tese final completa janaina calazans defesa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO A FORMAÇÃO DE UM GÊNERO ENGAJADO Espaço, sujeito e ideologia na música de protesto JANAINA DE HOLANDA COSTA CALAZANS RECIFE 2012

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO

    A FORMAO DE UM GNERO ENGAJADO

    Espao, sujeito e ideologia na msica de protesto

    JANAINA DE HOLANDA COSTA CALAZANS

    RECIFE

    2012

  • A formao de um gnero engajado espao, sujeito e ideologia na msica de protesto

    Tese de Doutorado apresentada pela aluna Janaina de Holanda Costa Calazans no Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obteno do grau de doutor sob a orientao da professora Dra. Isaltina Maria de Azevedo Mello Gomes.

  • RESUMO

    Esta tese aborda a influncia do contexto da ditadura militar no surgimento do gnero de msica de protesto no Brasil no perodo de 1960 a 1989. A pesquisa foi feita tomando como base consultas bibliogrficas e anlise de documentos dos arquivos das polcias polticas e rgo diretamente relacionados s atividades de censura e represso. A anlise feita procurou observar de que maneira a situao sociopoltica censura, controle, represso, cerceamento de liberdades - imposta pela ditadura foi determinante na forma e nas escolhas discursivas, sendo capaz de fazer surgir um novo gnero musical o gnero de protesto. Para isso, realizou-se uma anlise histrica do contexto e de todos os elementos que convergem para a formao do gnero. Com base na observao desses elementos, a partir dos conceitos da Anlise do Discurso (AD) francesa, desconstrumos as letras de 05 msicas de modo a analisar de que forma as escolhas discursivas, os elementos sujeito, contexto e ideologia e a funcionalidade foram determinados pelo contexto. Tambm foi traado um panorama da produo cultural, sobretudo musical, da poca, bem como observada a reao do gnero pelo pblico. PALAVRAS-CHAVE: Discurso, censura, ditadura, msica popular, contexto.

  • ABSTRACT

    This thesis discusses the influence of the context of the military dictatorship in the emergence of the genre of protest music in Brazil from 1960 to 1989. The research was based on bibliographic consultation and analysis of documents from the archives of the political police and organizations directly related to the activities of censorship and repression. The analysis seeks to observe how the sociopolitical situation - censorship, control, repression, restriction of freedom - imposed by the dictatorship was decisive in form and discursive choices, being able to bring up a new musical genre - the genre of protest. For this, we performed a historical analysis of the context and all the elements that converge to form the genre. From the observation of these elements, based on the concepts of french discourse analysis, the lyrics of 05 songs were deconstructed to analyze how the discursive choices, the elements - subject, context and ideology - and the functionality were determined by context. This work also presents an overview of cultural production, especially musical, in the period, and notes the reaction of the genre by the public. KEY WORDS: Discourse, censorship, dictatorship, popular music, context.

  • RESUM

    Cette thse traite de l'influence du contexte de la dictature militaire dans l'apparition du genre de la musique de protestation au Brsil au cours de la priode de 1960 1989. Le sondage a t ralis par la revue de la littrature et par la consultation du documents provenant des archives de la police politique et aussi bien que de l'organismes directement lis aux activits de censure et de rpression. L'analyse visait observer comment la situation socio-politique - la censure, de contrle, la rpression et la restriction des liberts - impose par la dictature a t dcisif dans la forme et dans les choix discursifs, capable d'apporter un nouveau genre musical: le genre de protestation. Pour cela, on a effectu une analyse historique du contexte et de tous les lments qui convergent pour former le ge nre. Bas sur l'observation de ces lments, sur la base des concepts d'analyse du discours franais, les paroles de cinq chansons ont t dconstruits dans le but d'analyser comment les choix discursifs, les lments le sujet, le contexte et l'idologie et les fonctionnalits ont t dtermines par le contexte. Cette thse a galement retrac un panorama de la production culturelle, en particulier musicale l'poque, et a observ la raction du genre musicale par le public. MOTS-CLS: Discours, censure, dictature, musique populaire, contexte.

  • RESUMEN

    La tesis aborda la influencia del contexto de la dictadura militar para el surgimento del gnero de msica de protesta en Brasil, desde 1960 hasta 1989. La investigacin se realiz sobre la base de consultas bibliogrficas y anlisis de documentos de los archivos de las policias polticas y instituciones directamente relacionadas con las atividades de censura y represin. El anlisis observa cmo la situacin socio-poltica - la censura, el control, la represin, la restriccin de las libertades - impuesta por el regimen fue decisivo en la forma y en las opciones discursivas, impulsando el surgimento de un novo gnero musical - el gnero de protesta. Para ello, se llev a cabo un anlisis histrico del contexto y todos los elementos que convergen para formar el gnero. Con base en la observacin de estos elementos, y utilizando los conceptos de la Anlisis del Discurso (AD) francesa, deconstrumos las letras de cinco canciones con el objectivo de analisar cmo las decisiones discursivas, los elementos - el sujeto, el contexto y la ideologia - y la funcionalidad se determinaron por el contexto. Tambien fue trazado un panorama de la produccin cultural, especialmente musical, del periodo, y observada la reaccin del gnero por parte del pblico. PALABRAS CLAVE: Discurso, censura, dictadura, msica popular, contexto.

  • Dedicada a Angela, Rosa, Rachel e Djalma que viveram a poca, a Gabriela, Jorge e

    Camila que nasceram com a obrigao da democracia e a Joo Antnio e Marina que so livres para escolher.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Jorge, C e Thelma pelo companheirismo e pela pacincia.

    Bianka, sem a qual o riacho fica mais fundo.

    Raquel pelo dilogo, pela troca, pelos DVDs e por concretizar o que parecia impossvel.

    Ao Rodrigo Duguay pela compreenso.

    Ao Fernando Fontanella, Carol e ao Valdo.

    Aos meus alunos pelo apoio e incentivo.

    Isaltina por mostrar os caminhos.

    Cristina Teixeira pelo incio de tudo no Mestrado.

    Karla Patriota por acreditar.

    todos que direta e indiretamente foram envolvidos e se envolveram neste trabalho.

    Ao Chico Buarque, ao Vandr, ao Tom, ao Vincuis, ao Joo Bosco por existirem.

    Ao Sabi por cantar e a Brbara por calar.

  • SIGLAS

    AD Anlise do Discurso AI Ato Institucional AI-5 Ato Institcional n 5 AIE Aparelhos Ideolgicos do Estado ALN Aliana Libertadora Nacional AP Ao Popular ARE Aparelhos Repressores ARENA Aliana Renovadora Nacional CCC Comando de Caa aos Comunistas CENIMAR Centro de Informaes da Marinha CIA Central Intelligence Agency CIEX Centro de Informaes do Exrcito CP Condies de Produo CPC Centro Popular de Cultura DEOPS Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social DCDP Diviso de Censura e Diverses Pblicas (rgo central) DCE Diretrio Central de Estudantes DOI-CODI Centro de Operaes de Defesa Interna/ Destacamento de Operaes de Informaes DOPS Departamento de Ordem Poltica e Social FD Formaes Discursivas FI Formao Ideolgica FIC Festival Internacional da Cano ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros MAU Movimento Artstico Universitrio MPB Msica Popular Brasileira OBAN Operao Bandeirantes PC do B Partido Comunista do Brasil SIGAB Servio de Informao do Gabinete SCDP Servio de Censura e Diverses Pblicas SNI Servio Nacional de Informaes UNE Unio Nacional dos Estudantes

  • TABELAS

    Tabela 1 Cronologia da Censura no Brasil 75

    Tabela 2 Unidades inspecionadas e censuradas pela Diviso de Censura e Diverses Pblicas do

    Departamento de Censura Federal, 1976. 79

    Tabela 3 - Caractersticas da objetividade e da ancoragem 162

    GRFICOS

    Grfico 1 67

    Grfico 2 67

    Grfico 3 A composio das proibies de publicar, 1970-1978 78

    Grfico 4 131

    Grfico 5 153

    Grfico 6 153

    Grfico 7 172

    Grfico 8 225

  • Sumrio

    INTRODUO 13

    CAPTULO I: POLTICA, ENGAJAMENTO E MASSIFICAO: SURGE UMA NOVA FORMA DE FAZER MSICA

    24

    1.1 O Teatro como forma de expresso da msica engajada 31

    1.2 A msica engajada como parte estruturante do cinema novo 37

    1.3 A msica popular avana como cultura de massa 40

    CAPTULO II: A CRIAO DE UM GNERO TEXTUAL A PARTIR DAS RELAES ONDE, QUEM E O QU: ESPAO, SUJEITO E IDEOLOGIA

    51

    2.1 A questo do gnero 51

    2.2 Texto, contexto, textualizao: a formao de um discurso musical ideolgico 54

    2.3 Msica como gnero 60

    2.4 Gnero Textual Cano 61

    2.5 A materialidade da cano 62

    2.6 Esttica e funcionalidade da cano 64

    CAPTULO III: ONDE ESTOU?: O CONTEXTO COMO FATOR DETERMINANTE NA CONTRUO DO DISCURSO ENGAJADO

    68

    3.1 A situao 69

    3.1.1 O contexto imediato e o contexto amplo: a censura 69

    3.1.2 A censura produo artstica e literria 78

    3.2 A censura, a msica e a ideologia 82

    3.2.1 Msicos ou subversivos? 107

    3.2.2 As vozes malcriadas 121

    CAPTULO IV: CLICE: ESTRATGIAS DISCURSISVAS NA MSICA DE PROTESTO 132

    4.1 Como dizer 132

    4.1.1 O no dito: a metfora 134

    4.1.2 O no dito: o Silncio 138

    4.1.3 O no dito, quase dito: a Semntica 139

    4.1.4 O dito 144

  • 4.1.5 O entendido: recursos lingusticos e condies discursivas como estratgias de cognio a partir da Lingustica Textual (uma outra abordagem)

    149

    CAPTULO V: O QUE QUERO?: IDEOLOGIA, EMOES E CRENAS 154

    5.1 Conceitos e Definies 154

    5.2 Ideias, emoes e crenas para um discurso ideolgico 155

    5.3 Crenas pessoais e crenas sociais: em que cr a msica engajada? 156

    5.4 Representaes sociais e Memria coletiva: referncias para a construo de um discurso

    musical prprio

    157

    5.5 A reproduo da ideologia 162

    5.6 Discurso e Ideologia 164

    CAPTULO VI: QUEM SOU EU?: O LUGAR DO SUJEIO NA MSICA ENGAJADA 173

    6.1 O sujeito 173

    6.2 O assujeitamento 178

    6.3 O Outro: Dialogismo, Heterogeneidade, Interdiscurso e Polifonia 181

    6.4 O coro lrico: o recurso da Dialogismo 183

    6.5 A voz do malandro 184

    6.6 A voz da mulher 184

    6.7 A voz do eu-lrico 185

    6.8 A voz nacional 185

    6.9 A voz de Chico Buarque 186

    6.9.1 Como a voz buarqueana ecoava 197

    6.9.2 Chico x Vandr (a outra voz) 213

    CONSIDERAES FINAIS 218

    REFERNCIAS 226

    DISCOGRAFIA 256

    LEVANTAMENTO DE FONTES / PESQUISA DE CAMPO 258

    ANLISES 259

    APNDICES 277

    ANEXOS 303

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    16

    INTRODUO

    A msica conta a histria de um povo. No Brasil, a histria scio-poltica do

    pas cantada em verso e prosa desde sempre. O engajamento poltico e social

    transformado em msica nos provocou admirao e respeito pela sua contribuio

    peculiar para o desenrolar da histria do pas. Para ns, a msica engajada constitui uma

    das grandes fontes de informao sobre uma poca histrica, alm de ser

    reconhecidamente um dos principais agentes de mobilizao durante o regime militar.

