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1 Tese de Doutorado Reflexos de um vitral Partido sobre um mito: Tradução da correspondência de Charles Baudelaire de 1832 a 1842. Gilles Jean Abes Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução

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Tese de Doutorado    

         

Reflexos de um vitral Partido sobre um mito: Tradução da correspondência de Charles

Baudelaire de 1832 a 1842.

Gilles Jean Abes

Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós-Graduação em Estudos da

Tradução

         

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Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para a obtenção do

título de Doutor em Estudos da Tradução.

Orientadora: Dra. Marie-Hélène Catherine Torres

Florianópolis, 2011            

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Gilles Jean Abes

Reflexos de um vitral partido sobre um mito: Tradução da correspondência de Charles Baudelaire de 1832 a

1842. Esta Tese foi julgada adequada para obtenção do Título de “Doutor”, e

aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução.

Florianópolis, 11 de julho de 2011.

________________________ Prof.ª, Dr.ª Andréia Guerini

Coordenadora do Curso

Banca Examinadora:

________________________ Prof.ª, Dr.ª Marie-Hélène Catherine Torres,

Orientadora Universidade Federal de Santa Catarina

________________________

Prof.ª, Dr.ª Márcia Arbex, Universidade Federal de Minas Gerais

_______________________

Prof.ª, Dr.ª Germana Henriques Pereira de Sousa, Universidade de Brasília

________________________

Prof.ª, Dr.ª Andréa Cesco, Universidade Federal de Santa Catarina

________________________

Prof.ª, Dr.ª Cláudia Borges de Fáveri, Universidade Federal de Santa Catarina

________________________ Prof., Dr. Sergio Romanelli,

Universidade Federal de Santa Catarina

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AGRADECIMENTOS

Como agradecer as pessoas que estiveram ao seu lado nesses tempos difíceis da pesquisa e, sobretudo, da escrita frente ao assustador branco da página?

Pensa-se melhor do que as palavras exprimem. Contudo, ainda assim é preciso fazê-lo e agradecer os

momentos. Gostaria, portanto, de agradecer a minha orientadora, Dra.

Marie-Hélène Catherine Torres, por ter aceito o meu projeto malgrado não correspondesse à época que estava pesquisando naquele período. A Marie soube confiar no meu trabalho e me dar liberdade o suficiente para executá-lo. Merci infiniment pour cette opportunité!

Agradeço igualmente à Capes que facilitou a minha pesquisa nos dois últimos anos do doutorado.

Vale lembrar também as pessoas que conviveram comigo no cotidiano e que me deram apoio: Carol! Obrigado pela paciência e pelas horas de leituras. Sabe que o faremos novamente muito em breve, mas desta vez para sua pesquisa! Minha mãe e familiares, ao Olivier pela revisão das cartas, meu sincero agradecimento.

Aos amigos também é preciso expressar gratidão, pela leitura e sugestões da Cláudia, pelo apoio e dicas da Andréa e pelas discussões acaloradas sobre a tese. Gracias!

Não há outro meio de retribuir a não ser gravando profundamente em minha memória essas lembranças, para que não se apaguem sob o efeito do tempo e dos títulos.

Merci à tous.

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Je porterai longtemps la peine d’avoir osé peindre le mal avec quelque talent.

Baudelaire à Ancelle, Bruxelles, 13 octobre 1864.

Jamais somos compreendidos, apenas louvados ou condenados.

Friedrich Nietzsche.

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RESUMO

A presente pesquisa teve origem na leitura da correspondência de Charles Baudelaire. De fato, o retrato encontrado nas cartas não correspondia à imagem do poeta que tínhamos até então, chocando-se, notadamente, com o ensaio “A arte de Baudelaire” do renomado tradutor das Flores do mal: Ivan Junqueira. Assim sendo, tendo em vista não haver tradução para o português dessa correspondência, por um lado, propomos uma tradução comentada de uma seleção de epístolas, por outro, investigamos as afirmações de Junqueira, de influência sartriana, que propagaram o mito (ou a lenda) em torno de Baudelaire, sobretudo, a revolta com o casamento da mãe com o coronel Aupick e o complexo de Édipo. Nossa tradução teve respaldo nas reflexões de Haroldo de Campos e Antoine Berman, principalmente, no cuidado com a expressão, o agenciamento das palavras, com a proposta, via a escrita mallarmeana, de valorizar a sugestão, o enigma, enfim, a potência da linguagem em detrimento da hegemonia absoluta do sentido. Tal um microscópio, a violação da sintaxe em Mallarmé possibilitou enxergar a expressão que Baudelaire inventou, muito mais discreta, mas não menos importante. Esta seleção é composta de 95 cartas, na maioria no período entre 1832-1842, da infância à seu retorno de Bourbon, para examinar as relações do poeta com sua família, situando-os também em seu contexto burguês no século XIX. Esta tese é composta não somente do exercício desafiador da tradução das missivas, mas igualmente da análise de uma tradição baudelairiana que alcançou o Brasil sem uma reflexão aprofundada com base na correspondência. Esta versão procura debater um outro Baudelaire, revelado na leitura de suas epístolas.

Palavras-chave: Baudelaire; correspondência; tradução comentada; mito;

família.

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RÉSUMÉ

Cette recherche a pour origine la lecture de la correspondance de Charles Baudelaire. En effet, le portrait retrouvé dans les lettres ne correspondait pas à l’image du poète que nous nous faisions jusqu’alors, se choquant, notamment, avec l’essai “A arte de Baudelaire” du renommé traducteur des Fleurs du mal: Ivan Junqueira. Ainsi, étant donné qu’il n’existe pas de traduction en portugais de cette correspondance, d’un côté, nous proposons une traduction commentée d’une sélection d’épîtres, de l’autre, d’enquêter les affirmations de Junqueira, d’influence sartrienne, qui ont propagé le mythe (ou la légende) autour de Baudelaire, surtout, la révolte avec le mariage de sa mère avec le colonel Aupick et le complexe d’Oedipe. Notre traduction s’est appuyée sur les réfléxions de Haroldo de Campos et d’Antoine Berman, principalement, dans le soin porté à l’expression, l’agencement des mots, avec la proposition, via l’écriture mallarméenne, de valoriser la suggestion, l’énigme, enfin, la puissance du language au détriment de l’hégémonie absolue du sens. Tel un microscope, la violation de la syntaxe chez Mallarmé nous a permis de percevoir l’expression que Baudelaire a inventée, mais beaucoup plus discrète, mais non moins importante. Cette sélection est composée de 95 lettres, la plupart de la période entre 1832-1842, de l’enfance à son retour de Bourbon, pour examiner ses rapports avec la famille, les situant également dans leur contexte bourgeois au XIXe siècle. Cette thèse est composée non seulement du défi de l’exercice de la traduction des missives, mais aussi de l’analyse d’une tradition baudelairienne qui a atteint le Brésil sans une réfléxion approfondie sur la base de la correspondance. Cette version cherche à débattre un autre Baudelaire, révélé par la lecture de ses épîtres.

Mots-clés: Baudelaire; correspondance; traduction commentée; mythe;

famille.

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SUMÁRIO

Introdução ...................................................................................... p. 09. Capítulo I – Formação e mistificação da infância: o poeta em devir e sua família. ..................................................................................... p. 26. 1.1 – O mito Baudelaire: o Príncipe das Carniças........................... p. 26. 1.2 – Formação do jovem Charles .................................................. p. 38. 1.3 – O peso de uma família burguesa. ........................................... p. 53. Capítulo II – A tradução do Texto e a escrita epistolar. ............ p. 69. 2.1 – Da escrita mallarmeana a Baudelaire: do Texto como farol;.. p. 69. 2.2 – As veredas do gênero epistolar; .............................................. p. 96. 2.3 – A correspondência de Baudelaire: histórico e critérios de seleção. ........................................................................................................ p. 105. Capítulo III – Ato tradutório das epístolas baudelairianas. .... p. 115. 3.1 – Algumas traduções: análise e cotejo; .................................... p. 115. 3.2 – Critérios estabelecidos na tradução das cartas; ..................... p. 138. 3.3 – Comentários, desafios e soluções no ato tradutório das epístolas baudelairianas. ............................................................................... p. 152. Considerações finais .................................................................... p. 169. Referências bibliográficas ........................................................... p. 187. Anexos ........................................................................................... p. 196. Anexo A – Uma conversa com Jean-Paul Avice: colaborador e amigo de Claude Pichois................................................................................ p. 196. Anexo B – Lista de siglas encontradas nas notas da tradução; ..... p. 200. Anexo C – Relação das 95 cartas traduzidas; ............................... p. 201. Anexo D – Tradução anotada bilíngue de uma seleção de 95 cartas de/a Charles Baudelaire (não disponível nesta tese) ............................. p. 205.

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Introdução

J’ai pris de la boue et j’en ai fait de l’or. Charles Baudelaire.

Baudelaire: elevação da “miséria cinzenta”.

Charles Baudelaire é considerado o poeta da modernidade e não

há atualmente como intencionar uma abordagem da poesia, sem estudar ou percorrer sua obra. Trata-se de uma necessidade. Quer o tom das Flores do mal desagrade ou não,

é preciso estar sempre bêbedo, é preciso ler Baudelaire, é preciso colher as flores de que rezam velhos autores.1

Sua poesia passou as fronteiras francesas com ímpeto, conforme

lembra Hugo Friedrich em Structure de la poésie moderne (1956) e até mesmo européias, como se sabe, chegando às mãos de poetas brasileiros como Cruz e Sousa, notadamente pelas traduções2:

Avec Baudelaire, la poésie française prend une dimension européenne. On le constate à l’influence qu’elle exerce désormais sur l’Allemagne, l’Angleterre, l’Italie et l’Espagne. Par ailleurs, l’oeuvre de Baudelaire donna rapidement naissance en France à des courants différents de ceux du romantisme, beaucoup plus novateurs, qui impregnèrent les oeuvres de Rimbaud, de Verlaine, de Mallarmé. [...] Vers la fin de sa vie, Valéry voyait encore une ligne qui conduisait directement de Baudelaire à lui-même. T.S. Eliot disait de son oeuvre qu’elle

                                                                                                               1 De Andrade, Carlos Drummond. Poesia completa. Poema da necessidade. Rio de Janeiro:

Nova Aguilar, 2006. p. 68. 2   Cf.   Meirelles,   Ricardo.   Baudelaire   no   Brasil:   Traduções.   In:   Literatura   traduzida   e  

literatura   nacional.   (Org.)   Andréia   Guerini,   Marie-­‐Hélène   Catherine   Torres,   Walter  Carlos  Costa.  Rio  de  Janeiro:  7Letras,  2008.  p.  89-­‐101.  Candido,  Antonio.  Os  primeiros  baudelairianos.  In:  ___.  A  educação  pela  noite  e  outros  ensaios.  2.ed.  –    São  Paulo:  Ática,  1989.   p.23-­‐38.   Amaral.   Gloria   Carneiro   de.   Aclimatando   Baudelaire.   –   São   Paulo:  Annablume,  1996.  

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était le plus grand exemple de poésie moderne, dans quelque langue que ce fût.3

Doravante, a poesia não será mais a mesma, pois o tom sublime

de outrora foi aliado à temática do mal, à beleza de tudo que era arruinado. Na Paris reluzente, os cafés novos, as passagens e o resplendor das grandes avenidas de Haussmann competem com os destroços, decorrentes do grande chantier, que jazem nas esquinas: resquícios da antiga cidade. Bairros inteiros destruídos fazem com que o sublime da cidade luz margeie a pobreza antes enclausurada em seus nichos mais distantes, a mais nova pobreza do proletariado.4 A cidade moderna nascente, em sua incisiva dualidade, simboliza essas flores baudelairianas.

As flores do mal foram acolhidas com gritos de estupor e reprovação ou com olhares esperançosos e entusiasmados. O livro foi condenado no mesmo ano em que Flaubert sofrera ação judicial por seu Madame Bovary. Erich Auerbach nos lembra que sua ruptura estilística deve ter horrorizado os leitores e críticos contemporâneos a Baudelaire, pois o poeta estabelece “a contradição entre o tom elevado e a indignidade tanto do tema como um todo quanto de seus detalhes.”5 O spleen baudelairiano ou das graue Elend [a “miséria cinzenta”], como o nomeia o filólogo alemão, representaria assim a “ansiedade paralisante, o pânico diante do emaranhado sem esperança de nossas vidas, o colapso total”6 cantados em estilo elevado. O poeta teria rompido não somente com a retórica que ainda persistia em certa medida na época, como se vê em Victor Hugo, apresentando poemas com teor enigmático que Rimbaud e Mallarmé levaram mais adiante, mas teria igualmente

                                                                                                               3   Friedrich,  Hugo.   Structure   de   la   poésie  moderne.  Paris:   Le   livre   de   poche,   1999.   p.   43.  

“Com  Baudelaire,  a  poesia  francesa  adquire  uma  dimensão  européia.  Constata-­‐se  pela  influência   que   ela   exerce   doravante   sobre   a   Alemanha,   a   Inglaterra,   a   Itália   e   a  Espanha.   Além   do   mais,   a   obra   de   Baudelaire   dá   rapidamente   luz   na   França   a  correntes  diferentes  das  do  romantismo,  bem  mais  inovadoras,  que  impregnaram  as  obras  de  Rimbaud,  de  Verlaine,  de  Mallarmé.  [...]  No  final  de  sua  vida,  Valéry  via  ainda  uma  linha  que  levava  diretamente  de  Baudelaire  a  ele  mesmo.  T.S.  Eliot  dizia  de  sua  obra  que  ela  era  o  maior  exemplo  de  poesia  moderna,  em  qualquer  língua  que  fosse.”  (Trad.  Nossa)  

4 Cf. Berman, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. – São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

5 Auerbach, Erich. Ensaios de literatura ocidental: filologia e crítica. Organização de Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr.; Tradução de Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2007. p. 308-309.

6 Idem. Ibid. p. 311.

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perturbado a estética clássica.7 Muitos críticos8 aguardavam a eloquência do canto elevado dos poetas e se depararam com um tom perturbador que acabou por camuflar o que verdadeiramente ficou para a posteridade. O macabro, as imagens cruas e satânicas não representam senão uma cortina de fumaça que encobre a força, a forma, a musicalidade, o erotismo, belezas bizarras, enfim, a novidade que o poeta tanto procurara extrair de sua miséria cinzenta. O tempo resgatou Baudelaire do esquecimento ou de poeta de segunda ordem, e sua influência foi afirmada de forma categórica.

No bojo de sua única obra em versos, o poeta inseminou e alimentou – consciente e inconscientemente – o indizível, através da deformação que sua percepção e reflexão aplicaram ao mundo, e da qual sofreu sua linguagem. Essa deformação deve ser vista como o fruto de um trabalho racional (un métier), contaminado por uma dose dificilmente mensurável de liberdade da imaginação criadora, “rainha das faculdades”, conforme Baudelaire, que pode possuir sua parcela de “ingenuidade infantil”9. No preâmbulo da “Filosofia da composição” de Edgar Allan Poe, Baudelaire destaca o valor desse trabalho no fazer poético, contrapondo-se aos “amadores do delírio” e a grande parte dos românticos, já que “il sera toujours utile de leur montrer quels bénéfices l’art peut tirer de la délibération, et de faire voir aux gens du monde quel labeur exige cet objet de luxe qu’on nomme Poésie.”10 Sua percepção – guiada por uma inteligência e uma sensibilidade aguçadas – “estiliza”, como diz Merleau-Ponty11, afetando os elementos a sua volta, assim

                                                                                                               7 Op. cit., 2007. p. 309. “Na estética clássica, o tema e a maneira de tratá-lo foram divididos em

três categorias: o grandioso, trágico e sublime; depois, o médio, agradável e suave; por fim, o baixo, ridículo e grotesco. [...] O que o século XIX realizou – o século XX levou ainda mais adiante – foi mudar a base de correlação: tornou-se possível abordar com seriedade temas que até então pertenciam à categoria média ou baixa e tratá-los séria e tragicamente, figurar artisticamente sua essência e seu curso.”

8 Cf. Baudelaire et M. Faguet. In: Gide, André. Morceaux choisis. Paris: NRF, 1924. p. 116-134.

9 Schopenhauer, Arthur. A arte de escrever. Pensar por si mesmo. Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 23. Schopenhauer cita uma reflexão de Aristóteles. “De fato, mesmo a mais perfeita erudição tem, em relação ao gênio, a mesma relação que existe entre um herbário e o mundo sempre novo das plantas, em contínua mudança, sempre fresco, sempre gerando novas formas. Não há nenhum contraste maior do que aquele que se verifica entre a erudição do comentador e a ingenuidade infantil dos antigos.”

10 Baudelaire, Charles. Oeuvres complètes II. Préambule de la genèse d’un poème. Paris: Gallimard, 1976. p.343. “[...] será sempre útil mostrar-lhes quais benefícios a arte pode tirar da deliberação, e fazer enxergar às pessoas do mundo qual labor exige este objeto de luxo que chamamos Poesia.” (Trad. Nossa)

11 Cf. Merleau-Ponty, Maurice. La prose du monde: le langage indirect. Paris: Gallimard, 1969.

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como, sua própria escrita. Essa deformação infringida, em um primeiro momento, ao meio, e, em um segundo momento, à poesia – aliada à tríade reflexão/intuição/imaginação12 – fez da poesia de Les fleurs du mal uma linguagem assaz fechada sobre si, e de Baudelaire, a figura de um espantoso contraste entre (im)potência/fracasso de sua existência e sucesso/repúdio de sua obra sintética.

No entanto, apesar de sua modernidade, na observação da forma de seus poemas e de parte de sua linguagem, podem ser apontadas influências clássicas, como o afirmou Marcel Proust13, comparando Baudelaire a Racine em um artigo de 1921. Os traços clássicos da poesia do parisiense acabam parcialmente por se romper, sobretudo na forma, em seus poemas em prosa cujo valor de fratura deve ser lembrado:

Desde el distanciamento irónico y burlesco, Baudelaire inaugura la poética de la modernidad expresada en una poesía urbana que rompe los moldes del verso para adaptar el nuevo espíritu lírico contradictorio a las variadas impresiones y los pensamientos del poeta. Su valor radica en haber sabido dar un giro a toda la poesía no sólo por el empleo de la prosa, sino por un enriquecimiento total del concepto de la poesía que abarca los elementos más anodinos y desagradables de la realidad.14

Isso faz dele, “um grande marco divisório na poesia.”15 E esse

marco também deve ser observado com mais atenção, pois neste ponto jaz uma condição peculiar. O lugar de Baudelaire, na encruzilhada entre o clássico e o moderno, com suas influências românticas, ora defendendo L’art pour l’art, ora condenando-o, precursor do Simbolismo, acentua a sombra que paira sobre ele, acarretando uma imagem caleidoscópica. Esta situação paradoxal e bem baudelairiana – dilacerado entre opostos – pode aclarar, por exemplo, a afirmação de                                                                                                                12  É  preciso  entender  o  conceito  de   intuição  no  sentido  bergsoniano.  Bergson,  Henri.  La  pensée  et  le  mouvant:  essais  et  conférences.  Paris:  Presses  Universitaires  de  France,  1946.  Ver   também  sobre  a   intuição:  Bunge,  Mario.   Intuicíon  y   razón.  Buenos  Aires:  Debolsillo,  2005.  13 Cf. A propos de Baudelaire. In: ____ . Sur Baudelaire, Flaubert et Morand. Paris:

Complexe, 1987. 14 Torremocha, María Victoria Utrera. Teoría del poema en prosa. Sevilla: Universidad de

Sevilla, 1999. p. 88. 15 Eliot, T.S. Baudelaire. In: Ensaios. São Paulo: Art Editora, 1989. p. 216.

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Roland Barthes que aponta o início da poesia moderna em Rimbaud,16 e não no poeta parisiense. Sua obra complexa, sua antítese exterior e interior, assim como, seu próprio entrelugar na história da literatura – elo entre a poesia clássica e a moderna – como afirma Michel Butor,17 alimentam sua incompreensão como lenha no fogo. Não por acaso, André Gide nos diz em 1924:

Durant de longues années, et je serais tenté de dire jusqu’à nos jours, certains dehors fallacieux de ce livre cachèrent en les abritant ses trésors les plus radieux. Certains gestes, certains tons crus, certains sujets de poème, et même je pense quelque affectation, une complaisance amusée à prêter au malentendu, abusèrent les contemporains et nombre de ceux qui suivirent. Baudelaire est sans doute l’artiste au sujet de qui l’on a écrit le

                                                                                                               16 Y a-t-il une écriture poétique? In: ____ . Oeuvres complètes. Le degré zéro de l’écriture

(1953): Tome 1. Paris: Seuil, 1993. 17 Butor, Michel. Essais sur les modernes. Les paradis artificiels. Paris: Gallimard, 1964. p. 07-

08. “Baudelaire occupe, non seulement dans l’histoire de la poésie française, mais dans celle de toute la poésie européenne, une situation privilégiée; il est en quelque sorte le pivot autour duquel le poésie tourne pour devenir moderne, [...]. [...] ce qui donne à Baudelaire cette place, ce rôle, cette valeur éminente comme repère en quelque sorte géographique, cette fatalité, dirais-je, ce caractère inévitable dans toute enquête concernant la poésie et son évolution depuis les premiers romantiques, dans toute réflexion actuelle sur les problèmes de la littérature et du langage, c’est que chez lui la poésie prend conscience d’elle même d’une façon toute nouvelle, c’est qu’il a su tirer plus clairement et plus prondément que tout autre avant lui, de son expérience individuelle, un certain nombre de conséquences et de conclusions sur la nature même de cette entreprise qu’est la poésie, qu’il a été capable d’en faire ressortir l’importance et l’indépendance avec tant éclat qu’aucun écrivain honnête depuis n’a pu se soustraire tout à fait à cette inquiétante lumière.”

“Baudelaire ocupa, não somente na história da poesia francesa, mas em toda a poesia européia, uma situação privilegiada; ele é de certa forma o pivô em volta do qual a poesia gira para se tornar moderna, [...]. [...] o que dá a Baudelaire esse lugar, esse papel, esse valor eminente enquanto referência, de certa maneira geográfica, essa fatalidade, diria, esse caráter inevitável em qualquer pesquisa no que concerne à poesia e sua linguagem, é que nele a poesia toma consciência de si mesma de uma forma totalmente nova, é que soube extrair mais claramente e mais profundamente que qualquer outro antes dele, de sua experiência individual, certo número de consequências e de conclusões sobre a própria natureza dessa empreitada que a poesia constitui, que ele foi capaz de ressaltar a importância e a independência que há nela com tanto brilho que escritor honesto algum desde então pode escapar completamente dessa inquietante luz.” (Trad. Nossa)

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plus de sottises ou que l’on a passé sous silence le plus injustement.18

Os comentários do escritor francês ressaltam algo vital não

somente na vida de Baudelaire, mas igualmente em toda sua obra: o mal-entendido. Como diz Pichois, Baudelaire fez a sua lenda. Assim sendo, seria preciso ressaltar a complexidade desconcertante desse poeta, suas contradições e antagonismos, outra armadilha/potência que se desenha ao caminhar em meio às biografias e às Flores do mal, que certamente contribuíram para a sua incompreensão. Otto Maria Carpeaux nos lembra que “Baudelaire é uma das figuras mais complexas da literatura universal”.19 Gide nos diz ainda que

[...] l’antithèse chez Baudelaire n’est plus seulement extérieure et verbale, procédé d’art à la manière de Hugo; mais loyale. Elle éclôt spontanément dans ce coeur catholique, qui ne connaît pas une émotion dont les contours aussitôt ne s’évadent, que ne double aussitôt son contraire, comme une ombre, ou mieux: comme un reflet dans la dualité de son coeur.20

Segundo Claude Pichois, não há como atingir o verdadeiro

Baudelaire e escapar completamente à lenda. Mas o que restou dessa propensão ao mal-entendido e da propagação dessa mitologia baudelairiana?

Esta tese tem por objetivo elaborar uma tradução comentada de uma seleção das epístolas baudelairianas e propor outro Baudelaire,

                                                                                                               18 Préface aux Fleurs du mal. In: ____ . Morceaux Choisis. Paris: NRF, 1924. p.111. “Durante

muitos anos, e estaria tentado em dizer até hoje, alguns aspectos externos e falaciosos deste livro esconderam seus tesouros mais radiosos, abrigando-os. Alguns gestos, certos tons crus, alguns assuntos de poemas, e até mesmo, creio, certa afetação, uma complacência divertida a levar ao mal-entendido, enganaram os contemporâneos e muitos daqueles que seguiram. Baudelaire é sem dúvida o artista de quem se escreveu mais tolices ou que foi abandonado o mais injustamente ao silêncio.” (Trad. Nossa)

19 Carpeaux, Otto Maria. História da literatura ocidental. – 3ª Ed. – Brasília: Senado Federal, Conselho editorial, 2008. p. 1821-1822.

20 Op. cit., 1924. p.113-114. “[...] a antítese em Baudelaire não é somente externa e verbal, procedimento da arte à maneira de Hugo; mas leal. Ela desabrocha espontaneamente neste coração católico, que não conhece uma emoção cujos contornos logo não escapem, não duplique logo seu contrário, como uma sombra, ou melhor: como um reflexo na dualidade de seu coração.” (Trad. Nossa)

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desconstruindo, na medida do possível, essa figura mitológica a partir, notadamente, de sua correspondência.

A tradução comentada de uma seleção dessas missivas constitui uma verdadeira contribuição para o desenvolvimento do conhecimento no âmbito dos Estudos da Tradução no Brasil, já que, apesar de muito pesquisar, não haveria nenhuma tradução de suas cartas para o português.21 Existem fragmentos em algumas obras sobre ou de Baudelaire, mas nenhum livro que reúna toda ou uma seleção da correspondência do poeta22. Existem edições completas ou seleções em italiano, espanhol, alemão e inglês da correspondência, dentre as quais várias obras reunindo missivas endereçadas à mãe. Eis um dos principais motivos da escolha do poeta de As flores do mal: a possibilidade de produzir uma tradução inédita em língua portuguesa, assim como, reacender o debate em torno da figura mitológica de Baudelaire.

Esse lugar lacunar das epístolas baudelairianas no Brasil deve atrair a atenção sobre a situação do gênero. Há uma discrepância entre o volume de produção de cartas por renomados escritores, pensadores e artistas e seu devido estudo. Percebe-se o pouco ou valor crescente que tem a correspondência de um autor. Não há um espaço específico reservado nas livrarias para o gênero. Poucas obras reunindo cartas estão disponíveis, outras se encontram esgotadas e as pequisas nesta área ainda são pouco numerosas. Como veremos mais adiante o gênero teria sido apartado – de forma significativa mas não absoluta – pela crítica literária, segundo Silviano Santiago, porque no século XX houve uma separação quase intransponível entre vida e obra nos estudos literários.                                                                                                                21 A pesquisa foi realizada em acervos virtuais de bibliotecas universitárias: UFSC, UFRJ,

UFMG, USP (inclusive na FFLCH), UNICAMP, UNESP, PUC SP, PUC MG, UC (Universidade de Coimbra) e UP (Universidade de Porto). Igualmente no Index Translationum da UNESCO, na Biblioteca Nacional, na biblioteca do Congresso Americano e na internet. Investigou-se o banco de teses da CAPES e o da UNICAMP. No recenceamento bibliográfico realizado pelo W. T. Bandy center of Baudelaire studies para os anos 2005 a 2009, apenas uma tradução foi encontrada para o italiano e nenhum artigo que aborde a correspondência como cerne de pesquisa. Observou-se da mesma forma a bibliografia de teses, ensaios, artigos e um levantamento bibliográfico e crítico sobre o poeta incluído na obra Poesia e Prosa publicada pela Nova Aguilar. Até o presente momento, nenhuma obra/tese publicada com uma tradução em língua portuguesa da correspondência (ou seleção) de Baudelaire foi encontrada.

22 Cf. Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do Capitalismo: obras escolhidas volume III. São Paulo: Brasiliense, 1989. Baudelaire, Charles. Pequenos poemas em prosa. Tradução de Dorothée de Bruchard. – Florianópolis: Editora da UFSC, 1988. Baronian, Jean-Baptiste. Baudelaire. Tradução de Júlia de Rosa Simões. – Porto Alegre: LP&M, 2010.

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Além da ausência de tradução, a motivação de tal empreitada advém da própria leitura das cartas cuja riqueza nos impressionara e engendrou algumas interrogações durante e, sobretudo, logo após o mestrado. De fato, malgrado certa familiaridade que tínhamos até então com o poeta por ser um dos autores da minha dissertação, a análise dessa correspondência em seu conjunto provocou um importante choque na imagem23 que tinha cinzelado de Baudelaire. O poeta maldito, da infância revoltada, com relacionamento conturbado com o padrasto e que não superou a fase edipiana, traços afirmados de forma contundente por alguns comentaristas, inclusive, a partir de trechos de cartas, embateu-se aos poucos com outro Baudelaire. Ao final, o contato direto com essas epístolas abriu espaço para a dúvida e para o questionamento dessa imagem, que pareceu-me então mistificada, o que instigou minha curiosidade para com as missivas baudelairianas e o que poderiam ainda revelar. Como aponta justamente Gilles Deleuze na sua leitura da Recherche de Marcel Proust:

Um dos temas em que Proust mais insiste é este: a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre o pensamento. [...] A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verdadeiro.24

Essa violência provocada pela leitura da correspondência me

impulsionou a refletir de forma diversa o Baudelaire que acreditava ter alcançado e evitar o quanto possível o mito que o envolve. Por outro lado, a importância do estudo destas epístolas ganha em intensidade se pensarmos que o mais renomado tradutor dos versos do poeta no Brasil reproduz essa imagem questionável. Foi particularmente contra o ensaio de Ivan Junqueira, “A arte de Baudelaire”, que minha leitura da

                                                                                                               23 Entende-se o termo “imagem”, do latim imago, nos sentidos de “retrato” e “representação”.

Meu interesse está centrado no retrato que se faz de Baudelaire pelas representações de seus traços físicos, de sua personalidade, de seus atos e pensamento, encontradas não somente nas biografias que lhe foram dedicadas, a exemplo da realizada por Claude Pichois, mas igualmente em ensaios como os de Junqueira e Sartre. O sentido de “semelhança” que o termo possui, sorte de fidelidade da imagem no espelho, é questionado a proveito da compreensão da imagem enquanto narrativa, fonte de representações do objeto estudado, que o retrato constrói.

24 Deleuze, Gilles. Proust e os signos. / tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 15.

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correspondência se chocou. Além disso, este estudo, que precede sua tradução, está presente notadamente no volume único Poesia e Prosa publicado em 1995 pela editora Nova Aguilar, e igualmente pela editora Nova Fronteira. É referência sua tradução de As flores do mal (1985), considerada um best-seller por ter ultrapassado sua 10ª edição e única de renome, realmente acessível atualmente tanto por leitores comuns quanto por acadêmicos.25 Outro tradutor, não menos renomado, José Paulo Paes, afirma: “Depois de perder o pai quando contava apenas seis anos de idade, Charles Baudelaire (1821-1867) jamais se conformou com o segundo casamento de sua mãe, que o levou desde cedo a atitudes de rebeldia.”26 No que se refere às pesquisas acadêmicas, encontramos a tese (2004) “Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire: Trajetórias e maturidade estética e poética”27, que confirma a famosa revolta com o segundo casamento.

A hipótese aqui avançada é a de que Ivan Junqueira está inserido em um pensamento que tem origem em outros baudelairianos. De certa forma, uma linhagem francesa de pesquisadores (Crépet pai e filho, Claude Pichois, de um lado e François Porché e Jean-Paul Sartre do outro), em graus e formas diversas, pode ter “contaminado” – como em um efeito dominó – essa imagem que se tem de Baudelaire, fortemente irradiada no Brasil por Ivan Junqueira, que por sua vez parece ter alimentado o eco de um histórico eco.28 Encontramos em Sartre, por exemplo, as mesmas afirmações. O discurso do filósofo francês não deixa espaço para dúvidas; não questiona, afirma; enfim, em um estilo impar, constrói uma argumentação de grande poderio que deixa pouco espaço ao questionamento. Para contra-argumentar, não haveria outra escolha senão uma análise da correspondência, já que é dessa leitura (ou parte dela) que nasce essa visão.

                                                                                                               25 Meirelles, Ricardo. Op. cit. p. 99. A tradução de Haddad está esgotada. A da Martin Claret,

muito “próxima” (para não dizer plágio) da de Haddad, não contém nenhum ensaio sobre o poeta, como era de se esperar. Quanto à seleção de Guilherme de Almeida, até pouco esgotada, foi recentemente reeditada pela Editora 34 (2010).

26 Poesia erótica em tradução / seleção, tradução e notas de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 192.

27   Philippov,   Renata.   Edgar   Allan   Poe   e   Charles   Baudelaire:   Trajetórias   e   maturidade  estética   e   poética.   Tese   apresentada   ao   Programa   de   Pós-­‐Graduação   em   Língua   e  Literatura  Francesa,  do  Departamento  de  Letras  Modernas  da  Faculdade  de  Filosofia,  Letras  e  Ciências  Humanas  da  Universidade  de  São  Paulo,  para  obtenção  do  título  de  Doutor  em  Letras.  São  Paulo:  USP,  2004.  

28 Entende-se esse jogo de palavras como o eco (ensaio de Junqueira) de um histórico eco (afirmações de Porché e Sartre, de um lado, e as dos Crépet e Claude Pichois, do outro).

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Não obstante, essa correspondência apresenta uma armadilha para o pesquisador, pois é tamanha a riqueza das missivas e são tão numerosas – cerca de 1500 documentos – que não é viável abordá-las no seu conjunto em uma pesquisa de quatro anos. Isto fica claro se lembrarmos que a família Crépet (Eugène e Jacques) e Claude Pichois dedicaram suas vidas de pesquisadores para investigar, reunir e transcrever, missivas que estavam perdidas, espalhadas, por vezes camufladas entre destinatários da família, amigos e coleções particulares. Foram três gerações que se debruçaram sobre autógrafos e cópias das cartas de Baudelaire para, aos poucos, aumentar, completar, anotar o primeiro volume de sua correspondência publicado inicialmente por Eugène Crépet em 1887. Devemos aqui apreciar o labor de tal tarefa, o que implica em duas situações: Primeiro, a quase impossibilidade de averiguar a exatidão das transcrições das cartas. Se me proponho a realizar a árdua tarefa da tradução de uma seleção, parece pouco provável conseguir ter acesso a esse grande volume de autógrafos dispersos. Tratar-se-ia de outra pesquisa, talvez relacionada com a crítica genética. Segundo, a obrigação de selecioná-las a partir de critérios bem definidos para viabilizar a tradução comentada. Esta escolha, por mais objetiva que seja, certamente mudaria sensivelmente segundo o interesse e/ou a biblioteca do pesquisador, pois existem seguramente diversas formas de abordar o conjunto das cartas. Além disso, o volume das epístolas apresenta dificuldades para se eleger uma seleção, no sentido em que há temas, embora dignos de grande interesse, que permeiam um número muito elevado de missivas. É o caso de sua produção poética ou de suas formação e atividade intelectuais. É óbvio que tal seleção acarreta certa frustração, pois ao escolher, precisamos deixar de lado uma importante riqueza que não é possível tratar aqui. No mais, como foi visto, surge a oportunidade de selecionar as epístolas conforme o que questionam com veemência: a imagem mistificada de Charles Baudelaire. Para tanto, uma escolha pautada nas cartas à mãe não atenderia totalmente às expectativas, já que deixaria de lado a possibilidade de avaliar o relacionamento de Charles com seu padrasto e seu meio-irmão.

Assim sendo, esta seleção se fundamentará em dois critérios pré-estabelecidos: o cronológico e o temático. Esse recorte cronológico proposto é o da infância e da juventude do poeta até sua maioridade, compreendendo todas suas cartas conhecidas de 1832 a 1842. Este recorte possibilitará (re)avaliar o relacionamento de Charles com sua família. Esse período de dez anos é essencial para debater o tema

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proposto que é decorrente, como vimos, da própria leitura da correspondência: o mito Baudelaire.

Meu objeto de estudo será, portanto, as cartas escritas pelo poeta de As flores do mal reunidas em duas obras: sua correspondência completa publicada pela Gallimard em 1973 e as Nouvelles lettres pela Fayard em 2000, ambas organizadas com afinco por um dos mais renomados baudelairianos: Claude Pichois. Além dessas, algumas missivas enviadas pelo casal Aupick e por Alphonse Baudelaire foram selecionadas com o intuito de obter valiosas informações para o entendimento da personalidade de Baudelaire, de seu comportamento e das reações de sua família. Estas se encontram notadamente na volumosa biografia escrita por Pichois, publicada pela Julliard em 1987, e/ou nas numerosas notas da correspondência completa.

O título dessa tese estabelece uma analogia entre os vitrais e as cartas, no sentido em que ambas contam uma história. Os vitrais apresentavam, além do aspecto estético e arquitetônico, o fim catequético de retratar aos fiéis as palavras do livro sagrado em uma época em que não tinham acesso à bíblia. As missivas de um autor, por sua vez, estão condenadas a permanecerem incompletas. Eis nessa incompletude a imagem de um vitral partido. As epístolas e os vitrais representam assim uma narrativa fragmentada atravessada pela luz/olhar exterior. E esse olhar que vem de fora, em ângulos diversos, cria um jogo de cores, tons e reflexos que representam os horizontes possíveis de leitura da correspondência.

A estrutura da tese tomou forma no mesmo conceito de mosaico, à imagem do vitral, pois é formado por fragmentos de narrativas que estabelecem um todo, as diferentes partes podendo ser lidas separadamente e/ou no seu conjunto. O pensamento alheio é não somente inevitável, como alicerça o nosso, de forma consciente ou não. No caso dessa pesquisa, as diversas citações compõem a pedra de toque da reflexão. A citação direta foi preferida à paráfrase para deixar espaço à interpretação. As numerosas notas têm o intuito de auxiliar o leitor, caso seja necessário, dando acesso imediato a trechos das leituras referenciadas, já que nossas bibliotecas podem ser bastante distintas tendo em vista a vastidão do conhecimento.

O capítulo I, “Formação e mistificação da infância: o poeta em devir e sua família”, tem por função revelar e adentrar com mais minúcia o quão Baudelaire sofreu do peso de sua busca estética do mal e

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da surpresa, como apontou Walter Benjamin ao empregar o conceito de putsch29. Ver-se-á que os mais insensatos boatos circularam sobre ele que, aliás, alimentou-os. Trata-se de mostrar o quão mistificado foi em sua época para destacar a complexidade do autor dos Pequenos poemas em prosa. Este é o passo inicial realizado na primeira parte, “O mito Baudelaire: o Príncipe das Carniças”, que leva à interrogação: O que subsistiu desse mito criado pela incompreensão? A questão levará, portanto, às cartas, a o que elas revelam e ao confronto desse contato direto com as leituras dos comentaristas. É nesse momento que há embate entre correspondência e as palavras contundentes de Junqueira. Nesse choque, penso que a pesquisa deve provar e buscar a origem dessa mistificação e é o que se procurou realizar na segunda parte intitulada “Formação do jovem Charles”, na qual foi investigado o relacionamento com a família e sua formação escolar. A terceira parte, “O peso da família burguesa”, tem por intuito propôr uma discussão sobre a noção de família no século XIX, o que permitiria melhor entender o papel de cada membro, os valores dessa poderosa instituição e a reação dos familiares perante o jovem Charles. Eis aqui a leitura direta da correspondência – que iniciou esse questionamento – abrindo outras perspectivas. Para tanto, numerosos trechos das epístolas serão citados para que se possa vislumbrar outro Baudelaire.

O capítulo II, “A tradução do Texto e a escrita epistolar”, apresenta a teoria da tradução iniciada na primeira parte pelo conceito de moeda falsa. Meu entendimento da tradução literária, visto de um modo mais amplo, será associado a esse conceito no sentido em que procura ressaltar o valor da intraduzibilidade do texto literário. A dissonância entre o texto de partida e o de chegada representaria não a falsificação de uma obra, mas, ao contrário, nessa intraduzibilidade, a potência da escrita literária. Assim sendo, a noção negativa de falsário atribuída ao tradutor sofre uma reviravolta, levando-a antes a uma imagem positiva, a tradução vista como “máquina de produzir eventos”. Nesse sentido, procura-se, com o exemplo cabal da escrita mallarmeana, apontar para uma literatura que simboliza perfeitamente essa intraduzibilidade, sobretudo, sob a lógica do sentido. A escrita mallarmeana é um meio, não um fim, como um microscópio debruçado sobre um aspecto da escrita literária, que facilita a compreensão do mesmo, que ocorre discretamente, na escrita baudelairiana. A análise das traduções de Haroldo de Campos e de Ana de Alencar têm por objetivo mostrar                                                                                                                29 Op. cit., Benjamin, Walter. p. 97.

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formas assaz diferentes de abordagem desse valor encontrado no texto. Procuro, com esse exemplo, apontar para a importância da potência do texto literário que deveria ser preservado na tradução, mas que acaba por ser fragilizado pela predominância da busca do sentido. Ora, um dos valores essenciais da arte é a expressão que é representada na literatura por uma formulação peculiar das palavras – que será nomeada agenciamento – e pela sugestão. Eis a razão de ser da escrita mallarmeana antes de abordar as epístolas baudelairianas. Pareceu-me imprescindível apontar e analisar a peculiariedade da prosa e da poesia mallarmeana (e sua tradução), já que nela se produz um agenciamento da palavra, único e intenso, o que nos permite enxergar seu valor de forma mais nítida do que em Baudelaire ou na literatura em geral. Mallarmé não representa toda a literatura ou um modelo único, senda que a literatura moderna seguiu, como afirma Hugo Friedrich em sua obra supracitada. Alfonso Berardinelli30 nos alerta a respeito, com razão, citando notadamente as obras de Walt Whitman e Emily Dickinson como modelos distintos. Mas essa escrita singular chama a atenção sobre o valor da expressão no texto literário, principalmente, porque a maneira com que Mallarmé faz uso da palavra é tão original e transgressora das leis estabelecidas pela gramática francesa, que impele a observar a forma com mais atenção, assim como Walter Benjamin o assinalou em seu renomado ensaio “A tarefa do tradutor”31. Assim, a expressão mallarmeana nos conduz ao valor do agenciamento das palavras (a forma), em detrimento do sentido, na literatura, em seguida, à tradução da correspondência de Baudelaire – gênero híbrido que abarca características literárias e autobiográficas, no qual esse valor de agenciamento é camuflado – e, por fim, à própria (im)potência da linguagem. Para enfrentar esse texto multifacetado, emprego as ideias de Antoine Berman, no que tange ao conceito de letra, e as de Haroldo de Campos relativamente à noção de recriação, teóricos abordados aqui de forma complementar. Suas reflexões formam o alicerce das minhas, mesmo se nem sempre são diretamente explicitadas. A segunda parte, intitulada “As veredas do gênero epistolar”, procura discutir o hibridismo do gênero epistolar no intuito de melhor entender suas particularidades. Nesse sentido, mostrar-se-á que as cartas necessitam de                                                                                                                30 Cf. Berardinelli, Alfonso. Da poesia à prosa. Tradução de Maurício Santana Dias. São

Paulo: Cosac Naify, 2007. 31 Clássicos da teoria da tradução. Volume 1. Alemão-Português. Werner Heidermann, org.

Tradução de Susana Kamppf Lages. Florianópolis: UFSC, Núcleo de Tradução, 2001. p. 186-215.

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uma abordagem semântica e estética. Finalmente, a terceira parte, “A correspondência de Baudelaire: histórico e critérios de seleção”, tratará de apresentar um histórico das epístolas baudelairianas, aprofundar a maneira com a qual os critérios de seleção foram eleitos e apontar as razões da escolha da edição que serviu de texto fonte.

O capítulo III, abarcará em sua primeira parte, nomeada “Algumas traduções: análise e cotejo”, o estudo de algumas traduções da correspondência de Baudelaire em inglês, italiano, espanhol e alemão. Procurar-se-á igualmente avaliar uma seleção em francês realizada por Claude Pichois et Jérôme Thélot, assim como a tradução para o português de cartas de autores32 do século XIX. Este cotejo realizado entre traduções permite auxiliar o ato tradutório em seu complexo processo de decisões, notadamente, no que se refere à linguagem.

A segunda parte do capítulo, “Critérios estabelecidos na tradução das cartas” procura apresentar os critérios eleitos para minha tradução no que tange a questões como tipografia, emprego dos pronomes, sintaxe, nomes e lugares estrangeiros, pontuação, entre outras. A terceira parte, “Comentários, desafios e soluções no ato tradutório das epístolas baudelairianas”, apontará e comentará frases, expressões, palavras que necessitaram maior atenção e/ou trouxeram maior dificuldade durante a tradução e que revelam os diferentes desafios do processo tradutório.

Em anexo encontrar-se-á quatro documentos: o Anexo A com uma conversa com Jean-Paul Avice: colaborador e amigo de Claude Pichois, o Anexo B com uma lista de siglas encontradas nas notas da tradução, o Anexo C com a relação das 95 cartas traduzidas e, finalmente, o Anexo D com a Tradução bilíngue de uma seleção de cartas de Charles Baudelaire, compreendendo o período de 1832 a 1842 e algumas epístolas da família para dialogar com as do poeta. As missivas são apresentadas com o texto fonte, pondo em paralelo, à esquerda, as missivas em francês e, à direita, as em português, de sorte que sua paginação facilite leitura e análise. As notas são apresentadas de duas maneiras: primeiro, a tradução de uma seleção das notas estabelecidas por Claude Pichois na edição da Gallimard, sem nenhuma menção. Segundo, notas compostas especialmente para essa tradução, indicadas como “Notas do tradutor” (N. do Trad.). Esta tradução não está disponível na versão final desta tese e será publicada futuramente.

                                                                                                               32 Notadamente, Victor Hugo, Flaubert, Rimbaud, Tchékhov e Dostoiévski.

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No que concerne à pesquisa sobre o poeta, a importante biografia supracitada de Claude Pichois33 sobre Baudelaire será de grande valia, além de obras como as de Walter Benjamin, Charles Baudelaire: um lírico no auge do Capitalismo, os ensaios “O fracasso de Baudelaire” (In: A parte do fogo), “As flores do mal e o sublime” (In: Ensaios de literatura ocidental) e “A arte de Baudelaire” (In: Charles Baudelaire: Poesia e prosa), respectivamente de Maurice Blanchot, Erich Auerbach e Ivan Junqueira, assim como, de Robert Kopp, o Baudelaire: Le soleil noir de la modernité, os Baudelaire de Marcel Ruff e Jean-Paul Sartre, e finalmente, o La vie douloureuse de Charles Baudelaire de François Porché, entre os mais importantes estudos sobre o poeta e sua obra.

No que se refere à teoria da tradução e à literária, as obras A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. O intraduzível como valor e “Da tradução como criação e como crítica” (In: Metalinguagem e outras metas), de Antoine Berman e Haroldo de Campos, serão centrais em nosso processo tradutório. No campo literário, Structure de la poésie moderne, de Hugo Friedrich, Da poesia à prosa, de Alfonso Berardinelli, Enigmas: Egipcio, barroco en la sociedad y el arte, de Mario Perniola, “Le mythe de Mallarmé” (In: La part du feu) de Maurice Blanchot e as Variété I, II e III, de Paul Valéry, dentre os estudos mais importantes.

Para a teoria do gênero epistolar, abordamos as obras e artigos (ou teses) seguintes: a introdução de Silviano Santiago ao volume da correspondência entre Carlos Drummond e Mario de Andrade intitulado Carlos & Mário: Correspondência completa entre Carlos Drummond de Andrade (inédita) e Mario de Andrade, La correspondance: Les usages de la lettre au XIX ͤ siècle, organizado por Roger Chartier, L’épistolaire ou la pensée nomade, de Brigitte Diaz e o artigo do professor Marcos Antonio de Moraes, “Edição da Correspondência reunida de Mario de Andrade: Histórico e alguns pressupostos”, dentre os mais relevantes.

Para uma melhor compreensão das relações entre Baudelaire e sua família, foi preciso situar o objeto de estudo em seu contexto histórico, conforme a análise de Pierre Bourdieu, e estabelecer uma noção do conceito de “família” no século XIX. Para Bourdieu

Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social, isto

                                                                                                               33 Pichois, Claude; Ziegler, Jean. Baudelaire. Paris: Julliard, 1987.

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é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado. [...] não podemos compreender uma trajetória [...] sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado – pelo menos um certo número de estados pertinentes – ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis.34

Em tal tarefa, beneficiei-me da importante obra organizada por

Michelle Perrot, História da vida privada, que abrange o período compreendido entre a Revolução Francesa e a Primeira Guerra, em seu quarto volume.

Para enfrentar a tradução em si das cartas, principalmente, no que tange ao vocabulário, usei dicionários on-line tais como Larousse, Littré, Littré +, Dictionnaires d’Autrefois (http://www.lexilogos.com/francais_langue_dictionnaires.htm). Para o português, os dicionários Houaiss e Aurélio, ambos em CD-ROM, e o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx) foram de grande valia. As enciclopédias Wikipédia (versões em francês, português e inglês) e a Larousse também foram consultadas no intuito de melhor entender alguns termos técnicos, notadamente, no que se refere à linguagem da navegação e das embarcações. Finalmente, ferramentas de pesquisa on-line como o Google, por exemplo, se revelam igualmente de grande utilidade, pois nos permitem encontrar locuções ou vocábulos em diversos contextos, corroborando os dicionários, ou acrescentando significados novos. No mais, a leitura de diversas traduções para o português de correspondências de autores do século XIX possibilitou a resolução de numerosos problemas tradutórios.

A escrita metafórica, elemento próprio à linguagem e a muitos pesquisadores renomados, que irrompe por vezes na pesquisa, procura

                                                                                                               34 Bourdieu, Pierre. A ilusão biográfica. In: Usos e abusos da história oral. / Marieta de

Moraes Ferreira e Janaína Amado, coordenadoras. – 6ª ed. – Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2005. p. 190.

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criar imagens a partir de reflexões abstratas: tratar-se de um estilo pessoal e da tentativa de engendrar um elemento bizarro, como diria Baudelaire, sem o qual a beleza da reflexão seria fria.

O que parece irromper de uma abordagem panorâmica desses escritos epistolares, é a certeza de uma dúvida que se reveste da promessa de possíveis. É na fissura provocada pelo choque que a dúvida se imiscui possibilitando outras investidas. Aproximemo-nos então das missivas de Charles Baudelaire, abordando a correspondência do autor enquanto vasto continente da escrita de si,35 ou seja, uma escrita que assume igualmente a subjetividade de seu autor construindo sobre ela a “sua verdade” e que nos permite apreender os reflexos de um vitral partido. Debrucemo-nos sobre o papel, como um apartado recado, que paira sobre o asfalto e que nos conduz por luminosas passagens.

                                                                                                               35 Diaz, Brigitte. L’épistolaire ou la pensée nomade. Paris: PUF, 2002. p.91.

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Capítulo I

Formação e mistificação da infância: o poeta em devir e sua família. 1.1 O mito Baudelaire: o Príncipe das Carniças. 36

Muito se diz a respeito da lenda alimentada por Baudelaire para estabelecer sua reputação. Os artigos dos jornalistas Louis Goudall em 4 de novembro de 1855 ou de Édouard Duranty em 13 de novembro de 1856, ambos do jornal Le Figaro37, são reveladores desse mal-entedido, da confusão entre o eu poético e o autor como indivíduo real. Os temas de As flores do mal são diretamente associados ao autor indivíduo real, daí decorre a expressão “Prince des Charognes” e a associação da fisionomia do poeta a um lobisomen. Como se Mary Shelley fosse ela mesma monstruosa por ser a autora de Frankenstein. Não obstante, vale questionar quem iniciou esse mito. É verrossimilhante a possibilidade de Baudelaire, não havendo como lutar contra a mistificação de sua pessoa e de seus versos, ter alimentado o mito que ia se inscrevendo com as publicações dos poemas, em suma, assim que tomava a pena (la plume). Sua originalidade ou até estranheza e a novidade de sua obra, podem ter certamente favorecido esse mito. Muitos não entenderam o valor da imaginação e do sonho na escrita baudelairiana, tampouco a revolução que produzia na literatura francesa. Adentrando essa lenda, vale notar o grau de incompreensão da sociedade na qual se debateu e que ultrapassa o lado barroco de Baudelaire. Assim, na Bélgica, ora é visto como agente da polícia secreta francesa, ora cria ele mesmo o rumor de que é homossexual e, cúmulo do absurdo, que matara seu pai e o comera. E acreditaram nele.38 Uma senhora que o encontrara, se surpreendera em não ver no poeta um embriagado e fétido personagem cujo retrato era comentado.39 Certo dia, em Paris, pintou o cabelo de verde e se

                                                                                                               36 Mito, do grego mûthos: fábula, relato, discurso, palavra. Tomamos aqui o sentido da

afirmação fantasiosa, inverídica, que é disseminada com fins de dominação ou difamatórios. Quando emprego o termo “lenda”, derivado do latim legenda, entendo-o como um mito popular de origem recente.

37 Kopp, Robert. Baudelaire: Le soleil noir de la modernité. Paris : Gallimard, 2004. p. 132-133.

38 Carta 155 a Madame Paul Meurice, Bruxelas, 3 de janeiro de 1865. Baudelaire, Charles. Correspondance. Choix et présentation de Claude Pichois et Jérôme Thélot. Paris: Gallimard, 2000. p. 312-313.

