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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO Elmo de Souza Lima FORMAÇÃO CONTINUADA DE EDUCADORES/AS: AS POSSIBILIDADES DE REORIENTAÇÃO DO CURRÍCULO NO SEMIÁRIDO Teresina – PI 2014

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Formação de Professores no Semiárido

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU CENTRO DE CINCIAS DA EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO DOUTORADO EM EDUCAO

    Elmo de Souza Lima

    FORMAO CONTINUADA DE EDUCADORES/AS: AS POSSIBILIDADES DE REORIENTAO DO CURRCULO NO SEMIRIDO

    Teresina PI

    2014

  • ELMO DE SOUZA LIMA

    FORMAO CONTINUADA DE EDUCADORES/AS: AS POSSIBILIDADES DE REORIENTAO DO CURRCULO NO SEMIRIDO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal do Piau, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Educao.

    Linha de Pesquisa: Formao Docente e Prtica Educativa

    Orientador: Prof. Dr. Jos Augusto de Carvalho Mendes Sobrinho.

    Teresina PI

    2014

  • ELMO DE SOUZA LIMA

    FORMAO CONTINUADA DE EDUCADORES/AS: AS POSSIBILIDADES DE REORIENTAO DO CURRCULO NO SEMIRIDO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal do Piau, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Educao.

    Tese aprovada em: 31 / 07 / 2014

    BANCA EXAMINADORA:

    Prof. Dr. Jos Augusto de Carvalho Mendes Sobrinho (UFPI/CCE) Orientador

    Profa. Dra. Rita de Cssia Cavalcanti Porto (UFPB) Examinadora externa

    Prof. Dr. Edmerson dos Santos Reis (UNEB) Examinador externo

    Prof. Dr. Antonio de Pdua Carvalho Lopes (UFPI/CCE) Examinador Interno

    Profa. Dra. Ivana Maria Lopes de Melo Ibiapina (UFPI/CCE) Examinadora Interna

  • AGRADECIMENTOS

    minha famlia, principalmente minha companheira Ana Clia de Sousa Santos e meu filho Rafael de Sousa Lima, pela compreenso e o carinho concedido no processo de construo e reconstruo desse trabalho, partilhando as angstias e as alegrias inerentes construo do conhecimento cientfico;

    Ao Prof. Dr. Jos Augusto de Carvalho Mendes Sobrinho pela confiana, companheirismo e a dedicao no processo de orientao, assim como pelas trocas de experincias estabelecidas durante a construo desse trabalho de pesquisa;

    s professoras da Escola Municipal Liberato Vieira, pela possibilidade de convivncia, trocas de experincias, aprendizados mtuos e o compartilhamento de sonhos e utopias em torno da construo de um projeto educativo crtico e contextualizado no semirido;

    diretora da Escola Municipal Liberato Vieira, Reginalda Alves Pereira, pelo esforo e dedicao para que o projeto de formao-investigao pudesse ser realizado, possibilitando transformaes significativas na prtica educativa e curricular da escola;

    Secretaria Municipal de Educao de Ipiranga, pelo apoio concedido na realizao do projeto de formao-investigao;

    s amigas Ivnia Freitas e Vanderla Andrade, pelos dilogos fecundos e as trocas de experincias acerca das possibilidades de construo de uma proposta curricular contextualizada no semirido;

    s professoras Ivana Maria Lopes de Melo Ibiapina (UFPI), Antonia Edna Brito (UFPI) e Rita de Cssia Cavalcanti Porto (UFPB) e ao professor Edmerson dos Santos Reis (UNEB), pelas valiosas contribuies dadas durante a banca de qualificao do trabalho;

    Ao Programa de Ps-Graduao em Educao da UFPI e CAPES (Coordenao de Aperfeioamento Pessoal do Ensino Superior) pela oportunidade de vivenciar a experincia do Estgio de Doutorado Sanduche na Universit degli Studi di Verona, fundamental para a nossa formao enquanto professor/pesquisador;

    Lorena Raquel, aluna do Curso de Pedagogia da UFPI, que nos auxiliou durante o processo de formao-investigao e compartilhou das reflexes desta pesquisa;

    minha amiga Valdirene Gomes pelas trocas de experincias e o apoio concedido na relao com o Programa de Ps-Graduao em Educao durante o perodo em que estive na Itlia.

  • RESUMO

    Os estudos crticos da educao trouxeram inmeras contribuies construo de propostas educativas e curriculares voltadas ao reconhecimento e valorizao dos saberes e prticas culturais dos diferentes grupos sociais e produo de conhecimentos que possibilitem a transformao social. No semirido brasileiro, os movimentos e organizaes sociais apoiaram-se nestes pressupostos tericos e metodolgicos crticos para sugerir a reorientao dos projetos educativos institudos na regio centrados na reproduo de saberes e valores que, por um lado, nega as experincias dos sertanejos e, por outro, no favorece a emancipao dos diferentes grupos sociais historicamente marginalizados. Diante desse contexto, a Rede de Educao no Semirido (RESAB) vem desenvolvendo, nos ltimos dez anos, um movimento em defesa da construo de projetos educativos contextualizados que valorizem os saberes e as prticas culturais dos grupos sociais e possibilitem a produo de conhecimentos voltados emancipao. No entanto, o desenvolvimento de projetos educativos crticos e contextualizados est associado implementao de polticas de formao de educadores que favoream a compreenso crtica do contexto scio-histrico e cultural e o desenvolvimento de prticas educativas fundadas nos princpios polticos e epistemolgicos crtico-emancipatrios. A partir dessa preocupao, nossa pesquisa teve como objetivo investigar como as reflexes crticas desenvolvidas a partir da formao-investigao possibilitam a reorientao do currculo na perspectiva da contextualizao no Semirido. Nas reflexes sobre a formao continuada dialogamos com os estudos de Freire (1992, 2005, 2009), Candau (1996), Giroux (1986, 1997), dentre outros. Na discusso sobre as teorias do currculo e as epistemologias que norteiam a reorientao curricular crtica, nos fundamentamos nos trabalhos de Apple (1982), Boaventura Santos (1989), Moreira (2000, 1990), Pacheco (2006), Saul e Silva (2011), Silva (1999, 2001), McLaren (2000), dentre outros. A pesquisa foi desenvolvida na Escola Municipal Liberto Vieira, da zona rural do municpio de Ipiranga, a partir das contribuies terico-metodolgicas da pesquisa-ao crtica, com a realizao de Rodas de Dilogo voltadas investigao crtica das prticas educativas e do contexto sociocultural no qual a escola est situada. A partir da pesquisa-ao crtica foi possvel problematizar o olhar crtico das educadoras sobre o contexto scio-histrico e cultural da comunidade, bem como sobre projeto educativo da escola, favorecendo a identificao dos desafios e possibilidades quanto reorientao da proposta pedaggica e curricular na perspectiva da contextualizao e da interdisciplinaridade, comprometida com a formao crtica dos educandos.

    Palavras chave: Formao continuada. Reorientao curricular. Contextualizao. Semirido.

  • ABSTRACT

    Critical studies from education have brought several contributions for the construction of educational and curricular proposals directed to the recognition and appreciation of knowledge and cultural practices of different social groups and for the production of knowledge that enable social change. In the Brazilian semiarid, social movements and organizations have relied on these critical theoretical and methodological assumptions to suggest the reorientation of educational projects established in the region centered on the reproduction of knowledge and values that, in one hand, denies the experiences of backland, and in another does not favor the emancipation of the diverse social groups historically marginalized. In this context, the Education Network in Semiarid (RESAB) has been developing, in the last ten years, a movement in defense of building contextualized educational projects that enhance the knowledge and cultural practices of social groups and enable the production of knowledge aimed at emancipation. However, the development of critical and contextualized educational projects is associated with the implementation of educator training policies that encourage critical understanding of the socio-historical and cultural context and the development of educational practices grounded in political and epistemological critical-emancipatory principles. From this concern, our research aimed to investigate how critical reflections developed from the training - research enables the reorientation of the curriculum in the perspective of the contextualization in the Semiarid. In the reflections over the continuing education we dialogued with studies from Freire (1992, 2005, 2009), Candau (1996), Giroux (1986, 1997), among others. In the discussion about the theories of curriculum and the epistemologies that guide critical curriculum guide, we based our work on Apple (1982), Boaventura Santos (1989), Moreira (2000, 1990), Pacheco (2006), Saul and Silva (2011), Silva (1999, 2001), McLaren (2000), among others. The research was developed at the Municipal School Liberto Vieira, at the rural municipality of Ipiranga, from the theoretical and methodological contributions of critical action research, with the completion of Dialogue Wheels focused on critical research on educational practices and the sociocultural context in which the school is located. From the action critical research was possible to problematize the critical look of the educators on the socio-historical and cultural context of the community, as well as the educational project of the school, favoring the identification of challenges and possibilities regarding the reorientation of pedagogical and curricular proposal in the perspective of contextualization and interdisciplinarity, committed with the critical education of the students.

    Keywords: Continuing Education. Reorientation Curriculum. Contextualization. Semiarid.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 01: Procedimentos terico-metodolgicos da pesquisa.................................................45

    Figura 02: Etapas do processo de formao-investigao........................................................48

    Figura 03 Mapa do Piau........................................................................................................50

    Figura 04: Organizao dos eixos de anlises..........................................................................66

    Figura 05: Organizao das categorias e eixos temticos.........................................................68

    Foto 01 Fachada da Escola Municipal Liberato Vieira..........................................................55

    Foto 02 - Dilogos sobre o contexto histrico e cultural..........................................................57

    Foto 03 - Reflexo crtica sobre a prtica educativa.................................................................58

    Foto 04 - Reconstruo da prtica educativa............................................................................58

    Foto 05 - Intercmbio de experincia na EFADE....................................................................58

    Foto 06 - Intercmbio de experincia na Ecoescola.................................................................58

  • LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    ASA BRASIL - Articulao no Semirido Brasileiro

    CAPES - Coordenao de Aperfeioamento Pessoal do Ensino Superior

    CEBs - Comunidades Eclesiais de Base

    EFADE Escola Famlia Agrcola Dom Edilberto

    EFPT - Escola de Formao Paulo de Tarso

    EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria

    FMI Fundo Monetrio Internacional

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IRPAA - Instituto Regional da Pequena Agropecuria Apropriada

    LDB - Lei de Diretrizes de Base da Educao

    MEC - Ministrio da Educao

    MOC Movimento de Organizao Comunitria

    NSE - Nova Sociologia da Educao

    RESAB - Rede de Educao no Semirido Brasileiro

    UESPI - Universidade Estadual do Piau

    UFPI - Universidade Federal do Piau

    UNEB - Universidade do Estado da Bahia

    UNICEF - Fundo das Naes Unidas para a Infncia

    UNDIME - Unio Nacional dos Dirigentes Municipais de Educao

  • SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................