    O discurso propagado pelas letras nesse perodo era estrategicamente produzido

    de modo a burlar a censura e ao mesmo tempo fazer-se entender pela sociedade civil.

    Dessa forma, a msica extrapola a funo de narrativa social e ganha novas

    configuraes, agindo como discurso ideolgico usado para propagar informaes e

    denunciar.

    Esta pesquisa surge, pois, de diversas inquietaes geradas a partir da audio

    despretensiosa, num primeiro momento, das msicas produzidas no perodo da ditadura

    militar brasileira, mais especificamente daquelas compostas por Chico Buarque. A

    observao de que tais obras constituam uma narrativa das condies de um povo

    mantido sob um regime repressor fez com que tentssemos localizar o tempo e o espao

    dessas produes e como estes determinavam a condio de sua estrutura.

    Essa observao mostrou que aquela narrativa era fruto de um contexto que

    envolvia uma srie de variveis, entre elas as estratgias discursivas utilizadas pelos

    compositores que envolvia o uso de metforas, temticas recorrentes que lembravam

    num primeiro momento a pessoa amada ou a saudade de um tempo distante, que, no

    entanto, serviam apenas para confundir os censores e camuflar um discurso poltico-

    ideolgico.

    A anlise do material de pesquisa disponvel mostrou que o uso do discurso

    musical como ferramenta do discurso poltico e social antecedia seu surgimento como

    estilo, datando, pois, de uma poca muito mais remota do que aquela em que passa a ser

    reconhecida como msica de cunho poltico. As marchinhas de Carnaval da dcada de

    30 j traziam em si crticas sociais. Desse mesmo modo, observamos tambm, que no

    havia um abismo entre o final da dcada de 80, quando o fim da censura e do regime

    militar acabam por diminuir a produo artstica engajada de maneira geral, e o incio

    do sculo XXI com a consolidao do Rap como gnero musical no Brasil, retomando a

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    crtica social. O que h durante todo esse perodo uma constante apropriao de

    diferentes estilos e a utilizao das mais diversas estratgias para atingir todo tipo de

    pblico e assim propagar a informao ideolgica.

    Fica claro, entretanto, que a dcada de 60 , sem dvida alguma, a mais rica de

    todas, pois foi nesse perodo em que se configurou um novo cenrio poltico no Brasil

    com a consolidao de grupos antagnicos com diferentes propostas de organizao

    social, que culmina no golpe de 1964 que implementa uma poltica autoritria e

    antidemocrtica. Quanto ao objeto pesquisado, este foi diretamente influenciado por

    esse novo panorama scio-poltico que se instala, onde os rgos de represso foram

    determinantes no que se refere produo cultural em questo.

    Estabelecida a forma unilateral de regime, era preciso encontrar mtodos que

    garantissem a continuidade da produo sem sofrer as sanes da censura. A riqueza do

    perodo encontra-se, pois, nesse esforo de manter a sociedade informada e articulada

    com o pensamento revolucionrio dos grupos de oposio.

    No Brasil, a fase mais conhecida da msica de protesto teve incio com a

    instituio do AI-5 e se perpetuou at o fim da dcada de 80, quando a censura foi

    abolida pela Constituio de 1988. Para atravessar esse perodo, os msicos se uniram

    em grupos no propriamente organizados, mas em diversos deles possvel observar

    experincias de grande relevncia. Um exemplo dessa atuao foi o Movimento

    Artstico Universitrio (MAU), criado no final da dcada de 1960, que tinha entre seus

    integrantes Gonzaguinha, Aldir Blanc e Ivan Lins e nenhum projeto poltico ou

    qualquer tipo de relao com partidos. Os Centros Populares de Cultura (CPCs), da

    Unio Nacional dos Estudantes (UNE) tambm realizaram experincias com msica

    participativa em suas produes teatrais e cinematogrficas.

    importante destacar que a forma como se desenvolveu a msica de protesto no

    Brasil diferenciada do processo observado em outros pases que tambm passaram por

    um processo de instalao de um projeto poltico autoritrio. Na maioria deles, tm-se

    movimentos organizados com projetos e associaes, muitas vezes em forma de

    cooperativas partidrias ligadas esquerda, enquanto no Brasil isso se d de maneira

    descentralizada e fragmentada.

    No Pas, o auge dessa msica de protesto revela ainda o processo de

    desconstruo do samba como smbolo nacional. At ento, cabia ao gnero a

    articulao entre Estado e cultura popular na tentativa de narrar a histria do povo

    brasileiro. Essa aproximao, no entanto, nada mais era do que uma estratgia poltica

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    para tentar conter as contravenes que o samba comeava a cometer, tendo como

    justificativa a manuteno da ordem e o apoio do Estado.

    A responsabilidade de exercer esse controle ficou a cargo do Departamento de

    Imprensa e Propaganda (DIP) durante o primeiro governo de Getlio Vargas que passou

    a exigir, por exemplo, que os sambas-enredo das escolas de samba abordassem os

    grandes temas nacionais como o Descobrimento, a Independncia, a Inconfidncia e a

    Abolio na produo culural. Um exemplo disso foi a Portela, que entre os anos de

    1943 e 1945 desfilou com enredos sugeridos pela Liga de Defesa Nacional, e

    coincidentemente sagrou-se campe em todos eles. (TINHORO, 1986, p.06). Esse

    encaminhamento narrativo fez do samba um smbolo nacional repercutido interna e

    externamente.

    A soluo encontrada por universitrios e msicos de esquerda no foi a de

    negao do gnero, mas a de incorporao deste mesmo gnero a novas composies

    com temticas at ento consideradas imprprias.

    Um dos objetivos desta pesquisa analisar os mecanismos utilizados pela

    censura para justificar sanes, controlar a produo cultural e reprimir a ao dos

    compositores, e apontar de que forma essas aes foram determinantes na construo de

    estratgias apropriadas que possibilitassem a continuidade da produo artstica.

    A partir do estudo dos procedimentos utilizados pela censura e da adequao dos

    mtodos de composio na tentativa de driblar a autoridade oficial, possvel identificar

    aquelas estratgias que mais se repetiam, alm das temticas mais abordadas. Como

    objeto de anlise utilizaremos msicas de diversos autores, concentrando-nos,

    entretanto, nas composies de Chico Buarque, por ter sido um dos compositores mais

    censurados e perseguidos da poca, um dos que mais produziu nesse perodo e o que

    mais teve msicas equivocadamente liberadas. Entre as msicas analisadas esto Roda-

    viva (pela riqueza de sua construo composicional), Vai passar, Sabi (vencedora do

    III Festival da Cano da TV Globo, vaiada durante 23 minutos pelo pblico) e Apesar

    de voc (liberada pela censura por falta de compreenso da letra, foi censurada logo em

    seguida), alm de Pra no dizer que no falei das flores (preferida pelo pblico Sabi

    para vencer o III Festival da Cano), de Geraldo Vandr. A anlise desta ltima visa

    perceber as opes discursivas feitas por Vandr e como conseguiu gerar tamanha

    comoo por parte do pblico.

    A partir desse mapeamento ser possvel estabelecer uma anlise comparativa

    entre o marco inicial da msica de protesto como gnero, de modo a definir se as

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    composies identificadas antes desse dado momento obedecem a um padro de forma

    a serem classificadas como tal e, ainda, se as canes produzidas aps o perodo de

    abertura tambm trazem caractersticas da msica engajada. Alm disso, possvel

    tambm trilhar o caminho do compositor durante o desenrolar do processo poltico

    brasileiro, com a inteno de identificar o rumo tomado por suas composies.

    A metodologia utilizada neste trabalho constitui a anlise da estrutura e do

    contedo do discurso utilizado nas composies, tomando como objeto de estudo o

    discurso construdo pela msica chamada participativa da dcada de 60.

    A anlise mostra, a princpio, que tais gneros musicais utilizam a msica como

    veculo da crtica social, com letras que tem uma importante funo para a compreenso

    das representaes do cotidiano do pas. O estudo pretende, dessa forma, abordar a

    construo de uma crtica social musicada observada nas narrativas da nao, de modo a

    construir um padro que permita classificar o estilo como gnero.

    Outro ponto interessante a ser destacado nessa anlise a abrangncia e a

    interao conseguida entre compositor-msica-ouvinte/receptor. Para Chartier (2002) e

    Certeau (1990) as relaes entre produtor-texto-leitor no podem ser tratadas de

    maneira reducionista. Dessa forma, os autores relativizam a subordinao do

    ouvinte/receptor diante do texto que lhe apresentado a partir de suas margens

    implcitas e explcitas. Chartier (2002) entende o consumo como produo, alm de

    ampliar as possibilidades de utilizao e interpretao trazidas por esse texto,

    promovendo assim um consumo no somente restrito aos produtos culturais, mas ao

    consumo intelectual.

    Um exemplo disso a cano Pra no dizer que no falei das flores, de Geraldo

    Vandr. Composta em 1968, ficou conhecida pelo pblico como Caminhando e passou

    a ser utilizada como hino da oposio poltica durante toda a dcada de 1970, mesmo

    aps ter sua radiodifuso proibida depois de ser apresentada no Festival Internacional da

    Cano1. A cano, porm, no foi esquecida e em diferentes momentos histricos

    como as manifestaes das Diretas J!, as greves da dcada de 1980 e o impeachement

    do ento presidente Fernando Collor de Mello foi utilizada como hino de protesto.