39 Carta 119 a Sainte-Beuve de aproximadamente 24 de janeiro de 1862. Idem. Ibid. p. 264-266.

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apresentou ao escritor Maxime Du Camp, membro da Academia francesa de letras e amigo de Flaubert, que preferiu fingir nada ver de estranho para contrariar a provocação. Em seus Souvenirs littéraires, o acadêmico chegou até mesmo a descrever o poeta parisiense como sendo ignorante.40 Baudelaire mandou sua candidatura para a Academia postulando a cadeira de um religioso para a grande surpresa (e/ou escândalo) de muitos, todavia, respeitava sinceramente a obra de Henri Lacordaire. Das Flores do mal, o próprio autor disse, supondo que a obra fosse diabólica: “existe-t-il, pourrait-on dire, quelqu’un de plus catholique que le Diable?”41 Sua conduta e suas vestimentas originais, seu gosto em provocar a surpresa na estética do putsch, a temática de sua poesia, deviam parecer bastante excêntricas para o homem burguês do século XIX, inclusive, por parte dos autores renomados da época que viam no folhetim uma forma de prosperidade, na literatura, um veio mercantil. Autoridades/celebridades dignas, homens de mérito no molde da melhor burguesia, Baudelaire os provocara com pequenas frases como: “eu que sou filho de padre.” O próprio Delacroix que o poeta tanto admirou e louvou jamais retribuiu essas considerações. Tornou-se o “Prince des Charognes” ou o “monstrueux excentrique” (monstruoso excêntrico) cuja feiura era descrita como repulsiva, pela imagem que dilatava na mente dos leitores a partir da obra e dos artigos de jornais. Assim que tomou a pena, como qualquer autor que perde o controle sobre seu texto ao resvalar de suas mãos, teve que lidar com rumores e julgamentos moralizadores que encobriram o valor de sua poesia. A mão suportava uma pena maior e o mal entendido que foi talvez não tivera outra escolha para se rir das tolices, senão alimentar, de forma provocativa, as fontes do mal-entendido, para estabelecer sua solidão em meio à tolice geral.

Examinando alguns títulos de estudos sobre a vida de Baudelaire, não há como não se surpreender, principalmente: Baudelaire devant la douleur (Baudelaire frente à dor), de Jean Massin (1944) ou La vie douloureuse de Charles Baudelaire (A vida dolorosa de Charles Baudelaire), de François Porché (1927). Obra, aliás, que é frequentemente citada. Os títulos em si já levam para uma riscosa

                                                                                                               40 Du Camp, Maxime. Souvenirs littéraires. Tome II: 1850-1880. Paris: L’Harmattan, 1993. p.

65. 41 Carta 114 a Victor de Laprade datada de 23 de dezembro de 1861. Op. cit. p. 254-257.

“existe, por assim dizer, alguém mais católico do que o Diabo?”. (Trad. Nossa) Seria bastante interessante fazer um paralelo aqui com o conto “A igreja do diabo”, de Machado de Assis.

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direção. Pois, como veremos, o poeta escolheu sua vida. Não foi vítima de uma fatalidade – a não ser para o olhar místico – que pesou sobre seus ombros mais do que qualquer outro sujeito comum. Lembremos, sem mesmo citar fontes históricas, dos pobres frente ao café no poema “Os olhos dos pobres”, das condições de trabalho e de miséria da época retratada em romances naturalistas e realistas, tais como o Germinal de Zola ou o Madame Bovary de Flaubert. Ao analisar a situação, no século XIX, dos mineiros ou o triste fim de uma orfã, como a filha dos Bovary, verdadeira vítima da prosa de Flaubert, como aceitar alguma maldição sobre o destino do poeta? Com exceção da perda do pai aos 6 anos de idade, qual vida particularmente dolorosa Baudelaire teve que não tivesse por fonte na própria vereda que decidiu tomar ou na incompreensão da sociedade? O jovem Charles se aproxima mais da imagem do filho mimado do que do rebelde rejeitado, como assinala com razão Pichois em sua biografia. Alcançando a maioridade, tinha a oportunidade de fazer uma brilhante carreira, segundo os ideais burgueses e as esperanças dos pais, inclusive, com o apoio do padrasto, conforme o que relata a mãe do poeta. Talvez seja descabido atribuir-lhe o rótulo de “poeta maldito”. O termo acarreta uma conotação religiosa por demais forte.42 Mesma que seja interpretada no sentido do artista condenado pela sociedade, o amálgama parece quase inevitável. Já é hora de questionar essa expressão, pois até mesmo pela idade em que faleceu, não haveria como afirmar que foi uma morte tão precoce. A “expectativa média de vida aumentou muito ao longo do século XIX. Em 1801, era de trinta anos. Em 1850, é de 38 anos para os homens e de 41 para as mulheres; em 1913, de 48 anos para os homens e de 52 para as mulheres.”43 Contando com a disparidade entre a burguesia e o povo, ainda assim, em uma cidade como Bordeaux, em 1823, a idade média no momento da morte é de 49 anos entre os burgueses. Ora, malgrado Baudelaire tenha levado uma vida adulta desregrada, longe de todos os confortos de um lar acolhedor, fugindo dos credores e sofrendo das consequências da sífilis, faleceu com pouco mais de 46 anos. A guisa de comparação, Flaubert faleceu com 58 anos, Balzac e Verlaine com 51

                                                                                                               42   Conforme   definições   encontradas   no   Dicionário   eletrônico   Houaiss   de   língua  

portuguesa   1.0.  :   1.   “que   ou   aquele   que   foi   objeto   de   maldição;   amaldiçoado,  condenado”  4.   “Que  ou   aquele  que  o  destino   e   a   sociedade  parecem  condenar,   cuja  produção  passa  despercebida  ou  é  alvo  de  escárnio  (diz-­‐se  de  artista,  esp.  poeta)”.  

43 História da vida privada, 4: Da Revolução Francesa à Primeira Guerra / organização Michelle Perrot; tradução Denise Bottmann, Bernardo Joffily – São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 238.

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anos, Mallarmé 56 anos, Gautier 61 anos, Eugène Sue 53 anos, Sainte-Beuve 64 anos. As exceções são escritores como Victor Hugo (83 anos), Lamartine (79 anos), Rimbaud (37 anos) e artistas como Nadar (89 anos). Não há como negar que existem poucos elementos para julgar do sofrimento do jovem Charles quando da morte de seu pai. Por outro lado, os males dos quais sofreu em decorrência da doença venérea até a afasia, tendo em vista o pouco avanço da medicina sobre essa doença na época, foi fonte de dores virulentas no final de sua existência. Mesmo assim, tratava-se de um dos males do século, juntamente à tuberculose, tendo por origem uma conduta de vida que Baudelaire sabia não ser desprovida de riscos. Muito provavelmente, como se observa em uma missiva de 1839, já havia sido aconselhado, por um amigo do meio-irmão, sobre o tratamento para uma blenorragia, conforme aponta Pichois. Baudelaire é muito mais o poeta étranger, como em seu poema em prosa, do que amaldiçoado ou mesmo infortunado.

Essas constatações nos levam ao ponto em que se deve retomar e examinar com cautela a correspondência do poeta. A pesquisa deveria abarcar o conjunto das epístolas, inclusive, os trechos mais citados pela tradição. Não obstante, o volume das cartas é tal e há nelas tamanha riqueza, que foi preciso estabelecer uma seleção.

Há duas vertentes que precisam ser questionadas: a famosa fissura (“fêlure”), entendida como trauma, depois do segundo casamento da mãe com o oficial Aupick que provocara a revolta do jovem Charles e a relação passional, segundo Porché, incestuosa, conforme Sartre e Junqueira, entre a mãe e o poeta em devir. Em que medida essas duas questões não corroboram o mito?

A leitura em si das cartas já revela uma curiosa discrepância entre algumas afirmações contundentes de baudelairianos e o que subjaz às palavras do poeta. Não se pode construir uma argumentação imaginando demasiadamente o que poderia ter acontecido ou a partir de uma seleção de trechos que a sustentem, em detrimento de outros que apontariam o oposto. Nesse sentido, em nossa seleção, trataremos de não omitir elementos dignos de aclarar os dois eixos propostos, confrontando os trechos citados pela tradição a todos aqueles encontrados na totalidade da correspondência do período da infância e juventude até a maioridade.

A revolta ou conflito que provocara a fratura entre Charles e seus parentes, já ocorrera na infância ou se manifestara aos poucos, na mesma medida que aflorava sua individualidade de artista, irrompendo na aurora de seus 21 anos? O complexo de Édipo e a relação incestuosa podem ser afirmados com tanta veemência por Sartre e Junqueira?

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Para averiguar essas questões, devemos nos aprofundar no período da infância e da juventude nas suas relações com a família. Relembremos aqui da importância do ensaio de Junqueira em sua repercussão, já que sua tradução é referência no Brasil, tanto para acadêmicos como para os demais leitores. Reside aqui, entre a aura do renomado tradutor e seu ensaio, a possibilidade da aceitação de suas afirmações, já que se tem pouco contato com a correspondência de Baudelaire.

Abordemos então as questões propostas pelos propagadores da ideia de “fissura” que se deu na infância e a de relação incestuosa. Essa “fissura” foi afirmada por Jules Buisson, camarada de Baudelaire do tempo da pensão Bailly. Buisson afirma durante uma entrevista concedida a Eugène Crépet e realizada em 1886 que: “Baudelaire était une âme très délicate, très fine, originale et tendre mais féminine et faible qui s’était fêlée au premier choc avec la vie.”44 Três gerações de pesquisadores, Eugène e Jacques Crépet (pai e filho) e Claude Pichois, assim como Sartre, reproduziram essa declaração. Todavia, Pichois dá uma conotação positiva à fissura vendo nela o motivo pelo qual os sonhos burgueses ruíram na mente do poeta. Por sua vez, Sartre exacerba sua importância como trauma sofrido por Baudelaire, fonte de sua revolta e de seu ódio contra o padrasto. Um comentário aparentemente anódino de Pichois, na impressionante biografia do poeta, alerta o pesquisador para as concepções do feminino e masculino. O renomado baudelairiano afirma que a atitude admirativa do poeta para com as amazonas e a guerreira supõe um gosto profundo pelas mulheres marcadas pelo signo masculino.45 As declarações, de Buisson a Crépet, não se sustentam por muito tempo ou devem ser ponderadas perante uma leitura pautada nos estudos de gênero. Pode-se perceber até certo preconceito na oposição estabelecida pela conjunção “mas”: tinha uma alma muito delicada, muito fina, original e terna, mas feminina e fraca. O valor negativo imprimido à feminidade não pode ser aceito, principalmente, ao lembrar que antes mesmo de qualquer tipo de essência do feminino, o gênero se estabelece muito fortemente pelos discursos que irradiam qualquer sujeito. Essas afirmações lembram a falida expressão “sexo frágil”. De formas bem distintas, Pichois e Sartre

                                                                                                               44 Pichois, Claude; Ziegler, Jean. Baudelaire. Paris: Julliard, 1987. p. 142. “Baudelaire tinha

uma alma muito delicada, muito fina, original e terna, mas feminina e fraca que se fissurara ao primeiro choque com a vida.” (Trad. Nossa)

45 Idem. Ibid. 1987. p. 226.

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propagam essa ideia de fissura em Baudelaire, sendo que o primeiro não sustenta a famosa revolta do jovem Charles e o segundo reproduz essa ruptura com Aupick após as segundas núpcias da mãe, provendo um forte argumento para o complexo de Édipo.

Junqueira, contaminado pela leitura do Baudelaire de Sartre (via Porché), deu continuidade no Brasil a essa tradição. O estudo sartriano constitui, portanto, uma passagem de ideias e de conceitos, enfim, de uma leitura do poeta parisiense que parece ter transitado para nós pelo seu principal tradutor, que por sua vez questionou muito pouco do que recebia. Até mesmo Manuel Bandeira não escapou a essa imagem simplista do poeta das Flores do mal: “Charles Baudelaire (1821-1867) teve a infelicidade de perder o pai aos seis anos e nunca se ter entendido com o padrasto, o que resultou na separação de sua mãe.”46 Essa apresentação precede a tradução de Guilherme de Almeida, recentemente reeditada pela Editora 34 (2010), constituindo, uma vez mais, um retrato de significativa influência sobre os leitores. É possível entender essa afirmação porque o texto de Bandeira foi escrito em 1965, contudo, o que realmente importa, é que não tenha sido alterado ou complementado com informações mais atualizadas da vida de Baudelaire. Ao contrário, essa afirmação é reforçada em um curto texto “Sobre Charles Baudelaire”, inserido no posfácio de autoria de Marcelo Tápia. Assim, essa constatação nos obriga a empreender uma análise dos pontos que provocam dúvidas, herdados por Junqueira a partir do discurso de Sartre visto como ponto nevrálgico.

No que diz respeito à famosa relação incestuosa e o complexo de Édipo, é preciso agora abordar as afirmações do filósofo francês. Tratar-se-ia da proposta de uma psicanálise existencial. Sartre escreve essa obra no momento em que tenta pôr em prática a teoria mencionada.

Sartre propõe-se a investigar a biografia de Baudelaire na busca de desvendar o projeto original do poeta, pois é exatamente a partir da iluminação do projeto original de um indivíduo que, segundo Sartre, a psicanálise poderia alcançar os móbeis e os motivos que fundamentam as escolhas humanas. A questão então seria a seguinte: de que forma a

                                                                                                               46 Almeida, Guilherme de. Flores das Flores do mal de Baudelaire. / Tradução e notas de

Guilherme de Almeida; ilustrações de Henri Matisse; apresentação de Manuel Bandeira; posfácio de Marcelo Tápia; edição bilingue – São Paulo: Ed. 34, 2010. p. 09.

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investigação de uma biografia nos daria os elementos necessários ao desvelamento desse projeto? Em primeiro lugar, a resposta vem sustentada pela premissa colocada por Freud e assimilada pelo nosso filósofo, segundo a qual, qualquer ato ou comportamento humano é sempre simbólico, ou seja, é sempre a manifestação empírica de uma estrutura mais profunda que, para Freud, estaria localizada numa instância inconsciente do aparelho psíquico, mas que, de acordo com Sartre, relacionava-se à escolha singular que cada indivíduo faz de si mesmo e que se manifesta em cada uma de suas escolhas empíricas realizadas na imediaticidade de suas vivências cotidianas. Dessa forma, ele conclui que se o homem é de fato um todo, esse todo deve expressar-se inteiramente em qualquer de suas condutas, por mais insignificantes que elas possam parecer.47

Se esse todo se expressa pelas condutas, mesmo insignificantes, a

dúvida que surge é: qual conduta eleger como digna de interesse ou como símbolo de um comportamento humano? Pois esse projeto sartriano parece escolher metodicamente alguns trechos epistolares e da obra poética em detrimento de muitos outros que poderiam apontar em direção oposta.

Lorsque son père mourut, Baudelaire avait six ans, il vivait dans l’adoration de sa mère; fasciné, entouré d’égards et de soins, il ne savait pas encore qu’il existât comme une personne, mais il se sentait uni au corps et au coeur de sa mère par une sorte de participation primitive et mystique; il se perdait dans la douce tiédeur de leur amour réciproque; il n’y avait là qu’un foyer, qu’une famille, qu’un couple incestueux.48

                                                                                                               47 Boëchat, Neide C. O encontro de Jean-Paul Sartre e Charles Baudelaire. Artigo apresentado

no Congresso Internacional da ABRALIC (13 a 17 de julho de 2008) na USP – São Paulo. Este é justamente centrado no estudo de Sartre sobre Baudelaire publicado em 1947.

48 Sartre, Jean-Paul. Baudelaire. Paris: Gallimard, 2000. p. 18. “Quando seu pai morreu, Baudelaire tinha seis anos, vivia na adoração de sua mãe; fascinado, envolto em atenções e cuidados, não sabia ainda que existia enquanto pessoa, mas sentia-se unido ao corpo e ao coração de sua mãe por uma sorte de participação primitiva e mística; perdia-se na suave

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Como empregar, com tanta segurança, expressões como “unido

ao corpo”, “participação primitiva e mística” e “casal incestuoso”, apenas com algumas frases ou máximas tiradas da correspondência e de Meu coração nu, frases estas carregadas de ambiguidade? Sartre prossegue:

En novembre 1828 cette femme tant aimée se remarie à un soldat; Baudelaire est mis en pension. De cette époque date sa fameuse “fêlure”. Crépet cite à ce sujet une note significative de Buisson: “Baudelaire était une âme très délicate, très fine, originale et tendre, qui s’était fêlée au premier choc de la vie.” Il y avait, dans son existence, un évènement qu’il n’avait pu supporter : le second mariage de sa mère.49

Constatamos nessa citação a reprodução da frase de Jules

Buisson. Todavia, é preciso lembrar que a mãe de Charles respeitou as regras de boa conduta da época no que tange à duração do luto. Em Paris, o decoro exige permanecer de luto durante exatamente um ano e seis semanas, para dois anos no interior. Ora, o pai de Baudelaire faleceu no dia 10 de fevereiro de 1827. Charles tinha quase sete anos de idade (seis anos e dez meses) e o segundo casamento ocorreu no dia 8 de novembro de 1828. O coronel Aupick, segundo os registros, iniciou os trâmites legais em 17 de outubro de 1828. É importante ressaltar também que Charles foi acompanhado pela mãe na pensão Delorme, na cidade de Lyon, para estudar no Collège Royal, em janeiro de 1832 e torna-se interno deste colégio em outubro do mesmo ano. O intervalo entre o casamento dos Aupick, fonte de tão dolorosa e perene revolta, conforme a tradição, e a ida para Lyon para o internato, foi de pouco mais de três anos. Todavia, se observarmos as palavras de Sartre, temos

                                                                                                               tepidez de seu amor recíproco; havia apenas um lar, uma família, um casal incestuoso.” (Trad. Nossa)

49   Idem.   Ibid.,  p.  18-­‐19.   “Em  novembro  de  1828  esta  mulher  tão  amada  casa  novamente  com  um  soldado;  Baudelaire   é  posto  em  uma  pensão.  Desta   época  data   sua   famosa  ‘fissura’.  Crépet  cita  a  respeito  uma  nota  significativa  de  Buisson:  ‘Baudelaire  era  uma  alma  muito  delicada,  muito  fina,  original  e  tenra,  que  tinha  se  fissurado  no  primeiro  choque   da   vida.’   Havia,   em   sua   existência,   um   evento   que   não   pudera   suportar:   o  segundo  casamento  de  sua  mãe.”  (Trad.  Nossa)  

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a impressão de uma ruptura imediata no relacionamento mãe-filho provocada pelo matrimônio: “Em novembro de 1828 esta mulher tão amada casa novamente com um soldado; Baudelaire é posto em uma pensão. Desta época data sua famosa ʻfissuraʼ.” Vejamos qual é a visão que o principal tradutor das Flores do mal tem do autor traduzido.

A problemática espiritual de Baudelaire deita suas mais fundas raízes no substrato de um conflito familiar que remonta à primeira infância do poeta. Contribuem de forma decisiva para isso os dois casamentos – entre ambos não transcorrem sequer dois anos – de sua jovem mãe, que desposou dois homens mais velhos do que ela: ao contrair as primeiras núpcias, Caroline Archimbaut-Dufäys tinha 26 anos e Joseph-François Baudelaire – o pai de Baudelaire – nada menos que 60, enquanto que o padrasto do poeta, o general Jacques Aupick, contava 39 quando, em novembro de 1828, resgatou Caroline de sua curta viuvez. Baudelaire, então com sete anos, jamais absorveu esse golpe, tanto assim que, pouco depois, como nos informa François Porché, escreveria: “Quando se tem um filho como eu, não se casa outra vez.” Mais espantoso ainda é o que se lê em carta que o poeta enviou à mãe a 6 de maio de 1861 (37 anos depois!) e na qual escreve: “Há em minha infância uma época de amor apaixonado por ti; escuta e lê se [sic] receio. Jamais falei tanto disso a ti. Lembro-me de um passeio de fiacre; saías de uma casa de saúde em que estavas exilada, e me mostraste, para pensar que pensaste em teu filho, desenhos à caneta que fizeste para mim. Julgas que tenho uma memória terrível? Mais tarde, a praça de Saint-André-des-Arts e Neuilly. Longas caminhadas, ternuras sem fim!” Ocioso acrescentar o que quer que seja. O texto fala por si. Estivesse vivo em fins do século XIX, Baudelaire teria sido um dos mais paradigmáticos pacientes de Freud, a própria encarnação do complexo de Édipo.50

                                                                                                               50 Junqueira, Ivan. A arte de Baudelaire. In: Charles Baudelaire. Poesia e Prosa. Volume

único. Edição organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 61-61.

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Primeiro, os dois trechos citados por Junqueira são

suficientemente ambíguos para que se examine com cuidado toda a correspondência de Baudelaire – aproximadamente 1500 cartas, bilhetes, contratos e notas promissórias – de sua infância (1832) até 1866. Segundo, seria preciso circunscrever uma definição ou, ao menos, aprofundar o conceito de complexo de Édipo, para depois poder afirmar com tanta segurança tal “diagnóstico”. Além disso, antes mesmo da análise da correspondência, um indício aponta para a ponderação nas afirmações que faz Marcel A. Ruff em seu estudo sobre Baudelaire. De fato, Ruff questiona essa relação incestuosa e não se trata, segundo ele, de um ataque à psicanálise em si, mas da hipótese de um emprego abusivo e talvez superficial da psicanálise.

Se o Édipo é, como afirma Juan-David Nasio, o mais crucial dos conceitos psicanalíticos, também pode-se constatar que todas as crianças passariam por duas grandes fases nesse processo formador da identidade sexual adulta. A primeira seria a sexualização dos pais decorrente da experiência vivida pela criança de cerca de quatro anos quando absorvida por um desejo sexual incontrolável. Terá de aprender a limitar seu impulso sob o peso dos limites de seu corpo imaturo, de sua consciência nascente e da Lei tácita que lhe ordena que pare de tomar seus pais por objetos sexuais. A segunda fase se estabelece justamente a partir desses limites na dessexualização dos pais. Eis a essência da crise edipiana: toda criança deverá aprender a canalizar um desejo transbordante. Ainda segundo Nasio, a neurose deitaria suas raízes na dificuldade de superar essa crise.51

Se todos os seres humanos passam pelo Édipo, como afirmar com tanta certeza, com apenas algumas citações, por vezes ambíguas e que se opõe a muitas outras, o complexo de Édipo em Baudelaire? A postura que empregar-se-á aqui será a da certeza de uma dúvida. Se a dúvida se instala e se nossa intuição bergsoniana se rebela, então outros horinzontes de investigação se abrem aos pesquisadores. A dúvida deixa espaço para outras possibilidades, permite novas investidas. Uma crítica mais aprofundada da questão psicanalítica exigiria outra pesquisa. O objetivo é, portanto, o de apontar a fragilidade da teoria do complexo de Édipo em Baudelaire, assim como, sua suposta revolta após o segundo casamento. Essas afirmações contundentes exigem ainda mais um

                                                                                                               51 Cf. Nasio, Juan-David. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. tradução de

André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

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questionamento, já que são propagadas pelo principal tradutor das Flores do mal. Marcel Ruff despertara nossa curiosidade. Robert Kopp confirma nosso questionamento ao afirmar:

Or les rapports entre Baudelaire et son beau-père furent, d’abord, assez bons. Contrairement à la légende, la haine de Charles ne semble point dater du remariage de sa mère. [...] La brouille intervient au lendemain du baccalauréat, lorsque Baudelaire, au lieu de choisir une carrière bourgeoise, veut entrer dans celles des lettres.52

Outra interrogação que se coloca é a relevância da insistência na

idade dos maridos. Há um equívoco na idade do coronel Aupick, que teria nascido em 1789 (no período conturbado da Revolução), o que explicaria a falta de certidão de nascimento, e que tinha assim apenas seis anos a mais que Caroline Archinbaut Defayis (ou Defaÿs ou ainda Dufays) nascida em Londres em 1793, conforme a cronologia estabelecida por Pichois e Ziegler. No caso do primeiro casamento, trata-se de uma prática muito comum na época. Não podemos esquecer a condição da mulher no século XIX, enclausurada à vida privada, dependendo de um bom casamento para sua sobrevivência. Muitas vezes esmagando os sentimentos e a individualidade, as famílias impunham o matrimônio arranjado que era fonte de especulação, enriquecimento ou preservação financeira e, sobretudo na nobreza, de estratégias diplomáticas, o que dá à instituição uma importância capital. Não significa que tenha sido o caso para os Aupick, já que Marcel A. Ruff afirma ter sido um casamento de amor. A respeito do conflito familiar e da educação do jovem Charles, Ivan Junqueira comenta:

É também perturbador, já aqui em plano muito mais amplo, o que registra o poeta no fragmento 18 de Projéteis: “O gosto precoce pelas mulheres. Confundia o cheiro das peles com o odor da mulher. Lembro-me... Enfim, amava minha mãe

                                                                                                               52 Kopp, Robert. Baudelaire: Le soleil noir de la modernité. Paris: Gallimard, 2004. “Ora as

relações entre Baudelaire e seu padrasto foram, primeiro, assaz boas. Ao contrário da lenda, o ódio de Charles não parece datar do segundo casamento da mãe. [...] O desentendimento intervem nos dias seguintes após o bacharelado, quando Baudelaire, ao invés de escolher uma carreira burguesa, quer ingressar na das letras.” (Trad. Nossa)

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por sua elegância. Era portanto um dândi precoce.” Bastariam esses poucos textos para confirmar à saciedade [sic] o conflito em que mergulhara o pequeno Charles, que pouquíssimo privou [sic] da intimidade do próprio pai (ao morrer Joseph-François, Baudelaire tinha apenas seis anos), que jamais se entendeu com o irmão mais velho (Alphonse, filho do primeiro casamento de Joseph-François), que se viu destituído do amor materno após a chegada do general Aupick e que por este foi tratado, não propriamente de forma odiosa ou distante, mas sob as severas imposições do único critério de que dispunha o padrasto para educação de uma criança: o da disciplina militar.53

Curioso conflito que não se entrega em parte alguma na

correspondência durante esse período tão crítico: pós-casamento na solidão do internato. Surpreendente também a imagem do padrasto, que certamente tinha uma visão rigorosa da educação, mas que parece simplificada, pois o oficial demonstra preocupação e afeto para com Baudelaire, até o famoso corte entre os dois. É seguro afirmar que a carreira militar não ajudou o general a aplicar uma pedagogia menos autoritária, mas devemos levar em conta, como veremos de forma mais detida adiante, o contexto peculiar da família burguesa e das expectativas e investimentos feitos na criança do século XIX. Muito mais do que o rigor militar, a autoridade despótica do pai/marido ou dos pais – com o apoio das leis do Estado – nos parece mais conforme às imposições feitas na educação de um jovem burguês durante sua escolaridade. O filho podia ser facilmente preso por um problema de conduta e a filha ser internada a pedido da família conforme a lei de 1838. Os casos famosos de Adèle Hugo e Camille Claudel são exemplos simbólicos das práticas da época.54 Há de se convir que, no que

                                                                                                               53 Junqueira, Ivan. Op. cit., p. 62. 54 Perrot, Michelle (Org.) Op. cit., p. 109 e 263-264. O pai pode mandar prender os filhos e

recorrer às prisões do Estado, como se fazia no sistema das ordens régias, a título de “correção paterna”, o qual mantém uma polícia de família em que o poder público age por delegação. Todavia, os artigos 375-382 do Código Civil (Livro I, título IX) definem as condições para isso. “O pai que [tem] motivos de descontentamento muito graves sobre a conduta de um filho” pode apelar ao tribunal do arrondissement; até os dezesseis anos, a detenção não pode se estender para além de um mês, e dos dezesseis anos até a maioridade pode chegar a seis meses. Os procedimentos – e fianças – são bastante simples: nenhum

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concerne à educação, o enfraquecimento desse tipo de pedagogia sucedeu, de maneira mais nítida, apenas depois de maio 68.

Ivan Junqueira segue o mesmo raciocínio que Sartre, formando uma sorte de eco a uma forte linha de pensamento francesa. Após a leitura das cartas, mesmo restrita ao primeiro volume que abrange o período de 1832 a 1860, o questionamento surge ante os olhos e não há mais como aceitar de antemão as afirmações categóricas de Sartre e Junqueira na questão da origem do conflito familiar. A correspondência fala com uma voz outra e seria inaceitável pensar que o jovem Charles seja desonesto em todas suas vozes, dos dez anos de idade até sua maioridade. A difícil classificação do gênero epistolar e todo o cuidado – para não dizer paranóia – com a qual deve ser abordada a correspondência, mesmo levando em conta a oscilação do sujeito entre pessoa que se revela (para/contra si e para/contra os outros) e persona que se camufla, não justifica uma condenação total do que escreve Baudelaire em suas missivas. Seria o equivalente a invalidar qualquer argumentação, inclusive a do tradutor brasileiro.

O objetivo até aqui foi o de descontruir esse mito, instalando a dúvida no leitor, desequilibrando essa imagem bastante vulgarizada do poeta, para que outras investigações sejam possíveis, notadamente pela leitura das epístolas. 1.2 Formação do jovem Charles.

O jovem Carlos55, como ele mesmo assina em quatro de suas

cartas, não concluiu um curso superior e não foi um aluno brilhante – não de forma regular – mas também não foi um aluno medíocre. Marcel Ruff destaca o potencial intelectual do jovem Baudelaire e seu comportamento de “bom menino” perante sua família reconstituída: mãe e padrasto. Seus mestres afirmavam que tinha um caráter “um pouco original e às vezes bizarro”, mas reconhecem “meios muito notáveis”, “criatividade quando quer, e discernimento”.56 Sua vocação/inclinação                                                                                                                

pleito por escrito, nenhuma formalidade judicial além do próprio mandado de prisão, no qual não constam os motivos. Se o filho, depois de libertado, “recai em novos desvios”, pode-se solicitar nova detenção. [...] Em todo caso, mesmo que a polícia, por meio do internamento normal, continue a usar o asilo como depósito para os perturbadores da ordem pública, tal instituição passa a se alimentar cada vez mais do drama privado e do conflito familiar, que têm no médico seu juiz e árbitro.

55 A assinatura “Carlos” não foi uma tradução da minha parte. Baudelaire assinou desta forma nas missivas dos dias 31 de janeiro, 17 de maio, 22 e 23 de novembro de 1833.

56 Ruff, Marcel A. Baudelaire. Paris: Hatier, 1957. p.12-13.

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poética desponta pela prática de versos latinos e de versos em língua francesa que escrevia, inclusive durante as aulas de ciências exatas, segundo testemunho de Henri Hignard, camarada do Collège Royal de Lyon, evidenciado na biografia realizada por Pichois e Ziegler. Aliás, seu pai se destacou na composição de versos e teve grande interesse pelas artes. O jovem Charles recebeu alguns prêmios em poesia por composições em latim; obteve o primeiro prêmio três anos seguidos e, em 1837, recebeu o segundo prêmio no Concurso Geral. Em 1838, o primeiro prêmio em desenho, que lhe propiciara uma dispensa, pois estava de castigo, forçado a ficar no colégio no dia em que os alunos saíam para visitar os pais. Estas punições foram numerosas e o poeta parisiense sempre lastimou seu comportamento perante seus parentes. Conforme Achille Carrère, o mestre de estudos do Louis-le-Grand, em suas notas sobre o trimestre em 1838, esses castigos teriam o propósito de corrigir a atitude bizarra do jovem Charles: “Baudelaire a repris depuis quelques jours ses allures pleines de bizarrerie. J’ai été obligé de lui imposer plusieurs punitions fort sévères.”57 Em uma carta para seu meio-irmão datada do dia 27 de dezembro de 1834, Charles retrata a experiência do castigo:

Être aux arrêts, c’est être planté comme une statue contre un mur ou contre un arbre, y geler (en hiver) pendant tout le temps que l’exige un tyran. Mais c’est bien sot de me plaindre du régime du collège ; m’étant bien conduit, qu’ai-je eu à souffrir ? Rien. Il vaut mieux prendre des résolutions encore plus fermes pour l’année 1835, [...]58

No final da epístola, Charles acaba afirmando que não poderia

queixar-se se tivesse se comportado como deveria. A atitude de Baudelaire é a da rebeldia do instante sufocada posteriormente pela

                                                                                                               57 Pichois, Claude; Ziegler, Jean. Baudelaire. Paris: Julliard, 1987. p. 106-107. “Baudelaire

voltou a tomar há alguns dias seus ares plenos de bizarrice. Fui obrigado a infringir-lhe várias punições muito severas.” (Trad. Nossa)

58  Baudelaire,  Charles.  Correspondance  I.  1832-­‐1860.  Paris:  Gallimard,  1973.  p.  33.  “Estar  em  retenção,   é   ficar  plantado  como  uma  estátua   contra  uma  parede  ou  contra  uma  árvore,  ali  congelar  (no  inverno)  durante  todo  o  tempo  que  o  exigir  um  tirano.  Mas  é  muito  tolo  queixar-­‐se  do  regime  do  colégio;  tendo  me  comportado  bem,  o  que  tinha  a  sofrer?  Nada.   É  preferível   tomar   resoluções   ainda  mais   vigorosas  para   o   ano  1835,  [...].”  (Trad.  Nossa)  

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culpa, pela vontade de não ser visto como ingrato para com a mãe, o padrasto e o meio-irmão que depositam esperanças nele. Em inúmeras cartas para os familiares, expressa seu desejo de melhorar, sempre aceitando os conselhos e se convencendo de suas boas resoluções. Não obstante, percebemos de imediato sua falta de vontade para estudar de maneira constante; segundo suas próprias palavras, sua preguiça e suas brincadeiras em classe fizeram com que fosse frequentemente punido, que tivesse de se desculpar com seus pais. Essa preguiça ou falta de vontade, ou inconstância, ou tédio, se imiscui em seu ser como uma força invisível, porém, concreta – tal uma pedra no meio do caminho – que contamina seus atos até a petrificação, tornando frágeis suas boas intenções. Suas primeiras cartas revelam uma sucessão de desculpas, de promessas parcialmente cumpridas e um sentimento de culpa. Temos a impressão que tem total consciência de sua falta de trabalho regular, que essa fraqueza lhe traz um verdadeiro sofrimento pessoal, pois também cobra a si mesmo e constata, já nesta época, a queda de muitos de seus projetos e decisões de mudança. E essa falta de rigor no trabalho o perseguirá toda sua vida, agravada pela suas condições precárias. Em 1854, já com 33 anos, o poeta parisiense reafirma essa falta: “Je n’en suis plus aux plans, dont la simple exposition te ferait plaisir, dis-tu, - j’en suis à l’exécution journalière forcée, et obligé de prendre brusquement l’habitude du travail régulier.”59 Nessa missiva, o poeta não somente parece ter abandonado seus planos, mas afirma obrigar-se bruscamente ao costume do trabalho regular. O termo “bruscamente” revela sua falta de rigor, assim como sua boa vontade, ao menos aos olhos da mãe, pois, como em inúmeras cartas, pede-lhe dinheiro.

Em janeiro de 1832, Charles acompanha sua mãe em Lyon, pois o Coronel Aupick assumiu, em 7 de dezembro, o posto de chefe do Estado-maior da 7ª divisão militar dessa cidade. O jovem ingressa na quinta série no Collège Royal de Lyon e é colocado em uma pensão. Segundo Ruff, aparentemente, nem o coronel, nem a mãe tinham condições de cuidar de sua educação. Em uma carta datada do dia 3 de julho de 1832 para seu meio-irmão Alphonse, com quem mantinha um contato frequente, descreve seu sentimento de total desagrado na pensão Delorme de Lyon e a maldade dos colegas.                                                                                                                59 Op. cit. 1973. p. 283. “Não me atenho mais aos planos, cuja simples exposição, como diz, te

agradaria, - estou me atendo à execução diariamente forçada, e obrigado a ter bruscamente o costume do trabalho regular.” (Trad. Nossa) Claro que se trata do trabalho na concepção burguesa, ambiente que o influenciou e do qual Baudelaire não conseguiu escapar totalmente.

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Mon frère, Il faut bien que je t’écrive aussi, car il faut avouer que j’ai été bien paresseux. Je n’ai rien à te dire si ce n’est que maintenant je déteste les Lyonnais, qu’ils ne sont pas propres, avares, intéressés, que j’ai eu de meilleures places, que j’ai été huitième, neuvième, onzième, quatorzième en grec, dix-septième, onzième en grec, etc. Je me déplais horriblement à la pension, elle est sale, mal tenue, en désordre, les élèves méchants et malpropres comme tous les Lyonnais ; sur cinq Parisiens que nous sommes dans la pension, il n’y en a que deux que je puisse aimer, encore le dernier a-t-il passé presque toute sa vie à Marseille.60

No colégio, já sofria de períodos de melancolia devido à

inevitável solidão de quem não se ajusta com os outros e que se entedia com as conversas dos diferentes colegas de escola. Sofre, ainda, com o seu afastamento dos pais em sua pensão. O esquálido estabelecimento em Lyon nada tinha de atrativo, com “edifícios negros, trevosas abóbadas, portas trancadas e grades, capelas úmidas, altas muralhas que escondiam o sol”61, segundo a descrição de Edgar Quinet, camarada do jovem Charles na época. Baudelaire estava na quarta série quando foi posto em regime interno pela família e sentiu bem jovem a dificuldade do isolamento. De certa forma, este círculo – mãe, padrasto e meio-irmão – constituía um meio em que se sentia protegido do mundo e da violência que despenha sobre o ser que se constrói durante a afirmação de sua individualidade. Drummond expressa claramente esses sentimentos de melancolia, de medo e de proteção familiar em seus poemas “Fim da casa paterna” e “Ombro”, cujos versos essenciais

                                                                                                               60   Op.   cit.,   1973.   p.   8.   “Meu   irmão,   é   preciso   que   eu   lhe   escreva   também,   pois   devo  

confessar   que   fui   bem   preguiçoso.   Não   tenho   nada   a   dizer-­‐lhe   senão   que   agora  detesto   os   Lyonenses,   que   não   são   limpos,   avarentos,   interesseiros,   que   obtive  melhores  colocações,  que  fui  oitavo,  nono,  décimo  primeiro,  décimo  quarto  em  grego,  décimo   sétimo,   décimo   primeiro   em   grego,   etc.   A   pensão   desagrada-­‐me  horrivelmente,   é   suja,  mal   conservada,   em  desordem,  os   alunos  maus  e   sujos   como  todos  os  Lyonenses;  sobre  cinco  Parisienses  que  somos  na  pensão,  há  somente  dois  dos   quais   possa   gostar,   embora   o   último   tenha   passado   quase   toda   sua   vida   em  Marselha.”  (Trad.  Nossa)  

61 Op. cit. Ruff, Marcel A. p. 09.

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destacaremos pelo seu aporte de luz sobre os sentimentos do outro Carlos:

I E chega a hora negra de estudar. Hora de viajar Rumo à sabedoria do colégio.

Além, muito além de mato e serra, fica o internato sem doçura. Risos perguntando, maliciosos no pátio de recreio, imprevisível. O colchão diferente.

O despertar em série (nunca mais acordo individualmente, soberano). A fisionomia indecifrável dos padres professores. Até o céu diferente: céu de exílio. Eu sei, que nunca vi, e tenho medo.

Vou dobrar-me à regra de viver. Ser outro que não eu, até agora musicalmente agasalhado na voz de minha mãe, que cura doenças, escorado no bronze de meu pai, que afasta os raios.

Ou vou ser – talvez isso – apenas eu unicamente eu, a revelar-me na sozinha aventura em terra estranha? Agora me retalha o canivete desta descoberta: eu não quero ser eu, prefiro continuar objeto de família.62

Em “Ombro”, Drummond expressa a falta do ombro do pai –

ocupado por Sebastião Ramos – para acalentar o seu desespero ao partir para o colégio: “Também estou perdido: morte no internato. / Morrer

                                                                                                               62 Andrade, Carlos Drummond de. Poesia completa. Boitempo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,

2006. p. 1086-1087.

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vivo o ano inteiro é mais morrer / embora ninguém perceba / e ficarei sem ombro / para acalentar a minha morte. / Ó Sebastião Ramos, você roubou meu ombro.”63

Os internatos não possuem boa reputação. Malgrado que o sonho da educação em casa continue alimentando famílias atraídas pela aristocracia ou pelo rousseaunismo, que temem os contatos vulgares e pervertidos, chega uma época em que os internatos e pensionatos se impõem.

Entre os quinze e os dezoito anos, as moças seguem para lá, a fim de concluir sua educação moral e mundana, de adquirir essas “artes recreativas” destinadas a torná-las atraentes nos salões matrimoniais. Os garotos, aquartelados em colégios ou liceus, preparam-se para o bacharelado, “barreira e nível” da burguesia. Ora, os internatos dos colégios e liceus não gozam de boa reputação. Baudelaire sente um tédio mortal: “Fico tão entediado que choro sem saber por quê”, escreve à mãe em 3 de agosto de 1838. George Sand se sente desolada por ter de colocar Maurice num estabelecimento desses. [...] Os internatos são apontados como responsáveis pela masturbação e práticas homossexuais. [...] Apesar de tudo, a opinião, majoritariamente conservadora, atribui aos internatos a “efeminação” da juventude, a derrota de 1870 e, de modo mais geral, o despovoamento da França!64

As famílias burguesas tendem assim a manter a educação entre

quatro paredes, resultado dessa desconfiança perante o internato e a adolescência, imagens antes negativas que parecem surgir na segunda metade do século. Não obstante, essa educação no ambiente familiar provocou um sentimento de clausura sufocante para alguns jovens, simbolizado por Henry Brulard, personagem da obra autobiográfica de Stendhal: La vie de Henry Brulard (1890). A fuga dessa estreita vigília

                                                                                                               63 Op. cit. 2006. p. 1089. 64 História da vida privada, 4: Da Revolução Francesa à Primeira Guerra / organização

Michelle Perrot; tradução Denise Bottmann, Bernardo Joffily – São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 150-151.

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reside na leitura de romances, no diário íntimo, no devaneio, entre tantas tentativas.

Em 6 de agosto 1832, Charles envia uma carta para o meio-irmão relatando seu desempenho escolar:

Mes places sont meilleures; nous composons maintenant pour les prix. Ce qu’il y a d’enrageant, c’est que si j’avais mis un E au lieu d’un A, j’aurais à coup sûr eu quelque chose et cet A dérange tout ; ce qui me fait le plus enrager, c’est que le reste est bien ; au reste, le professeur prendra peut-être cela pour une faute d’orthographe. Nous composons demain en thème ; j’espère que je me relèverai. J’espère beaucoup en grec, pas du tout en géographie ancienne. Toujours, je ferai ce que je pourrai. J’ai été à la campagne hier (dimanche), ce qui m’a empêché de faire cinquante lignes mot à mot en pensum. Le bonheur a voulu qu’on oubliât de me les demander. Je tâcherai de les faire pour ce soir. Je me suis levé ce matin vers 9 heures pour faire mes devoirs, si je le pouvais, car hier je n’avais fait que mon thème. Je viens de faire ma première communion. J’espère que je serai plus sage, et moins bavard en classe ; c’est ce qui m’a valu le pensum des cinquante lignes mot à mot.65

Assim, os resultados e o comportamento de Charles no colégio

oscilaram entre o notável e o medíocre como vemos nessas cartas e em outras como a de 12 de março de 1833. Baudelaire escreve para Alphonse no final de agosto ou início de setembro de 1835 uma carta de

                                                                                                               65 Op. cit., 1973. p. 8-9. Do latim pensum: Dever suplementar dado ao aluno para puni-lo.

“Minhas colocações estão melhores; compomos agora para os prêmios. O que mais enfurece, é que se tivesse posto um E no lugar de um A, teria certamente obtido algo e este A perturba tudo; o que me enfurece mais, é que o resto está bom; aliás, o professor tomará tudo isso por um erro de ortografia. Compomos amanhã em tema; espero me reerguer. Espero muito em grego, nem um pouco em geografia antiga. De qualquer forma, farei o que puder. Fui ao campo ontem (domingo), o que me impediu de fazer cinquenta linhas palavra por palavra como pensum. A felicidade quis que se esquecessem de me pedi-las. Tratarei de fazê-las esta noite. Acordei esta manhã às 9 horas para fazer todos os meus deveres, se eu pudesse, pois ontem tinha feito apenas meu tema. Acabo de fazer minha primeira comunhão. Espero ser mais comportado, e menos falador em classe; foi o que me valeu o pensum das cinquenta linhas palavra por palavra.” (Trad. Nossa)

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interesse duplo. Primeiro, pelas informações acerca dos resultados escolares. Segundo, pelo retrato de cobrança dos pais, o que será tratado mais adiante. Nela Charles afirma ter obtido um prêmio e cinco accessits, distinção atribuída àqueles que mais se aproximavam do prêmio. Não obstante, malgrado o trabalho irregular e permeado por momentos de mau comportamento, a família parecia geralmente satisfeita com seu desempenho. Sua preocupação reside mais em duas atitudes específicas: o hábito de brincar em sala de aula e o de deixar sempre suas tarefas para a última hora. Eis o que relata a mãe a Alphonse no dia 30 de junho de 1834.66

Essas brincadeiras e certa postura acabam por provocar um problema maior. O poeta parisiense é expulso do Louis-le-Grand no dia 18 de abril de 1839 por ter recusado entregar o bilhete que um colega lhe havia passado, com medo que este fosse punido, rasgando o bilhete e engolindo-o em plena sala de aula. Os risos do jovem Charles, após o comentário do diretor dizendo que o gesto de Baudelaire teria exposto seu camarada a suspeitas, pioraram sua situação. Seu pedido de desculpas e sua tentativa vã de explicar sua atitude, em uma carta escrita no mesmo dia para o diretor, Sr. Jules Pierrot, não mudará sua situação. A postura do padrasto é de grande interesse, pois esta carta não teria sido enviada, segundo Pichois, mas lida pelo próprio Aupick ao diretor do colégio. Quanto à reação da família, é fácil imaginar o choque no ambiente sagrado do lar burguês.

Monsieur, Je suis rentré dans ma famille; quand j’ai vu la peine de ma mère, j’ai compris tout mon malheur et surtout le sien; aussi je viens essayer de réparer ma faute; si cela est possible. J’ai refusé de livrer un papier qui aurait fait punir un camarade, un papier à peu près insignifiant, vous le savez; quelque exagéré que cela vous parût, vous me l’auriez pardonné sans doute; mais quand vous m’avez dit que j’exposais mon camarade à des soupçons infâmes, cela m’a semblé si extraordinaire que j’ai ri et que je vous ai manqué de respect. Je vous en fais mes excuses, sincères,

                                                                                                               66 Op. cit., 1987. p. 91.

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aussi profondes, aussi complètes que vous le désirerez.67

Segundo Marcel Ruff, o Coronel Aupick teria facilmente

perdoado e até aprovado esta lealdade “escrupulosa até o sacrifício”68. Em carta ao padrasto, o diretor do colégio explica os motivos da expulsão em 18 de abril de 1839: “mando-lhe de volta esse moço, que era dotado de meios bastante notáveis, mas que desperdiçou tudo com um muito mau espírito, do qual a boa ordem do colégio teve mais de uma vez de sofrer.”69 O jovem Carlos já demonstrara seu espírito de amotinado pelo relato que fez ao meio-irmão em 25 de março de 1833, quando fez parte de um “motim” organizado por camaradas no pátio da escola se insurgindo contra a brutalidade de um pion (peão – supervisor)70 sobre um aluno. Não obstante, essas manifestações de relativa rebeldia parecem restritos aos muros da escola e Charles não hesita em relatar o acontecido à família. Esta atitude lembra o espírito corporativo de muitos alunos, sensível à injustiças e certo código de conduta que levam Charles a não querer fazer parte “desses puxa-sacos que temem desagradar ao peão”, como ele mesmo escreve na mesma missiva.

Mesmo assim, no dia 12 de agosto de 1839, Baudelaire conclui seu segundo grau, obtendo o diploma do baccalauréat,71 depois de ter sido aprovado no exame. No dia 13 de agosto, o jovem Charles manda uma carta a Aupick para anunciar a boa notícia e, ao mesmo tempo, para desejar-lhe parabéns “de fils à père”, como ele mesmo escreve, por ter

                                                                                                               67  Op.  cit.  1973.  p.  68-­‐69.  “Senhor,  retornei  em  minha  família;  quando  vi  a  pena  da  minha  

mãe,   compreendi   toda   minha   infelicidade   e,   sobretudo,   a   sua;   assim   venho   tentar  reparar  minha   falta;   se   isso   for   possível.   Recusei   entregar   um  papel   que   teria   feito  punir   um   camarada,   um  papel   a   bem  dizer   insignificante,   o   senhor   sabe   disso;   por  mais  exagerado  que  isso  tenha  parecido,  teria  me  perdoado  sem  dúvida;  mas  quando  disse   que   eu   expunha   meu   camarada   a   suspeitas   infames,   isso   me   pareceu   tão  extraordinário  que  ri  e  que  lhe  faltei  com  respeito.  Apresento-­‐lhe  minhas  desculpas,  sinceras,  tão  profundas,  tão  completas  quanto  o  desejar.”  (Trad.  Nossa)  

68 Op. cit. p. 13. 69 Pichois, Claude ; Ziegler, Jean. Op. cit. p. 112. 70 O termo vulgar “pion” refere-se ao “surveillant”, cargo específico à educação e abaixo do

censor (bedel) tendo a função de um auxiliar encarregado pela sala de estudos e de vigiar o pátio durante o recreio. Atualmente é ocupado por estudantes universitários que trabalham meio-período. Ver filme francês, Les choristes (A voz do coração) que retrata perfeitamente o ambiente de internato na França e o famoso pion (sua conotação pejorativa) na primeira metade do século XX.

71 Baccalauréat: exame de conclusão do segundo grau na França, que dá acesso a diversos cursos superiores (próximo do vestibular - bacharelado).

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sido nomeado general de brigada. Na mesma, o poeta comenta que seu resultado no exame foi medíocre, tendo tido mais sucesso nas disciplinas de latim e grego, o que lhe permitiu obter a nota suficiente ao final.

Je viens de voir une bonne nouvelle et j’en ai une bonne à t’annoncer. J’ai lu ce matin ta nomination dans Le moniteur, et je suis bachelier depuis hier soir à 4 heures. Mon examen a été assez médiocre, excepté le latin et le grec – fort bien – c’est ce qui m’a sauvé. Je suis bien heureux de ta nomination – de fils à père, ce ne sont pas des félicitations banales comme toutes celles que tu recevras. Moi je suis heureux, parce que je t’ai vu assez souvent pour savoir combien cela t’était dû ; j’ai l’air de faire l’homme, et de te féliciter comme si j’étais ton égal ou ton supérieur. – Ainsi pour te dire simplement, sache que je suis bien content.72

É preciso relativizar o termo “medíocre”, pois se comparássemos

os padrões da época com os atuais, certamente seriam mais elevados, conforme destacam Pichois e Raymond Williams. A partir desse momento, o que parece uma evidência para alguns na época, para o jovem Charles se torna um motivo de tormenta: qual profissão escolher? O que fazer de sua vida? Na realidade, esta interrogação nada tem de original, pois irrompe frequentemente na mente dos jovens. Contudo, na época, estes eram orientados para áreas consideradas nobres como o Direito ou a Medicina, por exemplo, e a liberdade de escolha era restrita. É interessante observar as reflexões de Baudelaire quando escreve uma carta a Alphonse, nos dias seguintes de seu sucesso no exame (23 de agosto), pedindo-lhe conselho, pois estava perdido em relação ao seu futuro profissional:

                                                                                                               72  Baudelaire,  Charles.  Op.  cit.,  p.  77.  “Acabo  de  ver  uma  boa  notícia  e  tenho  uma  boa  para  

lhe  anunciar.  Li  esta  manhã  sua  nomeação  no  Le  moniteur,   e  eu  sou  bacharel  desde  ontem  à  noite  às  4  horas.  Meu  exame  foi  bastante  medíocre,  exceto  o  latim  e  o  grego  –  muito  bem  –  foi  o  que  me  salvou.  Estou  bem  feliz  por  sua  nomeação  –  de  filho  a  pai,  não  são  felicitações  banais  como  todas  aquelas  que  receberá.  Eu  estou  feliz,  porque  o  vi  o  suficiente  para  saber  o  quanto  isso  lhe  é  devido;  pareço  fazer  o  homem,  e  felicitá-­‐lo   como  se   fosse   seu   igual  ou  seu  superior.   –  Assim  para  dizer   simplesmente,   saiba  que  estou  bem  contente.”  (Trad.  Nossa)  

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Voici donc la dernière année finie, et je vais commencer un autre genre de vie; cela me paraît singulier, et parmi les inquiétudes qui me prennent, la plus forte est le choix d’une profession à venir. Cela me préoccupe déjà, me tourmente, d’autant plus que je ne me sens de vocation à rien, et que je me sens bien des goûts divers qui prennent alternativement le dessus. Les conseils que je demande ne me sont pas d’un grand secours; car pour choisir il faut connaître, et je ne connais en aucune façon les différentes professions de la vie. Pour choisir, il faut tâter, essayer, d’où il suit qu’avant d’embrasser un état, il faudrait avoir passé par tous, ce qui est absurde et impossible.73

No dia 2 de novembro do mesmo ano, Baudelaire fez sua

primeira inscrição na escola de Direito; outras datas seguirão nos dias 15 de janeiro, 15 de abril e 15 de julho de 1840. É provável que tenha frequentado o curso muito pouco, sendo nessa mesma época que o poeta parisiense passou a viver na pensão Bailly et Lévêque, que ficava próxima da Escola, no número 11 da rua de l’Estrapade, onde se encontrava com seu camarada de liceu, Louis de la Gennevraye. Foi graças a essa relação que o jovem Charles experimentou e tomou gosto pela vida livre, com a amizade do normando Le Vavasseur, do picardo Prarond, de Dozon, Philippe de Chennevières e Jules Buisson, além de ter tido contato com Balzac e Nerval. Já neste período revela uma tendência ao dandismo, sendo muito cuidadoso com sua vestimenta, destacando-se pelo seu porte elegante com um andar lento, ágil, quase rítmico, segundo Ruff.74 Mas, apesar de uma imagem antes positiva do que a de um artista boêmio, Baudelaire não consegue simplesmente fazer da literatura uma simples forma de catarse como faziam os seus

                                                                                                               73  Baudelaire,  Charles.  Op.  cit.,  p.  78-­‐79.  “Eis  então  o  último  ano  concluído,  e  vou  começar  

outro  tipo  de  vida,  isso  me  parece  singular,  e  dentre  as  inquietações  que  me  tomam,  a  mais  forte  é  a  escolha  de  uma  profissão  por  vir.  Isto  já  me  preocupa,  me  atormenta,  tanto  mais  que  não  me  sinto  vocação  para  nada,  e  que  me  sinto  gostos  diversos  que  se  sobrepõem  alternadamente.  Os  conselhos  que  peço  não  são  de  grande  socorro;  pois  para   escolher   é   preciso   conhecer,   e   não   conheço   de   forma   alguma   as   diferentes  profissões  da   vida.   Para   escolher,   é   preciso   tatear,   tentar,   daí   decorre  que   antes  de  abraçar   um   estado,   seria   preciso   ter   passado   por   todos,   o   que   é   absurdo   e  impossível.”  (Trad.  Nossa)  

74 Ruff, Marcel A. Op. cit., p. 14.

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companheiros pensionistas da pensão Bailly. Em seu ser, já se opera uma luta constante com o tédio, o spleen; tormenta que, tal uma ferida que investigará, lembrando aqui da novela La Fanfarlo, levará o poeta da modernidade a ver na poesia algo muito mais sério do que seus camaradas da famosa pensão.