    CAPTULO I A PRODUO DO CONHECIMENTO EM EDUCAO: REFLEXES SOBRE AS BASES EPISTEMOLGICAS CRITCO-EMANCIPATRIAS........................................................................................................ 1.1 O ato de pesquisar e a produo do conhecimento...................................................

    1.2 Teoria do conhecimento: reflexes iniciais................................................................

    1.2.1 A influncia da filosofia positivista na produo do conhecimento........................ 1.2.2 A produo do conhecimento na perspectiva pragmtica........................................ 1.2.3 A produo do conhecimento na perspectiva crtico-emancipatria.......................

    1.3 A pesquisa-ao crtica como estratgia de produo do conhecimento crtico-emancipatrio............................................................................................................

    1.3.1 Pressupostos terico-metodolgicos da pesquisa-ao crtico-emancipatria......... 1.3.2 Concepo terico-metodolgica da pesquisa.........................................................

    1.4 Aspectos scio-histricos, polticos e culturais do campo da pesquisa.................

    1.4.1 Semirido piauiense: caracterizao scio-histrica, poltica e cultural.................. 1.4.2 Caractersticas geogrficas e socioculturais do municpio de Ipiranga....................

    1.5 Caracterizao da Escola e dos sujeitos da pesquisa............................................. 1.6 Procedimentos de construo dos dados da pesquisa............................................

    1.6.1 Memorial formativo................................................................................................. 1.6.2 Dirio de Campo......................................................................................................

    1.7 Organizao e anlise dos dados da pesquisa.........................................................

    CAPTULO II FORMAO CONTINUADA DE EDUCADORES/AS: OS PERCURSOS TERICO-METODOLGICOS CONSTRUDOS NO PROCESSO DE REORIENTAO CURRICULAR.......................................................................... 2.1 Uma anlise das bases epistemolgicas que norteiam a formao de educadores/as....

    2.2 A formao do/a educador/a enquanto intelectual crtico........................................

    2.3 A pesquisa-ao crtica como possibilidade de formao do/a educador/a como intelectual.........................................................................................................................

    2.4 A formao continuada crtica como possibilidade de reorientao curricular....

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  • 10

    2.4.1 A formao continuada e o processo de reorientao do currculo no semirido....

    CAPTULO III DIMENSES POLTICAS E EPISTEMOLGICAS DO CURRCULO: AS POSSIBILIDADES DE REORIENTAO CURRICULAR NO SEMIRIDO............................................................................................................... 3.1 A constituio do campo do currculo: diferentes interesses em jogos................... 3.1.1 Aspectos histricos e epistemolgicos do currculo................................................... 3.1.2 Teorias do currculo: diferentes concepes e prticas ..............................................

    3.2 A produo do currculo crtico-emancipatrio........................................................

    3.2.1 O currculo contextualizado no semirido na perspectiva crtico-emancipatria....

    3.3. O Processo de reorientao do currculo no contexto do semirido.......................

    3.3.1 Uma anlise da proposta curricular: ressignificando a concepo de currculo e do conhecimento escolar..........................................................................................

    3.3.2 Os dilemas da fragmentao e descontextualizao do currculo............................

    3.4 Rediscutindo o processo de seleo e organizao do conhecimento escolar........

    3.4.1 As estratgias de articulao e contextualizao do conhecimento escolar................

    CONSIDERAES FINAIS............................................................................................ REFERNCIAS................................................................................................................. APNDICES....................................................................................................................... ANEXOS.............................................................................................................................

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  • INTRODUO

    A sociedade brasileira constituda por uma diversidade tnico-cultural e social intensa, aspecto que a torna uma das mais multi-tnico-culturais do mundo. Se, por um lado, este aspecto considerado positivo pelas possibilidades de trocas de experincias, valores e saberes entre esses povos/grupos/comunidades, por outro temos o desafio de construir projetos educativos que tenham a capacidade e o compromisso de reconhecer essa riqueza cultural, utilizando-a como um importante instrumento poltico-pedaggico no processo de formao de cidados crticos capazes de conviver e respeitar as pessoas e suas diferenas culturais, tnicas e polticas.

    No entanto, o que prevalece no seio dessa sociedade pluricultural so processos de massificao cultural difundidos tanto pela mdia quanto pelas instituies de ensino, que insistem em negar as diversidades e as diferenas em nome da construo de padres culturais homogneos, utilizando-se como referncia os arqutipos da cultura americana e/ou europeia. So prticas que negam e/ou reprimem as culturas produzidas historicamente pelos diversos grupos sociais (camponeses, indgenas, afrodescendentes, homossexuais, mulheres, dentre outros) que constituem a sociedade brasileira (CANEN, 2001).

    No semirido, foco de nossa pesquisa, a maioria das prticas educativas institudas nas escolas, alm de no reconhecer os diferentes saberes e prticas socioculturais produzidas pelos vrios grupos sociais, reproduz ideologias carregadas de preconceitos e esteretipos que reforam a representao dessa regio como espao de pobreza, misria e improdutividade, negando todo o potencial dessa regio e do seu povo (LIMA, 2011).

    O semirido brasileiro uma regio de clima meio rido, marcada por irregularidades de chuvas, tendo a caatinga como vegetao predominante. Envolve 1.132 municpios onde vivem mais de 22 milhes de pessoas, que representam 11,8% da populao brasileira. uma regio com uma enorme diversidade sociocultural, ambiental e tnica; no entanto, tornou-se conhecida nacionalmente por meio de discursos e imagens que evidenciavam o alto ndice de pobreza e misria de sua populao, fruto das estratgias polticas e econmicas associadas ao uso poltico da pobreza e da fome como meio de alimentar grandes esquemas de corrupo e enriquecimento, denunciado pelos movimentos sociais com o lema de indstria da seca 1.

    1 A indstria da seca est associada s estratgias polticas utilizadas pelos coronis no Nordeste centrada na propagao da

    imagem da fome e da misria como meio de sensibilizar e pressionar governos e organismos internacionais com o objetivo de obter recursos que, em grande parte, abasteciam os cofres das elites regionais.

  • 12

    Diante desse contexto, os movimentos e organizaes sociais do campo desenvolveram, a partir da dcada 1980, um conjunto de lutas e aes na rea da educao popular2, tendo a formao poltica e a mobilizao social como antdotos para se opor as lgicas de dominao poltica, econmica e cultural impostas na regio desde o processo de colonizao, marcada por prticas autoritrias, assistencialistas e clientelistas. No bojo deste trabalho, ganhou fora a ideia de construir um projeto de educao popular que envolvesse as escolas pblicas neste movimento de libertao dos sertanejos, atravs da implementao de atividades formativas que os despertassem para as riquezas e os potenciais do serto, ignorados pelas populaes locais, bem como pelo estado na construo das polticas de desenvolvimento regional.

    Na viso dos movimentos sociais vinculados s lutas do campo, a educao em desenvolvimento no semirido, alm de pouco contribuir na construo de alternativas de desenvolvimento sustentvel, ignora sua diversidade cultural, social e econmica, assim como nega seu potencial humano e natural. Com isto, teve incio na dcada de 1990 os primeiros debates em torno da necessidade de descolonizar as prticas educativas em desenvolvimento no semirido.

    A partir das experincias de educao popular voltadas produo de conhecimentos e tecnologias adaptadas s condies geoambientais da regio, as organizaes e movimento sociais do campo passaram a questionar o modelo de educao escolar implementado no semirido e a reivindicar a constituio de projetos educativos que dialoguem com os saberes socioculturais dos sertanejos, favorecendo a compreenso crtica desse contexto e a produo de conhecimentos comprometidos com a melhoria da qualidade de vida da populao.

    Com o intuito de ampliar o debate em torno de uma proposta de educao voltada ao contexto do semirido, as organizaes e movimentos sociais realizaram, em 2000, o I Seminrio de Educao no Contexto do Semirido, em Juazeiro BA, em parceria com o Fundo das Naes Unidas para a Infncia (UNICEF), a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e o Instituto Regional da Pequena Agropecuria Apropriada (IRPAA). Neste evento foi criada a Rede de Educao do Semirido Brasileiro (RESAB), uma articulao que

    2 A educao popular surgiu, no Brasil, a partir das ideias de Paulo Freire e est associada aos processos poltico-pedaggicos e metodolgicos utilizados pelas organizaes sociais, nas suas dinmicas de formao e mobilizao social, com o intuito de possibilitar a construo coletiva de conhecimentos e saberes que desenvolvam nas pessoas a capacidade de anlise crtica sobre a realidade, bem como propiciem o aprimoramento das estratgias de luta que favoream a construo de novos processos de emancipao e transformao social.

  • 13

    envolve entidades governamentais e no-governamentais e tem como objetivo fortalecer e expandir o debate sobre a proposta de educao para a convivncia no semirido3.

    A criao da Rede favoreceu a articulao de novos sujeitos sociais, possibilitando a construo de dilogos importantes com escolas pblicas, universidades, ncleos de pesquisas e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria (EMBRAPA - Semirido) com o intuito de ampliar a produo de conhecimento acerca das condies socioambientais, econmicas, polticas e culturais da regio, bem como dos processos educativos e das propostas de formao de educadores/as voltados para esse contexto. (LIMA, 2010).

    Com o trabalho desenvolvido pela RESAB, as experincias de educao contextualizada foram ampliadas, desencadeando novos processos de reflexo sobre a ao do sujeito na sociedade, contribuindo para a apropriao de sua histria, para a compreenso da relao homem/mundo e para a valorizao dos seus saberes e tradies culturais. Entretanto, no processo de construo da poltica de educao contextualizada necessrio que os professores desconstruam suas concepes acerca da educao e da cultura do semirido, fundada no pensamento hegemnico, construdo a partir do iderio da cincia moderna eurocntrica, exigindo, portanto, que se repense as propostas de formao ofertadas a estes educadores.