    Isso mostra a capacidade do ouvinte de guardar na memria um discurso

    marcante, de modo a poder reviv-lo em outra ocasio, apropriando-se do seu sentido

    base. dessa apropriao que trata Chartier (2002) para explicar as vrias estratgias

    1 O Festival Internacional da Cano aconteceu em 1968.

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    20

    utilizadas pelo ouvinte para sair da sua condio de sujeito passivo. Para explicar esse

    conceito, o autor recorre a Foucault (1996) e Ricoeur (1977). Para Foucault (1996), a

    apropriao est ligada ao controle e propriedade do discurso por uma comunidade. J

    Ricoeur (1977) relaciona apropriao com a possibilidade de atualizao e realizao do

    texto. Dessa forma, Chartier (2002) define apropriao como uma pluralidade de usos e

    interpretaes de textos. Para se chegar a essas concluses preciso ampliar o

    horizonte de estudo e ir buscar respostas nas condies de produo s quais o autor

    estava submetido, nos interesses do prprio autor, nas possibilidades de distribuio do

    produto cultural, alm, claro, das condies de recepo do ouvinte. Muito pertinente

    seria, ainda, estabelecer relaes entre o gnero musical em questo e outras

    manifestaes artsticas a ele ligadas.

    A partir dessas relaes historiogrficas podemos articular algumas prticas de

    leitura, que vamos chamar aqui de prtica de escuta, devido ao objeto de estudo ter sua

    difuso propagada, sobretudo, em suporte audiovisual, que sero decisivas na

    interpretao do discurso da msica de protesto. Essas interpretaes, no entanto,

    podem ser passveis de divergncias, o que se observa em muitos estudos que analisam

    o contedo desse gnero, em que os prprios autores no concordam com a

    interpretao dada pelos pesquisadores s suas construes discursivas metafricas. Isso

    se explica pelo processo de apropriao que permite ao ouvinte escutar uma msica

    feita na dcada de 1960 e interpret-la a partir de um referencial atual e pessoal.

    Tomaremos como ponto de partida a msica de protesto2 produzida entre as

    dcadas de 60 e 90, pois se trata do mais importante discurso musical de cunho

    ideolgico produzido pela msica brasileira.

    O aparecimento desse discurso musical mais poltico inspirou-se em algumas

    idias divulgadas pelos Centros Populares de Cultura, pelo Teatro de Arena e pelos

    debates promovidos pela Unio Nacional dos Estudantes (UNE) nas Universidades.

    Esse imaginrio poltico associado a instrumentos e arranjos que favoreciam a

    mensagem de brasilidade fundou a msica de protesto ou participativa, que carregava

    em si o objetivo de incitar prticas revolucionrias. As canes transformaram-se, ento,

    em verdadeiros manifestos

    Essa forma de expresso foi utilizada a princpio na dcada de 60, pela Msica

    Popular Brasileira (MPB) de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Geraldo

    2 Tomaremos aqui como msica de protesto, aquelas com carter ideolgico, sobretudo com intenes polticas, bastante comuns na poca da Ditadura Militar.

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    21

    Vandr, de onde partir nossa anlise, e depois abandonada a partir de uma mudana

    contextual.

    Dessa forma, a partir de que momento a msica toma para si o papel de

    mobilizao poltico-ideolgica? Como a populao passa a entender o discurso musical

    como forma de engajamento? Como os rgos repressores percebem a relao implcita

    msica-revoluo? Quais as estratgias discursivas que passam a ser utilizadas pelos

    compositores para evitar a censura? Que padres estticos passam a definir a msica de

    protesto?

    Para promover essa anlise, iremos observar a necessidade de definir alguns

    termos que sero fundamentais, entre eles o dialogismo e a polifonia, definidas por

    Bakthin (1981), a intertextualidade, de Kristeva, a interdiscursividade, de Maingueneau

    (1997) e a heterogeneidade, de Authier-Revuz (1990). fundamental ter em mente

    ainda que, neste trabalho, todos estes termos sero utilizados em referncia a um nico

    fenmeno.

    Aquilo que Bakthin (1981) usou chamar de dialogismo pode ser entendido como

    aquele discurso atravessado por relaes interdiscursivas, que emergem no discurso por

    meio das marcas de heterogeneidade. "O discurso de um outro colocado em cena pelo

    sujeito, ou o discurso do sujeito se colocando em cena como um outro (PUCHEUX e

    FUCHS, 1975). De acordo com Bakhtin (1981), o discurso no se constri sobre o

    mesmo, mas se elabora em vista do outro. Com isso, ele quer dizer que o outro

    influencia, condiciona, atravessa o discurso do eu.

    isso que observamos nas composies de protesto. O narrador original, vez

    por outra, perde seu lugar se diluindo em diversas vozes. O narrador fala atravs dos

    seus personagens. So eles os responsveis por expor o que pensa o autor.

    Em outros termos, concebe-se o dialogismo como o espao interacional entre o

    eu e o tu ou entre o eu e o outro, no texto. Explicam-se as frequentes referncias que faz

    Bakhtin (1981) ao papel do Outro na constituio do sentido ou sua insistncia em

    afirmar que nenhuma palavra nossa, mas traz em si a perspectiva de outra voz.

    Nesse processo de escolha, no qual se procura aquilo que se julga

    gramaticalmente dizvel, distinguimos um conjunto de enunciados possveis de serem

    atualizados, reditos em uma determinada enunciao, em um dado lugar, definindo o

    dizvel, criamos tambm uma zona do no dizvel, excluindo aqueles enunciados que

    devem ficar de fora do espao discursivo.

  • Pgina |

    22

    Essa separao do que pode ou no ser dito, deve-se, sobretudo, a um recurso

    chamado memria discursiva3. justamente atravs dessa memria discursiva que os

    enunciados anteriores, o j dito, faz-se circular. ela que permite o aparecimento, a

    rejeio ou a transformao de enunciados histricos.

    Essa memria nos permite concordar com a tese de Maingueneau (1997) de que

    no existe discurso auto-fundado, de origem absoluta. Enunciar se situar sempre em

    relao a um j dito que se constitui no Outro do discurso.

    Voltamos aqui noo de intertextualidade. Quando Bakhtin (1981) afirma que

    nenhuma palavra nossa, nos remete a idia de que estamos, o tempo inteiro nos

    utilizando do discurso do Outro.

    Percebemos assim que a repetio de temas relacionados ao universo carcerrio,

    discriminao, violncia, opresso, pobreza, s distores sociais so recorrentes

    nas letras das msicas participativas.

    No entanto, apesar de termos sempre a sensao de que j conhecemos aquela

    narrativa, ela vem sempre revestida de uma nova roupagem, de um enredo mais ou

    menos complexo, de personagens diferentes. E assim, temos a sensao de que estamos

    diante de algo novo.

    Bakhtin, atravs do conceito de dialogismo, aponta justamente para o fato de o

    texto ser visto como um "tecido de muitas vozes", ou de muitos textos ou discursos, que

    se entrecruzam, completam-se, se respondem-se uns aos outros ou polemizam entre si.

    Da insistir, em diversos momentos de seus escritos, na definio de enunciado como

    "um elo na cadeia da comunicao verbal", inseparvel dos elos que o determinam

    interna e externamente e que nele provocam reaes-respostas imediatas, numa

    "ressonncia dialgica".

    Esses "fios dialgicos vivos" so os "outros discursos" ou o discurso do outro

    que, colocados como constitutivos do tecido de todo discurso, tm lugar no ao lado,

    mas no interior do discurso.

    A problemtica do dialogismo bakhtiniano, assim como a abordagem do sujeito

    e de sua relao com a linguagem permitida por Freud, serviram de apoio para Authier-

    Revuz (1990) na construo de sua definio de heterogeneidade discursiva. Desse

    modo Revuz diz que o discurso encontra-se atravessado pelo inconsciente, onde, sob as

    3 O que tratamos aqui como memria discursiva baseado no conceito de Maingueneau (1983, 1984) de que a memria discursiva no se trata de uma memria psicolgica, mas de uma memria que supe o enunciado inscrito na histria.

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    palavras, "outras palavras" so ditas. Pode-se, ento, a partir da linearidade de uma

    cadeia, perceber-se a polifonia no intencional de todo discurso, atravs da qual, pode-

    se recuperar os indcios da "pontuao do inconsciente". Maingueneau (1997) diz que

    todo discurso define sua identidade em relao ao outro.

    No espao discursivo que recortamos para analisar, vimos diversas relaes

    possveis na construo do discurso, entre elas esto o dialogismos e a polifonia.

    Nesse panorama, observa-se a utilizao de algumas estratgias discursivas por

    centenas de compositores. Essas estratgias passaram a funcionar como um padro a ser

    seguido, levando em considerao o contexto em que eram produzidas e os sujeitos aos

    quais serviam, seja com um discurso poltico-intelectual representativo das classes

    sociais mais abastadas, ou como espao discursivo de protesto poltico-socio-cultural da

    periferia das grandes cidades. E, com a ideologizao do signo musical, muitas normas

    foram sendo institudas, transformando-se em dogmas estticos - As msicas compostas

    nesse perodo foram elevadas ao nvel de literatura e entendidas como fontes de

    pesquisa da poca - e polticos. Dessa forma, foi-se construindo uma nova memria

    sobre a cultura, a poltica e a sociedade brasileira.

    Estudos sobre a msica de protesto no Brasil comearam a ganhar fora

    imediatamente depois do fim do perodo de ditadura e a partir da dcada de 1990,

    quando os arquivos comeam a ser liberados gradativamente pelo governo. As obras a

    que nos referimos, em sua maioria, tratam da msica de protesto sob determinada

    perspectiva como censura, represso, autoritarismo e histria. Nenhum deles, entretanto,

    desenvolveu uma abordagem relativa anlise dos elementos discursivos que compem

    o gnero.

    A msica de protesto um estilo musical que perpassa diversas pocas

    histricas, sendo condicionado em cada uma delas pelos seus respectivos contextos.

    Defendemos aqui, que tal estilo rene caractersticas de gnero discursivo, apresentando

    para se formar, caractersticas particulares de concesso de voz ao sujeito, adaptao de

    forma ao contexto e temas recorrentes em relao ideologia. Esse gnero, por sua vez,

    datado, ou seja, aparece e desaparece a partir das necessidades do contexto. Nos

    concentraremos aqui no perodo entre 1960 e 1988, em que o gnero msica de protesto

    foi bastante utilizado como forma de expresso, mobilizao e denncia.

    Apontamos as seguintes caractersticas como pontos-chaves para identificar esse

    gnero:

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    Funcionalidade: a msica deixa de ser unicamente entretenimento e passa a

    ter uma funo especfica, social.

    As vozes: diversas vozes so utilizadas para criar no receptor a sensao de

    multido, de mobilizao.

    Condio de produo (interferncia do contexto nas escolhas discursivas): as

    escolhas lexicais so pautadas pelo que o contexto permite ou no dizer. Os

    dizeres dependem das condies impostas pela censura.

    Ideologia interferindo nas temticas: temas como tortura, censura, poltica,

    ditadura passam a ser a principal motivao das composies musicais de

    protesto.

