texto aula 4

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SAÚDE CORPO E FUNDAMENTO: A análise do corpo como problema filosófico da Educação física POR ROBERTO S. KAHLMEYER-MERTENS E GEORGE MAURÍCIO V. DOS SANTOS O corpo está entre os principais conceitos da Educação Física, ele motiva reflexões sobre essa educação que propõe uma mente sã e um corpo são. Esse célebre adágio do literato latino Juvenal nos mostra que, já na cultura clássica, havia preocupação pelo corpo e pelo espírito. O que nos faz constatar que desde os primórdios aos nossos dias, a educação por meio da atividade física esteve ligada ao propósito de cuidar do corpo. Em tempos em que é comum vermos o corpo tomado como objeto e sendo mecanicamente preparado para obter altos rendimentos, aperfeiçoado segundo padrões de estética e de performances,visando à obtenção do corpo modeladamente perfeito, faz-se urgente o estudo desse fenômeno. Pois, compreendido como produto e negligenciado em seus aspectos essenciais pela própria Educação Física (quem sabe, pela exaustão de suas teorias) nos propomos a perguntar pelo corpo no que tange sua existência mundana, histórica e cultural. De modo que, seria insuficiente a análise do corpo apenas como um organismo, explicado pela mecânica do movimento ou do gesto esportivo. Há de se colocar a questão do corpo no campo filosófico, no qual a separação corpo-consciência e problema ainda está em aberto. O homem sempre teve dificuldade de compreender a si mesmo como uma unidade. Por questões míticas ou religiosas sempre se entendeu composto de duas partes distintas e separadas: o corpo (material, físico) e a alma (espiritual, consciente ou intelectual). Essa cisão parte do princípio de que o ser humano se dá em dois cotos, em que, o primeiro é o corpo e o outro o intelecto1. A esse fenômeno chamaremos dicotomia psicofísica, o que remonta à dualidade sujeito e objeto (ou seja, o homem e o mundo), tradicional ao pensamento fi- losófico. Esses elementos integram questões que habitam a pauta dos filósofos desde a antiguidade, como podemos ver em uma contextualização de alguns autores da história da Filosofia. A referida dualidade já aparece no pensamento grego no século IV a.C.. Com Platão (428 – 348 a.C.), ela parte do pressuposto que a alma, antes de se encarnar, teria vivido a contemplação do mundo das idéias. Após isso, a alma decairia desse mundo encarnando em um corpo que, para o autor consistiria em um invólucro desta. Aprisionada no corpo, a alma humana se degradaria em duas, a primeira superior (a alma intelectiva); a outra inferior (a alma do corpo). À luz do método fenomenológico o corpo é tomado como um fenômeno, na medida em que a consciência é unidade com seu mundo

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educação física e filosofia saberes e fazeres do ponto de vista filosofico

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SADECORPO E FUNDAMENTO:A anlise do corpo como problema filosfico da Educao fsicaPOR ROBERTO S. KAHLMEYER-MERTENS E GEORGE MAURCIO V. DOS SANTOSO corpo est entre os principais conceitos da Educao Fsica, ele motiva reflexes sobre essa educao que propeuma mente s e um corpo so. Esse clebre adgio do literato latino Juvenal nos mostra que, j na cultura clssica, havia preocupao pelo corpo e pelo esprito. O que nos faz constatar que desde os primrdios aos nossos dias, a educao por meio da atividade fsica esteve ligada ao propsito de cuidar do corpo.Em tempos em que comum vermos o corpo tomado como objeto e sendo mecanicamente preparado para obter altos rendimentos, aperfeioado segundo padres de esttica e de performances,visando obteno do corpo modeladamente perfeito, faz-se urgente o estudo desse fenmeno. Pois, compreendido como produto e negligenciado em seus aspectos essenciais pela prpria Educao Fsica (quem sabe, pela exausto de suas teorias) nos propomos a perguntar pelo corpo no que tange sua existncia mundana, histrica e cultural. De modo que, seria insuficiente a anlise do corpo apenas como um organismo, explicado pela mecnica do movimento ou do gesto esportivo. H de se colocar a questo do corpo no campo filosfico, no qual a separao corpo-conscincia e problema ainda est em aberto.O homem sempre teve dificuldade de compreender a si mesmo como uma unidade. Por questes mticas ou religiosas sempre se entendeu composto de duas partes distintas e separadas:o corpo(material, fsico)e a alma(espiritual, consciente ou intelectual). Essa ciso parte do princpio de que o ser humano se d em dois cotos, em que, o primeiro o corpo e o outro o intelecto1. A esse fenmeno chamaremosdicotomia psicofsica, o que remonta dualidade sujeito e objeto (ou seja, o homem e o mundo), tradicional ao pensamento fi- losfico. Esses elementos integram questes que habitam a pauta dos filsofos desde a antiguidade, como podemos ver em uma contextualizao de alguns autores da histria da Filosofia.A referida dualidade j aparece no pensamento grego no sculo IV a.C.. Com Plato (428 348 a.C.), ela parte do pressuposto que a alma, antes de se encarnar, teria vivido a contemplao do mundo das idias. Aps isso, a alma decairia desse mundo encarnando em um corpo que, para o autor consistiria em um invlucro desta. Aprisionada no corpo, a alma humana se degradaria em duas, a primeira superior (a alma intelectiva); a outra inferior (a alma do corpo). luz do mtodo fenomenolgico o corpo tomado como um fenmeno, na medida em que a conscincia unidade com seu mundo