    Nessa perspectiva, o debate sobre a educao contextualizada no semirido passa pelo reconhecimento das diversidades socioculturais que compem o semirido, bem como das diferentes prticas sociais responsveis pela produo de diversos conhecimentos e saberes que possibilitam formas singulares, especficas e complexas de ser, pensar e atuar no serto, historicamente ignoradas, invisibilizadas e silenciadas pelas narrativas produzidas no campo da cincia moderna, assim como nos discursos e prticas curriculares institudos nas escolas.

    A proposta de educao contextualizada no semirido tem o desafio de problematizar os pressupostos polticos e epistemolgicos que norteiam a produo do conhecimento no mbito da escola. Ou seja, antes de questionarmos os modos de fazer a educao, preciso compreender e desconstruir os padres cientficos e culturais que orientam a compreenso da educao e da produo do conhecimento.

    Sendo assim, as lutas empreendidas pelas instituies e movimentos sociais que atuam na RESAB esto associadas, acima de tudo, desconstruo dos pilares da cincia moderna, que deu sustentao aos projetos educativos e curriculares em grande parte das escolas brasileiras. Este modelo de cincia assumiu historicamente uma postura autoritria e 3 Uma perspectiva cultural orientadora da promoo do desenvolvimento sustentvel no Semirido, cuja finalidade a

    melhoria das condies de vida e a promoo da cidadania, por meio de iniciativas socioeconmicas e tecnolgicas apropriadas, compatveis com a preservao e renovao dos recursos naturais. (SILVA, 2006a, p. 272).

  • 14

    colonizadora, voltada difuso de um tipo de conhecimento e de cultura que respaldam os interesses polticos, econmicos e culturais dos grupos dominantes. Desse modo, os esforos esto concentrados na construo de uma epistemologia crtica que conceba a produo do conhecimento escolar atravs de prticas dialgicas, envolvendo os diferentes sujeitos e saberes produzidos no mbito das prticas sociais, tendo em vista que, para Silva (1999), o no reconhecimento dessas formas de saber implica deslegitimar as prticas sociais a elas atreladas e, portanto, promover a excluso social de classes e grupos que as constroem.

    Deste modo, este trabalho de pesquisa surge com o propsito de contribuir com as lutas empreendidas pela RESAB na perspectiva de combater os processos de colonizao e neocolonizao do saber institudos nas escolas do semirido, atravs da construo de prticas educativas crticas que problematizem os pressupostos polticos e epistemolgicos que norteiam o pensar/fazer da educao, criando novos referenciais terico-prticos que, utilizando-se dos estudos das teorias crticas da educao, reconheam e dem visibilidade aos conhecimentos e prticas socioculturais dos sertanejos como possibilidade de construo de projetos coletivos voltados convivncia socioambiental, cultural, organizativa e poltica, fundada nos princpios da justia social, solidariedade, cooperao e igualdade.

    Entretanto, a construo dessa proposta de educao contextualizada no semirido passa pelo desenvolvimento de projetos formativos que problematizem as concepes construdas pelos/as educadores/as4 sobre o semirido, bem como acerca das prticas educativas institudas muitas vezes de forma fragmentada, descontextualizadas e acrtica.

    De acordo com os estudos de Candau (1996), Freire (1995), Mendes Sobrinho (2006) e Nvoa (1992), dentre outros, as polticas de formao de educadores/as desenvolvidas, historicamente, basearam-se no modelo da racionalidade tcnica, constituindo-se numa formao fragmentada e especializada, vinculada ao cientificismo cartesiano, que v o professor como um tcnico responsvel pela reproduo dos conhecimentos cientficos de forma mecnica e acrtica. So propostas que no reconhecem as necessidades pedaggicas vivenciadas pelos/as educadores/as e nem sempre tm abertura para dialogar com os valores culturais que permeiam as prticas educativas e culturais do serto nordestino.

    Diante desse contexto, a formao docente se constitui num dos maiores desafios implementao de prticas educativas contextualizadas no semirido. Com isto, a RESAB

    4 Estamos utilizando a o termo educador/a, ao invs de professor/a, porque, a partir das orientaes polticas freireanas, o/a educador/a precisam assumir o compromisso tico-poltico na formao crtica de seus educandos e com a construo de uma educao de qualidade. O educador, na viso de Freire (2005), aquele profissional que busca estabelecer um dilogo com os educandos, respeitando seus saberes e prticas culturais, concebendo-os como sujeitos histricos que trazem em sua essncia a capacidade de ser mais.

  • 15

    assumiu, a partir de 2002, o compromisso poltico de lutar pela construo de novos processos formativos que preparem os educadores para desenvolver um trabalho direcionado realidade sociocultural, poltica e econmica do semirido. Essas experincias so desenvolvidas na perspectiva da contextualizao das prticas educativas e da reorientao do currculo, tendo como referncia as necessidades socioculturais das comunidades.

    As reflexes que permeiam esta tese tm uma relao intrnseca com as nossas

    experincias e prticas sociais, polticas e culturais: primeiro, traz as marcas das minhas experincias como sertanejo construdas no semirido baiano, onde vivenciamos, tambm na escola, as discriminaes, os preconceitos, as negaes e silenciamentos quanto aos saberes e as prticas sociais construdas na relao com o ambiente fsico, social e cultural do serto.

    Por outro lado, na condio de educador de escola no campo, tive a oportunidade de compreender como estes mecanismos de negao das diferenas e das diversidades de saberes e culturas ganham fora no mbito das polticas e prticas educativas e curriculares, influenciados pelos pensamentos polticos, pedaggicos e cientficos eurocntricos, que norteiam as polticas educacionais, a organizao do sistema educacional e os processos de formao dos profissionais da educao.

    No entanto, o envolvimento com os movimentos sociais do campo, as lutas polticas das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as experincias de educao popular, nas quais tivemos os primeiros contatos com o iderio poltico e filosfico marxista e com a pedagogia freireana, foram fundamentais para a construo de uma viso crtica acerca desse modelo de educao, descontextualizado e acrtico, e a construo de novos sonhos e utopias quanto ao desenvolvimento de projetos educativos crticos e transformadores no semirido. Dessa forma, conviver com essas experincias foi fundamental para ressignificar nossa forma de pensar a educao, concebendo-a como uma ao poltica voltada para a compreenso crtica da realidade e a emancipao dos sujeitos enquanto agentes de transformao da realidade.

    Entretanto, a participao mais intensa nas lutas em defesa de um semirido justo e solidrio ocorreu a partir de 2002, quando passamos a integrar o grupo de educadores populares da Escola de formao Paulo de Tarso (EFPT)5, funo que exercemos at o final de 2006. Na EFPT tivemos a oportunidade, num primeiro momento, de coordenar um projeto na rea da educao popular, voltado para a formao de trabalhadores rurais com o intuito de despertar-lhes um olhar crtico sobre a realidade do meio rural, sensibilizando-os quanto

    5 A Escola de Formao Paulo de Tarso uma organizao no governamental que, h mais de 25 anos, atua na rea da educao popular, promovendo formao poltica e organizativa s lideranas comunitrias, vinculadas aos movimentos sociais do campo no Estado do Piau.

  • 16

    necessidade de se organizarem para exigir polticas pblicas voltadas ao atendimento das especificidades do semirido.

    No perodo de 2003 a 2006, assumimos o desafio de coordenar, na Escola de Formao Paulo de Tarso, o Projeto de formao continuada de educadores no Semirido, envolvendo 10 (dez) municpios6 das microrregies de Valena e Oeiras, a partir das orientaes terico-metodolgicas da pedagogia freireana. O trabalho tinha o propsito de fomentar reflexes crticas sobre os processos educativos, contribuindo na construo de prticas educativas contextualizadas capazes de valorizar os saberes e a cultura da regio e de fomentar novas alternativas de desenvolvimento sustentvel (LIMA, 2011).

    Alm disso, no perodo de 2003 a 2006, participamos da Articulao no Semirido Brasileiro (ASA BRASIL), articulao poltica que rene cerca de 700 organizaes no governamentais, igrejas e movimentos sociais com a finalidade de contribuir com a implementao de aes que fomentem o desenvolvimento de polticas associadas convivncia com o semirido. (ASA, 2001).

    Com o intuito de aprofundar as discusses e reflexes terico-metodolgicas acerca da educao contextualizada e da formao crtica de educadores no semirido, realizamos, no perodo de 2007 e 2008, a pesquisa do Mestrado em Educao, na Universidade Federal do Piau, com o ttulo: A formao continuada de professores no Semirido: valorizando experincias, reconstruindo valores e tecendo sonhos. Este trabalho teve como objetivo investigar como essa formao tem valorizado os saberes docentes construdos a partir da vivncia cotidiana no semirido, utilizando-os no processo de problematizao e contextualizao das prticas formativas.

    Nos ltimos anos, a partir dos estudos realizados no Mestrado em Educao e no mbito da RESAB, participamos da elaborao do projeto poltico-pedaggico de dois Cursos de Especializao em Educao Contextualizada no Semirido realizados na regio de Picos e So Raimundo Nonato, numa parceria entre a RESAB e a Universidade Estadual do Piau. Contribumos ainda na produo de um livro sobre o Semirido piauiense e a educao contextualizada que est sendo utilizado tanto durante esses cursos como tambm nos eventos de formao desenvolvidos pela Rede.

    6 Os municpios contemplados neste projeto de formao foram: Microrregio de Valena - Pimenteiras, Inhuma, Novo Oriente, Lagoa do Stio, Ipiranga; Microrregio de Oeiras: So Joo da Varjota, Oeiras, Santa Rosa, Tanque do Piau e Colnia do Piau.

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    Considerando esse envolvimento poltico-pedaggico com proposta de educao contextualizada no semirido, fruto das experincias de militante e educador popular7 junto s organizaes e movimentos sociais, bem como de pesquisador nesta rea, buscamos com esse trabalho de pesquisa aprofundar nossas reflexes sobre a formao continuada, articulando-a com a construo do currculo escolar voltado ao contexto do semirido, a fim de produzir novas reflexes tericas e conhecimentos cientficos que contribuam com as discusses desenvolvidas tanto pela Rede de Educao no Semirido Brasileiro quanto pelas universidades e organizaes sociais que atuam na construo de novos projetos de educao para as escolas do semirido.