    Condio de reproduo (circunstncias nas quais o receptor colocado em

    contato com a msica): o momento da reproduo e o contexto que o envolve

    decisivo no processo de decodificao do discurso, sobretudo naqueles

    casos que envolvem situaes de tenso e/ou grande emoo, como eram os

    casos dos festivais de msica e das passeatas.

    Essas caractersticas revelam que o gnero protesto completamente pautado,

    inclusive sua ocorrncia, nas condies do contexto. Entendemos que no caso das

    msicas compostas no perodo definido para o estudo isso fica ainda mais latente, j que

    nele se percebe o maior conjunto produzido da obra do gnero. Isso se justifica mais

    uma vez pelo prprio contexto, j que o cenrio era de um perodo de exceo com

    direitos individuais caados e liberdades cerceadas, o que refletia diretamente na

    construo de uma forma atuante de agir socialmente. Uma das brechas encontradas,

    no entanto, foi justamente a manifestao nos diversos setores das artes, sobretudo, a

    msica, o cinema e o teatro.

    A msica, em especial, era o veculo mais abrangente de comunicao com o

    pblico, j que o rdio j possua um poder de penetrao considervel entre a

    populao e os LPs tambm contavam com a adeso e boa aceitao da audincia.

    Somando-se a isso, tnhamos a ascenso da TV no Brasil e a sua adeso na divulgao

    da Msica Popular Brasileira, atingindo o pice na organizao e veiculao dos

    festivais musicais.

    O que procuramos aqui apontar que a msica de protesto constitui mais do que

    um estilo musical, mas um gnero condicionado pelo contexto em que se inscreve. A

    partir dessa premissa, temos as seguintes hipteses:

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    O contexto determinante na construo do discurso da msica engajada;

    O assujeitamento do sujeito e a sua conscincia disso determina suas escolhas

    sobre o que dizer e como dizer;

    A ideologia do sujeito determina o incio e o fim do gnero, caracterizando-o

    como um gnero datado, que pode surgir e desaparecer a qualquer

    momento a depender das circunstncias.

    Para comprovar as hipteses descritas acima dividimos este trabalho da seguinte

    forma:

    CAPTULO I: POLTICA, ENGAJAMENTO E MASSIFICAO: SURGE

    UMA NOVA FORMA DE FAZER MSICA tratamos aqui das novas

    configuraes da msica pautadas nas condies polticas e ideolgicas da

    poca. Traamos ainda um panorama do processo de massificao da msica

    brasileira.

    CAPTULO II: A CRIAO DE UM GNERO TEXTUAL A PARTIR

    DAS RELAES ONDE, QUEM E O QU: ESPAO, SUJEITO E

    IDEOLOGIA o estudo do gnero, fundamental para entendermos o

    processo de formao e o funcionamento interno do mesmo, a partir das suas

    relaes com o contexto (onde), com o sujeito (quem) e com a ideologia (o

    que).

    CAPTULO III: ONDE ESTOU?: O CONTEXTO COMO FATOR

    DETERMINANTE NA CONTRUO DO DISCURSO ENGAJADO

    fazemos aqui um percurso histrico da censura, suas formas de atuao, a

    condio social diante do regime opressor e as caractersticas da produo

    intelectual submetida s condies determinadas pelo contexto.

    CAPTULO IV: CLICE: ESTRATGIAS DISCURSISVAS NA MSICA

    DE PROTESTO analisamos aqui os dizeres e as formas de faz-los, as

    opes discursivas e as estratgias utilizadas para burlar os censores e fazer-

    se entender pelo pblico.

    CAPTULO V: O QUE QUERO?: IDEOLOGIA, EMOES E CRENAS

    as temticas que pautavam as msicas engajadas eram, em sua maioria,

    perpassadas por posicionamentos ideolgicos que refletiam muitas vezes a

    ideologia dos prprios compositores e a vontade da sociedade oprimida.

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    CAPTULO VI: QUEM SOU EU?: O LUGAR DO SUJEIO NA MSICA

    ENGAJADA o sujeito se constitui um personagem fundamental na

    construo do discurso da msica engajada, pois ele que d voz s diversas

    vozes, alm de ser o responsvel por proceder as escolhas dos dizeres a partir

    do que julga possvel dizer

    Esse percurso foi escolhido levando em considerao a necessidade de apontar a

    formao do gnero protesto a partir de fatores condicionadores do discurso, mostrando

    como e porque neste dado perodo o contexto foi responsvel por gerar a conscincia do

    assujeitamento responsvel por pautar a temtica, os dizeres e as vozes do gnero, sem

    que esse pudesse ocorrer espontaneamente, fazendo disso sua caracterstica geradora.

    importante destacar que admitimos como objeto de anlise, aquelas

    composies realizadas entre 1960 e 1988 Por se tratar do perodo mais produtivo do

    gnero em termos do conjunto da obra e a partir do qual o estilo passou a ser

    caracterizado como de protesto.

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    CAPTULO I

    QUEM CANTA COMIGO, CANTA O MEU REFRO POLTICA, CENSURA

    E IDEOLOGIA: SURGE UMA NOVA FORMA DE FAZER MSICA

    A cena da msica brasileira passou por uma de suas maiores transformaes no

    incio da dcada de 60. Tal reordenamento musical tem incio com o movimento da

    Bossa Nova, que se caracterizava por agregar um estilo intimista de interpretao a

    novas estruturas rtmicas e harmnicas de composio.

    Esse novo estilo musical se construa a partir da observao e consequente

    representao da sociedade carioca em suas msicas, que retratavam a modernizao e

    emancipao pretendidas pelo ento discurso poltico de renovao. Historicamente,

    passava-se de um pas agrrio para um pas incipientemente industrializado. De uma

    sociedade com baixo poder de consumo para uma sociedade consumista. Tais mudanas

    podiam ser verificadas no novo estilo imprimido pela Bossa Nova, que trazia um

    refinamento jamais visto no discurso musical brasileiro. So msicas urbanas (quase sempre muito peculiarmente cariocas) que concretizam as vises do novo homem da cidade, vivendo dentro de um certo tipo de conforto gerado pelo repentino enriquecimento da sociedade. Essa nova riqueza, mesmo que duvidosa, encontra-se na msica da Bossa Nova. S que metaforizada em um novo tipo de materialidade, na materialidade do discurso musical (MORAES, 1982, p. 2).

    Segundo Tinhoro (1978), a Bossa Nova no era um gnero musical e sim uma

    maneira de tocar, que teve incio em 1958 com a clssica gravao de Chega de

    Saudade feita por Joo Gilberto. Os anos 50 caracterizaram-se tambm, segundo o

    autor, por outros acontecimentos definitivos para esse estilo musical.

    Em termos culturais tem-se o processo de mercantilizao da cultura atenuado

    pela impossibilidade de desenvolvimento econmico mais generalizado. Dito de outra

    forma, a indstria cultural e a cultura popular de massa emergente se caracterizavam

    mais pela sua incipincia do que pela sua amplitude (ORTIZ, 1989, p. 45).

    A Bossa Nova tem ligaes com um tempo em que a modernizao do pas e a

    urbanizao crescente das cidades era um discurso recorrente, tendo a capital do Brasil

    como espao de construo do seu imaginrio.

    Nesse contexto importante perceber que o surgimento desse ncleo de

    produo musical se d concomitantemente com a instaurao do projeto

    desenvolvimentista implementado pelo governo de Juscelino Kubitcheck. Essa

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    observao mostra a possibilidade de mediao entre estas duas esferas cultura e

    poltica.

    Essa nova forma de fazer msica marcava ainda a separao social presente no

    Rio de Janeiro pobres nos morros e na Zona Norte, ricos e remediados na Zona Sul

    que no favorecia de modo algum esse contato com as fontes do ritmo popular. Pelo

    contrrio, proporcionou o surgimento de uma camada de jovens completamente

    desligados da tradio musical popular, pela ausncia daquela espcie de

    promiscuidade social que permitira anteriormente aos representantes da classe mdia

    carioca participar, at certo ponto, do contexto cultural da classe colocada num degrau

    abaixo da escala social (TINHORO, 1978, p. 221 e 222).

    No entanto, se chegarmos mais perto do objeto de anlise ficar claro que as

    referncias trazidas pela Bossa Nova no se limitavam ao discurso musical, mas

    prpria condio de formao do grupo que deu origem ao estilo jovens da classe

    mdia responsveis por atualizar a condio da msica tradicionalmente brasileira,

    imprimindo uma forma original de interpretar o produto com uma mistura que unia a

    essncia do samba a elementos do jazz e da msica impressionista.

    Tal sincretismo verificado nessa manifestao da msica popular brasileira

    provocou uma grande inquietao no cenrio musical, que comeou a questionar a

    originalidade do movimento assim como seu nascedouro. O que se discutia a essa altura

    era se era possvel definir a Bossa Nova como um produto sofisticado do samba,

    apontando, no entanto, para um afastamento das razes do movimento originalmente

    negro nascido na periferia, o que a aproximava da msica estrangeira.

    Essa discusso que se colocava, sobretudo pela imprensa da poca, gerou

    preocupao por parte de letristas e compositores que agora passavam a discutir como

    seria possvel a articulao entre eles a partir das transformaes iniciadas pelo

    movimento. A celeuma se dava, sobretudo, em torno das novas concepes em relao

    harmonia, que agora dialogava intensamente com referncias estrangeiras, afastando-se

    das tradies populares e da condio do povo brasileiro.

    A problemtica adquire dimenso no momento em que parecia cada vez mais

    difcil expressar a autenticidade da realidade da sociedade da poca. Aquilo que a partir

    da Bossa Nova passava a ser entendido como bem acabado, perfeito, para alguns nada

    mais era do que uma ausncia de individualizao.

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    Dessa forma, as condies s quais os brasileiros estavam expostos passam a ser

    terreno frtil para a temtica utilizada pela msica brasileira, tornando-a engajada4 e

    com forte apelo de crtica poltica. Observa-se neste momento uma grande

    transformao nas letras construdas pela MPB5, que comea agora a observar com mais

    ateno o modo de vida das classes mais populares, alm do momento histrico-poltico

    pelo qual o pas passava.

    Essa tendncia pde ser observada durante os festivais realizados no ano de

    1966. O II Festival Nacional da Msica Popular Brasileira, realizado pela Record, deu o

    primeiro lugar a Nara Leo, interpretando A Banda, de Chico Buarque, dividindo o

    prmio com Disparada, de Geraldo Vandr e Tho Barros, interpretada por Jair

    Rodrigues. J o festival da TV Excelsior premiou Porta Estandarte, de Geraldo Vandr

    e Fernando Lona. Todas as composies apontavam uma forte temtica da MPB

    engajada, o dia que vir, que representava a possibilidade de redeno no futuro, no

    amanh, no dia que suceder o ento estado das coisas.

