desse tipo de produto, ora como personagens principais, ora como
meros acessórios, figurantes, cuja incumbência reside no fato de proporcionarem,
principalmente, beleza aos textos, sendo encaradas, muitas vezes, como objetos de
sedução.
Contudo, a passagem da mulher de uma atuação secundária para um papel de
destaque nas propagandas de automóveis acontece cada vez mais frequentemente, pois,
nos últimos anos, é percebido, de forma clara, “um movimento de agências publicitárias
e montadoras de automóveis em busca de reconhecer o público feminino e detectar que
as mulheres estão sendo vistas como segmento específico, ao contrário do que se
julgava havia alguns anos” (LARA, 2007, p. 37). Ou seja, as mudanças ocorridas no
mundo, no que tange à posição da mulher na sociedade, fizeram com que ela passasse a
ser vista, também, como um potencial consumidor de produtos destinados,
historicamente, ao público masculino, como é o caso dos automóveis.
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Em contrapartida, a figurativização da mulher no discurso da propaganda é
feita de modo idealizado, em consonância com os valores que circulam em cada época.
De acordo com Nascimento (2006, p. 07), “o espaço-tempo social que nós vivenciamos
é marcado pela aparência, pelo simulacro, pela representação do ideal. Ideal esse que
tenta satisfazer o desejo de poder de mulheres e homens através da cobrança de
adequação aos padrões estéticos”. Embora a autora ressalte o “espaço-tempo” atual, esta
prática há muito é utilizada na elaboração de textos publicitários: dá-se ênfase a
imagens estereotipadas, as quais são constantemente buscadas pelos indivíduos.
À medida que os movimentos feministas foram se configurando pelo mundo,
profundas alterações começaram a ocorrer nos discursos públicos, como as
propagandas, pois tais movimentos pregavam (e pregam) a igualdade entre homens e
mulheres, e isso teve que ser, de certa forma, incorporado aos textos publicitários,
dando mais importância à figura da mulher. Lara (2007, p. 22) afirma que “as
discussões feministas trazem à tona a desconstrução dos discursos que assumem uma
„natureza‟ feminina e outra masculina, que seriam responsáveis pelas representações do
que é ser homem e o que é ser mulher na sociedade”. Em outras palavras, textos que
ainda pregam diferenças devem ser deixados de lado, em detrimento daqueles que
apresentam os dois sexos com valores equivalentes.
Diante disso, contrariando àqueles que dizem o contrário, estabelecer uma
relação entre mulher e propaganda de automóvel é, além de viável, facilmente
encontrado nas páginas de jornais e revistas ou em comerciais veiculados na mídia
televisiva. E para verificarmos como isso funciona na prática, isto é, como a figura
feminina vem sendo representada nas propagandas brasileiras de automóveis,
selecionamos quatro peças publicitárias publicadas na Revista Claudia3, duas do ano de
1971 e duas do ano de 2008, numa tentativa de traçar paralelos entre as mudanças
ocorridas (ou não) na visão que se tem da mulher nas propagandas e as transformações
percebidas em nossa sociedade, no que tange à emancipação feminina.
O forte sexo frágil
Uma das ideias mais difundidas no meio social diz respeito à fragilidade do sexo
feminino, embora a história nos prove que as mulheres nada têm de frágeis. A conquista
de direitos nas áreas do governo, da educação, do mercado de trabalho e, até mesmo, na
3 A Revista Claudia foi escolhida por ser um periódico destinado, principalmente, ao público feminino,
em que podem ser encontradas várias das concepções históricas acerca do “ser mulher”.
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estrutura das famílias não foi suficiente para apagar uma “fraqueza” que elas não
apresentam, já que se encontram, há tempos, em um processo de reposicionamento
social ascendente.