    Neste caso, a proposta de formao-investigao em desenvolvimento vai ao encontro desse esforo da RESAB no sentido de produzir novos conhecimentos polticos e pedaggicos que dem consistncia aos projetos educativos desenvolvidos na perspectiva da educao contextualizada e tem como problemtica de estudo: Como as reflexes crticas construdas no mbito da formao continuada acerca do contexto sociohistricos e culturais e das prticas educativas possibilitam a reorientao curricular no contexto do semirido?

    Nessa perspectiva, com essa pesquisa buscamos investigar como as reflexes crticas desenvolvidas a partir da formao-investigao possibilitam a reorientao do currculo na perspectiva da contextualizao no Semirido, a fim de produzir novas reflexes tericas que contribuam na construo de projetos educativos contextualizados.

    O trabalho de investigao foi desenvolvido tambm a partir dos objetivos especficos subsequentes que nortearam as etapas da pesquisa: criar espaos que fomentem a reflexo crtica sobre o contexto scio-histrico e cultural do semirido e suas interfaces com o projeto curricular; possibilitar a problematizao das prticas educativas desenvolvidas pelos educadores visando construo de propostas curriculares contextualizadas com a realidade sociocultural do semirido; compreender as necessidades formativas dos/as educadores/as no processo de construo dos projetos curriculares voltados para o contexto sociohistrico e cultural do semirido; construir novos referenciais terico-metodolgicos e polticos voltados ao desenvolvimento de prticas educativas contextualizadas; desenvolver estratgias terico-metodolgicas voltadas produo coletiva do currculo contextualizado.

    7 A expresso Educador Popular est associada aos profissionais da educao que atuam nos processos formativos e educativos vinculados aos movimentos e organizaes sociais e nas organizaes no governamentais. um profissional que assume o compromisso poltico de contribuir na formao crtica da populao, visando transformao social da sociedade. Sua atuao voltada para os interesses econmicos, polticos, sociais e culturais das camadas populares da sociedade.

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    O processo de investigao foi desenvolvido na Escola Municipal Liberato Vieira, zona rural do municpio de Ipiranga-PI, a partir das contribuies da abordagem qualitativa, tendo a pesquisa-ao crtica como principal referencial terico-metodolgico. Constituiu-se de atividades, denominadas de Rodas de Dilogos, que favoreceram a reflexo crtica acerca do contexto poltico e pedaggico da escola, bem como a compreenso crtica do contexto scio-histrico e cultural da comunidade, visando produo coletiva de conhecimentos que permitissem a reorientao da proposta curricular da escola na perspectiva do currculo contextualizado. Desse modo, foram desenvolvidas 14 (quatorze) Rodas de Dilogos, que se apresentaram como espao de formao, pesquisa e produo de conhecimento voltado transformao das prticas educativas desenvolvidas na escola, bem como a reorientao coletiva da proposta curricular daquela instituio de ensino.

    A opo pela abordagem terico-metodolgica da pesquisa-ao crtica justifica-se pelos pressupostos epistemolgicos que orientam a produo coletiva do conhecimento, que rompe com a lgica colonizadora instituda no processo de construo do conhecimento cientfico, colocando os diferentes sujeitos envolvidos no ato de pesquisar como protagonistas e produtores de conhecimentos. Nessa perspectiva, o processo de investigao, ao invs de silenciar e omitir os sujeitos, seus saberes e suas histrias, amplifica a voz dos profissionais da educao e dos sujeitos sociais envolvidos na ao educativa, dando visibilidade e credibilidade aos seus saberes e suas prticas enquanto produo cultural e intelectual que norteiam seus modos de vida social e profissional.

    Os princpios polticos e pedaggicos e os pressupostos epistemolgicos que orientaram as reflexes e discusses construdas ao longo do nosso trabalho de investigao fundamentaram-se nas bases terico-filosficas que do sustentao ao pensamento crtico-emancipatrio, vinculadas s proposies tericas de Freire (1992, 2005, 2009), Giroux (1986, 1997) e Apple (1982), dentre outros, construdas em dilogo com as reflexes poltico-filosficas da Escola de Frankfurt8 e do prprio iderio marxista, que fomentou o movimento terico-crtico no campo das cincias humanas e sociais, contrapondo-se s bases filosficas que orientam o modelo de cincia e produo do conhecimento hegemnico, construdo sob as orientaes da filosofia positivista.

    A partir desses pressupostos polticos e epistemolgicos, o trabalho de formao-investigao foi desenvolvido na perspectiva de desencadear processos dialgicos e reflexivos

    8 A Escola de Frankfurt refere-se ao coletivo de pensadores e cientistas sociais alemes vinculados ao pensamento marxista

    que se organizaram, na dcada de 20, atravs do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, para realizar uma sistemtica crtica ao positivismo e racionalidade iluminista. A partir das reflexes filosficas desenvolvidas pelo grupo surgiu a corrente filosfica denominada de Teoria Crtica.

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    que favorecessem a compreenso crtica dos processos scio-histricos e culturais vivenciados pela comunidade, bem como a compreenso crtica do projeto educativo em execuo na escola, visando compreenso dos fins e princpios terico-metodolgicos que orientam e norteiam as prticas curriculares.

    As reflexes desenvolvidas durante o percurso investigativo se nutrem num referencial poltico-filosfico construdo a partir de inquietaes e de uma profunda insatisfao quanto aos projetos de sociedade e educao injustos e excludentes, institudos historicamente, que trazem em sua essncia o princpio da naturalizao da excluso e da desigualdade sociocultural.

    Por outro lado, se alimenta tambm nos princpios crtico-humanistas, difundido a partir da filosofia freireana, que compreende a educao enquanto campo de possibilidade e o ser humano enquanto ser inacabado, portanto, com potencial para ser mais. Ou seja, est associado a uma concepo poltico-filosfica que acredita na capacidade do ser humano de libertar-se e transformar-se, bem como de criar alternativas de transformao das condies de desigualdades e injustias, atravs da construo de conhecimentos e estratgias polticas que permitam a produo de novos sonhos e utopias.

    Com base nas contribuies terico-metodolgicas do pensamento crtico-emancipatrio e da prpria pesquisa-ao crtica, tivemos o propsito de contribuir na formao de educadores/as crticos/as, que tenham conscincia dos fins implcitos do seu fazer educativo, e desenvolvam as capacidades tcnica, poltica e tica necessrias para se pensar projetos educativos que, a partir da reflexo crtica e a problematizao da realidade sociocultural, favoream o desenvolvimento de propostas curriculares contextualizadas, voltadas produo de conhecimentos a partir da experincia e vivncia dos educandos e o desenvolvimento de conhecimentos e tecnologias voltadas compreenso e construo de alternativas de desenvolvimento sustentvel.

    A partir dos estudos tericos e da insero no campo da pesquisa, organizamos o trabalho em trs captulos, alm da introduo e das consideraes finais. Considerando a importncia do debate sobre a produo do conhecimento para a compreenso crtica do processo de pesquisa-investigao, bem como para o desvelamento das tramas que envolvem a construo do currculo e a seleo e organizao dos contedos escolares, optamos por abordar, no primeiro captulo, A produo do conhecimento em educao: reflexes sobre as bases epistemolgicas critco-emancipatrias, evidenciando as diferentes bases epistemolgicas que orientam a produo cientfica na rea da educao. Alm disso, descrevemos os caminhos trilhados no processo de investigao, evidenciando os

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    procedimentos metodolgicos utilizados nas dinmicas de formao-investigao, assim como os elementos significativos do campo e os sujeitos da pesquisa.

    O segundo captulo, Formao continuada de educadores/as: os percursos terico-metodolgicos construdos no processo de reorientao curricular, dedicado reflexo crtica sobre a formao continuada e suas bases terico-metodolgicas, tendo em vista que a formao de educadores/as se coloca neste trabalho como o meio pelo qual se promove a produo do conhecimento acerca da realidade scio-histrica e cultural do semirido, bem como a reflexo crtica das prticas educativas desenvolvidas nas escolas, possibilitando, com isto, processos crtico-reflexivos que se constituam enquanto ambientes formativos fecundos para a produo de novas prticas educativas a partir da construo coletiva de estratgias de reorientao curricular, que contemplem o dilogo e a valorizao dos saberes e das prticas socioculturais dos sertanejos. Neste captulo, apresentamos tambm o percurso terico-metodolgico trilhado durante o processo de formao-investigao com o intuito de produzir coletivamente estratgias polticas e procedimentos didticos e pedaggicos voltados reorientao do currculo em dilogo com a realidade sociocultural do semirido.

    No captulo III, Dimenses polticas e epistemolgicas do currculo: as possibilidades de reorientao curricular no semirido, fizemos um resgate dos aspectos histricos, conceituais e epistemolgicos do currculo, demonstrando a complexidade e a diversidade que envolve a construo do campo e das polticas curriculares. Mediante a reflexo crtica sobre as teorias do currculo, buscamos compreender os avanos conquistados na elaborao de propostas curriculares que reconheam e dialoguem com as diversidades socioculturais presentes no cotidiano das escolas brasileiras, radicalizando, portanto, o processo de democratizao da sociedade atravs da democratizao do currculo, enquanto espao de acolhimento e produo de conhecimentos que promovam e ratifiquem a diversidade do pas.

    Nesse ltimo captulo, socializamos tambm as reflexes construdas no processo de reorientao curricular, demonstrando as etapas terico-prticas vivenciadas pelas educadoras9 na construo dos marcos terico-metodolgicos e princpios polticos e pedaggicos que orientaram o processo de reorientao curricular, principalmente com relao redefinio da matriz curricular, da seleo e organizao do conhecimento escolar e da estratgia terico-metodolgica do projeto educativo, considerando os princpios da contextualizao e da interdisciplinaridade.

    9 Fizemos a opo de utilizar o termo educadoras quando nos referimos aos sujeitos da pesquisa tendo em vista que todas eram do sexo feminino.

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    Esperamos que, a partir desta formao-investigao, possamos contribuir na formao crtica de educadores/as, bem como no desenvolvimento de conhecimentos terico-metodolgicos que favoream a reorientao da proposta curricular da escola a partir das necessidades socioculturais da comunidade, colocando-o em sintonia com o projeto de desenvolvimento local. Acreditamos tambm ser possvel produzir referenciais terico-metodolgicos voltados ao desenvolvimento de propostas curriculares contextualizadas no semirido que podero subsidiar o desenvolvimento de novas polticas de currculo nos estados e municpios do semirido brasileiro.