No final dos estudos de segundo grau, eis o jovem Baudelaire inscrito em um curso de Direito que não acompanha e que acaba abandonando por uma vida incerta de literato e de dândi. Resta destacar nesse ponto, relativamente à sua formação, que a falta de estudos superiores deve ser relativizada. É certo que a obra em si já bastaria para contra-argumentar no caso de possíveis críticas quanto ao seu conhecimento. Não obstante, para melhor entender reações da época e embasar a noção de formação, acreditamos ser necessário ir um pouco além. Para tanto, O campo e a cidade: na história e na literatura, principalmente o capítulo 16 intitulado “Comunidades cognoscíveis”, de Raymond Williams, é bastante pertinente:

Alguns anos atrás, um crítico ligado ao Conselho Britânico qualificou George Eliot, Thomas Hardy e D. H. Lawrence como “nossos três grandes autodidatas”. Foi um desses momentos intensamente reveladores que ocorrem na história cultural da Inglaterra. Pois estes três escritores tinham um interesse ativo no saber e, embora fizessem muitas leituras por conta própria, não eram pessoas desprovidas de instrução formal. Seus pais eram, respectivamente, um meirinho, um empreiteiro e um mineiro. George Eliot cursou a escola até os dezesseis anos e só a deixou porque sua mãe morreu. Hardy cursou a escola secundária de Dorchester até a mesma idade e posteriormente completou sua formação profissional de arquiteto. Lawrence completou a sexta série da escola secundária de Nottingham e, após um intervalo, cursou uma instituição de ensino superior, o Nottingham University College. A questão não é apenas que, pelos padrões das épocas em que viveram, tais níveis de instrução devam ser considerados elevados: o fato é que, na Inglaterra de hoje, 80% da população não tem esse grau de escolaridade.

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Assim, a condescendência expressa pela qualificação destes escritores como “autodidatas” só pode remeter a um fato: o de que nenhum dos três freqüentou colégio interno e em seguida foi para Oxford ou Cambridge, a trajetória educacional que, na virada do século, já era considerada não apenas um tipo de instrução, mas o único tipo de instrução merecedor do nome: quem não passasse por esse circuito não podia ser considerado “instruído”. Em outras palavras: a instrução “padrão” era a recebida por 1 ou 2% da população; todo o resto deveria ser considerado pessoas “sem instrução” ou “autodidatas”; naturalmente, os excluídos também eram vistos ou como ignorantes ridículos ou, quando tinham pretensões intelectuais, como indivíduos desajeitados, exageradamente entusiasmados ou fanáticos. Esse fato veio a ter efeitos profundos sobre a imaginação inglesa. Pois o que está em questão não é a instrução formal, a inteligência desenvolvida; quantas pessoas, no Conselho Britânico ou em qualquer outra instituição, poderiam resistir a uma comparação com George Eliot no nível estritamente intelectual? O que está em jogo é a relação entre instrução – não as notas e os diplomas e, sim a substância de uma inteligência desenvolvida – e as vidas concretas de uma maioria de nosso povo: [...]75

Para entender a suposta ignorância do poeta e a imagem

extravagante que transita entre o público, vale relacionar a citação acima, com a de Du Camp, que curiosamente Walter Benjamin76 citou não integralmente. Trata-se do trecho dos Souvenirs Littéraires no qual o escritor francês, membro da Academia Francesa e amigo de Flaubert, comenta a falta de conhecimento ou de instrução do poeta francês, o que provoca certa perplexidade.                                                                                                                75   Williams,   Raymond.   O   campo   e   a   cidade:   na   história   e   na   literatura.   São   Paulo:  

Companhia  das  Letras,  1989.  p.  235-­‐236.  76 Cf. Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo. Obras

escolhidas volume III. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 71. Afirmação do escritor e fotógrafo francês Maxime Du Camp (1822 –1894), membro da Academia Francesa de Letras (cadeira 33) e amigo de Flaubert.

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Baudelaire avait pour un écrivain un grand défaut dont il ne se doutait guère: il était ignorant. Ce qu’il savait, il le savait bien, mais il savait peu. L’histoire, la physiologie, l’archéologie, la philosophie lui échappaient; à vrai dire, il n’y avait jamais regardé. Il avait parcouru les terres coloniales, l’Afrique méridionale, les Indes. Qu’en a-t-il rapporté? Rien. On croirait qu’il a voyagé sans ouvrir les yeux; si l’on aperçoit qu’il a quitté sa chambre et qu’il a traversé les mers, c’est par une seule pièce de poésie, l’Albatros. Comme diraient les Allemands, c’était un poète subjectif; il s’enfonçait au dedans de lui-même, s’y plaisait et y restait. Ce qu’il aimait, c’était sa propre pensée, sa fantaisie, j’allais dire sa divagation. Le monde extérieur ne l’intéressait guère; il le voyait peut-être, mais à coup sûr il ne l’étudiait pas. Si parfois il lui a accordé quelque attention, c’était pour en découvrir, pour en constater les vices qui l’aidaient à mépriser l’humanité. Quand on s’ingénie à mépriser l’humanité, on est toujours tenté de trop s’estimer soi-même, et j’ai peur que ce n’ait été le cas de Baudelaire, qui s’enorgueillissait de son étrangeté.77

Esta frase declarativa da segunda linha do trecho acima não deixa

dúvidas quanto à opinião de Du Camp a respeito do conhecimento

                                                                                                               77 Du Camp, Maxime. Souvenirs littéraires. Tome II: 1850-1880. Paris: L’Harmattan, 1993. p.

65. “Para um escritor, Baudelaire tinha um grande defeito do qual não devia suspeitar: ele era ignorante. O que sabia, sabia bem, mas ele sabia pouco. A história, a fisiologia, a arqueologia, a filosofia pareciam-lhe desconhecidas; para dizer a verdade, nunca as tinha estudado. Ele havia percorrido as colônias, a África meridional, as Índias. Em que isto lhe foi proveitoso? Nada. Poderíamos crer que viajou sem abrir os olhos; se percebermos que ele deixou seu quarto e que atravessou os mares, foi em uma única peça de poesia, o Albatroz. Como diriam os Alemães, era um poeta subjetivo; mergulhava nele mesmo, onde se sentia bem e permanecia lá. O que gostava, era seu próprio pensamento, sua fantasia, diria até sua divagação. O mundo exterior pouco lhe interessava; talvez o enxergasse, mas certamente não o estudava. Se às vezes dava-lhe alguma atenção, era para descobrir e constatar nele os vícios que o ajudavam a desprezar a humanidade. Quando alguém se esforça em desprezar a humanidade, sempre é tentado a estimar demasiadamente a si mesmo, e receio que tenha sido o caso de Baudelaire, que se orgulhava de sua estranheza.” (Trad. Nossa)

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formal de Baudelaire. Todavia, é importante ressaltar o julgamento de conjunto que faz do poeta. O amigo de Flaubert também é bem explícito ao afirmar que “ele avançou ao lado deles [Gautier e Musset], na segunda fileira, e não será possível escrever a história da poesia em nossa época sem lhe reservar seu lugar.”78 Apesar da afirmação a respeito da ignorância do poeta das Flores do mal, percebeu em parte sua qualidade poética, mas não conseguiu, assim como muitos outros em sua época e bem depois, enxergar o verdadeiro lugar do poeta parisiense: certamente não era o da segunda fileira. Mas este contraste entre ignorância e qualidade poética não provoca uma interrogação? Basta apontar a falta de conhecimento formal para encontrar o limite da obra?

Percebe-se algo muito interessante no tom do acadêmico, um tom de condescendência em todo o trecho reservado à obra e à condição de Charles Baudelaire perante a sociedade nos seus Souvenirs littéraires. Du Camp diz, no trecho supracitado, que o poeta “se orgulhava de sua estranheza.” Entende-se melhor a posição do autor destas palavras se espelharmos esse trecho final, e seu tom condescendente, com a passagem acima de Raymond Williams onde diz que “naturalmente, os excluídos [instrução formal] também eram vistos ou como ignorantes ridículos ou, quando tinham pretensões intelectuais, como indivíduos desajeitados, exageradamente entusiasmados ou fanáticos.” Claro que há nos dois trechos uma diferença no peso das palavras, entretanto, podemos perceber que Baudelaire é visto como um étranger, na polissemia do termo em Francês, e essa constatação pode ter interferido na compreensão de sua obra na época. É possível aceitar as afirmações de Du Camp quando diz que Baudelaire “mergulhava nele mesmo, onde se sentia bem e permanecia lá. O que gostava, era seu próprio pensamento, sua fantasia, diria até sua divagação”? Não é questionável a ideia de que o poeta parisiense tenha se sentido bem mergulhado em si mesmo? Pode-se aceitar que o poeta francês “viajou sem abrir os olhos” e que “o mundo exterior pouco lhe interessava”, conforme as palavras de Du Camp citadas anteriormente? É certo que sua viagem não foi explicitamente um tema de sua obra, teve pouco interesse pela natureza em si, mas Baudelaire foi influenciado por essa viagem.

                                                                                                               78 Du Camp, Maxime. Op. cit., p. 62.

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1.3 O peso de uma família burguesa.

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

Carlos Drummond de Andrade

Antes mesmo de abordar o caso peculiar da família Baudelaire/Aupick, é preciso obter um maior embasamento histórico sobre a noção de família79 e o que ela representa no século XIX. Essa necessidade parece vital no sentido em que permitirá melhor entender as reações, as decisões do casal Aupick perante a postura do jovem Charles. Para questionar a ideia de fêlure (fissura) – interpretado como traumatismo80 – decorrente do segundo casamento, conforme apontam Pichois, Sartre e Junqueira, não há dúvida que a análise das cartas não bastará a aclarar a problemática. Deve-se investigar historicamente as relações privadas no seio familiar durante esse período. Uma compreensão desse meio não poderá fornecer senão dados importantes para avaliar os atos de cada membro.

O fortalecimento da noção de família no século XIX já foi provado e se fundamenta em uma reação à decadência moral e espiritual setecentista. A família passou a ser o centro de uma luta para reformar os hábitos e a moral. Na Inglaterra, onde se temia as consequências da Revolução Francesa, os evangélicos consideram-na como a “pequena igreja” e os puritanos como o “pequeno Estado”. Daí decorre uma separação com intensidade jamais vista até então nas tarefas e nos papéis do homem e da mulher, reservando para o gênero feminino os cuidados do lar, domínio do privado, já que o público era considerado subversivo.

Essa divisão entre mundo masculino e mundo feminino apresentava uma conotação religiosa: a

                                                                                                               79 Há de se destacar aqui as diferentes acepções do termo de origem latina. Conforme o

dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0, familìa,ae abarca os sentidos diversos de: “domésticos, servidores, escravos, séquito, comitiva, cortejo, casa, família.” Essa gama de acepções leva os termos família, servidores e até mesmo escravos, de sorte que a autoridade paterna quase despótica do século XIX parece fazer sentido pela própria origem da palavra.

80 Do grego traumatismós ou “ação de ferir; ferimento”. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0.

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esfera do público era tida como perigosa e amoral. Os homens que circulavam nessa atmosfera só poderiam ser salvos com um contato regular com o mundo moral do lar, onde as mulheres eram portadoras desses valores puros capazes de neutralizar as tendências destruidoras do mundo dos negócios. A casa era o local de prazeres amenos, refúgio do homem cansado e preocupado, tido como responsável pela produção da riqueza material de que dependia o lar. A masculinidade se baseava na capacidade do homem de atender às necessidades dos seus; a feminilidade de uma esposa e de suas filhas se fundamenta na dependência. A dignidade de um homem estava ligada à sua profissão; se tivesse alguma ocupação, a mulher perderia qualquer distinção. Em meados do século XIX, o ideal burguês de um marido que atendia às necessidades da família e de uma esposa que se consagrava ao lar estava de tal forma difundido que o recenseamento geral teve ocasião não só de mencionar uma nova categoria, as “mulheres do lar”, como também de afirmar em sua introdução ao relatório de 1851: “Todo inglês deseja profundamente possuir uma casa individual; é um quadro bem definido em torno da família e de seu lar – santuário de suas dores, alegrias e reflexões.”81

Até mesmo os revolucionários franceses mais encarniçados

recuaram, após estabelecerem leis sobre o divórcio, a não supremacia conjugal do marido, o respeito aos direitos dos filhos naturais, e impuseram um limite intransponível mostrando claramente que as mulheres estavam do lado privado. Esse primeiro impulso verdadeiramente revolucionário será retomado apenas em 1970 pelas leis francesas sobre a família. A lei sobre o divórcio, de 11 de julho de 1975, por exemplo, tornou o procedimento tão fácil quanto em 1792. Eis o legado de algumas ideias bastante modernas sobre direitos da família em decorrência do élan inicial da revolução.

Para Hegel, nos Princípios da filosofia do direito (1821), “o indivíduo está subordinado à família, que, com as corporações, é um dos

                                                                                                               81 Perrot, Michelle (org.). Op. cit., p. 63

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ʻcírculosʼ essências da sociedade civil.”82 Durante a Restauração, o pai torna-se um chefe natural, como o rei-pai é o chefe natural da França. Constata-se que a noção da família no século XIX é bastante discutida e analisada pelos pensadores, religiosos e políticos da época produzindo, notadamente, manuais de toda sorte que regulamentavam os costumes formando o comportamento privado das mulheres do lar, dos filhos e do próprio pai. Um exemplo espantoso desses manuais é o que se preocupa com a “etiqueta do luto” que determinava não somente o tempo, mas igualmente o tipo de vestimenta que se deveria usar. É o caso do Annonces des deuils (Anúncio dos lutos), no século XVIII ou o Manuel complet de la maîtresse de maison, publicado em 1913. No século XIX, a influência desses manuais é particularmente visível tendo em vista a complexidade das regras a seguir e o papel reforçado da família. A divisão do luto é bastante interessante, pois estabelece três graus diversos cada qual, com condutas rigorosamente prescritas: fechado no começo, a seguir leve, e por fim meio-luto. Citemos igualmente o Manuel de la maîtresse de maison escrito por madame Pariset em 1821, reelaborado em 1913, como vimos acima, por madame Celnart.

A multiplicação e o sucesso desses livros são sintomas da preocupação de inventar um novo modo de vida e um novo tipo de felicidade. O modo de vida é exclusivamente privado, o quadro ideal da felicidade é o círculo familiar, e o meio para conquistar essa felicidade é a boa administração do tempo e do dinheiro. Essas obras explicam como organizar os momentos da existência, e como ter sucesso neles. Descrevem os ritos que balizam o tempo e os papéis a serem assumidos pelos membros da família.83

As preocupações acerca da formação do Estado e da noção de

família acabam por evoluir paralelamente e na mesma direção: o fortalecimento mútuo. Assim sendo, a dependência da mãe e dos filhos em relação ao pai chega a ser despótica e cada membro assume um papel que deve ser cumprido conforme as expectativas paternas. O

                                                                                                               82 Apud. História da vida privada, 4: Da Revolução Francesa à Primeira Guerra / organização

Michelle Perrot; tradução Denise Bottmann, Bernardo Joffily – São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 80.

83 Idem. Ibid. p. 184.

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próprio Victor Hugo, grande republicano, defensor da abolição da escravidão e que lutou contra a pena de morte, foi considerado pelo filho um “doce tirano”, impondo sua autoridade no seio familiar. Mas essa família típica, centralizada no rei-pai e na predominância do grupo em detrimento do indivíduo, não se restringiu à burguesia e foi se alastrando aos poucos à nova classe social nascente. Segundo Donzelot, “o sentimento moderno da família teria surgido nas camadas burguesas e nobres do Antigo Regime estendendo-se, posteriormente, através de círculos concêntricos, para todas as classes sociais, inclusive o proletariado do fim do século XIX.”84 Ao círculo sagrado da família e seu patrimônio agrega-se a noção de honra que tem um papel simbólico.

Tudo que arranha sua reputação, que mancha seu nome, é uma ameaça. Cerra fileiras contra o estranho que lhe faz uma ofensa. O erro comprometedor de um membro seu mergulha-a num constrangimento cruel. Solidariedade na reparação, punição do tribunal familiar, exclusão, cumplicidade do silêncio: todas as reações são possíveis. Ai daquele, porém, que traz a desgraça!85

Desta forma, o filho ilegítimo – lembremos da condição de

Leonardo Da Vinci – carregará a marca indelével desse escândalo, sendo os casos de abandono, no século XIX, bastante frequentes. Da mesma forma, as taras, a delinquência e a loucura são condenadas ao silêncio e à clausura. É famoso o caso de Adèle, filha de Hugo, condenada por sua extravagância e por ser uma jovem perturbada. Com exceção da mãe, a família uniu suas forças para expulsar a anomalia evitando assim macular o grande nome do autor dos Miseráveis. No caso de Baudelaire, uma anedota do escritor Maxime Du Camp revela-se primorosa. No mês de novembro de 1850, em Constantinopla, no palácio da legião francesa, o embaixador Aupick pergunta ao membro da Academia se houvera alguma revelação na literatura desde que deixara Paris. O escritor apontou espontaneamente Henri Mürger, com seu Vie de bohème, cujo sucesso foi comentado. Inocentemente, Du Camp afirma que recebera uma carta de Louis Cormenin na qual este escreveu-lhe que tinha visto

                                                                                                               84 Donzolet, Jacques. A polícia das famílias. Tradução de M. T. da Costa Albuquerque; revisão

técnica de J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2ª Ed., 1986. p. 11 85 Perrot, Michelle (Org.). Op. cit. p. 250.

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ultimamente um Baudelaire que, malgrado a originalidade um pouco forçada, possuia um verso firme e temperamento de poeta, coisa rara naqueles tempos. Assim que pronunciou o nome de Baudelaire, a Sra. Aupick baixou a cabeça e Aupick olhou-o fixamente como se ali tivesse percebido uma provocação.86

Tendo em vista essas considerações no que tange à família e essa anedota, quais eram as expectativas para com um jovem burguês como Charles? Esperava-se dele que concluísse estudos superiores na faculdade de direito ou de medicina ou ainda nas grandes escolas (Polytechnique, les Ponts, les Mines, Centrale). Poderia também ingressar no negócio da família ou na carreira militar. Neste sentido, há um manifesto e crescente investimento na criança por parte da família que pode assim, através dele, perseguir sonhos próprios de ascensão social ou, ao menos, ambicionar sua felicidade no que consideram ser um sucesso profissional. Basta lembrar de obras como O pai Goriot de Balzac, para avaliar a importância dessa ascenção.

Limitando-se por hora às relações familiares, o que importa nesse momento é a plausibilidade de um duplo sentimento no círculo familiar baudelairiano: a decepção dos pais perante a revolta do filho prodígio. De fato, a hipótese de uma revolta/insurreição perante a família e suas imposições parece se sustentar em detrimento de uma suposta “fissura” em Baudelaire a partir do segundo casamento da mãe com o coronel Aupick.

A família, no século XIX, se encontra numa situação contraditória. Fortalecida em sua

                                                                                                               86 Du Camp, Maxime. Souvenirs littéraires. Tome II: 1850-1880. Paris: L’Harmattan, 1993. p.

57-58. “Un soir du mois de novembre 1850, à Constantinople, au palais de la légion française, le général Aupick, alors ambassadeur, me dit, après le dîner: ‘La littérature a-t-elle fait quelque bonne recrue depuis que vous avez quitté Paris ?’ J’indiquai au général la Vie de Bohème qu’Henri Mürger avait fait représenter, avec succès, au théâtre des Variétés, et j’ajoutai: ‘j’ai reçu, il y a peu de jours, une lettre de Louis de Cormenin, dans laquelle il m’écrit: J’ai vu dernièrement, chez Théophile Gautier, un Baudelaire qui fera parler de lui; son originalité est un peu trop voulue, mais son vers est ferme; c’est un tempérament de poète, chose rare à notre époque.’ Dès que j’eus prononcé le nom de Baudelaire, Mme Aupick baissa la tête, le général me regarda fixement comme s’il eût relevé une provocation, et le colonel Margadel me toucha le pied pour m’avertir que je m’aventurais sur un mauvais terrain. Je demeurai assez penaud, comprenant que j’avais commis une maladresse, et ne sachant laquelle. Dix minutes après, le général et Flaubert se disputaient à propos de je ne sais quel livre de Proudhon. Mme Aupick se rapprocha de moi et, à voix très basse, me dit: ‘N’est-ce pas qu’il a du talent? – Qui donc? – Mais le jeune homme que M. Louis de Cormenin vous a cité avec éloges?’ Je fis un signe affirmatif sans répondre, car je comprenais de moins en moins.”

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dignidade e poder por toda a sociedade, que nela vê um mecanismo regulador fundamental, ela tenta impor a seus membros seus próprios fins, considerando o interesse do grupo superior ao de seus integrantes. Mas, por outro lado, a proclamação do igualitarismo, os progressos insensíveis, mas constantes, do individualismo exercem pressões centrífugas, geradoras de conflitos, que por vezes chegam à ruptura. [...] A família burguesa em particular é alvo das críticas de artistas e intelectuais – dândis, solteiros sublevados contra as leis do casamento, boêmia que zomba dos costumes hipócritas – [...].87

O caso de Victor Hugo é simbólico, pois impõe toda sua vontade

sobre a família como uma das figuras paternas mais grandiosas do século. Existe nele um paradoxo na luta entre generosidade e despotismo, dedicação e poderio típico da família burguesa. Destaca-se aqui o ato bastante hipócrita do pai burguês que tem amantes, mas teme mexericos e manda sua própria filha “demente” para uma obscura casa de saúde, no intuito de preservar a grandiosidade de seu nome e sua honra. A figura paterna, chefe natural da família cuja luta é moralizadora, acaba por atrair, pelos seus atos, as críticas dos artistas e intelectuais. A dignidade cambaleia perante o olhar dos marginalizados que lutam pela sua individualidade, o que gera profundas fraturas.

Há, na conduta de Baudelaire, uma fonte tripla de conflito para com a família que poderia explicar os motivos de tal fratura. Primeiro, abandona (ou sequer inicia) seus estudos de direito escolhendo a aventura de viver como literato. Segundo, Charles se considera barroco, no sentido pejorativo do termo, como ele mesmo diz em uma carta para Adolphe Autard de Bragard, datada do dia 20 de outubro de 1841: “Se não amasse e lamentasse tanto Paris, permaneceria o mais longamente possível junto a vocês e eu os forçaria a gostar de mim e a achar-me um pouco menos barroco88 do que pareço.” Pela acepção do adjetivo, antes da influência do sentido estético, o termo aproxima-o da extravagância, da marginalidade, da loucura, enfim, da anomalia, fonte de grande vergonha para os Aupick, que deve ser silenciada, como vimos na                                                                                                                87 Perrot, Michelle (Org.) Op. cit. p. 246-247. 88 Sendo que o adjetivo perdeu, sob a influência do sentido estético, uma parte de sua carga

desdenhosa, relembremos com Littré a acepção que tinha quando foi escrita a carta: “de uma bizarrice chocante”. (Tradução da nota de Pichois da Correspondance).

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anedota de Du Camp, ou expulsa como pode se observar na postura do meio-irmão.89 A Senhora Aupick abaixa a cabeça perante o marido que entende o pronunciamento do nome “Baudelaire”, como uma provocação por parte de Du Camp. A mãe virá dez minutos depois falar com o amigo de Flaubert, com voz bem baixa, para averiguar se seu filho tem talento. Alphonse propõe sua ajuda com a condição que Charles se arrependa e assuma seus erros, caso contrário, diz: “Eu o abandonarei a todos os problemas de dívidas e às consequências que podem ter” ou “via-o crescer com orgulho, e teria ficado tão feliz de apresentá-lo a todos aqueles que o conhecem, que o estimam” e “que todo mundo lhe oferecerá a mão para elevá-lo, mas que ninguém quererá mergulhá-la na lama para dali tirá-lo.” Conhecemos a continuação da história. Baudelaire não seguirá os conselhos dos familiares e perderá a estima do meio-irmão e do padrasto. A correspondência entre Charles, Alphonse e o general se interromperá quase totalmente em 1841-42, na volta do filho pródigo de sua famosa viagem às Índias, com exceção de uma carta datada de 29 de dezembro de 1854. Edmond Baudelaire, filho único de Alphonse acabava de falecer e o poeta mandou-lhe uma missiva para demonstrar o quanto essa perda o atingiu, da mesma forma que os anos de silêncio e afastamento entre os dois.

Finalmente, Baudelaire não cumpre com as regras de conduta exaltadas pela burguesia em sua vida de dândi, em total desrespeito com as noções de trabalho, família e dinheiro da época. A dignidade e até mesmo a masculinidade, relembrando a razão da derrota de 1870, passam pela boa gestão desses conceitos pilares. Fica óbvio, nas cartas do meio-irmão, que o poeta não atende às expectativas da família burguesa dilapidando antecipadamente sua herança e se endividando. Assim, Alphonse não pode mais apresentar Charles a todos aqueles que o conhecem, que o estimam, pois se tornou uma anomalia no círculo sagrado, uma fonte de vergonha que deve ser apartada. O que pode ser claramente percebido na correspondência de Alphonse é uma falta de entendimento da personalidade do jovem Charles. A culpa de sua possível perdição é lançada sobre a má influência dos camaradas da pensão Bailly et Lévêque, fonte de sua vida libertina e desregrada. A incompreensão dos parentes não pode ser condenada tão facilmente. São os atos decorrentes dessa incompreensão que são inadequados à individualidade do poeta: a impossibilidade de achar um meio termo

                                                                                                               89 Cf. Cartas de Alphonse Baudelaire para Charles, datadas de 25 de janeiro e 30 de abril de

1841.

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entre a autoridade parental e a individualidade que se eleva. Curiosamente, no século XIX o filho se torna objeto de amor tomando-se, por exemplo, o luto quando a criança morre (a partir de 1850). Contudo, esta deve se deparar concomitantemente com expectativas esmagadoras em uma sociedade que as consideram “naturais”.90 Ao romper com a autoridade absoluta, torna-se um mau filho, cujo peso carregará em sua vida de marginal. Quando as ambições da família desmoronam:

O filho se sente culpado. O adulto nunca acaba de pagar a dívida e de remoer sua traição. Lembre-se de Baudelaire, que nunca deixou de sentir remorso em relação à mãe, madame Aupick. Ou Van Gogh, que, em sua correspondência com o irmão Theo, manifesta a revolta desesperada do “mau filho”. Fonte de angústia existencial, o totalitarismo familiar oitocentista é, sob muitos aspectos, profundamente neurótico.91

Pois os dândis, boêmios, solteiros e solitários são considerados

marginais, são suspeitos perante a missão moralista da família e de toda a sociedade. De formas diversas, o dandismo e a boemia constroem um modelo simetricamente oposto aos ideais burgueses. Sua relação com tempo e espaço constitui um total desrespeito à conduta exigida: vida noturna, sem horários, tendo a cidade, os cafés, as mais novas avenidas e passagens como palco. Frequentemente são indivíduos perseguidos pelos credores e oficiais de justiça, nômades por necessidade – Baudelaire teve mais de 30 diferentes domicílios em Paris – assim, não possuindo por muito tempo o sonho sagrado do lar apaziguador. O dandismo, de origem aristocrática, toma a distinção como princípio primeiro em contraposição à tendência de massificação da época. Sua moral é o da ascese, com base na filosofia grega, que visa o autocontrole do corpo e do espírito, que fortalecem a busca teórica da verdade. Em Baudelaire, essa distinção se manifesta exteriormente nas vestimentas muito originais, nos gestos, modos e na higiene corporal.92 O dandismo                                                                                                                90 Perrot, Michelle (Org.). Op. cit. 2009. p. 146-147. 91 Idem. Ibid. p.147. 92 Ver sobre o dandismo de Baudelaire: Bandy, W. T.; Pichois, Claude (Org.). Baudelaire

devant ses contemporains. Paris: Éditions du Rocher, 1957. Balzac, Honoré de. Manual do dândi: a vida com estilo. Honoré de Balzac, Charles Baudelaire e Barbey d’Aurevilly; organização, tradução e notas Tomaz Tadeu. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

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é uma ética, uma concepção de vida que eleva o celibato e o flâneur a uma trincheira de resistência contra os ideais eleitos pela sociedade do século XIX. Essa conduta de Baudelaire certamente contribuiu para os conflitos. E tal atitude singular, assim que é qualificada de excêntrica, distancia o sujeito do centro das expectativas – do cerne da família, da sociedade e do Estado – que o torna ex-cêntrico, não centrado, e sob o impulso de toda sua força, leva-o às margens da conduta: à marginalidade. Essa força centrífuga não deve ser minimizada, pois o esforço dessa sociedade oitocentista para convergir à moral e bons costumes obrigou as famílias pobres que ascendiam à pequena burguesia a respeitar suas regras e leis sob pena de humilhação e exclusão.

Da mesma forma, na cidade, as mães das famílias pobres, na primeira metade do século XIX, muitas vezes induzem os filhos a mendigar, e até a fazer pequenos furtos. A moral popular, orientada para a sobrevivência do grupo, é bastante lassa. Até o dia em que a ascensão à pequena burguesia passa a exigir o respeito às leis e às boas maneiras. O devasso, o alcoólatra, o pobretão, o endividado, o jogador, o vigarista se tornam indesejáveis, severamente criticados. Quem vive de pedir dinheiro emprestado é um sem-vergonha: um pai de família deve “honrar” seus negócios. O herdeiro indisciplinado atrai sérias sanções familiares. Considerado um incapaz, Baudelaire fica sob tutela por determinação de um conselho de família; sua correspondência com a mãe, madame Aupick, é uma queixa ininterrupta sobre suas dificuldades financeiras e suas relações conflituosas com o advogado encarregado de lhe fornecer regularmente certo montante de recursos. Além disso, o decoro burguês exige que a pessoa não dê motivos a falatórios, ideal de uma mediocridade discreta. A excentricidade é uma forma de escândalo.93

Devemos certamente nos lembrar das palavras do meio-irmão de

Charles nos dois trechos citados anteriormente, assim como da postura da mãe e do padrasto na anedota de Du Camp. Haveria alguma dúvida

                                                                                                               93 Perrot, Michelle (Org.) Op. cit., p. 255.

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que o poeta das “flores doentias” se enquadre nessa excentricidade segundo os conceitos exaltados pela burguesia?

Assim sendo, abordemos agora trechos dessa infância e juventude no intuito de encontrar atos simbólicos da rejeição, ou da não rejeição, do segundo casamento: o famoso golpe, como disse Junqueira, que Charles jamais teria absorvido. Eis um trecho simbólico da postura que tem com seu “pai”, em uma carta para seu meio-irmão Alphonse Baudelaire em 25 de abril de 1832. Baudelaire tem 11 anos e está com a mãe em Lyon na famosa época em que deveria estar se revoltando contra a família.

Papa part demain de Grenoble et sera à Lyon vendredi. Maman lui prépare des surprises; pour moi, j’ai acheté deux objets et lui donnerai à choisir. Ces deux objets sont en premier lieu un cure-oreille et un cure-dent en ivoire, cure-dent qui me coûte 10 sous, et en deuxième lieu une plume anglaise de Clays dans un étui de bois des îles. J’ai fait aussi, pour remplir les petits vases de chiffonage qu’a faits maman, des allumettes dont je t’envoie un exemplaire. C’est la mode à Lyon d’en faire comme cela; j’excelle déjà dans cet art, et ce sera une surprise pour papa; j’en ai mis des blanches, des bleues, des rouges. Maman a rempli l’autre vase de cure-dents.94

Charles envia missivas durante boa parte de sua infância ao seu

meio-irmão, cobrando-lhe que escreva, contando notícias da família, seus sucessos e fracassos na escola, a vida em Lyon (depois Paris), entre outros assuntos. Sempre o trata por “irmão”, assim como chama seu padrasto de “pai” ou “papai”. Não há sequer uma carta em que haja algum tratamento outro, passando, por exemplo, de “pai” para “padrasto” em função de possíveis repreensões do general Aupick ou

                                                                                                               94 Baudelaire, Charles. Op. cit., p. 7. “Papai parte amanhã de Grenoble e estará em Lyon sexta-

feira. Mamãe lhe prepara surpresas; quanto a mim, comprei dois objetos e eu lhe darei para escolher. Estes dois objetos são em primeiro lugar um esgravatador de ouvido e um esgravatador de dentes em marfim, esgravatador de dentes que me custa 10 soldos, e em segundo lugar uma pena inglesa da Clays em um estojo de madeira das ilhas. Fiz também, para encher os pequenos vasos de chiffonnage que mamãe fez, fósforos dos quais mando um exemplar. É moda em Lyon fazê-los assim; já excelo nessa arte, e será uma surpresa para papai; coloquei brancos, azuis, vermelhos. Mamãe encheu o outro vaso com esgravatadores de dentes.” (Trad. Nossa)

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algum tipo de mágoa passageira como se observa posteriormente, após o conflito entre os dois, quando Charles trata o padrasto por “o general”. Como se observa no trecho citado anteriormente, percebe-se a delicada atenção para com o padrasto ao preparar-lhe uma surpresa. Em outra carta datada de 23 de novembro de 1833, ainda para o irmão, narra presentes que recebeu depois de premiações:

Ce Juvénal est magnifique, je te remercie bien, bien, de tout mon coeur. En ce moment je récapitule tous ces cadeaux, et je pense au joli couteau. À présent il faut que je te remercie du choix que tu y mets. Tout ce que tu m’as donné jusqu’à présent était très bien choisi. Papa aussi m’a fait un cadeau; il m’a donné un phénakisticope.95

Em outra carta de final de agosto ou início de setembro de 1835

para Alphonse, pode-se observar a atitude dos pais perante seus resultados escolares. Segundo Charles, a mãe aparece aqui como mais exigente do que o padrasto/militar. Há de se questionar se não se trataria, no que tange à imagem da mãe, da influência do “mito do amor materno” abordado pela filósofa francesa Elizabeth Badinter96, no sentido em que se constrói ainda hoje um retrato mitológico das mães enquanto seres sensíveis, protetores, que possuem naturalmente o dom da maternidade e relação privilegiada com os filhos. Essa imagem tão característica do papel feminino no século XIX parece deitar suas raízes até nossos dias. Mas eis apenas uma interrogação, ou melhor, um veio a explorar. Baudelaire escreve para Alphonse no final de agosto ou início de setembro de 1835:

Tu attends peut-être, Colin mon grand frère, à une foule de prix. Je n’en ai eu qu’un, accompagné de cing accessits, qui enchantent mon père. Ne va pas t’aviser d’être plus difficile que lui, difficile

                                                                                                               95 Baudelaire, Charles. Op. cit., p. 21. “Esse Juvénal é magnífico, agradeço-o muito, muito, de

todo coração. Nesse instante, recapitulo todos os presentes, e penso na bela faca. Agora é preciso que o agradeça da forma como escolheu. Tudo o que me deu até hoje foi muito bem escolhido. Papai também me deu um presente; deu-me um fenacistiscópio.” (Trad. Nossa)

96 Cf. Badinter, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. / Tradução de Waltensir Dutra. – São Paulo: Círculo do livro, 1980.

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comme ma mère, par exemple, qui s’imagine que je devrais être le premier en tout. Je ne puis lui en vouloir de son exigence; sa tendresse excessive lui fait sans cesse rêver des succès pour moi.97

Em pleno século XIX, no bojo de uma família burguesa, como

entender a cobrança e as esperanças do casal Aupick? Não se deve focalizar a questão apenas sob o ângulo da rigidez e das exigências da família de Charles. Quais pais atuais agiriam de outra forma senão desejando o que estimam ser o melhor para seus filhos? O cerne da questão está alhures. Definir o que se entende por sucesso, eis o que deve preocupar o pesquisador. Ao fazer essa pergunta, não se trata de desculpar os atos de cobrança ou de amenizar o impacto do processo do qual sofreu Baudelaire pelos familiares, trata-se de evitar a hipocrisia e de abordar a essência do percurso profissional de qualquer sujeito de forma menos binária: fracasso versus sucesso.

Na fala de Ivan Junqueira, a relação de afeto entre Alphonse e Charles nunca existiu. Nunca houve entendimento entre os dois, mas nas cartas encontramos trechos como este, por parte de Alphonse: “Adeus, irmão. Escreve frequentemente. Um irmão mais velho é um amigo seguro, com os conselhos do qual se deve sempre contar e cuja afeição sincera não pode ser revogada em dúvida.”98 A este retrato do general, único responsabilizado pela severidade, poder-se-ia opor toda a autoridade de pai ou marido característica, como vimos, da família moderna (segundo Donzelot) e vários trechos da correspondência:

J’ai fait une chute de cheval en me promenant avec papa du côté du chemin de fer, et j’ai une forte contusion au genou. Quelques minutes après la chute, je suis remonté à cheval, et nous nous sommes encore promenés pendant trois heures, sans que j’éprouvasse aucune douleur. Mais en rentrant à la maison et en mettant pied à terre, je

                                                                                                               97 Baudelaire, Charles. Op. cit. p. 34. Jogo de palavra com o título de uma canção infantil:

Colin mon petit frère. Do latim accessit: distinção atribuída aos alunos nos colégios ou academias àquele ou àqueles que mais se aproximavam do prêmio. “Aguarda talvez, Colin mon grand frère, numerosos prêmios. Obtive apenas um, acompanhado de cinco accessits, que encantam meu pai. Não vai pretender ser mais difícil que ele, difícil como minha mãe, por exemplo, que acredita que eu deveria ser o primeiro em tudo. Não posso ficar zangado por sua exigência; sua ternura excessiva lhe faz continuamente sonhar sucessos para mim.” (Trad. Nossa)

98 Ver carta de Alphonse para Charles do dia 30 de abril de 1841.

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me suis aperçu qu’une de mes jambes ne pouvait pas me porter. Et maintenant me voilà cloué au lit, c’est-à-dire vivant à demi, enviant tous ceux que je vois marcher. Maman se désole de ce que je perde ainsi des classes;99

Remercie bien papa pour la vis[ite] qu’il

m’a faite, elle m’a fait un plaisir infini; ses visites ne sont pas fréquentes; mais plus les choses sont rares et plus elles sont précieuses. Je l’aime bien, ce père; il ne faut pas oublier de lui dire ma place. Ma jambe va mieux.100

Ma jambe varie selon le temps; les jours de

brouillard elle est faible; aujourd’hui j’ai un singulier engourdissement dans le pied. Cependant elle va mieux. Je voudrais bien qu’il en fût de même de papa. Adieu, ma bonne mère; dis-lui bien des tendresses pour moi. Mon frère m’a-t-il répondu?101

Un de mes grands sujets de pensées ce sont

les occupations de vancances, tout ce que m’a promis papa, l’anglais, les promenades, l’équitation, l’exercice, tout cela me trotte dans la tête ; je compte lire, etc., etc. [...] Dis à papa que la dernière conversation que nous avons eu au parloir m’a fait um plaisir infini. Certes je

                                                                                                               99 Carta ao meio-irmão, dia 2 de novembro de 1837. Baudelaire, Charles. Op. cit., p. 43. “Sofri

uma queda de cavalo passeando com o papai perto dos trilhos, e tenho uma forte contusão no joelho. Alguns minutos após minha queda, voltei a montar a cavalo, e passeamos novamente durante três horas, sem que sentisse nenhuma dor. Mas ao retornar para a casa e colocando o pé no chão, percebi que uma das minhas pernas não podia mais me sustentar. E agora eis-me pregado na cama, ou seja, vivendo pela metade, invejando todos aqueles que vejo andar. A mamãe lamenta que eu perca aulas;” (Trad. Nossa)

100  À  mãe,  5  de  dezembro  de  1837.  Idem.  Ibid.,  p.  48.  “Agradeça  o  papai  pela  vis[ita]  que  me  fez,  agradou-­‐me  infinitamente;  suas  visitas  não  são  frequentes;  mas  quanto  mais  as  coisas  são  raras,  mais  são  preciosas.  Gosto  desse  pai;  não  deve  esquecer  de  dizer-­‐lhe  minha  colocação.  Minha  perna  está  melhor.”  (Trad.  Nossa)  

101  À  mãe,  janeiro  de  1838.  Idem.  Ibid.,  p.  49.  “Minha  perna  varia  conforme  o  tempo;  nos  dias   de   neblina   fica   fraca;   hoje   sinto   um   singular   torpor   no   pé.   Entretanto   ela   está  melhor.  Gostaria  muito  que  fosse  o  mesmo  para  o  papai.  Adeus,  minha  boa  mãe;  diga-­‐lhe  muitas  ternuras  por  mim.  Meu  irmão  me  respondeu?”  (Trad.  Nossa)  

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l’aimerai bien pendant les vacances, puisque chaque jour j’en pourrai avoir de pareilles.102

Bien des choses à Papa. Dis-lui toujours

que je pense aux plaisirs et aux études des vacances.103

Esses trechos são ricos em palavras que descrevem, a priori, fatos

ocorridos que poderiam ser tomados igualmente como simbólicos, lembrando aqui a leitura que faz Sartre de Freud. Isso significa que a análise de Junqueira foi fortemente influenciada pela áurea de Sartre, a partir da indicação de outros estudos (já direcionada por Sartre e Porché, por exemplo), não levando ao devido recuo para melhor reflexão, e/ou foi insuficientemente explorada. De fato, alguns trechos posteriores à maioridade podem apontar para o diagnóstico citado acima, mas grande parte, já que se trata de argumentar a partir de trechos epistolares, pode simplesmente reunir fragmentos que em seu conjunto forma um mosaico bem diverso.

Assim, ao contrário de muitas afirmações, Charles parece não ter tido uma reação de revolta com o casamento da mãe com o Coronel Aupick. Nada indica nas suas missivas que tenha havido uma reação de violência ou de recusa, ao contrário, percebe-se que ele chama o padrasto de “pai”, se preocupa com sua saúde e lhe deseja parabéns pelos seus avanços na carreira militar. Demonstra seu carinho e respeito ao longo de numerosas epístolas. Não há nenhum rastro de cobrança ou de recusa perante a aliança, em um momento vital de sua existência: os primeiros anos do casamento da mãe com um oficial de exército após o falecimento do pai. Em uma carta para a mãe, datada aproximativamente de 23 de abril de 1837, o jovem Charles, já com dezesseis anos, escreve: “Gostaria de saber notícias do papai, se sofre muito, se pensarão em breve fechar a ferida, se se entedia muito, se fala de mim, tudo quanto

                                                                                                               102   À   mãe,   aproximadamente   10   de   junho   de   1838.   Idem.   Ibid.,   p.   53.   “Um   dos   meus  

grandes   assuntos   de   pensamentos   são   as   ocupações   das   férias,   tudo   o   que   me  prometeu  o  papai,  o  inglês,  os  passeios,  a  equitação,  o  exercício,  tudo  isso  passeia  em  minha  cabeça;  pretendo  ler,  etc.,  etc.  […]  Diga  ao  papai  que  a  última  conversação  que  tivemos  no  parlatório  propiciou-­‐me  um  infindo  prazer.  Certamente  eu  gostarei  disso  durante  as  férias,  já  que  todo  dia  poderei  manter  parecidas.”  (Trad.  Nossa)  

103  À  mãe,  19  de  junho  de  1838.  Idem.  Ibid.,  p.  55.  “Lembranças  ao  Papai.  Diga-­‐lhe  sempre  que  penso  nos  prazeres  e  nos  estudos  das  férias.  E  vocês,  vejam  quanto  puderem  de  belos  lugares,  para  contá-­‐los  para  mim.”  (Trad.  Nossa)  

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puder me dizer.”104 O poeta parisiense manifestou sua revolta somente depois de adulto, após entrar em uma vida que poucos pais burgueses aceitariam e, principalmente, após se embater aos ideais burgueses que não somente o general defendia, mas também sua mãe e seu meio-irmão. Trata-se mais de um rancor posterior pela vida miserável que levou e pela incompreensão, do que uma revolta. Muito depois desse corte, que ocorreu no verão de 1839, Baudelaire, já com quarenta anos, confessou que, mesmo se temia seu padrasto, amava-o e tinha sabedoria o suficiente para ser justo com ele (“J’ai aujourd’hui assez de sagesse pour lui rendre justice”).105 Após o jovem Charles ter se tornado adulto, experimentou a liberdade, tomou posse de sua herança e, sobretudo, firmou sua mente de poeta e de artista. Portanto, parece bastante lógico que uma incompatibilidade irrompa entre o poeta e o militar. Uma tese – no mínimo – tão coerente quanto à da relação incestuosa com a mãe não poderia ser a da diferença de pensamento e de caráter dos dois e a fratura com as expectativas da família? Mas o que Sartre fez das próprias palavras do jovem Charles? Por acaso, ignorou as numerosas demonstrações de afeto, carinho e respeito, encontradas em numerosas missivas escritas pelas próprias mãos de Baudelaire?

Para reforçar a argumentação, retomamos aqui um dos estudos que imiscuiu a dúvida nas afirmações de Junqueira, o Baudelaire de Marcel A. Ruff.

Mais vingt mois plus tard sa mère se remarie avec le commandant Aupick, brillant officier qui n’a que quatre ans de plus qu’elle, et cette fois c’est un mariage d’amour. Quoi qu’on en ait dit, et Baudelaire lui-même, il est fort problable que sur le moment l’enfant n’a pas eu de réaction hostile. Jusqu’à l’âge de dix-huit ans, ses relations avec son beau-père paraissent affectueuses et cordiales, et son comportement ne décèle aucune blessure cachée. S’il n’y avait pas eu entre eux l’incompatibilité de tempérament qui s’est alors révélée, on peut supposer que Baudelaire n’aurait éprouvé aucun ressentiment de ce second mariage, qui allait procurer à sa mère une vie aisée et même brillante. Mais sa rancune tardive a reflué

                                                                                                               104 Baudelaire, Charles. Op. cit., p. 39. 105 Ruff, Marcel A. Baudelaire. Paris: Hatier, 1957. p. 12.

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rétrospectivement jusqu’à la source de ses chagrins, et la légende, puis la psychanalyse, ont achevé de brouiller la perspective.106

A afirmação de Ruff parece se sustentar em numerosos trechos da

correspondência do poeta. Além disso, é preciso lembrar a fase em que se deu esse conflito, uma época de transição e afirmação da individualidade, no afloramento de uma personalidade tão singular e voltada para uma poesia que associou o tom sublime à temática do mal. Já no século XIX, e talvez com ainda mais impacto, a grande adolescência se coloca como um período de grandes aspirações e, portanto, de grandes conflitos: “Zona de turbulência e contestação, a adolescência constitui uma linha de fraturas e erupções vulcânicas no seio das famílias”, como afirma Michelle Perrot.107

                                                                                                               106   Op.   cit.,   p.   9.   “Mas   vinte  meses   depois   sua  mãe   casa   novamente   com   o   comandante  

Aupick,  brilhante  oficial  que  tinha  somente  quatro  anos  a  mais  do  que  ela,  e  desta  vez  é   um   casamento   com   amor.   Apesar   do   que   se   tenha   dito   a   respeito,   e   o   próprio  Baudelaire,  é  muito  provável  que  naquele  momento  a  criança  não  teve  reação  hostil.  Até  a   idade  de  dezoito  anos,  sua  relação  com  o  padrasto  parece  afetuosa  e  cordial  e  seu   comportamento   não   denuncia   nenhuma   ferida   escondida.   Se   não   tivesse   tido  entre  eles   incompatibilidade  de  temperamento  que  se  revelou  então,  pode-­‐se  supor  que   Baudelaire   não   teria   sentido   nenhum   ressentimento   com   esse   segundo  casamento,  que  propiciaria  à  sua  mãe  uma  vida  confortável  e  até  brilhante.  Mas  seu  rancor   tardio   refluiu   retrospectivamente   até   a   fonte   de   suas   tristezas,   e   a   lenda,  depois  a  psicanálise,  acabaram  por  embaralhar  a  perspectiva.”  (Trad.  Nossa)  

107 Op. cit., p. 152.

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Capítulo II

A tradução do Texto e a escrita epistolar.

Assim, afirmo que se aqueles que partiram dessa vida há mil anos atrás voltassem para as próprias cidades, pensariam que estivessem ocupadas por

estrangeiros, por causa da diferença da língua.

Dante Alighieri

Le poète marque ainsi le privilège majeur du langage, qui n'est pas d'exprimer un sens mais de le créer.108

Maurice Blanchot

2.1 – Da escrita mallarmeana a Baudelaire: do Texto como farol.

Ainda às voltas com a tradução de Les Liaisons Dangereuses, de Laclos, trabalho que empreendi pelo suposto prazer de traduzir, sem encomenda de editor. Que problema, escrever novamente um livro alheio! E que pretensão... Não sei o que mais padece neste jogo, se o pensamento do autor, se as palavras que o vestem. Para dizer a verdade, as traduções deviam ser proibidas, como moeda falsa.109

Como entender tal proibição? É certo que, frente à

impossibilidade de um ato de traduzir satisfatório, a interdição brota da própria dificuldade perante as inúmeras escolhas e restrições impostas ao tradutor. No cerne da poesia, o tradutor encontra-se particularmente acorrentado a tantos elementos com os quais deve se deparar simultaneamente, que passa certamente por momentos de dúvida em

                                                                                                               108 “O poeta marca assim o privilégio maior da linguagem, que não é de expressar um sentido,

mas de criá-lo.” (Trad. Nossa) 109 Andrade, Carlos Drummond de. O observador no escritório. Rio de Janeiro: Record, 2006.

p. 29. Comentário feito pelo autor, datado por ele mesmo, no dia 26 de agosto de 1944. Drummond tem então 42 anos e já publicou, como poeta, Alguma poesia (1930), Brejo das almas (1934) e Sentimento do mundo (1940), como tradutor, Uma gota de veneno (1943) de François Mauriac.

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prosseguir na sua empreitada. Como traduzir poesia levando em conta tantos fatores ao mesmo tempo como, por exemplo, sonoridade, rima, metro, eticidade? – “Impossible!”, urraria interiormente nossa intuição bergsoniana.110

O termo bleich111, segundo Borges, significa “incolor” em saxão e teria dado origem a duas palavras aparentemente opostas: black (preto) e blanco (branco). Independentemente da veracidade etimológica, esta serve para refletir sobre a tangência entre black e blanco, pois nesse ínfimo limiar germinam ausência e concentração de cores. A cor negra é a que absorve todos os raios luminosos, não refletindo nenhum e por isso aparecendo como desprovida de clareza. A cor branca é a que reflete todos os raios luminosos, não absorvendo nenhum e por isso aparecendo como clareza máxima. Desta maneira, a luz é incolor e o preto, de certa forma, se equipara ao branco, já que também não possui cor. Assim, o bleich representaria esse espaço vazio, incolor, janela fechada em que a própria luz flerta com a ausência desta, em que a luz, para existir, precisa da sombra que produz. Curioso paradoxo etimológico que pode ser comparado ao da tradução, já que dessa zona de treva que a intraduzibilidade representa – decorrente do hermetismo ou da complexidade do texto literário – surgem os possíveis. E essa escuridão da linguagem não pode senão valorizar a tradução, já que faz um apelo, produz um canto, que cativa o tradutor, que se lança em sua direção e se embate contra as rochas da insatisfação. Mas, novamente, eis que esse relativo fracasso da tradução clama por outra tradução, novo fracasso que necessita de uma resposta, uma nova versão que não poderá aproximar-se da perfeição e que não alumiará totalmente essa brecha deixada pela opaca linguagem. Assim, a intraduzibilidade da linguagem poética lhe propicia um valor duplo, o da sua escuridão, que permite diversos aclaramentos, e, simultaneamente, luzes parciais e esparsas que produzem um verdadeiro apelo a outras traduções. O texto de partida se multiplica em diversas versões, que no seu conjunto, representariam as diferentes óticas e escolhas dos tradutores: em suas tentativas, desgraçadamente, enriquecem a poesia e a tradução. Resta saber se esse fracasso pode ser nomeado da sorte, de maneira ubíqua, no cerne do ato

                                                                                                               110 Bergson, Henri. La pensée et le mouvant: essais et conférences. Paris: Presses Universitaires

de France, 1946. p. 119-120. 111Entrevista com Jorge Luis Borges. http://www.monde-

diplomatique.fr/2001/08/CHAO/15501 acessado no dia 04/07/07 às 15h00.

