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Aula 4 – Família
Texto Indicado
PRÁTICAS RESTAURATIVAS: O DISPOSITIVO EM AÇÃO
Celia Passos1
Os Círculos, que são momentos de encontro, atualmente vêm sendo
recuperados, recriados e legitimados como tecnologia social traduzida para a
atualidade. Essa prática, inspirada em tradições ancestrais de povos indígenas,
não é tratada ou cultuada aqui como uma panaceia para todos os males e nem
é percebida sob uma visão ou um romantismo de uma época remota. É, ao
contrário, percebida como um dispositivo, uma fonte de inspiração para um
exemplo de ação efetiva como é o caso dos povos indígenas usuários dessa
metodologia que, “não desejando a dominação branca ou mesmo a sua piedade”
(GLOWCZEWSKI, 2010, p.1), buscaram criar uma forma de enfrentar a violência
policial e estrutural a que estiveram expostos ao longo dos anos desde a
colonização, passando a exigir um novo olhar diferenciado por parte do grupo
hegemônico (colonizadores na América do Norte e, no caso da Austrália e Nova
Zelândia, por parte dos ocidentais). Segundo Barbara Glowczewski (2010), os
povos das nações indígenas que pareciam “fadados à extinção” e vinham sendo
identificados como “museu vivo de uma cultura perdida” conseguem mudar a
trajetória, afirmando-se “como sujeitos de sua própria história” em uma luta não
concluída pelo reconhecimento de sua cultura e de seus direitos (p.1).
A inserção dos Processos Circulares encontra em consonância com o
pensamento pós-abissal de Boaventura de Souza Santos. É uma proposta de
diálogo intercultural, tendo como “premissa a ideia da diversidade
epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade
de formas de conhecimento além do conhecimento científico” (SANTOS, 2007,
1 Este texto é parte dos dois primeiros capítulos da Tese de Doutorado da autora junto ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social – PPGPS – UERJ. Tese defendida em 26 de fevereiro de 2015.
p.25) e do reconhecimento de que o pluralismo jurídico tem, em regra, presença
em quase todas as sociedades, ainda que com especificidades de distintos
níveis (ARAÚJO, 2008).
A inspiração e a recriação de tradições centenárias de povos indígenas
e das práticas oriundas dos “traços de singularidades ancestrais” decorrem da
aposta na “articulação com um processo criador” e emancipatório (ROLNIK,
2011, p.86) para a proposta de novos aportes aos processos dialógicos de
grupos familiares e tal proposta, por sua vez, decorre da percepção da
necessidade de novos recursos para abordar tais questões.
Essa é, entretanto, uma proposta que vem somando vários obstáculos,
limitações e inviabilizações pela desqualificação ou invisibilização, cujas raízes
parecem assentadas na monocultura do saber que, segundo Boaventura de
Souza Santos, é uma poderosa forma de produzir a “não-existência”, consistindo
“na transformação da ciência moderna e da alta cultura em critérios únicos de
verdade e de qualidade estética, respectivamente” e, nas circunstâncias desse
estudo, do próprio judiciário enquanto única fonte de acesso ao direito e à
justiça2. Significa dizer que na qualidade de “cânones exclusivos da produção de
conhecimento”, o que a verdade (científica) e a qualidade estética ignoram não
existe sob nenhuma forma de ser relevante (SANTOS, 2002, p: 247).
A metáfora do palimpsesto expressa o novo e o antigo, o ancestral tornado
híbrido. Trata-se de um pergaminho sobre o qual se escreve o novo sem que as
marcas da escrita anterior tenham desaparecido. O palimpsesto aqui expressa
um olhar do Sul por outros olhos e a apropriação dos conhecimentos do Sul
como matriz de novas composições.
A grande maioria dos autores3 que de alguma forma atua na prática da
facilitação de Círculos ou com pesquisas acerca dos Processos Circulares faz
referência a “estar em círculo” como um hábito ancestral de conversar ao redor
do fogo e consideram que tal hábito foi deslocado, posteriormente, para um estar
e dialogar ao redor da mesa. Para eles o hábito dos círculos se estendeu desde
os mais longínquos tempos até os dias de hoje. Todos são categóricos em
2 Afirmativa decorrente das fortes resistências ao uso das práticas que venham a oportunizar, sempre que desejado, um diálogo entre autor de ato violento ou danoso e o receptor desse ato. 3 Patrícia Thalhuber, Susan Thompson, Janiffer Ball, Wayne Caldwel, Kay Pranis, Carolyn Boyes-Watson, Barry Stuart e outros.
afirmar que estamos aprendendo a nos reunir em círculos para tentar resolver
problemas, prestar apoio e interagir uns com os outros.
Os Processos Circulares datam do final dos anos 70, início da década
de 80 e decorrem do ressurgimento da soberania das tribos nas reservas norte-
americanas, quando vários modelos de círculo se desenvolveram. Isso se deu
porque o processo de pacificação Navajo4 irradiou-se e antecedeu a Justiça
Restaurativa, mas ao mesmo tempo, a teoria da Justiça Restaurativa, por sua
vez, havia influenciado a pensar sobre a justiça no enfoque Navajo. (MAC COLD,
2008, p.29)
Entretanto de que no que se refere ao abuso sexual, tem-se que no ano
de 1986 os Hollow Water First Nations (Ojibwa5) em Manitoba, iniciaram a prática
de Círculos de Cura buscando responder ao incesto e ao abuso sexual. Os
círculos objetivavam sanar as relações esgarçadas, além de buscar abordar
questões inerentes aos arranjos sociais que fomentavam a violência. Essa nação
aborígene, como tantas outras, havia sucumbido a padrões de violência cultural
e de alcoolismo profundos a ponto de “perder a cultura ancestral inteiramente”
(McCOLD, 2008, p. 29). O Círculo, como denominaram, é um modelo criado por
líderes locais, “principalmente mulheres Ojibwa” e “segundo estudo do Native
Counseling Services of Alberta (2001)” essa abordagem vem sendo percebida
como a de melhor resposta em relação “a custo-benefício em matéria de abuso
sexual”. (2008, p.29). Eles se tornaram um “ícone para os aborígenes” por terem
sido pioneiros em desenvolver e iniciar um processo próprio para a cura dos
hábitos de alcoolismo, de uso de drogas e abusos sexuais intrafamiliares e nas
relações próximas, na comunidade.
4 No início do século XIX, os Navajos viveram no que é hoje Novo México, em uma área que estava sob o domínio colonial espanhol. Estavam concentrados na parte superior do Rio Grand Valley. Quando os Estados Unidos venceram a guerra contra o México (em 1848), os Navajos não foram afetados, porém, quando o Exército americano decidiu tomar posse das terras (ao final da Guerra Civil Americana), as tropas americanas, lideradas pelo coronel Kit Carson devastaram a pátria Navajo. Eles foram obrigados a marchar cerca de 450 milhas para um campo de concentração chamado Bosque Redondo – no rio Pecos. Muitos deles morreram na caminhada durante um rigoroso inverno e por doenças. Após quatro anos diante da conclusão de que a iniciativa havia sido equivocada, houve o processo de reintegração e pacificação, com a instituição da Nação Navajo autorizada a retornar e reconstruírem suas vidas, suas culturas e, posteriormente suas próprias normas. 5 Ojibwa é um nome europeu atribuído ao povo das nações indígenas que foi, ao longo dos séculos, se tornando de uso comum. Eles atribuíam a si o nome Anishnabeg (pessoas boas) e Anishnabe quando no singular. (https://www.publicsafety.gc.ca/cnt/rsrcs/pblctns/fr-crcls-hllw-wtr/index-eng.aspx#worldview)
Na visão dos Ojibwa foi o contato com a colonização e com uma
sociedade cujos hábitos por tão diferentes que chegavam a ser desconcertantes,
“se não totalmente confusos” causou uma alteração no equilíbrio da sua visão
de mundo. Por essa razão a necessidade dos círculos de cura, do alcance do
equilíbrio – ainda que o equilíbrio não seja, aqui, nosso foco ou preocupação.