Ren Descartes desenvolveu suas idias duvidando da realidade do mundo e do corpo, at chegar primeira verdade indubitvel: o cogito. Assim, fez emergir o sujeito, constitudo de duas substncias, uma de natureza espiritual, que o pensamento; outra de natureza material, que o corpo

Essas idias contrastam com certas concepes da filosofia de Plato. Por exemplo: em uma cultura como a helnica, na qual tem bero no s a filosofia mais os esportes olmpicos, o autor no poderia deixar de valorizar a ginstica. Mas, mesmo isso, confirmaria a superioridade da alma sobre o corpo. Para o filsofo, a Educao Fsica (ginastik) traria o equilbrio entre estas partes, pondo o corpo na posse de sade perfeita e permitindo que a alma se desprenda do mundo do corpo e dos sentidos para concentrar na contemplao das idias. O que no faz que o filsofo deixe de entender as coisas do mundo em sua multiplicidade como derivadas das idias, ou seja, a cada aspecto do mundo dos fenmenos corresponderia a uma essncia imutvel no mundo das idias.Mesmo na Grcia clssica, o conceito de corpo e de ginstica, so mais que objeto e exerccio, ambos compem a cultura da beleza e do bem (Plato demonstra que, em sua juventude, admirava a beleza fsica, mas, com o amadurecimento, descobriu que a beleza da alma mais preciosa que a do corpo). Todavia, as concepes do pensamento de Plato, embora tenham tido grande penetrao em sua poca e influenciado escolas filosficas posteriores, no eram unnimes. Divergindo de Plato, seu discpulo Aristteles (384 -322 a.C.) reconhecia o papel do corpo e dos sentidos no conhecimento, no o considerando crcere da alma.Sculos adiante, a Igreja exercia grande influncia poltica e econmica na populao e no permitia que houvesse preocupao com o corpo, considerando- o. Nessa poca, mais tarde denominada por alguns tericos doRenascimentocomo o perodo das trevas, o corpo, no mbito religioso, ocupava lugar de subordinao, sendo alvo de punio e de regulao. Esse desprezo pelo corpo inferioriza-o, fazendo com que ele fosse visto como a priso da alma e o responsvel pelas faltas cometidas.Durante o perodo medieval,os problemas filosficos em relao ao corpo continuaram a estar no foco do debate entre pensadores. Contudo, a fi- losofia propriamente dita era dependente da teologia. Para a doutrina crist, determinante dessa compreenso teolgica, o corpo era considerado sinal de pecado e degradao, acerca disso se desenvolveram prticas de purificao estimuladas pelo ascetismo (doutrina moral que desvaloriza os aspectos corpreos e sensveis do homem, ou ainda, mortificao da carne e a purificao corprea).Santo Agostinho (354-430 d.C.) partiria de algumas dessas compreenses teolgicas, entretanto, teve seu pensamento influenciado por Plato ao considerar o homem uma mistura de alma e corpo, vendo a alma como interioridade, como autoconscincia. Isso fez com que Agostinho contrariasse a compreenso comum que a teologia teria do corpo, propondo idias que dignificavam o corpo humano, ao pens-lo como entreposto do esprito. Com esse filsofo, fica marcado o esforo de no perder de vista a corporeidade humana como um fenmeno factual, imanente e relativo vida, mesmo contrariando uma teologia exacerbada.Com tudo isso, em grande parte do Medievo, havia tabus endossados pela Igreja acerca do corpo e seu conhecimento. Isso atrasou em sculos o avano, no s das cincias mdicas, como tambm das antropologias. Apenas tardiamente surgiria um olhar livre de censuras do homem sobre si prprio. O olhar da conscincia racional possibilitado com o Renascimento fez outro entendimento do corpo, considerando- o objeto da cincia, em sua natureza fsica e biolgica.Apenas com a Revoluo Cientfica do sculo XVII, especificamente com Ren Descartes (1596 - 1650 d.C.) dar-se-ia uma filosofia independente da tradio crist e novamente original. Depois dos gregos, o sistema cartesiano inaugura um conceito novo de homem, de mundo e de Deus.Descartes comeou a desenvolver suas idias duvidando da realidade do mundo e do corpo, at chegar primeira verdade indubitvel: ocogito. Assim, fez emergir o sujeito, constitudo de duas substncias, uma de natureza espiritual, que o pensamento; outra de natureza material, que o corpo. Desse modo, formulou-se claramente o dualismo psicofsico, determinando uma nova viso do corpo, sendo ele corpo-objeto, associado idia mecanicista do homem mquina, com predomnio da razo.Temos, assim, um pensamento focalizado nesta partio, demonstrando a constituio do homem por duas substncias: uma de natureza espiritual, a substncia pensante (res cogitans) e a outra de natureza extensa (res extensa). S esta ltima pode ser objeto das cincias da natureza, que mecanicamente explicam o funcionamento da mquina do corpo. Mas a substncia pensante s poderia ser objeto da reflexo filosfica.Com o pensamento cartesiano, o conceito decorporis extensase apodera de uma imagem do corpo do homem, tornando evidente o modelo corpo-mente com o primado da segunda. A meditao cartesiana sobre a relao corpo-mente inclui uma anatomia preciosa, a ponto de vermos em seuDiscurso sobre o mtodoe no seuTratado sobre o homem, concepes de anatomia bem arrojadas para seu tempo.HOMEM MQUINA, DE JULIEN O. LA METTRIE