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de traduzir ou se pode se tratar, em casos esparsos, de uma “superstición”,112 como afirma Borges.

Berman nos lembra que “a intraduzibilidade é um dos modos de auto-afirmação de um texto.”113 Italo Calvino reforça ainda mais esse conceito ao afirmar, estabelecendo razões para se ler os clássicos da literatura, em seu Por que ler os clássicos, que “é um livro que nunca acaba de dizer aquilo que tem para dizer.”114 Essa opacidade é própria à linguagem literária, já observada no Barroco ou até mesmo em autores da Antiguidade, sob diferentes formas, mas que se distingue de maneira mais insistente, a partir do século XIX. Poetas como Baudelaire e, particularmente, Rimbaud e Mallarmé, criaram linguagens enigmáticas sob o efeito de deformações da sintaxe e com um emprego peculiar da palavra.

Historicamente, essa intraduzibilidade nem sempre foi aceita enquanto valor. Ao contrário, muitos eram os que viam nessas passagens confusas ou pouco claras, um problema da ordem da retórica que necessitava alteração. Bastaria relembrar a famosa polêmica dois séculos antes a respeito da obra de Gôngora. Seu cultismo e opacidade eram veementemente condenados, notadamente, dentre numerosos adversários, por Quevedo. Não era senão um caso de disputa entre dois importantes autores do Século de Ouro que divergiam em sua visão da linguagem literária. E não se deve perder de vista outra problemática: “la dificultad categórica de saber lo que pertenece al poeta y lo que pertenece al lenguaje.”115 Pois não se trata de um simples instrumento, como lembra Roland Barthes em seu “Cours, entretiens et enquêtes” (1979).116 Assim como, Friedrich Schleiermacher que já havia percebido e discutido, de forma surpreendente, essa particularidade da linguagem:

                                                                                                               112 Borges, Jorge Luis. Las versiones homéricas. In: Obras completas I. Madrid: Emecé:

Barcelona: 1996. p. 239-243. 113 Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue longínquo. O intraduzível como valor.

Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Maurio Furlan, Andréia Guerini. Florianópolis: Nuplitt/Letras, 2006.

114 Calvino, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 115 Borges, Jorge Luis. Las versiones homéricas. In: Obras completas I. Madrid: Emecé:

Barcelona: 1996. p. 239-243. 116 Barthes, Roland. Oeuvres complètes. Tome 3. Cours, entretiens et enquêtes. Paris: Seuil,

1993. p.1062. « Le langage n’est pas une sorte d’instrument d’appendice que l’homme aurait “en plus” pour lui permettre de communiquer avec son voisin, pour lui demander de lui passer le sel ou d’ouvrir la porte. Ce n’est pas du tout ça. En réalité, c’est le langage qui fait le sujet humain, l’homme n’existe pas en dehors du langage qui le constitue; » “A linguagem não é um tipo de instrumento de apêndice que o homem teria ‘a mais’ para lhe permitir comunicar com seu vizinho, para pedir que lhe passe o sal, ou abra a porta. Não é

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Acaso não precisamos muitas vezes traduzir o discurso de outro, que nos é completamente igual, apenas de outra mentalidade e temperamento? Quando sentimos que as mesmas palavras em nossa boca teriam um sentido completamente diferente ou ao menos um peso aqui mais forte, ali mais fraco que na sua, e que, se quiséssemos expressar o mesmo que ele, nós, segundo nosso modo, usaríamos palavras e expressões totalmente distintas, ao querermos definir mais precisamente este sentimento e ao tornar-se para nós pensamento, parece que traduzimos. Sim, às vezes, a nossos próprios discursos, depois de algum tempo, temos que traduzi-los se quisermos apropriarmo-nos novamente deles.117

Eis que ressurge aqui a comparação/definição que Drummond fez

da tradução enquanto moeda falsa. Mas antes de qualquer avanço riscoso nesse território, é preciso aclarar a questão, negando a interpretação pejorativa do termo enquanto simples falsificação. Dito isto, voltemo-nos para a expressão do poeta mineiro, que não deixa de estabelecer relações com o estudo de Derrida,118 a partir de um poema em prosa de Charles Baudelaire. De fato, desta pesquisa irrompem ao menos duas interrogações: O que se entende por moeda falsa? O que advirá dessa moeda falsa? É preciso se questionar, assim como Derrida o faz, se há moeda, verdadeira, falsa, falsa verdadeira ou verdadeiramente falsa. Pois se a tradução é posta em paralelo com uma moeda falsa, não cessa de não dizê-lo. Como já sabemos, a invisibilidade do tradutor leva o leitor a crer em um texto escrito originalmente na língua de chegada. O texto romperia assim com sua ligação/relação com o de partida, fechando-se sobre si e aniquilando virtualmente as marcas que levam à tradução e todo o esforço do tradutor que, por sua vez, se torna sombra de um vulto, tradutor não explícito de uma não-tradução: invisível.119 Isso se dá não somente pela                                                                                                                

isso. Na realidade, é a linguagem que faz o sujeito humano, o homem não existe fora da linguagem que o constitui; [...].” (Trad. Nossa)

117 Schleiermacher, Friedrich. Dos diferentes métodos de traduzir. Tradução de Mauri Furlan. Florianópolis: UFSC, 2007.

118 Derrida, Jacques. Donner le temps. 1. La fausse monnaie. Paris: Éditions Galilée, 1991. 119 Cf. Venuti, Lawrence. A invisibilidade do tradutor. Tradução de Carolina Alfaro. Rio de

Janeiro: Departamento de Letras, PUC, 1995.

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pouca valorização do tradutor que ainda existe por parte de algumas editoras e pelo próprio auto-aniquilamento, mas, igualmente, pelo rompimento dos rastros de uma alteridade por valorizar demasiadamente o sentido e a fluência. Nesse fenômeno, a tradução devém um texto mastigado, voltando em seu ponto de chegada e que não desvenda outro lugar que não seja essa chegada, dando assim a entender que nunca houve língua de partida. Não há mais partida, tampouco chegada: há um texto domesticado. Trata-se assim de uma falsa moeda falsa. E isso significa também que já não há mais moeda falsa que poderia criar um meio para a explosão de inúmeras possibilidades. Culturalmente, o texto perderá parte do seu potencial para o leitor atento. O que advirá de sua singularidade nesse processo de domesticação?

Esses eventos que Derrida120 aborda, o narrador do poema em prosa La fausse monnaie 121 de Baudelaire os imagina. Essa máquina de provocar eventos se dá pela própria característica da linguagem. Eis um espaço de trânsito no qual os possíveis se fortalecem. Lugar que lembra o do termo khôra abordado por Derrida: “Sobre ela não se pode nem mesmo dizer que ela não é nem isto, nem aquilo, ou que é ao mesmo tempo isto e aquilo.”122 Eis a situação paradoxal da tradução, relação entre luz e sombra, em que uma não vive senão na oposição e na existência da outra.

Por outro lado, conforme o Houaiss, percebe-se etimologicamente que o vocábulo “falsa” tem por acepção menos anódina, o uso abusivo de dissonância em uma composição musical, composição que, aliás, pode novamente ser chamada de peça. Curiosamente, estas parecem imbricadas umas nas outras: peças de literatura (teatro, poesia), de moeda (pièce) e musical. É nessa ótica musical que relacionamos tradução e moeda falsa: uma peça de literatura na qual se constata uma dissonância, ou melhor, uma discordância que clama por justiça. Tratar-se-ia de uma divergência e não de uma falsificação, que faz com que outro tradutor, com conhecimento sobre a obra do autor, com outro olhar crítico, outras leituras e escolhas, defronte novamente o texto a ser traduzido. Assim, a tradução é uma máquina de produzir eventos em decorrência da singularidade da escrita literária e das características da linguagem: da intraduzibilidade.                                                                                                                120 Derrida, Jacques. Op. cit., p. 125. “Ce texte est donc aussi la pièce, peut-être une pièce de

fausse monnaie, à savoir une machine à provoquer des événements: [...].” 121 Cf. Baudelaire, Charles. Oeuvres complètes. Vol. I. La fausse monnaie. Paris: Gallimard,

1975-76. p. 324. 122 Derrida, Jacques. Khôra. Trad. Nicia A. Bonatti. Campinas: Papirus, 1995. p. 10.

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A situação da tradução é levada a extremos pela poesia de Stéphane Mallarmé, símbolo da escrita singular e da intraduzibilidade, sob o viés do sentido123. Talvez sua obra possa ser aflorada pelos seus próprios versos no poema “Um lance de dados”: dados “lançados em circunstâncias eternas” emitidos pelo pensamento “do fundo de um naufrágio”. Sua escrita produz estranhamento a qualquer leitor, tenha ele maior ou menor domínio da língua francesa. Não há nenhuma novidade em tal afirmação a não ser para o olhar desavisado ou impaciente do leitor/tradutor que se debruça sobre essas distorções permanentes da sintaxe e que as condena com o selo: “obscuro”.

Mas ao mencioná-lo, uma legítima interrogação poderia irromper: o que viria a fazer o nome de Mallarmé nessa reflexão, cujo autor central é Charles Baudelaire? Não se trata de abordar o autor de Divagações em si, e sua poética não é um fim, mas sim um meio. Sua literatura deve ser entendida como simbólica porque é quase caricatural124, em outras palavras, é como se essa escrita formasse uma lente de aumento entre nossos olhos e o texto baudelariano. Essa lente de aumento, ou exacerbação/caricatura da singularidade da literatura, nos permite enxergar a singularidade discreta da escrita de Baudelaire e o dinamismo da linguagem. Tal escrita ressalta com força maior certos valores da palavra no texto literário, o que levou às interrogações seguintes: E se traduzir um texto poético não fosse tão diferente do que um prosaico? E se a linguagem de uma carta pudesse ser abordada, em certos momentos, como a escrita mallarmeana, levando em conta não somente o sentido, mas, de maneira assaz semelhante, suas distorções da língua padrão? E se o enigma (o não-dito) que impregna a poética mallarmeana sombreasse igualmente a correspondência, atribuindo-lhe, paradoxalmente, poder de sugestão e, consequentemente, de interpretação? Finalmente, se a linguagem é também constituída de

                                                                                                               123 Entende-se o termo de maneira mais ampla, não restrigindo-o à sentença ou ao texto. Trata-

se da condição do ser humano de dar sentido às coisas e ao mundo que o rodeam. Os gregos inventaram deuses e histórias mitológicas para explicar seu mundo, para aplacar sua angústia perante a falta de compreensão do universo que os cercava. Até que ponto essa angústia frente à falta de sentido de textos literários não afeta o tradutor (ou o editor) e seu ofício? Daí a inclinação de aclarar o obscuro da escrita literária, para apaziguar essa poderosa angústia que atua inconscientemente, dando sentido a um texto que pretende apenas sugerir.

124 Os termos “caricatura” e “caricatural” devem ser lidos no sentido figurado, não pejorativo, ou seja, a reprodução deformada de alguma coisa. Neste caso, estou me referindo a uma mudança de forma da língua padrão, a uma transgressão de suas regras ou a uma exacerbação de traços marcantes.

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metáforas e simbologia, por que abordá-la exclusivamente sob o império do sentido e de uma acessibilidade rudimentar para um leitor frequentemente subestimado? Como veremos mais adiante, é impossível traduzir Mallarmé pela lógica do sentido, visando um resultado que “faça sentido”, o que é comumente observado nas traduções de textos considerados obras artísticas. O texto aflora sentidos diversos, se aproxima, se esquiva, aclarando e sombreando: narrando e sugerindo.

No que tange à questão do gênero que, longe de enclausurar o Texto, reforça ainda mais sua pluralidade, se não perdermos de vista o hibridismo epistolar. Berman nos lembra que, “O romance, a carta, o ensaio, não são menos rítmicos do que a poesia”,125 trazendo assim à tona dificuldades similares que qualquer tradutor deverá enfrentar. Em muitos casos, é impossível separar gêneros que seriam tão distantes como prosa e poesia. Essa questão de definição e de diferenciação de gêneros, aliás, é fonte de grandes debates e reflexões.126 Vemos romances com forte carga poética em Joyce, Rosa, Woolf, entre outros, poemas em prosa de Baudelaire, poemas narrativos como “Morte do leiteiro” ou “Caso do vestido” de Drummond, ou peças cujo valor visual é importante como em Apollinaire, já antes da Grande guerre. Finalmente, há o romance epistolar, sorte de avesso do tecido da correspondência, tendendo a se diferenciar pela grande importância do aspecto ficcional.

A singularidade da escrita de Mallarmé conduz nosso ato tradutório a observar com mais cautela esse fenômeno de distorção da sintaxe, de forma mais consciente – diria até, menos preconceituosa – ressaltando o quão discreto pode ser esse agenciamento, sorte de combinação inusitada de palavras, cuja tensão tem por resultado uma expressão singular. Curiosamente, é na esteira do autor de “Um lance de dados” que percebemos com mais facilidade, não somente a importância da palavra na literatura a ser traduzida, mas igualmente, o peculiar agenciamento da expressão baudelairana. Ao tentar verter a poesia em prosa ou até mesmo a correspondência de Baudelaire, é preciso compreender melhor porque este afirmou com veemência em uma carta para seu editor, para justificar a combinação de palavras inusitadas em

                                                                                                               125 Berman, Antoine. Op. cit., 2006. p. 55. 126 Estudiosos ou poetas como Sartre, Agamben ou Manuel Bandeira, entre tantos outros,

tentaram resolver essa questão da diferença entre poesia e prosa. Cf. Sartre, Jean-Paul. Qu’est-ce que la littérature? Paris: Gallimard, 1948. Agambem, Giorgio. O fim do poema. Trad. Sérgio Alcides. Cacto n. 1. São Paulo: 2002. Bandeira, Manuel. Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.

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sua poesia, que quis expressar algo com uma “violation du langage”127. Essa violação, ou essa profanação (para os mais conservadores) da linguagem, foi “très lentement combiné”128 (muito lentamente combinada) pelo autor do Spleen de Paris, deformação da língua padrão, muito mais sutil em Baudelaire, e levada ao seu paroxismo na escrita mallarmeana. Este aparente anacronismo é necessário, já que essa deformação é defendida por Baudelaire e levada adiante pelos poetas influenciados pela sua poesia. No entanto, além desse caminho que parte de Mallarmé, passando por Rimbaud, nos levando até sua origem (Baudelaire), trata-se de mostrar que essa violação ocorre em vários níveis da linguagem, tanto na busca de um valor estético quanto em textos prosaicos, caso da correspondência baudelairiana, na qual observa-se erros ortográficos, sintáticos ou de concordância, abreviações, emprego peculiar de certos termos ou construções (próprios ou não ao idioma) – caso dos provérbios ou expressões idiomáticas – ou ainda particularidades temporais que podem e devem ser entendidas no seu singular agenciamento. Entender a escrita mallarmeana, é compreender toda a força e sutileza da expressão baudelairiana e da linguagem em si: a potência do Texto, farol do ato tradutório.

Assim sendo, o passo inicial dessa reflexão teórica da tradução será o de observar a singularidade da escrita de Mallarmé, para em seguida, analisar como foi traduzida, levando em conta as reflexões de Antoine Berman e Haroldo de Campos. Logo depois, precisar-se-á relacionar a adordagem do texto mallarmeano com as versões dos Pequenos poemas em prosa, nos quais o valor estético do agenciamento das palavras é bem mais discreto, mas não menos primordial para sua poeticidade. Finalmente, será preciso avaliar a situação peculiar do gênero epistolar – que oscila entre o estético e o semântico, entre o prosáico e o poético – para evitar o quanto possível traduzir a correspondência do autor dos Paraísos artificiais apenas sob o despotismo do sentido e da língua padrão.

Assim, no que se refere à noção de tempo, lembrando aqui da epígrafe de Dante, George Steiner nos lembra de forma pertinente que “qualquer leitura abrangente de um texto do passado escrito na própria língua do leitor e pertencente a sua literatura é um complexo ato de                                                                                                                127 Carta para Auguste Poulet-Mallassis de aproximadamente 20 de abril de 1860. Baudelaire,

Charles. Correspondance. Choix et présentation de Claude Pichois et Jérôme Thélot. Paris: Gallimard, 2000. p. 207-209.

128 Carta a Alphonse de Calonne cuja data seria, segundo Pichois, de meados de março 1860. Idem. Ibid. p. 206-207.

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interpretação.”129 Neste sentido, se qualquer interpretação é tradução e traduzimos o tempo todo, então a escritura mallarmeana tende a exigir interpretação de qualquer leitor. Mas para além do aspecto temporal e teórico da linguagem, existe uma alquimia verbal de uma literatura muito peculiar que leva a dois atos extremos: abordagem ou abandono. Ao abordar esta nau, pois a palavra mallarmeana é o apanágio de uma deriva, o botim a conquistar é a própria possibilidade da interpretação. Assim sendo, para quaisquer leitores, abordar a escritura do autor francês exigirá deles que aprendam novamente a ler, como nos aponta Paul Valéry:

Celui-là donc qui ne repoussait pas les textes complexes de Mallarmé se trouvait insensiblement engagé à réapprendre à lire. Vouloir leur donner un sens qui ne fût pas indigne de leur forme admirable et du mal que ces figures verbales si précieuses avaient assurément coûté, conduisait infailliblement à associer le travail suivi de l’esprit et de ses forces combinatoires au délice poétique. Par conséquence, la Syntaxe, qui est calcul, reprenait rang de Muse.130

Sua escrita é tanto obscuridade quanto claridade. Nela tudo e

nada se produz. Nas palavras de Mallarmé: “elle brille un laps”. Uma janela fechada sobre o alarido infernal da cidade moderna, janela que nunca poderá revelar o que vive, palpita e sofre, lembrando Baudelaire. Janela em que tudo se inventa e nada se (a)firma.

Celui qui regarde du dehors à travers une fenêtre ouverte, ne voit jamais autant de choses que celui qui regarde une fenêtre fermée. Il n'est pas d'objet plus profond, plus mystérieux, plus fécond, plus ténébreux, plus éblouissant qu'une fenêtre éclairée d'une chandelle. Ce qu'on peut voir au soleil est

                                                                                                               129 Steiner, George. Depois de Babel: questões de linguagem e tradução. Traduzido da 3ª

edição (1998) por Carlos Alberto Faraco. Curitiba: UFPR, 2005. p. 43. 130 Valéry, Paul. Variété III. Paris: Gallimard, 1936. “Aquele então que não afastava os textos

complexos de Mallarmé se encontrava insensivelmente engajado a reaprender a ler. Querer dar-lhes um sentido que não fosse indigno de sua forma admirável e do esforço que essas figuras verbais tão preciosas tinham seguramente custado, conduzia infalivelmente a associar o trabalho contínuo do espírito e de suas forças combinatórias à delícia poética. Por consequência, a Sintaxe, que é cálculo, retomava classe de Musa.” (Trad. Nossa)

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toujours moins intéressant que ce qui se passe derrière une vitre. Dans ce trou noir ou lumineux vit la vie, rêve la vie, souffre la vie.131

Na escrita de Mallarmé, simultaneamente canto e rochedo, tudo

se parte e tudo se constrói. Como se o naufrágio instigasse outro choque nas fibras e nas entranhas da nau. O leitor/tradutor afunda e imerge e afunda incessantemente, atraído pelo canto que jamais cessa de se calar e de se dilatar nas facetas das palavras e no espaço branco da página. Sua poesia nasce no e do silêncio. Eis o que se percebe não somente na linguagem hermética mallarmeana, a qual não escapa dessa colisão de palavras provocando estranhamento e simultaneamente atração: o belo é sempre bizarro, como disse Baudelaire. E essa deformação da língua padrão é tal que tanto poesia quanto prosa parecem sofrer a mesma sistemática na intenção criadora. De fato, seu texto em prosa “Crise do verso” tende à poesia se observada essa permanente colisão e não a superfície da forma. E a linguagem enigmática do poeta não pode ser passível de compreensão, pois não esconde algo a revelar, não detém uma chave que é tirada do olhar em um passe de mágica pela espessura de ágeis falanges; porquanto difere do mistério. Não obstante, a perene lacuna mallarmeana cria essa janela baudelairiana em que tudo se inventa. Como afirma Mario Perniola:

el enigma no es una dificultad, un obstáculo, un límite a la búsqueda de la verdad, sino lo contrario, el carácter esencial de lo divino, de la poesía y de la historia. Palabras y cuentos enigmáticos son antes que nada palabras y cuentos ricos de sentido, cargados de significado, fecundos de enseñanzas preciosas.132

Para Maurice Blanchot, esse enigma teria por fonte o vazio, a

falta que é objeto da criação:                                                                                                                131 Baudelaire, Charles. Le spleen de Paris. Les paradis artificiels. Paris: Bookking

International, 1995. p. 104. “Aquele que olha de fora através de uma janela aberta, não vê nunca tantas coisas quanto aquele que olha uma janela fechada. Não há objeto mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais radiante do que uma janela iluminada por uma candeia. O que se pode ver à luz do sol é sempre menos interessante do que o que se passa por detrás de uma vidraça. Neste buraco negro ou luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida.” (Trad. Dorothée de Bruchard)

132 Perniola, Mario. Enigmas: Egipcio, barroco en la sociedad y el arte. Murcia: Cedeac, 2003. p. 27.

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La littérature a pour loi ce mouvement vers autre chose, vers un au-delà qui pourtant nous échappe, puisqu'il ne peut être, et dont nous ne saisissons “chez nous” que “le conscient manque”. C'est donc ce manque, ce vide, cet espace vacant qui est l'objet et la création propre du langage.133 De ces remarques sur le langage, il serait à retenir plusieurs points frappants. Mais de tous le plus remarquable est le caractère impersonnel, l'espèce d'existence indépendante et absolue que Mallarmé lui prête. Nous l'avons vu, ce langage ne suppose personne qui l'exprime, personne qui l'entende: il se parle et il s'écrit. C'est la condition de son autorité. Le livre est le symbole de cette subsistance autonome, il nous dépasse, nous ne pouvons rien sur lui et nous ne sommes rien, presque rien, dans ce qu'il est. Si le langage s’isole de l'homme, comme il isole l'homme de toutes choses, s'il n'est jamais l'acte de quelqu'un qui parle en vue de quelqu'un qui l'entende, on comprendra qu'à celui qui le considère dans cet état de solitude, il offre le spectacle d'une puissance singulière et toute magique.134

O enigma em Mallarmé é de suma importância, pois faz da

linguagem uma potência singular, uma sorte de magia que palpita no

                                                                                                               133 Blanchot, Maurice. “Le mythe de Mallarmé”. In: La part du feu. Paris: Gallimard, 1949. p.

46. “A literatura tem por lei esse movimento em direção a outra coisa, em direção a um além que no entanto nos escapa, já que não pode ser, e do qual apreendemos ʽem nósʼ somente a ʽconsciente faltaʼ. É portanto essa falta, esse vazio, esse espaço vacante que é o objeto e a criação própria da linguagem.” (Trad. Nossa)

134 Idem. Ibid., p. 48. “Dessas observações sobre a linguagem, dever-se-iam reter vários pontos surpreendentes. Mas de todos o mais notável é o caráter impessoal, a espécie de existência independente e absoluta que Mallarmé lhe confere. Nós o constatamos, essa linguagem não supõe ninguém que a expresse, ninguém que a ouça: ela se fala e ela se escreve. É a condição de sua autoridade. O livro é o símbolo dessa subsistência autônoma, ele nos ultrapassa, não podemos nada sobre ele e não somos nada, quase nada, no que ele é. Se a linguagem se isola do homem, como isola o homem de todas as coisas, se jamais é o ato de alguém que fala em vista de alguém que o ouça, compreenderemos que para aquele que a considera nesse estado de solidão, ela oferece o espetáculo de uma potência singular e particularmente mágica.” (Trad. Nossa)

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branco da página, espaço do silêncio que “para se representar deve se fazer coisa”, como lembra Blanchot.135

Poderia haver então confusão entre particularidade da língua francesa, do texto estrangeiro a ser traduzido, com a peculiaridade do texto poético mallarmeano. Lembrando Hugo Friedrich, a imaginação poética provoca uma deformação do real, mas poderíamos pensar essa deformação no âmbito da língua padrão à qual Mallarmé se referiu como “langage brut et immédiat”136, segundo Blanchot. A língua, tal como a aprendemos – paradoxalmente – é de certa forma limitada, apesar de seu dinamismo, ao qual o escritor participa criando sentidos, suplementando-a, como o próprio Barthes lembra.137 Apreender o Outro nesse caso não se restringe apenas ao idioma que se pretende ler/traduzir. Será preciso imbuir-se do próprio estranhamento que o texto provoca em uma experiência ímpar.

Assim sendo, abordar uma tradução de Mallarmé deveria levar em conta as tendências deformadoras138 que poderiam agir de forma                                                                                                                135 Idem. Ibid., p. 44. 136 Op. cit., p. 37. 137 Op. cit., p. 1064. “Supplémenter la langue, c’est une idée de Mallarmé. Selon lui l’écriture,

ou la littérature, ou la poésie, ça sert à supplémenter la langue. La langue, telle qu’elle est décrite par le lexique et la grammaire, c’est quelque chose qui a des lacunes considérables, où le sujet sent qu’il ne peut pas s’exprimer à travers les moyens finalement assez pauvres, syntaxiques ou lexicaux, que la langue lui donne, et d’autre part, comme je l’ai en effet dit souvent, la langue oblige à parler d’une certaine façon et empêche de parler d’une autre. [...] Le discours, la littérature, tout ce qu’on fait de la langue sert à donner des suppléments qui manquent à la langue. Mon discours, d’une certaine façon, lutte avec la langue. D’une part, il est obligé d’utiliser la langue, il puise ce qu’il peut dire dans la langue, et en même temps il lutte avec elle. C’est une position très dialectique.” “Suplementar a língua, é uma ideia de Mallarmé. Segundo ele, a escrita, ou a literatura, ou a poesia, serve para suplementar a língua. A língua tal como é descrita pelo léxico e a gramática, é uma coisa que tem consideráveis lacunas, em que o sujeito sente que afinal não pode se expressar através dos meios relativamente pobres, sintáticos ou lexicais, que a língua lhe oferece e, além disto, com efeito, como eu já disse frequentemente, a língua obriga a falar de certa maneira e impede que se fale de outra. [...] O discurso, a literatura, tudo que se faz da língua serve para dar suplementos que faltam à língua. Meu discurso, de certa maneira, luta com a língua. Por outro lado, ele é obrigado a utilizar a língua, tira o que pode dizer na língua, e ao mesmo tempo luta com ela. É uma posição muito dialética.” (Trad. Nossa)

138 As tendências deformadoras foram descritas/conceituadas por Antoine Berman em sua obra: A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Estas tendências são a racionalização, a clarificação, o alongamento, o enobrecimento, o empobrecimento qualitativo, o empobrecimento quantitativo, a homogeneização, a destruição dos ritmos, a destruição das redes significantes subjacentes, a destruição dos sistematismos, a destruição ou a exotização das redes de linguagens vernaculares, a destruição das locuções e o apagamento das superposições de línguas. Estas deformações são inerentes a qualquer tradução, mas podem ser limitadas se o tradutor adotar uma postura reflexiva em seu ato tradutório e menos sujeito à ditadura do sentido.

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funesta no texto. E não se trata aqui de venerar o autor ou de divinizá-lo. O summum da atenção deve ser dado à linguagem, ou seja, ao Texto. O que se propõe é de atrair a atenção sobre a relevância das diferenças estéticas das obras no âmbito da literatura, o que nos conduz à força da linguagem. O tradutor consciente das opções que se apresentam perante o texto poderá ignorá-las propondo outra leitura da obra, mas isso significa que em seu projeto formulado anteriormente vigora uma intenção condutora, não um ato tradutório insconciente. O crítico de tradução Antoine Berman nos alerta acerca de inevitáveis tendências deformadoras do ato tradutório. Paradoxalmente, é forçoso constatar que Haroldo de Campos, sorte de antípode de Berman, mais próximo da tradução como recriação do que da letra139, percebeu a importância da preservação do enigma nos versos de Mallarmé e evitou, o quanto pôde, recriar, interpretar ou alterar as relações e classes de palavras empregadas pelo poeta francês. Comparemos suas observações teóricas com um trecho de sua tradução do poema supracitado de Mallarmé:

Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. [...] O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora.

                                                                                                               139 Conceito empregado por Antoine Berman em sua obra: A tradução e a letra ou o albergue

do longínquo. A tradução da letra de um texto visa preservar sua pele, seu corpo e sua alma aproximando o ato tradutório de um tipo de literalismo, que não pode ser confundido em hipótese alguma com uma tradução “palavra por palavra”, aliás, a rigor impossível. A letra se opõe à tradição que tende fortemente a deformar o original sob a perspectiva de valores tais como o sentido, o bom gosto ou a fluência da leitura produzindo uma tradução etnocêntrica, ou seja, centrada na língua e na cultura de chegada. Ao contrário, a tradução da letra acolhe o Outro e por isso é vista como o albergue do longínquo. Estipula que a criatividade exigida pela tradução deve colocar-se inteiramente ao serviço da reescrita do original na outra língua, e nunca produzir uma sobre-tradução determinada pela poética pessoal do tradutor. É preciso educar o leitor à estranheza do texto fonte ao invés de desfigurar a obra com a desculpa de aproximá-la do leitor. Na tradução etnocêntrica, ocorre justamente o contrário, o leitor (a quem se pretende servir) é enganado. O ato ético consiste em reconhecer e em receber o Outro enquanto Outro. Segundo Berman, o objetivo ético, poético e filosófico da tradução consiste em manifestar na sua língua esta pura novidade ao preservar sua carga de novidade. A tríade pele, corpo e alma representa a corporeidade do texto, ou seja, seus valores estéticos e estilísticos próprios (ritmo, sintaxe, vocabulário, polissemia, iconicidade, poeticidade etc.), aquilo mesmo que o constitui enquanto obra de arte.

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Está-se pois no avesso da chamada tradução literal.140

Uma singela leitura dos versos abaixo revela como Campos deve

ter perseguido essa intenção:

écarté du secret qu'il détient apartado do segredo que guarda envahit le chef invade a cabeça coule em barbe soumise escoa barba submissa sans nef sem nau n'importe não importa où vaine141 onde vã142

Ao confrontar tradução e texto de partida, constata-se como o

poeta brasileiro desposou o incógnito produzido pelo hermetismo e pelo branco do poema mallarmeano. Poucas alterações no isolamento de certos vocábulos, na falta de conexão entre os versos, o que permite resguardar a fragmentação e a coisificação do silêncio na lacuna da página. Bastaria ao tradutor trocar uma preposição por um artigo ou estabelecer uma concordância para que certo sentido fosse criado. A palavra “vã/vaine” permanece isolada. O verbo “invadir” fica sem sujeito preciso, o que fica ainda mais claro em francês, já que de um ponto de vista sintático, o verbo não poderia encontrar-se sem sujeito. Resulta assim uma tradução muito próxima do texto primeiro – no que tange à sua polissemia – porque ciente de suas características próprias.

                                                                                                               140 Campos, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. p. 35. 141 Campos, Augusto de. Mallarmé. / Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de

Campos. – São Paulo : Perspectiva, 2006. 142 Idem. Ibid., p. 159.

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Não se trata aqui de examinar exemplos exaustivamente, pois estes seriam muito numerosos, mas de ressaltar uma ótica de tradução que se fundamenta na teoria literária e que dialoga com ela. Parece-nos não somente possível, mas de suma importância abordar a écriture mallarmeana – prosa ou poesia – sob o mesmo prisma, pois simboliza de forma contundente como um tradutor deveria abordar parte dos textos literários, inclusive, o gênero epistolar, como será visto mais adiante.

Com corajosa tradução de Ana de Alencar, “Crise do verso” foi publicado em 2008 no vigésimo número da “Inimigo Rumor”. Abordar aqui essa tradução tem seu fundamento justamente em insistir na observância do valor da singularidade, bastante limitada pela angústia de atribuir sentido às sentenças, vista como expressão literária, no ato tradutório. Além disso, esta análise tem relevância por uma questão temporal: trata-se de uma tradução recente. Apesar de sua importância e dos numerosos acertos da tradutora, é pertinente observar algumas decisões. Assim, o título, se pudéssemos preservar o enigma em Mallarmé, poderia inicialmente ser fonte de um grande debate, pois já atribui à preposição um artigo que não existe no título em francês (“Crise de vers”). O resultado é o estabelecimento de um maior vínculo entre as palavras “crise” e “verso”. Tomemos três trechos para uma análise mais aprofundada, tentando observar até que ponto o enigma pode ter sofrido clarificação, no sentido do vazio ter sido preenchido por um sentido dado àquilo que não queria inicialmente tê-lo.

Tout à l’heure, en abandon de geste, avec la lassitude que cause le mauvais temps désespérant une après l'autre après-midi, je fis retomber, sans une curiosité mais ce lui semble avoir lu tout voici vingt ans, l'effilé de multicolores perles qui plaque la pluie, encore, au chatoiement des brochures dans la bibliothèque. Maint ouvrage, sous la verroterie du rideau, alignera sa propre scintillation: j'aime comme en le ciel mûr, contre la vitre, à suivre des lueurs d'orage.143

Agora há pouco, em abandono de gesto, com a lassitude que causa o mau tempo desesperando uma tarde após a outra, deixei resvalar, sem uma curiosidade mas como se houvesse lido tudo

                                                                                                               143 Mallarmé, Stéphane. Crise de vers. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1974. p. 360.

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há vinte anos, o fio multicolor de pérolas que imprime a chuva, ainda, sobre o bruxuleio dos opúsculos na biblioteca. Diversas obras, sob o vidrilho da cortina, virão alinhar sua própria cintilação: apraz-me como neste céu maduro, no reflexo da vidraça, seguir os clarões da tormenta.144

Constata-se na segunda linha do primeiro trecho uma inversão da

palavra “tarde” (uma tarde após a outra) sendo que em francês a palavra “après-midi” está colocada de sorte que não respeite a lógica da sintaxe. Houve assim para o português uma deformação de clarificação desnecessária e até mesmo prejudicial no que tange ao efeito de estranhamento, para não dizer estético. Além disso, a escolha da tradução “uma ou após outra tarde” deixaria, ao nosso ver, mais ambiguidade. Na terceira linha, “o fio multicolor de pérolas que imprime a chuva” poderia sofrer crítica já que não é o fio que é qualificado de multicolor, mas as pérolas que o são. Trata-se neste ponto de uma imprecisão de sentido. Outra alteração que cerca um sentido é o “neste céu maduro” que em francês está como “en le ciel mûr”. Há alteração de “en le”, que corresponderia ao “no” em português, para o pronome demonstrativo “neste” que enclausura o “céu maduro”. Qual seria este céu se fosse deixado o artigo? Na sexta linha, o “contre la vitre” se transformou em “no reflexo da vidraça”, sendo que “contre” não significa “reflexo” mas “contra”, “sobre” ou “na/no” vidraça/vidro. Há aqui um enobrecimento quantitativo e qualitativo no sentido em que simultaneamente acrescenta-se um sentido mais nobre à expressão do texto de partida. Vejamos o segundo trecho:

La littérature ici subit une exquise crise, fondamentale. [...]145

A literatura aqui sofre de refinada crise, fundamental.146

Aparece neste ponto um manisfeto problema de expressão em

português, pois o verbo “sofrer” (“subir” em francês) não deveria ser                                                                                                                144 Mallarmé, Stéphane. Crise do verso. Inimigo Rumor. n° 20. Tradução de Ana de Alencar.

São Paulo: 2008. p. 150. 145 Idem. Ibid., p. 360. 146 Op. cit., 2008. p. 150.

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acompanhado da preposição “de”. O resultado é um sentido negativo: “sofrer de” dando a entender que se trata de uma doença ou de um mal, quando a priori nada o indica. Teria sido mais adequado “sofre uma refinada crise”, pois indica a ação de uma crise na literatura, o que não implica que esta crise seja positiva ou negativa. Aliás o adjetivo “exquise” em francês é ambíguo neste caso, já que também pode ter o sentido de “deliciosa”.

No terceiro trecho, a tradutora opta por uma supressão e uma inversão que têm fatalmente consequências.

Les langues imparfaites en cela que plusieurs, manque la suprême: [...]147

Línguas imperfeitas, posto que várias, a suprema falta: [...]148

O artigo definido “les” (as) foi suprimido e o verbo “manque”

(falta – verbo faltar na terceira pessoa do singular) foi posto no final da oração. Tem-se por resultado a supressão do estranhamento que provoca o artigo em língua francesa, pois se espera por um verbo na terceira pessoa do plural. Ao mesmo tempo, o artigo parece definir o conjunto total das línguas, sendo que em português resta uma indefinição que aponta para algumas línguas não definidas. No caso de Mallarmé, em sua busca para dar potência à linguagem, trata-se de um detalhe que altera o sentido e afasta o texto de chegada da busca do autor. No que se refere à mudança de lugar do verbo, o resultado tem ainda mais impacto no sentido e na ambiguidade da frase: “falta a suprema” não tem o mesmo sentido que “a suprema falta”.

Certamente poder-se-ia analisar toda a tradução, mas tal tarefa seria desnecessária aqui. Vale notar nessa sucinta análise a importância do diálogo entre tradução e teoria literária. É de suma importância que se estabeleça um projeto de tradução adaptado às características do texto. Um poema metrificado tenderá a levar o tradutor em direção a uma inevitável recriação da obra independentemente do autor. Não será possível assim traduzir toda a obra de Mallarmé com a mesma abordagem. Haverá fatalmente exigências diversas em função da forma. Para além de formas e gêneros, é relevante ressaltar a importância de

                                                                                                               147 Op. cit., p. 363. 148 Op. cit., p. 154.

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“linguagem autônoma” mallarmeana, como salientou Blanchot. Lembramo-nos igualmente da dedicatória de Baudelaire “Opium et Hachisch” (1860) em Les paradis artificiels:

Il importe d'ailleurs fort peu que la raison de cette dédicace soit comprise. Est-il même bien nécessaire, pour le contentement de l'auteur, qu'un livre quelconque soit compris, excepté de celui ou de celle pour qui il a été composé? Pour tout dire enfin, indispensanble qu'il ait été écrit pour quelqu'un? J'ai, quant à moi, si peu de goût pour le monde vivant que, pareil à ces femmes sensibles et désoeuvrées qui envoient, dit-on, par la poste leurs confidences à des amis imaginaires, volontiers je n'écrirais que pour les morts.149

“Escreveria apenas para os mortos”, eis aqui a questão da

autonomia da linguagem literária que desponta reforçando o caráter impessoal e a espécie de existência independente e absoluta na écriture de Mallarmé. Essa condição singular da linguagem do poeta se isola do homem como o isola de todas as coisas, oferecendo assim o espetáculo de uma potência singular e mágica. Mas então, como poder-se-ia apartar a teoria literária de empreitada tão árdua quanto a de traduzir literatura sem que essa potência sofra consequências? Sem sombra de dúvida, essa “crise do verso” fecunda reflexão e clama por outra tradução sob a ótica do enigma. Mas para além de uma nova tradução, é todo um olhar que se faz presente sobre um objeto que se torna quase palpável a olho nu: o Texto.

Uma pergunta que surgiu, após a análise das traduções de “Crise de vers” e de “Un coup de dés”, foi a de saber como é traduzido esse singular agenciamento em textos em prosa de Baudelaire, particularmente, os poemas cuja poeticidade depende muito da abordagem dessa tensão entre os vocábulos. A intenção é de melhor

                                                                                                               149 Baudelaire, Charles. Opium et Hachisch. In: Oeuvres complètes. Vol.1. Paris: Gallimard,

1975. “Aliás, importa pouco que a razão desta dedicatória seja compreendida. Será mesmo necessário, para o contentamento do autor, que um livro qualquer seja compreendido, exceto por aquele ou aquela para quem foi composto? Dizendo enfim tudo, é indispensável que seja escrito para alguém? Por mim, tenho tão pouco gosto pelo mundo vivo, que, como essas mulheres sensíveis e ociosas que, segundo dizem, enviam pelo correio as suas confidências a amigos imaginários, eu de bom grado escreveria apenas para os mortos.” (Tradução de José Saramago)

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compreender como essas peças foram traduzidas, para aproximar as epístolas baudelairianas da maneira mais consciente possível.

Existem algumas traduções dos Pequenos poemas em prosa para o português, cuja mais antiga seria, conforme Ivo Barroso aponta, a de Paulo M. Oliveira pela editora Athena em 1937. Sem dúvida, a mais clássica é a de Aurélio Buarque de Holanda publicada inicialmente em 1950 pela José Olympio, reeditada pela Nova Fronteira a partir de 1977 e incluída na obra Poesia e prosa de Charles Baudelaire, da editora Nova Aguilar, em 1995, com algumas alterações. Existe uma edição portuguesa da Divulgação, Porto, de 1963, com o título de Spleen de Paris. Além dessas, temos as traduções de Dorothée de Bruchard pela editora da Universidade Federal de Santa Catarina com data de 1988, reeditada em 2007 pela Hedra, assim como, a de Leda Tenório de Mota, da Imago, em 1995. Finalmente, a mais recente tradução dos poemas em prosa de Baudelaire é obra de Gilson Maurity publicada na Record em 2006. É justamente sobre esta última que me debrucei, não sem um cotejo com as traduções de Dorothée de Bruchard e Aurélio Buarque de Holanda.

O poema “O mau vidraceiro” é o nono do volume. A peça inicia com uma reflexão ou devaneio sobre a capacidade, da parte de homens inofensivos, hesitantes, preguiçosos, tímidos, ou ainda passivos, de agir precipitadamente sob impulso de uma força misteriosa e irresistível à espera de um detonador tal “uma flecha em um arco”. O narrador dá exemplos desses sujeitos embasbacados pelos atos que cometeram, ações repentinas e, por vezes perigosas, do qual se julgavam eles mesmos incapazes. O pensamento do narrador do poema o leva a confessar seu próprio ato brutal contra um vidraceiro porque este cometera um grave erro: não vendia vidros coloridos para alterar o panorama da cidade, para extrair o olhar do narrador da “...pesada e suja atmosfera parisiense.” O belo aqui é visto pelo viés da deformação imposta por um elemento exterior à natureza. Poderíamos pensar em um quadro de Paul Gaughin para melhor visualizar a cena: uma paisagem colorida e transgressora da natureza sob as mãos do artista. Trata-se, não somente, de um olhar sem concessão sobre a cidade de Paris, mas igualmente, de uma perspectiva pouco lisonjeira do ser humano. O narrador expõe seu ato de loucura contra um vidraceiro comum e, de certa forma, roga que pensemos e examinemos essa ação com cuidado. Os vidros coloridos representam nessa peça uma intervenção que insufla à cidade um momento de beleza artificial: a ilusão das cores que encobre uma sociedade vista em suas entranhas. É “o que é preciso aprender dos

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artistas”150, conforme aponta Friedrich Nietzsche em sua Gaia ciência. O vidro colorido é o pincelar cuidadoso do artista sobre o mundo para livrar-se alguns intantes de seu peso. Ora, o vendedor de vidros não responde a essas expectativas e provoca a ira do narrador/artista que lança bruscamente sua flecha sobre o pobre homem.

Há nesse poema uma sentença (em todos os sentidos do termo) primordial para o olhar do tradutor. Eis o que chamamos de ponto crítico da tradução. Quando o narrador urra, ébrio de sua loucura, “La vie en beau! la vie en beau!”, seu grito simboliza a revolta do sujeito perante a paisagem horrenda que sua visão de artista descobre. Um pouco como o olhar de D. H. Lawrence em seu “Caos em poesia”, ou pode-se lembrar ainda da novela do próprio Baudelaire, “La Fanfarlo”. Assim sendo, traduzir o grito dessa sentença deve ser a preocupação máxima do tradutor, eis o mais importante desafio de seu ato tradutório nessa peça, que pode simbolizar o texto literário.

Ora, Gilson Maurity, certamente de forma involuntária, acabou por falhar na recriação dessa expressão de desespero. De fato, ao vertê-la em português com a sentença “A vida é bela! a vida é bela!”, acabou por insistir no sentido contrário de todo o poema de Baudelaire. Justamente, a vida não é bela! Daí a necessidade do artifício para camuflar esse panorama, daí a supremacia da arte. Por outro lado, o grito de “la vie en beau!” não representa, de um ponto de vista semântico, uma linguagem padrão ou até mesmo coloquial em francês. Trata-se de uma deformação da expressão: “voir la vie en noir”. Esta expressa uma postura pessimista do sujeito que vê sobretudo o lado negro da vida. Ora, Baudelaire inverteu essa expressão ao substituir a palavra “noir” por “beau”, como que julgando a cidade em uma sentença/oração, no duplo sentido dos vocábulos, que roga pela intervenção artística e condena o vidraceiro. O vaso de flores que o narrador lança perpendicularmente sobre os vidros do pobre homem, representará simultaneamente a execução e o desnudamento de uma ação brutal cometida pelo narrador e por qualquer sujeito em potencial por mais inofensivo que pareça: inclusive o hipócrita leitor. Eis o problema mais significativo dessa tradução que acaba por deturpar um elemento primordial do poema.

Não obstante, tanto Aurélio Buarque de Holanda quanto Dorothée de Bruchard tiveram dificuldades com a mesma sentença, o que aponta para o grande desafio de se traduzir literatura. O primeiro a verteu desta                                                                                                                150 Nieztsche, Friedrich. A Gaia ciência. Curitiba: Editora Hemus, 2002. p. 195.

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forma: “O lado belo da vida”. O segundo tradutor, por sua vez, traduz “A vida bela de se ver”. Ambos provocam uma deformação de clarificação, concomitantemente, a um empobrecimento qualitativo e quantitativo da frase, conforme os conceitos de Antoine Berman. As duas escolhas alongam a sentença, atribuem-lhe sentido fechado e acabam por sofrer certa perda estética, principalmente, na tradução de Dorothée de Bruchard. Além disso, o grito que deveria causar estranhamento ao leitor, já que se trata de uma forma singular, se torna familiar. No caso de Maurity, a escolha induz o leitor a uma abordagem equivocada do texto, já que o poeta jamais escreveu ou cogitou que a vida é bela.

Outra observação que pode ser feita no cotejo dos textos de partida e chegada são os diferentes acréscimos e supressões realizados pelo tradutor, sem que haja a priori uma necessidade formal ou sintática. É o caso da metáfora da “flecha de um arco” (comme la flèche d’un arc) que se torna em português “flecha em um arco distendido”. Houve aqui acréscimo desnecessário e explicativo (deformação de clarificação) da palavra “distendido”. Outro exemplo, é a frase “e abri a janela, infelizmente!” (et j’ouvris la fenêtre, hélas!) que devém “e, então, abri a janela!” A interjeição “hélas” é suprimida aniquilando assim a consciência do narrador relativamente a seu ato brutal. Outra supressão no mínimo curiosa ocorre quando Maurity decide não traduzir “j’examinai curieusement toutes ses vitres, [...]” (examinei curiosamente todos esses vidros). Pode-se constatar que esse excerto não apresenta nenhuma dificuldade particular e, por outro lado, tem certa relevância para entender os atos do narrador.

Além das supressões, pode-se observar modificações no que tange à estrutura de algumas frases, tanto na pontuação, como na divisão de frases ou no acréscimo de aspas para introduzir o pensamento de um personagem. Ora, não se trata de um diálogo ou de uma fala e estas aspas não existem no poema em francês. Além disso, algumas palavras importantes que estão em itálico no texto fonte perderam sua forma de destaque em português no mesmo trecho em que as aspas surgem: “...para ver, para saber, para tentar o destino, [...]” (...pour voir, pour savoir, pour tenter la destinée,...). Há aqui nova tentativa de clarear o texto para o leitor, sem que uma necessidade latente seja percebida e, simultaneamente, houve perda de impacto (e até mesmo de sentido!) ao compor sem grifo palavras voluntariamente destacadas pelo autor. Estes três casos, empobrecimento, supreções/acréscimos e modificação da

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pontuação, podem ser constados nas traduções da correspondência de Baudelaire, como veremos no terceiro capítulo.

Dando sequência ao exame da tradução desse poema e omitindo os problemas de discordância de sentido em algumas escolhas de Maurity, uma importante metáfora do poema sofreu igualmente perda estética ou deformação de empobrecimento. Trata-se da imagem do palácio de cristal que precede a comentada sentença: “...il acheva de briser sous son dos toute sa pauvre fortune ambulatoire qui rendit le bruit éclatant d’un palais de cristal crevé par la foudre.” Na versão em português de Maurity: “...ele acabou de quebrar sob seu dorso toda a sua pobre fortuna ambulatória que resultou na fragorosa barulheira de um palácio de cristal destruído por um raio.” Primeiro, há empobrecimento na escolha do verbo “quebrar” ao invés de “partir”. Além disso, há perda e certa redundância quando o tradutor escolhe traduzir “bruit éclatant” por “fragorosa barulheira”, pois o adjetivo fragoroso já aponta para um forte barulho. O termo barulheira significando “grande barulho”, há aqui emprego de uma expressão pleonástica que empobrece a metáfora, pois deixa de lado a polissemia do adjetivo éclatant. De fato, o vocábulo aponta para os sentidos do fragor e da explosão de luz (o resplendor). Eis uma peculiar dificuldade para qualquer tradutor, pois parece quase impossível transpor essa dualidade para o português. Aurélio Buarque de Holanda traduziu esse trecho da maneira seguinte: “que produziu o fragor de um palácio de cristal fendido pelo raio.” Dorothée de Bruchard preferiu: “que produziu o ruído estrondoso de um palácio de cristal atingido por um raio.” Em ambos os casos, a polissemia desapareceu, mas das três traduções, a que menos sofreu perda estilística e estética foi a de Aurélio Buarque de Holanda. A metáfora criada/inventada por Baudelaire é surpreendente porque emprega ao mesmo tempo palavras rebuscadas e coloquiais. Quando justapõe o verbo rendre (qui rendit / que produziu/rendeu) e o verbo crever empregado como particípio, o poeta cria uma tensão peculiar entre as palavras. No mais, o termo crevé (furado, perfurado) em nada se relaciona com o palácio de cristal, mas tem total fundamento para a imagem que o autor procura render, já que remete não somente ao sentido de um objeto atravessado como também à explosão de um balão (ou de um pneu). Assim, para não haver perda estética nesse ponto crítico, é preciso ter consciência dessa imagem e cuidar na escolha das palavras. Uma opção seria a de traduzir: “que rendeu o barulho fulgurante de um palácio (per)furado pelo raio.” Essas escolhas preservariam certa dualidade na imagem explosão/luz de “bruit éclatant”, a singularidade do particípio crevé aplicado ao palácio de

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cristal de sorte a manter o estranhamento e/ou a riqueza da metáfora. Nesse ponto, as palavras de Manuel Bandeira, ao tentar definir a poesia quando afirma que ela se dá em uma “colisão de palavras”, têm todo valor, já que se tratando de um poema em prosa, sem metro ou rima, é vital preservar as metáforas que dão certa carga poética a essa forma híbrida.

Enfim, para concluir as observações sobre a tradução dessa peça, pode-se apontar ainda uma escolha questionável do tradutor na última e também primordial frase do poema: “Mas o que importa a eternidade da danação a quem achou em um segundo o infinito da alegria” (Mais qu’importe l’éternité de la damnation à qui a trouvé dans une seconde l’infini de la jouissance). A escolha de traduzir jouissance por alegria é injustificável, tanto do ponto de vista do sentido quanto do estético. Além disso, não se trata de uma censura onipresente aplicada ao termo, já que este é empregado regularmente em outros poemas (caso de “As multidões”: verbo gozar). Dorothée de Bruchard e Aurélio Buarque de Holanda também evitaram o substantivo gozo, traduzindo-o por “fruição” e “prazer”, mantendo paradoxalmente o verbo gozar. Ora, tratando-se da moral alavancada pelo devaneio, no fato do narrador experenciar em um segundo o infinito do gozo decorrente de seu ato brutal sobre o vidraceiro, parece assaz empobrecedor não manter esse prazer intenso que desnuda, de certa forma, todo homem no reflexo da vidraça (o poema), inclusive o leitor.