Para esses povos nativos nada sucede de maneira independente e
isolada. Todos as “pessoas são conectadas umas às outras, no futuro e no
passado” (The four Circles of Hollow Water, 1997, p.iii, tradução minha6) ,
sempre foi e será assim. Eles entendem que para compreender o que se passa
na nação Hollow Water as pessoas devem compreender as diferentes
dimensões do ser: o físico, mental, espiritual e emocional, bem como a cultura e
o contexto desta. A cosmovisão desses povos indígenas é um ponto de profunda
divergência com os ocidentais. Na visão deles, tudo demonstra a fragilidade
humana e ausência de supremacia em relação aos demais seres viventes, pois
enquanto o urso hiberna, o homem tem de enfrentar o frio e caçar para
sobreviver, não tem mobilidade, marchando no frio enquanto os gansos
hibernam (op.cit.5). Nesse sentido, na percepção deles, o homem é apenas mais
uma espécie em um mundo povoado por tantos outros seres (persons) e tanto
os seres humanos quanto os animais (human-persons e animal-persons),
experimentam a vida não somente entre si, mas também entre outros seres
viventes e também os Guardiões ou Espíritos e creem que o relacionamento com
o mundo espiritual e com os espíritos é essencial. O valor central desses nativos
é o p´madazwin que significa vida no sentido pleno: saúde, longevidade, bem
estar para si e para a família. Para eles o objetivo de vida é a boa vida, que para
ser alcançada pressupõe o p´madazwin. E o alcance dessa plenitude decorre,
segundo eles, do bom comportamento, e as consequências de um mau
comportamento são a doença ou a morte.
Para eles, o sexo é “reconhecido e integrado ao desenvolvimento
saudável de suas crianças”, entretanto, certos atos (como o incesto e o uso da
6 Trata-se de um Compendium com citações de vários autores, havendo trechos sem autoria definida. Todas as vezes em que houver necessidade de menção à origem da citação e não houver indicação de autoria, será utilizado o nome do documento ou op.cit. para evitar repetição do nome do documento. Nos trechos em que há autoria, faremos a referência.
força) são consistentemente vistos como inaceitáveis e os que insistiam em
praticá-los, deparavam-se com sansões céleres e duras. (HERMAN, 1992, P.7)
As concepções correntes dos Ojibwa em relação à sexualidade não ficam
adstritas à percepção das pessoas sobre seus corpos ou seus órgãos genitais,
mas também quem elegem e de qual forma decidem compartilhar seus desejos
e suas sensações sexuais.
A frase "como uma pessoa se sente sobre o seu corpo” nos oferece
pistas para a natureza difusa da sexualidade humana. Como somos seres
físicos, também nós somos seres sexuais; nossa sexualidade está na nossa
fisicalidade e é expressa através do meio físico do corpo. Na expressão sexual
a pessoa expande sua intimidade (...) sensações são reveladas (...) Se a
expressão sexual ocorre em um contexto saudável e positivo a experiência é
extremamente gratificante. Bons sentimentos sobre o corpo são reforçados (...)
Essa intimidade e troca de sentimentos com um parceiro pode melhorar muito a
autoestima. (...) Por outro lado, a expressão sexual sem o consentimento pleno
e consciência, por meio da força ou o incesto causam danos autoestima.
Sentimentos de confusão, ansiedade, culpa, isolamento e dependência que
podem ter algum grau cultural de normalidade, especialmente para os
adolescentes, são intensificados para as vítimas e vitimizadores. (op.cit. 21)
A experiência sexual é considerada por esses povos saudável quando
plenamente consentida e consciente. Quando ao contrário, se decorrente de
força ou incesto, entendem que é prejudicial e que causa danos à autoestima. O
incesto não foi comprovado como uma prática usual e os mais velhos são os
responsáveis em instruir os mais jovens e o fazem indiretamente, por meio das
fábulas e lendas tradicionais e essa forma não é tida por casual, aleatória ou
descuidada.
As práticas tidas por não saudáveis são as decorrentes de coação e
dentre estas estão o estupro e o incesto e, como a maioria dos delitos familiares
(sexuais) envolve a figura do padrasto, isso acaba fazendo com que haja uma
referência cultural a essa figura e episódios. Nos casos de estupro ou incesto,
como há suporte no âmbito comunitário, não é raro que a situação seja
desvelada. Nessas circunstâncias se estabelece o processo circular e são feitos
círculos para a vítima (apoio) e para o ofensor (cura).
Diz-se que os Círculos são como uma árvore cujas raízes são antigas e
seus ramos modernos, uma árvore cujas raízes encontram-se assentadas em
tradições antigas. As culturas antigas usaram “processos semelhantes aos
círculos para participar do trabalho comunitário” e acredita-se que “o Círculo é
uma forma usual de discutir questões importantes para a comunidade” (BALL,
CALDWELL PRANIS, 2010, p.32). Aparentemente essa forma foi utilizada por
muitos ao redor do mundo todo. O Processo Circular e os Círculos que elegemos
para dialogar são aqueles que “trata[m] mais diretamente de vários povos da
América do Norte”, dos nativos, as “Primeiras Nações” que ainda seguem
utilizando os Círculos que “integram os ensinamentos básicos do Círculo no seu
modo de viver” (p.32).
John Forester, ao prefaciar Doing Democracy With Circles (Fazendo
Democracia por meio dos Círculos), afirma que os Processos Circulares se
constituem de ideias tradicionais apresentadas ou articuladas de maneiras
inovadoras, que permitem experimentar novas abordagens e técnicas, aparente
e enganosamente simples. Afirma ainda que os Círculos não são percebidos
como uma panaceia técnica e nem como portadores de soluções rápidas ou
dotadas de alguma magia que elimine os problemas, mas sim como uma
tecnologia social, um processo ritual que fornece mais um caminho do que uma
técnica e que estimula a escuta e também os modos de perceber, (BALL,
CALDWELL e PRANIS. 2010) de afetar, de promover a polifonia e de deixar-se
ser afetado. Busca o que e o modo de se fazer junto e não para ou por alguém.
Defendem os autores do campo de estudos de círculos que as
cerimônias de abertura e de encerramento são utilizadas nos Círculos
para marcar esse espaço como um lugar sagrado no qual os
participantes estejam presentes com eles mesmos e uns com os
outros de uma maneira diferente de outros encontros ou grupos
comuns. A marcação clara do início e fim de um círculo é muito
importante porque o círculo convida os participantes a deixar cair
as máscaras e proteções comuns que eles possam usar para
criar distância de seu eu verdadeiro (core self) e o eu verdadeiro
dos outros. (PRANIS, 2011, p.16)7
Para estes a abertura tem a função de corte entre o estar no cotidiano e
o momento de partilha no Círculo e induz a um comportamento diferente dentro
do Círculo, ou seja, induz a uma propensão ao maior esforço para o
estabelecimento do diálogo, maior disponibilidade para escutar e se fazer
escutado. As aberturas e os fechamentos são importantes também para ajudar
aos
participantes a se centrarem, a colocarem-se como
completamente presentes no espaço, a reconhecer a
interconectividade, a liberar distrações que não estejam
relacionadas, e a estarem atentos aos valores do eu verdadeiro.
O fechamento reconhece os esforços do círculo. Afirma a
interconectividade dos presentes. Gera o sentido de esperança
para o futuro e prepara os participantes para retornarem ao
espaço comum de suas vidas. As aberturas e os fechamentos
são projetados para se adequar à natureza do grupo em
particular (BOYES-WATSON e PRANIS, 2011, p. 38).
As cerimônias (rituais) de abertura e de encerramento são consideradas,
portanto, como marcos de momentos em que cada participante se sente
convidado, autorizado ou até mesmo seguro para “baixar a guarda”, retirar
máscaras e filtros utilizados para se colocar no mundo e se relacionar com os
demais e a voltar a atenção para o espaço cotidiano após o Círculo.
Cerimônia, segundo Joseph Bruchac, aborígene de uma das tribos
canadenses, é definida no dicionário
como um ato ou uma série de atos formais realizados de modo
solene conforme estabelecido nos procedimentos rituais ou
tribais. Embora isso seja certamente verdadeiro, pode-se dizer
também que (...) cerimônia é a própria vida. Tom Porter, um
ancião mohawk, disse-me que uma das razões para termos
tantas cerimônias é que os seres humanos esquecem
facilmente. (...) A cerimônia nos lembra, por intermédio da
música, da história, da dança e da indumentária e por meio de
comportamentos e sacrifícios rituais, que estamos em uníssono
com tudo o que nos cerca. Estar em equilíbrio conosco mesmos
e com o mundo ao redor é a forma correta e natural de ser. Por
intermédio da cerimônia, podemos tanto reconhecer quanto
restabelecer esse equilíbrio. (BRUCHAC, 2009, p.38)
Essas concepções e práticas, essas formas de perceber e de pensar, no
dizer de Bruchac (2009), são tão distanciadas do mundo ocidental que causam
estranheza e pode-se complementar afirmando que aguçam um senso crítico da
classe ou grupo hegemônico. A eventual exaltação ao Círculo como algo puro e
mágico nos causa igualmente estranheza. O tema será melhor comentado no
terceiro capítulo, quando nosso olhar curioso levará às torções, análises,
inclusive de implicação e a uma leitura crítica.