    Para Galvo (1976), no entanto, a perspectiva de uma ao futura proposta pela

    MPB revelava uma evaso da realidade, j que ao invs de propor uma soluo para o

    que era denunciado, tratava a soluo no nvel mitolgico como se tais mudanas no

    dependessem da ao humana.

    4 Apesar da utilizao do termo engajada, esta conceituao envolve uma dubiedade na medida em que pode ser colocada em opostos, ora como fruto de uma ao menor (no caso da arte, esta previamente caracterizada como limitada por sua natureza), ora como portadora de uma carga positiva. Segundo Hobsbawn (1998), o conceito de engajamento usado: como termo de desaprovao ou louvor (neste caso, muito mais raramente) que a palavra empregada, e quando definida formalmente, as definies tendem a ser seletivas ou formativas (p. 138). O autor tambm reflete sobre a ausncia do engajamento na produo intelectual: nessa situao que o engajamento poltico pode servir para contrabalanar a tendncia crescente de olhar para dentro, em casos extremos, o escolaticismo, a tendncia a desenvolver engenhosidade intelectual por ela mesma, o autoisolamento da academia. Por outro lado, o autor revela seu oposto, ou seja, os riscos da sobrevalorizao deste mesmo engajamento: De fato, ele pode ser vtima dos mesmos perigos, caso se desenvolva um campo de erudio engajada suficientemente amplo (HOBSBAWN, 1998, p. 154). 5 A sigla MPB representa um movimento dentro da msica brasileira, e sua trajetria de sucesso se inicia num momento em que uma nova ditadura se instaurava a partir do golpe de 31 de maro de 1964 e em que recrudescia o conflito militar e ideolgico em torno da Guerra do Vietn. Vrias foram as definies para MPB: msica de protesto, msica dos festivais, msica politicamente engajada. Moderna msica Popular Brasileira, ou MMPB, tambm era uma expresso utilizada por alguns crticos, como Augusto de Campos (CAMPOS, 1993.) e Walnice Nogueira Galvo (GALVO, 1976, p. 93-119). Em termos geogrficos, a MPB situa-se no eixo Rio So Paulo, plo de urbanizao e modernizao e modernizao do pas. Era um movimento musical urbano com um pblico em sua maioria de classe mdia e universitrio. Nesse eixo concentravam-se os meios de comunicao, em especial rdio e televiso, alm de 90% das gravadoras (VILARINO, 1999, p.19).

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    ...entre a denncia antimitolgica e a proposta se coloca a mediao de uma nova mitologia...esta nova mitologia assume o gesto de uma proposta , falsa. Os passos so os seguintes: se eu digo que algo est errado, vai implcito nesse dizer um novo passo que ser uma proposta de consertar o errado, mas se eu digo que est errado e, em vez de fazer a proposta de conserto ao nvel do errado, diluo a denncia fazendo propostas ao nvel mitolgico, ento eu apenas propicio a evaso (GALVO, 1976, p. 95).

    A MPB trabalhava ento entre dois referenciais: o sonho e a realidade. Ao ser

    sonhado, o sonho deixa de ser impossvel e passa a ser uma luta, uma meta em funo

    da realidade marcada pela opresso, mentira e submisso.

    No III Festival de MPB da Record, a temtica se repete. Ponteio, de Edu Lobo e

    Capinam, a grande vencedora, tambm tocava na questo do dia que vir. O violeiro

    canta a esperana de um dia completo, por inteiro, um novo tempo em que todos

    possam dedilhar o violo (ponteio). O violeiro brada eu espero no v demorar, pois

    agora se tem o dia incompleto, calado, sem ponteio.

    H de se destacar ainda que essa migrao temtica no foi fruto apenas da

    discusso ocorrida no meio musical, mas tambm do contexto onde a produo cultural

    encontrava-se imersa, ou seja, o projeto reformista do ento presidente Joo Goulart e a

    aproximao com os setores de esquerda. Essa condio contribua de maneira decisiva

    para a construo de uma cena poltica da MPB, que unia lirismo, amor, nacionalismo e

    a bandeira das causas sociais. Algumas dessas temticas, por sua vez, j bastante

    utilizadas nas dcadas anteriores, mas agora repletas de influncias revolucionrias

    provenientes dos setores trabalhistas e do comunismo (RIDENTI, 2000, p. 25).

    Essa perspectiva ideolgica que comeava a ser vislumbrada pela msica

    popular brasileira tinha respaldo terico no discurso produzido pelo Partido Comunista

    Brasileiro (PCB) e difundido por entidades como o Instituto Superior de Estudos

    Brasileiro (ISEB) e aclamado pelo Centro Popular de Cultura da Unio Nacional dos

    Estudantes (CPC UNE).

    O discurso que ecoava no centro da sociedade, projetado principalmente pelos

    estudantes universitrios, falava em nome dos trabalhadores brasileiros e agia contra o

    imperialismo norte-americano e a propriedade privada. Tambm a poltica cultural do

    PCB articulava-se tendo como base as propostas do CPC, que tinha como ncleo o

    engajamento nacional-popular. Rechaado o Imperialismo, neutralizadas as formas mercantis e industriais de cultura que lhe correspondiam e afastada a parte antinacional da burguesia, aliada do primeiro, estaria tudo pronto para que desabrochasse a cultura nacional verdadeira, descaracterizada pelos elementos anteriores, entendidos como corpo estranho. A nfase, muito justa, nos mecanismos da dominao norte americana servia mitificao da comunidade brasileira, [...subtraindo

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    a] anlise de classe que a tornaria problemtica por sua vez (SCHWARZ, 2001, p. 96).

    A bandeira levantada por essas vozes em torno da defesa das classes menos

    favorecidas transformou-se em um projeto amplo do PCB, que em 1958 props a

    criao de uma Frente nica, responsvel por articular a revoluo democrtica da

    nao a partir da unio de diversos segmentos da sociedade, desde o proletariado at a

    ala considerada mais progressista da burguesia. Essa articulao, no entanto,

    desmontada com o golpe militar em 1 de abril de 1964.

    Mas no se podia anunciar junto com o golpe o fim das esquerdas, j que o

    fechamento de sindicatos e entidades trabalhadoras previa to logo uma resposta

    indignada de setores da sociedade. A resposta veio, mas antes de ser no campo poltico

    propriamente dito, ela aconteceu no campo cultural com um discurso que contestava a

    ordem social que passava a reger o pas a partir do golpe.

    Em suas mais diversas formas de expresso, a produo cultural ps-64

    revolucionou a forma de engajar politicamente a sociedade. O vis cultural passou a ser

    a principal arena de luta, sendo amplamente utilizada para conscientizar e promover a

    ao.

    A nova proposta cultural que comeava a ser vislumbrada trazia tambm para a

    msica novas perspectivas dentro do processo de criao musical. As mudanas eram

    motivadas, sobretudo por um movimento de aproximao com as camadas populares da

    sociedade, o que significava uma volta s razes culturais. Esse posicionamento revelava

    uma postura engajada e representava, para muitos, a possibilidade de um projeto

    revolucionrio, implementado por meio de formas de expresso artsticas. A politizao das massas se tornou um terreno frtil sobre o qual frutificaram iniciativas de cultura popular como nunca havia ocorrido em pocas anteriores. [...] Um sopro de entusiasmo renovador percorria a msica popular, o teatro e a literatura. a fase de ouro da Bossa Nova, do cinema novo, do Teatro de Arena, da arquitetura de Braslia. [...] Impulso to criativo e poderoso que se revelou capaz de passar por cima do golpe antidemocrtico e ainda brilhar intensamente at o fechamento completo da ditadura militar no final de 1968 (GORENDER, 1987, p. 48-49).

    A aproximao com os setores populares da sociedade, no entanto, no

    representava em si uma novidade. O projeto de formao de uma inteligncia brasileira

    destacado por Ortiz (1989) aponta para uma preocupao do ISEB em propor categorias

    e temas de anlise, o que influenciou o encaminhamento cultural durante as dcadas de

    50 e 60. A funo do Instituto era a de validar a atuao do Estado durante o governo de

    Juscelino Kubitsheck, tendo suas discusses fundamentadas na construo de uma

    ideologia do conhecimento.

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    Na dcada de 60, no entanto, observa-se um movimento de esquerda encabeado

    pelo Movimento de Cultura Popular do Recife e pelo CPC, da UNE, com o objetivo de

    propagar um iderio poltico diferente do que era teorizado at ento pelo ISEB. Essas

    manifestaes ganham fora, sobretudo quando Carlos Estevam funcionrio do ISEB

    assume a direo do CPC, levando consigo a teoria isebiana constituda por um

    arcabouo terico antes propriedade exclusiva de alguns intelectuais da poca. Esse

    pensamento passou a ser ento difundido socialmente por meio de peas teatrais,

    msicas e at cartilhas escolares (ORTIZ, 1994).

    Aos poucos, o CPC vai se configurando como o principal difusor de idias

    acerca do engajamento poltico do artista e do ideal de arte na dcada de 60. Com uma

    grande quantidade de componentes vinculados ao PCB, o objetivo do grupo era

    aproximar os artistas da cultura popular brasileira. Algumas diretrizes de como a

    produo artstica deveria se comportar diante de tal aproximao vieram de um

    documento escrito por Carlos Estevam, ento diretor do CPC, em maio de 1962. O texto

    destacava a escolha feita pelos artistas por serem parte do povo, segundo o autor,

    destacamentos do seu exrcito no front cultural, opo que estava diretamente

    associada ao processo de criao artstica. E eseta (sic) opo fundamental que produz no esprito dos artistas e intelectuais que ainda no a fizeram [gera] alguns equvocos e incompreenses quanto ao valor que atribumos liberdade individual no processo de criao artstica e quanto nossa concepo de essncia da arte em geral e da arte popular em particular (ESTEVAM, 1962)6.

    interessante observar que, embora defenda a liberdade criativa, Estevam

    afirma que a superioridade da arte produzida para as elites, a chamada arte ilustrada,

    claramente perceptvel pelos prprios mtodos utilizados em sua concepo. De acordo

    com ele, a arte popular tende a ser inferior sob esse aspecto, pois se prope a utilizar

    condies estticas pouco sofisticadas com o objetivo de se aproximar da linguagem

    utilizada pelo povo e, assim, estreitar os laos com ele.

    A partir desse momento o que se via era a criao de padres hierrquicos de

    cultura, onde a arte criada para as elites era superior no que diz respeito forma, e a arte

    popular consistente quanto ao contedo. Dessa forma, estereotipavam-se tambm os

    artistas que agora podiam ser percebidos como produtores ou no de arte social

    revolucionria a partir da expresso e comunicao utilizadas, o que acabaria revelando

    o seu engajamento poltico.