A análise do poema de número XII, “As multidões”, resultou também na constatação de uma postura tradutória similar da parte de Gilson Maurity: modificações na pontuação, supressões e acréscimos dificilmente justificáveis. Por exemplo, “[...] jouir de la foule est un art;” devém “gozar da presença das massas populares é uma arte.” Ora, as palavras “massa” e “multidão” não são sinônimas, nem em francês, tampouco em português. O sentido figurado do vocábulo nos leva a entendê-lo como conjunto numeroso de pessoas, mas igualmente como “as camadas mais numerosas da população” (o povo). Essa conotação política atribuída pela escolha de “massa” (ou “massa popular”!) jamais foi intenção manifesta de Baudelaire que teria certamente escolhido o termo equivalente em francês (la masse). Dorothée de Bruchard cometeu o mesmo equívoco, intitulando inclusive o poema por “As massas”. Nessa peça, Aurélio Buarque de Holanda manteve acertadamente ao longo do poema o vocábulo “multidão”, não impelindo o leitor a interpretar o texto sob uma perspectiva socio-política. Esta interpretação deve vir do sujeito que aborda o poema,

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jamais pela imposição arbitrária do tradutor, quando mais se este tem meios de evitá-lo. O poema “Les foules / As multidões” trata do poeta em um momento de criação/invenção, quando, em sua solidão, invade a multidão, inspirando-se dos sujeitos dignos de interesse, adotando “como suas, todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que as circunstâncias lhe apresentem.” São poucos os poemas nos quais o poeta retrata certo aspecto de seu métier, outro exemplo sendo o da peça em verso “O sol”. A tradução da sentença “la vie en beau” clama por uma postura perante o texto literário: a consciência de um ponto crítico e de seu valor estético e a necessária preocupação com a écriture. Infelizmente, os numerosos acertos da tradução de Gilson Maurity são encobertos por escolhas questionáveis. Tratando-se de momentos cruciais e/ou de palavras pe(n)sadas com minúcia por Charles Baudelaire, que ficava furioso se removessem uma única vírgula de seus versos, o efeito de conjunto da tradução acaba sendo negativo e emblema uma lacuna do ato tradutório, ainda muito comum nas traduções, perante as teorias literárias e tradutórias e, sobretudo, frente aos valores que fazem de um texto uma obra de arte.

Não sem propósito abordamos aqui Baudelaire via Mallarmé. Nessa relação jaz todo o nosso élan intelectivo. Pois nele dirigimos a atenção para o Texto para o qual o mallarmeano simboliza, de forma inequívoca e mais palpável, valores significativos da literatura enquanto arte. Essa passagem de uma escrita, quase caricatural, para a de Baudelaire, deve nos lembrar, no momento do ato tradutório, da importância da palavra e de seu agenciamento, que acabam por alcançar uma expressão artística ou, simplesmente, sua fórmula mágica. Tendo a singularidade da linguagem como visada, poder-se-iam estabelecer as estratégias mais adequadas para o ato de traduzir. O tradutor oscilaria assim entre recriação e letra em função do tipo de linguagem e das restrições impostas por esta, notadamente a forma.

Aprofundando as reflexões de Berman e Haroldo, estes percebem a importância da “informação estética”, como diz Max Bense citado pelo segundo, mas dão soluções diferentes sobre esse ponto. O poeta/teórico brasileiro se concentra mais no lado estético da literatura. Não obstante, o tradutor consciente sabe que uma teoria jamais dará conta do conjunto dos textos literários cuja característica é a imensa diversidade. Por outro lado, o tradutor que se entrega à tirania do sentido, à recriação pura e arbitrária, até mesmo à tentação de enobrecimento, não atingirá o seu objetivo central: o Texto. A literatura conquista essa informação estética que frequentemente transcende a

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língua padrão e nos conduz, segundo Bense, à “imprevisibilidade, à surpresa, à improbabilidade da ordenação dos signos”.151 Nesse caso é vital traduzir o não-dito, pois é nessa sentença absoluta que o olhar crítico poderá atuar. Trata-se de uma linguagem da sugestão. Se o tradutor se empenha em traduzir o intraduzível, lembrando aqui de Paulo Rónai152, talvez haja um grau de intraduzibilidade que nos permita preservar ou recriar a informação estética que seja leal ao tom ou à intenção do autor traduzido. O sentido não deve assim impor sua tirania, quando não é o objetivo do texto comunicar algo ou quando a recriação se impõe em decorrência das exigências formais do texto. Pois são numerosos os casos em que uma linguagem única desaparece sob efeito do enobrecimento gratuito, da clarificação, da recriação gauche que procura a rima ou sob o império despótico do sentido, como vimos nas traduções de Mallarmé e Baudelaire. Pois não é questão nesse ponto de fidelidade ao autor ou à língua mãe. Seria preciso avaliar o que se perde ao se afastar daquilo mesmo que fundamenta a literatura, que ganha autonomia e poder ao resvalar das mãos do autor: o Texto.

O objeto a traduzir é, portanto, assimilável a um farol. Sua luz nos guia em meio à neblina, mas não esqueçamos de seus reflexos na superfície. Enxergamos apenas uma obra canônica ou digna de interesse, assim como a áurea do autor que emana dela. Esquecemos do tecido textual, a peculiar formulação das palavras: os reflexos do farol nas dobras da água. E a escrita literária é movente como reflexos. Consequentemente, o farol, visto por inteiro, iluminaria não somente o topo, mas a base do edifício. Se o virássemos de ponta cabeça, ainda assim permitiria localizar-nos nessa delicada empreitada que a tradução representa. No que tange à leitura crítica da obra, ainda abriria brechas para novas traduções e leituras enriquecedoras permitindo ao leitor, que não lê o original, ou ao crítico interessado pelas interpretações diversas, obter várias leituras possíveis do texto fonte (TF).

A correspondência de renomados autores ou artistas oscila entre a escrita prosaica e a literária. Daí talvez a necessidade de alguns tradutores não reproduzirem trechos das cartas para evitarem excertos considerados por demais prosaicos. Em outras palavras, não se reproduz aquilo que é visto como irrelevante porque é inexpressivo no que tange à escrita peculiar do autor, ao seu pensamento, à gênese de sua obra, entre

                                                                                                               151 Apud. Campos, Haroldo de. Op. cit., p. 32. 152 Cf. Rónai, Paulo. Escola de tradutores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

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outros critérios estabelecidos. Por mais que se considere a escrita epistolar baudelairiana prosaica, esta jamais poderá ser considerada homogênea, principalmente, se levarmos em consideração que não é a mesma durante a infância e a idade adulta. Quando o jovem Charles devém o poeta Baudelaire, as missivas vão evoluindo simultaneamente a seu autor. Assim, o texto epistolar de autores – inclusive a correspondência de Baudelaire – deve ser abordado com sua característica híbrida.

No texto em prosa, em poemas em prosa do Baudelaire, como vimos, a fórmula peculiar de uma sentença exige mais atenção do tradutor, como observa aliás Antoine Berman ao destacar as formas sincréticas de muitas traduções. Esse sincretismo é observável na postura de tradutores que, na mesma obra traduzida ora optam pelo literal, ora por traduzir “livremente”, ora tendendo à adaptação quando não ao pastiche.

O sincretismo é típico da tradução adaptadora, e se vale, em geral, de exigências ao mesmo tempo literárias (elegância etc.) e puramente linguísticas, em que a não-correspondência das estruturas formais das duas línguas obriga, segundo ele, todo um trabalho de reformulação. É na base dessas exigências que a hipertextualidade discreta se revela. Isso é muito comum na tradução romanesca, onde tal trabalho de transformação permanece despercebido. Demorou-se muito tempo para descobri-lo no caso de Kafka, por exemplo.153

Essa “hipertextualidade discreta”, como diz Berman logo acima,

foi constatada na tradução da escrita mallarmeana e na dos poemas em prosa de Baudelaire, para evitá-la na versão das cartas. Além disso, é justamente nesse entre-lugar que o gênero epistolar se situa: não-correspondência de estruturas formais de duas línguas, peculiaridades da época e do autor e exigências literárias. As reflexões de Antoine Berman e de Haroldo de Campos são vitais porque levam o tradutor a refletir o Texto de uma forma muita mais consciente. A tradução de epístolas sob a ótica do conceito de letra conduz o tradutor às particularidades das cartas no que tange à pontuação, aos supostos erros sintáticos,

                                                                                                               153 Berman, Antoine. Op. cit., p. 36-37.

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ortográficos, às rasuras, grifos e abreviaturas empregados pelos autores que podem sofrer alterações significativas durante a transcrição ou/e tradução.

A grande prosa – romance, carta, ensaio – tem, já o mencionamos brevemente, uma estrutura em arborescência (repetições, proliferação em cascata das relativas e dos particípios, incisos, longas frases, frases sem verbo etc.) que é diametralmente oposta à lógica linear do discurso enquanto discurso. A racionalização conduz violentamente o original de sua arborescência à linearidade.154

Essa linearidade da tradução, observada inclusive na carta e

resultante da racionalização155 do tradutor, destrói importantes elementos do texto fonte invertendo, por exemplo, a relação do formal e do informal, do ordenado e do desordenado, do abstrato e do concreto. Esta inversão é típica da tradução etnocêntrica que deforma o original levando o texto discretamente a um hipertexto.

Essa reflexão, após o alerta lançado pela escrita mallarmeana, conduz o ato tradutório perante as cartas de Baudelaire a uma permanente observação da heterogeneidade do texto epistolar e à escolha de uma tradução de tripla dimensão: ética (em oposição à etnocêntrica), poética (em oposição à hipertextual) e, finalmente, a uma tradução pensante, em outras palavras, um ato tradutório não conduzido por uma tradição na qual o sentido e valores questionáveis reinam despoticamente: Trata-se de acolher o Outro – singularidades da escrita epistolar baudelairana – no albergue do longínquo.

                                                                                                               154 Berman, Antoine. Op. cit., p. 49. 155 A racionalização é a primeira tendência deformadora citada por Antoine Berman em seu

livro: A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Trata-se de uma recomposição das estruturas sintáticas do original, inclusive a pontuação. A racionalização re-compõe as frases e sequências de frases de sorte a arrumá-las conforme certa ideia de ordem de um discurso. É justamente a partir desse valor questionável de ordem que tradutores julgaram passagens de alguns escritores canônicos como muito mal escritas, como vimos no exemplo de Tolstói em sua obra Guerra e paz.

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2.2 – As veredas do gênero epistolar.

A correspondência de Mário de Andrade encherá volumes e será porventura o maior monumento do gênero, em língua portuguesa; terá devotos

fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa da sua obra e do seu espírito.

Antonio Candido

No mesmo movimento em que o sujeito se abre ao outro para que este o

conheça, ele também se dá a conhecer a si por si mesmo. A carta tem algo do diário íntimo e tem algo da prosa de ficção.

Silviano Santiago

Onde avanço, me dou, e o que é sugado ao mim de mim, em ecos se desmembra.

“Mineração do outro”. Lição de coisas. Carlos Drummond de Andrade

O estudioso ou o leitor comum de cartas de terceiros, sejam estes,

escritores de renome, artistas ou músicos, é um transgressor. Conforme a cultura ocidental: a correspondência é inviolável. Não obstante, existem razões legítimas para se violar as epístolas de um autor como Baudelaire. Silviano Santiago trata de três motivos para a publicação de cartas de grandes autores que justificam essa empreitada. Primeiro, pode-se legitimar tal ato em virtude da eminência da obra no campo da estética literária. A segunda razão é vislumbrada na importância social e histórica do poeta. O terceiro motivo decorre da

[...] curiosidade intelectual das novas gerações, que saem em busca da verdade nas respectivas obras literárias, mesmo sabendo que, se ela pode se entremostrar na leitura, permanece no entanto escondida e absoluta em cada texto por mais diverso, frio ou incandescente que seja ele.156

Qualquer estudo epistolográfico põe abaixo a intimidade sagrada

do “para ti” levando a carta a um “para todos”. Por outro lado, durante muito tempo, o estudo da correspondência de escritores ou artistas foi

                                                                                                               156 Andrade, Carlos Drummond de; Andrade, Mário de. 2002. Op. cit., p. 9.

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visto com suspeitas porque era associado à leitura biográfica das obras, ou seja, uma explicação da obra pela vida dos autores. Após períodos dourados – durante o século XVII (notadamente com a organização dos serviços postais), por exemplo, as famosas cartas de Madame de Sévigné consideradas um chef-d’oeuvre da literatura, no período do século XVIII, romances epistolares como Les liaisons dangeureses de Laclos, o Werther de Goethe ou as Cartas persas de Montesquieu – a epistolografia foi aos poucos enclausurada e vista com desconfiança sob o viés dos métodos analíticos do século XX. Para enfrentar essa armadilha e mostrar uma abordagem pormenorizada das missivas baudelairianas, as palavras de Silviano Santiago são valiosas porque procuram questionar esse enclausuramento apontando concomitantemente um quarto e último motivo para romper o lacre do envelope:

Talvez a maior riqueza que se depreende do exame das cartas de escritores advenha do fato de os teóricos da literatura poderem colocar em questão, desconstruir os métodos analíticos e interpretativos que fizeram a glória dos estudos literários no século 20. Ao analisar as relações entre autor e obra literária, os estudiosos negaram aquele e isolaram a esta, cercaram-na de arame farpado, fetichizaram-na, para dela fazerem seu único e exclusivo objeto de estudo. Só o texto literário conta. Estou me referindo a sucessivas metodologias de leitura: a dos formalistas russos, a “close reading” da nova crítica norte-americana, a leitura estilística dos espanhóis e germânicos, a análise estrutural francesa, etc. Não se trata de pregar o retorno ao biografismo, apanágio como se sabe dos historiadores positivistas do século 19, como Gustave Lanson, que liam os textos sem, na verdade, os ler. Ensinava-se a biografia do escritor; não se lia a obra literária. A leitura de cartas escritas aos companheiros de letras e familiares, bem como a de diários e entrevistas, tem pelo menos dois objetivos no campo duma nova teoria literária. Visa a enriquecer, pelo estabelecimento de jogos intertextuais, a compreensão da obra artística (poema, conto, romance...), ajudando a melhor

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decodificar certos temas que ali estão dramatizados, ou expostos de maneira relativamente hermética [...].157

Trata-se justamente de se colocar frente ao objeto epistolar com o

conhecimento de suas potencialidades e de não simplificá-lo de sorte que se veja nele apenas uma leitura uníssona da obra: o biografismo dos historiadores positivistas. Pelo contrário, o intuito é o de não sacrificar a riqueza das epístolas que proporcionam diversos alumiamentos sobre a vida e a obra de um escritor, artista ou músico. O estudo da correspondência, portanto, não dará uma resposta cabal à interpretação da obra de um autor, não procurará explicar de forma rígida e inquestionável, não poderá, por mais que se tente, explicar a obra. Seu estudo buscará perspectivas complementares, ângulos ainda pouco valorizados: uma tênue luz sobre o mistério de uma obra literária.

O gênero epistolar é classificado entre os gêneros híbridos. Daí decorre a impossibilidade de uma catalogação unívoca, o texto da carta oscilando entre ficção e documento testemunhal. Não se trata categoricamente de um diálogo com um interlocutor ausente, tampouco de um texto puramente literário. A carta se situa em um limiar no qual ocorrem permanentes derivas entre gêneros considerados assaz distintos. Entre diário íntimo e prosa de ficção: eis a primeira deriva. A segunda se encontra na relação do sujeito com o destinatário e consigo mesmo. Em outras palavras, aquele que escreve missivas pode tencionar para um movimento de persuasão, de representação, de confissão, de testemunho ou de debate, transitando entre persona que emprega artifícios persuasivos ou pessoa que se abre ao outro, que se dá a conhecer, ou que se revela a si mesmo. Há manifesto sistema de dissolução do sujeito que varia em função do correspondente: “Como quero ser visto por fulano ou sicrano?”158

Santiago aponta que a carta traz em si o desejo de traduzir um tête-à-tête sombrio e límpido em que o espelho seria tanto a caligrafia na folha de papel branco, quanto o correspondente. Assim sendo, semelhante a um alter ego, o texto epistolar busca dialogar consigo mesmo e com o outro. Trata-se de um exercício de introspecção – no sentido foucaultiano – porque não é apenas decifração do sujeito por ele próprio, mas igualmente abertura que este oferece ao outro sobre si

                                                                                                               157 Andrade, Carlos Drummond de; Andrade, Mário de. Op. cit., p. 9-10. 158 Op. cit. 2002. p. 11.

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mesmo. A abertura pode ser feita sob a impulsão de uma amizade que faz com que junto a um homem ou uma mulher, o sujeito se sinta, nas palavras precisas de Mario de Andrade citadas por Santiago, em um estado de “eu sou eu, ser aberto que se abandona.”159

Ao abordar uma epístola, o leitor/pesquisador enfrentará esse trânsito entre verdade subjetiva e fingimento camuflado em uma mise-en-scène assaz elaborada feita de dramas exacerbados, elogios bastante pomposos e julgamentos sinceros. Nesse contexto, parece quase riscoso confiar nas palavras do remetente, nesse trânsito perpétuo entre fronteiras moventes. Assim sendo, é preciso ter um grande cuidado ao se debruçar sobre qualquer missiva. Por outro lado, aquilo mesmo que palpita na página amarfanhada da carta como algo que se deve temer, atrai o olhar por sua constituição multifacetada que atribui potencialidades ao gênero. Um exemplo desse aspecto caleidoscópico da missiva é a Carta ao pai de Kafka que foi classificada pelo amigo Max Brod, ao reunir sua obra, como literária, conforme aponta Modesto Carone:

Foi Max Brod que, na sua biografia de Kafka de 1937, citou pela primeira vez várias passagens do texto; mas, ao que parece por consideração pela família, hesitou em publicá-la na íntegra até 1950, quando então incluiu a Carta ao pai (o título é dele) nas “Obras reunidas” do autor. É um fato curioso a indecisão de Brod quanto ao lugar onde deveria situá-la no conjunto da obra. Finalmente, decidiu incorporá-la à obra literária de Kafka, embora sempre tenha insistido no seu caráter de carta particular. De certa forma esses escrúpulos se refletem na fortuna crítica da Carta, em que os estudos dedicados a ela vão desde o ensaio biográfico e psicanalítico até as reflexões sócio-históricas, passando também pelas análises imanentes de texto, que analisam a linguagem, o modo de composição, o personagem-autor e o personagem-destinatário como partes integrantes de uma obra literária tout court.160

                                                                                                               159 Op. cit., p. 11. 160 Kafka, Franz. Carta ao pai. Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo:

Companhia das Letras, 1997. p. 82.

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A hesitação se revela aqui essencial para a compreensão do gênero acerca de seu hibridismo. Além disso, os escrúpulos do amigo se situam na interrogação em levar ou não o lugar privado ao público no que há de muito particular e doloroso nas revelações – de modos de pensar e de sentir de Franz – para o pai, tido como autoritário e opressor, carta, aliás, jamais lida pelo destinatário. A epístola kafkiana foi abordada sob diferentes prismas, como podem ser as cartas do poeta das “flores doentias”. Não obstante, à visão psicanalítica sartriana, citada como fonte por Junqueira, emitiram-se reservas quanto ao seu Baudelaire. Michel Butor descreveu o estudo do filósofo como “une brillante suite de contresens”.161 Decorre dessas observações que o gênero exige manuseio cauteloso, ou seja, não ingênuo, e clama pela decisão de com qual abordagem iniciar o estudo. Certamente não pretendemos ver no poeta um “personagem-autor”, pois nos parece levar demasiadamente ao relativismo documentos que podem conter uma narrativa muito mais próxima da história do que da ficção.

Assim sendo, não podemos perder de vista e assinalar veementemente a particularidade do gênero epistolar que é/foi ora odiado, ora louvado. É gênero híbrido, dilacerado entre os binômios: documento histórico e ficção, pensamento íntimo e fingimento, reflexão em metamorfose e vulgar comunicação, prática da escrita literária e simples comentários do quotidiano. Trata-se também de um laboratório para os futuros literatos e lugar de expressão da mulher oprimida em seu espaço privado.

No caso de Charles Baudelaire, descrito como “fin manoeuvrier” (fino manipulador), como se observa quando precisa pedir dinheiro emprestado, todo cuidado é pouco. Não obstante, a riqueza da correspondência baudelairiana jaz justamente na fusão entre manipulação e revelação, entre fingimento e desnudamento. Esta tensão leva o leitor a hesitações na sua interpretação, ao prazer de descobrir a ironia ou a sátira do poeta, suas manobras assaz inábeis quando não patéticas, ao mesmo tempo que o leva à emoção de um gesto sincero de abertura: desnudar de seu pensamento e opiniões, afirmação de suas fraquezas e preconceitos e, finalmente, de suas mais vivas emoções. Daí surge explicitamente em vários momentos nas missivas de Baudelaire a necessidade de proclamar sua sinceridade. O poeta tem consciência de suas promessas não cumpridas e manipulações, o que resulta na desconfiança de sua família.                                                                                                                161 Op. cit. 1964. p. 08. “Uma brilhante sequência de contra-sensos.” (Trad. Nossa)

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Nessa escrita movediça, na qual o sujeito sofre pressão de intenções e desejos, a verdade que a carta eventualmente contém/revela é datada, cambiante e repleta de idiossincrasias. Ao mesmo tempo, retomando a epígrafe de Antonio Candido, a carta/texto tem grande valor ao ajudar a melhor compreender a obra e a vida literária de Baudelaire, notadamente, no que tange aos mitos que circulavam e continuam se propagando, trazendo certo prestígio a sua obra, certa aura, entretanto, por outro lado, mistificando demasiadamente sua imagem. Há de se questionar se essa visão/perspectiva do poeta de As flores do mal não contaminaria indiretamente a interpretação de sua obra. Eis aqui outra pesquisa que não se pretende abordar.

Marcos Antonio de Moraes destaca três fecundas perspectivas de abordagem do gênero epistolar, cuja a importância é preciso destacar. Para ele, a correspondência de escritores, artistas plásticos e músicos, é uma documentação de caráter privado que vem suscitando grande interesse editorial no Brasil. A primeira perspectiva que se abre inicialmente nas epístolas é a da expressão testemunhal que define um perfil biográfico. Em outros termos, confidências e impressões espalhadas pela correspondência de um artista, contam a trajetória de uma vida, delineando uma psicologia singular que ajuda a compreender os meandros da criação da obra. Eis precisamente o veio que procuramos privilegiar tendo em vista a necessidade de revelar e de debater outro Baudelaire. A segunda possibilidade de exploração do gênero epistolar procura apreender a movimentação nos bastidores da vida artística de um determinado período. Nesse sentido, as estratégias de divulgação de um projeto estético, as dissensões nos grupos e os comentários acerca da produção contemporânea aos diálogos contribuem para que se possa compreender que a cena artística tem raízes profundas nos “bastidores”, onde, muitas vezes, situam-se as linhas de força do movimento. O gênero epistolar pode ser interpretado num terceiro viés de abordagem, como “arquivo da criação”, espaço onde se encontram fixadas a gênese e as diversas etapas de elaboração de uma obra artística, desde o embrião do projeto até o debate sobre a recepção crítica favorecendo a sua eventual reelaboração. A carta, nesse sentido, ocupa o estatuto de crônica da obra de arte e a epistolografia pode ser vista, principalmente pela crítica genética, enquanto “canteiro

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de obras” ou “ateliê”, buscando descortinar a trama da invenção, os traços de um ideal estético, quando examina os processos da criação.162

Em síntese, conforme Moraes aponta, a carta é constituída de diversas faces, é um objeto que se troca, um ato que coloca em cena o “eu”, o “ele” e os outros e, finalmente, um texto que se pode publicar. Enquanto objeto cultural, pode-se observar na carta o suporte e seus significados, assim como a história das condições materiais ou da organização da troca epistolar. Além disso, enseja a discussão acerca de sua guarda/conservação em arquivos públicos e particulares, bem como as condições de acesso. Ainda segundo Moraes, a qualidade e a cor do papel, os timbres, os monogramas ou as marcas d’água (filigrana), assim como os instrumentos da escrita, tem grande interesse por espelharem códigos sociais, entremostrando a mão – classe, escolaridade, formação – de quem escreve. Da mesma forma, os sobrescritos, selos e carimbos postais nos conduzem ao funcionamento das instituições que colocam em trânsito essa forma de comunicação escrita. Na qualidade de objeto, a carta também se presta à apropriação/transfiguração artística e à exploração econômica, quando não se anula sob a forma de fetiche na mão de colecionadores avaros.

Enquanto ato, no campo semântico da representação teatral, a carta coloca “personagens” em “cena”. O remetente assume “papéis”, ajusta “máscaras” em seu rosto, reinventando-se (“encenação”) diante de seus destinatários. “Ato”, igualmente, devido a seu caráter performativo: a mensagem põe em marcha pensamentos, projetos, afeições. A carta como texto interessa à retórica, à filologia e aos estudos linguísticos; atrai também a atenção das mais diversas áreas do conhecimento, da história à psicologia (e psicanálise), da sociologia e filosofia às artes em geral, das ciências exatas às biológicas, olhares que desejam captar testemunhos e convicções, fundamentos artísticos

                                                                                                               162 Moraes, Marcos Antonio de. Edição da Correspondência reunida de Mário de Andrade:

Histórico e alguns pressupostos. In: Patrimônio e memória. UNESP – FCLAs – CEDAP, v.4, n.2, p. 123-136 – jun. 2009. Professor de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Membro da equipe Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) – USP; coordenador do Núcleo de Estudos da Epistolografia Brasileira e atual presidente da Associação dos Pesquisadores do Manuscrito Literário (AMPL).

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e científicos, experiências vividas ou imaginadas. Os estudos culturais privilegiam essa voz da intimidade, atravessada por ideologias, vincada por (auto)censuras e ações afirmativas. Na teoria e nos estudos literários, a carta/texto tanto pode ser “material auxiliar”, ajudando a compreender melhor a obra e a vida literária, quanto escritura na qual habita a “literariedade”.163

Outra questão se coloca quanto a outro tipo de abordagem do

gênero epistolar: como traduzir cartas? Como vimos com Antoine Berman quando afirmou que o romance e a carta não são menos rítmicos do que a poesia, não haveria uma distinção nítida entre o ato tradutório do texto literário e o do texto epistolar. Poderia haver, inclusive, grande preocupação com o texto de partida (TP), ou seja, uma postura ética e consciente perante o autógrafo. Seria de grande valia analisar a passagem da transcrição do autógrafo para a página branca da revista ou do livro a publicar. Esse complexo processo de decisões ressaltaria mais ainda a importância das reflexões de Berman e Haroldo de Campos. De fato, como aponta Moraes ao citar Jorge Coli, referindo-se à publicação da correspondência de Mário de Andrade:

Privar o leitor do texto em estado original é um empobrecimento. Vai aqui um pequeno exemplo: a edição dessa Correspondência decidiu desfazer abreviações como ‘v.’ (você), ‘mto’ (muito) “ex.” (exemplo), porque são flutuantes. Temos assim sistematizado algo que não o era de início. Mantidas, as abreviações sugeririam, quando empregadas, urgência, aceleração na escrita, compatível com um pensamento mais febril. Pode parecer coisa pequena. Não é, ainda mais no caso de Bandeira e de Mário de Andrade, em suas cartas apressadas ou calmas, às voltas com um projeto de língua brasileira moderna.164

Ora, nos princípios da edição da correspondência de Charles

Baudelaire, sob direção de Claude Pichois, foi estabelecido um compromisso entre “la plus grande fidélité conciliable avec la

                                                                                                               163 Moraes, Marcos Antonio de. Op. cit., p. 123-136. 164 Idem. Ibid., p. 132.

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lisibilité.”165 Essa conciliação entre a maior fidelidade e legibilidade pode justamente constituir um princípio de decisões arbitrárias que modificam o texto de partida dependendo da capacidade de avaliar o peso do legível e da letra, ou da importância do leitor e do autor. Trata-se aqui de saber como, ao transcrever, levar o texto até o leitor. Pois não é absurdo afirmar que, apesar do aparente paradoxo a seguir, ao aproximar o autor do leitor proporcionando uma leitura facilitada, o efeito seja exatamente o oposto, ao revelar uma escrita empobrecida, em suma, desprovida de sinais reveladores de um estado de espírito. Eis outro trabalho de grande interesse para os estudos epistolográficos, o estudo dos autógrafos. Todavia, não foi possível realizar essa pesquisa no presente trabalho por dois motivos. Primeiro, a grande complexidade de acesso aos documentos em questão, espalhados entre coleções públicas e privadas.166 Desse fato decorre o segundo motivo em relação ao tempo que essa empreitada exigiria. Tendo em vista a árdua tarefa da tradução comentada de uma seleção de epístolas baudelairianas, buscando não somente analisar esse processo, mas, além disso, elaborar um estudo comparativo de outras correspondências, como de outras traduções das missivas de Baudelaire, não seria possível realizar uma pesquisa séria no que tange ao processo de transcrição dos autógrafos. Eis mais um veio que poderá ser explorado posteriormente.

Para finalizar, não podemos senão abordar a epístola como um texto movente, um mar revolto no qual os reflexos do farol cambaleiam, como vimos anteriormente, entre o documento biográfico e a obra literária, sua tradução tensionando entre os polos do semântico e do estético. No mais, o ato tradutório se embasará no conceito de letra de Antoine Berman, visto como espaço de jogo no qual atua uma tradução simultaneamente ética, poética e pensante. Haroldo de Campos, por sua vez, será complementar às ideias de Berman, no que tange ao seu conceito de recriação pautado na nuância entre informação semântica e informação estética.

                                                                                                               165 Pichois, Claude. Introduction In: Baudelaire, Charles. Correspondance, I: 1832-1860. Paris:

Gallimard, 1973. 166 Ver a respeito a parte 2.3 desse capítulo e a conversa com Jean-Paul Avice no Anexo A.

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2.3 – A correspondência de Baudelaire: histórico e critérios de seleção.

Segundo Roger Chartier,

Les usages de l’écrit, dans leurs variations, sont décisifs pour comprendre comment les communautés ou les individus construisent des représentations du monde qui est le leur et investissent de significations plurielles, contrastées, leurs perceptions et leurs expériences. Dans une histoire culturelle redéfinie comme le lieu où s’articulent pratiques et représentations, le geste épistolaire est un geste privilégié. Libre et codifié, intime et publique, tendue entre secret et sociabilité, la lettre, mieux qu’aucune autre expression, associe le lien social et la subjectivité. Chaque groupe vit et formule à sa manière ce problématique équilibre entre le moi intime et les autres. Reconnaître ces diverses façons de manier l’aptitude à correspondre est sans doute mieux comprendre ce qui fait qu’une communauté existe, cimentée par le partage des mêmes usages, des mêmes normes, des mêmes rêves.167

São justamente essas “representações de mundo”, conforme

indica Chartier logo acima, que nos interessam, mais especificamente o “mundo Baudelaire”, que se encontra em parte em suas epístolas. Infelizmente, sabemos, pelas pesquisas dos Crépet e de Pichois, que

                                                                                                               167 Chartier, Roger. (Org.) La correspondance: Les usages de la lettre au XIX ͤ siècle. – Paris:

Fayard, 1991. p. 9-10. “Os usos da escrita, em suas variações, são decisivos para compreender como as comunidades ou os indivíduos constroem representações do mundo que é o deles e investem de significações plurais, constrastadas, suas percepções e experiências. Em uma história cultural redefenida como o lugar no qual se articulam práticas e representações, o gesto epistolar é um gesto privilegiado. Livre e codificado, íntimo e público, tensionada entre segredo e sociabilidade, a carta, melhor que qualquer outra expressão, associa a relação social e a subjetividade. Cada grupo vive e formula à sua maneira esse problemático equilíbrio entre o eu íntimo e os outros. Reconhecer essas diversas formas de manipular a aptidão para corresponder-se é sem dúvida melhor compreender o que faz que uma comunidade exista, consolidada pela partilha dos mesmos hábitos, das mesmas normas, dos mesmos sonhos.” (Trad. Nossa)

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cartas foram perdidas e que talvez nunca sejam reencontradas, mesmo se a maioria o foram, conforme afirma Philippe Auserve168.

Entre as missivas que sobreviveram ao tempo, esparsas entre as famílias que as receberam, colecionadores e publicações em revistas por outros pesquisadores, muitas ainda hoje são fonte de discussão quanto à exatidão das datas. Os efeitos do tempo sobre o tipo de papel e de tinta, a maneira de preservar esses documentos e a destruição voluntária, são seguramente as principais razões de perdas definitivas. Especialistas se questionam atualmente sobre como resistirão ao tempo os documentos escritos com caneta esfereográfica, cuja tinta tem composição química, sobre o papel mais frágil fabricado mecanicamente. Mas um fato curioso, apesar de compreensível, nos leva a apontar a prática que se tinha, em meados do século XIX, de resgatar apenas os envelopes e destruir seu conteúdo. Segundo Danièle Poublan169, a partir de 1850, o uso do envelope se generalizou de tal forma que os filatelistas passaram a colecioná-los. Até aquela época, o aspecto de uma carta era geralmente o de uma folha de papel dobrada em dois. Inscrevia-se a mensangem sobre as segundas e terceiras páginas e, eventualmente, continuava-se sobre a quarta. Logo em seguida, dobrava-se em três, duas vezes, a folha dupla que servia assim tanto de papel para carta como de envelope. O gesto tão singular de não conservar a epístola contida no envelope se assemelha quase a uma anedota duvidosa que leva à surpresa ou ao sorriso. No entanto, pode-se perceber nesse gesto uma perda de valor da carta, em função daquele que a detém, valor subjetivo ou pensado no ato de destruir a mensagem que deveria ser mais digna de atenção que seu envelope, cujo interesse está em suas marcas postais: selos e carimbos.

É quase um milagre, portanto, as missivas de Baudelaire terem sobrevivido ao tempo e ao manuseio da família, quando mais se tratando da correspondência que antecede seus vinte anos. Conforme Auserve aponta, deve-se esse cuidado de guardar as cartas de uma criança às qualidades de seu conteúdo: uma escrita graciosa, alerta, bem pensada e afetuosa.170 Quando moço, os motivos podem ter mudado, mas Alphonse as classificou juntamente com o duplo de suas respostas, talvez por causa do Conselho familiar. Mais tarde, nem a mãe, nem os Ducessois, destruiram ou espalharam esses documentos. É muito

                                                                                                               168 Baudelaire, Charles. Lettres inédites aux siens. Présentées et annotées par Philippe Auserve.

Paris: Grasset, 2010. A primeira edição é de 1966. 169 Chartier, Roger. (Org.) Op. cit., p. 374-375. 170 Baudelaire, Charles. 2010. Op. cit., p. 12-13.

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provável que esse gesto de preservação não tenha nenhuma relação com o homem-Baudelaire, membro marginal de uma família cuja honra, conforme os critérios burgueses, maculou. O escândalo que seu comportamento e sua obra provocaram foi certamente considerado uma grave ofensa para com a família. Não obstante, havia ainda o Baudelaire “homem de letras”, que conquistara, como vimos, certa notoriedade entre os letrados. A senhora Aupick sabia, melhor que os outros membros da família, da reputação literária do seu filho e tinha interesse por sua carreira, como vemos em sua carta (letra g no Anexo D) para Charles Asselineau em 1968 e na anedota contada por Du Camp. Apesar de tentar entravar a publicação de alguns poemas, a mãe nunca viu em seu filho o monstro que foi pintado por alguns amigos da família, como os Ducessois, por exemplo. O nome do poeta podia ser sinônimo de horror e era proibido pronunciá-lo. Quando a correspondência chegou nas mãos dessa família, pela viúva de Alphonse, não querendo guardar o diabo em sua casa, algumas epístolas foram queimadas por serem consideradas inconvenientes, as demais sendo entregues a Jacques Crépet, ainda segundo Auserve.171

Atualmente, o nome de Baudelaire tem um peso que não tinha no século XIX. Da importância crescente do poeta nos manuais franceses172 e na literatura ocidental em geral, decorre o valor da sua correspondência. Como constatamos no primeiro capítulo dessa tese, a incompreensão em volta da obra poética do poeta de Os paraísos artificiais fez com que seu justo valor fosse reconhecido somente anos depois de sua morte. O escritor Maxime Du Camp, por exemplo, é explícito ao afirmar que “ele avançou ao lado deles [Gautier e Musset], na segunda fileira, e não será possível escrever a história da poesia em nossa época sem lhe reservar seu lugar.”173 Du Camp equivocou-se, mesmo se reconheceu algum talento na figura estranha do “Príncipe das Carniças”. Em suma, os escritos baudelairianos, inclusive as epístolas, têm grande valor para os estudos literários e trazem até mesmo certo

                                                                                                               171 Op. cit., 2010. p. 14-15. 172 Conforme aponta Gloria Carneiro do Amaral, a partir de um levantamento realizado por

Roger Fayolle em oito manuais entre 1880 e 1940, Baudelaire passou do 36° lugar (0,3%) para, de 1920 em diante, o 2° (9,3%), perdendo somente para Victor Hugo. Amaral, Gloria Carneiro do. Aclimatando Baudelaire. – São Paulo: Annablume, 1996. p. 16-17. Cf. Fayolle, Roger. La poésie dans l’enseignement de la littérature: le cas Baudelaire. Littérature. Paris, 7 : p. 48-72, oct. 1972.

173 Du Camp, Maxime. Souvenirs littéraires. Tome II: 1850-1880. Paris: L’Harmattan, 1993. p. 62.

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prestígio para seu detentor, ao menos na visão da maioria174, com sua aura de obra de um autor canônico, mas a correspondência possui igualmente valor financeiro, daí provavelmente as coleções particulares e o fato de estarem dispersas.175 A famosa carta endereçada à senhora Sabatier, conhecida sob o apelido de “la Présidente” (“Tu étais une divinité... te voilà femme”), por exemplo, foi vendida por 14500 francos em 1968, depois comprada por 250000 em 1984 e, finalmente, 450000 na década de 90.176 São numerosos os sites que leiloam autógrafos das cartas de Baudelaire, incluindo textos não assinados e reproduções, o que certamente dificulta o estudo dos originais.177

Historicamente, com exceção de algumas cartas, por vezes fragmentos, publicadas logo antes ou após a morte de Baudelaire – por Victor Fournal no L’Émancipation de Bruxelas em 20 de abril de 1865, por Asselineau em seu Charles Baudelaire em 1868 e duas obras sobre Baudelaire: Charles Baudelaire, Souvenirs – Correspondances (Pincebourde, 1872) no qual foram publicadas 15 missivas e Charles Baudelaire et Alfred de Vigny candidats à l’Académie por Étienne Charavay (Charavay frères, 1879) com sete cartas dentre as quais cinco endereçadas a Vigny – foi Eugène Crépet (pai) o primeiro editor da correspondência do poeta de As flores do mal. O volume que publicou em 1887 pela editora Quantin: Charles Baudelaire, Oeuvres posthumes et correspondances inédites précédées d’une étude biographique, levava à luz do dia numerosos excertos de epístolas para Ancelle, cinco cartas

                                                                                                               174 Entende-se nesse ponto que a aura de autores ditos “canônicos” e de suas respectivas obras

deve ser compreendido na perspectiva da maioria dos colecionadores, leitores e instâncias literárias, tais como as bibliotecas e os museus, não dos estudos acadêmicos. De fato, a abordagem dos Estudos culturais já criticou não somente a hierarquização de poetas, romancistas ou dramaturgos, fonte de injustiças por ter condenado alguns ao esquecimento, por exemplo, mas igualmente essa aura que emanaria da produção de escritores e artistas, notadamente a partir do trabalho A obra de arte na era de sua reprobutibilidade técnica, de Walter Benjamin.

175 Ver a conversa com Jean-Paul Avice no Anexo A. 176 Delanglade, Sabine. “Les autographes à la page.” Artigo do jornal L’Express acessado em

16 de agosto de 2010 no site: http://www.lexpress.fr/informations/les-autographes-a-la-page_597941.html

177Cf.•http://catalogue.drouot.com/html/d/index.jsp?id=5954&np=1&lng=fr&npp=20&ordre=1&aff=1&r=

•http://www.auction.fr/FR/v10954-beaussant-lefevre-autographes-baudelaire-coll-un-amateur-livres-timbres-postes-photos/index.html • http://www.christies.com/LotFinder/lot_details.aspx?intObjectID=4997800 • http://www.scriptura-paris.com/charles-baudelaire-42.html •http://browse.sothebys.com/?&cat=1&event_id=28308&g=1&i=1&sale_id=PF7025&nb=1&dp=Books+and+Manuscripts&is_past=1

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para Flaubert, mais de setenta para Poulet-Malassis, vinte e duas para Sainte-Beuve.

Julien Lemer publicou em 1888 as cartas que recebera de Baudelaire; Maurice Tourneaux, em 1891, as que o poeta endereçara à Madame Sabatier. A Partir de 1902 até 1906, Féli Gautier, na Revue bleue, Nouvelle Revue, no Mercure de France, revela mais de oitenta missivas que estarão presentes no volume publicado sob o anonimato em 1906 pela editora Société du Mercure de France: Charles Baudelaire. Lettres 1841-1866 (com 342 cartas). Trata-se do primeiro volume dedicado exclusivamente à correspondência. Infelizmente, este apresentava problemas de rigor em sua concepção, transcrição e tipografia. Conforme Claude Pichois afirma, seguindo o testemunho de Jacques Crépet (filho), Féli Gautier amontoava pilhas incertas de livros, revistas e documentos, segundo hábitos da boemia literária. Um projeto de colaboração entre Crépet e Gautier foi abandonado. Jacques Crépet inseriu as cartas a Baudelaire em uma reedição (Messein, 1906), completada e corrigida, do estudo biográfico que seu pai colocara no início das Oeuvres posthumes de 1887, constituindo um outro volume das póstumas de 1887 e daquelas que descobrira por si mesmo. Ele deixou Féli Gautier publicar as epístolas de Baudelaire e recusou qualquer implicação nessa publicação, malgrado o fato de ter marcado sua presença com a contribuição, sob o anonimato, do texto de três cartas a Asselineau e vinte e nove a Poulet-Malassis na Nouvelle Revue dos 1º e 15 de fevereiro de 1906.

Em 1917, ano durante o qual a obra de Baudelaire caiu em domínio público, cinquenta anos após a morte do poeta, La Revue de Paris, dirigida por Ernest Lavisse e Marcel Prévost, publicava cento e trinta cartas inéditas à Senhora Aupick, e três a outros destinatários, precedidas por um estudo de Camille Vergniol (15 de agosto). No final do século XIX, outra tentativa de publicação da correspondência íntima fracassou, no mesmo momento em que as cartas à Senhora Aupick ganhavam publicidade. Félicité Baudelaire, viúva do meio-irmão do poeta, morava em Fontainebleau onde tinha se retirado um professor do ensino secundário, Louis-Adolphe Chaboüillé. Ela o autorizou a publicar as cartas que detinha. A editora Calmann-Lévy adqueriu os direitos e mandou compor tipograficamente o texto, precedido de uma nota biográfica sem assinatura, no qual abundam os erros de leitura. Foi nesse momento que Catulle Mendès, fiel ao seu dogma parnassiano, interveio. A publicação Chamboüillé permaneceu em seu estado de prova, com exceção de alguns raros exemplares desta composição

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tipográfica na biblioteca Spoelberch de Lovenjoul em Chantilly e nas coleções Armand Godoy (Lausanne) e Robert Von Hirsch (Bâle).

Em 1918, na editora Louis Conard, Jacques Crépet retomou as missivas publicadas na La Revue de Paris, mas após tê-las conferidas e completadas com ajuda dos originais. Acrescenta oito cartas que tinha entregue ao Mercure de France do dia 16 de maio de 1918, assim como, quinze novas epístolas. Aqui começa a segunda etapa.

Alguns anos depois, marcados notadamente por duas publicações em fac-simile: a de Édouard de Rougemont (1922) e a do comandante Emmanuel Martin (1924), eis uma nova publicação com os cuidados de Jacques Crépet em 1926 intitulada, Dernières lettres inédites à sa mère, pela editora Excelsior. Esta continha dezoito cartas ou fragmentos originárias dos Ducessois que completava as Lettres inédites à sa mère.

Por sua parte, Féli Gautier iniciara pela editora La Nouvelle Revue Française as Oeuvres complètes de Charles Baudelaire cujo primeiro volume foi publicado em 1918. Essa coleção não foi concluída, mas em 1933 surgiu um volume da Correspondance sob os cuidados de Yves-Gérard Le Dantec que continuara o trabalho de Féli Gautier. O tomo I, referente aos anos 1841-1863, trazia cento e seis cartas a mais que o volume de 1906: o tomo II não será publicado. No entanto, ao trabalho de Le Dantec se deve a revelação de cartas inéditas, particularmente as que pertenciam à coleção Jacques Doucet, legada à Universidade de Paris (Cahiers Jacques Doucet, I, Baudelaire, 1934).

Jacques Crépet iniciara em 1922, pela editora Louis Conard, a coleção das Oeuvres complètes de Charles Baudelaire na qual foi inserida a Correspondance Générale, única tendo direito a esse título. Crépet preverá quatro volumes, mas ao final foram publicados seis. O primeiro em 1947 por Jacques Lambert, sucessor de Louis Conard, e o último em 1953, alguns meses após a morte de Jacques Crépet, volume que será concluído por Claude Pichois, que já havia participado à elaboração de alguns dos anteriores. Nos vinte anos seguintes, numerosas cartas foram publicadas, em especial as Lettres inédites aux siens, com origem na coleção Ducessois e transcritas por Philippe Auserve (Grasset, 1966). Todas estão presentes na obra organizada por Pichois pela editora Gallimard (1973). Assim sendo, a primeira correspondência geral continha mil e noventa e duas missivas. Um anexo reagrupava documentos de natureza diversa, como ver-se-á logo adiante. Um índice onomástico e ideológico de trezentos e cinquenta

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colunas fazia desta correspondência um admirável instrumento de trabalho, dando origem a vários estudos.178 Existe igualmente um volume de 269 páginas publicado pela editora La Guilde du Livre em 1964, cujo título é Correspondance de Charles Baudelaire, com seleção e notas de Marcel Raymond.

Em 2000, dois volumes importantes da correspondência de Baudelaire foram publicados. Por um lado, cartas inéditas encontradas por Pichois pela editora Fayard: Nouvelles lettres. Por outro, a seleção intitulada Correspondance organizada por Claude Pichois e Jérôme Thélot, a partir da edição completa de 1973 pela Gallimard, à qual foram acrescentadas apenas cinco cartas dentre as quais foram reencontradas e publicadas no volume Nouvelles lettres. Além dessa seleção, foi publicada outra intitulada La Fanfarlo précédée d’extraits de la correspondance de l’auteur avec Sainte-Beuve com trechos da correspondência com o autor Sainte-Beuve que precedem a novela La Fanfarlo. Este volume é apresentado por Pierre Laforgue e foi publicado pela editora Sagittaire 62 em 2008.

Vale notar que no site da editora Gallimard, os volumes disponíveis referentes à correspondência do poeta são o volume I daquela organizada por Féli Gautier e Le Dantec datada de 1933, a correspondência completa de Pichois (edição de 1973) e a seleção organizada por este com Thélôt em 2000, mencionado logo acima.

A presente seleção foi realizada a partir da leitura da correspondência completa (inclusive das valiosas notas). Tomamos como base a edição de 1973, publicada pela editora Gallimard em dois volumes de papel bíblia, sob a direção de Claude Pichois. Tal escolha tem respaldo, em primeiro lugar, na seriedade desse eminente baudelairiano. Segundo, pelo fato de ser uma obra que carrega uma herança histórica nas pesquisas sobre as epístolas de Baudelaire. Trata-se do resultado de três gerações de pesquisadores (Eugène e Jacques Crépet, Claude Pichois) que dedicaram suas vidas profissionais a um trabalho imenso: reunir, ordenar, anotar, transcrever, conferir, aproximadamente 1500 documentos, dentre os quais, a maioria são cartas, mas que incluem também contratos, promissórias e apontamentos/testemunhas (témoins) da existência de missivas desaparecidas, de 9 de janeiro de 1832 a 30 de março de 1866. Qualquer

                                                                                                               178 Esse histórico da correspondência de Charles Baudelaire tem por fonte principal a pesquisa

de Claude Pichois (historique) inserido na introdução do primeiro volume Correspondance (1832-1860), publicado pela Gallimard em 1973.

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pesquisador que aborde a Correspondance do poeta tem o privilégio de se beneficiar de uma obra cujo trabalho exigiu anos de esforços e de dedicação, desde 1887 até o ano 2000, com a publicação do volume Nouvelles lettres pela editora Fayard que completa aquela de 1973. Assim sendo, pode-se discutir certas escolhas no ato da transcrição dos autógrafos, jamais a seriedade e o afinco desses baudelairianos, ao contrário do que vimos nas edições não concluídas por Féli Gautier e Le Dantec que apresentam erros tipográficos. Outro motivo que levou à escolha dessa edição foi a constatação de que esta foi frequentemente apontada como texto de partida para as traduções em outros idiomas.

Abordar essa massa de cartas é um desafio. Robertson Frizero, tradutor da correspondência de Dostoiévski publicada recentemente (2009) pela 8Inverso de Porto Alegre, considera a do autor russo volumosa. De fato, são mais de duzentos e quarenta e sete itens do período compreendido entre 1834 e 1881 sobre os quais se debruçou, além de outras cartas que já haviam sido catalogadas e que considerou de vital importância. Essa comparação deve nos dar a medida de tal empreitada, tendo em vista os 1500 documentos (mais notas) abordados para se pensar os critérios de uma seleção da correspondência de Charles Baudelaire. Ao final, são quase dois mil e trezentas páginas divididas entre as cartas, suas notas, introdução, cronologia de vida, relação das cartas e partes repertoriando as finanças e o histórico da correspondência, para os dois volumes de 1973.

A essa edição, que pode parecer antiga, foi aliada, para comparação, a publicação em formato de bolso organizada por Pichois e Thélot (2000). Algo importante de se notar: o texto das cartas é o mesmo. Esta seleção de bolso visa retratar um Baudelaire “homme de lettres”, “esthète” e “critique”, como diz Jérôme Thélot, enfim, sua atividade de artista e de intelectual. As vantagens de uma seleção que não se restrinja às cartas para Madame Aupick são grandes. Primeiro, é precisar confessar que as missivas para a mãe são bastante repetitivas acerca da temática do dinheiro. Esse não foi o objetivo de Thélot e Pichois e tampouco será o nosso, pois existem temas mais relevantes ou urgentes a revelar. Segundo, da mesma forma em que a seleção de Thélot e Pichois permitirá ter uma visão mais ampla e significativa do poeta acerca de seu pensamento e atividades, preservando assim a relação com os diversos destinatários179 (pessoas da profissão, escritores

                                                                                                               179 Dentre essas personalidades da época: Victor Hugo, Gustave Flaubert, Franz Liszt, Édouard

Manet, Théophile Gautier, Sainte-Beuve, Richard Wagner, Nadar, Gérard de Nerval,

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mais ou menos famosos, artistas, músicos, editores, jornalistas, diretores de revistas ou relações com pessoas nas quais algo relevante se destaque), a presente seleção objetiva um panorama mais amplo.

No escopo de não se furtar às delicadas questões propostas sobre o mito Baudelaire, decidimos traduzir todas as cartas disponíveis no período da infância e da juventude até a volta de Charles de sua viagem às Índias, incluindo cartas enviadas por Alphonse Baudelaire (meio-irmão), por Madame Aupick e seu marido, o General Aupick, para melhor dialogar com as que o poeta escreveu e nos fornecer maiores elementos de compreensão. A essas noventa e três cartas selecionadas e traduzidas, foram acrescentadas duas epístolas, uma endereçada à mãe, a famosa carta de 6 de maio de 1861 citada por Sartre e Junqueira e a outra enviada a Charles Asselineau pela senhora Aupick em 1868.

No mais, a ordem cronológica das epístolas pode dificilmente ser evitada. As notas encontradas na correspondência completa foram traduzidas (e/ou resumidas) quando indispensáveis à inteligibilidade das cartas fazendo usufruto das valiosas informações filológicas ou históricas pertencendo quase integralmente às pesquisas de Claude Pichois. A menção “N. do Trad.” aponta as notas complementares relativamente a elementos lexicais, contextuais e escolhas de tradução. A menção “Trad. nota” será empregada somente em alguns casos para diferenciar os dois tipos de notas e assim evitar possíveis confusões.

Trata-se, nessa seleção de noventa e cinco epístolas, de analisar uma representação parcial que o gesto epistolar revela, tal um olhar sobre o vitral partido. E essa abordagem da correspondência, que não pretende ser ingênua, não intenciona construir oposições rígidas entre honestidade, de sua obra poética, e mentira que permearia suas missivas, conforme aponta Pichois. Segundo ele,

Baudelaire ment, et les bons apôtres de se voiler la face. Ses cris les plus pathétiques, arrachés à son coeur, qui les a entendus? Alors il caresse, il déguise la vérité, pour obtenir dix francs, un délai, un article favorable. Ou il use de cruauté, comme avec sa mère.180

                                                                                                               Proudhon, Jules Barbey d’Aurevilly, Eugène Delacroix, George Sand, Eugène Crépet, Charles A. Swinburne, Félicien Rops, Alfred de Vigny, dentre os mais famosos.

180 Pichois, Claude. Introduction. In: Baudelaire, Charles. Correspondance. 1832-1866. Paris: Gallimard, 1973. p. XII. “Baudelaire mente, e os bons apóstolos que cubram suas faces com um véu. Seus gritos mais patéticos, arrancados de seu coração, quem os ouviu? Então

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Essa visão de Pichois que afirma a imagem do poeta como “fino

manipulador” tem respaldo nas palavras de Michel Butor. Este declara sem rodeios que a “má fé” de Baudelaire em sua correspondência não é senão “o avesso, o resgate desse prodigioso esforço de honestidade mental que sua obra inteira representa, no meio da noite e do desespero.”181 Mesmo se não há como negar essa má fé, é possível condenar a correspondência em seu conjunto como manipuladora?