  • CAPTULO I A PRODUO DO CONHECIMENTO EM EDUCAO: REFLEXES SOBRE AS

    BASES EPISTEMOLGICAS CRITCO-EMANCIPATRIAS

    Conhecer, na dimenso humana, [...] no o ato atravs do qual um sujeito, transformado em objeto, recebe, dcil e passivamente, os contedos que outro lhe d ou impe. [...] O conhecimento, pelo contrrio, exige uma presena curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ao transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em inveno e em reinveno. Reclama a reflexo crtica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o como de seu conhecer e os condicionamentos a que est submetido seu ato. [...] Conhecer tarefa de sujeitos, no de objetos. E como sujeito, e somente enquanto sujeito, que o homem pode realmente conhecer (FREIRE, 2002, p. 27).

    Neste captulo, assumimos o desafio de refletir sobre as bases epistemolgicas que norteiam as pesquisas e a produo do conhecimento na rea da educao, demonstrando o potencial das pesquisas crticas, principalmente da pesquisa-ao, na construo coletiva de conhecimentos em que os sujeitos da pesquisa sejam os protagonistas do processo de produo do conhecimento, tendo a problematizao e o dilogo como instrumentos polticos e pedaggicos norteadores dos processos de investigao e o desvelamento da realidade.

    Alm disso, discutimos os princpios polticos e pedaggicos que norteiam as prticas de pesquisa-ao crtico-emancipatria na medida em que evidenciamos o percurso da pesquisa e as opes terico-metodolgicas assumidas no processo de compreenso das prticas educativas desenvolvidas na escola e suas interfaces com o contexto scio-histrico e cultural do semirido. Por fim, apresentamos os aspectos scio-histricos e culturais do semirido e do municpio de Ipiranga, enquanto lcus da pesquisa, e uma sntese do perfil dos sujeitos, tendo em vista que os/as educadores/as se constituem enquanto sujeitos histricos a partir das interrelaes e vivncias no/com o mundo e as prticas educativas por eles construdas refletem, em certa medida, o conjunto de crenas, concepes e valores produzidos no mbito desse contexto poltico e cultural.

    1.1 O ato de pesquisar e a produo do conhecimento

    O processo de investigao no um ato neutro, na medida em que se constitui a partir de orientaes e opes polticas e pedaggicas especficas, voltados resoluo de problemas oriundos de contextos scio-histricos, polticos e culturais. Desse modo, a pesquisa, compreendida enquanto prtica social, condicionada e construda por sujeitos

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    histricos e se institui enquanto ato poltico, uma vez que se volta para o atendimento de interesses e necessidades da sociedade.

    O ato de pesquisar se configura enquanto ato poltico na medida em que exige do pesquisador a tomada de deciso quanto s opes e os recortes terico-metodolgicos que se faz, das escolhas do campo e do sujeito de pesquisa, bem como dos instrumentos de coleta de dados, dentre outros. O trabalho de escolhas, priorizaes e excluses de teorias, sujeitos e instrumentos so construdos a partir de determinados conjuntos de valores, crenas e ideologias que orientam o pesquisador na compreenso do mundo a ser pesquisado, na compreenso do que de fato o conhecimento, na compreenso das possibilidades de produzir o conhecimento e na relao estabelecida entre o sujeito cognoscente que conhece - e o objeto cognoscvel possvel de ser conhecido.

    Desse modo, necessrio discutir os princpios polticos e pedaggicos que norteiam as pesquisas em educao como forma de possibilitar aos sujeitos da pesquisa e aos leitores a compreenso das diferentes formas de compreender o que conhecimento, qual a origem do conhecimento e as formas de produo deste conhecimento. importante tambm que, tanto o pesquisador quanto o leitor, tenham conscincia das dimenses ontolgicas, epistemolgicas e metodolgicas que influenciam a produo do conhecimento no percurso da pesquisa.

    De acordo com Franco (2005), a dimenso ontolgica est relacionada com a natureza do objeto a ser conhecido, enquanto a dimenso epistemolgica est associada compreenso das relaes estabelecidas entre sujeito e conhecimento. J a dimenso metodolgica volta-se para a compreenso dos caminhos e dos instrumentos utilizados pelo pesquisador no processo de produo do conhecimento. No entanto, estas dimenses devem nortear-se por princpios polticos e pedaggicos comuns, considerando as perspectivas filosficas que orientam a prtica do pesquisador.

    Os estudos no campo da epistemologia10 se encarregam de pensar criticamente a produo do conhecimento, voltando-se ao aperfeioamento das prticas cientficas e estratgias de construo de novos conhecimentos que atendam s demandas e necessidades sociopolticas, educacionais, culturais e econmicas da sociedade. Por outro lado, favorecem tambm ao questionamento/problematizao de prticas cientficas, institudas como verdades, que privilegiam determinados modos de pensar e conhecer o mundo, em detrimento

    10

    Recorrendo ao campo etimolgico, o termo epistemologia vem do grego episteme (conhecimento, cincia) + logos (discurso, teoria, tratado, estudo de), portanto, consiste na teoria sobre a cincia ou teoria do conhecimento.

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    de outras alternativas de produo e validao do conhecimento construdas por grupos cientficos e/ou sociais que se contrapem ao pensamento cientfico hegemnico.

    1.2 Teoria do conhecimento: reflexes iniciais

    O processo de produo do conhecimento se constitui a partir da relao entre o sujeito cognoscente capaz de conhecer - e o objeto cognoscvel possvel de ser conhecido. Desse modo, o esforo empreendido no campo da teoria do conhecimento gira em torno da compreenso/explicao da relao entre o sujeito e o objeto, bem como dos princpios polticos, pedaggicos e metodolgicos adotados na compreenso da realidade que envolve o processo de desvelamento/apropriao do objeto pelo sujeito.

    O debate sobre a construo do conhecimento histrico, acompanha o ser humano desde a antiguidade; no entanto, ganha novos contornos na medida em que o ato de conhecer torna-se cada vez mais complexo e diversificado, permeado por diferentes interesses, motivaes e inquietaes. Se na Antiguidade e na Idade Mdia o ato de conhecer limitava-se compreenso dos fenmenos naturais a partir da compreenso filosfica do mundo, com advento da modernidade o ato de conhecer ganhou novos contornos, com a adoo de mtodos cientficos que buscam dar ao processo de construo do conhecimento maior rigor cientfico, procedimentos institudos principalmente a partir dos pressupostos polticos e epistemolgicos incorporados pela cincia moderna sob a influncia da filosofia positivista.

    As discusses sobre a epistemologia como teoria do conhecimento surgem na medida em que os filsofos da era moderna comeam a se questionar sobre a capacidade humana de conhecer e a necessidade de se pensar sobre as teorias que norteiam o processo de construo do conhecimento, ou seja, os estudos no campo da epistemologia surgem a partir das inquietaes humanas acerca das questes: "O que possvel conhecer?"; "Qual o critrio de certeza para saber se h adequao entre o pensamento e o objeto?".

    Colaborando com essa reflexo, Aranha e Martins (2009, p. 160) sugerem que o debate sobre o conhecimento no fique restrito ao [...] ato de conhecer como uma relao que se estabelece entre a conscincia que conhece e o objeto conhecido, mas tambm se volte para a compreenso do produto do conhecimento. Neste caso, a reflexo sobre as bases epistemolgicas que norteiam a produo do conhecimento est associada principalmente compreenso das questes relativas aos aspectos: como se constri o conhecimento? E como se d a relao entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscvel?

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    Os estudos epistemolgicos desenvolvidos a partir do sculo XVII se voltam para o sujeito que conhece e as solues apresentadas a esse problema deram origem a duas correntes filosficas: o racionalismo idealista e o empirismo - a primeira com nfase na razo e a outra nos sentidos. Na perspectiva racionalista, proposta por Descartes, as ideias claras e exatas no derivam da experincia, mas do esprito humano, como ideias inatas, que j nascem com os sujeitos. Somente a partir da razo possvel conhecer todas as coisas. Nessa direo, constatamos que a teoria do conhecimento construda a partir da filosofia de Descartes estabelece uma separao entre sujeito-objeto, dedicando ao sujeito o papel determinante na produo do conhecimento.

    Contrapondo-se filosofia racionalista, o empirismo idealizado por Locke compreende que o conhecimento se constitui a partir da experincia sensvel, estando associada sensao e a reflexo. Enquanto as sensaes so causadas por objetos externos, as reflexes seriam resultado da observao que a mente faz de suas prprias operaes, uma espcie de sentido interno (SMITH, 2010, p. 26-27).

    Neste caso, enquanto Descartes afasta a experincia sensvel ou o conhecimento

    sensvel do conhecimento verdadeiro, que puramente intelectual, Locke defende que o conhecimento se realiza por graus contnuos, partindo da sensao at chegar s ideias. Ou seja, se para o racionalismo a fonte do conhecimento verdadeiro a razo operando por si mesma, sem o auxlio da experincia sensvel e controlando a prpria experincia sensvel, para o empirismo a fonte de todo e qualquer conhecimento a experincia sensvel, responsvel pelas ideias da razo e controlando o trabalho da prpria razo (CHAU, 2000).

    No entanto, Kant (1987) vai estabelecer novos parmetros no campo da epistemologia moderna ao se contrapor dicotomia instituda pelas ideias de Locke e Descartes, entre racionalismo e empirismo. Para o filsofo alemo, o ato de conhecer no pode limitar-se ao campo da experincia sensvel e nem somente ao campo da razo. Ou seja, Nenhum conhecimento em ns precede a experincia, e todo o conhecimento comea com ela. Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experincia, nem por isso todo ele se origina justamente da experincia (KANT, 1987, p. 23).

    Desse modo, a filosofia kantiana defende que, para conhecermos, precisamos da experincia sensvel do contato com o objeto/fenmeno mas essa experincia no significativa produo do conhecimento se no for organizada a partir da estrutura da razo, que transforma a percepo do fenmeno na representao do objeto. Sendo assim, o conhecimento uma sntese, operada pela razo, das informaes que a sensibilidade humana capaz de reunir durante a existncia. Neste caso,

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    [...] a inovao de Kant consiste em afirmar que a realidade no um mero dado exterior ao qual o intelecto deve apenas se conformar; o mundo dos fenmenos s existe na medida em que aparece para ns e, portanto, de certa forma participamos de sua construo. (FREIRE, 1996, p. 43).