    6 Texto do documento escrito por Carlos Estevam, ento diretor do CPC.

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    Estava assim estabelecido o norte para a produo artstica revolucionria. O

    contedo deveria ser o grande estmulo da produo artstica, j que se dentro de um

    ideal popular houvesse uma preocupao formal estabelecida teramos um

    deslocamento da proposta inicial de aproximao com o povo, significando uma

    alienao em relao causa.

    Essa categorizao da produo artstica provocou descontentamentos de alguns

    artistas que, embora engajados, no produziam arte dentro da perspectiva agora definida

    como popular. Um dos artistas que se posicionou de maneira enftica sobre o assunto

    foi o msico Carlos Lyra. Eu, Carlos Lyra, sou da classe mdia e no pretendo fazer arte do povo, pretendo fazer aquilo que eu fao. Posso ser alienado, mas no posso fugir: [...] fao Bossa Nova, fao teatro [...] a minha msica, por mais que eu pretenda que ela seja politizada, nunca ser uma msica do povo (APUD: NAPOLITANO, 2001, p.30).

    A submisso da forma ao contedo como recurso didtico para promover a

    aproximao com a massa, tornou-se um agente de polarizao de artistas que

    integravam o movimento de revoluo artstica, ao mesmo tempo em que se observa um

    namoro entre a arte ilustrada e a arte revolucionria. Esse dilogo se d, por exemplo,

    entre integrantes da Bossa Nova, como Carlos Lyra e Srgio Ricardo, que comeam a

    inserir em suas produes musicais elementos que revelam certo engajamento poltico.

    Outro cone dessa transio da MPB descompromissada social e politicamente e a

    msica com articulaes ideolgicas foi o compositor Nelson Lins e Barros7.

    Em seus artigos publicados na revista Movimento, produzida pela UNE, Barros

    defendia a renovao da MPB e elogiava a produo musical da ala nacionalista que

    surgia dentro do movimento da Bossa Nova. Em suas publicaes, a principal

    preocupao exposta pelo compositor era com a invaso da msica estrangeira por meio

    dos veculos de comunicao de massa, o que, para ele, ameaava a construo de uma

    identidade musical brasileira.

    Nesse primeiro momento, no entanto, Barros ainda no tinha como preocupao

    central a incorporao de determinados estrangeirismos musicais nas produes

    nacionais, como por exemplo, elementos do jazz na Bossa Nova, pois entendia que

    sendo o gnero pouco difundido entre as massas no contava com grande influncia nas

    camadas populares. O que o incomodava era a propagao das produes internacionais

    que comeavam a ser preferidas nos meios de comunicao em relao s nacionais. 7 Nelson Lins e Barros era integrante do CPC e foi um dos maiores defensores da necessidade da atualizao da Bossa Nova, no que se refere ao contedo de suas letras. Formou com Carlos Lyra uma parceria que rendeu diversas composies gravadas durante a dcada de 60.

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    [...] a nossa msica autntica, regional desaparecer como expresso cultural do povo, tornando-se coisa do passado, conhecida apenas pelos folcloristas, [...] a msica das elites continuar hermtica, sem representar a manifestao do povo, isto , sem ser, propriamente, msica brasileira (e) a msica comercial ser dominada cada vez mais, pela msica americana, por ser esta de melhor apresentao [...] Se no forem encontradas solues para sses problemas, a msica brasileira, no seu sentido tradicional, como expresso autntica do seu povo, poder desaparecer. A situao grave e no se restringe a um problema artstico, mas a problemas de carter social, cultural e poltico. Os compositores conscientes devero ponderar sobre sses problemas e lutar pela sua soluo (BARROS, 1965, p. 26).

    A partir da, as crticas Bossa Nova se tornam cada vez mais severas,

    sobretudo aps o show realizado no Canegie Hall, em Nova York, em 19628, quando

    intensificam-se os questionamentos sobre como seria possvel a formao de uma

    msica essencialmente nacional a partir de um movimento que emergia da apropriao

    de elementos estrangeiros e para os prprios estrangeiros verem e ouvirem

    comercialmente.

    Todo esse impasse sobre as intenes culturais e comerciais da Bossa Nova

    acabou por desencadear uma ruptura entre o grupo, surgindo assim a Nova Bossa9. Essa

    nova ala da Bossa Nova passou, ento, a ser vista como a responsvel pela reformulao

    da msica popular brasileira. [...] A esttica da Bossa Nova original continuou em suas linhas gerais no que havia de bom. O preciosismo tanto dos acordes como da linha meldica cedeu lugar a um expontansmo natural e tradicionalmente brasileiro sem nunca descer ao vulgar ou comercial. A letra no perdeu em poesia e ganhou em contedo social (BARROS, 1965, p.15).

    Alm das mudanas citadas por Barros a poesia mais prxima do contexto

    social; o afastamento da perspectiva puramente comercial com o abandono do

    preciosismo e a aproximao do tradicionalismo brasileiro a msica comeava a

    chegar mais perto de outras reas de criao cultural, como o teatro, por exemplo. Tinha

    incio a a criao do iderio nacional-popular para a msica brasileira.

    1.1 O Teatro como forma de expresso da msica engajada

    Esse reposicionamento da Bossa Nova era o pontap inicial para o surgimento

    de diversos grupos que tinham no engajamento sua principal poltica, como o teatro, que

    foi decisivo para o desenvolvimento dessa nova perspectiva musical que aflorava. A

    partir da, dentro do mesmo contexto ideolgico, comearam a dialogar as trs formas

    8 Esse show foi organizado por Sidney Frey, empresrio da gravadora Audio Fidelity, uma das maiores dos EUA, com o apoio do Itamaraty. 9 Nomenclatura utilizada por Barros (1963, p.15).

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    de expresso: msica, teatro e cinema. Essa unio acabou por ser decisiva na

    consolidao da msica engajada.

    O sincretismo de expresses deu origem a parcerias at ento inusitadas - como

    a de Edu Lobo com o cineasta Ruy Guerra; e os poetas Vincius de Moraes e Jos

    Carlos Capinam com o ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarniere, com quem

    compuseram a trilha da pea Arena conta Zumbi - que contriburam para enriquecer a

    diversidade musical.

    Caetano Veloso tambm manteve relaes estreitas com o teatro no incio de sua

    carreira, com a participao na pea Arena canta Bahia e que mais tarde, entre 1967 e

    1968, estreitar-se-iam ainda mais com a criao do movimento tropicalista.

    Essas relaes entre os atores sociais que mantinham aproximao com outras

    expresses artsticas, principalmente o cinema novo e o teatro, acabaram por servir de

    diretriz esttica e ideolgica, atuando diretamente na produo musical no que diz

    respeito ao seu sentido e significado. Sobre isso diz Srgio Ricardo: No existia um grupo [fechado], havia inicialmente uma perspectiva em que Chico Assis, Rui Guerra e Glauber Rocha tiveram muita influncia em ns todos [da msica]. Ao mesmo tempo que faziam teatro e cinema, estavam ligados msica popular por necessidade. Tanto que os 3 so letristas. Eles eram mais voltados s letras e filosofia, porque o teatro e o cinema abrangem uma rea muito vasta, [...] Conversavam com Carlinhos Lyra, com Geraldo Vandr, comigo, da necessidade de se fazer uma msica de protesto. E davam de uma certa forma as diretrizes culturais para a coisa: era necessrio que no se fizesse msica urbana e que se fosse buscar a fonte no prprio povo para poder falar-lhe das suas coisas (APUD: MELLO: 1976, p. 114-115).

    importante destacar dentro da narrativa de Srgio Ricardo, a nfase dada

    necessidade de no se fazer uma msica urbana. Havia neste momento uma tendncia

    em se afastar da cidade e se aproximar do serto, do morro e do interior como forma de

    buscar a autenticidade da cultura popular.

    O dilogo produzido entre as diversas reas de interesse acabou por ampliar o

    pblico interessado pela MPB e dar suporte consagrao da msica popular brasileira

    como elemento de expresso engajada da cultura nacional. Para isso, o movimento

    recebeu apoio dos meios de comunicao de massa10 e da indstria fonogrfica.

    Estratgias desse tipo acabaram por democratizar cada vez mais a msica, que j

    era vista como a mais popular das expresses artstica. Mais do que o teatro que se 10 A maior contribuio dos veculos de comunicao de massa acontece com a criao dos festivais de msica popular brasileira, que tiveram incio em 1965, na TV Excelsior. O primeiro a ser realizado foi o Festival Nacional de Msica Popular, que deu origem, em 1966, ao Festival de Msica Popular Brasileira (TV Record) e ao Festival Internacional da Cano, organizado pela Secretaria de Turismo da Guanabara e transmitido pela TV Globo. As regras de classificao dos festivais eram variveis, sendo definidas pelas emissoras responsveis.

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    consagrou, segundo Napolitano (1955/1968)11, como espao de catarse e do que o

    cinema que optou pelo vis da autocrtica e reflexo. Alm disso, a infiltrao da msica

    na sociedade devia-se ainda popularizao de adventos da tecnologia como a

    veiculao por meio de compactos simples, LPs, programas de rdio e de televiso.

    O caminho ento era unir a produo musical s outras formas de expresso. E

    foi isso que o teatro fez, quando em 1958 reuniu uma quantidade de pblico jamais vista

    em torno dos palcos brasileiros para assistir pea Eles no usam Black-tie, escrita por

    Gianfracesco Guarnieri e produzida pela companhia do Teatro Arena.

    A pea era mais uma das produes do Teatro Arena, que se enquadrava

    perfeitamente na nova proposta da cultura de engajamento que se construa no pas

    utilizao de autor nacional e foco na realidade social brasileira -. Sobretudo, aps unir-

    se ao Teatro Paulista do Estudante que mantinha relaes estreitas com o Partido

    Comunista , o Teatro Arena passou a ser visto como uma alternativa criativa aos

    problemas de financiamento que atingiam o teatro comercial brasileiro. Mesmo sem uma linha cultural definida, o Arena surgia mais adequado s condies econmicas e sociais. Sem poder se apoiar em figuras de cartaz, em cenrios bem feitos, em peas estrangeiras de sucesso comercial (o avaloir alto) o teatro de Arena, mais cdo ou mais tarde, teria que apoiar sua sobrevivncia na parcela politizada do pblico paulista identificada com aquelas condies econmicas. Um pblico que via muito mais Brasil nos esforos culturais de conscientizao do que nas realizaes externas e desvinculadas.12

    A formao de um pblico mais popular tornou-se uma meta para o Teatro

    Arena a partir do final da dcada de 1950 e durou at o incio da dcada seguinte. A

    idia era facilitar o acesso do povo informao por meio das peas construdas com

    temticas pertinentes. Isso foi possvel somente aps a realizao de diversas excurses

    pelo Rio de Janeiro. Nesse perodo, as peas apresentadas foram Eles no usam Black-

    tie, Chapetuba F.C e Gente como a Gente.