Discordamos dessa abordagem um tanto maniqueísta das epístolas baudelairianas, nessa oposição entre obra poética e correspondência, entre honestidade e mentira. A riqueza do gênero epistolar, como constatamos pelas análises de Silviano Santiago ou Marcos Antonio de Moraes, não autoriza qualquer julgamento drástico nesse sentido. É preciso, ao mesmo tempo, não ser ingênuo e ter cuidado com os diferentes tons, representações e até mesmo desnudamentos que permeiam a escrita epistolar de qualquer autor, inclusive a de Charles Baudelaire. O desafio aqui é o de abordar o ser humano que o poeta foi, em outras palavras, de debruçar-se sobre sua complexidade e de não transformá-lo em um figurante de folhetim, como se fosse mistificado sob os traços simplificados e apressados de um autor.

                                                                                                               ele acaricia, traveste a verdade, para obter dez francos, um prazo, um artigo favorável. Ou usa de crueldade, como com sua mãe.” (Trad. Nossa)

181 Butor, Michel. Histoire extraordinaire: Essai sur un rêve de Baudelaire. Paris: Gallimard, 1961. p. 21.

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Capítulo III

Ato tradutório das epístolas baudelairianas.

3.1 – Algumas traduções: análise e cotejo.

É preciso iniciar essa análise com uma confissão: não temos como avaliar, com a mesma acuidade, as traduções escolhidas e analisadas logo adiante. É realista dizer que o cotejo que empreendemos, com traduções em inglês, espanhol, italiano e alemão, visa somente alguns aspectos específicos, e não a versão como um todo. No entanto, pareceu-nos relevante e até enriquecedor efetuar essa análise com outros idiomas para observar as diferentes escolhas perante os inúmeros desafios propostos pela tradução da correspondência de Baudelaire. É importante também destacar que não foi possível ter acesso a todas as traduções mencionadas mais adiante, sendo algumas dentre elas assaz raras. Além disso, uma escolha foi feita, tendo em vista a seleção proposta, para tentar privilegiar as obras que contivessem as mesmas cartas que foram traduzidas.

Para o inglês, a primeira tradução seria The letters of Baudelaire, com tradução de Arthur Symons publicado em New York pela Albert & C. Boni em 1927. Um ano depois, o mesmo tradutor publica uma seleção de cartas para a mãe: The letters of Charles Baudelaire to his mother, 1833-1866. London: Rodker, 1928. Esta primeira edição terá nova publicação em 1971 pela B. Blom em New York. Encontramos também a seleção Baudelaire, a self portrait. Selected letters, com tradução de Lois Boe Hyslop e Francis E. Hyslop pela Oxford press (London) em 1957 com novas edições pela Greenwood press (1979) e Hyperion press (1981). Existe uma seleção de cartas de juventude que encontrei na National library of Australia: Letters from his youth. Trad. Simona Morini, Frederic Tuten. Garden City (NY): Doubleday, 1970. A obra que mais me chamou a atenção foi Selected letters of Charles Baudelaire: The conquest of solitude, com tradução de Rosemary Lloyd pela editora da universidade de Chicago em 1986, pois teve apoio de Claude Pichois e não se limita às cartas à mãe. Além disso, algumas de suas páginas estão acessíveis na internet.

Para o italiano, encontramos: Lettere alla madre, com tradução de B. Dal Fabbro pela Bompiani (Milano) em 1945. No mesmo ano, Lettere alla madre, com tradução de Nella Berther publicada pela di Uomo (Milano). Lettere inedite ai familiari. Pela Rizzoli (Milano) em

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1968 com tradução de Luigi di Nardis. Lettere alla madre di Charles Baudelaire, com tradução de Ortesta C. (curatore) pela editora SE de 1985, com nova edição em 2009. Essa seleção parece ser a mais comum. Charles Baudelaire. La conquista della solitudine. Lettere 1832-1866, com tradução de Anna Morpurgo pela editora Rosellina Archinto, Milano, em 1988. Existem ainda as traduções: Lettere alla madre. Mondadori, 1994 (sem indicação de tradutor). Uma edição completa de 1980 em 3 volumes com introdução de Claude Pichois: Baudelaire Charles. Lettere, pela editora Cappelli. Conforme o recenseamento bibliográfico consultado no W. T. Bandy center of Baudelaire studies, há uma tradução de uma seleção de cartas por Cinzia Bibliosi Franck: Il vulcano malato: lettere 1832-1866. Roma: Fazi, 2007.

Para o espanhol, foi encontrado Cartas a la madre pela editora Schapire (Buenos Aires) datada de 1947 com tradução de Ulyses Petit de Murat que também traduziu Las flores del mal em 1959 pela Dintel. Cartas a la madre (1833-1866), com tradução de Roberto Monsberger pela Grijalbo-Mondadori (Barcelona) em 1993. A tradução mais recente data de 2004, Cartas, com tradução e seleção do poeta Mario Campaña pela Bassarai.

Para o alemão, encontramos apenas uma versão das Lettres inédites aux siens, intitulada Jugendbriefe, com tradução de Alfred Schelzig, pela editora Wd, realizada em 1969, incluindo a introdução de Philippe Auserve.

De todas essas traduções, conseguimos consultar para cotejo e análise as seguintes: Baudelaire, a self portrait. Selected letters, com tradução de Lois Boe Hyslop e Francis E. Hyslop. Esta tradução tem por base a correspondência geral estabelecida por Jacques Crépet entre 1947 e 1953. O volume único de aproximadamente 260 páginas comporta uma seleção de 100 cartas do período compreendido entre 1833 e 1886 para diversos destinatários. Estas são divididas em sete partes cujos temas são: “Early years”, “Apprenticeship”, “An interlude”, “Joseph de Maistre” and “Edgar Allan Poe”, “Les Fleurs du Mal”, “De Profundis Clamavi” e “Brussels”. Cada uma é introduzida por um pequeno texto com caráter biográfico e histórico. Letters from his youth, com tradução de Simona Morini e Frederic Tuten, e uma introdução de Enid Starkie, contém 95 missivas de 1832 a 1864, com base na edição estabelecida por Philippe Auserve pela Grasset em 1966. Finalmente, a terceira tradução consultada em língua inglesa é Selected letters of Charles Baudelaire: The conquest of solitude, de Rosemary Lloyd, com base na correspondência organizada e anotada por Claude Pichois, pela

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Gallimard em 1982. Essa seleção foi realizada com recortes cronológicos, dando assim uma visão mais ampla do poeta. As sete partes da seleção compreendem 196 epístolas com os seguintes temas: Childhood: 1832-1839, Vie de bohème: 1840-1847, The republic: 1848-1851, The flower of Evil: 1852-1857, Parisian Scenes: 1858-1861, The spleen of Paris: 1861-1864 e Poor Belgium!: 1864-1867. Uma particularidade deste volume é o fato de algumas cartas terem sido parcialmente traduzidas, assim como a correspondência de Dostoiévski, por Robertson Frizero, pela 8Inverso (2009).

Tivemos acesso, em italiano, a duas obras: Charles Baudelaire. La conquista della solitudine. Lettere 1832-1866, de Anna Morpurgo. Eis uma obra muito interessante, já que tudo indica que seja uma tradução indireta, via inglês, da versão supracitada de Rosemary Lloyd. Não há referência alguma à correspondência em francês, somente ao tomo de Lloyd, incluindo, além disso, uma versão – nos dois sentidos do termo – da introdução dessa tradutora. De fato, o texto foi modificado, eliminando inclusive a referência à Correspondance organizada por Pichois em 1973, citada por Lloyd. Além desta obra intrigante, analisamos Il vulcano malato: lettere 1832-1866, de Cinzia Bigliosi Franck. São aproximadamente 250 cartas traduzidas cujo critério estabelecido procura se centrar no ambiente familiar, na sua atividade enquanto “homme de lettres” e em seu exílio na Bélgica. O texto fonte empregado foi a Correspondance organizada por Pichois em 1973.

Para o espanhol, pudemos consultar apenas uma obra, Cartas a la madre (1833-1866), de Roberto Monsberger. Trata-se da tradução das 155 missivas que compõem a obra Lettres à sa mère, publicada pela Calmann-Lévy em 1932. A versão de Monsberger segue inclusive a mesma divisão em sete partes, mas apenas quatro epístolas desta obra fazem parte de nossa seleção.

Finalmente, observamos alguns pontos bem precisos na obra Jungendbriefe, de Alfred Schelzig, versão para o alemão das Lettres inédites aux siens.

Tratemos agora de analisar algumas peças da correspondência de Baudelaire nas três traduções consultadas em inglês. A peça que abre o volume traduzido por Morini e Tuten, única escolhida nas três versões em língua inglesa, enviada em 9 de janeiro de 1832 ao meio-irmão (n°1 do Anexo D), Alphonse Baudelaire, é a primeira carta conhecida do poeta. Pode-se citar dois elementos de interesse nesse texto: “we’ll leave sooner than later” e “I’ll close here” que correspondem a “nous partirons

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plus tôt que plus tard” e “Je ferme ma lettre”. No primeiro caso, a tradução conseguiu manter a particularidade da expressão e, no segundo, o emprego do verbo “fermer”, não muito usual atualmente para descrever a ação de terminar uma carta. Não obstante, os tradutores resolveram verter o verbo “embrasser” pela palavra “love”: “Je t’embrasse ainsi que ma sœur / Love to you and sister.” Essa escolha é questionável, já que o verbo em francês não tem esse sentido e que existem outras alternativas em inglês, tais como “to embrace” ou “to hug”. Foi, aliás, a escolha de Lois e Francis Hyslop em outra epístola, o que parece muito mais adequado: “I embrace you [...].” (carta enviada de Creil à senhora Aupick em 1841, possivelmente no início de maio - n°83). Em espanhol, a mesma postura, ora enviando “un abrazo” ou desejando “un montón de cosas a parte de mamá” ao meio-irmão (22 de novembro de 1833), ora manda “besos” à mãe (carta 83 enviada de Creil).

A epístola seguinte, com data de 1 de fevereiro de 1832 (n°2), enviada de Lyon a Alphonse, foi selecionada em duas traduções, a de Lloyd (1986) e a de Morini e Tuten (1970) e merece alguns comentários. Na mais recente, não há menção à cidade de Lyon, o que parece no mínimo curioso, já que Baudelaire escreveu de localidades diferentes. Manter a cidade não representa nenhuma dificuldade em si e orienta o leitor quanto aos deslocamentos do poeta. O final do texto foi suprimido, escolha feita por Lloyd em várias cartas. Em ambas o itálico não foi empregado, destaque que corresponde às palavras sublinhadas por Baudelaire, mantidas na edição de Pichois. Essa escolha não constituiria um problema se o itálico não tivesse sido usado na carta seguinte, nas duas traduções. Trata-se de casos semelhantes: “à peine”, “maudit thème” e “monsieur”. Essa postura indica que houve falta de coerência. Continuando a análise, alguns elementos do texto apresentam certa dificuldade de tradução, caso da expressão “[elle] s’écrie en faisant un coup de théâtre”, cujas versões foram: “[she] shouted out, turning it all into a great drama” (Lloyd) e “[she] exclaims dramatically” (Morini e Tuten). O rico vocabulário da carta também representa um desafio, principalmente, com a expressão “à force” (semelhante a à foison, a mancheias) que surge entre vírgulas duas vezes, sem que se saiba precisamente com qual objeto se relaciona. Na versão de Lloyd, a escolha foi questionável, já que preferiu a expressão “hundreds of them” e “hundreds and hundreds of skirts”, enquanto que na de Morini e Tuten, a decisão foi a de colocar a palavra “inevitable” entre parênteses - inexistentes no texto de partida (org. Philippe Auserve) - na primeira

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ocorrência, e simplesmente eliminar a segunda. Nos dois casos, os tradutores poderiam ter usado o advérbio plenty, ou seja, a expressão in plenty, que corresponde a a lot of.

Relativamente à pontuação, constata-se que foi alterada nas duas versões, geralmente, no caso do ponto e vírgula, que Baudelaire usa muito nas primeiras cartas e que é mais comum na época. Para Tuten e Morini, em sua nota comentando a tradução, a decisão é clara: além de corrigir erros, os travessões, muito usados pelo autor para terminar sentenças, foram substituídos por pontos e algumas vírgulas foram acrescentadas quando foi julgado necessário. São decisões embasadas na edição organizada por Auserve, que defende o pouco interesse, até mesmo para os estudiosos, de manter essa pontuação baudelairiana. O argumento é questionável. Assim, nas duas versões, esta foi assaz alterada, substuindo igualmente o ponto e vírgula por pontos, vírgulas, dois pontos ou até mesmo pela conjunção “e/and”. Finalmente, a oração que termina a carta tem um interesse pelo uso que se faz do verbo fermer e a tradução de thème: “[...] but a blasted essay for school forces me to stop here.” (Morini e Tuten) e “[...] but a darn translation forces me to close my letter here.” (Lloyd) A interpretação é distinta relativamente ao vocábulo “thème” (tema), tratando-se muito provavelmente de uma tradução do francês para uma língua estrangeira (“translation”), atividade muito comum na época e não uma composição (“essay”). A escolha de Lloyd pelo verbo to close é, ao nosso ver, a mais adequada, evitando assim a supremacia da leitura facilitada. A tradutora conseguiu, neste caso, aliar sentido e forma, com uma postura ética, conforme as reflexões de Berman.

Na missiva seguinte (n°3), de 3 de março do mesmo ano para o meio-irmão, também selecionada nas duas obras logo acima, pode-se levantar algumas dúvidas tais como a traduções da cidade de Villeneuve la guerre por parte de Morini e Tuten: “I left off the war at Villeneuve [sic], [...]” (“J’en étais resté à Villeneuve la guerre [sic]”) e “My love to Théodore and sister.” (“Embrasse bien Théodore et ma soeur.”) No que concerne a versão de Lloyd, surgiu uma interrogação quanto à necessidade de se colocar uma nota entre colchetes no corpo da carta ao invés de no final da correspondência ou em nota de rodapé, já que pretende-se desde o início eliminar alguns trechos. Teria sido mais interessante reservar este espaço às palavras de Baudelaire, além de esteticamente mais agradável para o leitor, incoerência que se agrava se apontarmos que, ao logo da obra, o leitor se beneficia de muitas notas de rodapé para contextualizar as epístolas. Eis o trecho em questão:

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I’d got up to Villeneuve la guerre [sic: Baudelaire means Villeneuve-la-Guyard, between Montereau ans Sens] and now I’m going to tell you more about my journey.182

J’en étais resté à Villeneuve la guerre et je continue mon voyage.183

A informação não é vital já que não prejudica o entendimento

do leitor: sem um mapa da França, muitos sequer saberiam localizar as cidades mencionadas. Na edição de Pichois, há apenas uma nota explicando o engano de Baudelaire. No mais, há deformação de alongamento na segunda parte da frase que poderia ter sido simplesmente traduzida: “I continue my journey.” Quanto ao vocabulário, vale apontar a escolha de não repetir “highroad” nas três ocasiões em que Baudelaire emprega “grande route”. A tradutora resolveu alterar para “highway” na 2a e 3a vez, o que nos leva a pensar sobre a necessidade de racionalizar um texto, no qual ocorrem repetições, tornando-o linear, lembrando novamente dos comentários de Berman.

Na carta de 1o de abril de 1832, endereçada a Alphonse, selecionada apenas por Morini e Tuten, nos deparamos com uma escolha que revela uma postura tradutória bastante significativa nessa obra: a simples omissão de trechos ou palavras que apresentam maior dificuldade. É o caso “du beau papier cassé rose”, tipo de papel na moda na época, cuja tradução foi “on this beautiful pink paper”. A expressão “bon enfant” na frase, “Certes, je me serais souvenu d’un aîné si bon enfant sans le couteau”, encontrada na missiva de 9 de novembro de 1832 (n°9), foi ignorada e alterada para “Of course, i would remember my good big brother even without the knife”184. Em francês, o sentido é o de uma pessoa de bom humor e que não é maliciosa, conforme o Littré. Foi o caso também na missiva de 1o de fevereiro na qual o termo “impériale” – parte superior da diligência onde se coloca as bagagens – foi simplificado para “coach” (diligência), o que resultou em uma

                                                                                                               182 Baudelaire, Charles. Selected letters of Baudelaire: The conquest of solitude. Tradução de

Rosemary Lloyd. – Chicago: The University of Chicago Press, 1986. p. 04. 183 Baudelaire, Charles. Op. cit., 1973. p. 05. 184 Baudelaire, Charles. Letters from his youth. Trad. Simona Morini, Frederic Tuten. Garden

City (NY): Doubleday, 1970. p. 09.

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repetição desnecessária da palavra empregada novamente no parágrafo seguinte: deformação de empobrecimento, portanto. Outro exemplo da postura dos tradutores é a modificação estrutural das sentenças, frequentemente desnecessária, e que levam a alterações rítmicas assaz importantes cuja consequência resulta, mais uma vez, em um empobrecimento significativo da escrita baudelariana.

Allons il faut que je fasse mon devoir. C’est ce qui m’oblige à fermer ma lettre bien plus tôt que je le voudrais.185

Well, i have to go now and do my work and must end my letter sooner than i whished.186

Na edição organizada por Auserve (TF de Morini e Tuten), as

diferenças situam-se apenas na pontuação: “Allons, il faut que je fasse mon devoir ; C’est ce qui m’oblige à fermer ma lettre bien plus tôt que je le voudrais.”187 No entanto, como podemos constatar na citação logo acima, os tradutores sequer respeitaram-na provocando uma grande mudança no ritmo da frase, com repetições da conjunção “and”, inexistentes em francês e, como se não bastasse, fizeram um acréscimo desnecessário: “i have to go now”. Alguns termos foram vertidos não somente sob a égide do sentido, com a escolha do verbo “to end” para “fermer” ou “homework” para “version”, mas também do empobrecimento qualitativo: consequência direta dessas escolhas, imbuídas talvez de falta de consciência durante o ato tradutório.

A epístola de 25 de março de 1833 (n°15), endereçada ao meio-irmão, ainda de Lyon, conta a revolta de Charles acerca de uma agressão física sofrida por um camarada. Nas duas versões, a palavra “the supervisor” foi escolhida para verter o termo “pion”, empregado de forma pejorativa por parte de Baudelaire. Trata-se do cargo de “surveillant” ou de “mestre de internato/estudos” (antiga nomeação), subalterno ao de professor/mestre, encarregado de “surveiller” os alunos, em outras palavras, com a função de vigiá-los e fiscalizá-los durante as horas de estudo, no pátio, corredores, cantina e dormitórios. Em inglês, no meio educacional, a função do “supervisor” refere-se a

                                                                                                               185 Op. cit., 1973. p. 06. 186 Op. cit., Baudelaire, Charles. 1970. p. 04-05. 187 Baudelaire, Charles. Lettres aux siens. Présentées et annotées par Philippe Auserve. Paris:

Grasset, 2010 (1a edição em 1966). p. 36-37.

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um professor responsável por um aluno em particular e, de modo geral, um pessoa encarregada de supervisionar trabalhadores ou estudantes, conforme os dicionários Cambridge e Collins, respectivamente.188 Assim, os tradutores optaram por um termo aproximativo (em sentido) ao do sistema educacional francês, mas não levaram em conta sua conotação pejorativa no contexto do tom de revolta da missiva, aliás, assinada com a expressão: “Le mutin cadet” (O amotinado cadete), vertida por Morini e Tuten: “The young mutineer”.

Em 17 de maio de 1833 (n°16), Baudelaire escreve novamente a Alphonse a respeito de perturbações políticas em Lyon. Nas versões de Lloyd e Tuten/Morini, percebem-se diferenças nítidas, a segunda aproximando-se mais do texto de partida, mas ambas acabaram por provocar deformações bastante significativas, notadamente na pontuação, que modificou o ritmo do relato, transformando-o, inclusive, em discurso indireto, certamente sob a influência da necessidade de fazer com que o texto fosse inteligível para o leitor. A sentença “C’est une louve, disent-ils, que nous chassons”, entrecortada pelo “disent-ils” (disseram), provoca estranhamento, mas nada que impeça a compreensão do acontecimento.

On avait dit qu’à deux lieues de Lyon il y avait une grande insurrection. Le général Aymard envoie quatre gendarmes. On trouve une cinquantaine de gens armés. On leur demande leur projet. C’est une louve, disent-ils, que nous chassons. D’après ces deux faits, tu devines le reste de la révolte, c'est-à-dire rien.189

General Aymard sent four gendarmes. They found fifty armed men. They asked them what they planned to do : they answered that they were going to hunt a she-wolf. From these two pieces of information you can imagine what the rest of the revolt was like – in a word, nothing. […]190

General Aymard sent four gendarmes. They found about fifty armed men. They asked them what

                                                                                                               188 Cambridge International Dictionnary of English. – London: Cambridge University Press,

1995. Collins Cobuild English Dictionnary. – London: HarperCollins Publishers, 1995. 189 Op. cit., 1973. p. 17-18. 190 Op. cit., 1986. p. 06-07.

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they were doing : hunting a she-wolf, they answered. After these two events, you can well imagine what the rest of the revolt amounted to – nothing.191

Alguns comentários podem ser feitos a partir da primeira carta

selecionada por Lois Boe Hyslop e Francis E. Hyslop, também traduzida por Lloyd, datada de 17 de maio de 1833 (n°18), sendo o meio-irmão o destinatário. O texto fala de resultados escolares, comparando-os com os de Théodore, e descreve eventos e mudanças na cidade de Lyon, notadamente, a construção de uma ponte suspensa feita de aço, a instalação da iluminação a gás e os efeitos da força do rio Rhône. A primeira observação é a incoerência do emprego do itálico, como já foi dito anteriormente, também na tradução dos Hyslop. Nas duas versões a palavra “primo”, em latim no texto de partida, foi traduzida por “first” por Lloyd (sem itálico) e “first of all” por Hyslop, neste caso, empregando-o, mas não tendo a mesma postura com “pont suspendu”. Nas Cartas a la madre, Mansberger também traduziu o termo por “lo primero”, sem itálico, mas manteve em destaque as palavras “puente colgante”.192 Se Baudelaire as sublinhou, há aí um motivo histórico, a exemplo da instalação da iluminação a gás, já que as construções em aço e ferro eram relativamente recentes, se lembrarmos da polêmica em torno da Torre Eiffel elevada para a Exposição Universal de 1889. Por um lado, não era preciso traduzir “primo”, o que levaria a fazê-lo quando das outras expressões em latim na correspondência, o que constituiria um empobrecimento do texto. Por outro, não há lógica no uso do itálico: nos dois casos, a dificuldade é, no entanto, derrisória, bastando manter as palavras destacadas e fornecer em nota uma tradução do latim para os leitores, o que faz Pichois. No mais, várias alterações de estrutura, acréscimos e supressões de palavras, na maioria das vezes, desnecessários, casos muito numerosos para serem citados em sua totalidade. Para finalizar esta missiva, vale destacar a tradução da expressão “faire les cornes” na sentença, “Dis que de là-bas il me fasse des cornes”: “Tell him he can jeer at me long distance” (Lloyd) e “Tell him he is making a fool of me” (Hyslop), versões que se preocupam exclusivamente com o sentido, ainda que no segundo caso, perdem a noção de que o próprio Baudelaire pede a Théodore que lhe faça chifres.                                                                                                                191 Op. cit., 1970. p. 20-21. 192 Baudelaire, Charles. Cartas a la madre (1833-1866). Tradução de Roberto Mansberger. –

Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1993. p. 27-28.

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Mansberger segue a mesma lógica: “Dile que desde ahí me saque la lengua.” A encenação feita por Baudelaire, forma de narrar assaz presente nas cartas de juventude193, foi preservada, assim como a escolha de manter a palavra “proverbe” (“proverb” e “proverbio”).

Baudelaire enviou uma epístola à mãe, com data provável de 23 de abril de 1837 (n°36), cuja análise é valiosa. Primeiro, interessa aqui observar como foi vertida a peculiar oração: “il faut être à lui quand il est malade.”

Au surplus tu n’en as peut-être guère le temps; car il faut songer à papa avant tout; et puisque lorsqu’il est en bonne santé, il s’occupe tant de nous amuser, il faut être à lui quand il est malade.194

Morover, you may perhaps not have the time to do this, for Father must come first in your thinking. And since when he is well he spends such a lot of time amusing us, when he’s ill, we should devote ourselves to him.195

But perhaps you won’t have time for this. Because we must think os papa first ; and since when he fells well he does so much for us, we must do our best for him when he is sick.196

Tanto Lloyd quanto Tuten e Morini clarificaram-na, anulando sua

singularidade, o que resultou em um empobrecimento qualitativo bastante visível na correspondência em geral. Mas, acima de tudo, vale se debruçar sobre um trecho que possui uma ambiguidade que faz de sua versão um grande desafio. Portanto, tentar-se-á analisá-lo em inglês, italiano e alemão para observar como os tradutores interpretaram essa sentença, verdadeiro enigma no sentido mallarmeano, como discutido anteriormente (2° capítulo):

[Il] m’a proposé de me prêter de sa bibliothèque les livres que je désirerais, et qui

                                                                                                               193 Ver carta para Alphonse com data de 27 de dezembro de 1834. 194 Op. cit., 1973. p. 39-40. 195 Op. cit., 1986. p. 09-10. 196 Op. cit., 1970. p. 45-46.

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auraient quelque rapport à mes études; que seulement il ne me prêterait ni romans, ni autre chose de ce genre, parce qu’il m’exposerait lui-même.197

[Il] offered to lend me whatever books i wanted, provided that they some connection with my studies. He only said he wouldn’t lend me novels or anything else of that type because that would risk getting me into trouble.198

[He] offered to lend me from his own library any books I wanted that would be related to my studies ; but he told me he would lend me neither novels or anything of that sort because he himself would have to report me.199

Mi ha proposto di prestarmi i libri della sua biblioteca che io avessi voluto, e che avessero qualche rapporto con i miei studi ; solamente non mi avrebbe prestato né romanzi né altre cose del genere per non compromettermi.200

Mi ha proposto di prestarmi i libri della sua biblioteca che desidero e che hanno una qualche attinenza con i miei studi, che non mi avrebbe prestato romanzi, né altro di questo genere perché me li avrebbe spiegati lui stesso.201

O que importa aqui é analisar a oração destacada em negrito

dentro do contexto, pois há uma ambiguidade insolúvel no texto de partida: “parce qu’il m’exposerait lui-même.” Percebemos que uma versão em inglês (Lloyd), assim como uma do italiano (Morpurgo), entenderam a oração no sentido estrito de comprometer ou expor a

                                                                                                               197 Op. cit., 1973. p. 40. 198 Op. cit., 1986. p. 10. 199 Op. cit., 1970. p. 45-46. 200 Baudelaire, Charles. La conquista della solitudine. Lettere 1832-1866. Tradução de Anna

Morpurgo. – Milano : Rosellina Archinto, 1988. p. 30-31. 201 Baudelaire, Charles. Il vulcano malato. Lettere 1832-1866. Tradução de Cinzia

Bibliosi Franck. – Roma: Fazi, 2007. p. 11-12.

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problemas. O que causa grande dúvida é justamente como interpretar a oração dentro do contexto. Por que Baudelaire seria exposto a problemas se tivesse acesso a romances emprestados pelo repetidor? Mesmo se este tinha a função de reforçar a versificação dos alunos, é lógico afirmar que Baudelaire correria algum risco (punições) por ler outros gêneros literários fora da sala de aula? No mínimo, parece assaz ilógico. Entretanto, não é possível afirmar com absoluta certeza se essa interpretação é segura. É preciso analisar melhor a questão, observando elementos sintáticos.

O verbo exposer tem vários sentidos, dentre os quais, existem duas interpretações possíveis nesta carta: “Exposer quelqu’un, lui faire courir un péril” / “Expor alguém, sujeitar a danos, desgostos, constragimentos” ou “Expliquer; Exposer une doctrine, une théorie” / “Tornar inteligível, compreensível; explicar, interpretar”, conforme os dicionários Littré e Houaiss, o que corresponde ao verbo “expor” em português. Não obstante, dois pontos precisos causam estranhamento: a falta de uma sequência da sentença e a impressão de um equívoco gramatical ter ocorrido, em um momento de distração ou de pressa. Malgrado o bom domínio da língua francesa por parte de Baudelaire, alguns erros ortográficos e de concordância podem ser observados na correspondência de sua juventude. Nos dois casos, criou-se um lapso, um enigma, uma intraduzibilidade que, paradoxalmente, clama pelo tradutor. De fato, exposer, quando se trata de “expor alguém”, é verbo bitransitivo que exige, em francês como em português, o emprego da preposição “à/a” e o complemento que segue: exposer quelqu’un à quelque chose / expor alguém a alguma coisa. Assim, a impressão é de que a frase está incompleta. A segunda opção é o esquecimento de um pronome. Na verdade, um simples pronome pessoal oblíquo (objeto direto) retiraria qualquer dúvida quanto à compreensão: “parce qu’il me les exposerait lui-même”. Se a frase tivesse sido escrita dessa forma, levando em conta o contexto, teria mais lógica, haveria apenas uma leitura possível e todos os tradutores formulariam suas versões de modo semelhante. Porém, como vemos logo acima, Cinzia B. Franck e Morini/Tuten discordam de Lloyd, Morpurgo e Alfred Schelzig: “daβ er mir aber weder Romane noch etwas Ähnliches leihen würde, weil er selber mich dann in Schwierigkeiten brächte.”202 Por outro lado, aqueles

                                                                                                               202 Baudelaire, Charles. Jungendbriefe. Tradução de Alfred Schelzig. – Freiburg: Wd, 1969. p.

57-58. “que não me emprestaria nem romances nem outra coisa do gênero porque me causaria problemas.” (Trad. Nossa)

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corroboram a primeira versão/impressão desse trecho, no qual compreendemos que o repetidor exporia ele mesmo os romances do interesse de Baudelaire. Ainda assim, não é possível afirmar com segurança que essa interpretação seja absolutamente correta e apenas Baudelaire poderia solucionar esse enigma. A postura prosposta nessa reflexão é a de valorizar essa oração que “brilha um lapso”, relembrando de Mallarmé, cujo valor enigmático poderia ser preservado, o que não é o caso em nenhuma das traduções analisadas.

À epístola datada de 27 de junho de 1838 (n°54), escrita para a mãe, convém relacionar as versões de Lloyd e Tuten/Morini, especialmente, alguns trechos que podem constituir momentos críticos da tradução.

Je sens venir la vie avec encore plus de peur. Toutes les connaissances qu’il faudra acquérir, tout le mouvement qu’il faudra se donner pour trouver une place vide au milieu du monde, tout cela m’effraie. Enfin je suis fait pour vivre, je ferai de mon mieux; il me semble ensuite que dans cette science qu’il faut acquérir, dans cette lutte avec les autres, dans cette difficulté même, il doit y avoir un plaisir.203

I feel my life outside school approaching, and that causes me even more fear. All the people you have to get to know, all the effort you to put in to find an empty place in the midst of the crowd, all that frightens me. But I’ve been put into this world to live and I’ll do my best. Then it seems to me that in this knowledge one has to acquire, in this struggle with others, even in this difficulty itself there must be a degree of pleasure.204

I feel my life approaching with even greater fear. All the knowledge that one must acquire, all the trouble one has to go through to find a place for oneself in the world, all this frightens me. But I am prepared for life, and I’ll do my best. I believe that even in this process of learning, in this

                                                                                                               203 Op. cit., 1973. p. 55-56. 204 Op. cit., 1986. p. 14.

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struggle with others, in all this difficulty itself, there must be some pleasure.205

No caso de Lloyd, a tradução do trecho inteiro apresenta

problemas que precisam ser debatidos. Há alongamento desnecessário já no início, que ocorre quando a tradutora procura explicar o texto – a clarificação leva ao alongamento – bastando para constatá-lo observar a primeira frase do trecho supracitado. Outra escolha pouco feliz foi a interpretação do termo “connaissances”, que poderia até ser entendido no sentido de “conhecer pessoas”, mas Baudelaire se refere certamente às preocupações com os estudos e seu futuro profissional. Para isso, basta ler as cartas de 26 de fevereiro de 1839 e de 23 de agosto do mesmo ano, respectivamente, para o coronel Aupick e Alphonse Baudelaire. E se houvesse alguma dúvida, o verbo acquérir não poderia ser associado a “pessoas”. Outro elemento interessante, é a oração “je suis fait pour vivre”, traduzida “I’ve been put into this world to live” (Lloyd) e “I am prepared for life” (Morini/Tuten). É evidente que verter tal agenciamento peculiar não é simples, mas as escolhas se revelam orientadas apenas pelo sentido, quando não alongam demasadiamente a sentença (Lloyd).

Uma peça de grande interesse, tanto para a análise de suas traduções, quanto por seu conteúdo, é a enviada ao padrasto em 17 de julho de 1838 (n°56), na qual podemos ter contato com a primeira manifestação crítica de Baudelaire em relação às artes plásticas. Esta nos coloca frente a algumas dificuldades: as expressões idiomáticas “parler à tort et à travers” (falo talvez a torto e direito), “porter aux nues” (pôr nas nuvens = elogiar muito) e o termo “croûte” (crosta) que forma um jogo de palavras entre os sentidos de crosta do pão e de um quadro considerado de pouca qualidade. A versão de Tuten e Morini simplesmente evitou o desafio e eliminou a expressão idiomática, “je parle peut-être à tort et à travers”, tornando-se “Perhaps I’m wrong”. No caso de Lloyd, o gesto é exatamente o mesmo: “Perhaps I’m speaking nonsense”. Aliás, esta postura de apagar trechos considerados difíceis é frequente ao longo da correspondência. No que tange à segunda expressão, Lloyd preferiu “[La Presse] praises Delacroix to the skies”, escolha idêntica a Tuten/Morini. O jogo de palavras é mantido nas duas obras, mas Lloyd não deu explicações em nota, o que dificultará sua compreensão.

                                                                                                               205 Op. cit., 1970. p. 69-70.

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Eis o que se pode observar nas duas versões para o italiano, as obras La conquista della solitudine. Lettere 1832-1866 (1988), com tradução de Anna Morpurgo e Il vulcano malato. Lettere 1832-1866 (2007), com tradução de Cinzia Bigliosi Franck. Curiosamente, apesar de não haver referência às correspondências em francês – daí a primeira impressão de se tratar de uma tradução indireta – a versão em italiano de Morpurgo não segue a disposição gráfica do seu texto fonte, no caso, a seleção em inglês supracitada realizada por Rosemary Lloyd. Em outras palavras, o título e a seleção são os mesmos, mas há divergência no que tange à organização dos parágrafos, das datas e em alguns elementos textuais tais como palavras em itálico (nem todas são destacadas por Lloyd), algumas notas acrescidas, a não numeração das missivas e partes do texto não suprimidas (post-scriptum de Baudelaire e/ou fórmulas de saldação e assinatura). Até mesmo a introdução de Lloyd, traduzida para o italiano, sofreu alterações, notadamente, com a supressão da referência à Correspondance organizada por Pichois. Além disso, duas partes da versão inglesa não foram preservadas: “Translator’s note” e “Suggested reading”. Como foi dito, não há menção ao TF em francês, tampouco às escolhas e critérios adotados na versão italiana que, no entanto, segue a mesma lógica da estabelecida por Lloyd: a de não traduzir alguns trechos das epístolas.

Desses elementos comparados entre essas obras surgem duas interrogações relativamente à italiana: afinal, trata-se de uma tradução indireta? A tradutora teve acesso à correspondência organizada por Pichois? À segunda pergunta pode-se afirmar com segurança que Anna Morpurgo consultou o texto em francês, já que a disposição dos parágrafos e os termos salientados em itálico correspondem à versão organizada por Pichois (1973). A explicação para essa postura tradutória talvez seja a falta de domínio da língua francesa por parte de Morpurgo. Não obstante, permanece a dúvida de em qual proporção as duas obras foram usadas pela tradutora italiana. A falta de referência à Correspondance aponta para a possibilidade de uma tradução indireta, mas contendo diferenças nas escolhas de Morpurgo. O resultado final é uma obra assaz singular que chama bastante a atenção pelo fato de tender para a tradução indireta, mas de não sê-la totalmente, oscilando também para a correspondência estabelecida e organizada por Claude Pichois.

Ao contrário, a tradução de Cinzia Bigliosi Franck é direta e reserva comentários sobre sua versão na “Nota all’edizione”. Nela, pode-se constatar que o texto de partida é a Correspondance organizada

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por Pichois em sua edição mais citada, a de 1973. Franck nomeia também os três volumes entitulados Lettere, publicados pela Cappelli (1981-83) e anteriormente mencionados.

Abordemos, portanto, algumas missivas para observar as diferentes escolhas das duas tradutoras, fazendo um paralelo ocasionalmente com versões em inglês e espanhol. Na seleção de Morpurgo, a primeira carta, datada do dia 1o de fevereiro de 1832 (n°2) e endereçada ao meio-irmão, apresenta alguns elementos que possibilitam comentários. Por exemplo, a frase “Je te vais raconter mon voyage”, cuja posição do pronome pessoal oblíquo é inusitada em relação ao francês padrão atual (Je vais te raconter mon voyage). A versão de Morpurgo segue a de Lloyd (“I’m going to tell you about my journey”) racionalizando a posição do pronome: “Ti racconterò il mio viaggo.” Cinzia B. Franck, por causa das exigências sintáticas do italiano, também não pôde manter o advérbio em sua situação peculiar: “Ti racconterò del viaggio.” É certo que se trata de um grande desafio, pois o resultado causaria estranhamento no leitor, assim como o faz a sintaxe da frase do TF para um leitor francófono atual. Continuando a análise da versão de Morpurgo, no que concerne o vocabulário, vale apontar a maneira com a qual foram traduzidas algumas palavras tais como “Sull’imperiale/sur l’impériale”, “sbadataggine/étourderie” (distração), “a bizzeffe/à force” (a mancheias), “borse dell’acqua/boule d’eau”, dentre as que apresentam mais dificuldades. Ambos os tradutores mantiveram em itálico os vocábulos, conforme a edição de Pichois, a exemplo de, a stento/a fatica (“à peine” no TF com sentido de “dificilmente”) e “maledetta versione” (“maudit thème”). Mas neste último caso, é curioso notar que o vocábulo “thème” tenha sido traduzido por “versione”. O thème em francês pode ser uma tradução, no entanto, no sistema educacional da época, verte-se da língua falada para a que se aprende, geralmente, o latim e o grego. Ao contrário, a version consiste em traduzir nesses dois idiomas para o francês. Outra racionalização da sintaxe ocorre na frase “[...] et il me semble que toujours voyager serait mener une vie qui me plairait beaucoup”, quando Morpurgo a verteu para “e pensai che viaggiare in continuaziona è un genere di vita che mi piacerebbe molto”. Perdeu-se, com essa escolha, a estrutura peculiar da frase com o lugar pouco convencional, ou mais rebuscado, do advérbio “toujours”: trata-se de um verdadeiro desafio traduzi-la. Relativamente às formas de tratamento e às saudações, podemos notar o emprego da segunda pessoa do singular nas obras em italiano e espanhol, como nas cartas de Baudelaire. Quanto ao verbo

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“abbracciare”, no sentido de envolver com os braços, há aqui uma diferença com a língua francesa, pois o verbo “embrasser” tem também o sentido de “beijar”, preenchendo o vazio deixado pela mutação incrível do verbo “baiser” (transar). Eis uma duplicidade que não poderá ser solucionada em outro idioma. Porém, tratando-se de uma fórmula de saudação, a escolha dos dois tradutores foi judiciosa: “Il tuo fratellino” (ton petit frère), “Non dimenticarti d’abbracciare per me mia sorella e Théodore” (“N’oublie pas d’embrasser de ma part ma soeur et Théodore”). Para evitar dilatar os sentimentos nessas relações, vale interpretar o verbo no sentido mais brando, ao contrário do que fez Lloyd ao empregar expressões como “my love to you”, em situações similares. No final da epístola, deparamo-nos com um caso interessante: como traduzir o verbo fermer na frase: “mais un maudit thème m’oblige de fermer ici ma lettre”? A escolha de Franck foi, ao meu ver, mais adequada ao usar o verbo “chiudere” (que significa “fechar, pôr fim”) do que a de Morpurgo com “interrompere”.

Na carta de 3 de março de 1832 (n°3), pode-se notar, em ambas as versões, a intenção de preservar os nomes próprios das pessoas assim como o nome dos lugares menos comuns (exceção de Paris e Lyon respectivamente Parigi e Lione). É o caso da cidade de Villeneuve la guerre e Chalon206, ou na carta anterior, Charenton e Théodore, da mesma maneira, ao longo da correspondência para outras localidades. A palavra “signore”, correspondente a “monsieur”, foi mantida em itálico nas traduções. Mas ocorreu a primeira supressão do final do texto na seleção de Morpurgo.

A missiva datada de 12 de março de 1833 (n°14) comporta alguns elementos cuja escolha, na seleção de Morpurgo, parece pertinente ressaltar. É o caso do substantivo feminino strenna207 em italiano, empregado para traduzir o termo étrennes, de difícil tradução para o português, com o significado de um presente que se dá no ano novo, destarte, vocábulo muito próximo do francês. Há perda de referência temporal quando o termo “pensums” torna-se “punizioni”, neste caso, uma vez mais, supremacia do sentido: “[...] e io che non mi sorbisco altro che delle punizioni, [...]” Tradução de: “et moi gobant surtout des pensums,” [...]. Porém, o verbo “gober” foi traduzido muito                                                                                                                206 Cf. Missiva a Alphonse Baudelaire de 3 de março de 1832. Baudelaire, Charles. La

conquista della solitudine. Lettere 1832-1866. Tradução de Anna Morpurgo. - Milano: Roselina Archinto, 1988. p. 21-22.

207 Conforme o Dizionario Italiano acessado em 27 de janeiro de 2011: “il dono che si fa in occasione del Natale e del Capodanno.” http://www.dizionario-italiano.it/

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adequadamente pelo verbo “sorbire” em italiano, que tem os sentidos de suportar ou, em uma linguagem mais coloquial, ser forçado a engolir, o que equivale ao francês se farcir, gober também tendo o sentido de engolir sem mastigar ou sem prazer.

Na epístola seguinte, datando de 25 de março (n°15) do mesmo ano, ainda para Alphonse e presente nas duas obras, Baudelaire conta a famosa revolta dos estudantes quando um aluno é agredido fisicamente por um pion (supervisor). O termo foi traduzido por “sorvegliante”, o que corresponde ao francês surveillant. Portanto, há certa perda, mesmo se pequena, no que tange ao tom rebelde da carta, já que se apaga, com essa escolha da palavra sorvegliante, o tom pejorativo do pion, apesar de equivalente em sentido no âmbito do sistema educacional. Há todo um vocabulário relacionado à rebeldia: mutins, coco, “il riait jaune”, pion, lèche-culs, destacados em itálico, e o lema “vengeance sur ceux qui ont abusé de leurs droits” (vingança sobre aqueles que abusaram de seus direitos), assim como uma linguagem assaz coloquial, que corroboram a escolha de uma palavra mais pejorativa para pion, mesmo tratado-se de um desafio de tradução.

Em 17 de maio do mesmo ano (n°16), também para o meio-irmão, à palavra “cadet” foi dado um equivalente de sentido com a escolha de “il più giovane” (Morpurgo) e “il fratello minore” (Franck), ao invés de simplesmente empregar “cadetto”208, significando como em francês e português, o filho não primogênito. O gesto inconsciente do tradutor aqui é o da clarificação e o do alongamento desnecessário. No mais, deve-se destacar mais uma supressão, precisamente de dois últimos parágrafos na versão de Morpurgo, com exceção da assinatura “Carlos”, que Franck preferiu alterar curiosamente para “Carlot”, apesar de ter por texto de partida a edição organizada por Pichois.

Em 22 de novembro de 1833 (n°18), Baudelaire escreve a Alphonse. Esta peça comporta alguns elementos dignos de atenção. A palavra “primo” no TF continua em itálico e a tradutora foi obrigada a acrescentar uma nota para explicar que ali não houve tradução, o que nos leva à situação da assinatura “Carlos”. Porém, a nota afirma que o termo está em italiano no original, o que parece discutível, sendo o latim o mais provável. A hesitação em torno da ortografia da palavra “emplâtre”, foi recriada por Morpurgo em italiano, o que constitui uma

                                                                                                               208 “Cadetto (s.m.): figlio maschio non primogenito.” Dizionario Italiano consultado no site

http://www.dizionario-italiano.it/definizione-lemma.php?definizione=cadetto&lemma=C0042000 no dia 31 de janeiro de 2011.

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escolha legítima: “impiastri su impiastri (o empiastri)”. Essa hesitação nos informa a cerca do domínio do francês de Baudelaire naquela época, mesmo se pontualmente. A versão de Morpurgo seguiu fielmente a escolha da palavras do jovem Baudelaire na passagem um pouco confusa na qual este descreveu os efeitos do rio Rhône. Mesma atitude em Mansberger, apesar da intrusão de uma nota entre colchetes no meio do texto.

La verrerie qui est située dans une presqu’île tout près de la ville (car nous y allions en promenade, nous, collégiens), eh bien, le Rhône empiète toujours sur l’isthme; il ronge, il mange. Cette nuit enfin il a emporté l’isthme.209

C’è una vetreria che si trova su quella che è quasi un’isola nelle immediate vicinanze della città (noi collegiali ci andavamo in passeggiata), ebbene, il Rodano sconfina con l’asportare l’istmo; erode, mangia. Questa notte ha finito con l’asportare l’istmo.210

La fabrica de vidrio que está situada en una península pegando a la ciudad (los colegiales íbamos allí de paseo). Pues bien, el Ródano lame continuamente el istmo [sic, N. del E. francés] ; lo roe, lo come. Finalmente anoche se la ha llevado por delante.211

É preciso igualmente destacar a forma com a qual foi traduzida a

expressão idiomática empregada por Baudelaire no final do texto. Este pede ao meio-irmão que dê um recado ao filho Théodore que está obtendo melhores resultados escolares: “Dis que de là-bas il me fasse les cornes.” Trata-se de um desafio verter tal expressão, no sentido em que é preciso entender seu sentido, a partir da metáfora na qual se fundamenta, para em seguida escolher duas opções bastante distintas: encontrar um equivalente ou traduzir sua letra. Em francês, trata-se do ato de colocar os dedos acima da cabeça de uma pessoa, formando a aparência de chifres, para ridicularizá-lo, conforme aponta o dicionário

                                                                                                               209 Op. cit., 1973. p. 20-21. 210 Op. cit., 1988.p. 26-27. 211 Op. cit., 1993. p. 27-28.

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Littré.212 A opção de Morpurgo não foi, a priori, a de realizar um ato tradutório etnocêntrico: “Digli che da laggiù mi faccia le corna.” Aparentemente, esse gesto seria relacionado em italiano à infidelidade (cuja origem seria a traição que sofreu o rei Minos, os chifres fazendo referência ao Minotauro) ou a uma proteção contra a má sorte, bastando para isso, reproduzir os chifres com os dedos (indicador e mindinho) ou dizê-lo. Por exemplo: “Come va la tua salute in questo periodo?- Bene, facciamo le corna!”213 O último parágrafo não foi traduzido.

A carta enviada em 23 de abril de 1837 (n°36) à senhora Aupick apresenta uma particularidade com a formulação “il faut être à lui” (é preciso ser dele). Como pode-se observar na escolha feita por Morpurgo, o sentido foi privilegiado em detrimento do agenciamento peculiar das palavras, principalmente, no emprego do verbo “être”:

Au surplus tu n’en as peut-être guère le temps; car il faut songer à papa avant tout; et puisque lorsqu’il est en bonne santé, il s’occupe tant de nous amuser, il faut être à lui quand il est malade.214

Forse non ne hai affatto tempo ; perché prima di tutto c’è da curare papà ; e poiché quando è in buona salute si preoccupa tanto di divertirci, quando è ammalato dobbiamo dedicarci a lui.215

Forse non ne avrai neppure tempo, poiché bisogna sopratutto pensare a papà e, visto che quando sta bene si preoccupa tanto della nostra felicità, bisogna dedicarsi a lui quando è ammalato.216

                                                                                                               212 Em português, poderia ser traduzida “Fazer os chiffres a alguém”: “Faire les cornes à

quelqu’un, faire avec les doigts disposés de manière à représenter des cornes, un geste qui est un geste de raillerie et injurieux. On dit aussi dans le même sens: montrer les cornes.” Dicionário Littré consultado no dia 31 de janeiro de 2011 no site: http://francois.gannaz.free.fr/Littre/xmlittre.php?requete=corne.

213 Fontes: http://www.scudit.net/mdjella.htm e http://it.wikipedia.org/wiki/Gesto_delle_corna consultados no dia 31 de janeiro de 2011.

214 Baudelaire, Charles. Op. cit., 1973. p. 39. 215 Baudelaire, Charles. La conquista della solitudine. Lettere 1832-1866. Tradução de Anna

Morpurgo. – Milano: Rosellina Archinto, 1988. p. 30-31. 216 Baudelaire, Charles. Il vulcano malato. Lettere 1832-1866. Tradução de Cinzia Bigliosi

Franck. – Roma: Fazi editore, 2007. p. 11-12.

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No que se refere ao vocabulário específico ao mundo escolar,

deparamo-nos com o termo “répétitions” que tem seu equivalente em português no vocábulo “repetição”, empregado no plural, tendo por sentido uma “lição suplementar dada a um ou vários alunos”, conforme a acepção encontrada no dicionário Houaiss. Em italiano, foi o substantivo feminino “ripetizioni” (no plural) o termo escolhido pela tradutora, aliás, palavra muito próxima do francês e do português.

A epístola endereçada ao coronel Aupick em 17 de julho de 1838 (n° 56) nos coloca frente a algumas dificuldades: as expressões idiomáticas “parler à tort et à travers” (falo talvez a torto e direito), “porter aux nues” (pôr nas nuvens) e o jogo de palavra com o termo “croûte” (crosta). As soluções de Morpurgo são bastante próximas do TF, no entanto, não há nenhuma nota a respeito do jogo de palavras o que, ao meu ver, parece imprescendível. Na versão de Franck, também nenhuma nota, e o emprego de “nudi” ao invés de “stelle”. A expressão “parlo a vanvera” parce mais adequada que “ho torto e parlo a sproposito”:

Il est sans doute bien ridicule à moi de parler ainsi des peintres de l’empire qu’on a tant loués; je parle peut-être à tort et à travers; mais je ne rends compte que de mes impressions: peut-être est-ce là le fruit des lectures de la Presse qui porte aux nues Delacroix? Le lendemain, dans un journal, Le Charivari, on a dit qu’après notre dîner nous étions rassasiés de croûtes.217

Certamente è ridicolo che sia io a parlare così dei pittori dell’impero che sono stati tanto lodati; forse ho torto e parlo a sproposito ; ma non rendo conto che delle mie impressioni: forse questo è frutto della lettura della Presse, che porta alle stelle Delacroix? Il giorno dopo, su un giornale, Le Charivari, si diceva che dopo il pranzo ci avevano rimpinzato di croste.218

                                                                                                               217 Op. cit., 1973. p. 57-59. 218 Op. cit., 1988. p. 37-39.

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È senz’altro ridicolo da parte mia parlare così dei pittori dell’impero che vengono tanto lodati. Forse parlo a vanvera, ma non esprimo che le mie impressioni: forse anche questo è il frutto delle letture della « Presse » che sostiene i nudi di Delacroix? Il giorno dopo, su un giornale, « Le Charivari », si diceva che dopo la cena non ne potevamo più di croste.219

No texto de Morpurgo, houve novamente a não tradução de dois

parágrafos que poderiam inclusive dar pistas para o relacionamento entre Charles e seus pais.

A famosa missiva endereçada a Victor Hugo em 25 de fevereiro de 1840 (n°77) comporta elementos passíveis de análise. O caso do verbo prodiguer, por exemplo, é interessante pois leva-nos a examinar a homogeneidade da tradução. De fato, o uso em italiano do verbo prodigare aponta para uma escolha próxima do TF. Não obstante, Morpurgo traduziu a frase “[…] j’ignore tout à fait les convenances de ce monde […]” por “[…] ignoro completamente i convenevoli di questa società […]”, o que nos leva a pensar na razão de se verter, ora literalmente, ora pelo sentido e não pela palavra escolhida pelo autor: “prodiguer/prodigare” e “monde/società”. Ao empregar a palavra “società” (sociedade), perde-se força na expressão “de ce monde”, que nos leva a pensar além da sociedade, no sentimento de ser estrangeiro no mundo no qual o poeta deambulou, da França ao oceano Índico, de Paris à Bélgica, seu lado barroco expresso na sua correspondência e no homônimo poema em prosa. Na versão de Franck, a escolha foi justamente a de “mondo”, mas não preservou “prodigare”, preferindo “che vi hanno tributato”. Outra ocorrência na mesma epístola se dá com a expressão “toute belle chose”, cujo sentido exige um conhecimento mais sutil do idioma. Ao vertê-lo, por exemplo, por “todas as belas coisas” perder-se-ia a expressividade do adjetivo “toute” que, em francês, acarreta uma ideia de totalidade máxima, ou seja, que representa toda e qualquer beleza. Relativamente às versões de Morpurgo, com “tutte le belle cose” e Franck com “tutte le cose belle”, é preciso se questionar se não há significativa perda. Vemos neste exemplo que a literalidade não é o mesmo que a tradução da letra, já que ao traduzir por “todas as belas coisas” (literalmente), perde-se a essência da                                                                                                                219 Op. cit., 2007. p. 23-25.