    Para Duro (1996, p. 13), uma das principais contribuies de Kant epistemologia moderna foi a ruptura com o objetivismo reinante na construo do conhecimento, ou seja, Em lugar de aceitar o primado do objeto sobre o conhecimento, instaura a investigao das condies do conhecimento dos objetos como constituidoras dos objetos.

    Neste caso, se antes o conhecimento era traduzido na apropriao do objeto pelo sujeito, ou seja, o objeto era o centro do conhecimento e nele estava o sentido do ato de conhecer, com a inverso epistemolgica proposta por Kant, o sujeito colocado no centro do ato de conhecer, ou seja, o sujeito, ao fazer o uso da razo, estabelece o controle sobre o processo de construo do conhecimento, sendo este uma representao do objeto produzida pela razo a partir da experincia sensvel, uma vez que para Kant (1987) impossvel conhecer os objetos em si.

    A ruptura epistemolgica proposta por Kant tem como foco prioritrio o

    reposicionamento do sujeito em relao ao objeto, demonstrando que o conhecimento objetivo no surge, no nasce dos objetos como se costumava pensar, mas se deve ao sujeito cognoscente. Nessa perspectiva, Kant institui a supremacia do sujeito diante do objeto. Assim,

    [...] o sujeito passa a ser o centro do conhecimento e os objetos so regulados pelo conhecimento do sujeito e no ao contrrio. [...]. Assim, a produo do conhecimento em Kant est na unidade sinttica da conscincia, um sujeito autnomo que por si autossuficiente sobre ele mesmo e sobre o objeto. (GIROTTI, 2010, p. 06-07).

    Contrapondo-se aos princpios que orientam a filosofia kantiana, Hegel (2012) enfatiza que Kant no foi capaz de explicar a relao dialtica existente entre o sujeito e o objeto, uma vez que sua viso sobre o processo de construo do conhecimento ficou limitada dicotomia entre o sujeito que no tem acesso direto ao objeto, e o objeto que construdo pelo sujeito, ou seja, o sujeito est atento ao como ele conhece o objeto e s o apreende como aparncia, ou melhor, como fenmeno (GIROTTI, 2010, p. 02).

    Hegel (2012) alerta que, no processo de construo do conhecimento, sujeito e objeto estabelecem uma relao de interdependncia, contrapondo-se ao dualismo entre sujeito e objeto construdo a partir da filosofia inatista e empirista, reproduzido no idealismo kantiano. O filsofo alemo critica tambm a teoria de conhecimento concebida por Kant por entender que ela no compreende o que h de mais fundamental e essencial razo: a razo histrica

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    (CHAU, 2000, p. 80). Com base nessa compreenso da historicidade da razo, Hegel defende que a razo no atemporal e que as ideias no so perenes, mas transformam-se com o decorrer do tempo. Associado a isto, Hegel reafirma o carter dinmico do objeto na relao com o sujeito, contrapondo-se ideia de um objeto esttico, manipulado pelo sujeito.

    O ato de conhecer, na perspectiva hegeliana, est intimamente vinculado s relaes estabelecidas entre o sujeito e o objeto, sendo o conhecimento produto dessas relaes, na medida em que o sujeito toma conscincia de si e se reconhece na relao/interao com o objeto. Neste caso, o sujeito no s reconhece o objeto, mas tambm se reconhece no objeto. Assim, o conhecer une sujeito e objeto, pois o sujeito ao conhecer o objeto o determina e determinado por ele (NOVELLI, 2008, p. 57).

    Com essa premissa, a filosofia hegeliana prope a superao do isolamento entre sujeito e objeto na construo do conhecimento, compreendendo-os numa condio de interdependncia, na qual ambos se complementam e se transformam, uma vez que nesta relao dialtica teremos o sujeito que objeto e objeto que sujeito. Assim,

    da perspectiva do sujeito que o objeto conhecido e da perspectiva do objeto que o sujeito reconhece o que conhecer. Direcionar o fazer implica entender que no se pode pretender simplesmente aplicar o que se deseja sobre a realidade, pois ela no se resume somente ao que , a partir do sujeito pensado, mas tambm o que em si existe e, que o sujeito pode e deve esforar-se por conhecer. (NOVELLI, 2008, p. 63).

    A filosofia hegeliana trouxe contribuies significativas para o pensamento marxista, principalmente com relao concepo dialtica. No entanto, Marx se apropriou de algumas ideias de Hegel e promoveu transformaes importantes a fim de adapt-las sua viso materialista do mundo. A dialtica de hegeliana est vinculada ao plano das ideias e do esprito, enquanto Marx a concebe numa relao implicada com o mundo e com os sujeitos inseridos no contexto real. Essa diferena apontada pelo prprio Marx (1998, p.26), quando descreve os princpios do seu mtodo em O Capital:

    [...] meu mtodo dialtico no s difere do hegeliano, mas tambm a sua anttese direta. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de ideia, transforma num sujeito autnomo, o demiurgo do real, real que constitui apenas a sua manifestao externa. Para mim, pelo contrrio, o ideal no nada mais que o material, transposto e traduzido na cabea do homem.

    importante compreender que a concepo de sujeito discutida na filosofia hegeliana est associada concepo de um sujeito abstrato, sujeito de si mesmo, construdo independentemente das condies concretas e materiais. Enquanto em Marx o sujeito se

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    constitui numa relao histrica com a realidade, fruto das interaes que estabelece com o contexto real. Neste caso, a epistemologia marxista coloca o sujeito no centro da vida, da produo de sua prpria existncia e do conhecimento. O homem marxiano se recusa como um ser apenas determinado na/pela histria, colocando-se como transformador da histria, sendo a prxis, a forma por excelncia desta relao (ALVES, 2010, p.02).

    Na medida em que o sujeito concebido como agente transformador dos processos histricos e culturais, torna-se tambm o protagonista do processo de produo do conhecimento, sendo o conhecimento produto de suas experincias sociais, culturais, polticas e econmicas. Assim, o conhecimento algo inerente vida dos sujeitos, produto das relaes estabelecidas com o mundo e da apropriao crtica dos contextos scio-histricos e culturais.

    Contrapondo-se aos pressupostos epistemolgicos da filosofia idealista, Marx e Engels (2002) defendem que o conhecimento no produto da conscincia, como resultado da reflexo/contemplao da realidade, mas est associado relao/interao que os sujeitos estabelecem com a realidade. Os autores argumentam que

    [...] no partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles so nas palavras, no pensamento, na imaginao e na representao dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, a partir de seu processo de vida real que representamos tambm o desenvolvimento dos reflexos e das repercusses ideolgicas desse processo vital. (MARX; ENGELS, 2002, p. 19).

    luz do pensamento marxista, o conhecimento produto da relao/ao/interao do sujeito com mundo, resultando na transformao de ambos enquanto processo/produto do conhecimento, sendo, portanto, resultado da transformao que ocorre na relao entre o sujeito e o mundo. Assim, Conhecer conhecer objetos que se integram na relao entre o homem e o mundo, ou entre o homem e a natureza, que se estabelece graas atividade prtica humana. (VZQUEZ, 2007, p. 144). Nesse contexto, o conhecimento se afirma como instrumento de transformao social na medida em que possibilita ao sujeito uma apropriao crtica da sua relao no/com o mundo e das possibilidades de transformao de si e do mundo, com a produo da prxis11. Para Konder (1992, p. 115),

    Prxis a atividade concreta pela qual os sujeitos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alter-la transformando-se em si mesmos. a ao que, para se aprofundar de maneira mais conseqente, precisa de

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    De acordo com Vzquez (2007, p. 245), possvel falar de nveis diferentes da prxis, de acordo com o grau de penetrao da conscincia do sujeito ativo no processo prtico e com o grau de criao ou humanizao da matria transformada, evidenciado no produto de sua atividade prtica. Desse modo, temos a prxis criadora (reflexiva), caracterizada pela ao consciente do sujeito sobre o mundo, que permite a recriao de sua atividade; e a reiterativa ou imitativa (espontnea) em que a ao do sujeito se restringe as atividades mecnicas, condicionada pelos aspectos histricos e culturais, sem alcanar um nvel de conscincia crtica da realidade.

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    reflexo, do autoquestionamento, da teoria; e a teoria que remete ao, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prtica.

    A filosofia marxista atribui um sentido poltico ao processo de construo do conhecimento na medida em que coloca a prxis como espao de produo do saber, associada tomada de conscincia do sujeito acerca de sua ao no/com mundo para transform-lo. Desse modo, podemos afirmar que o pensamento marxista foi essencial na produo de uma epistemologia que se apia na realidade, nas relaes histricas entre os sujeitos e o mundo e nas contradies implcitas nestas relaes.

    Uma epistemologia que busca superar a dicotomia entre sujeito e objeto, realidade e pensamento e teoria e prtica, tendo a prxis como lcus de produo e validao do conhecimento. Para Amadeo e Rojas (2010, p. 152-153),

    Do ponto de vista de uma teoria do conhecimento, isto tem consequncias importantes, pois se o homem conhece o mundo na medida em que atua sobre ele, isso implica que no h conhecimento margem dessa relao prtica; a filosofia enquanto teoria no pode se desvincular da prtica para ficar restrita contemplao. (p. 152-153).

    Desse modo, no mbito da epistemolgica crtico-emancipatria a produo do conhecimento tem uma relao direta com as experincias dos sujeitos, suas relaes e interaes no/com o mundo e com os processos de apreenso/desvelamento do mundo, numa dinmica de pensar criticamente a realidade atravs da prxis, considerando o conhecimento no como uma idealizao e/ou apreenso do mundo numa posio de contemplao, mas como produto da prpria existncia/vivncia da prxis.

    Apesar dos avanos conquistados no campo da teoria do conhecimento no sculo XIX, os pressupostos polticos e epistemolgicos associados filosofia positivista ainda exercem certa hegemonia no campo da produo do conhecimento cientfico no sculo XX.

    1.2.1 A influncia da filosofia positivista na produo do conhecimento

    O positivismo uma corrente filosfica que se constituiu no incio do sculo XIX, sob a orientao do filsofo francs Augusto Comte, a partir das contribuies tericas dos empiristas Bacon e Hume, entre outros. Surge com o propsito de construir um modelo de cincia que tem a razo humana e os princpios lgicos matemticos como nicos

    instrumentos capazes de conhecer a realidade.

