texto sobre ditadura da beleza

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O corpo-imagem na “cultura do consumo”: uma análise histórico-social sobre a supremacia da aparência no capitalismo avançado Tatiane Pacanaro Trinca (Mestre em C. Sociais pela UNESP- Marília) O corpo reina e padece diariamente. Propagam-se as “deficiências” e os limites corporais, desvalorizam-se as singularidades e potencialidades dos sujeitos e os tornam desnecessários, descartáveis, sem sentido, e, simultaneamente, o aclamam, fazendo do corpo o mais sublime objeto de adoração. A TV, o cinema, a medicina, a publicidade, a moda, os esportes asseguram seu sucesso, sua valorização, e colocam a aparência corporal como núcleo do glamour, da prosperidade, da saúde e da felicidade humana. Enquanto a realidade cotidiana se apresenta de forma instável, caótica e incerta (desemprego, violência, miséria, doenças, crises econômicas e ecológicas) a realidade do mundo da fama e o espetáculo das imagens contribuem para que o próprio corpo seja considerado a única coisa que resta ao ser. O fenômeno do culto ao corpo vem ganhando espaços significativos nos meios de comunicação e na sociedade em geral. O assunto circula nas pautas de jornais e revistas, difundindo-se por programas de televisão, cadernos de cultura e anúncios publicitários. Além disso, ocorre um vertiginoso crescimento de áreas profissionais ligadas à estética corporal, que abrange desde cursos técnicos, ensino superior e especializações: nutricionistas, esteticistas, personal trainers, dermatologistas, cirurgiões plásticos, massagistas, personal stylist e terapeutas corporais formam um rol de especialistas em rejuvenescimento e em embelezamento. De acordo com os dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), a cada ano, cerca de 500 mil pessoas se submetem a cirurgias plásticas no Brasil. O país fica atrás apenas dos EUA, líder em número de cirurgias estéticas. Segundo salienta Osvaldo Saldanha (Secretário Geral da SBCP), estima-se que o número de cirurgias aumente de 20% a 30% por ano. Nos EUA, a Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos contabilizou 400 mil cirurgias estéticas no país em 1992. Dez anos mais tarde, esse número saltou para 6,6 milhões – um crescimento astronômico de 1.600% ou 16 vezes. Como se não bastasse o crescimento espantoso de intervenções cirúrgicas com fins estéticos, assistimos (literalmente) o

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Page 1: Texto Sobre Ditadura Da Beleza

O corpo-imagem na “cultura do consumo”: uma análise histórico-social sobre a supremacia da aparência no capitalismo avançado

Tatiane Pacanaro Trinca (Mestre em C. Sociais pela UNESP-Marília)

O corpo reina e padece diariamente. Propagam-se as “deficiências” e os limites corporais, desvalorizam-se as singularidades e potencialidades dos sujeitos e os tornam desnecessários, descartáveis, sem sentido, e, simultaneamente, o aclamam, fazendo do corpo o mais sublime objeto de adoração. A TV, o cinema, a medicina, a publicidade, a moda, os esportes asseguram seu sucesso, sua valorização, e colocam a aparência corporal como núcleo do glamour, da prosperidade, da saúde e da felicidade humana. Enquanto a realidade cotidiana se apresenta de forma instável, caótica e incerta (desemprego, violência, miséria, doenças, crises econômicas e ecológicas) a realidade do mundo da fama e o espetáculo das imagens contribuem para que o próprio corpo seja considerado a única coisa que resta ao ser.

O fenômeno do culto ao corpo vem ganhando espaços significativos nos meios de comunicação e na sociedade em geral. O assunto circula nas pautas de jornais e revistas, difundindo-se por programas de televisão, cadernos de cultura e anúncios publicitários. Além disso, ocorre um vertiginoso crescimento de áreas profissionais ligadas à estética corporal, que abrange desde cursos técnicos, ensino superior e especializações: nutricionistas, esteticistas, personal trainers, dermatologistas, cirurgiões plásticos, massagistas, personal stylist e terapeutas corporais formam um rol de especialistas em rejuvenescimento e em embelezamento.

De acordo com os dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), a cada ano, cerca de 500 mil pessoas se submetem a cirurgias plásticas no Brasil. O país fica atrás apenas dos EUA, líder em número de cirurgias estéticas. Segundo salienta Osvaldo Saldanha (Secretário Geral da SBCP), estima-se que o número de cirurgias aumente de 20% a 30% por ano. Nos EUA, a Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos contabilizou 400 mil cirurgias estéticas no país em 1992. Dez anos mais tarde, esse número saltou para 6,6 milhões – um crescimento astronômico de 1.600% ou 16 vezes.