A instalação que compõe o Centro do Círculo, também referido como
peça central, é criada para proporcionar um ponto comum para todos focarem,
o qual funciona como um apoio para cada participante ao fornecer
um ponto focal visual para o encontro no Círculo. A
peça central pode simbolizar muitas coisas, mas o
equilíbrio e a igualdade, em particular, são valores
importantes a serem reforçados no processo
circular. Eles nos lembram que, no círculo, viemos
juntos, como iguais e nos encontramos no meio, às
vezes partindo de polos opostos (THALHUBER et
THOMPSON, 2007, p. 42).
Em regra não são usadas mesas entre os participantes, ficando o Centro
do Círculo (peça central) sobre o chão, ao centro do espaço que se forma entre
as cadeiras dispostas em Círculo e por essa razão diz-se que no Círculo todos
estão equidistantes e frente a frente. O Centro do Círculo é constituído,
tipicamente de um
tecido ou uma esteira, nele pode ser incluído itens que representem os valores
do “eu” verdadeiro, os princípios fundamentais do processo, ou a visão
compartilhada do grupo. (...) frequentemente enfatizam a inclusão ao
incorporarem símbolos de membros individuais do círculo, bem como culturas
que estejam representadas no círculo (...) deve representar uma sensação de
calor humano, hospitalidade e inclusão (...) “enfatizar os valores que dão reforço
ao processo”. (BOYES-WATSON e PRANIS, 2011, p. 39)
Não raras vezes pode ficar a cargo do próprio grupo a responsabilidade
de trazer os elementos para o Centro do Círculo, sendo o grupo também autor
do modo como se organizam e se articulam seja entre si os elementos humanos
e não-humanos que se articulam no Círculo – já introduzindo aspectos da Teoria
Ator-rede, visto que este termo não é da literatura sobre círculos.
São sete os pressupostos centrais dos Processos Circulares, segundo
Carolyn Boyes-Watson e Kay Pranis. Primeiro (2011): “Cada um tem um eu que
é bom, sábio, poderoso e sempre presente”. Esse pressuposto diz respeito à
existência de um eu verdadeiro e sábio que habitaria cada ser humano, cuja
natureza seria sábia, gentil, justa boa e poderosa. As ações não se confundem
com a pessoa. Há uma diferença entre ser e fazer (ser abusador, por exemplo,
ou praticar um abuso, trazendo-se para o tema do estudo), por isso atos e
pessoas são coisas distintas. O segundo: o mundo está profundamente
interconectado. Sendo o humano parte do universo, por princípio não haveria
como negar que tudo no mundo está profundamente interconectado, humanos e
não humanos, visíveis ou não. Em decorrência dessa crença, é certo que o
impacto das ações de cada um, de alguma forma afeta o todo. Na linguagem dos
nativos canadenses e americanos, todos estamos “relacionados” e, na dos
povos nativos africanos, a expressão que sintetiza essa ideia é “ubuntu – Eu sou
porque você é”. “Portanto, não há como desconsiderar qualquer ser, mesmo os
infratores, agressores e autores de atos danosos a terceiros. Como parte desse
universo interconectado, não há como lançá-los fora” (2011, p. 23). O terceiro
parte da crença de que todos os seres humanos desejam profundamente estar
em bons relacionamentos. Tem relação direta com a interconexão, tendo o
respeito como base e necessidade de todos, assim como o amor. O quarto é o
de que os seres humanos têm um dom que é único e valioso e isso faz com que
cada um seja importante pelo dom que tem. Para os ensinamentos dos povos
indígenas, cada criança nasce com quatro dons advindos da Mãe Terra
(Pachamama), sendo da responsabilidade dos adultos reconhecer esses dons,
únicos, e auxiliar os jovens a cultivá-los. A criança indígena deve crescer usar
os seus quatro dons para auxiliar os outros. A diversidade é percebida com uma
força, sendo a interdependência essencial para a sobrevivência. Pelo quinto
pressuposto, as mudanças não dependem de nenhum talento adicional, tudo o
que é necessário para câmbios positivos já está disponível é uma questão de
pensar pelo positivo e não pelo déficit. A criatividade humana somada ao
comprometimento humano são valiosos tesouros e fonte de esperança. O sexto
pressuposto é o de que somos holísticos, ou seja, as mentes, os corpos, as
emoções e os espíritos estão presentes em tudo o que fazemos, sendo
igualmente importantes. E, por fim, o sétimo traz a ideia de que precisamos de
práticas que construam hábitos de vida alinhados com o nosso verdadeiro eu e
com os valores que prezamos. (BOYES-WATSON e PRANIS, 2011, p.22 a 28).
Para essas autoras, uma vez que “os pressupostos centrais” encontram
“ressonância” nos participantes, estes reconhecerão o círculo como uma
“ferramenta extremamente útil para sua prática educacional”.
O círculo tem uma sistemática, uma forma padrão de funcionamento que
descreveremos a seguir. Com este relato pretende-se deixar claros seus
processos, que não necessariamente serão utilizados no trabalho de campo
analisado nesta tese. No entanto, foi a experiência com a prática desse modo
que suscitou a necessidade de mudanças que vieram e virão a seguir.
Em regra os Processos Circulares envolvem três momentos distintos:
uma etapa preparatória, um encontro (o Círculo propriamente dito) e, quando há
a necessidade de acompanhamento da execução do Acordo (quando se logra
um acordo e dele resultam obrigações a serem cumpridas) há o que se vem
denominando como Pós-Círculo.
Na etapa preparatória é verificada a pertinência da instalação de um
Círculo para estabelecer o diálogo sobre uma determinada situação. Para tanto
há uma avaliação prévia quanto à adequação da metodologia que passa pela
análise do histórico da violência e das questões relacionadas à segurança de
todos; averiguação da existência de tempo suficiente para a instalação e
desenvolvimento do processo, em especial o momento do Círculo, já que o
tempo não é, em regra, rígida e previamente fixado, mas tão somente estimado;
constatação do desejo de participar (ou não) tanto por parte do autor do ato
ofensivo quanto por parte da vítima, assim como das redes direta ou
indiretamente envolvidas; existência de clareza quanto a motivação do Círculo e
seus propósitos; disponibilidade de facilitadores capacitados para manter o
Círculo (incluindo o conforto quanto ao tema ensejador do Círculo) e, o que é
mais sensível, avaliação quanto às condições necessárias para garantir a
segurança física e emocional dos envolvidos e o modo de impedir a revitimização
da vítima e agressões a quaisquer participantes, inclusive ao ofensor, caso todos
concordem em participar.
Avaliadas as circunstâncias, as motivações, finalidades e objetivos a serem
alcançados e definida a pertinência da instauração do Círculo é pensada a
preparação do Círculo enquanto processo: logística (a data, local, o que será
colocado no centro do círculo, o que será utilizado como bastão de fala e,
também, quem será o facilitador ou a equipe de facilitação).
Cerimônias, escolha do facilitador, em que se avalia a disponibilidade, a
capacidade, a possibilidade de trabalhar o tema, em seguida avalia-se e define-
se os participantes, considerando a motivação e a finalidade da participação e
as contribuições possíveis de quem participa (quem, por que e para que
participa) e é feito o planejamento do encontro: as cerimônias de abertura e de
encerramento, os recursos para cada etapa - perguntas úteis para cada etapa
do Círculo, perguntas necessárias para a abordagem do tema principal e a
estimativa das paradas (intervalos).