Podemos afirmar, sem dúvida, que tal acepção de fragilidade já esteve muito
mais arraigada na mentalidade de nossa sociedade, restando hoje alguns resquícios,
encontrados naqueles que guardam ainda um sentimento “machista”. Desse modo, é
muito mais fácil encontrar a mulher representada de modo frágil em propagandas do
passado. Por isso, segue abaixo o primeiro texto que analisaremos, veiculado na década
de 1970, em que fica claro um dos valores sociais mais difíceis de serem apagados.
FIGURA 1 - Representação da mulher como sexo frágil.
Fonte: Revista Claudia - março/1971.
Texto reproduzido:
Quando o sexo é frágil, o carro tem que ser forte.
Nenhuma mulher é frágil dentro de um carro forte. Como o Ford Corcel. Dentro dêle a mulher se sente
mais segura. Por causa de sua resistência. De sua potência. E nem por isso ela se sente menos mulher.
Pelo contrário: o Corcel é o carro jovem, e dentro dêle a mulher é mais feminina. Mais bonita. Diferente
das outras.
Ford Corcel - Qualidade Universal Ford. O carro jovem.
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A propaganda acima dá mais ênfase à imagem da mulher que a do próprio
carro, objeto do anúncio, ficando clara, inclusive, a ausência de qualquer menção às
características técnicas do automóvel. O cuidado que a personagem tem com sua
aparência física é indiscutível: cabelos bem penteados, unhas bem cuidadas, rosto
maquiado, enfim, vários elementos nos mostram que se trata de uma mulher, além de
preocupada com a beleza, provida de recursos financeiros, fato evidenciado, também,
pelo uso de um discreto colar.
A ideia de fragilidade da mulher, comumente disseminada na sociedade, é
quase sempre associada a algum elemento de força, que deve protegê-la. Essa tarefa de
proteção, em geral, é destinada aos homens, mas, neste caso, quem recebe a
incumbência de zelar pela integridade física da personagem é o carro, apresentado como
“o forte”.
Considerando os recursos linguísticos, temos um caso de antonímia, a partir da
oposição dos adjetivos “frágil” e “forte”, colocados no mesmo enunciado. O jogo
argumentativo decorrente de tal construção torna o texto chamativo, uma vez que
reaviva um discurso corrente, não muito aceito pelas mulheres, que sempre lutaram pela
sua liberdade e sua igualdade, nunca se considerando seres frágeis ou inferiores, que
necessitassem de proteção o tempo todo.
As relações entre força e fragilidade são reiteradas no restante do anúncio, em
que se percebem outros termos ligados a essa esfera semântica. É ressaltada a ideia de
segurança proporcionada pelo carro à mulher, bem como a ideia de força do automóvel,
por meio de sua resistência e de sua potência. Além disso, é concretizada ainda mais a
relação entre fragilidade e feminilidade, quando o enunciador afirma que, dentro do
automóvel, a mulher é mais feminina, mais bonita.
O slogan do produto – “Corcel, o carro jovem” – reforça uma das maiores
ambições de algumas mulheres: a juventude. Assim, o texto, além de concebê-la como
um ser frágil, situa a mulher numa busca pela vaidade, representada pelo “ser jovem” e
pelo “ser bonita”. Nenhuma referência é feita à família ou ao trabalho: a figura feminina
é o centro do discurso, proferido de acordo com concepções historicamente construídas,
como é o caso da diferença entre os sexos.
A personificação do cuidado e da responsabilidade
Contrapondo-se às ideias de fragilidade, de dependência, passamos a discutir a
representação da mulher como a base familiar, o centro das responsabilidades, a quem é
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delegado o cuidado, principalmente, com os filhos. Para isso, apresentamos uma
propaganda, também do ano de 1971, que retrata essa que aparenta ser uma das
representações femininas mais difundidas na história da mídia: a “mulher-mãe”, aquele
ser criado para assumir as tarefas da casa, lutando sempre pelo bem-estar de sua família.
FIGURA 2 - Representação da mulher como mãe, responsável pela família.
Fonte: Revista Claudia - junho/1971.