Como se não bastasse o crescimento espantoso de intervenções cirúrgicas com fins estéticos, assistimos (literalmente) o aumento de programas de televisão que exploram as imagens do corpo em pleno procedimento cirúrgico. Nesses reality shows têm médicos que viraram celebridades, como é o caso do Dr. Robert Rey (brasileiro radicado nos Estados Unidos conhecido como “Doutor Beleza”); homens e mulheres dispostos a se arriscarem em várias cirurgias para ficarem parecidos com seus ídolos; garotas que buscam a reconstrução do corpo para saírem em revistas e se tornarem famosas etc.

As aplicações e implantes de silicone, de toxina botulínica (conhecida por Botox – marca do fabricante), a obsessão com a magreza, com o controle do peso, a adoção às tendências da moda, os exercícios físicos, os alimentos diet e light, o consumo de hormônios, de anabolizantes; as técnicas e os produtos para rejuvenescer, os procedimentos modeladores, corretivos e de lipoescultura, bem como as terapias de conhecimento do corpo converteram-se em ferramenta indispensável para viabilizar a produção de um corpo “perfeito e ideal”, modelo de saúde e auto-estima, esteticamente “belo”, dentro dos padrões tipicamente ocidentais E é por meio da incessante corrida em busca da beleza ideal, ditada pela supremacia da aparência, que os sujeitos, marcados especialmente pela insatisfação com o próprio corpo, procuram construir suas identidades e auto-imagens particulares. Estimulada por um

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aumento da segurança médica, pelo parcelamento financeiro (a perder de vista) e pela “facilidade” em alcançar modelos estéticos corporais diferentes do determinado pelo biótipo,

[...] a era da produção em massa da aparência está ao alcance da mão, e a América Latina está recebendo com um sorriso e braços abertos. Como muitos fenômenos da cultura de massa, a mania de cirurgias tem um forte componente no show-business americano. Ao escolher a cirurgia estética, mulheres latinas de todas as origens étnicas e raciais estão escolhendo principalmente um visual: uma variação da tradicional California Girl, de busto grande e nariz pequeno. [...] Barbie ou Baywatch, é uma fantasia nórdica transplantada para as regiões do sul do hemisfério. (FERNANDEZ apud ANTUNES, 2001, p.12).

O corpo orgânico parece estar em profunda crise e tensão de modo a gerar incômodo e, com isso, a necessidade de modificá-lo a fim de frear o conflito estabelecido (que semanifesta, às vezes, em formas de patologias: depressão, transtornos obsessivos) se tornou um imperativo.

Como afirmam os antropólogos Mirian Goldenberg e Marcelo Silva Ramos (2002), a indústria da moda modificou até mesmo as noções de decente e indecente quando se refere ao uso das roupas. A utilização de uma indumentária que deixa à mostra determinadas partes do corpo, ou mesmo a exibição do corpo nu, não é considerada, na maior parte das vezes, tão indecente quanto a exibição de um corpo “fora de forma” ou o uso de roupas supostamente não condizentes com a forma física. Muitos programas de televisão e revistas femininas criaram quadros e seções dedicados aos erros cometidos pelas “vítimas da moda”.

Em sua grande maioria, as críticas são dirigidas àqueles que vestem roupas que são “inadequadas” ao seu formato corporal, e em muitos casos são feitos comentários pejorativos, quando não discriminadores, sobre pessoas consideradas gordas. Assim, não resta dúvida “[...] de que os estilistas de moda, ao explorarem transparências, decotes, peças que valorizam e expõe partes do corpo, pensam, explicitamente, num determinado padrão estético”. (p.28).

Ao observar as últimas tendências da moda nota-se claramente a supervalorização e exposição de corpo: as calças femininas de cintura baixa, as camisas masculinas mais justas, a diminuição do comprimento das saias e shorts, bem como a abertura dos decotes realçando as próteses de silicone, o corpo musculoso, a barriga sem vestígio de gordura, os bíceps e tríceps conquistados nas academias ou em salas cirúrgicas. Nessa direção expandiu-se também o uso de piercings e de tatuagens. Entretanto, cresce, além disso, o mercado de produtos e serviços direcionados às pessoas obesas que abrangem desde spas, revistas sobre “saúde e beleza” que dedicam alguns números de sua edição aos “gordinhos”, remédios e lojas especializadas em artigos e vestuários de tamanhos grandes. Porém, o que se nota é que a “moral da boa forma” permeia todos esses ambientes: além de dicas de elegância, mercadorias e serviços são oferecidos e vendidos tendo sempre em vista a perda de peso. (GOLBENBERG e RAMOS, 2002).