Após a etapa preparatória na qual se estruturam equipe, espaço e
participantes e tudo o mais necessário, ocorre a segunda etapa que é a do
Círculo, momento do encontro de todos aqueles que se colocaram disponíveis
para participar, seja porque foram identificados como pessoa que conhece o
assunto a ser tratado, seja alguém que mantém boas relações com todos os
participantes diretamente afetados e/ou interessados nas questões a serem
tratadas no Círculo. A definição acerca da participação no Círculo é tomada de
forma conjunta, considerando o conforto de todos, tanto a pessoa contra quem
o ato foi praticado, pessoa que sofreu diretamente o dano, quanto o autor do ato
danoso, que são as pessoas mais diretamente envolvidas.
O encontro é inspirado na Roda de Medicina Xamã em que há igual
tratamento ao físico, ao mental, ao emocional e ao espiritual. No Círculo, sob
essa inspiração, o tempo dividido em quatro partes iguais para tratar questões
diferentes: no primeiro momento ocorre o que autores do campo denominam
como reunião, quando se pretende estabelecer o conhecimento ou
reconhecimento mútuo; no segundo o foco é voltado para a construção de
entendimento e geração de confiança; no terceiro os esforços convergem para
a abordagem do tema que ensejou o Círculo e no quarto se dá o
desenvolvimento de planos. Em regra, a essa altura já se consolidou o que os
nativos denominam como senso de unidade. Cabe a nós descobrir quais são os
sentidos que queremos dar e a que, temáticas que serão discutidas nos terceiro
e quarto capítulos.
Há uma estrutura nos Processos Circulares que pressupõe a existência
de elementos essenciais e estruturais do Círculo sem os quais, segundo Kay
Pranis, não se considera ou não se pode falar em Círculo. Além do formato
geométrico de organização das pessoas, os Círculos utilizam cinco elementos
considerados estruturais, que lhes são inerentes e o integram e cujas bases
estão nos ensinamentos e valores ancestrais, ressurgidos na província de
Yukon, no Canadá: as cerimônias de abertura e encerramento, os norteadores
(orientações ou regras), o bastão de fala, o facilitador e a decisão por consenso.
As cerimônias de abertura e fechamento (rituais) são dedicadas à criação de um
espaço físico e temporal qualitativamente diferenciado. A cerimônia de abertura
tem a finalidade de preparar as pessoas para ocupar um outro lugar,
influenciando na qualidade da presença, e a cerimônia de encerramento para o
retorno às atividades cotidianas. Os norteadores de conduta servem para
estabelecer regras claras e compartilhadas de como atuar e se comportar no
Círculo. O bastão de fala, também é referido como talking piece ou objeto da
palavra, é uma peça que passa de pessoa para pessoa ao longo do círculo
sempre adotando um sentido unidirecional, é utilizado para agilizar a circulação
da fala através de rodadas ou passadas do bastão de fala, indica de quem é a
vez de falar e possibilita ouvir sem interrupção, passar a vez ou ofertar silencio.
Qualquer coisa pode ser utilizada para essa finalidade, desde um pedaço de
madeira, uma pedra, um cristal, um brinquedo ou algo manejável ao qual possa
ser atribuído um sentido ou que possa servir como um ponto focal para reflexão
quando conectado ao tema. O facilitador (keeper - guardião) é uma pessoa que
se capacita e desenvolve habilidades para conduzir o Círculo, exercendo a
função de “guardião do espaço” compartilhando com os demais a
responsabilidade pelo processo e quanto aos seus resultados. A decisão por
consenso significa que nos Círculos as deliberações não são alcançadas pelo
critério da maioria, mas por uma tentativa de atender a todos, nas suas principais
necessidades e o consenso ocorrerá quando todos puderem se comprometer
com a decisão e seu cumprimento. (THALHUBER; THOMPSON, 2007)8
As cerimônias de abertura e de encerramento do processo, o centro do
círculo, o bastão de fala (objeto de fala) em sentido unidirecional, que é utilizado
para agilizar a circulação da fala através de rodadas ou passadas do bastão de
fala, o estabelecimento de valores norteadores para o grupo e a serem
compartilhados pelo grupo e, até certo ponto também as perguntas que
8 THALHUBER, Patrícia B.V.M; THOMPSON, Susan. Building a Home for the Heart – Using value in Value-Centered Circles. Living Justice Press, 2007.
funcionam como disparadoras da conversa e das reflexões pelo grupo são
elementos que constituem essas práticas.
O bastão de fala (talking piece), também referido como objeto da palavra
ou ainda peça de fala, é um dispositivo utilizado para fazer circular a fala entre
os participantes do Círculo, o qual de certo modo regula – ou tenta regular, na
medida em que se negocia seu uso – o fluxo de diálogo. O bastão de fala
é passado de pessoa para pessoa em volta do perímetro do
círculo. Somente a pessoa segurando o objeto da palavra pode
falar (...) sem interrupção e permite aos ouvintes se focarem em
escutar, sem se distrair pensando numa resposta ao que está
falando. (...) permite a expressão completa de emoções, reflexão
atenciosa, e um ritmo sem pressa (...) é um equalizador
poderoso. Permite que cada participante tenha igual
oportunidade de falar e carrega o pressuposto de que cada
participante tem alguma coisa importante para oferecer ao
grupo. À medida que passa fisicamente de mão em mão (...) tece
um fio de conexão entre os membros do círculo (...) reduz o
controle do facilitador e, consequentemente, compartilha o
controle do processo com todos os participantes. (...) Quanto
mais significado o objeto da palavra tiver (de forma consistente
com os valores do círculo), mais poderoso será para gerar
respeito pelo processo e alinhamento com seu eu verdadeiro
(BOYES-WATSON e PRANIS, 2011, p. 39).
Os autores do campo afirmam, ainda, que a forma de organizar o
diálogo, fazer circular as falas privilegia a polifonia, já que “todos são
considerados importantes, dotados de dons e com contribuições a oferecer”, o
que depende em muito do facilitador e da forma como o Círculo é instaurado.
O facilitador ou guardião (keeper) é percebido pelos autores do campo
(BOYES-WATSON e PRANIS, 2011) como a pessoa que cuida do Círculo e que
é parte do grupo tanto quanto os demais, porém, facilita as rodadas e articula
perguntas norteadoras do Processo Circular. É responsável por ações que
antecedem o momento do encontro (Círculo), tal como a seleção do bastão de
fala, como também garantir o “conforto e acolhimento dos participantes” e é ele
que provê “os materiais a serem utilizados no Círculo”.
É importante marcar que isso pode não ser tão simples assim e parece
que em parte dependerá do quão implicado o facilitador esteja e o quão
complexo seja o tema que motivou o Círculo, sem desconsiderar o grau de
conflitualidade entre os presentes.
O facilitador pode atuar solo ou em dupla
Frequentemente os Círculos têm dois guardiões que trabalham em conjunto.
Durante o Círculo, guardiões servem para facilitar o fluxo de diálogo. Eles não
controlam nem dirigir o diálogo: eles "mantê-lo". (...) geralmente ajustam os
pensamentos durante a rodada de abertura com um conjunto de perguntas que
podem orientar a partilha, embora sempre incentivem os participantes a não se
sentirem vinculados pelo que eles sugerem. Muitas vezes, problemas surgem,
coisas que aconteceram na vida dos participantes ou emoções que vêm à tona
- que os obrigam a alterar os seus planos, fazendo alterações para as rodadas
seguintes. (THALHUBER et THOMPSON, 2007, p. 42)
O Círculo entendido como um espaço intencional é formatado para
permitir que os participantes possam se apresentar consoante o que os autores
entendem como o eu verdadeiro9, adotando atitudes fundadas nos valores que
prezam e que os influenciam em seus modos de ser e de estar no grupo,
oferecendo o melhor de si, bem como para que sejam estimulados a dar o melhor
de si durante o período em que estão no Círculo, percebendo o que os une
enquanto grupo (interconectividade), mesmo quando as diferenças existentes
sejam muito marcantes. Há também o estímulo ao reconhecimento da existência
e o “acesso” aos “dons” de cada um, evocando a sabedoria individual e a
coletiva. É um espaço que estimula cada um a se engajar nos diferentes
“aspectos da experiência humana – mental, física, emocional e espiritual”, na
construção de significados e, ainda, a “praticar comportamentos baseados nos
valores mesmo quando isso possa parecer arriscado (BOYES-WATSON e
PRANIS, 2011, p. 35).