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    Utilizando-se dos mtodos de investigao das cincias da natureza, Comte preconizava o desenvolvimento da objetividade cientfica e da cincia neutra. Com isto, transformou a investigao cientfica num ato mecnico de quantificao de dados objetivos capazes de explicar os fenmenos fsicos e sociais, reduzindo a realidade estudada s variveis compreendidas e explicadas a partir do pensamento matemtico.

    Com o auxlio do mtodo cientfico, Comte acreditava ser possvel construir um tipo de conhecimento verdadeiro e absoluto o conhecimento cientfico capaz de explicar todos os fenmenos naturais e sociais, em contraposio aos diferentes tipos de conhecimentos construdos a partir de explicaes teolgicas, filosficas e de senso comum, que o ser humano utilizava-se, at ento, para explicar e compreender a realidade.

    Desse modo, o positivismo institui um modelo de cincia voltado produo de um conhecimento puramente descritivo. Alm disso, Todo conhecimento para ser autntico deve ser fundado na experincia e toda proposio no verificvel empiricamente deve ser erradicada da cincia, resultando numa espcie de purificao da atividade intelectual (GOMES, 2012, p. 04). A experincia a principal via do conhecimento, ou seja, atravs dos sentidos, da observao sistemtica e da experimentao que se alcana o conhecimento verdadeiro, com o auxlio do mtodo de investigao indutivo (COMTE, 1976).

    A filosofia positivista exerceu e exerce forte influncia sobre pensamento cientfico moderno, orientando a produo e a organizao do conhecimento nas diferentes reas do conhecimento, bem como na ordenao do sistema poltico e econmico. A partir da instituio dos pressupostos polticos e epistemolgicos positivistas ocorreu uma revoluo na histria do pensamento cientfico, tendo em vista que foi construdo um modelo de racionalidade centrado na lgica matemtica, no qual a natureza objetivada e reduzida a partes mensurreis e observveis.

    A fragmentao promovida pela cincia positivista no mbito da produo do conhecimento no ficou restrito ao campo tcnico, mas criou tambm uma ciso entre o sujeito e a vida, sua histria, seus valores e crenas, descaraterizando-o enquanto sujeito, artificializando a compreenso do seu pensar/fazer/ser no/com o mundo. Desse modo, essa compreenso de cincia produz uma epistemologia que concebe a relao do sujeito com o mundo e com o conhecimento numa perspectiva mecnica e artificialidazada.

    Os pressupostos epistemolgicos vinculados filosofia positivista, na nsia de objetivao do conhecimento, promovem uma simplificao do ato de conhecer, reduzindo-o ao processo de quantificao. Ou seja, as experincias sociais, polticas e culturais so transformadas em variveis a serem explicadas atravs de linguagens numricas extradas dos

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    procedimentos lgicos matemticos. Neste caso, o ato de conhecer limita-se ao processo de diviso, classificao e quantificao dos dados empricos sistematizados a partir da observao sistemtica. Sendo assim,

    [...] a teoria positivista, como orientadora da cincia, elege como critrio nico da verdade aquilo que pode ser comprovado atravs da experincia, dos fatos visveis e positivos. Nessa concepo, surge a necessidade da prova concreta, objetiva, clara, mensurvel ou quantificvel para que a academia cientfica aprove algo como uma descoberta cientfica. Dessa forma, [...] a sua caracterstica mais marcante a viso esttica, fixa e fotogrfica da realidade. (BORGES; DALBERIO, 2007, p. 04).

    De acordo com Santos (1987), os mtodos cientficos institudos pelo positivismo para a compreenso/explicao dos fenmenos sociais inviabilizam o processo de construo do conhecimento sobre a realidade, uma vez que limitam a ao do pesquisador mera descrio dos fatos a partir da linguagem matemtica. Ou seja, o conhecimento produzido a partir dessa perspectiva epistemolgica limitado e incapaz de explicar a complexidade12 que envolve os aspectos sociopolticos e culturais implcitos nos fenmenos humanos e sociais, objetos de estudo das cincias sociais. Para Meksenas (2002, p. 81), Os positivistas negligenciam aspectos da cultura, da vida social, da estrutura econmica e poltica em favor de fundamentos de carter biolgicos, supondo as sociedades humanas como mero corpo vivo.

    Esta concepo epistemolgica tambm promoveu uma separao entre os sujeitos e suas tradies culturais, ignorando os significados sociais e simblicos produzidos por estes sujeitos que do sentidos s suas vidas e influenciam preponderantemente nas formas de significar seus atos e aes, bem como suas tradies, crenas e valores.

    Para Santos (1987, p. 50), A cincia moderna consagrou o homem enquanto sujeito epistmico, mas expulsou-o, tal como a Deus, enquanto sujeito emprico, na medida em que defende a construo de um conhecimento objetivo e rigoroso, sem qualquer tipo de interferncia dos valores humanos ou religiosos. A partir desse princpio, a filosofia positivista institui o distanciamento entre o sujeito (cognoscente) e objeto (cognoscvel), evidenciando a dicotomia entre sujeito/objeto.

    Diante desse contexto, a relao entre sujeito e objeto se constitui a partir do princpio do distanciamento objetividade e independncia do sujeito-objeto no ato de pesquisar - e da neutralidade do pesquisador diante do fenmeno observado, ou seja, o pesquisador deve

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    Para Morin (1999, p. 14), a complexidade requer um pensamento que capte as relaes, as interrelaes e implicaes mtuas, os fenmenos multidimensionais, as realidades que so simultaneamente solidrias e conflitivas [...], um pensamento organizador que conceba a relao recproca de todas as partes.

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    restringir-se ao trabalho de descrio fiel dos fatos, sem efetivao de qualquer tipo de juzo de valor, fazendo valer a lgica da neutralidade cientfica pretendida pela cincia positivista.

    1.2.2 A produo do conhecimento na perspectiva pragmtica

    O pragmatismo uma corrente filosfica que compreende que o conhecimento provm e validado atravs da experincia, portanto, sua base epistemolgica tem uma relao com as teorias empiristas, apesar de sua compreenso acerca do processo de produo e validao do conhecimento extrapolar os princpios sugeridos pelos empiristas.

    Neste caso, o pragmatismo parte da concepo empirista de que o conhecimento tem origem na experincia; entretanto, h uma diferena significativa na compreenso que ambas as correntes tem sobre a experincia. No empirismo, a experincia compreendida enquanto vivncia passada, enquanto os pragmticos a compreendem como abertura ao futuro.

    O foco do pragmatismo o uso da experincia enquanto ao presente como fonte de produo do conhecimento necessrio soluo de problemas concretos, tendo a reflexo sobre a prtica cotidiana como instrumento de produo do conhecimento til. Sendo assim, a validade do conhecimento est associada sua utilidade, sua capacidade de resolver e/ou satisfazer as necessidades prticas vivenciadas no contexto da experincia. Nessa perspectiva,

    O conhecimento, para o pragmatismo, se d por uma atitude antiintelectualista, isto , negando qualquer tipo de razo transcendental, racionalismo ou idealismo. Lembremo-nos de que o pragmatismo um tipo de empirismo, mas no preso s emoes e fatos observveis e as leis cientficas a partir deles formuladas. [...] o pragmatismo retira o conhecimento do plano metafsico e o coloca nas mos dos indivduos, vinculando-o ao plano pragmtico, til vida. Embora sendo empirista, o pragmatismo no um tipo de positivismo. (SOUZA, 2010, p. 06).

    Diante desse contexto, Dewey fez profundas crticas ao empirismo clssico de Bacon, demonstrando que a nfase dada pelos empiristas ao mtodo cientfico distanciava seus processos de investigao da vida, da experincia dos sujeitos, ou seja, suas investigaes ignoravam o mundo da vida. Outro ponto criticado por Dewey refere-se ao dualismo da filosofia de Bacon, que reforava o antagonismo entre a razo e a experincia. A inteno de Dewey romper com os dualismos, reunindo num mesmo plano epistemolgico esses dois elementos. Para compreendermos melhor os princpios polticos que norteiam a filosofia pragmtica, necessrio analisarmos que:

    Na epistemologia pragmatista e tambm deweyana, os objetos esto inter-relacionados, a partir da lgica, no processo de construo do conhecimento. Isso

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    permite a conexo de uns com os outros, o que levaria aplicabilidade pragmtica, uma vez que conhecer se trata de perceber essas conexes que ligam os objetos com um fim til. Assim, a filosofia no deve apenas evitar os dualismos: razo/experincia, ideal/real, teoria/prtica, indivduo/sociedade, mas combat-los, j que o conhecimento se d na continuidade da experincia e no apenas em sua fragmentao. A inteligncia investigativa ou pensamento reflexivo que deve estabelecer essas relaes que (re) ligam os objetos naturais. (SOUZA, 2010, p. 06).

    Dewey, como principal representante do pragmatismo, assumiu uma postura crtica frente s filosofias clssicas devido s posies dualistas assumidas entre mente versus conhecimento e, principalmente, com relao s posturas tericas que compreendem o conhecimento verdadeiro como cpia da natureza, [...] como se o pensamento pudesse ser constitudo de uma cpia correspondente coisa experimentada (NASCIMENTO, 2010, p.05). Para autora, Essa noo de verdade-cpia est presente tanto na vertente racionalista quanto na empirista, sendo concebida como representao mental do mundo exterior (p. 05), constituindo-se, portanto, numa viso fragmentada e limitada do mundo, tendo em vista que separa pensamento e realidade, conhecimento e experincia.

    Entretanto, sob a gide do sistema capitalista neoliberal13, as orientaes polticas e epistemolgicas que norteiam a produo do conhecimento no mbito da filosofia pragmtica ganharam fora e notoriedade no meio cientfico, influenciando significativamente a produo das polticas educacionais e curriculares nas ltimas dcadas, tendo em vista a forte preocupao com a eficincia e o desenvolvimento das competncias dos sujeitos.

    Por conta disso, crescente a influncia da filosofia pragmtica no desenvolvimento das polticas educacionais, principalmente no campo da formao de educadores/as e da construo do currculo, bem como na rea das pesquisas educacionais. Alm disso, esta proposio terica apresenta-se como uma alternativa terico-metodolgica inovadora diante do descrdito da filosofia positivista. No entanto, para alguns autores (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002; FREITAS, 2002), a perspectiva pragmtica adotada no campo educacional brasileiro traz traos polticos e filosficos que a aproxima das correntes neopositivistas e neotecnicistas.