Texto reproduzido:
O carro que mamãe queria.
Tôda mamãe quer para a sua família um carro como a Ford Rural.
Um carro confortável e seguro.
A Rural leva com todo confôrto 6 pessoas. Ou 8 com o 3º banco. Ou muitas crianças.
A Rural tem direção suave e suspensão macia. O acabamento é igual ao dos carros de luxo.
Tôda mamãe quer um carro econômico.
A Rural faz mais de 7 km com apenas 1 litro de gasolina. E quase não gasta nada de manutenção.
Tôda mamãe pensa muito na proteção da família. A Rural tem motor na frente, protegendo quem está
atrás dêle.
Tôda família quer um carro valente. A Rural tem um motor de 90 HP com 6 cilindros em linha.
Se chegar a hora de vender, a Ford Rural alcança ótimo preço de revenda. Ninguém na família quer
perder dinheiro.
Então, a Rural não é o carro que mamãe e tôda a família queriam?
Ford Rural - Qualidade Universal Ford.
O texto que constitui esse anúncio ressalta vários aspectos relacionados a
desejos maternos. Assim, o enunciado que o intitula reproduz bem essa ideia: “O carro
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que mamãe queria”, e que não quer mais, uma vez que já o possui, conforme representa
a imagem. Além disso, ainda se referindo às imagens selecionadas para a construção do
texto, podemos elencar alguns elementos importantes: uma mulher, em um traje mais
“comportado”, mais “clássico”, enfatizando uma mãe responsável e recatada. Além
disso, as quatro crianças/filhos permitem-nos tecer considerações acerca da estrutura
familiar da época, bem como de épocas anteriores: ao contrário do que se vê hoje,
quando os casais buscam ter apenas um ou dois filhos, as famílias de antigamente
costumavam ser numerosas.
Ainda com relação às crianças, podemos observar que todas aparentam ter,
mais ou menos, idades bem próximas, denotando a rapidez com que as famílias se
constituíam, com filhos nascendo uns logo após os outros, o que situa a mulher, em
momentos de nossa história, como objeto de reprodução, formadora e, portanto,
sustentadora de famílias. Se pensarmos por esse viés, assumindo a figura feminina
como reprodutora, responsável pelo lar e pelos filhos, corremos o risco de sermos
censurados, pois tais ideias, atualmente, podem ser consideradas preconceituosas.
Portanto, o enunciador do discurso cria mecanismos que atenuam tais concepções,
aliviando a sensação de peso destinado às mulheres: ela assume, sim, várias
responsabilidades, mas é tratada de “mamãe”, palavra altamente afetiva que permeia
toda a propaganda.
Essa recorrência de termos acontece em diversos momentos do texto, e,
segundo Koch (2003, p. 123), a repetição “tem sido, tradicionalmente, avaliada de
forma negativa”, mas, se empregada de modo eficiente, assume alta carga estilística e
persuasiva. Como exemplo disso, na propaganda analisada, temos o pronome indefinido
“toda”, reiterado cinco vezes ao longo do texto, ora na locução “toda mamãe”, ora em
“toda (a) família”.
A repetição de “toda mamãe”, além de ser utilizada a fim de que houvesse uma
generalização, ou seja, qualquer mulher que se enquadrasse na categoria “mãe” estaria
sendo considerada, é empregada no sentido de que seja reafirmada toda a afetividade
emanada pelo substantivo “mamãe”, como já explicitado. A mulher, sentindo-se
colocada no centro das atenções do anúncio, sentindo-se acariciada por palavras, é
persuadida com muito mais facilidade, garantindo a maior efetividade do discurso.
Esse recurso da repetição, quase que insistente, pode se enquadrar no que Koch
(2003, p. 127) chama de “técnica da água mole em pedra dura”, por meio da qual
“repete-se como meio de „martelar‟ na mente do interlocutor até que este se deixe
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persuadir”. Ainda segundo a autora, “a reiteração de um mesmo item lexical, de uma
expressão ou descrição definida [...] têm basicamente essa função”: persuadir o
enunciatário.