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expressão. Lloyd também seguiu os mesmos passos que as tradutoras italianas: “I love you as one loves a hero, a book, as one loves all beautiful things”.220

Finalmente, pode-se destacar a carta escrita ao padrasto em 16 de fevereiro de 1842 (n°87), quando de sua volta das ilhas, na qual uma expressão empregada por Baudelaire tem particular interesse. Trata-se da encontrada na frase: “Je crois que je reviens avec la sagesse en poche.” Para o italiano, podemos citar essa passagem pelo seu caráter hipertextual, na versão de Morpurgo, o que resultou muito mais em uma adaptação do que em uma tradução propriamente dita: “Credo che tornerò pieno di buon senso.” Mesma ocorrência em inglês, “I believe I am returning home a wiser man” (Morini/Tuten) e “I think I’m returning with a fund of good sense” (Lloyd). Já, no caso de Franck, a escolha foi a de não vertê-la de forma etnocêntrica: “Credo di essere tornato con la saggezza in tasca” (“a sabedoria no bolso”). Da mesma forma, em alemão, a escolha foi similar: “Ich glaube, daβ ich mit Lebensklugheit in der Tasche zurückkomme.”221 A única mudança sendo a da palavra Lebensklugheit que, salvo engano, tem relação com a experiência da vida e não estritamente com a sabedoria (Weisheit).

Pode-se ainda apontar muitos acertos ou, ao contrário, escolhas questionáveis em muitas outras missivas, o que seria por demais exaustivo. Vale notar que, apesar das escolhas judiciosas e da importância dessas traduções, a postura dos tradutores resultou, in globo, em textos sutilmente empobrecidos, consequência direta da escolha de palavras mais coloquiais, da racionalização das estruturas, de alongamentos, supressões e acréscimos (clarificação) desnecessários, principalmente, nas versões de Lloyd e Morini e Tuten. O ato tradutório foi basicamente pautado na predominância do sentido, com alguns raros momentos em que a tradução da letra ocorreu. A hegemonia do sentido se vale em grande parte da angústia por parte do tradutor de que o texto seja inteligível, de que tudo tenha sentido, esquecendo o valor do enigma e da sugestão para a potência da linguagem. Essas deformações, mesmo que sejam inevitáveis, poderiam ter sido amenizadas com um maior embasamento teórico. É preciso também lembrar da atuação das editoras, cujas políticas variam muito, sobre as escolhas finais dos tradutores. De qualquer forma, a análise de traduções é sempre repleta

                                                                                                               220 Op. cit., 1986. p. 20. 221 Op. cit., 1969. p. 106.

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de ensinamentos e descobertas que acabam por trazer um grande benefício a novas empreitadas.

3.2 – Critérios estabelecidos na tradução das cartas.

Obras reunindo a correspondência de Charles Baudelaire ou

seleções em língua francesa foram consultadas para estabelecer os critérios da tradução para o português. Já foi mencionado o texto referencial: Correspondance. Tome I. 1832-1860. Tome II. 1860-1866. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois avec la collaboration de Jean Ziegler. - Paris: Gallimard, 1973. Além destes dois volumes, foram consultadas as Nouvelles lettres. Présentées et annotées par Claude Pichois. Paris: Fayard, 2000. Como vimos no histórico da correspondência do poeta das Flores do mal, essas duas obras formam o texto de partida da tradução. Não obstante, além destas, quatro outras foram usadas para comparar os critérios, com o objetivo de se estabelecer os textos das cartas, a disposição gráfica (título, datas, parágrafos, pontuação) e como as notas foram apresentadas, no intuito de observar mudanças e/ou divergências: Correspondance. Choix et présentation de Claude Pichois et Jérôme Thélot. Paris: Gallimard, 2003. Lettres aux siens. Présentées et annotées par Philippe Auserve. Paris: Grasset, 2010 (1a edição em 1966). Lettres. Présentation, choix et notes de Marcel Raymond. Lausanne: La Guilde du Livre, 1964. Finalmente, Lettres à sa mère. Paris: Calmann-Lévy, 1932. Tanto a seleção de Auserve como a da Calmann-Lévy e a de Marcel Raymond têm por fonte o texto estabelecido por Jacques Crépet, pela editora Conard em seis volumes, Claude Pichois tendo participado de vários volumes e concluído o último tomo, após a morte do primeiro. As divergências se situam estritamente na pontuação, o texto sendo o mesmo nas edições supracitadas.

No que tange às escolhas que deveriam ser feitas para o tom da correspondência, notadamente, a questão de manter ou não o tutear das cartas de Baudelaire e a segunda pessoa do plural (vós/vos), observar as fórmulas de saudação, o vocabulário, ou ainda, analisar os critérios de seleção, de apresentação gráfica, optamos por consultar algumas traduções para o português de correspondências de autores do século XIX. Desse modo, fomos naturalmente levados a pesquisar em diferentes livrarias e sebos virtuais para encontrar obras úteis para tentar construir um padrão, ou tendências, sobretudo, para a linguagem empregada. As obras analisadas ou consultadas foram as seguintes:

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Hugo, Victor. Obras completas. Volume XXXVI. Correspondência (Tomo I, 1815-1882). / Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. – São Paulo: Editôra das Américas, 1959. Rimbaud, Jean Arthur. A correspondência de Rimbaud: cartas da África: correspondência com Verlaine: agonia em Marselha. / tradução de Alexandre Ribondi. – 2ª ed. – Porto Alegre: L&PM, 1991. A primeira edição é de 1983. Flaubert, Gustave. Cartas exemplares. Organização, prefácio e notas de Duda Machado. – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993. Santos, Newton Paulo Teixeira dos. A carta e as cartas de Mário de Andrade. – Rio de Janeiro: Diadorim Editora Ltda., 1994. Queiroz, Eça; Martins, J. P. Oliveira. Correspondência. / texto introdutório de Paulo Franchetti, fixação do texto, notas e comentários de Beatriz Berrini. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. Correspondência de Abelardo e Heloísa. / Texto apresentado por Paul Zumthor; Tradução de Lúcia Santana Martins. – 2a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2000. Tchekhóv, Anton P. Cartas a Suvórin 1886-1891. / introdução, tradução e notas de Aurora Fornoni Bernardini, Homero Freitas de Andrade. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. Dostoiévski , Fiodor. Dostoiévski: correspondências 1838-1880. / tradução de Robertson Frizero. – Porto Alegre: 8Inverso, 2009. Goethe; Schiller. Correspondência. / organização e tradução de Claudia Cavalcanti. – São Paulo: Hedra, 2010.

Traduzir a correspondência de um autor do século XIX apresenta várias dificuldades, além das já enfrentadas habitualmente em qualquer ato tradutório. Primeiro, há uma noção de tempo, em relação à língua, que acarreta desafios de vocabulário, de tom e de estruturas sintáticas próprias à época. Segundo, deparamo-nos com uma linguagem singular empregada pelo autor. Assim, é preciso ressaltar, nesses dois pontos, níveis de dificuldade distintos, inclusive, em relação à passagem de um idioma para outro. É por essa razão que elegemos a linguagem mallarmeana como exemplar, porque exige que todo leitor reaprenda a ler em sua própria língua. Não se trata somente de uma única passagem, de um texto de partida para um texto de chegada, mas de passagens intra e interlinguais, relembrando aqui dos conceitos de Jakobson. Estes modos de traduzir são acionados sem cessar no ato tradutório, ao menos, no caso dessa correspondência oitocentista.

A primeira decisão foi a de resgatar o tom da época, não somente no emprego dos tempos verbais, mas também na escolha de determinadas palavras rebuscadas ou até mesmo muito pouco usuais no português atual. Não foi a pretenção desse trabalho modernizar o texto,

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já que o francês da época ainda é relativamente acessível para os leitores atuais, apesar das particularidades que devem ser levadas em conta. Por outro lado, ao leitor não foi proposto uma acessibilidade rudimentar e preconceituosa, no sentido em que este fosse minimizado em suas competências. Em outras palavras, o leitor foi considerado capaz de ir em direção ao Outro, para acolher o longínquo. A intenção, no ato tradutório, foi a de fazer com que o valor do estranhamento fosse invertido, de uma sensação negativa de incompreensão para algo positivo: um desafio intelectual possível, fonte de deleite, contribuindo à expansão de suas fronteiras culturais. Não se trata da utopia do progresso pela ciência ou pela cultura. Não obstante, fomos inclinados a fazer com que o leitor terminasse seu percurso epistolar minimamente engrandecido em seu conhecimento sobre Baudelaire e sua escrita, sem pretenções maiores que o valor da honestidade intelectual e de contribuir com novos conhecimentos: fazer de seu intelecto, não um orgão passivo, mas um sujeito capaz de imaginação, criatividade e, sobretudo, hospitalidade para tudo que é alheio a seu mundo que desejaria apaziguador. Em suma, transmitir-lhe uma tradução ética, no sentido em que Berman a entendeu, que fuja da banalidade – onipresente em nossos quotidianos – frequentemente reproduzida nas obras vertidas sob a hegemonia do sentido e de uma visão etnocêntrica do ato tradutório: que sua leitura se depare, ao menos alguns instantes, com um outro Baudelaire, inclusive pelo viés de sua originalidade.

Para manter esse tom oitocentista e, acima de tudo, a singularidade de um escrita, foi necessário contrabalançar o vocabulário, recriando um tom geral próximo do da época, evitando, quando a passagem de um idioma para o outro o possibilitava, empobrecer o texto. Essa necessidade de reequilibrar o tom surgiu pelo fato de abandonar o emprego da segunda pessoa do singular. De fato, a preocupação foi que o pronome pessoal “tu” formasse uma linguagem por demais regionalista, mais representativa do sul do país, ao invés do português em vigor no plano nacional: a língua padrão. Nesse sentido, as correspondências consultadas foram valiosas, já que demonstraram quais são as tendências dos tradutores quanto ao tratamento e à linguagem.

Na correspondência de Victor Hugo, que abrange o periódo de 1815 a 1882 (tomo I, 1817-1851), publicada em 1959 no volume XXXVI das Obras completas, com tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros, a escolha foi a de empregar a terceira pessoa do singular (você) quando do emprego da segunda pessoa do plural em

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francês (vous), o tratamento formal sendo destacado inclusive por “Senhor” ou “Madame”. Para o tratamento informal, reservado geralmente à família e amigos íntimos, o tradutor manteve a segunda pessoa do singular em português. Vejamos dois exemplos :

Madame, Sua infelicidade é uma calamidade pública. A perda que acaba de feri-la fere-nos a todos. Permita-me dizer que amanhã, nos funerais dêsse homem ilustre, no meio do povo que chorará sua morte, haverá um coração profundamente aflito. Será o meu, madame. […] Tenho a honra de ser, madame, com profundo respeito, seu muito humilde servidor.222

Bom dia, minha boneca, bom dia, meu pequeno anjo. Prometi escrever-te. Estás vendo como sou de palavra. Vi o mar, vi belas igrejas, e lindos campos. O mar é grande, as igrejas são belas, e os campos são lindos, mas os campos são menos lindos que tu, as igrejas são menos belas que tua mamãe, e o mar é menor que meu amor por todos vós. […] Até logo, minha Didine. Guarda sempre esta carta. Quando fores grande, eu serei velho; ma mostrarás, e havemos de nos querer muito; quando fores velha, eu não existirei mais, e tu a mostrarás a teus filhos, que te hão de amar como eu te amo. – Até logo. Teu papaizinho.223

Observa-se o emprego do “vós”, no lugar do “vocês”, o que

atribui ao texto um tom mais formal, apesar da segunda pessoa do singular, e que, por outro lado, parece aproximá-lo de seu tempo. Apesar do tom rebuscado da epístola, percebe-se também as relações de afeto com a filha (Léopoldine), que é chamada pelo apelido “Didine”. Barros emprega o diminutivo “papaizinho” para recriar esse sentimento de carinho, escolha que pode nos auxiliar em casos semelhantes, nas

                                                                                                               222 Carta a Madame Benjamin Constant enviada em 3 de novembro de 1830. Hugo, Victor.

Obras completas. Volume XXXVI. Correspondência (Tomo I, 1815-1882). / Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. – São Paulo: Editôra das Américas, 1959. p. 95-96.

223 Idem. Ibid., p. 267. Carta a Léopoldine enviada de Tampes em 19 de agosto de 1834.

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relações entre os membros da família Baudelaire/Aupick. No mais, o que foi constatado nos comentários acima se verifica nos dois trechos citados: emprego da segunda ou da terceira pessoa do singular dependendo da intimidade com o destinatário.

Na correspondência de Rimbaud, publicada em 1991, a linguagem é outra.

Caro Senhor ! E eis que o senhor é novamente professor. Temos obrigações com a sociedade, o senhor me disse; o senhor faz parte do corpo docente; […] No entanto, estou me tornando o maior dos crápulas. Por quê? Quero ser poeta e trabalho para ser Vidente: Trata-se de chegar ao infinito pela desorganização de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, nascer poeta, e eu me reconheci poeta. Não é culpa minha, absolutamente. É errado dizer: Eu penso: deveríamos dizer pensam-me. – Perdão pelo jogo de palavras. Eu é um outro. […]224

Meu amigo, Não sei se você estará em Londres quando receber esta. […] Quer que eu o abrace moribundo?225

Mon ami, Je ne sais si tu seras à Londres quand ceci t’arrivera. […] Veux-tu que je t’embrasse en crevant?226

Nesta tradução, obra de Alexandre Ribondi, cuja primeira edição

é de 1983, pode-se perceber sem dificuldade a diferença de linguagem com a correspondência de Victor Hugo, da década de 50. No primeiro                                                                                                                224 Carta a Georges Izambard, de 13 de maio de 1871, que antecede a famosa Carta do vidente

endereçada a Paul Demeny, enviada dois dias depois. In: Rimbaud, Arthur. A correspondência de Rimbaud: cartas da África: correspondência com Verlaine: agonia em Marselha. / tradução de Alexandre Ribondi. – 2ª ed. – Porto Alegre: L&PM, 1991. p. 33-34.

225 Carta de Verlaine a Rimbaud (3 de julho de 1873). Idem. Ibid., p. 44-45. 226 Rimbaud, Arthur. Œuvres complètes. / Édition établie, présentée et annotée par Antoine

Adam. – Paris: Gallimard, 1972. p. 270-271.

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trecho, Ribondi emprega a palavra “senhor” para marcar a tratamento formal entre Rimbaud e Izambard, substituindo o “vous”, abstendo-se da segunda pessoa do plural do português, assim como nas cartas de Victor Hugo. A diferença, ressaltada na citação em francês logo acima, está quando do emprego do “tu”, no tratamento informal, substituído pelo “você” em língua portuguesa. Outro apontamento pode ser feito com o verbo “embrasser”, vertido por “abraçar”, escolha judiciosa, tendo em vista sua duplicidade em francês. Bastaria uma nota para explicá-la ao leitor.

Na carta de Flaubert para Baudelaire, enviada em 13 de julho de 1857, o autor de Madame Bovary tece comentários a respeito da leitura que fizera do volume As flores do mal, com o qual foi presenteado pelo poeta.

Meu caro amigo, Eu devorei seu livro, do princípio ao fim, como uma cozinheira faz com um folhetim, e agora, oito dias depois, eu o releio, verso a verso, palavra a palavra e, francamente, agrada-me e encanta-me. [...] Em resumo, o que me agrada antes de tudo em seu livro é que a Arte predomina. E também você canta a carne sem amá-la, de um modo triste e distanciado que me é simpático. Você é resistente como o mármore e penetrante como a névoa da Inglaterra. Mais uma vez, mil agradecimentos pelo presente; aperto suas duas mãos. Seu.227

Mon cher ami, J’ai d’abord dévoré votre volume d’un bout à l’autre, comme une cuisinière fait d’un feuilleton, et maintenant, depuis huit jours, je le relis, vers à vers, mots à mots, et, franchement, cela me plaît et m’enchante. [...] En résumé, ce qui me plaît avant tout dans votre livre, c’est que l’Art y prédomine. Et puis vous chantez la chair sans l’aimer, d’une façon triste et

                                                                                                               227 Flaubert, Gustave. Cartas exemplares. Organização, prefácio e notas de Duda Machado. –

Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993. p. 176-177.

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détachée qui m’est sympathique. Vous êtes resistant comme le marbre et pénétrant comme le brouillard d’Angleterre. Encore une fois, mille remerciements du cadeau; je vous serre la main très fort. À vous.228

Esta tradução da década de 90 revela-se primordial para entender

a ausência da segunda pessoa do plural em português. Neste caso, deparamo-nos com um tratamento intermediário no TP, ou seja, entre amigos que ainda empregam a segunda pessoa do plural (vous). Em francês, “mon cher ami” atenua a formalidade, trazendo un grau de intimidade ao tom da carta. Este trecho possibilita observar um caso diferente de tratamento, que pode guiar qualquer tradutor em suas escolhas. Duda Machado preferiu usar o pronome “você”.

Há, portanto, que se preocupar com a confusão possível entre os tratamentos, formais e informais, marcados pela segunda pessoa do plural ou do singular, já que tanto na carta de Verlaine para Rimbaud, como na de Flaubert para Baudelaire, os tradutores empregaram o pronome “você” para “tu” e “vous”. Devemos assim marcar a diferença de alguma forma.

Nas missivas de Tchekhóv 229, publicadas em 2002, percebemos que Aurora F. Bernardini e Homero F. de Andrade escolheram o tratamento cerimonioso “senhor”, nas primeiras cartas, para depois empregarem o pronome “você”, provavelmente por causa de uma intimidade maior que foi desabrochando entre o contista russo e o editor Suvórin.

A leitura da correspondência de Dostoiévski, publicada em 2009, é de grande valia.

Meu querido e bom pai, O senhor irá pensar que seu filho exige demais ao escrever-lhe para pedir sua ajuda de custo? […] No momento, imploro ao senhor, querido papai, que consideres (sic) meu pedido […].

                                                                                                               228 Flaubert, Gustave. Œuvres complètes. Correspondance. Tome 13. Paris: Club de l’honnête

homme,1974. Consultadas em 12 de fevereiro de 2011, no site: www.gallica.bnf.fr/ 229 Cf. Tchekhóv, Anton P. Cartas a Suvórin 1886-1891. / introdução, tradução e notas de

Aurora Fornoni Bernardini, Homero Freitas de Andrade. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

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Se o senhor apoia seu filho em sua amarga necessidade, mande o dinheiro até dia primeiro de junho. Não ouso insistir no meu apelo: não estou pedindo muito, mas minha gratidão será sem limites.230

Tinha a intenção de responder à sua gentil carta há tempos, meu caro Apollon Nikolaievitch. Ela chegou a mim como um sopro do passado. […] Quando converso com você, meu inequescível amigo, penso sempre em nosso passado. De fato, eu era sempre feliz em sua companhia – como poderia esquecê-lo? […] Até breve, meu querido amigo. Perdoe-me pela incoerência desta carta. Nunca se escreve apropriadamente em uma carta. Por conta disso é que odeio Madame de Sévigné. Ela escreveu cartas maravilhosas. Quem sabe? Talvez eu possa estreitá-lo em meus braços novamente. Permita-nos Deus! E pelo amor de Deus, não mostre esta carta para ninguém (absolutamente ninguém!) Um abraço. Seu, Dostoiévski.231

Vários elementos merecem destaque nesses dois trechos.

Primeiro, a diferença de tratamento de Dostoiévski para com o pai e seu amigo Apollon. Apesar de empregar a terceira pessoa do singular, o tradutor preferiu usar a palavra “senhor”, para marcar o respeito e diferenciar o tratamento com aquele de relações menos cerimoniosas, com Apollon, por exemplo, amigo de longa data, usando assim o pronome “você”, da mesma forma que o faz com o irmão Mikhail. Há, no primeiro trecho, um erro de conjugação na frase: “imploro ao senhor, querido papai, que consideres […].” Frizero faz, ao longo das epístolas, uso da terceira pessoa do singular, mas deixou escapar uma segunda do singular. Trata-se de um erro de impressão, digitação ou, até mesmo, um traço que denuncia uma hesitação perante qual tratamento escolher. No mais, podemos ainda notar o lugar do pronome em relação ao verbo, que

                                                                                                               230 Carta a seu pai. Petersburgo, 10 de maio de 1838. In: Dostoiévski , Fiodor. Dostoiévski:

correspondências 1838-1880. / tradução de Robertson Frizero. – Porto Alegre: 8Inverso, 2009. p. 11-12.

231 Idem. Ibid., p. 89-95. Epístola XXVIII para Apollon Nokolaievitch enviada em 18 de janeiro de 1856.

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segue a gramática do português padrão, em outras palavras, a ênclise nas frases: “Perdoe-me pela incoerência desta carta” e “Permita-nos Deus! ” Não é o caso em todas as traduções, inclusive, de textos literários, nos quais o pronome pode ser usado seguindo a estrutura da linguagem oral. Finalmente, a expressão “Um abraço” pode servir de indicativo no momento em que será preciso traduzir o verbo “embrasser”. Devemos ainda comentar a escolha do tradutor de não verter as cartas na íntegra. Trata-se da mesma decisão de Lloyd (e sua tradução de Anna Morpurgo para o italiano) e de Claudia Cavalcanti para as missivas entre Goethe e Schiller.

Relativamente à correspondência dos dois autores alemães232, publicada em 2010 pela editora Hedra, dois pontos devem ser destacados. Primeiro, esta era inédita no Brasil até então, o que confirma os comentários já realizados sobre a tradução do gênero epistolar no Brasil. Segundo, o tratamento escolhido pela tradutora confirma o emprego de “senhor”, quando há ainda um grau de formalidade entre os correspondentes.

A única exceção, dentre as correspondências analisadas, foi a de Abelardo e Heloísa233 (1a ed. 1989), na qual a tradutora emprega a segunda pessoa do plural (vós) para marcar a formalidade das relações nas missivas. Porém, tratando-se de epístolas escritas no século XII, parece bastante lógico que sua linguagem seja próxima de um português muito mais rebuscado.

Assim, após pesquisar essas correspondências, a decisão tomada acerca do tratamento foi a de empregar o pronome “você” quando das relações informais, caso de Baudelaire, que tuteia os membros de sua família, e palavras respeitosas como “senhor”, por exemplo, para delimitar as diferenças de tons, conforme o destinatário. No mais, a linguagem seguirá os exemplos da correspondência de Dostoiévski, Flaubert ou ainda Rimbaud, cuja leitura possibilitou a apreensão das práticas e escolhas nas traduções dos últimos anos. Em relação ao emprego do pronome, tanto no que tange à sua colocação na frase, quanto à sua função sintática, observar-se-á a gramática padrão, como vimos no uso da ênclise, por exemplo.

                                                                                                               232 Goethe; Schiller. Correspondência. / organização e tradução de Claudia Cavalcanti. – São

Paulo: Hedra, 2010. 233 Correspondência de Abelardo e Heloísa. / Texto apresentado por Paul Zumthor; Tradução

de Lúcia Santana Martins. – 2a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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Comentários foram tecidos anteriormente a respeito do empobrecimento qualitativo, que foi, aliás, constatado nas traduções da correspondência de Baudelaire. Não se deve tomar o sentido contrário, o do enobrecimento. De fato, se orgulho deve haver, por parte do tradutor, este não deve senti-lo ao enobrecer o texto, tentação à qual muitos não resistem. A voz do tradutor é inevitável, já que é a sua mão que toma a pena – em todos os sentidos – para verter uma obra, é a sua mente que rumina a massa de palavras de um texto fonte, cuja potência lhe proporciona desafios por vezes insolúveis. Para não naufragar nas rochas encantadoras do Ego, sob as felicitações pela beleza e fluência do resultado – falso sucesso – o tradutor deve alcançar o Texto vertendo sua letra, usando sua sensibilidade, experiência e criatividade (recriação). Eis o seu farol e sua verdadeira satisfação: sucesso que se concretiza de forma discreta, mas que faz do Texto que produziu, a prova mais gritante da sumidade de seu ofício.

Em relação aos tempos verbais, poucos comentários podem ser feitos, a não ser o de respeitar as diferenças entre os idiomas. A única observação que merece destaque é acerca do pretérito mais-que-perfeito, empregado por Baudelaire desde sua infância: este será mantido em português sob a forma simples (e não composta). Essa escolha procura resgatar uma linguagem mais rebuscada que emana da correspondência no seu conjunto, compensando a perda do “passé simple”. De fato, em francês, o “passé composé” tomou o lugar do “passé simple” (mesmo não sendo equivalente) fazendo deste um tempo frequentemente reservado à linguagem literária. A única opção em português é o pretérito perfeito que não possui um tom rebuscado em si. Por mais que seja um tempo de conjugação pouco usual atualmente em língua portuguesa, o pretérito mais-que-perfeito ainda é empregado no âmbito literário, principalmente nesse período. Como essa tradução não tem por objetivo produzir um texto facilitado, não há motivo para alterar esse tempo verbal. De qualquer forma, o leitor que abordará esse tipo de escrita deve a priori estar mais acostumado a textos literários, caso do gênero epistolar, por mais que contenha elementos prosaicos. Para exemplificar a questão, vale debruçar-se sobre a solução dada para a frase encontrada na primeira epístola (9 de janeiro de 1832): “Comme tu m’avais dit que tu voulais venir nous voir avant notre départ... ”, no TF, que traduzimos “Como dissera-me que queria vir ver-nos antes de nossa partida...”.

Outra questão importante se situa nas singularidades sintáticas das cartas. Deparamo-nos com estrututras que poderíamos ter facilmente

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modificado, adaptando-as, para não dizer deformando-as, para um português mais usual. Certamente, teríamos conseguido com esse gesto, de certo modo covarde quanto à linguagem, não atrair a atenção sobre o ato tradutório. Todavia, não foi o que defendi já nas reflexões sobre tradução e escrita literária, no segundo capítulo dessa tese. É óbvio que algumas escolhas podem ser debatidas, posteriormente alteradas e até mesmo condenadas, após a reflexão de várias mentes, à maneira de um laboratório de tradução dos irmãos Campos. No entanto, o gesto tradutório permanece o mesmo, seguindo as reflexões de Haroldo de Campos e de Antoine Berman, juntamente com as preocupações acerca da singularidade de qualquer linguagem, que clama por ser resgatada ou recriada de forma não etnocêntrica.

A pontuação, principalmente, no caso do ponto e vírgula, que Baudelaire usa muito nas primeiras cartas e que é mais comum na época, exigiu uma cuidadosa reflexão e análise. É nesse momento que um forte debate pode nascer sobre a decisão de se alterar ou não a pontuação, para não dizer racionalizá-la. Parece impossível de se evitar certo grau de etnocentrismo, quando as regras mais básicas de pontuação não correspondem entre os dois idiomas. Porém, sabe-se que os autores tomam liberdades acerca de seu uso, que mudou no decorrer do tempo e que permitiria alguma flexibilidade no momento da tradução. Outra questão é a necessidade, para não dizer angústia, que o tradutor prova ao se sentir impelido a “corrigir” possíveis equívocos de pontuação. Poder-se-ia discutir algumas escolhas inábeis do jovem Baudelaire, mas por que simplesmente não manter o máximo possível esses erros no intuito de revelar verdadeiramente a escrita do poeta? Da mesma forma, como diferenciar o erro do uso particular do autor? Conforme aponta Roberto Mansberger, tradutor das Cartas a la madre, em sua nota sobre a tradução, a pontuação de Baudelaire, “además de ser la propia del francés del siglo XIX, refleja ciertas preferencias, sin duda muy en consonancia con el oído musical del autor [...]”234. Portanto, eis uma questão sensível na tradução dessas missivas. A postura foi novamente a de manter as peculiariedades baudelairianas e oitocentistas, como pode-se observar com o emprego do travessão e do ponto e vírgula. Não há motivo, no que concerne esses dois elementos, para eliminá-los ou modificá-los, pois representam não somente características de um período da escrita de Baudelaire, particularmente o

                                                                                                               234 Baudelaire, Charles. Cartas a la madre (1833-1866). / Tradução de Roberto Mansberger. –

Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1993. p. 23.

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da infância, mas igualmente traços de um tempo. A possibilidade de manter o ponto e vírgula foi confirmada pela leitura do romance O Ateneu de Raul Pompéia235, consultado a princípio para estudar o vocabulário referente à educação e a visão e experiência de um estudante de colégio interno. Ainda que publicado a partir de 1888, em capítulos esparsos, no jornal Gazeta de Notícias no Brasil, pode-se observar o emprego constante do ponto e vírgula, da mesma maneira que Baudelaire, o que legitimiza essa escolha para o português. As modificações foram realizadas sempre que as regras de pontuação do português o exigiam de forma impreterível, principalmente, no que tange à vírgula. Esse compromisso entre uma pontuação que chamamos de geral (formada de distinções absolutas entre os idiomas) e outra que pode ser nomeada particular (própria ao autor e à época), permite retratar uma escrita baudelairiana e, ao mesmo tempo, não prejudicar a leitura em português.

A disposição gráfica seguiu o exemplo da Correspondance organizada por Pichois (1973), o texto fonte escolhido para essa tradução. Não havia nenhum motivo para alterar a disposição dos parágrafos das cartas na tradução, já que os autógrafos de Baudelaire são de difícil acesso e que não há como verificar a exatidão da transcrição. Pelo mesmo motivo, não foi possível averiguar a exatidão das datas que foram propostas por Pichois, cuja ausência é decorrente da falta do envelope com suas valiosas marcas postais e de sua não indicação no cabeçalho. Não era viável, por uma questão de tempo, empreender a tarefa exaustiva de tentar recolocar cronologicamente as missivas nesse grande mosaico formado por um conjunto de 1500 documentos. Estas datas prováveis, entre colchetes, e propostas após muita pesquisa de seu conteúdo em relação à correpondência num todo, estão acompanhadas de um ou dois pontos de interrogação para que o leitor possa perceber que não se trata de datas exatas. As que se encontram entre colchetes, sem ponto de interrogação, são as que não foram indicadas no cabeçalho da epístola, mas nos carimbos postais, ou aquelas que foram modificadas por causa de um equívoco de Baudelaire (com o cotejo do carimbo postal). Algumas vezes, o lugar de origem é que se encontra entre colchetes pelos mesmos motivos indicados anteriormente. Em todos esses casos, a mesma lógica de apontamento foi usada, como pode-se constatar nos exemplos seguintes : “1° de fevereiro de 1832. Lyon.” (data exata), “[Lyon, 3 de março de 1832]” (data no envelope) e                                                                                                                235 Pompéia, Raul. O Ateneu / Crônica de saudades. – São Paulo: Abril Cultural, 1981.

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“[Lyon.] Quinta-feira [6 de fevereiro de 1834 (?)]” (data proposta por Pichois). A versão de Cinzia Bigliosi Franck optou pela mesma apresentação, tanto do corpo do texto, como para o cabeçalho: “1o febbraio 1832. Lione.” , “[Lione, 3 marzo 1832.]” e “[Lione.] Giovedì. [6 febbraio 1834 ?].” Todas as cartas enviadas por Baudelaire foram numeradas, sendo os nomes de seus destinatários explicitados no cabeçalho: o que não é o caso da edição organizada por Auserve. Às missivas escritas por Alphonse Baudelaire, o general Aupick e a mãe de Baudelaire, foram atribuídas letras do alfabeto, para distingui-las das do poeta.

No que concerne as estruturas peculiares na escrita de Baudelaire, ou no francês da época, presentes ao longo das epístolas, procuramos resgatar a singularidade do agenciamento quando o resultado não poderia ser considerado absurdo. Um exemplo simbólico dessa postura se encontra na frase, “toujours, nous partirons plus tôt que plus tard”, presente na primeira carta. Frente a essa situação e tendo em vista as reflexões de Berman, tentamos manter o estranhamento dessas formulações. Em português, a frase foi traduzida por: “de qualquer forma, partiremos mais cedo do que mais tarde”. A dúvida que irrompeu nesse ponto foi o emprego do vocábulo “mais” ou invés de “antes”. A tradução “antes cedo do que tarde” enobreceria em demasia a frase, deformação que preferimos evitar. A palavra “toujours” não pôde ser mantida literalmente no seu sentido primeiro. Procuramos transcrever aqui um sentido menos usual e condizente com o contexto.

A nível de vocabulário, quando deparamo-nos com palavras polissêmicas, caso do verbo “embrasser” em francês, a postura foi a de evitar escolher um sentido, mas tentar informar o leitor com uma nota a respeito de sua especificidade lexical. No caso da frase “je ferme ma lettre”, foi possível empregar o verbo “fechar” em português. O termo em francês remete à imagem de dobrar as páginas de uma carta para fechá-la, que é associado ao sentido de encerrar a missiva. Eis um caso simbólico de como foi abordado o vocabulário, principalmente as palavras que representavam desafios: não nos contentamos com uma informação semântica, mas também consideramos a expressão e a escolha das palavras, por parte de Baudelaire. Como constatamos nas traduções analisadas, esta postura tem por objetivo evitar o empobrecimento qualitativo da correspondência, e para isso, é preciso não somente cuidar com o agenciamento das palavras (estrutura), mas também com sua escolha mais consciente e menos pautada na supremacia do sentido.

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As notas de rodapé presentes na tradução têm por objetivo contextualizar a leitura, da mesma forma que o fez Pichois. Estas possuem quatro funções:

- Lexical: definições de termos menos usuais; - Histórico: esclarece acontecimentos históricos mencionados nas cartas; - Biográfico: informações acerca das pessoas nomeadas na correspondência; - Tradução: explicação das escolhas quando trechos e palavras traduzidos apresentam um desafio peculiar para sua tradução. As notas relativas ao contexto histórico e as que têm relação com

as pessoas nomeadas na correspondência foram todas realizadas por Claude Pichois, assim como algumas acerca do léxico, principalmente no caso de frases em latim no TP. O objetivo da nota é justamente o de criar uma ponte entre o leitor e o Outro. Não se trata de uma prova do fracasso do tradutor, como afirma Umberto Eco.236 Ao contrário, é preciso ver na nota, uma passagem que o leitor tomará (ou não) para uma outra cultura ou em direção de uma singularidade da escrita e de seu autor. A relevância das notas, em relação à leitura da correspondência, depende do leitor, que poderá consultá-las ou não. Decidimos evitar as notas referentes aos erros ortográficos de Baudelaire, assim como as indicações de modificações realizadas por ele quando riscou palavras ou passagens. Estas mudanças são muito numerosas e sobrecarregariam as notas, apesar de seu interesse para a Crítica Genética.

Finalmente, tendo em vista a análise das traduções em inglês, italiano, espanhol e alemão, os nomes das pessoas citadas nas epístolas não foram traduzidos para equivalentes em português, prática que se pode observar na correspondência de Victor Hugo, por exemplo. No que tange às cidades e lugares (rios, ruas, avenidas, praças, colégios), a escolha foi a de manter os nomes em francês quando não eram comuns em português, caso de Villeneuve la guerre, por exemplo. A cidade de Marseille é mais conhecida por “Marselha”, termo próximo do francês e que facilita a leitura, sem que possamos considerar essa escolha um aportuguesamento radical, que resultaria em uma postura etnocêntrica. O caso de Paris é simples, já que a grafia do termo é idêntica, e no caso dos “parisienses”, muito próxima (parisiens). Ao contrário, a cidade de

                                                                                                               236 Cf. Eco, Umberto. Quase a mesma coisa. / Tradução de Eliana Aguiar; revisão técnica de

Raffaella Quental. – Rio de Janeiro: Record, 2007.

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Lyon provocou algumas interrogações, pois existem as palavras “Lião” e “lionês”. Porém, estas criam uma sensação de estrangeirismo no próprio idioma. Trata-se da mesma situação que a cidade de Bordeaux, termo conhecido por causa de seus famosos vinhos, e o qual parece curioso verter para Bordéus, como se vê na tradução da obra Uma gota de veneno, de François Mauriac, por Carlos Drummond de Andrade. Assim, preferimos manter os termos “Lyon” e “lyonenses”, que seguem a lógica das palavras usuais em língua portuguesa, caso de Lyon, grafia que se pode encontrar em mapas, por exemplo. Para os rios, a lógica foi a mesma, ou seja, a de optar pelo vocábulo em português quando este fosse efetivamente comum, caso contrário, optamos pelo francês. No que concerne os endereços, tendo como modelo as traduções supracitadas (em inglês, italiano, espanhol ou alemão), palavras como “rue” ou “boulevard” não foram traduzidas, mantendo sua relação com o endereço completo. Da mesma forma, os nomes dos estabelecimentos educacionais não foram traduzidos para o português. Finalmente, relativamente às palavras em itálico, decidimos manter esse destaque em todos os casos e evitamos o emprego do itálico para as palavras mantidas em francês na tradução. O objetivo foi simples: evitar a confusão entre estas e as palavras sublinhadas por Baudelaire (em itálico na transcrição).

Estes critérios foram adotados para todas as cartas traduzidas, no intuito de homogeneizar os textos para situações cuja ocorrência se repete em seu conjunto. Resta-nos agora comentar e analisar as escolhas específicas e os diferentes desafios aos quais qualquer tradução se embate.

3.3 – Comentários, desafios e soluções no ato tradutório das epístolas baudelairanas.

Os comentários que seguem, a respeito dos desafios e soluções

encontradas, foram realizados à medida que ocorriam durante a tradução da correspondência e situados nas missivas para que se pudesse reencontrá-las com facilidade e na íntegra na seleção traduzida.

A carta datada de 1° de fevereiro de 1832, escrita de Lyon para o meio-irmão Alphonse, conta a história da viagem feita de carruagem por Charles e sua mãe de Paris até aquela cidade. As principais dificuldades se encontram no numeroso vocabulário de uma lista constituída de objetos levados para a referida viagem. Não podemos perder de vista que muitos desses objetos comuns ao século XIX não são mais usados

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atualmente na França e são até mesmo desconhecidos por muitas pessoas. É o caso dos regalos, chancelières e da imperial, por exemplo, daí a necessidade de uma nota. No mais, há aqui choque cultural, já que não se pode afirmar que o regalo seja muito comum no Brasil, tendo em vista os climas mais temperados. A expressão “à force” é sinônimo neste caso de beaucoup ou à foison. Repetida duas vezes nessa listagem e que aparece isolada entre vírgulas, foi traduzida pela expressão “a mancheias”, que representa a mesma ideia. Quanto às estruturas singulares, percebe-se um posicionamento dos advérbios ou pronomes pessoais não conformes à língua francesa padrão atual. Quando foi possível, tentou-se manter essas particularidades. É o caso da frase: “e pareceu-me que sempre viajar seria levar uma vida que me agradaria muito”.237 A palavra thème foi traduzida por “tema”, já que tem o mesmo sentido que em francês.238 As fórmulas de despedida encontradas no final das epístolas podem causar problemas nas suas particularidas. É o caso da expressão “bien des choses” na frase: “Maman et papa te disent bien des choses.” A escolha aqui foi para um equivalente em português, mesmo que traduzir não seja buscar equivalentes, conforme aponta Berman. Neste caso específico, “mandar lembranças” parece mais adequado.

Na carta de 1° de abril de 1832, para a expressão “griffoner du latin”, foi preciso pensar e verificar os diferentes sentidos do verbo “rabiscar” em português. No seu emprego enquanto verbo transitivo direto, o sentido de “dar forma escrita a algo” parece corresponder a um dos sentidos possíveis, além do próprio ato de “escrever rapidamente”, algo que também pode ser aceito devido à carga negativa do contexto.

Na missiva de 25 de abril do mesmo ano, surge um problema dificilmente solucionável nas palavras cure-oreille e cure-dent en ivoire, que remetem a objetos da época. Trata-se de nosso atual palito de dente. Não obstante, há dois problemas importantes que dificultam o emprego do termo “palito”. Primeiro, na carta, este objeto não serve apenas para a higiene bucal, mas também para os ouvidos. Segundo, estes objetos não são feitos de madeira, mas de marfim, o que nos leva a pensar sobre a iconicidade da palavra palito, no sentido da imagem à qual remete. Parece muito difícil não surgir na mente o material com o qual é feito, quase impossível não pensar na madeira. Sendo assim, procurou-se um

                                                                                                               237 Todos os grifos encontrados no texto são de nossa autoria. 238 Conforme o Dicionário Priberam de Língua Portuguesa: Tema (s.m.): “Aquilo que um aluno

deve traduzir da língua que fala para aquela que aprende.”

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equivalente em português, caso do vocábulo “esgaravatador” ou a sua variante “esgravatador”. É certo que o termo causa estranheza embora exista no dicionário de língua portuguesa, mas nenhuma outra alternativa foi encontrada. Sendo assim, a palavra “esgravatador” foi empregada apesar de não constituir uma solução ideal. Ao termo chiffonnage não foi possível encontrar um equivalente, optando-se para a nota de rodapé.

A carta de 6 de agosto apresenta algumas dificuldades dentre as quais a situação do verbo “espérer” na frase, “J’espère beaucoup en grec, pas du tout en géographie ancienne.”, que traduzimos “Espero muito em grego, nem um pouco em geografia antiga.” Esse desafio se situa não no vocábulo em si, mas na afirmação de sua escolha, em sua legitimidade. A solução mais óbvia seria a de traduzi-lo por “ter esperanças”. Não obstante, parece aqui uma escolha que se preocupa em demasia com o sentido, muito pouco com a expressão. Assim, foi mantido apenas o verbo “esperar” por ter o mesmo sentido que em francês e preservar o tom mais rebuscado da carta. Baudelaire encerra essa missiva com o termo cadet, que remete ao vocábulo cadete do português. Eis mais um exemplo de um termo pouco usual nos dias de hoje, a não ser ligado ao contexto militar. Todavia, o sentido primeiro dessa palavra no dicionário Houaiss é: “filho não primogênito de uma família nobre ou considerada de boa estirpe” e, por extensão de sentido, “filho não primogênito; filho segundo em geral”, o que justifica a escolha. Eis novamente um termo empregado para render um tom mais oitocentista.

A partir da carta seguinte, surgem termos ligados à escolaridade de Charles como, por exemplo, os diferentes cargos, as atividades educativas comuns à época, ou ainda a estrutura educacional. A primeira tentativa foi a de manter uma tradução literal dos termos relativos aos níveis escolares. Por exemplo, quinta para cinquième, sexta para sixième, e assim por diante. Todavia, após um tempo de reflexão, não pareceu adequado mantê-los sob essa forma e foram adaptados às normas brasileiras vigentes. Por outro lado, disciplinas como a retórica puderem ser mantidas devido a sua existência no modelo educacional brasileiro, pautado na época, no francês.239 Os termos em latim como,                                                                                                                239 Cf. Saviani, Dermeval. História das idéias pedagógicas no Brasil. – 2 ed. rev. e ampl. –

Campinas, SP: Autores Associados, 2008. p. 115-181. Após a Proclamação da Independência em 1822, foi apresentado um projeto de organização da educação, o “Tratado Completo de Educação da Mocidade Brasileira”, no dia 4 de junho de 1823. Este tratado é conhecido como Memória de Martim Francisco e é, na realidade, uma

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por exemplo, accessit ou pensum, foram mantidos sem tradução com nota explicativa. Os cargos geralmente não apresentam maiores dificuldades. O proviseur é o equivalente do diretor, o censeur é o censor (ou bedel). O desafio surge na carta de 15 de dezembro na qual aparece o termo pion, que é a forma pela qual os alunos chamam coloquialmente, ou até mesmo de maneira pejorativa, os surveillants. Este cargo próprio ao sistema de ensino francês não tem equivalente no brasileiro e não se trata do “bedel”240. Assim sendo, para evitar manter o termo em francês, a mesma solução que a de Tomaz Tadeu, em seu Manual do dândi, para o termo toilette/toalete, foi empregada. Esta estratégia procura inserer um sentido novo em um termo em português. As palavras “peão” e “pion” compartilham da mesma origem etimológica, do latim pedo, mas a primeira não tem relação alguma com o cargo. A ideia é justamente de atribuir-lhe esse sentido, com a devida nota de rodapé, para facilitar a leitura, evitar o excesso de palavras/expressões estrangeiras no texto e a confusão com o itálico encontrado na organização tipográfica da edição de Pichois. Finalmente, com a escolha dessa palavra, foi recriado o sentido pejorativo e até agressivo com o qual é empregado por Baudelaire, tendo em vista o contexto de insurreição/amotinação da epístola.

No mais, a palavra poudrière, também objeto característico da época, causou grande dificuldade e só pôde ser traduzida por “recipiente”, associando este termo ao pó no contexto da carta.

A carta de 27 de dezembro apresenta outro exemplo de sentido novo atribuído à uma palavra em português. É o caso da palavra isenção/exemption, que se torna um certificado dado a um aluno, no sistema educacional francês da época, para redimir-se de alguma punição ou obter um favor. Foi essa ideia de recriação de um sentido francês em português, confirmada por Tadeu mencionada anteriormente, que foi aplicada em alguns raros casos.

A missiva seguinte apresenta duas situações peculiares. Primeiro, a palavra ménage, que foi mantida em francês por estar presente no dicionário Houaiss. Em seguida, encontrou-se a assinatura “Carlos” no texto de partida. Esse estrangeirismo ou exotismo da assinatura do jovem Charles, à qual não há explicação precisa, perde

                                                                                                               cópia/adaptação dos Écrits sur l’instruction publique de Condorcet publicados em 1791 sob o título: Cinq mémoires sur l’instruction publique.

240 Conforme o dicionário Houaiss, o substantivo masculino “bedel” significa: “chefe de disciplina em escolas; Censor, disciplinador.”

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esse valor em português. Uma nota de rodapé foi acrescentada para explicar que não se trata de forma alguma de uma tradução e informar o leitor das possíveis explicações de Pichois ou Auserve para essa assinatura.

A epístola de 31 de janeiro de 1833 apresenta um desafio a nivel de vocabulário. Trata-se da palavra étrennes, muito comum em francês, empregada na expressão “étrennes en place”. Ao consultar o dicionário Littré, verificou-se a possibilidade de traduzir o vocábulo por um de seus sinônimos, mais precisamente no sentido de um presente oferecido. No entanto, as acepções são variadas como a tradição de se dar um trocado para as crianças na virada do ano, sorte de gratificação. Trata-se ainda da primeira venda do dia de um comerciante, o benefício do primeiro uso de uma vestimenta nova ou de receber o beijo de uma pessoa com barba recém feita. Existe a expressão À bon jour, bonne étrenne, empregada quando algo feliz acontece em um dia bom. No contexto dessa missiva, num primeiro momento, as acepções mais próximas eram a de presente ou gratificação, não no sentido concreto, já que se referem a bons resultados escolares. No entanto, a palavra strena em latim deu origem ao substantivo feminino “estreia” em português, o que faz sentido já que representa o ato de estrear, inaugurar algo, dar início, e nos remete aos vocábulos étrennes (francês) e strenna (italiano): presente ou dádiva no primeiro dia do ano, conforme o Houaiss. Nas Letters from his youth, Morini e Tuten traduziram-na ora por New Year’s present, ora por present, ou ainda Christmas gifts, o que revela o desafio de se traduzir tal palavra tão ligada à cultura francesa. Finalmente, preferimos empregar o termo estreia, que existe em português no mesmo sentido, apesar de pouco usual, acrescentando uma nota lexical.

Na carta de 12 de julho surgiu uma expressão com certo grau de dificuldade: “Je suis à piocher”. O contexto possibilitou compreender seu sentido, mas como traduzi-la? Curiosamente, o verbo “cavar”, conforme o dicionário Houaiss, tem sentido de “esforçar-se ou concorrer para adquirir ou alcançar (algo)”: por exemplo, cavar um emprego ou cavar o próprio infortúnio. Trata-se do mesmo sentido que o verbo “to dig” em inglês. Assim, a expressão foi vertida por “Estou a cavar”. Haveria ainda a possibilidade de se empregar o gerúndio. Não obstante, a frase não está nem no presente, que pode ter sentido de uma ação que está se desenvolvendo (Je pioche, em francês), nem explicitamente na estrutura “être en train de” equivalente ao gerúndio (Je suis en train de piocher, do português: “Estou cavando”). Ao traduzir por “Estou a

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cavar”, preserva-se não somente o valor da expressão, o da formulação usada por Baudelaire, mas igualmente certo tom mais formal na língua portuguesa.

Na missiva seguinte, foi preciso recriar uma dúvida do jovem Charles. A palavra “implastro”, que está entre parênteses, foi escrita dessa forma para tentar reproduzir esta dúvida ortográfica de Baudelaire. De fato, o fonema /ã/ em francês pode ser escrito tanto en/em como an/am, daí a hesitação entre “emplâtre” ou “amplâtre”. Eis aqui uma dificuldade que não pode ser superada, já que esse fonema não existe em português, idioma no qual há forçosamente uma diferença de som entre “em” e “am”. Consequentemente, a dúvida ortográfica não poderia ser exatamente a mesma, mas uma tentativa de recriação de uma hesitação fonética/gráfica. A solução foi a possibilidade da confusão entre as vogais “e” e “i” próprias ao português do Brasil.

Mais adiante, como traduzir a expressão “Ventre Saint-Gris” que é um tipo de jura famosa por seu emprego pelo rei Henri IV? Neste caso uma tradução da letra não era possível. O resultado seria por demais ridículo e incompreensível para o leitor, apesar de concordar com a abordagem dos provérbios pelo Berman (relacionando-a à expressão idiomática). A opção foi a de traduzir por uma imprecação equivalente. No caso da frase, “Dis que de là-bas il me fasse des cornes”, a postura foi contrária. Traduzimos: “Diga que de lá ele me faça chifres”, o que parece compreensível para qualquer leitor, tendo em vista o contexto, principalmente, com uma nota.

A epístola de final de agosto de 1835 apresenta uma dificuldade importante e para a qual não foi encontrado solução a não ser a da nota de fim de página. Baudelaire faz um jogo de palavra com uma canção infantil bastante traducional na França entitulada Colin (ou Colas) mon petit frère. Trocou a palavra “petit” por “grand” resultando na frase: Colin mon grand frère. No que tange à palavra sagesse, em francês, pode ser entendida como sabedoria ou bom comportamento. A escolha foi a de voltar-se para a palavra em português “sabedoria” por esta abarcar também o sentido de prudência e moderação no modo de agir preservando assim sua dubiedade no texto.

A missiva seguinte apresenta um desafio a nível de expressão idiomática. Trata-se, no início do texto, da expressão “gros et gras”: como traduzi-la? A solução foi a de traduzir por “corpulento”, no sentido de uma pessoa encorpada.

A carta de 25 de fevereiro de 1836 possui uma particularidade no que tange à estrutura sintática empregada pelo jovem Baudelaire. Neste

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caso, a forma escapa à língua padrão atual. O pronome “me” jamais poderia se encontrar antes de dois verbos no infinitivo, mas logo antes do último verbo, na referida frase. Assim sendo, no intuito de reproduzir essa peculariedade, o mesmo deslocamento do pronome pessoal antes dos verbos “vir” e “ver” foi mantido. É óbvio que essa escolha não visa um português correto gramaticalmente, tampouco a sua fluência ou facilidade de leitura. Para este caso, é preciso se rememorar que as línguas são dinâmicas e evoluiram no decorrer de suas histórias, inclusive, na sua sintaxe. O objetivo é o de recriar um estilo de escrita, própria à época, um tom, uma forma de expressão peculiar, de acolher o outro no texto de chegada. Trata-se de aplicar aquilo mesmo que foi desenvolvido na parte teórica da tradução. A estranheza causada por esta escolha é sensivelmente a mesma que a produzida sobre o leitor francês ao contato com o texto de partida.

En cas que tu ne puisses pas me venir voir, hôtel des Ministres, rue de l’Université n° 36, tu viendras à Louis-le-Grand.241

No caso que não possa me vir ver, hôtel des Ministres, rue de l’Université, n° 36, virá a Louis-le-Grand.

Na epístola de 22 de março de 1837, uma frase

aparentemente anódina traz certa dificuldade em sua estrutura e vocabulário. Foi preciso substituir o verbo “se porter”, próprio à língua francesa, pelo verbo “sentir-se” em português, assaz aproximativo, mas que preenche sua função graças ao contexto da carta. O emprego repetido do advérbio “bien” foi mantido. No que tange à sintaxe, a expressão “qui se portera à peine bien” pode causar algum estranhamento no leitor na tensão entre “à peine” e o advérbio. A formulação mais clara poderia ser que o padrasto teria muito recentemente se recuperado no momento da viagem para poder realizá-la. Manteve-se o agenciamento de Baudelaire não traduzindo o sentido interpretado.

Quand même le temps serait beau, ce voyage de Versailles serait bien fatigant pour papa qui

                                                                                                               241 Op. cit., 1973. p. 36-37.

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se portera à peine bien.242 Mesmo que o tempo estivesse bom, essa viagem para Versailles seria bem cansativa para o papai que se sentirá apenas bem.

A carta seguinte apresenta uma particularidade que foi

mantida em português. Trata-se da formulação “il faut être à lui” vertida “é preciso ser dele”. Com esta escolha, o sentido é dado pelo próprio contexto da missiva e, simultaneamente, preserva a expressão.

Au surplus tu n’en as peut-être guère le temps; car il faut songer à papa avant tout; et puisque lorsqu’il est en bonne santé, il s’occupe tant de nous amuser, il faut être à lui quand il est malade.243

No mais talvez não tenha muito tempo para isso; pois é preciso pensar no papai antes de tudo; e já que quando está com boa saúde, trata tanto de nos divertir, é preciso ser dele quando está doente.

No que se refere ao vocabulário específico ao mundo escolar, o

termo répétitions tem seu equivalente em português no vocábulo “repetição”, empregado no plural, tendo por sentido uma “lição suplementar dada a um ou vários alunos”, conforme a acepção encontrada no dicionário Houaiss.