Na perspectiva desses autores, este procedimento é estruturado de
modo a criar um espaço seguro e no qual haja liberdade apoiada na
confidencialidade negociada entre todos, de modo que todos possam se sentir
encorajados a falar o que entendem por (sua) verdade, baixar a guarda ou, em
outras palavras, deixar cair as máscaras, as defesas e estar presente no que
consideram a sua mais plena humanidade e encorajados a revelar os desejos
9 Adotamos a descrição dos Processos Circulares, mantendo a coerência narrativa a partir dos povos indígenas e das apropriações feitas pelos autores do campo. No quarto capítulo retomaremos esse tema a partir dos autores cujas perspectivas teóricas sustentam esse trabalho: o pensamento de Boaventura de Souza Santos, a Teoria Ator-rede, a análise institucional e, em alguns recortes, Baruch Spinoza.
mais profundos, admitir erros e medos, assim como agir de acordo com os
valores ofertados individualmente ao círculos e assumidos como valores do
grupo (coletivo constituído), já que o espaço é organizado de modo a que todos
sejam respeitados e que todos se sintam em iguais condições para (ou igual
oportunidade de) narrar suas histórias e se sentir importante. O Círculo deve
propiciar um espaço apto para que “os aspectos emocionais/espirituais da
experiência humana” sejam acolhidos. (PRANIS, 2010, p. 25)
A forma como os autores do campo descrevem o funcionamento de um
Círculo com o objetivo de gerar soluções para questões conflituosas, um Círculo
denominado Círculo de Construção de Paz, faz crer que ao escolher o Círculo
como uma via de encontrar formas de solucionar conflitos, fora do âmbito do
judiciário, estimula-se maior participação e pode motivar um esforço maior em
prol de objetivos comuns daquele coletivo instituído, o que parece ampliar a
vontade de se colocar mais – de maior participação, o que, contudo, não se dá
a priori e de forma determinante.
Boyes-Watson e Pranis (2011) defendem que quanto mais as pessoas
praticam os comportamentos adotados no círculo, mais elas fortalecem hábitos
e, por decorrência, os comportamentos do Círculo se fazem presentes em outras
circunstâncias de suas vidas. Neste aspecto, há que se perguntar se é realmente
uma prática educacional ou se é algo que vai se tornando um modo de ser e de
agir; a partir dos afetos que produzem, criam um repertório, um plano de
consistência e, em decorrência, modos de fazer, de ser e de agir. Essas
reflexões e as que se seguem, acerca das perguntas, serão retomadas no quarto
capítulo com o suporte de alguns autores e pensadas e torcidas sob as
perspectivas da Teoria Ator-rede, entremeadas também pela Análise
Institucional.
Os facilitadores preparam perguntas a serem colocadas para os
participantes do Círculo. Os círculos usam perguntas ou temas norteadores no
início de muitas rodadas para estimular a conversa sobre o principal interesse
do círculo. Cada membro do círculo tem uma oportunidade de responder à
pergunta ou tema norteador de cada rodada. O preparo cuidadoso das perguntas
é importante para facilitar a discussão que vai além das respostas superficiais
(BOYES-WAHTSON e PRANIS, 2011, p.40).
Também são parte essencial da estrutura do Círculo as diretrizes ou
norteadores construídos pelo grupo em conjunto. Os participantes em um círculo
têm o papel central na concepção de seu próprio espaço, criando as diretrizes
para sua discussão. As diretrizes articulam os acordos entre os participantes
sobre como eles se conduzirão no diálogo do círculo. O objetivo das diretrizes é
descrever os comportamentos que os participantes sentem que farão com que o
espaço seja um lugar seguro para que eles falem suas verdades. As diretrizes
não são limites rígidos, mas são lembretes de reforço das expectativas de
comportamento de todos dentro do círculo. Elas não são impostas aos
participantes, mas adotadas por consenso do círculo. (PRANIS, 2010, p.15)
Os Círculos são apropriados como uma das formas de efetuar a Justiça
Restaurativa, com a finalidade de restaurar relações, reparar danos e efetivar o
sentimento de justiça. Mas nem todos os Círculos são utilizados no âmbito da
Justiça Restaurativa, tema que será melhor aprofundado no segundo capítulo.
A literatura sobre círculos faz uma gradação entre os diferentes tipos de
círculos existentes, que adquirem diferentes nuances na forma de condução pelo
facilitador e os conteúdos tratados e, por decorrência em todo o fluxo de seu
desenvolvimento. Em uma ponta à esquerda ou à direita, eles estabelecem os
Círculos que envolvem situações de alta/maior conflitualidade e, portanto, visam
encontrar soluções para problemas complexos. Na outra extremidade, situam os
que não envolvem situações de conflitos e que envolvem uma relação de
amizade e cooperação entre os participantes. Nessa gradação há um momento
em que se pode distinguir (e dividir) os Círculos entre os que estão no âmbito da
Justiça Restaurativa e os que estão em dois grandes grupos fora deste. Em
âmbito da JR estão todos os Círculos, havendo aqueles que envolvem situações
de conflitos e, fora destes, todos os demais grupos dos outros que servem de
dispositivo para inúmeras outras situações. Em síntese: somente quando
envolvem situações de conflitos em regra decorrentes de danos pessoais ou
materiais e ofensas a serem esclarecidas e reparadas, independentemente do
nível de conflitualidade (maior ou menor), é que os autores situam os Processos
Circulares no âmbito da Justiça Restaurativa e afirmam que eles se constituem
em um dos meios ou formas metodológicas de alcançar os objetivos de restaurar
a relação rompida pela prática de um ato danoso (PRANIS, STUART e WEDGE
2003, ZEHR 2008, PRANIS 2010, RIESTENBERG 2012, et al). Embora a
intenção, neste momento, não seja a de problematizar essa prática social, é
interessante registrar e pontuar a recusa de uma “fórmula infalível” capaz de
gerar tais efeitos incondicionalmente. Esta apropriação, como ocorre em outros
dispositivos voltados para os trabalhos com grupos, nem sempre vai promover a
polifonia ou conseguir uma construção conjunta, e essa é uma questão que será
analisada nos dois últimos capítulos com maior aprofundamento.
Kay Pranis (2011) define o círculo de resolução de conflitos como “um
processo de diálogo que trabalha intencionalmente na criação de um espaço
seguro para discutir problemas muito difíceis ou dolorosos, a fim de melhorar os
relacionamentos e resolver diferenças” (p.11). Segundo ela, em regra o círculo
busca “encontrar soluções” adequadas a cada um dos participantes. O processo
funda-se na crença de que cada um dos participantes tem algo a oferecer e todos
têm “igual valor e dignidade”. No Círculo todos têm igual oportunidade de colocar
suas ideias e opiniões. O pressuposto é o de que “cada participante tem dons a
oferecer na busca para encontrar uma boa solução para o problema” (PRANIS,
2010, p. 11).
Além do Círculo de Resolução de Conflitos – com o objetivo de
compreender e pacificar as relações –, os autores nominam, no âmbito da
Justiça Restaurativa, outros tipos distintos de Círculos, tais como: Círculos de
Apoio ou suporte – voltados tanto para a vítima de ato danoso quanto para o
ofensor; Restaurativo – para ressarcir danos ou restaurar as relações; de
Reintegração – para o acolhimento de jovens após o cumprimento de medida
socioeducativa (internação) e para apoio a adultos quando do retorno ao seu
contexto social após o cumprimento de pena de encarceramento em sistema
prisional; de Sentença – para a definição da sanção pela comunidade e posterior
incorporação na sentença judicial (tipo de Círculo ainda não aplicado no Brasil).
Entre aqueles cuja instalação não é motivada por conflitos estão:
Círculos de Conversa (Diálogo) – para estreitar a convivência em grupo; de
Celebração – visando o compartilhamento de alegrias, conquistas e de ocasiões
especiais; de Entendimento – como o objetivo de gerar melhor (e uniforme)
compreensão de determinadas questões que afetam ou dizem respeito a um
grupo (empresa, família); de Cura – tanto para apoio à superação de traumas
(acidentes ou catástrofes) quanto para auxiliar na organização de redes
familiares e de pessoas próximas em situações de doenças; de Construção do
senso de Comunidade – com o fito de construir maior interação, quando há
temas de interesse de uma coletividade; de Tomada de Decisão – quando da
necessidade de negociação coletiva para o alcance de decisões consensuadas,
afastando-se do processo decisório pautado na maioria, visto que, em regra, há
a necessidade do comprometimento e do apoio de todos aqueles que de alguma
forma são alcançados pelos efeitos ou pelas ações decorrentes ou inerentes à
decisão.