Ainda considerando os elementos que representam a mulher-mãe, temos a
ocorrência de certos conceitos ligados à esfera maternal, tais como segurança, conforto
e proteção, destinados aos filhos; economia, sugerindo uma preocupação também com o
lar; suavidade e maciez, denotando características ou sensações próprias do cuidado, do
“colo de mãe”. Ainda assim, a mulher continua sendo colocada numa situação de
fragilidade, dependente de força externa: “toda família quer um carro valente” denuncia
a necessidade de proteção também para a mãe, forte perante os filhos, que dela
dependem, mas fraca e sensível diante de si mesma.
Finalizando, as descrições técnicas do automóvel, ao contrário da propaganda
anterior, na qual sequer apareceram, são feitas de modo sucinto, ressaltando-se apenas
aquelas ligadas ao conforto e à segurança, que a mulher deseja. Afinal, como bem
aponta Nascimento (2006, p. 04), fazer com que os produtos sejam apresentados “como
essenciais para suprirem as necessidades de consumidoras/es em potencial é uma das
funções desempenhadas habilmente pela publicidade”.
A modernidade e a igualdade
Deixando o ano de 1971, avançamos algumas décadas e estacionamos no século XXI,
no novo milênio, mais precisamente em 2008, a fim de verificar se tais acepções acerca
da figura feminina mantêm-se inalteradas ou se, como prevemos, sofreram mudanças
significativas.
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FIGURA 3 - Representação da mulher moderna - tecnologia e ritmo frenético de vida.
Fonte: Revista Claudia - outubro/2008.
Texto reproduzido:
Você faz conexões que nunca imaginou. E se imaginou, ficou com dor de cabeça depois.
Novo Ford Ka Tecno 2009 com My Connection. Um carro tão bacana que se conecta com o que você
quiser.
MP3, Bluetooth; Pendrive.
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Ford - Viva o novo.
Em uma época de constantes avanços tecnológicos, temos um anúncio
visivelmente mais elaborado e mais atraente que os anteriores. Aliás, atualmente, a
ousadia nas formas e nas cores tem sido uma das principais características das
propagandas, pois, em um emaranhado de discursos circulando ao nosso redor,
sobressai-se o mais vibrante e inteligente.
Inicialmente, podemos notar que a mulher frágil já não existe mais. A
personagem principal do anúncio, colocada em pé, com as mãos na cintura, aparenta
estar preparada para qualquer tipo de desafio, como se intimidasse seus próprios
obstáculos. Seus trajes, além de serem modernos, ousados e provocantes, contornam e
realçam as curvas de seu corpo, evidenciando a corrente utilização da mulher, hoje em
dia, como meio de atração e sedução em propagandas.
O destaque do anúncio fica a cargo da figurativização discursiva, que bem
reproduz a mensagem do texto, bastante reduzido, se comparado aos demais já
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analisados, remetendo-nos, também, à agilidade nos processos de comunicação atuais,
em que as mensagens devem ser claras, breves, mas persuasivas. Daí o maior destaque
dado às imagens; inclusive, não são citados quaisquer dados técnicos relacionados, por
exemplo, à potência ou a outros aspectos qualitativos do veículo.
Dos pés da mulher partem linhas que a ligam não só ao carro, mas também a
diversos outros objetos, quase todos modernos. Assim, temos livros, revistas, CDs,
aparelhos para exercícios físicos, instrumentos musicais, computador e outros objetos,
alguns deles também eletrônicos. Toda essa diversidade de elementos, ligados por meio
de traços amarelos no chão, fazem menção ao que diz a frase que encabeça o texto do
anúncio: “Você faz conexões que nunca imaginou”.