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Dessa maneira, a indústria da beleza, da moda e o desenvolvimento técnico-científico, aliados à promoção da saúde, da juventude e do embelezamento vêm formando, desde a metade do século XX, um grande mercado consumidor de cosméticos, vestuários, produtos para emagrecimento, cirurgias estéticas e academias de ginásticas12. Esses são alguns indicadores, entre tantos outros, que nos fazem levantar questões sobre o significado que o corpo assumiu em nossa sociedade.

Conforme ressalta Silva (2001), o presente culto ao corpo e à aparência, fundado em práticas narcisistas e aprofundado com a cultura consumista, contrasta com o crescimento da miséria econômica e social vivenciada por grande parte da humanidade, que convive diariamente com a falta de alimentos, água, moradia, ou seja, de condições básicas para a sobrevivência. No Brasil, segundo país em números de realização de cirurgias plásticas, no consumo de cosméticos e no mercado de luxo13, esta situação torna-se ainda mais paradoxal quando acompanhada de notícias e de indicadores de miserabilidade que atinge mais de 50 milhões de brasileiros. Entre os índices estão: mortalidade infantil, fome, ausência de assistência médica, de moradia, de saneamento básico e aumento de desemprego, de epidemias e doenças (que há muito tempo já foram erradicadas de alguns países), entre outras mazelas.Intercalado a isso, observa-se que da perspectiva do indivíduo registra-se, cada vez mais, o aumento de transtornos de depressão, ansiedade, angústia e frustração e também de distúrbios alimentares e de distorções da imagem corporal, tais como a anorexia, a bulimia que se tornaram comuns no atendimento psicológico e psiquiátrico

Para analisar a frenética busca pela perfeição corporal, por um ideal de beleza e juventude que tanto se mostram presentes na contemporaneidade, inúmeros estudos de casos, questionários aplicados e materiais empíricos poderiam ser selecionados e investigados, haja vista a grande quantidade de oferta das mais diferentes práticas corporais existentes na “cultura do consumo”, que abrangem desde revistas direcionadas à boa forma, guias de moda e etiqueta, academias de ginásticas, manuais de dietas, clínicas estéticas, clubes esportivos, spas, salões de beleza, livros de auto-ajuda, terapias corporais asiáticas, entre muitos outros.

O corpo parece ter se tornado uma valiosíssima imagem para ser exibida na sociedade do espetáculo; sociedade em que a nova superficialidade, a crise da historicidade e a produção de imagens e simulacros traduzem-se na a padronização, na virtualização e na comercialização do corpo como objeto rentável. Portanto, o corpo nosso de cada dia parece ainda estar circunscrito à ideologia da perfeição e ao imperativo da saúde e da beleza, reduzindo-se a espectador e a consumidor voraz dos produtos da cultura de massa.

No entanto, Jameson (1985) chama a atenção para o fato de que os produtos da cultura de massa não podem ser ideológicos sem ser também utópicos e transcendentes. A dimensão manipulatória do mercado capitalista e da cultura de massa, para ser eficaz, precisa oferecer em contrapartida um mínimo de autenticidade e de autonomia para a satisfação dos mais fundamentais desejos e fantasias presentes, ou seja, têm que conter um mínimo de utopia.

Vale lembrar que os cuidados visando à aquisição de um corpo ideal são prerrogativas de uma pequena parcela da população mundial; os benefícios do redescobrimento do corpo, das práticas e técnicas existentes para “aperfeiçoá-lo e embelezá-lo” também são, em termos materiais, dirigidos a poucos, embora simbolicamente e ideologicamente agregue um número bem maior de pessoas.

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Com efeito, o mercado (produção e consumo), a medicina (ciência e tecnologia), a moda (obsolescência e signo de status), o marketing (publicidade e propaganda) e a mídia (imagem e espetáculo) constituem, conjuntamente, cinco componentes fundamentais que devem ser levados em consideração na busca pela compressão da atual ditadura da beleza.

É partir da conjunção desses domínios, aliados à apreensão de uma totalidade em movimento (modo de produção), que se constata o destaque, cada vez mais amplo, direcionado ao corpo perfeito e à valorização de sua imagem corporal como resumo de tudo que restou do ser.

Sob o sistema capitalista, a mercadoria se torna a forma de mediação das relações sociais, sua lógica se alastra por todas as instâncias da vida, acrescentando atributos qualitativamente novos na sociedade e, igualmente, a modificando na sua essência.

Nesse aspecto, as formas alienadas e a reificação das relações sociais assinalam a mercantilização da vida; o corpo tornar-se uma mercadoria no interior do processo de colonização da existência.

As implicações trazidas pela alienação e pela reificação indicam que a falta de sentido que emana por todas as direções constitui um eixo importante no trabalho de compreensão da complexa realidade social contemporânea.