Para os autores centrais do campo (PRANIS, STUART e WEDGE 2003,
ZEHR 2008, PRANIS 2010, RIESTENBERG 2012, BOYES-WATSON, PRANIS
2010, et al), o Círculo é compreendido como um lugar (espaço/tempo
diferenciado) “forte ou suficiente para conter” raiva, frustração, dor, sofrimento,
tristeza, alegria, euforia, contentamento, verdades e paradoxos, conflitos e
divergências, visões de mundo diferentes e mesmo o silêncio. (PRANIS, 2010,
p.21)
Os autores do campo (BOYES-WATSON, PRANIS 2010, PRANIS 2010,
SCHIRCH, 2004 et all) nos dizem que o Círculo é um lugar de se contar histórias.
As narrativas pessoais são compreendidas como fontes de sabedoria e de ideias
para quem as conta e também para os outros. Nos Círculos parte-se da premissa
de que compartilhando as “histórias individuais nós abrimos espaço para outros
se conectarem conosco, encontrarem bases comuns, e nos conhecer mais” e
contar “nossas histórias é um processo de autorreflexão” (PRANIS, 2010, p. 56).
O Processo Circular também é definido como “um processo estruturado
para organizar a comunicação em grupo, a construção de relacionamentos,
tomada de decisões e resolução de conflitos de forma eficiente” (BOYES-
WATSON e PRANIS 2011, p.35). Para Boyes-Watson e Pranis, o Círculo é um
processo que “cria um espaço à parte de nossos modos de estarmos juntos”,
onde é nutrida a filosofia de “relacionamento e de interconectividade” que pode
se constituir em um norteador para “todas as circunstâncias” da vida, seja
“dentro” ou “fora” do Círculo.
Esse processo, segundo Kay
é pré-concebido para discutir como a conversa acontecerá antes
de discutir os assuntos difíceis. (...) o círculo trabalha os valores
e diretrizes antes de falar sobre as diferenças ou conflitos. (...)
Quando é possível, o círculo também trabalha a construção de
relacionamentos antes de discutir os assuntos difíceis. (BOYES-
WATSON e PRANIS 2011, p.35)
De certa forma o Processo Circular difere de outros sistemas não
adversariais de resolução de conflitos (ADRS – Alternative Disput Resolution
Systems)10 por ser concebido dentro de uma proposta de atuação participativa
em que o facilitador integra o grupo como parte ativa e não como alguém de
quem é esperada uma certa imparcialidade, conceito caro à mediação de
conflitos, que não se manifestam e nem opinam, em relação ao conflito e às
partes (mediandos) com os quais trabalha. Aqueles que vêm utilizando essa
forma dialógica e atuam como facilitadores dos Processos Circulares afirmam
que o exercício das atividades de facilitação não é baseado na autoridade sobre
o grupo. Os facilitadores buscam não ter uma forma diretiva de atuar. Afirmam,
ainda, que o Círculo (reunião, encontro) não é pautado na coerção. Neste
sentido, arriscamos apostar, sob a inspiração de Peter Pál Pelbart (2008), na
coesão que faz ruir sua identidade centrada e isolada, mas que mantém a
dessimetria, não se tratando de mais do mesmo, de uma totalidade que se
constitua em uma individualidade ampliada. (p. 36). Nele, segundo Kay Pranis,
Barry Stuart, e outros autores11, o facilitador do diálogo não estabelece controle
sobre as pessoas, sobre o processo e nem tão pouco sobre a decisão, caso haja
a necessidade de tomar alguma, ficando a cargo do grupo a construção coletiva
e a responsabilidade sobre os resultados alcançados. Nas dinâmicas grupais
neste formato, as perguntas são fundamentais, assim como para as articulações
de um coletivo na perspectiva da Teoria Ator-rede, ponte ou elo entre essa
prática social e a Teoria Ator-rede que será mais aprofundado no terceiro
capítulo.
Para Boyes-Watson e Pranis (2011) e a totalidade dos autores centrais
do campo, o formato geométrico circular permite um campo visual livre, sem
obstáculos, onde todos estejam equidistantes do Centro para que adotem uma
10 Os métodos não adversariais de resolução de conflitos englobam a negociação assistida, a mediação, a conciliação. Voltados para a área penal, são utilizadas em vários países (Américas, Europa, Nova Zelândia e Austrália) a Mediação Vítima-Ofensor e Conferências de Grupo Familiar, Círculos Restaurativos, estes últimos também organizados em formato circular, porem com procedimentos distintos. 11 Há muitos profissionais além dos citados: Carolyn Boys-Watson, Janiffer Ball, Wayne Caldwell, Patrícia Thalhuber, Susan Thompson, utilizando os Processos Circulares para diálogo e são coincidentes nessa percepção.
postura colaborativa, se comprometam uns com os outros frente a frente. Pranis
e Boyes-Watson (2011) defendem que essa disposição favorece o foco na
preocupação comum ao grupo, sem criar, a sensação de oposição, a existência
de lados. É uma forma geométrica utilizada também para enfatizar a
horizontalidade, a igualdade e a conectividade e, como resultado, segundo as
autoras, há, em regra, maior comprometimento do daquele coletivo e maior
transparência, vez que, para elas, a linguagem corporal fica acessível a todos.
(BOYES-WATSON e PRANIS, 2011, p. 38) No que se refere à igualdade, é de
se esclarecer desde logo que a essa igualdade a que as autoras se referem não
é outra que não a da oportunidade de fala sem interrupção ou em outras
palavras, a da oportunidade da circulação da fala e de informações, o que
somente ocorre se e quando o círculo é conduzido de modo a que se instaure a
polifonia. A conectividade será comentada no quarto capítulo, à luz da Teoria
Ator-rede.
As Conferências de Grupos Familiares têm origem nas tradições dos
povos Maoris da Nova Zelândia e tornaram-se o modelo de Justiça Juvenil do
país desde os finais da década de 80. Após convocar uma comissão para se
debruçar sobre (e estudar) o problema das condutas dos jovens na Nova
Zelândia, o governo estabeleceu que uma ampla gama de temas relacionados
com a que definiam como delinquência juvenil seria enfrentada pelas
denominadas Conferências de Grupo Familiar (Family Group Conference) ao
invés de ser tratado e decidido no âmbito do Tribunal.
Para os Maoris, povo nativo da Nova Zelândia, o conhecimento inicia-se
com o que eles denominam whakapapa, ou seja, a partir dos deuses, heróis,
ancestrais - no entre – o início de tudo e a geração atual. É comum que os Maoris
conheçam seus pais e a sua ascendência, desde a criação. Na cosmovisão
maori o planeta é a mãe terra, o pai é o céu; há a concepção de que fazem parte
do mundo, tudo está integrado e são parte do todo não estando acima ou abaixo
da criação. Este foi um povo marginalizado, dominado e excluído das estruturas
e instituições do Estado, mas que não ficaram nessa condição. As marchas,
ocupações de terra, protestos e outras demandas foram conquistando o
reconhecimento e exigindo a preservação de sua condição. (WALKER, 1997).
Mobilizaram-se na recuperação de sua tradição de reunir a família e a
comunidade para identificar e lidar com os problemas que afetam a todos. As
lutas por reafirmação dos direitos e tradições culturais dos povos Maoris
culminaram na edição do Children, Young People and Their Family Act 1989 (Ato
1989, Crianças, Jovens e suas Famílias)12.
As Conferências de Grupos Familiares são alicerçadas na crença de
que a falta de um indivíduo reflete as falhas da família e da comunidade. Na
tradição Maori a família e a comunidade devem estar diretamente envolvidas na
questão da responsabilização pelo ato ofensivo praticado por seus jovens. Este
pensamento e a forma de abordar a delinquência juvenil foram ganhando
reconhecimento enquanto metodologia restaurativa e, gradualmente, passaram
a integrar o Sistema de Justiça Juvenil na Nova Zelândia (MCRAE; ZEHR,
2004)13. Atualmente essa prática já está presente na maior parte das tribos
indígenas estendendo-se por toda a Nova Zelândia. Posteriormente, tornou-se
prática social dialógica, também, na Austrália e em inúmeros outros países. Isso
ocorreu em resposta à reação das mães dos jovens Maoris que reclamavam do
tratamento dispensado aos seus filhos pela polícia, já que entendiam por tradição
Maori que a família e a comunidade devem estar diretamente envolvidas nas
questões da responsabilização de seus jovens por práticas de atos danosos e
ofensivos.