    Em um ano (1959-1960), sob a liderana de Oduvaldo Viana Filho e com o

    apoio de vrios atores, criou-se um elenco que percorreu sindicatos, escolas, favelas e

    organizaes de bairros para levar as produes do Arena s populaes que no

    frequentavam teatro.

    A ideia de produzir espetculos numa esfera universitria e popular acabou por

    fomentar a criao de um ncleo que coordenasse a produo de uma cultura especfica

    11 Marcos Napolitano no ensaio A arte engajada e seus pblicos 12 Texto publicado em, Memorex: elementos para uma histria da UNE. So Paulo: DCE Livre Alexandre Vanuchio Leme, s.d., n.p. ????.

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    destinada propaganda poltica, culminando na fundao do CPC, criado sob a tutela da

    UNE e do ISEB (MOSTAO, 1982, p. 57).

    Com a criao do CPC, o objetivo era garantir uma aproximao entre cultura

    engajada, camadas populares, intelectuais e povo. Mostrava-se assim uma preocupao

    com a difuso das criaes culturais engajadas e com a funo social da arte.

    Essa preocupao se dava, sobretudo, porque alguma coisa nesse engajamento

    verificado no Teatro Arena parecia contraditria aproximao prevista com as

    camadas mais populares da sociedade. As temticas tratadas, embora tivessem como

    centro a realidade social brasileira, eram fomentadas por integrantes da classe mdia,

    em sua maioria universitrios engajados aps o golpe de 1964.

    A fora pretendida com a associao do teatro com a msica no intuito de

    difundir ideologias acaba somente por se concretizar com o desmembramento do CPC,

    aps o Golpe de 64. Mesmo com o desmantelamento do grupo e at o incndio da sede

    da UNE, no Rio de Janeiro, por oficiais paramilitares, os agentes ligados a essas

    organizaes estudantes, artistas e intelectuais continuam engajados na propagao

    de suas ideologias a partir da criao, no final do ano de 1964, do Grupo Opinio,

    integrado, entre outros, por Vianinha, Paulo Pontes, Armando Costa e Ferreira Gullar.

    A primeira ao do Grupo Opinio contra a ditadura militar foi em dezembro de

    1964, logo aps a sua fundao, com o show Opinio13. A apresentao unia msica e

    teatro de forma jamais vista nos palcos brasileiros, pois a trilha sonora no mais era

    encarada como um complemento interpretao, mas como um agente potencializador

    das ideias polticas e sociais.

    O show Opinio trazia cena msicas que contemplavam dilemas da nossa

    sociedade, como a injustia no serto nordestino, a partir da questo dos latifndios. Em

    Borand, Joo do Vale trazia um pouco dessa preocupao. O autor denuncia o

    latifndio como causa da misria do povo nordestino. A reza j no adianta, preciso

    uma ao mais enrgica contra os coroneis. A crtica religiosa tambm est presente na

    composio, retratando a figura divina tanto como espiritual como em forma de lderes

    polticos, de corte populista: Muita gente se arvora a ser Deus e promete tanta coisa pro

    serto.

    13 O Show Opinio foi escrito por Vianinha, Paulo Pontes e Armando Costa, com direo geral de Augusto Boal, direo musical de Dori Caymmi, participao de Joo do Vale cancioneiro nordestino -, Z Kti sambista carioca e Nara Leo ex-musa da Bossa Nova.

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    Em Sina de Caboclo, Joo do Vale, sugere a reforma agrria. Quer ver eu bater

    enxada no cho, com fora, coragem , com satisfao? s me dar terra pr ver como :

    eu planto feijo, arroz e caf; vai ser bom pr mim e bom pr doutor.

    eu mando feijo, ele manda tractor. Vocs vai ver o que produo!

    modstia parte, eu bato no peito: eu sou bom lavrador!

    Em Carcar, Joo do Vale e Jos Cndido reforavam a temtica da misria.

    Aponta que no h de cair do cu nenhuma divindade, ou chuva redentora, ou milagre, a

    no ser a ave que se nega a morrer e busca sustento na misria do serto. Pegando,

    matando e comendo, o carcar desafia a lei natural, mas tambm a poltica e ousa viver

    num cenrio que pouco oferece alm da morte. Carcar come int cobra

    queimada/Quando chega o tempo da invernada/O serto no tem mais roa

    queimada/Carcar mesmo assim num passa fome/Os burrego que nasce na

    baixada/Carcar pega, mata e come A msica popular um dos mais amplos modos de comunicao que o prprio povo criou, para que as pessoas contassem umas s outras, cantando, suas experincias, suas alegrias e tristezas. fato que, na maioria dos casos, esses sentimentos se referem a situaes individuais, a que os compositores conseguem dar amplitude. Mas existem outros problemas, outras tristezas e outras alegrias, no menos profundas e no menos ligadas vida de todo dia. E os compositores como Z Kti, Joo do Vale e Srgio Ricardo, entre outros, falam dessas coisas. Eles revelam que, alm do amor e da saudade, pode o samba cantar a solidariedade, a vontade de uma vida nova, a paz e a liberdade. E que sabe se, cantando essas canes, talvez possamos tornar mais vivos na alma do povo idias e sentimentos que o ajudem a encontrar, na dura vida, o seu melhor caminho (LEO, 1965).14

    A utilizao de plataformas como o teatro, o cinema e a televiso como palanque

    de discurso foi a primeira ao de esquerda contra o regime militar que tomou de assalto

    a sociedade brasileira. Constituia-se a partir da um novo espao de atuao para a

    msica no processo de ampliao do pblico.

    Esse processo de prospeco pelos artistas de classe mdia do pblico das

    camadas mais populares da sociedade se deu pela utilizao de conceitos estticos e

    ideolgicos herdados pelo Grupo Opinio do CPC e inseridos no show Opinio, alm da

    incorporao de um repertrio musical popular. Essas ferramentas deram origem a um

    espetculo formado por canes e depoimentos dados em cena pelos intrpretes, onde a

    inteno era construir um panorama da realidade urbana e rural do pas, orientando

    sempre para a denncia de problemas sociais e para o aproveitamento de formas

    14 Texto escrito por Nara Leo para a contra capa do LP Opinio de Nara, lanado em 1965 pela Philips, P 632.732L.

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    populares de expresso musical, tais como os versos de partido alto e os desafios

    (CAMPOS, 1993, p. 8).

    A resposta do pblico veio em 1 de maio de 1965 quando estreou em So Paulo,

    no Teatro Arena, o espetculo Arena conta Zumbi. Com texto de Augusto Boal e

    Gianfrancesco Guarnieri e composies de Edu Lobo, o espetculo superou todas as

    marcas de pblico, apresentando uma nova postura frente ao golpe de 1964.

    O eixo temtico do espetculo foi motivado por uma composio de Edu Lobo e

    Vincius de Moraes, Zambi no Aoite, apresentada Guarnieri. Vem filho meu, meu

    capito/Ganga-Zumba liberdade/ Zambi lutando, lutador/ Faca cortando, talho sem

    dor.

    A partir da msica, que contava a histria do processo de resistncia

    escravido - que teve como emblema a construo do Quilombo dos Palmares no sculo

    XVII a pea reproduzia as lutas travadas entre negros e brancos e ressaltava o valor

    daqueles que se empenharam em busca da liberdade. No entanto, a histria no parava

    por a, ampliava sua narrativa at 1 de abril de 1964, fazendo referncia ao movimento

    poltico da poca. Para promover esse dilogo, todas as canes que traziam em si forte

    engajamento foram compostas especialmente para a pea (MELLO, 1976, p.126).

    O roteiro da pea tinha o claro objetivo de mostrar o resgate da liberdade por

    parte dos negros, ao mesmo tempo em que deixava claro os motivos da derrocada do

    quilombo, enfatizando como causa as alianas estabelecidas entre negros e comerciantes

    brancos. Sendo assim, Arena conta Zumbi podia ser considerada uma verso teatral do

    fracasso da esquerda brasileira em 1964 contada a partir da ideia de Palmares. Nesse

    caso, pode-se encarar o setor progressista da burguesia, com quem a esquerda havia

    estabelecido alianas, mais tarde revelando-se ausente, como a aliana negativa

    representada pelos comerciantes brancos.

    O espetculo era, portanto, carregado de associaes que remetiam poca da

    ditadura militar. Eram pardias, aluses e discursos oficiais que eram trazidos tona

    para provocar a mobilizao do pblico. Por todo o texto semeiam-se expresses como exterminar a subverso, infiltrao, perigo negro (leia-se vermelho). Pormenores a grande aluso est no destacar-se o momento em que os negros comeam a perder a guerra: a prosperidade de Palmares atrara a ateno dos brancos comerciantes que lhe[s] fornecem armas em troca de levarem, a preo vil, os produtos dos quilombos. Confiantes na produo desse aliado os negros deixam de comprar armas (afinal, s desejam a paz) e ousam aumentar o preo de suas mercadorias. Feridos nos interesses mais sensveis, os brancos comerciantes aliam-se aos senhores de terra na furiosa escalada repressiva (CAMPOS, 1993, p.12).

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    Para marcar ainda mais as posies de negros e brancos no contexto da pea,

    optou-se por utilizar toda a versatilidade dos atores, que eram requisitados para a

    interpretao de diversos personagens. O mesmo ator que se mostrava bom no

    personagem do oprimido, no momento seguinte era mal no papel do opressor. Essa

    dualidade no ficava restrita somente interpretao, mas foi incorporada trilha

    sonora do espetculo. Do lado do oprimido o que se via eram as msicas brasileiras

    mais populares, autnticas, capazes de expressar a emoo de maneira sincera15. Para os

    brancos o que restava era o hino pardio ou canes com o ritmo do i, i, i,

    conhecidas pela alienao e falta de engajamento (CAMPOS, 1993, p.86-87).

    A partir da trilha sonora assim construda, o espetculo conduzia sua narrativa

    pautada na relao entre passado e presente. A msica funcionava como um catalisador

    capaz de despertar os sentimentos do pblico e promover associaes entre o grupo

    social ao qual pertencia naquele momento e o vnculo mantido por este com os negros

    oprimidos do passado. Esse paralelo permitia que todo o processo de luta e opresso

    fosse resgatado pelo espectador, fazendo-o perceber seu papel dentro dessa estrutura

    poltica e social.

    A msica possua tamanha importncia no funcionamento da pea pela

    responsabilidade de promover a integrao entre autenticidade cultural e engajamento.16

    Ficava cada vez mais claro que a contribuio mais ampla da msica para o teatro era,

    sem dvida, torn-lo mais didtico, por meio da interao entre palco e plateia. A

    msica dinamizava o texto e tornava a pea um espetculo.