O corpo humano uma mquina que desenvolve o seu prprio movimento. a imagem viva do movimento perptuo. A alimentao mantm o movimento que a febre provoca. Sem alimento, a alma definha, fica louca, e morre exausta. A alma um candelabro que brilha com mais intensidade no momento antes de ir embora. Mas alimenta o corpo, derrama dentro das veias sucos e licores fortes, e ento a alma cresce forte como eles, como armando-se com uma coragem orgulhosa [...] Dessa maneira, uma bebida quente coloca em tempestuoso movimento o sangue que uma bebida fria acalmaria.

Julien O. La Mettrie(1709 1751) d continuidade a essa tradio, no sculo XVIII, que entre outros, imprime uma marca do sujeito como sujeito do seu discurso. Uma das conseqncias do continusmo do filsofo a relao substancial de identidade entre o homem e o mundo. Assim, no s tudo se constitui de materialidade como o prprio homem se articula e se constitui com estes mesmos elementos. Contudo, para La Mettrie, o corpo do homem em nada difere do corpo de qualquer outro animal, e j neste ponto dispensa o argumento cartesiano de distino do homem pela presena de uma alma racional e imaterial. Em funo da conjuno destes saberes, a cincia deixar de ter um sujeito (homem) e um objeto (natureza) para se articular a um nico objeto, no qual e do qual fazem parte homem e natureza. Apenas no final do sculo XIX essa concepo do corpo dividido em partes (representativa de dificuldades em sua inteirao e conhecimento) seria superada.FRANZ BRENTANO

Para Brentano, na sua obraPsicologia segundo o ponto de vista emprico(Psychologie von Empirischem Standpunkt), de 1874, cada fenmeno mental caracterizado pelo o que os Escolsticos da Idade Mdia chamavam de intencional (ou mental) inexistncia de um objeto, e que pode-se designar, embora no completamente de forma ambgua, referncia a um ndice, sentido para um objeto (que no compreendido aqui como o significado de uma coisa), ou objetividade imanente. Assim, cada fenmeno mental inclui algo como o objeto dentro dele mesmo, embora todos no faam assim da mesma maneira. Na apresentao algo apresentado, no julgamento que algo afirmado ou negado, no amor amado, no dio odiado, no desejo desejado e assim por diante. Esta existncia intencional caracterstica exclusivamente de fenmenos mentais. Nenhum fenmeno fsico exibe qualquer coisa como ele. Ns poderamos, conseqentemente, definir fenmenos mentais dizendo que so aqueles que tm um objeto intencionalmente dentro daqueles mesmos.