As Conferências de Grupo Familiar são, portanto, os encontros formais
para a tomada de decisão em conjunto sobre eventos que, mormente, envolvem
violência ou ofensas graves e dos quais participam: o ofensor e sua família
estendida (whãnau), a vítima e seus suportes, um representante da polícia e
outras pessoas. Antes do encontro o Coordenador conversa com o autor do ato
danoso e sua família sobre o processo e sobre quem poderá participar,
contribuindo de alguma forma para o encaminhamento das questões. O mesmo
ocorrendo em relação à pessoa a quem o ato foi dirigido e sua família, com vistas
a identificar a disponibilidade para participar, a forma dessa participação, se
presencialmente, se por meio de tecnologia (videoconferência, canal de voz), por
carta, quem atuará como suporte e quais as suas expectativas em relação ao
ressarcimento. Somente após a cuidadosa etapa preparatória que inclui não só
o trabalho direcionado ao ofensor e sua família e a vítima e seus suportes, a
12 Ato regulador da proteção da criança, do jovem e das famílias maoris editado em 1989. 13 MCRAE, A.; ZEHR, H. The little Book of Family Group conferences - New Zealand style. Good Books, USA, 2004
eleição de advogados que cuidam especialmente da justiça juvenil, defensores
leigos com a função de assessorar e garantir que o processo está
adequadamente estruturado, respeitando traços culturais dos envolvidos,
servidores sociais é que se passará à segunda etapa, que é a da reunião.
Conduzir de forma a garantir propostas, decisões, planos de ação que
efetivamente atendam ao receptor do ato (vítima), sempre observando os
princípios norteadores das Conferências pautados nos v|alores de participação
respeitosa, reparação e reintegração.
Havendo disponibilidade para a participação, é função do coordenador
cuidar da infraestrutura, do encaminhamento dos convites, notificando todos os
participantes acerca dos cuidados necessários ao bom desenvolvimento da
reunião. Coletar dados sobre pessoas indiretamente vinculadas ao episódio
indisponíveis para participar e adotar as medidas para que haja clareza e
inteligibilidade nos temas e no processo como um todo, garantindo o diálogo
intercultural se for o caso.
O encontro é conduzido pelo coordenador, alguém capacitado para ocupar essa
função e que integra, em regra, o sistema de Justiça Juvenil. Eventualmente
algum membro da comunidade poderá exercer as atribuições de organizar o
processo e de atuar como facilitador do encontro. Mas em regra, o Coordenador
é alguém do serviço social com a função de dirigir a reunião e os trabalhos de
forma imparcial e equilibrada. O objetivo é propiciar o apoio considerado
necessário ao ofensor para que assuma as suas responsabilidades e promova
mudanças em seu comportamento. Também está voltado ao apoio às famílias
para que possam assumir um papel significativo nesse processo que visa
atender às necessidades das vítimas. (MAC RAE e ZEHR, 2004, p. 12).
Nessa etapa é solicitado aos participantes que sentem aonde se sintam
confortáveis, mas dentro da configuração para a Conferência do Grupo Familiar,
o que passa por organizar as pessoas próximas ao Coordenador e aos seus
suportes, ocupando lugares do lado esquerdo e direito deste.
A reunião desenvolve-se segundo as seguintes etapas: a Abertura pode
ser iniciada com uma oração, canção ou poema, caso seja considerado
adequado aos envolvidos, passando-se as apresentações pessoais e uma
apresentação geral do encontro e o foco das atividades. A segunda é a etapa do
Compartilhamento de informações, que tem foco no comportamento do ofensor,
na qual é lido o resumo dos fatos pelo policial presente, sendo que neste resumo
devem constar todas as acusações que recaem sobre o ofensor (as quais já
devem ter sido previamente assumidas como verdadeiras por este); em seguida
é perguntado ao ofensor se compreende as acusações que lhes são feitas. O
autor do ato danoso pode expressar suas motivações e após ouvir a experiência
vivenciada pela vítima e os impactos do ato sobre ela, poderá dizer como se
sente após ouvi-la e o que compreendeu de sua fala. Este pode ser o momento
em que se estabelece o diálogo entre vítima e ofensor, objetivo primeiro das
Conferências de Grupo Familiar. Quando a conversa flui, pode ser solicitado à
família do ofensor e a ele um resumo do que ouviram, pode ser aberta a fala aos
defensores leigos e advogados juvenis, que sabem que estão no contexto não
para interferir (função litigiosa), mas para apoiar o jovem autor do ato danoso, se
tem alguma informação ou se gostariam de acrescentar algo. O Coordenador
sumariza o que foi falado e abre espaço para que falem sobre o que ouviram,
estendendo aos suportes a oportunidade de oferecer contribuições, após o que
é iniciada a terceira etapa: Caucus e deliberações para uma conversa realizada
em reunião privada em que o ofensor, juntamente com a sua família, avalia os
recursos e os suportes necessários para identificar as bases para a elaboração
do plano a ser proposto. Após esse momento pode ser feito um intervalo em que
é oferecido um lanche (opcional). Durante esse intervalo a vítima e seus suportes
esclarecem ao coordenador suas expectativas e desejos para que sejam
incluídos no plano de trabalho a ser elaborado. Em seguida, reinicia-se com a
quarta etapa que é a do Acordo, momento em que são feitas as sugestões pela
família do autor do ato ofensivo, sendo este estimulado a apresentar as
propostas e em que a vítima propõe ajustes. Outras contribuições dos demais
presentes são incorporadas e é avaliada a exequibilidade do plano. Concluindo-
se pela viabilidade do plano, como e por quem será monitorado, feitas as
negociações finais, são redigidos os termos do acordo, incluindo-se no plano de
trabalho as questões, a reparação, a prevenção e o monitoramento. Na hipótese
de a vítima não estar presente (participação por carta) é avisado que ela será
consultada sobre o atendimento de suas necessidades. A quinta e última etapa
é a do encerramento que poderá incluir uma fala ou uma oração, caso
considerem apropriado (MAC RAE e ZEHR, 2004; MAXWELL, MORRIS E
HAYES, 2008).
Observa-se que na Austrália a incorporação das Conferências de Grupo
Familiar, enquanto prática social dialógica, não incluiu a reunião privada
(cáucus), realizada para as deliberações familiares e processo de tomada de
decisão pelo ofensor e seus suportes sobre o que oferecer à vítima. No sistema
australiano tudo é realizado em plenária, ou seja, todos estão presentes durante
todo o tempo do encontro, diferentemente do sistema neozelandês quanto à
incorporação dessa prática.
A Mediação Vítima-Ofensor, cuja origem remonta ao sistema judiciário
canadense do ano 1974, tendo sido incorporada pelo sistema americano poucos
anos depois (1977), atualmente encontra-se presente na maior parte dos países
do mundo. Por ter sido sistematicamente usada para responder de forma
restaurativa a comportamentos delituosos, não havendo clara distinção entre a
Mediação Vítima-Ofensor e a Justiça Restaurativa.
Há mais de um modelo de mediação que se distingue consoante à
motivação e à finalidade. Em todas as formas e estilos, especialmente quando
se trata de tema afeto à matéria penal, tende a ocorrer estigmas emanados do
Poder Judiciário, desclassificações derivadas dos demais operadores de direito
que “podem levar a mecanismos perigosos de exclusão” (CARAM, 2002, p.1)
que não deveriam ocorrer no judiciário e nem na mediação, já que o mediador,
na qualidade de terceiro de atitude neutra/imparcial a trabalhar com os
envolvidos no episódio não abre juízos qualificadores. Essa
imparcialidade/neutralidade não é, entretanto, algo que se possa aceitar a priori
e é objeto de algumas considerações no terceiro capítulo desta tese.
Tanto na Mediação Vítima-Ofensor, quanto nos Processos Circulares e
nas Conferências de Grupos Familiares, há um processo voluntário que somente
se faz viável quando presentes os três pressupostos supracitados: a
voluntariedade, admissão da autoria do ato danoso e autonomia da vontade. É
um convite ao qual cabe recusa e, por pressupor que o autor do ato assuma a
responsabilidade de tê-lo praticado, deve obrigatoriamente ser um processo
isento de toda e qualquer tipo de coação, com ampla liberdade para os
envolvidos participarem ou não, estarem e permanecerem (CARAM et al p:
44;45).