Realmente, além de as “conexões” estarem visivelmente bem reproduzidas,
algumas delas são mesmo inimagináveis. Soaria estranho, para algumas pessoas, por
exemplo, relacionar a uma figura feminina um par de halteres ou, então, uma bateria.
No entanto, todos os objetos selecionados para compor essa rede de vínculos entre
elementos de diferentes funcionalidades mostram que a concepção de “diferenças entre
os sexos” está, cada vez mais, caindo em desuso.
A postura da personagem, que representa o poder conquistado atualmente pela
mulher, junto a todos esses elementos, mostra que a figura feminina foi, de fato,
inserida na modernidade. Retomando a ideia de Lara (2007), esse é um claro exemplo
de “desconstrução dos discursos” segregadores, que pregam a separação entre homens e
mulheres. Temos aqui a mulher encarada como o alvo do anúncio de um produto cujas
qualidades beneficiarão apenas ela mesma. A utilização do pronome de tratamento
“você” reforça essa interpretação, uma vez que aproxima o enunciador de seu
enunciatário, que acaba sendo mais facilmente persuadido.
Em termos linguísticos, a característica marcante do texto é a presença de
“estrangeirismos”. A expressão my connection, que dá nome ao grupo de acessórios
trazidos pelo carro, tais como MP3, bluetooth e pendrive, mostra como o inglês é
frequentemente utilizado em construções de propagandas brasileiras. Além disso, não
podemos deixar de citar, mais uma vez, a repetição, pois ela pode ser inferida a partir da
utilização dos termos “conecta”, “conexões” e “connection”. Obviamente, trata-se de
um emprego implícito da repetição, mas que pode ser deduzida, inclusive, pelas
próprias marcas coloridas no chão que realizam “uma conexão visual”.
Em resumo, nesta propaganda, a mulher está ligada às inovações do seu tempo,
o que se justifica pela grande variedade de produtos tecnológicos ilustrados e oferecidos
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pelo automóvel, além da sugestão de visita à página da empresa anunciante na Internet,
para o acesso a maiores informações. Além disso, ainda se referindo a aspectos da
atualidade, temos a representação clara do ritmo frenético de vida levado pelas
mulheres, as quais têm que administrar seu tempo para a perfeita combinação de lazer,
trabalho e cuidado com a família e a beleza de seu corpo, a fim de que se encaixem nos
novos padrões estéticos difundidos pela sociedade.
Nesta peça publicitária, a linguagem não verbal enfatizou a importância da
utilização de símbolos neste gênero textual, conforme aponta Nascimento (2006, p. 04):
Para Jean Baudrillard (2000)4, na publicidade o que desperta o desejo do
consumo não é a mercadoria por si mesma, mas a carga simbólica que ela representa. Dessa forma, quem vai adquirir um produto não está
preocupada/o, na maioria das vezes, com os seus efeitos práticos, reais, e sim
com as sensações de gratificação que esse pode lhe proporcionar. Dito isso,
entendemos que as campanhas publicitárias tentam vender idéias e não
produtos, então necessitam explorar o universo simbólico dos indivíduos que
pretendem alcançar (grifo nosso).
Os símbolos, representados por todos os elementos relacionados à mulher
moderna, têm, portanto, a função de transmitir a ideia básica objetivada pelo enunciador
desse discurso: a possibilidade de a mulher viver plenamente, de acordo com as
exigências da sociedade atual, mesclando atividades originalmente masculinas, sem, no
entanto, perder a feminilidade. É o “novo” que surge, inclusive no slogan da empresa
anunciante – “viva o novo” –, para que sejam derrubados quaisquer tipos de
preconceitos, atualizando de vez o comportamento e a atuação da mulher no mundo.
O resgate da tradição na modernidade
Como pudemos ver, as transformações percebidas em nossa sociedade nos últimos anos,
no que diz respeito à aceitação da mulher e à sua inserção em contextos diversificados,
que não apenas o lar, foram transpostas para as propagandas. A suposta liberdade não
exclui, no entanto, suas atribuições como mãe, como trabalhadora, seja em casa ou fora
dela. A propaganda a seguir, também do ano de 2008, exemplifica tal afirmação.