Franz Brentano foi um psiclogo e filsofo austraco. Partindo das idias de Aristteles, a filosofia dele seguiu em direo de um aristotelismo moderno, emprico em seus mtodos e princpios

A fenomenologia pretende superar no s a dicotomia corpo-conscincia, mas, tambm, as dicotomias conscincia- objeto ou homem-mundo, descobrindo nesses plos relaes de reciprocidade. A fenomenologia surgiu no final do sculo XIX, a partir das idias de Franz Brentano, exploradas por Edmund Husserl (1859 - 1938). O principal objetivo da fenomenologia estabelecer uma nova relao entre sujeito e objeto, homem e mundo, considerados, no interior dessa, plos inseparveis. Podemos acrescentar que a fenomenologia um mtodo de investigar os objetos do conhecimento tais como aparecem, isto , como se apresentam conscincia.O corpo, neste caso, no um objeto; pela mesma razo, a conscincia que tenho no apenas produto de uma representao. fenomenologia, o corpo sempre um fenmeno, um acontecimento. luz do mtodo fenomenolgico o corpo tomado como um fenmeno, na medida em que a conscincia unidade com seu mundo. compreenso do corpo como fenmeno damos o nome de corporeidade. Na corporeidade fica definida a essncia do corpo.Para a fenomenologia, a conscincia no primeiro um sujeito para s ento ter uma relao com o seu corpo no mundo, ela est sempre aberta aos fenmenos; sendo, desde sempre, conscincia deles. Tendo em vista a corporeidade, ressaltamos que a relao de integrao corpo-conscincia se d em vista a Educao Fsica, atravs de caractersticas da dinmica corporal, dos gestos, atitudes e reflexos diferentes.Os debates iniciadospela fenomenologia frutificaram na obra de autores do sculo XX, como Heidegger, Sartre e, principalmente, Merleau- Ponty que asseguram que o estudo da corporeidade est muito alm da anlise do controle motor. Para Merleau- Ponty (1908 1961), por exemplo, a esttica do corpo e sua motricidade, se expressam quando se torna extenso do espao e da existncia. Segundo esse mtodo filosfico, corpo no coisa, tampouco obstculo, mas parte integrante da totalidade do ser humano. Assim, meu corpo no alguma coisa que eu tenho,eu sou meu corpo, diria o autor com a aceitao dos demais fenomenlogos.Aps a apresentao das diversas compreenses filosficas do corpo na histria, podemos constatar que a questo se encontra intimamente ligada ao homem e compreenso que este faz de si mesmo. Negligenciada por alguns, uma reflexo filosfica acerca do corpo ensaia ultrapassar o interesse puramente filosfico para servir a disciplinas como a Educao Fsica, a Antropologia, a Medicina, entre outras. Entretanto, a maior urgncia e essa diz respeito filosofia determinar o quanto o corpo revela acerca da essncia humana, instncia mais fundamental.

O poeta e literato romano Juvenal (Decimus Iunius Iuvenalis, em latim). Para ele, ao invs de riqueza, poder, ou crianas - os homens devem orar por uma mente s num corpo sadio Na imagem, a capa de uma verso em ingls de suas Stiras, de 1711

REFERNCIASBRUARE, C.A filosofia do corpo. So Paulo: EDUSP, 1972.DIEGUEZ, G. K.Corpo: liberdade e priso. Col. Debates. Org. Gilda Korff Dieguez. Petrpolis: Vozes, 1985, pp.96-106.JAEGER, W.Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes/UnB, 2000.JNIOR, W. C.Dimenses filosficas da educao fsica. Rio de Janeiro: Guanabara, 2005.KAHLMEYER-MERTENS, R. S.Filosofia primeira: Estudos sobre Heidegger e outros autores. Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2005.1 - Em nosso contexto, entenderamos por conscincia o sujeito e todos ou outros nomes possveis que referencia est idia como; eu, cogito, subjetividade etc.Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Doutorando em Filosofiapela Universidade do Estado do Riode Janeiro/UERJ, Professor na Faculdadede Formao de Professores da UERJ.George Maurcio V.dos Santos Bacharel em EducaoFsica pelo Centro Universitrio PlnioLeite/ UNIPLI