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    O neoliberalismo um movimento poltico-filosfico que se contrape ao projeto do Estado de Bem-Estar Social, pregando a interveno mnima do Estado na economia, deixando que o mercado seja autorregulador. Com a ideia de diminuio do Estado, defende a privatizao de empresas estatais e a terceirizao dos servios pblicos. A partir da dcada de 1990, a teoria neoliberal passou a exercer forte influncia nas polticas educacionais. Sob o controle das organizaes multilaterais (Banco Mundial, Fundo Monetrio Internacional, entre outros) impuseram a criao dos sistemas nacionais de avaliao de desempenho, as reformas curriculares, as novas formas de gesto dos sistemas de ensino com o intuito de exercer o maior controle sobre o sistema educacional, principalmente com relao formao mnima do cidado voltada ao desenvolvimento de capacidades que atendam aos interesses do mercado capitalista. Por outro lado, reduziram o investimento pblico em educao, abrindo espao para o avano da iniciativa privada. (NETO; RODRIGUEZ, 2007).

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    1.2.3 A produo do conhecimento na perspectiva crtico-emancipatria

    Na perspectiva crtico-emancipatria, a produo do conhecimento baseia-se nos referenciais terico-metodolgicos do iderio marxista, tendo a epistemologia do materialismo histrico-dialtico e seus referenciais poltico-filosficos como elementos norteadores do processo de compreenso da realidade, de produo do conhecimento e de compreenso das relaes entre o sujeito cognoscente e objeto cognoscvel.

    A partir destas bases epistemolgicas, a realidade no pode ser compreendida isoladamente, fora dos fenmenos que os rodeiam, visto que a realidade se constitui num movimento histrico e dialtico, portanto, a produo do conhecimento est associada compreenso crtica das contradies que permeiam as prticas polticas, sociais e culturais.

    Nesta perspectiva, o conhecimento no transmitido ou adquirido como um produto, mas construdo a partir das relaes scio-histricas, polticas e culturais que os sujeitos estabelecem com os outros e no/com o mundo. Alm disso, o conhecimento est associado ao processo de produo de sentidos e significados que os sujeitos constroem sobre si nas relaes no/com o mundo e sobre suas aes no mundo, bem como com relao aos fenmenos sociais e naturais. Neste caso, o conhecimento uma produo coletiva, resultante das interaes e dilogos construdos com ns mesmos e com os outros, ou seja, produto e processo da interao do sujeito no/com o mundo.

    Assim, o conhecimento no mbito da epistemologia crtico-emancipatria no um produto da razo e nem somente resultado da experincia do sujeito, mas se constitui enquanto processo e produto das relaes que o sujeito cognoscente estabelece com a realidade (objeto cognoscvel). O conhecimento tanto processo quanto produto desta relao dialtica estabelecida entre o sujeito e a realidade, que incide tanto produo do conhecimento quanto da reinveno do prprio sujeito e da realidade, diante do conhecimento enquanto processo/produto. Na verdade, o conhecimento algo que permite a produo e ressignificao do sujeito enquanto ser histrico e a realidade em condio de transitoriedade.

    Diante da complexidade e diversidade de concepes polticas e filosficas que constitui o iderio marxista, fizemos a opo de trabalhar com as bases epistemolgicas que do sustentao ao pensamento crtico-emancipatrio construdo no mbito da teoria crtica, tendo o educador brasileiro Paulo Freire como principal referncia neste estudo. A opo pelo referencial terico-metodolgico da pedagogia freireana justifica-se pela afinidade entre suas proposies tericas e os princpios polticos e pedaggicos que orientam nosso processo de formao-investigao.

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    Na perspectiva terico-metodolgica crtica, o processo de conhecer rompe com a lgica positivista e idealista que fragmenta a relao entre o sujeito que conhece e objeto/realidade a ser conhecido. Neste caso, o conhecimento se constitui a partir da interao entre o sujeito e o objeto, uma vez que nessa relao dialtica que se constitui a apreenso do objeto, da realidade. Portando, conhecer sempre um ato dialgico, que envolve sujeitos ativos. A ao transformadora se d entre sujeitos que interagem que se comunicam (ECCO, 2007, p. 02). Neste processo, a produo do conhecimento se constitui enquanto um ato coletivo e dialgico, no qual

    Nosso papel no falar ao povo sobre a nossa viso do mundo, ou tentar imp-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar convencidos de que a sua viso do mundo, que se manifesta nas vrias formas de sua ao, reflete a sua situao no mundo, em que se constitui. (FREIRE, 2005, p. 100).

    Desse modo, o processo de produo do conhecimento ocorre de forma interativa, intersubjetiva e integradora, constituindo-se pela descoberta/desvelamento do real atravs da prtica problematizora e dialgica que permite uma interao maior entre o sujeito e a realidade em processo de descoberta. Dessa relao dialtica e dialgica, tanto o sujeito transformado pelo objeto quanto o objeto transformado e repensado pelo sujeito, dando ao processo de conhecer uma dinmica de movimento que se constitui a partir da prxis. Sendo assim, o sujeito no conhece pela mera contemplao, conforme proposio das teorias idealistas, mas pela interao/imerso do sujeito na realidade concreta. Desse modo,

    O ato de conhecer e o conhecimento adquirem o seu sentido no processo de realizao do ser humano, concernente sua vocao ontolgica de Ser Mais. O conhecimento faz parte da totalidade da vida humana, englobando a totalidade da experincia humana. [...]. O conhecimento a construo coletiva mediada dialogicamente, que deve articular dialeticamente a experincia da vida prtica com a sistematizao rigorosa e crtica. (ECCO, 2007, p. 02-03).

    Dessa forma, o conhecimento compreendido enquanto produto social fruto das relaes sociais, poltica e culturais construdas no decorrer do processo histrico, portanto, tambm resultado de construes sociais coletivas que, para serem compreendidas, precisam ser situadas e problematizadas dentro de um determinado contexto histrico-cultural, buscando situ-los numa totalidade social complexa que se constitui a partir das relaes que o sujeito produz e se produz no meio social.

    Conforme defende Freire (2005), o processo de compreenso da realidade sociocultural e do pensar do prprio ser humano passa pela compreenso das relaes sociais construdas entre os seres humanos e destes com o mundo, compreendendo este mundo como

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    espao de produo cultural, de conhecimentos e tecnologias, que permite a transformao do sujeito, numa relao dialtica de construo/transformao do prprio mundo.

    Assim, Freire (2005) concebe o ser humano como sujeito histrico que, ao agir no mundo, capaz de produzir-se a partir do processo de produo do prprio mundo e, ao faz-lo, deixa um legado, cria cultura. Neste caso, o sujeito na perspectiva freireana ser de relao com o mundo e com os outros, portanto, por meio destas relaes que o ser humano capaz de produzir-se e produzir o mundo, tornando-se assim um ser cognoscente, um ser de conhecimento, que se move em direo ao mundo cognoscvel. Desse modo,

    O encontro de um mundo-realidade cognoscvel com sujeitos cognoscentes provoca relaes, e o produto dessas relaes o conhecimento que se apresenta de formas e graus diferentes. [...]. Essa articulao expe algo bastante significativo do pensamento freireano: a superao da tradicional relao dicotmica sujeito-objeto por uma viso que rene num movimento dinmico caracterizado pela dialeticidade sujeito-objeto e processos interativos. (PEREIRA, 2009, p. 181).

    A partir dessas orientaes polticas e pedaggicas, principalmente quanto compreenso dos sujeitos da pesquisa e sua posio/ao no processo de investigao e na produo do conhecimento, adotamos como referencial terico-metodolgico a pesquisa-ao crtica, por considerar que os referenciais epistemolgicos que orientam o processo de investigao-ao se articulam com os princpios polticos da filosofia crtico-emancipatria.

    1.3 A pesquisa-ao crtica como estratgia de produo do conhecimento crtico-emancipatrio

    A pesquisa-ao uma modalidade de investigao construda atravs da ao coletiva de pesquisadores e grupos sociais, tendo como foco a resoluo de problemas de interesse social. Neste caso, os diferentes sujeitos envolvidos colocam-se na condio de pesquisadores comprometidos com a produo de conhecimentos e estratgias capazes de responderem e/ou apontarem caminhos transformao da realidade. Assim, a pesquisa-ao uma linha de pesquisa associada a diversas formas de ao coletiva que orientada em funo da resoluo de problemas ou de objetos de transformao (THIOLLENT, 2008, p. 100).

    Os estudos de Franco (2005), Thiollent (2008) e Barbier (2004) reconhecem que a pesquisa-ao teve origem na Psicologia Social, a partir dos estudos do psiclogo Kurt Lewin na dcada de 1940, nos Estados Unidos. Naquele perodo, a pesquisa-ao estava associada soluo de problemas sociais referentes aos conflitos entre grupos ticos minoritrios, aos hbitos alimentares, dentre outros, contemplando uma metodologia de trabalho vinculada

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    deciso de grupo, auto-organizao. Neste caso, a investigao estava centrada nas relaes sociais com o propsito de promover mudanas nas atitudes e nos comportamentos dos indivduos (HAGUETTE, 1992).

    Para Franco (2005), o trabalho de Kurt Lewin foi importante na construo dos referenciais terico-metodolgicos da pesquisa-ao, no entanto seus trabalhos estavam vinculados abordagem experimental, assumindo mais um carter explicativo e/ou compreensivo dos problemas sociais. Segundo a autora, somente a partir da dcada de 1980, com as influncias tericas e metodolgicas do pensamento dialtico e da teoria crtica, vinculados Escola de Frankfurt, a pesquisa-ao avanou na perspectiva da produo do conhecimento crtico comprometido com a transformao social.

    Neste percurso, os trabalhos de Stenhouse (1987) e John Elliot (1997), desenvolvidos na Inglaterra, os estudos de Carr e Kemmis (1988), na Austrlia, e as experincias de Zeichner (1998), nos Estados Unidos, na dcada de 1970 e 1980, foram fundamentais na elaborao de um arcabouo terico-metodolgico da pesquisa-ao crtica no mbito das cincias da educao, tendo os profissionais da educao como pesquisadores de suas prprias prticas, tendo como foco a produo de projetos educativos crticos e transformadores.

    Por outro lado, os estudos de Costa (1991), Franco (2005), Streck e Adams (2012) demonstram que as experincias desenvolvidas na Amrica Latina, a partir da dcada de 1960, sob a i