4 BAUDRILLARD, Jean. Significação da publicidade. In: THEODOR, Adorno et al. Teoria da cultura de
massa. Tradução: Luiz Costa Lima. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
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Identidade Científica, Presidente Prudente-SP, v. 3, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2012
FIGURA 4 - Representação da mulher (mãe) moderna, preocupada
com o “seu” bem-estar.
Fonte: Revista Claudia - outubro/2008.
Texto reproduzido:
Você merece o melhor.
Desfrutar do que há de mais moderno e confortável é mais do que justo para quem vive de um lado para o outro, como você.
A gente não pára. A mulher moderna que é mãe, parceira, amiga e profissional tem uma vida tão intensa e
produtiva que muitas vezes falta tempo para se ter a liberdade de pensar certos luxos para si mesma. Mas
há horas em que devemos parar um pouquinho, nos permitir um mimo exclusivo e alimentar nosso ego
desfrutando do que há de melhor por aí. E esta idéia tem se fortalecido nos últimos tempos. Somente no
ano passado, o setor do mercado de luxo cresceu 17% no Brasil, indicando que produtos com qualidade
diferenciada têm cada vez mais espaço em nosso cotidiano. E nós já somos a maioria entre quem
consome artigos com qualidade diferenciada. As mulheres representam 58% desse mercado, que é uma
delícia. A explicação é simples: a gente merece o melhor.
Tudo de bom
Jóias, chocolates deliciosos, roupas de grifes famosas, cosméticos de última geração, equipamentos supertecnológicos, viagens para conhecer novas culturas e pequenas cirurgias plásticas são apenas alguns
dos investimentos que nos deixam cada vez mais interessantes (e poderosas). E isso não é exclusividade
de quem tem muito dinheiro. Com o crescimento do poder de aquisição dos brasileiros e condições de
financiamento mais acessíveis a cada dia, permitir-se curtir o que há de melhor ficou muito mais fácil.
Não é à toa que lojas e ruas inteiras dedicadas a produtos mais sofisticados têm pipocado as cidades
brasileiras.
Mas se isso já é comum com perfumes, vestidos, bolsas e outros acessórios, por que também não seria
também com o nosso próprio automóvel? O fato é que, se a mulher moderna não pára, também passa boa
parte do seu dia dentro do carro. Repare no tempo em que você gasta levando as crianças para cima e para
baixo, indo às compras, ao trabalho ou a um cafezinho com as amigas e, claro, passeando com seu
queridinho nos finais de semana. Agora, imagine fazer isso tudo em um carro que é um conforto só, no maior estilo? Você merece. Confira a seguir o que o Chevrolet Captiva Sport tem para oferecer a você.
Conforto, segurança e muito estilo
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O Chevrolet Captiva Sport foi desenvolvido no estúdio de design da GM Europa e pensado para atender
os mais exigentes clientes. Conta com o que há de mais moderno em tecnologia na indústria
automobilística e é o carro perfeito para você circular pela cidade em alto estilo, com conforto e
segurança. Tem um design exterior esportivo pra lá de exclusivo e, assim como numa peça de alta-
costura, utiliza materiais premium em seu interior com acabamento de alto nível.
As características do Chevrolet Captiva são muitas, confira:
Segurança
Sistema isofix de fixação de cadeiras para crianças
6 airbags – dois frontais, dois laterais e dois do tipo cortina
Freios ABS ESP – Sistema de Controle de Estabilidade
Sensor de chuva com regulagem de sensibilidade que ativa automaticamente os limpadores de
pára-brisa
Monitoramento de pressão dos pneus
Conforto
Transmissão automática de 6 velocidades Active Select – com possibilidade de troca manual
de marchas
Bancos dianteiros com aquecimento – disponível na versão AWD –, bom para quem é
friorenta!