Em semelhança à Conferência de Grupo Familiar o encontro presencial
é criteriosamente preparado em etapas desenvolvidas de forma individualizada,
em que os participantes na circunstância de dano ou conflito existindo ou não
violência, se encontram, na presença de um mediador que conduzirá a reunião
para: compreender a situação de modo mais amplo e abrangente (precedentes
e as consequências), buscar encontrar soluções para os problemas ocasionados
pelo ato danoso de modo a atender as necessidades da vítima no sentido da
obtenção da reparação do dano, tanto quanto possível, bem como as do ofensor,
pela compreensão de suas razões e necessidades, considerando também a
participação da comunidade com suas questões que, em regra, envolvem
preocupações com o fato presente, com suas repercussões futuras e, ainda,
apoio aos que possam necessitar.
A mediação Vitima-Ofensor é um processo formal, porém flexível, com
uma dinâmica estruturada (CARAM et al p: 47-49). O processo de mediação
inicia-se com a fala do Mediador sobre o motivo do encontro e apresentação, de
forma geral, da situação danosa motivadora da mediação. Na sequência é dada
a oportunidade tanto para a vítima quanto para o ofensor contarem suas
percepções sobre a questão (suas histórias). A vítima é estimulada a falar sobre
os impactos do fato em sua vida e são buscadas formas de reparação do dano,
buscando-se, também, encontrar alguma forma ou modo de apoiar o ofensor
para que possa alcançar os objetivos de reparação e superação do problema.
Diferentemente dos outros dois aportes metodológicos supracitados, a Mediação
Vítima-Ofensor não se utiliza do formato circular para a organização das pessoas
no encontro e nem tem origem em tradições sapienciais de povos indígenas
como aquelas.
O mediador assume a condução do processo visando: compreender a
situação de modo mais amplo e abrangente (os precedentes e as
consequências); buscar auxiliar as pessoas na resolução dos problemas
decorrentes do ato danoso e atender as necessidades de todos os envolvidos.
A participação voluntária e a aceitação do convite à Mediação Vítima-
Ofensor pressupõem não só a liberdade para estar, permanecer, mas também a
de se expressar, silenciar se assim entender, acordar ou não, se e quando
desejado independentemente de histórico de violência.
Há características específicas na Mediação Vítima-Ofensor que se
iniciam na etapa preparatória e podem ir além da etapa do acordo que por vezes
é acompanhada. Na etapa preparatória quando é feita a pré-seleção dos casos
há criterioso cuidado visando a segurança de todos os envolvidos; o potencial
de resolutividade do conflito; os riscos de (re)vitimizações e frustrações por
ambos os lados; a observância dos princípios da assunção da responsabilidade
pela prática do ato por parte do ofensor, a voluntariedade de todos, a livre
vontade de participar, a informalidade, interdisciplinaridade, princípios essenciais
ao estabelecimento da mediação nesse âmbito.
A mediação como meio de efetivação da Justiça Restaurativa deve
considerar as características intrínsecas de cada contexto fático e a
singularidade de cada caso. O processo é constituído de cinco etapas
(NORDENSTHAL, 2005), sendo imprescindível a realização de uma reunião
individual presencial na etapa preparatória posterior à triagem, entendida como
a verificação da adequabilidade à metodologia e a possibilidade de se instaurar
a Mediação Vítima-Ofensor. Segundo Umbreit (2001), essa reunião preparatória
presencial deve ser realizada com a vítima e com o ofensor em separado para a
observância de suas expectativas e perspectivas em relação ao ato danoso, bem
como a clareza quanto às vantagens e às desvantagens da autocomposição no
contexto penal.
Ao mediador cabe avaliar se todos estão aptos a iniciar a mediação e se
há receios quanto à abordagem de algum ponto importante para a solução das
questões na perspectiva dos envolvidos (UMBREIT, 2001, p.41). A abertura de
uma mediação ocorre em reuniões individuais preparatórias visando os ajustes
para realização da reunião conjunta que somente ocorre quando há consenso.
Os autores do campo (UMBREIT, 2001; NORDENSTHAL, 2005) consideram
importante a clareza quanto à diferenciação da figura do mediador e do juiz;
quanto à informalidade e a oralidade; a dinâmica da mediação e a existência de
igual oportunidade de fala, de escuta e da formulação de perguntas. Também no
que se refere à possibilidade da manifestação de participantes
(acompanhantes), desde que não seja retire o foco ou restrinja o contato direto
entre vítima e ofensor. Também é importante haver clareza sobre a igual
oportunidade do diálogo acerca de formas de resolver as questões e da
reparação dos danos. O mesmo em relação à redação do acordo, quando
possível atender a todos os envolvidos e desde que não haja qualquer tipo de
coerção exercida por qualquer um dos presentes. Outro cuidado é quanto à
confidencialidade durante todo o curso da Mediação e a decorrente
impossibilidade do uso das informações para a construção de prova processual,
ainda que seja em esfera cível, na hipótese de não haver acordo ao final da
mediação. Há o esclarecimento quanto à possibilidade de realização de reuniões
individuais (caucus). É ressaltada também a possibilidade e a importância da
presença dos advogados com a função de auxiliar seus clientes no alcance de
soluções de ganhos mútuos. Por fim, há o estímulo a uma escuta atenta, sem
interrupções, em linguagem não adversarial, com vistas a soluções satisfatórias
(UMBREIT 2001, NORDENSTHAL 2005, AZEVEDO 2007, et al).
Em reunião individual define-se a ordem das falas, sendo usual a vítima
iniciar o seu relato ou escolher se quer falar primeiro. Este poder atribuído à
vítima é parte do processo de recuperação de sua percepção (e sensação) de
autodeterminação e da sua sensação de recuperação dessa autodeterminação
perdida com o ato violento. A fala da vítima será regulada por perguntas
formuladas pelo mediador, que versarão sobre o fato e suas consequências, o
mesmo ocorrendo com o ofensor. Cada qual terá, portanto, igual oportunidade
de se colocar e de falar sobre o os fatos a partir de seu ponto de vista. Em
seguida, na segunda etapa, todos têm a oportunidade de falar acerca do que
compreenderam e dos impactos da escuta. O mediador vai resumindo e
redefinindo o problema conforme o desenvolvimento dos trabalhos e as
conclusões alcançadas, criando uma agenda de trabalho que atenda aos
objetivos da vítima e do ofensor, que versam em regra sobre temas a serem
tratados e a ordem de prioridade, distribuição do tempo para cada tema etc.
(2005, 88-92). A terceira etapa é a da elaboração de propostas para o conflito,
que deve ser da autoria dos mediandos. Para Nordenstahl (2005, p.92-94), o
mediador pode auxiliar com propostas de solução ao problema desde que atue
com imparcialidade. A quarta etapa corresponde à identificação dos pontos
fundamentais para constar do acordo, quando alcançadas soluções que
atendem satisfatoriamente a todos. E, por fim, a quinta e última etapa, é a que
Nordenstahl (2005, p. 97-98) denomina como etapa de “seguimento e controle”
e que se dá após o término da mediação, visando a garantia do cumprimento do
que foi acordado.
Os autores do campo reconhecem a possibilidade de uma variação na
forma de conduzir ou instalar a mediação Vítima-Ofensor. Identificam como
possibilidade a instalação/realização de painéis nos quais os ofensores escutam
vítimas de crimes, que não são necessariamente aquelas ligadas aos crimes que
eles cometeram, podem ser pessoas desconhecidas, porém vítimas de atos
semelhantes àqueles praticados por eles. Estas vítimas descrevem a dor e o
sofrimento experimentados em razão do crime. Essa prática tem o propósito de
despertar a empatia dos ofensores pelas próprias vítimas e conscientizar sobre
os desdobramentos do que fizeram (VAN WORMER, 2009). Essa proposta tem
por principal objetivo oferecer espaço para que a vítima possa obter informações
(respostas as suas questões), dissolver estereótipos (embaçar os lugares de
vítima e de ofensor), expressar sentimentos e obter o ressarcimento dos danos.
Em relação aos ofensores, produz o deslocamento do lugar de ofensor à lei e ao
Estado, conferindo um espaço para se colocar, compreender as repercussões
do ato e responsabilizar-se pelos danos a que deu causa (ZEHR, 2008).
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