    1.2 A msica engajada como parte estruturante do cinema novo

    Depois do teatro, chegava a vez do cinema se render fora persuasiva da

    msica. Na poca, no entanto, a stima arte dispunha de pouqussimo prestgio junto ao

    pblico. Isso se dava pela forma como o Cinema Novo tinha estruturado sua proposta,

    ou seja, uma narrativa no-linear que exigia um esforo de decodificao acima da

    15 A essas composies foram inseridos batuques que remetiam s culturas afro-brasileiras. A inteno era promover uma identificao entre os negros representados e o povo brasileiro, oprimido e sofredor, tirando-o assim de uma posio de inrcia para uma atitude de conscincia da necessidade da busca pela liberdade. 16 Ao comentar a importncia das composies de Edu Lobo para a pea, Gianfrancesco Guarnieri disse o seguinte: Edu nego [...] a msica dle msica de hoje, mas no tem nada de quadradinha. msica cheia de tradio, expresso autntica de uma classe que nossa. (JB, 21/05/1965:3).

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    mdia, o que no era de maneira alguma condizente com o nvel scio-cultural da

    populao brasileira da poca.

    Nessa fase, o cinema nacional se propunha a retratar as inmeras diferenas

    entre os diversos grupos sociais que compunham o povo brasileiro, o que tornava as

    representaes complexas, acabando por afastar o pblico dessa forma de expresso.

    No se pode negar, no entanto, que o engajamento era aqui tambm presena constante.

    A questo estava na forma como era apresentado com alegorias, metforas muitas

    vezes complexas demais para serem absorvida por um pblico despreparado.

    O que se observa que essas questes tratadas pelo Cinema Novo passaram a

    ser acompanhadas de uma trilha sonora diferente daquela que permeou a produo

    artstica at a dcada de 50. O que se via antes eram conjunto de msicos, orquestras,

    contratados para construir as trilhas dos filmes. A partir da dcada de 60, percebe-se a

    presena de trilhas compostas e interpretadas por grupos musicais e cantores nacionais

    que faziam parte do circuito cultural engajado da poca. Essa mudana pode ser

    explicada pela falta de verba que no mais permitia a contratao de orquestras ou pela

    aderncia s novas temticas adotadas pelos roteiros.

    A msica passava ento a ser utilizada no mais como coadjuvante da imagem,

    mas como parte estruturante do roteiro, que agora precisava dela para se concretizar de

    forma ampla e profunda. A trilha passava a ser elemento de construo do cenrio e dos

    personagens, que tinham seus aspectos ideolgicos, sociais, culturais e psicolgicos

    cantados e no s mais contados. A integrao entre msica e cinema parece despontar

    a como uma necessidade do grupo cinema-novista. ... O Cinema Novo, mesmo quando a msica tem um carter sinfnico, orquestral, ela muito mais detonadora de um universo cultural a que aquele filme pertence do que propriamente um suplemento de narrao. Eu acho que essa a grande diferena. E eu diria que, de certo modo, a gente deixa de fazer a msica que corresponde imagem e passa a fazer a msica que corresponde aos sentimentos do personagem ou at mesmo s idias do autor. [...ou seja] eu no estou somente sublinhando o que est sendo visto, mas estou tentando dizer alguma coisa sobre o universo cultural e poltico naquele momento, que tinha uma importncia muito grande.17

    Ficava claro que os idelogos do Cinema Novo passaram a compreender a

    msica no como um artifcio, mas como uma estratgia capaz de difundir ideias ao

    mesmo tempo em que caracterizava a realidade apresentada.

    17 Entrevista concedida por Cac Diegues a Irineu Guerrini Jnior, parte integrante dos anexos da sua tese de doutorado intitulada A msica no cinema brasileiro dos anos sessenta: inovao e dilogo. Tese de Doutorado, ECA/USP, So Paulo, 2002.

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    O dilogo entre msica e cinema comea a ser definido com a divulgao do

    manifesto Esttica da Fome, que reunia os princpios estruturadores do Cinema Novo.

    Nele havia destaque para questes que proporcionariam a insero da MPB nas trilhas

    dessa nova fase da produo cinematogrfica brasileira.

    Uma dessas questes apontadas por Glauber Rocha era a fome, que ele entendia

    como principal causa das distores no Brasil e tambm como elemento criativo

    fundamental para o Cinema Novo. Para Glauber, o que diferenciava o Cinema Novo

    daquele feito no resto do mundo eram as temticas produzidas a partir da tenso criada

    pela situao de fome. Nossa originalidade nossa fome e nossa maior misria que

    esta fome, sendo sentida, no compreendida.18.

    Com essa abertura dada msica de protesto, o cinema brasileiro passa a ser

    visto como uma porta para a discusso de temas de interesse nacional e difuso

    ideolgica. Para a MPB, por sua vez, estava criado mais um tablado para sua

    divulgao, alm de estabelecer uma homogeneizao de interesses nas diversas formas

    de expresso artstica.

    A sintonia entre msica e cinema engajados talvez tenha atingido sua maior

    articulao no filme O Desafio19, de 1965, que conta a histria do casal Ada e Marcelo

    que vive os conflitos sociais e econmicos de um Brasil ps-golpe. Toda a discusso

    ideolgica mostrada no filme embalada por uma trilha musical20 que contava com

    compositores conhecidos do circuito engajado, alm de msicas que fizeram parte do

    show Opinio21 e do espetculo Arena conta Zumbi, que marcaram a entrada da msica

    no teatro.

    O filme acaba por se transformar numa arena, onde a utilizao da MPB como

    forma de protesto colocada prova. Em um dos dilogos da pelcula, a discusso

    marcada por uma crtica a respeito do encaminhamento que estava se dando msica

    brasileira. Em um dos trechos, o amigo do protagonista diz: vocs esto usando a

    msica popular num sentido completamente errado, ela pode d mais do que ela , ...

    18 Glauber Rocha no manifesto Esttica da Fome, publicado em 1965. 19 Filme do diretor Paulo Csar Saraceni. 20 Entre as msicas que integravam a trilha sonora do filme, podemos citar Carcar (Joo do Vale e Jos Cndido), Notcia de Jornal (Z Kti), do Show Opinio, Eu vivo num tempo de guerra (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarniere), de Arena Conta Zumbi, alm de De manh (Caetano Veloso), Arrasto (Edu Lobo e Vincius de Moraes), A minha desventura (Carlos Lyra e Vincius de Moraes). 21 Para dar mais veracidade realidade criada para os personagens, o diretor gravou alguns trechos do Show Opinio e utilizou no s as msicas, mas tambm as imagens como artifcio para contextualizar a realidade vivida pelo casal.

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    pio do povo, e completa ...o que precisa espalhar o pessimismo, o sentido trgico

    das coisas, pr que as pessoas criem vergonha na cara e se tornem fortes.

    1.3 A msica popular avana como cultura de massa

    Ainda incipientes no Brasil at a dcada de 50, os meios de comunicao de

    massa no podiam ser reconhecidos como indstria cultural, j que possuam pouca

    organizao e baixo desenvolvimento tcnico. A parca industrializao e urbanizao

    do pas tambm no contribuam para a caracterizao de uma sociedade de consumo,

    corroborando para a no consolidao de uma cultura de massa (LIMA, 1982). Por

    esses motivos, a cultura produzida industrialmente no Brasil nesse perodo e veiculada

    pelos meios de comunicao apresentava-se com algumas particularidades no que diz

    respeito organicidade, abrangncia e funo se comparada quela originada nos

    pases desenvolvidos. O que se observa aqui a presena do que Barbero (1997, p. 178)

    chamou de modelo populista de formao da cultura massiva, onde os meios de

    comunicao de massa atuam mais como elementos mediadores nas relaes entre o

    Estado e as massas urbanas do que como responsveis por fazer emergir uma cultura

    massificada capaz de agir como elemento de integrao.

    Quando em 1927 chega ao Brasil o sistema eltrico de registros sonoros, as

    gravaes comearam a contar com uma qualidade de reproduo que permitia aos

    intrpretes desenvolver novas modalidades de canto popular, distanciando-se do estilo

    operstico adotado pelos intrpretes das dcadas anteriores. Essa popularizao da

    msica criou seus primeiros dolos, entre eles Francisco Alves, Mrio Reis, Aracy

    Cortes e Orlando Silva.

    A expanso do rdio vem ainda contribuir para a divulgao da msica popular.

    A adeso da populao foi tamanha que em poucos anos as emissoras ampliaram suas

    instalaes de modo a realizar shows musicais e receber um pblico cada vez maior.

    Toda essa efervescncia cultural incrementou a indstria fonogrfica e voltou o olhar de

    empresas estrangeiras para o mercado brasileiro.22

    A ampliao da abrangncia da msica, promovida pelos veculos de

    comunicao de massa, sobretudo o rdio, proporcionou uma miscigenao dos

    gneros, a comear do mais popular deles, o samba. O ritmo foi deixando seus redutos

    22 De 1933 at o fim da Segunda Guerra Mundial, a produo fonogrfica brasileira esteve concentrada nas mos de trs grandes empresas, a Odeon, a RCA Victor e a Columbia.

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    tnicos de origem, aproximando-se da classe mdia carioca. Ao lado do rdio,

    compositores como Almirante, Ary Barroso, Custdio Mesquita e Noel Rosa foram

    responsveis por mediar essa circulao. Passa a valer ai os versos da cano de Noel

    Rosa em que diz O samba na realidade/No vem do morro nem da cidade (...) Nasce

    no corao.23

    A maior penetrao do samba no mercado musical brasileiro imps algumas

    reformulaes ao gnero, que aos poucos foi passando por um processo de refinamento

    e intelectualizao. O gnero, que at ento era classificado pelos intelectuais como uma

    msica de carter tnico, transforma-se em smbolo nacional (VIANNA, 1995, p.32).

    O discurso nacional-popular evocado pelas composies, marcado pelas idias

    de identidade nacional e pela brasilidade passou a ser uma constante nas composies

    da msica popular. Um exemplo a msica Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, um

    samba exaltao, que revelava o que Mrio de Andrade definiu como o ltimo estgio

    da formao do msico nacionalista, a fase da inconscincia nacional (CONTIER,

    1985, p. 29).

    Esse discurso, por sua vez, vinha acompanhado do repertrio da malandragem

    que se apresentava como um contra discurso ideologia dominante que tentava a todo

    custo, durante o governo Vargas, estimular o discurso ufanista-nacionalista. Os esforos

    do governo para consolidar o suporte simblico do Estado Novo no foram suficientes e

    enquanto os militares lutavam para incutir na mente da populao a ideologia do

    trabalhismo, Silvio Caldas cantava tenho orgulho de ser to vadio.24

    A falta de adeso dos compositores aos interesses ideolgicos d