CD player com leitor de MP3 e entrada auxiliar Redinhas porta-objetos atrás dos bancos e ao lado do console central (passageiros); e duas
redes porta-objetos no porta-malas. Banco do motorista com regulagem elétrica e regulagem manual do
apoio lombar
Enfim, uma jóia de carro para você dirigir sempre segura e com todo o conforto que você
merece
Mais uma vez, temos o apelo à tecnologia, apresentada, neste caso, com uma
descrição bem mais detalhada dos acessórios do automóvel, diferentemente do que foi
observado nos demais anúncios. Outro recurso recorrente é a utilização do pronome de
tratamento “você”, logo no título do texto: “você merece o melhor” coloca o
enunciatário em uma situação de importância, levando-o a crer que se preocupam com
ele e que, portanto, ele deve retribuir essa preocupação com a aquisição do produto
ofertado.
Dentre as quatro propagandas selecionadas, esta é a que mais faz uso da
linguagem verbal, com blocos extensos de informações, mas que trazem em detalhes as
qualidades e as vantagens do automóvel. No entanto, como a maior parte do texto
aparece em letras reduzidas, o que fica em evidência, além da imagem do carro, é a
figura de uma mulher, com o colo à mostra e um semblante de tranquilidade. Isso reitera
nossa afirmação de que, na maioria das vezes, a figura feminina é utilizada como objeto
de sedução na publicidade, confirmando as palavras de Carvalho (1996, p. 24): “[...]
apesar das várias faces da vida de uma mulher – mãe, profissional, esposa, dona-de-casa
–, a publicidade bate sempre na mesma tecla: para ser feliz e bem-sucedida, a mulher
precisa estar sempre bela e ser (ou parecer) jovem”.
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O enunciador do texto também é uma personagem feminina, o que aproxima
ainda mais o discurso do enunciatário. Isso fica evidenciado por sequências como “a
gente não pára” ou “a gente merece o melhor”. Além disso, o uso dessas expressões
remete-nos a um aspecto linguístico muito importante, que marca essa propaganda: o
emprego da oralidade, com a função de aproximar e criar uma esfera de intimidade
entre produtor e interlocutor do discurso. Podemos perceber isso em alguns exemplos,
tais como a colocação pronominal em “nos permitir”, ao invés de “permitir-nos”; o uso
de gírias, como em “imagine fazer isso tudo em um carro que é um conforto só, no
maior estilo”; o uso de certas construções típicas da fala, como “exterior esportivo pra lá
de exclusivo”; e o emprego de exclamações, como “bom para quem é friorenta!”.
Fica claro o direcionamento dado ao discurso, ou seja, o público que pretende
atingir é bastante específico: pessoas (mulheres) com nível social elevado. Isso é
denunciado pelos elementos colocados à disposição do leitor acerca das atividades do
enunciatário: “Jóias, chocolates deliciosos, roupas de grifes famosas, cosméticos de
última geração, equipamentos supertecnológicos, viagens para conhecer novas culturas
e pequenas cirurgias plásticas são apenas alguns dos investimentos que nos deixam cada
vez mais interessantes (e poderosas)”; e tudo isso sem contar as bolsas, os vestidos e os
perfumes que também são citados. Embora o texto mencione, logo em seguida, que
“isso não é exclusividade de quem tem muito dinheiro”, devido ao “crescimento do
poder de aquisição dos brasileiros” e às “condições de financiamento mais acessíveis”, é
evidente que se pretende conquistar um grupo consumidor seleto.
A escolha da linguagem e dos mecanismos de persuasão de acordo com o
público-alvo é explicado por Fracasse (2004, p. 36):
O modo de persuadir oscila de acordo com o produto, faixa etária, sexo e
classe social do possível consumidor, sendo assim, o texto publicitário será
elaborado minuciosamente para atender a um certo tipo de público e,
conseqüentemente, obter o controle social sobre ele (grifo nosso).
O “controle social”, e até individual, finalidade primeira da propaganda, jamais
é deixado de lado, mesmo que sejam alteradas todas as condições de produção do
discurso. As características de determinado grupo são detectadas e confrontadas com as
qualidades do produto anunciado e, por fim, são definidas as estratégias que serão
empregadas para a construção do texto a ser publicado.
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O fato de este subitem trazer em seu título um suposto “resgate da tradição na
modernidade” deve-se ao fato de que a mulher deste anúncio, além de ser representada
como a “mulher moderna”, ligada a “equipamentos supertecnológicos” (o que explica a
riqueza de detalhes com a descrição técnica do automóvel), recebe inúmeros outros
atributos: “mãe, parceira, amiga e profissional”, que tem uma vida “intensa e
produtiva”. Em outras palavras, pretendemos ressaltar que, mesmo imersa na delirante
atualidade, a mulher ainda mantém as tarefas que há tempo a definem como tal,
especialmente, o “ser mãe”, que leva as crianças “para cima e para baixo”. Enfim, trata-
se de um anúncio que mescla a mulher do passado e a do presente, inclusive as
inúmeras concepções acerca de sua posição na sociedade brasileira.
Considerações finais
Conforme define Barros (2007, p. 07-08):
[...] o texto só existe quando concebido na dualidade que o define – objeto de significação e objeto de comunicação – e, dessa forma, o estudo do texto com
vistas à construção de seu ou de seus sentidos só pode ser entrevisto como o
exame tanto dos mecanismos internos quanto dos fatores contextuais ou
sócio-históricos de fabricação do sentido.
Assim, considerando que este trabalho propôs a análise de textos publicitários,
justifica-se o fato de, para verificar as possíveis alterações nas formas de representação
da figura feminina em propagandas de automóveis, termos resgatado certas concepções
historicamente construídas, que nos remetem a conhecidas situações do passado, em que
as mulheres ocupavam papéis considerados (por alguns indivíduos) secundários na
sociedade.
Salientamos que isso mudou ao longo dos anos e, de simples coadjuvante, a
mulher vem protagonizando cenas importantíssimas da vida moderna. Ela ganhou seu
espaço, conquistando parte de territórios antes ocupados apenas pelos homens, como é o
mercado de automóveis, confirmando sua emancipação, sua libertação de certos padrões
e estereótipos.
A partir de exemplos cuidadosamente selecionados, entendemos ter cumprido
nossa tarefa, com a certeza de que estamos diante de um estudo extremamente profícuo,
que ainda pode (e deve) render numerosas e densas discussões por parte de todos que se
interessam, além dos assuntos relacionados à história da mulher e dos automóveis, pela
história da linguagem publicitária, tão rica, manipuladora e surpreendente.
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Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4 ed. São Paulo: Ática,
2007.
CARVALHO, Nelly de. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 1996.
FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2000.
FRACASSE, Luciana. Os valores sociais e a argumentação no discurso da
propaganda. 2004. 136 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) -
Universidade Estadual de Londrina, Londrina.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 7 ed. São
Paulo: Contexto, 2003.
LARA, Andréa de Almeida. Representação de mulher nos comerciais de
automóveis: garota é apenas equipamento opcional. 2007. 118 f. Dissertação (Mestrado
em Comunicação) - Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília.
NASCIMENTO, Cícera Maria do. A erotização mercadológica de corpos femininos
pelas publicidades de automóveis. Interfaces de Saberes, Caruaru, v. 6, n. 2, 2006.
OLIVEIRA, Esther Gomes de; AZEVEDO, Melissa Carolina Herrero de;
NASCIMENTO, Suzete Silva. Propaganda e argumentatividade: explorando a
homonímia e a polissemia. In: III CIEL - Ciclo de Eventos em Linguística. Ponta
Grossa: UEPG, 2005.