Na carta de 2 de novembro, duas questões precisaram ser refletidas com mais atenção. Primeiro, a tradução da expressão idiomática “des pattes de mouche”. A solução foi empregar uma analogia com o termo “garrancho” que é entendido, por derivação ao ramo tortuoso da árvore, como letra mal traçada e pouco legível. Apesar de nessa escolha perder o Outro, evitou-se o demasiado estranhamento caso o idiomatismo fosse traduzido literalmente. É a situação contrária daquele usado em seguida com o verbo clouer entendido no sentido de

                                                                                                               242 Op. cit., 1973. p. 38. 243 Idem. Ibid., p. 39.

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“preso a”, que pôde ser mantido em português, assim como a expressão “vivant à demi”, traduzido “vivendo pela metade”.

Et maintenant me voilà cloué au lit, c’est-à-dire vivant à demi, enviant tous ceux que je vois marcher.244

E agora eis-me pregado na cama, ou seja, vivendo pela metade, invejando todos aqueles que vejo andar.

Para a missiva seguinte, foi preciso pesquisar o campo da

medicina para compreender e verter o termo liniment para o qual foi encontrado em português o vocábulo “linimento”, com mesmo sentido. Trata-se do mesmo caso que na seguinte, para hydropisie aqueuse foi preciso entender do que se tratava e achar seu equivalente em português (“hidropisia aquosa”).

A carta de 7 de novembro debuta com uma expressão idiomática tipicamente francesa com o emprego do substantivo feminino “maravilha”. Quando uma pessoa diz “maravilhas” (“tu m’en diras des merveilles”) a respeito de alguma coisa, trata-se dos elogios que fará. No intuito de aplicar efetivamente as reflexões de Berman, procurou-se manter a expressão francesa. Além disso, o resultado final não é de todo incompreensível para o leitor brasileiro. Portanto, “Je t’ai écrit hier au soir des merveilles” foi traduzido por “Escrevi-lhe ontem à noite maravilhas”.

A de 5 de dezembro traz duas dificuldades ligadas ao mesmo vocábulo. O verbo aimer em francês é ambíguo, pois seu valor pode variar em função do tom ou da atribuição de um advérbio. Este, geralmente, diminui sua força, fazendo com que seu sentido passe de “amar” para “gostar”, “apreciar”. As duas situações são as seguintes:

Amour, je suis deuxième en version.245

Amor, sou segundo em versão.

Remercie bien papa pour la vis[ite] qu’il m’a faite, elle m’a fait un plaisir infini; ses visites

                                                                                                               244 Op. cit., 1973. p. 43-44. 245 Idem. Ibid., p. 48.

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ne sont pas fréquentes; mais plus les choses sont rares et plus elles sont précieuses. Je l’aime bien, ce père;246

Agradeça o papai pela vis[ita] que me fez, agradou-me infinitamente; suas visitas não são frequentes; mas quanto mais as coisas são raras, mais são preciosas. Gosto desse pai;

O substantivo “amour” foi traduzido literalmente, assim como na

carta seguinte, apesar da dúvida relativamente à sua força. Para a frase, “Je l’aime bien, ce père”, Como entender o efeito do advérbio “bien”? Devemos traduzir o verbo “aimer” como “amar” ou “gostar”? Manteve-se ao mesmo tempo a ponderação e a lógica do funcionamento junto ao advérbio exposto antes. Daí a escolha do verbo “gostar”. Há igualmente preocupação em não dilatar o valor do vocábulo com a tradução, forçando o sentido para o verbo “amar”. Essa escolha daria força à argumentação contra a suposta revolta de Charles com o segundo casamento da mãe.

A missiva de 16 de dezembro apresenta mais um exemplo de tradução da forma e não do sentido. A expressão “j’ai besoin de rentrer dans la vie”, empregada por Baudelaire, foi mantida ao invés de encontrar um equivalente em português. A única alteração realizada foi a mundaça do verbo “entrar” para “adentrar”, pois a primeira versão em português (preciso entrar na vida), não causava o mesmo efeito estético que em francês.

Ah! je t’assure que j’ai besoin de te voir, de voir papa un jour entier; j’ai besoin de rentrer dans la vie.247

Ah! asseguro-lhe que preciso vê-la, ver o papai um dia inteiro; preciso adentrar a vida.

A epístola de 17 de julho de 1838, que trata da primeira crítica

sobre artes plásticas por parte de Baudelaire, coloca o tradutor frente a algumas dificuldades. Trata-se da expressão idiomática “parler à tort et à travers” e do termo “croûte” que forma neste caso um jogo de palavra.

                                                                                                               246 Op. cit., 1973. p. 48. 247 Idem. Ibid., p. 48-49.

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No primeiro caso, verteu-se “je parle peut-être à tort et à travers” por “falo talvez a torto e direito”. A tradução sugerida pela dicionário Michaelis pareceu a mais adequada ao sentido em francês. No que se refere à brincadeira com o termo “croûte”, reside neste ponto um jogo entre os sentidos de crosta do pão e de um quadro considerado de pouca qualidade. Como recriar tal jogo de palavra? A solução considerada mais apropriada foi a de traduzir literalmente por “crosta”, vocábulo no qual se imiscui os sentidos do texto de partida, como já foi feito com os termos isenções e peão, com a ajuda da nota de rodapé.

Il est sans doute bien ridicule à moi de parler ainsi des peintres de l’empire qu’on a tant loués; je parle peut-être à tort et à travers; mais je ne rends compte que de mes impressions: peut-être est-ce là le fruit des lectures de la Presse qui porte aux nues Delacroix? Le lendemain, dans un journal, Le Charivari, on a dit qu’après notre dîner nous étions rassasiés de croûtes.248

É sem dúvida bastante ridículo de minha parte falar assim dos quadros do império que foram tão louvados; falo talvez a torto e direito; mas relato apenas as minhas impressões: talvez seja fruto das leituras da Presse que põe nas nuvens Delacroix? No dia seguinte, no jornal, Le Charivari, disseram que após nosso jantar estávamos saciados de crostas.

A carta de 18 de maio de 1839 apresenta um desafio de diferença

sintática entre os dois idiomas. Verter o pronome “en” para o português, em algumas ocasiões, pode se tornar um desafio. Neste caso específico, como traduzi-lo na frase: “C’est fort difficile, mais enfin, je t’assure que je tâcherai de m’en tirer”? A primeira escolha foi a de traduzir o pronome por “disso” tendo em vista a necessidade da preposição “de” pela regência do verbo “sair” neste caso. O resultado não pareceu soar perfeitamente na língua de chegada: “asseguro-lhe que me esforçarei para me sair disso.” Uma pequena mudança parecia se impor por si mesma e foi por isso que a versão desse trecho ficou: “asseguro-lhe que

                                                                                                               248 Op. cit., 1973. p. 57-59.

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me esforçarei para me sair bem.” De forma geral, o pronome oblíquo lui (lhe) com função de objeto indireto é mais usado em francês, daí a necessidade de eliminá-lo quando não é indispensável.

Na missiva seguinte, o primeiro obstáculo se encontrou no domínio do vocabulário com o exame específico ao sistema educacional francês para o final do segundo grau: o baccalauréat. Manter a palavra na língua de partida, em itálico, com nota de rodapé, foi a primeira escolha. No entanto, logo percebi a dificuldade pela qual passaria o leitor, dada a ortografia e a lógica de pronúncia bastante distinta da do português. Sendo assim, o termo foi vertido por “bacharelado”, como sugerido por Paulo Rónai em seu dicionário bilíngue Lexikon, bastando uma nota para esclarecer o sentido peculiar atribuído ao vocábulo. Trata-se da mesma tentativa de recriação que nos casos das palavras “peão” e “isenção”.

Um pouco mais adiante na carta, um trecho me levou a enfrentar duas questões diferentes, uma relativamente à expressão “se mettre au fait de”, outra em relação a um equívoco cometido por Baudelaire e que Pichois preservou na transcrição/revisão. A tradução da expressão exigiu um pouco de pesquisa até chegar ao verbo “inteirar”. No segundo caso, a dúvida estava no fato de manter o erro de concordância em português ou de corrigir o equívoco para facilitar a leitura. Pichois optou por manter ou apontar os erros gramaticais cometidos por Baudelaire. No mesmo sentido, não foi encontrado um verdadeiro motivo para apagar esse rastro de sua escrita. Ao contrário, esses equívocos podem representar elementos de análise para diferentes abordagens como as da Crítica Genética, por exemplo. Eis, logo abaixo, o trecho mencionado:

Un camarade de Louis-le-Grand que j’ai trouvé là à la même table, m’a mis au fait du ton de la maison, et nous nous en sommes amusés; il m’a dit que dans cette maison, l’idée de religion et de légitimisme était si singulièrement unies [sic] qu’il suffisait de haïr le gouvernement pour être réputé catholique;249

Um camarada do Louis-le-Grand que encontrei ali na mesma mesa, inteirou-me sobre o tom da casa, e nos divertimos com isso; disse-me que

                                                                                                               249 Op. cit., 1973. p. 69-70.

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nessa casa, a ideia de religião e de legitimismo era tão singularmente unidas [sic] que bastava odiar o governo para ter reputação de católico;

A epístola de 13 de agosto de 1839 apresenta uma questão de

vocabulário com a presença da palavra bachelier. Todavia, foi assaz lógico traduzi-la na mesma linha de reflexão que baccalauréat por “bacharel”, recriando o sentido do francês. Neste caso, trata-se do estudante detentor do diploma do bacharelado, o exame de conclusão do segundo grau no sistema educacional francês.

A missiva seguinte me levou a pensar novamente a relação entre a estrutura sintática peculiar de um momento da escrita de Baudelaire e sua versão para o português. Em outras palavras, conforme a aplicação efetiva das reflexões de Antoine Berman, não faria sentido deformar o texto de partida para alterar essa estrutura, para reordená-la segundo leis do bom gosto dos manuais de gramática. O propósito é outro, desde o início, e seguiu-se uma vez mais a opção de Pichois, tentando preservar essa singularidade. Eis o trecho:

Un jour que je faisais une visite à M. Pierrot, il me dit qu’il m’avait vu avec plaisir au concours, mais que c’était seulement pour la forme, – attendu que, n’étant pas resté un trimestre entier à Saint-Louis, je mériterais d’être nommé, que la règle universitaire m’empêchait de l’être.250

Um dia que fazia uma visita ao Sr. Pierrot, disse-me que me viu com prazer no concurso, mas que era apenas pela forma, – tendo em vista que, não tendo permanecido um trimestre inteiro no Saint-Louis, mereceria ser nomeado, que a regra universitária impedia-me de sê-lo.

Claude Pichois manteve a sentença conforme o encontrado

no manuscrito, reordenando-a para o leitor apenas em nota. É preciso entender para o excerto em negrito: “já que, mesmo se merecesse ser nomeado, a regra me impediria de sê-lo.” O mesmo caso surge mais adiante na carta com essa formulação peculiar: “Cela me

                                                                                                               250 Op. cit., 1973. p.70-71.

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préoccupe déjà, me tourmente, d’autant plus que je ne me sens de vocation à rien, et que je me sens bien des goûts divers qui prennent alternativement le dessus.” Apliquei a mesma estratégia que Pichois, vertendo a particularidade da forma e colocando uma nota para esclarecê-la para o leitor: “Isto já me preocupa, me atormenta, tanto mais que não me sinto vocação para nada, e que me sinto gostos diversos que se sobrepõem alternadamente.” Equivaleria a dizer de uma forma mais padronizada – e certamente banal: “[...] não sinto em mim vocação para nada, e que sinto em mim gostos diversos que se sobrepõem alternadamente.” Essa escolha pode gerar debate, mas precisa ser vista dentro de um plano mais amplo de reflexão sobre a expressão ou a forma.

A famosa missiva endereçada a Victor Hugo em 25 de fevereiro de 1840 comporta alguns elementos que são passíveis de críticas negativas. É o caso do verbo prodiguer vertido por “prodigar”. Neste caso, como em muitos outros em que pode se temer uma interferência do francês sobre o ato tradutório, é preciso cuidar com o extenso e pouco usual vocabulário da língua portuguesa. De fato, esse verbo tem sentido similar ao francês, apesar de ser empregado em uma linguagem assaz rebuscada. Outra ocorrência nesta mesma epístola se deu com a expressão “toute belle chose”, cuja primeira tradução não foi satisfatória. Vertendo-a por “todos as coisas belas”251, perder-se-ia a expressividade do adjetivo toute que, sem a presença do artigo definido les, acarreta em francês uma ideia de totalidade máxima, ou seja, que representa toda e qualquer beleza encontrada. Na biografia de Baudelaire de Jean-Baptiste Baronian (2005), recentemente traduzida para o português (2010) por Julia de Rosa Simões, alguns trechos das cartas são citados, notadamente, a que estamos debatendo: “Eu o amo como se ama um herói, um livro, como se ama puramente e sem interesses qualquer coisa bela.”252 A escolha do adjetivo indeterminado “qualquer”, ao meu ver, também prejudica o efeito de totalidade máxima. No texto de partida, o trecho é “[...] je vous aime comme on aime un héros, un livre, comme on aime purement et sans intérêt toute belle chose.” Finalmente, após analisar as traduções para o italiano, o inglês ou ainda o português, a tradução resultou em: “[...] amo-o como se ama um herói, um livro, como se ama puramente e sem interesse o

                                                                                                               251 Op. cit., 1973. p. 81-82. 252 Baronian, Jean-Baptiste. Baudelaire. / Tradução de Julia de Rosa Simões. – Porto Alegre:

LP&M, 2010. p. 22.

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belo.” Foi possível expressar essa totalidade com o artigo definido “o” na frente do substantivo “belo”.

A epístola de 20 de janeiro de 1841 traz algumas dificuldades de vocabulário, como palavras específicas ao vestuário: os adjetivos négligé (despojado), habillé (social) e ouaté (acolchoado), ou ainda, substantivos tais como bonnetier (carapuceiro), chemisier (camiseiro) e gantier (luveiro)253.

A carta de Alphonse Baudelaire a Charles, datada de 30 de abril de 1841254, contém dois desafios significativos. Primeiro, houve grande dificuldade para traduzir a frase: “Tu t’es laissé entraîner par des amis que tu fréquentais et que tu n’osais produire à raison de leur tenue et de leurs goûts.” Como verter a expressão produire à raison de? Após ter procurado o sentido do verbo em vários dicionários tais como o Larousse, o Littré, o Littré +, o da Académie française, o Trésor do Centre National de Ressources Lexicales, por exemplo, não foi possível encontrar esse emprego do verbo junto à preposição à e o substantivo raison. Assim, a tradução inicial foi a seguinte: “Deixou-se arrastar por amigos que frequentava e que você não ousava levar à razão de seus comportamentos e gostos.” Não obstante, o resultado não foi satisfatório, justamente por não ter encontrado essa formulação nos dicionários. Outra solução foi a de avaliar o emprego do verbo em questão com a expressão à raison de. Ainda que apontasse para outra possibilidade, essa estrutura não era convincente. Foi nesse momento que pensei que a origem dessa dificuldade talvez estivesse no uso da preposição. Ao alterar o à pelo en, a frase já era mais plausível, possibilitando que o verbo produire seja associado a um sentido preciso, neste caso, o de mostrar ou revelar algo (“Produire: faire voir ou montrer un acte de naissance”, por exemplo). Permanece aqui o desafio de saber se esse emprego peculiar da preposição é uma questão de estrutura usual na época ou se foi simplesmente um equívoco por parte de Alphonse. A solução finalmente escolhido, e que talvez ainda não seja adequada ou que seja passível de alteração no futuro, foi a seguinte: “Deixou-se influenciar por amigos que frequentava e que você não ousava revelar em razão de seus comportamentos e de seus gostos.” A melhor fonte para encontrar a resposta foi simplesmente o contexto e o conteúdo das respostas de Alphonse, pois este se queixa da falta de clareza de Charles quando se trata de nomear seus amigos. Na resposta                                                                                                                253 Op. cit., 1973. p. 85-86. 254 Idem. Ibid., 1973. p. 734-736.

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de Alphonse no dia 3 de fevereiro de 1841, um trecho mostra a preocupação do meio-irmão em saber quais pessoas Charles frequentava: “Disse, e repito-lhe, dê-me os nomes e endereços de seus credores e dos seus amigos que ninguém pode conhecer.”

O segundo desafio se situa na dificuldade em traduzir o termo drolêsse para o português. A primeira intenção foi a de mantê-lo em francês, destacando-o em itálico com nota de rodapé. No entanto, ao pesquisar e refletir melhor sobre a questão, percebeu-se que não perderia muito ao encontrar um vocábulo que exprimisse sentidos próximos ao francês. De fato, o termo drolêsse, conforme o dicionário Littré, significa uma mulher de vida desregrada, às vezes, escandalosa. O ato de prostituir-se pode estar implícito no termo. Baudelaire poderia estar empregando um eufemismo. É preciso imaginar aqui a mulher que frequenta bares e tabernas, que bebe, ri de forma exuberante e não respeita as convenções da sociedade. Para ser mais preciso, o objetivo foi o de manter uma palavra pouco usual nos dias atuais, nesse significado específico, evitando os vocábulos diretamente relacionados à prostituição. Preferi os da vida desregrada, licenciosa, o que ainda deixaria espaço a interpretações. A palavra mais adequada em português, após muita pesquisa e reflexão, foi o substantivo “devassa”, ligado ao verbo “devassar”, no sentido de “vulgarizar-se, tornar-se devasso, dissoluto, corromper-se e prostituir-se”, conforme o dicionário Houaiss. De qualquer forma, sendo uma tradução acadêmica, uma nota é relevante para explicar a expressão destacada por Alphonse.

A carta enviada por Alphonse Baudelaire ao General Aupick em 19 de janeiro de 1842255 nos leva novamente a enfrentar estruturas singulares. É o caso da frase: “Il n’est d’homme qui ait raison qui ne cède aux conseils, aux avis d’une sincère amitié.” O que chama a atenção é o início da sentença e a situação do verbo “ter” no subjuntivo, junto com a palavra raison, que acaba por provocar uma dúvida no sentido em que não se sabe se Alphonse quis expressar um homem que tem razão ou um homem razoável, racional. No primeiro caso, se tem razão, então por que ceder aos conselhos? A segunda opção deve ser a mais lógica dado o contexto, ou seja, se o sujeito usa a razão, mesmo estando equivocado, deve ceder às opiniões de uma sincera amizade. Inicialmente, o trecho foi traduzido “Não há homem que tenha razão que não ceda aos conselhos, às opiniões de uma sincera amizade.” Dever-se-ia manter a estrutura ambígua como está no texto de partida ou não?                                                                                                                255 Op. cit. 1987. p. 154-155.

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Neste caso, não parece justificável e optei por alterar o verbo “ter”, passando para o “fazer uso de”: “Não há homem que faça uso da razão que não ceda aos conselhos, às opiniões de uma sincera amizade.”

As últimas cartas não apresentam desafios dignos de nota, senão decisões já tomadas anteriormente sobre o tom geral alcançado pela escolha de algumas palavras de pouco emprego ou o cuidado com a regência dos verbos em português, questão esta ligada à competência e à devida atenção do tradutor.

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Considerações finais

[...] Je veux faire sentir sans cesse que je me sens comme étranger au monde et à ses cultes.256

Carta à Senhora Aupick – 5 de junho de 1863.

Je vous avais dit: supprimez tout un morceau, si une virgule vous déplaît

dans le morceau, mais ne supprimez pas la virgule; elle a sa raison d’être. J’ai passé ma vie à apprendre à construire des phrases, et je dis, sans crainte de

faire rire, que ce que je livre à une imprimerie est parfaitement fini.257

Carta a Gervais Charpentier – 20 de junho de 1863.

A reflexão iniciada com a escrita mallarmeana – sorte de microscópio sobre a baudelairiana – deve justificar que nos debrucemos com mais cuidado sobre essa “colisão de palavras” que tem por resultado uma fórmula da qual emana não somente um valor estético – tão almejado pelos escritores e leitores – mas igualmente particularidades de uma expressão e de um tempo. No mais, o Texto apresenta uma figura caleidoscópica que exige do tradutor uma postura que valorize o tecido textual com toda sua singularidade e que questione sua abordagem não se valendo apenas de uma teoria/reflexão. Assim, quanto mais o texto for constituído de informações estéticas, mais tender-se-á a observar a expressão artística, apartando-se, caso seja necessário, da língua padrão, dirigindo-se em diferentes casos à noção de sugestão. Ao contrário, quanto mais provido de informação semântica, mais preocupação e cuidado ter-se-á com os sentidos, sendo que ambas muito frequentemente se mesclam no mesmo texto. É preciso confessar que essa leitura – luz que ativa o caleidoscópico – por mais semântica que seja, jamais poderá ser totalmente unívoca: existe sempre uma brecha para interpretações. Por outro lado, as diferenças entre gêneros como poesia, prosa ou o epistolar não revelam da mesma maneira suas peculiaridades. O exemplo da tradução da escrita mallarmeana possibilita visualizar a abordagem de uma tradição ainda

                                                                                                               256 “[…] quero fazer sentir continuamente que eu me sinto estrangeiro ao mundo e seus cultos.”

(Trad. Nossa) 257 “Eu tinha lhe dito: suprime um trecho inteiro, se uma vírgula lhe desagrada nesse trecho,

mas não suprime a vírgula; ela tem sua razão de ser. Passei minha vida aprendendo a construir frases, e digo, sem temer em provocar o riso, que o que entrego a uma imprensa está perfeitamente acabado.” (Trad. Nossa)

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fortemente arraigada entre os tradutores quanto ao texto literário.: a busca do sentido para aplacar sua angústia.

O paradoxal esquecimento do Texto, como vimos em “Crise do verso” ou nos Pequenos poemas em prosa, pode ser percebido em inúmeras obras, aplicando assim essa reflexão a outras escritas. No caso das Belles infidèles, por exemplo, a tradução é fortemente pré-determinada por valores morais e estilísticos próprios ao Classicismo. A noção do belo e o despotismo do bom gosto influenciam de forma decisiva o texto de chegada condenando elementos fundamentais da expressão e da cultura de autores da antiguidade. Valores, aliás, que mudaram desde então. Neste caso, não se deve perder de vista que além da informação estética, nessa tradução etnocêntrica, aniquilamos o Outro, com sua cultura, suas experiências peculiares e seu conhecimento, lembrando aqui do projeto dos românticos alemães e do conceito de Bildung.258 Tomemos outro exemplo cuja discreção do valor da tensão entre as palavras é importante, o caso de um romance como O estrangeiro de Camus. As primeiras linhas da obra são impressionantes pelo sutil abalo que provocam em sua frieza:

Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas. J’ai reçu un télégramme de l’asile : “Mère décédée. Enterrement demain. Sentiments distingués.” Cela ne veut rien dire. C’était peut-être hier.259

Destacou-se o famoso telegrama pelo interesse que há em sua

expressão, tanto de um ponto de vista semântico quanto estético, escrita peculiar que lança o leitor no tom do romance atravessado pelo pensamento de Camus. Não obstante, as traduções de Antônio Quadros e Valerie Rumjanek, especificamente nesse trecho simbólico, fracassaram do ponto de vista poético. Ambos não somente não respeitaram a linguagem telegráfica com todo seu mecanicismo sintético, mas também perderam de vista o essencial, o teor estético do qual essa informação semântica se reveste. Ao incluir o possessivo                                                                                                                258 A Bildung é um dos conceitos centrais da cultura alemã do século XVIII. Este conceito

remete, principalmente, ao processo (e concomitantemente seu resultado) de formação de uma cultura, no qual a tradução tem um papel fundamental. Cf. Berman, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schlegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hörderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru, SP: EDUSC, 2002.

259 Camus, Albert. L’étranger. Paris: Gallimard, 1942. p. 9.

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“sua”, criaram um vínculo maior entre Mersault e sua mãe, corrompendo a ideia do étranger.

Hoje, mamãe morreu. Ou talvez fosse ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.260

Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.261

Vemos na versão de Quadros uma hesitação (“Sua mãe falecida”)

que não faz senão reforçar a dificuldade que enfrentaram: o despotismo do sentido. Ora, do ponto de vista da obra, a figura do juiz nos mostra o quanto esse sentido que se quer atribuir ou encontrar no gesto de Meursault se embate à mudez do personagem. O juiz pretende compreender o que se quer calar a todo custo, mesmo que, para atingir o objetivo, gestos sejam exprimidos por uma atuação circense repleta de fingimentos e personas no picadeiro da sociedade. Como não entender então o pouco valor do sentido em algumas frases ricas do frio cinzelar do autor? A versão da tradutora Valerie Rumjanek vai além, transformando o modo particípio em verbo conjugado no pretérito perfeito, passando, além disso, do “Cela ne veut rien dire”, para “Isso não esclarece nada”. Sendo a sua tradução publicada pela Record em sua 30ª edição, podemos imaginar o impacto diverso que teve o trecho nos leitores. Trata-se de um étranger que perdeu força de estranhamento na desvalorização de seu valor estético e intelectivo.

Existem outros exemplos notáveis, alguns citados por Antoine Berman como as traduções de O processo de Kafka para o francês262 e dos russos Tolstói263 e Dostoiévski.264 O resultado pode parecer soberbo,

                                                                                                               260 Camus, Albert. O estrangeiro. Tradução de Antônio Quadros. São Paulo: Abril Cultural,

1982. p. 155. 261 Camus, Albert. O estrangeiro. Tradução de Valerie Rumjanek – 30ª ed. – Rio de Janeiro:

Record, 2009. p. 07. 262 Op cit., 2007. p. 37. 263 Idem. Ibid., p. 47. 264 Idem. Ibid., p. 49.

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não obstante, trata-se ainda de uma prosa imbuída de sua potência, ou seja, da fórmula mágica no agenciamento singular das palavras? Vale, portanto, observar esse agenciamento discreto em outras obras.

A escolha de analisar versões de epístolas de Baudelaire, em inglês, italiano, espanhol e alemão, possibilitou reavaliar a tradução de sua correspondência, quando em estado de rascunho, confirmando ou questionando, atraindo a atenção sobre trechos críticos que passaram despercebidos, corroborando reflexões teóricas. A importância do agenciamento das palavras, do valor da cultura do Outro e da não supremacia do sentido, ganharam ainda mais força em oposição às escolhas daquelas versões. Após tal análise, tentou-se melhor conduzir o ato tradutório, com mais consciência, porque ciente das perdas constatadas alhures. É da dificuldade, dos sucessos e fracassos de outros tradutores, após ruminá-los com embasamento teórico, que pode-se ir além, alcançar a forma do Texto para, mesmo se ainda há espaço para interpretações, finalmente, abrigar sua letra.

A tradução dessa seleção de epístolas teve assim, não apenas um valor de experiência tradutória, repleta de desafios, mas retratou, esperamos, um outro Baudelaire. Uma imagem que pode ser debatida, questionada, mas que pretende acima de tudo abrir fissuras nas certezas avançadas por Junqueira, via Sartre, deixando espaço para a dúvida – um momento de abalo do conhecimento – que exige novamente que se pense o objeto para restabelecer seu apaziguador equilíbrio. Assim, em consequência dessa leitura direta da correspondência, é preciso firmar algumas considerações acerca desse retrato baudelairiano que as cartas revelam.

De fato, há de se considerar, como o faz Dirceu Villa em sua introdução aos Pequenos poema em prosa intitulada “Baudelaire, l’homme des foules” (2007) (Baudelaire, o homem das multidões), se o poeta não permanece “quase incompreesível para a mentalidade politicamente correta e espontaneísta de nossos dias.”265 Como vimos, sua complexidade, afirmada por Otto Maria Carpeaux, e a lenda criada em sua volta, formaram elementos para sua incompreensão, que foi comentada por vários estudiosos/autores tais como, Claude Pichois ou ainda André Gide. O mal-entendido parece ter se perpetuado até nossos dias, inclusive nos estudos sobre o poeta, cuja influência requer certa imunidade intelectual para afastar o objeto das narrativas que o

                                                                                                               265 Baudelaire, Charles. Pequenos poemas em prosa. / Tradução de Dorothée de Bruchard. São

Paulo: Editora Hedra, 2010. p. 09.

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comentam: narrativas, tais como a de Jean-Paul Sartre ou de Ivan Junqueira, que nos convencem com o poder resplandescente de seu discurso. Como disse o filósofo francês, citando Brice Parain, “les mots sont des pistolets chargés. S’il parle, il tire.” 266 Extendendo essa lógica do escritor que atira ao se expressar, ao pesquisador, percebe-se o quão importante é ter acesso direto ao objeto que se pretende analisar, com uma postura de relativa independência intelectual. Pois, se as palavras são pistolas, não somente podem ter o efeito desejado, o de convencer ou de impressionar, como, a exemplo de Baudelaire, aquilo que se diz ou se escreve, visto como uma arma, se vira contra nós. A linguagem é, de maneira simultânea, potência e impotência.

A matéria que Baudelaire escolheu abordar em sua poesia fez com que sua obra aprofundasse as facetas do mal, investigando-o, ou melhor, como disse Sartre, desvelando o mundo e singularmente o homem para os outros homens, para que estes tomem assim, perante o objeto desnudado, sua inteira responsabilidade.267 Mas o hipócrita leitor pretende ao menos tomar essa responsibilidade? Assombrosa tarefa a de se olhar no espelho e se ver nu, desprovido de suas ilusões, indefeso frente aos seus mais intoleráveis traços. Por outro lado, aqueles para quem esse mal parece estrangeiro, do alto de sua torre de marfim, devem entender que não há na poesia e no pensamento de Baudelaire uma visão maniqueísta que supostamente cria uma fronteira entre o bem e o mal. Para compreender o pensamento do autor das Flores do Mal, é preciso relembrar das palavras de Nietzsche a respeito do homem: “O homem é corda distendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre o abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.”268

Por outro lado, o politicamente correto reina em todo parte, tornou-se estratégia de marketing ou política, que não raramente se assemelha a um vernis que camufla práticas desonestas e abusos de poder. O que fazer então de um autor cuja intenção é a de investigar esse Mal, sob todas suas manifestações, sem desviar os olhos desse gelo que                                                                                                                266 Sartre, Jean-Paul. Qu’est-ce que la littérature? – Paris: Gallimard, p. 29. “As palavras são

pistolas carregadas. Se ele [o escritor] fala, ele atira.” 267 Idem. Ibid., p. 29 Deve-se tomar essa citação traduzida na íntegra, ou seja, que o escritor

[Baudelaire] coloca, com sua obra, o homem perante o mundo e o homem desnudados: “Mais dès à présent nous pouvons conclure que l’écrivain a choisi de dévoiler le monde et singulièrement l’homme aux autres hommes pour que ceux-ci prennent en face de l’objet ainsi mis à nu leur entière responsabilité.”

268 Nietzsche, Friedrich. Assim falava Zaratustra. / Tradução de Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo: Hemus, p.11.

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queima como fogo, e que deseja arrastar o leitor em sua empreitada? É preferível ignorá-lo ou talvez lê-lo indiretamente, através de outros pesquisadores, como para amenizar o efeito cáustico de sua poesia. Vale também, por exemplo, enclausurá-lo na categoria dos pessimistas e, sobretudo, dos autores católicos, como se nas mentes ocidentais não estivessem gravados, de forma inconsciente, os polos do bem e do mal, herdados dos dogmas cristãs.

Nessa rejeição e mal-entendido, imbuídos de preconceitos, ou no mal-estar que suas flores causam, perde-se muito pelo caminho, principalmente, a complexidade do autor e da sua poesia: rica em ensinamentos. Então, para muitos, Baudelaire será incompreensível, como o foi durante sua vida, ou não mais do que simplificado com o selo de “poeta maldito”. Por outro lado, é como se parte das leituras biográficas e da fortuna crítica baudelairiana, paradoxalmente, ajudassem a formar camadas sedimentadas que, com o tempo, tivessem se acumulado para finalmente encobrir obra e autor. Ao novo pesquisador incumbe assim a árdua e humilde tarefa de um arqueólogo, que deve cuidadosamente escavar com as mãos esse sítio, analisando e/ou se apartando dos diferentes sedimentos, até chegar ao seu objeto de estudo. Foi este o propósito da pesquisa, o de questionar as leituras de Junqueira e Sartre, para propôr uma nova empreitada centrada, o quanto possível, na análise direta do objeto: a correspondência.

A leitura das missivas baudelairianas se embate a essa simplificação da imagem de Baudelaire, o que nos leva a questionar, por exemplo, a expressão “poeta maldito”, e a reforçar a afirmação de Sartre de que o poeta escolheu seu destino. Não há como discordar, até porque o nosso questionamento se direciona em dois pontos bem precisos – a revolta com o segundo matrimônio que deu à famosa fissura e o complexo de Édipo – e não no estudo do filósofo francês em sua totalidade. Tampouco se pôs em dúvida o método da psicanálise existencial: não era nosso foco. Trata-se de apontar a fragilidade dos elementos que levaram à conclusão de um complexo de Édipo em Baudelaire, para que essa possibilidade seja novamente investigada pelos pesquisadores (inclusive os psicanalistas) com mais cuidado e, sobretudo, com a leitura direta da correspondência. É o caso inclusive da obra de Vincent Kaufmann que aborda a dívida de Baudelaire para com a mãe, de um ponto de vista psicanalítico, sem absolutamente levar em conta as expectativas da família burguesa para qualquer criança, não

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situando o objeto de estudo em seu contexto social e histórico, lembrando aqui de Bourdieu.269

É certo que a imagem imanente das epístolas deveria ao menos fazer com que desarquivássemos o caso Baudelaire/Aupick, cuja tradição (Crépet, Porché, Sartre e Junqueira) aponta firmemente para o que parece se delinear como um mito. O fato de retomar as missivas de Baudelaire em seu amplo conjunto, para explorar esse vazio deixado pela dúvida que tentamos construir nessa reflexão, já faria com que o objetivo dessa pesquisa fosse atingido.

Assim, graças à correspondência, descobrimos um retrato bem diverso do general Aupick e das tentativas da família de resgatar o jovem Charles de sua vida desregrada com a famosa viagem por mar. E a missiva da Senhora Aupick para o amigo de Baudelaire, Charles Asselineau, enviada em 1868, não pode ser lida isoladamente, mas espelhando-a aos trechos citados, às próprias palavras do poeta. O padrasto, e certamente a mãe também, queria vê-lo alcançar uma alta posição social, o que não era irrealizável, sendo o [general Aupick] amigo do Duque de Orléans.

...é preciso que saiba que meu marido, o general Aupick, adorava Charles. Quando era criança, ele mesmo se ocupara muito de sua educação. Se deparou com uma tão bela inteligência, tão estudioso, que o surpreendia em último grau, que se afeiçoava dia após dia cada vez mais. Quando chegaram os sucessos do colégio Louis-le-Grand, e os estudos terminados, fez pelo Charles sonhos dourados de um brilhante futuro: queria vê-lo alcançar uma alta posição social, o que não era irrealizável, sendo o amigo do Duque de Orléans. Mas que estupefação para nós, quando Charles se recusou a tudo que queríamos fazer para ele, quando quis voar com suas próprias asas, e ser autor! Que desencantamento em nossa vida de interior tão feliz até então! Que tristeza! Nós tivemos então o pensamento, para dar outro curso a suas ideias e, sobretudo, para romper algumas más relações, de fazê-lo viajar. [...] Se Charles tivesse se deixado guiar pelo seu padrasto, sua carreira teria sido bem diferente.

                                                                                                               269 Kaufmann, Vincent. L’équivoque épistolaire. – Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.

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Não teria deixado um nome na literatura, é verdade, mas nós teríamos sido os três mais felizes.270

Podemos perceber que as palavras da mãe e o emprego da primeira pessoa do plural, revelam que o casal Aupick se surpreendeu com a decisão do filho, que gerou desencanto, tristeza e grandes discussões na família. Baudelaire escolheu sua vida, contra a opinião de todos, recusou a ajuda do padrasto para o que teria sido provavelmente uma carreira mais digna aos olhos da família burguesa: uma vida bem sucedida.

A viagem se tornou fonte de grande apreensão, tentativa desesperada de arrancar a criança pródiga dos paralelepípedos escorregadios de Paris, como afirmou o general em uma epístola para Alphonse em 19 de abril de 1841. Na mesma, Aupick também nos fornece uma informação que não pode ser descartada para entender seu pensamento em relação ao enteado. O maior entrave aos projetos de Baudelaire não é o fato de se tornar autor, mas um poeta cuja inspiração tem por fonte os esgotos de Paris.

Il y a selon moi, selon Paul et Labie, urgence à l’arracher au pavé glissant de Paris. On me parle de lui faire faire un long voyage sur mer, aux unes et aux autres Indes, dans l’espérance qu’ainsi dépaysé, arraché aux détestables relations, et en présence de tout ce qu’il aurait à étudier, il pourrait rentrer dans le vrai et nous revenir poëte peut-être, mais poëte ayant puisé ses inspirations à de meilleures sources que les égouts de Paris.271

A esperança é de arrancá-lo das detestáveis relações, oferecendo-

lhe um objeto de estudo: tudo o que sua capacidade de observação pudesse memorizar nas paisagens até Calcutá. Parte do objetivo foi atingido, já que, da viagem às ilhas do oceano índico, segundo Pichois,

                                                                                                               270 Bandy, W. T.; Pichois, Claude (Org.). Op. cit., p. 55-58. 271 Pichois, Claude; Ziegler, Jean. Baudelaire. Paris: Julliard, 1987. p. 137-138. “Há conforme

penso, conforme Paul e Labie, urgência em arrancá-lo do paralelepídedo escorregadio de Paris. Falam-me de fazê-lo empreitar uma longa viagem por mar, às Índias, na esperança que assim desambientado, arrancado das detestáveis relações, e na presença de tudo aquilo que poderia estudar, poderia voltar à razão, e retornar poeta talvez, mas poeta tendo extraído suas inspirações em outras fontes que os esgostos de Paris.” (Trad. Nossa)

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Baudelaire soube extrair material para insuflar na obra lembranças perfumadas que soube dominar o bastante para não cair no exotismo.272 Como revela outra missiva do dia 19 de janeiro de 1842, pouco antes da chegada de Charles, dessa vez de Alphonse Baudelaire para o general.

Compreendo toda a ansiedade que deve causar-lhes o retorno de Charles, as inquietudes que seu futuro pode causar-lhes e, sobretudo, as tristezas da Senhora Aupick. [...] Hoje procuremos acolher Charles como a criança pródiga que retorna em sua família: ou reconheceu a extensão de seus erros e o temor de confessá-los o retém e o impede de escrever ou não mudou. Neste último caso, seria preciso estudar suas ideias, ver se são falsas por má aplicação de seus conhecimentos ou em decorrência de alguma anomalia na organização. [...] Pese esse meio com o Sr. Ancelle. Bastaria talvez para reservar-lhe um futuro, sem recorrer a outros meios que me repugnariam tanto quanto ao senhor.273

A expressão que o meio-irmão emprega, “sem recorrer a outros

meios que me repugnariam tanto quanto ao senhor”, é bastante importante, pois Alphonse se refere aqui ao Conseil judiciaire. Nessas três missivas, todos os elementos mencionados anteriormente sobre a noção de família no século XIX, os conflitos decorrentes da opressão parental, o poder que podiam exercer legalmente, as tentativas de resgatar o “mau filho” de uma conduta subversiva, o drama familiar em suas reações e preocupações, estão reunidos. Por mais que houvesse uma postura singular detectada pelos mestres, no comportamento do aluno que foi Baudelaire, a fratura entre ele e sua família, pode apenas ser percebida uma vez que Charles entrou na grande adolescência e que foi se aproximando da maioridade (21 anos na época). Como afirma Pichois, os anos de 1839 a 1841 serão decisivos na vida do futuro poeta. Mas a fratura efetiva ocorreu quando suas dívidas e sua vida desregrada foram descobertas e, sobretudo, quando Baudelaire anunciou que queria ser autor, poeta inspirado nos esgotos de Paris. O projeto em si das Flores do mal já constitui um atentado à honra e ao bom nome da                                                                                                                272 Op. cit., 1987. p. 152. “Voyage maudit peut-être, mais qui laissera dans l’œuvre des

souvenirs parfumés que le poète sut maîtriser assez pour ne pas donner dans l’exotisme.” 273 Bandy, W. T.; Pichois, Claude (Org.). Op. cit. p. 60-62. (Trad. Nossa)

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família Aupick/Baudelaire. Talvez o pai tivesse condições, enquanto espírito do século XVIII e pelo seu interesse pela arte, de compreender melhor o filho, mas o retrato de Regnault permanecia calado e a empreitada de Baudelaire foi temerária o bastante para repugnar boa parte dos autores e artistas da época. Basta para isso relembrar das reações à sua candidatura à Academia de Letras.

Uma carta de Alphonse para Charles em 30 de abril de 1841 reforça a fratura na aurora da maioridade do poeta quando fala de sua infância: “Criança, era de um comércio encantador; moço, você se tornou difícil, suspeitoso, sempre pronto a rebelar-se quando queriam lhe impor um freio salutar.” Outro trecho da mesma missiva nos leva à questão do sucesso: “Nossas mais caras esperanças, as de vê-lo tornar-se um homem de mérito e de vê-lo fazer um belo caminho, começavam a acontecer; para você, entrava na senda da vida por uma dessas portas ornamentadas de rosas que conduzem à felicidade.” O enfrentamento entre os conceitos de trabalho e sucesso aparece como a chave para o entendimento desse dilema familiar e pessoal. Será preciso abordar esse veio vital, pois nele jaz uma compreensão bem diversa do futuro poeta nos parâmetros burgueses, e até mesmo, de forma ainda insistente, nos moldes atuais do que se entende por sucesso.

Certamente, o casal Aupick teria respondido com base em suas experiências de vida, ambos eram orfãos, com sua ambição e seus próprios valores, os quais se embatiam brutalmente com a visão da arte e do mundo do filho que queria ser poeta. Porém, para aqueles que se debruçam sobre a questão das relações entre Baudelaire, os Aupick e o meio-irmão, trata-se de compreender o que se entende por sucesso: eis um conceito chave. Porém, antes de abordá-lo, é preciso em um primeiro momento, destacar a sua inteligência e sua sensibilidade de artista, louvadas, notadamente, por Paul Valéry. 274 Sua atividade intelectual foi, como nos casos de George Eliot, Thomas Hardy e D. H. Lawrence, analisados por Raymond Williams, invejável e poucos resistiriam à comparação, a exemplo de Du Camp, que tratou Baudelaire de ignorante de forma condescendente, como vimos anteriormente.

É preciso abordar a preguiça, palavra que volta muitas vezes sob a pena de Baudelaire ou em autores como Drummond ou Dostoiévski275,                                                                                                                274 Valéry, Paul. Variétés I et II. Paris: Gallimard, 1924, 1930. p. 231-232. Ao falar de

Baudelaire, Paul Valéry descreve sua “intelligence critique” associada a sua “vertu de poésie”. Ele lembra que o poeta parisiense tinha uma “sensibilidade aguda”.

275 Cf. Andrade, Carlos Drummond de. Carlos & Mário: Correspondência completa entre Carlos Drummond de Andrade (inédita) e Mário de Andrade. 1924-1945. Rio de Janeiro:

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não no sentido comum tendo origem no latim prigitia (lento) ou no grego argos (que não trabalha), mas como o faz Barthes em “Osons être paresseux” (Ousemos ser preguiçosos). Primeiro, trata-se de “une expérience douloureuse de la volonté”276 (uma experiência dolorosa da vontade) e, segundo, no caso de um autor, de “un moment de l’écriture, un moment de l’oeuvre” (um momento da escrita, um momento da obra), tomando como exemplo a de Proust:

Au fond, il y aurait, dans l’écriture, deux temps. Un premier temps qui serait le temps de la balade, un temps baladeur, dragueur presque, pendant lequel on drague les souvenirs, les sensations, les incidents, on les laisse s’épanouir. Puis, il y aurait un second temps, celui de la table où l’on écrit (pour Proust, le temps du lit).277

Trata-se, no caso do poeta parisiense, de um sofrimento da

vontade perante o tédio de suas tarefas quotidianas, das conversas vazias de seus camaradas, de uma força pérfida que faz com que abandone seus projetos e falte com sua palavra. Quando caminha para a mocidade, é de se pensar se essa preguiça não representa uma fraqueza da vontade perante o abismo de uma existência considerada sem sentido. Quando poeta, o que não deixa de abarcar infância e juventude, no processo de criação/invenção, é preciso entender o conceito como o fez Barthes, um tempo de passeio durante o qual dragam-se lembranças, sensações ou incidentes que serviram de matéria para o momento da composição. Não há como dissociar essa reflexão à definição do gênio realizada por Baudelaire em seu Le peintre de la vie moderne (O pintor da vida moderna).278

                                                                                                               Bem-Te-Vi, 2002. Dostoiévski, Fiodor. Dostoiévski: correspondências 1838-1881. / tradução de Robertson Frizero. – Porto Alegre: 8Inverso, 2009.

276 Op. cit., 1995. p. 1082. Entrevista publicada pela primeira vez no Le monde dimanche em 16 de setembro de 1979.

277 Idem. Ibid., 1995. p. 1086. No fundo, haveria na escrita, dois tempos. Um primeiro tempo que seria o tempo do passeio, um tempo passante, quase arrebatador, durante o qual arrebata-se as lembranças, as sensações, os incidentes, deixa-se desabrochá-los. Em seguida, haveria um segundo tempo, aquele da mesa na qual se escreve (para Proust, o tempo da cama). (Trad. Nossa)

278 Baudelaire, Charles. Oeuvres complètes II. Le peintre de la vie moderne. Paris: Gallimard, 1976. p. 690. “Le génie n’est que l’enfance retrouvée à volonté, l’enfance douée maintenant pour s’exprimer, d’organes virils et de l’esprit analytique qui lui permet d’ordonner la somme de matériaux invonlontairement amassée. C’est à cette curiosité

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Afinal, o que é ter sucesso? Charles poderia ter muito bem questionado seus pais da mesma forma que Clym, personagem do romance The return of the native de Thomas Hardy, citado ainda por Williams:

– Depois de tudo que se faz para lhe dar uma ajuda inicial, quando tudo que você precisa fazer é seguir em frente até ficar rico, você me diz que... Fico perturbada, Clym, ao saber que você voltou com essas ideias. [...] Jamais me passou pela cabeça que você pudesse querer andar para trás por livre e espontânea vontade. [...] / – Não posso fazer nada – disse Clym, num tom intranquilo. / – Por que você não pode... ter sucesso como os outros? / – Não sei, só sei que há muitas coisas a que as outras pessoas dão valor, e eu não dou. [...] / – E, no entanto, você bem que podia ter enriquecido se tivesse perseverado. [...] Pelo visto, você vai acabar como seu pai. Como ele, você está enjoando do sucesso. / – Mamãe, o que é o sucesso?279

E Baudelaire o fez na famosa carta endereçada à mãe em 6 de

maio de 1861280, colocando claramente, mas sem empregar o termo sucesso, a questão dos valores que fariam dele um homem de mérito: a literatura. O ensaio “L’échec de Baudelaire” (O fracasso de Baudelaire) publicado pela primeira vez em 1949, de Maurice Blanchot, constitui outro estudo que nos impeliu a uma reflexão sobre o sucesso. A partir do

                                                                                                               profonde et joyeuse qu’il faut attribuer l’oeil fixe et animalement extatique des enfants devant le nouveau, quel qu’il soit, visage ou paysage, lumière, dorure, couleurs, [...].” “Mas o gênio é somente a infância redescoberta sem limites; a infância agora dotada, para expressar-se, de órgãos viris e do espírito analítico que lhe permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada. É à curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir o olhar fixo e animalmente estático das crianças diante do novo, seja o que for, rosto ou paisagem, luz, brilhos, cores, [...]”. (Trad. Nossa)

279 Op. cit., 1989. p. 276 280 “[…] como é possível que essa ideia não tenha se apresentado em seu espírito: ‘É possível

que meu filho não tenha jamais, no mesmo grau que o meu, o espírito de conduta; mas é possível também que ele se torne um homem notável em outros aspectos. Neste caso, o que faria? Eu o condenaria a uma dupla existência, contraditória, uma existência honrada, por um lado, detestável e desprezada por outro? Eu o condenarei a arrastar até sua velhice uma marca deplorável; uma marca que prejudica, um motivo de impotência e de tristeza?’” (Trad. Nossa)

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Baudelaire de Sartre, Blanchot afirma que o poeta mereceu sua existência e também suas Flores do mal. Pois a vida dele

[...] n’est que l’histoire de son échec. Et

cependant, cette vie est aussi une absolue réussite. Réussite non pas fortuite, mais préméditée, et qui ne se surajoute pas à l’échec, mais qui trouve sa raison d’être dans cet échec, qui glorifie cet échec, rend incroyablement féconde l’impuissance, tire la vérité la plus rayonnante d’une imposture fondamentale. Pourquoi Baudelaire a-t-il été un grand poète? Comment la grandeur poétique, qui est peut-être la plus grande, a-t-elle pu se faire avec ce défaut de grandeur, d’efficacité, de vérité et, fait plus remarquable encore, avec ce manque dans l’intention créatrice qui a conduit le poète à tant de compromis et d’abandon?281

Blanchot constrói assim nesse ensaio uma ponte entre a vida e a

obra que se iluminam respectivamente, sem buscar – detalhadamente e diretamente nas cartas – as razões do fracasso/sucesso, o que acaba deixando uma lacuna. O fracasso de Baudelaire, de sua vida enquanto homem de mérito conforme os valores burgueses, foi total. Não obstante, segundo Blanchot, foi um sucesso premeditado, que não se acrescenta ao fracasso, mas, ao contrário, encontra sua razão de ser nesse fracasso, glorifica esse fracasso e torna incrivelmente fecunda a impotência, como constatamos no trecho supracitado. Trata-se de um sucesso ainda relativo em sua época, como a própria mãe afirmou, mas o nome que o filho deixou na literatura, deveio imponente, a medida que os estudiosos se afastavam da lenda criada em grande parte pela imprensa, e analisavam sua poesia. Fracasso e sucesso de uma vida, sucesso crescente de seu único volume de versos, fecundados em uma

                                                                                                               281 L’échec de Baudelaire. In: ____ . La part du feu. Paris: Gallimard, 2003. p.133-134. “[...]

não é senão a história do seu fracasso. E, no entanto, essa vida é também um sucesso absoluto. Sucesso não fortuito, mas premeditado, e que não se acrescenta ao fracasso, e sim encontra sua razão de ser nesse fracasso, glorifica esse fracasso, torna incrivelmente fecunda a impotência, tira a verdade mais resplandecente de uma impostura fundamental. Por que Baudelaire foi um grande poeta? De que maneira tal grandeza poética, talvez a maior, foi concebida por essa falta de grandeza, de eficiência, de verdade e, fato mais notável ainda, por essa falta na intenção criadora que levou o poeta a tanto comprometimento e abandono?” (Trad. Nossa)

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existência de privações, de mudanças, de fugas de credores, sem biblioteca pessoal ou ainda, enfrentando brigas com Jeanne e os editores. Em suma, faltava-lhe as condições para trabalhar como um autor de sucesso e realizar todos seus projetos de romances e dramas. Trabalhar como Balzac ou Gautier para produzir uma extensa obra: sonho de Baudelaire. Não obstante, malgrado o fracasso de inúmeros projetos, nessa existência caótica, consequência dos atos e escolhas do poeta e da incompreensão da família, Baudelaire gravou o seu nome na história da literatura ocidental com apenas um volume de versos. Como disse Blanchot: “Ayant beaucoup perdu, il a tout gagné. Littérairement du moins.”282 Baudelaire foi um homem da multidão, que se inspirou nas ruas de Paris. Talvez seja essa experiência o seu verdadeiro trabalho, o devaneio, refletir a matéria observada nos esgotos de Paris, função vista como marginal, já que não exigia os horários rígidos de um escritório de advocacia ou de um tribunal: tempo da boemia e do passante. Basta percorrer os poemas em prosa para observar como Baudelaire impregnou-se dessa multidão feita de velhinhas, de meninos de classes opostas brincando juntos com um rato, feita dos olhos dos pobres admirando um café novo, da auréola perdida na lama do boulevard, da moeda falsa entregue a um mendigo, do mau vidraceiro, ou ainda, do pobre coitado espancado para reagir frente à sua miséria. É o que separa Victor Hugo de Baudelaire, e que contribuiu à incompreensão e ao desprezo, no caso do segundo, entre os dois. Conforme afirmou acertadamente Banville, Victor Hugo transfigurou o homem e a natureza à imagem de um certo ideal desejado, enquanto Baudelaire, como Balzac, Daumier, ou ainda Delacroix, aceitou o homem moderno como um todo, com suas falhas, sua graça doentia, suas aspirações impotentes, seus triunfos mesclados de tantos desencorajamentos e lágrimas.283

O que pode ser observado nestas epístolas é que a família nunca percebeu quem era de fato Charles Baudelaire. O casal Aupick e o meio-irmão não esperavam por essa rebelião quanto à escolha de uma profissão, muito menos entreviam que se entregaria a uma vida desregrada, não somente pela influência dos camaradas da pensão Bailly, mas por vontade própria, por curiosidade para tudo aquilo que é arruinado.

                                                                                                               282 Op. cit., 2003. p. 145. “Tendo perdido muito, ele ganhou tudo. Literariamente ao menos.”

(Trad. Nossa) 283 Op. cit., 1987. p. 595.

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Ces retraites ombreuses sont les rendez-vous des éclopés de la vie. C’est surtout vers ces lieux que le poète et le philosophe aiment diriger leurs avides conjectures. Il y a là une pâture certaine. [...] ils se sentent irrésistiblement entraînés vers tout ce qui est faible, ruiné, contristé, orphelin.284

É nesses traços das multidões, nas rugas profundas dos

desfavorecidos, nos olhos cavos dos pobres, que o poeta adivinha lendas de amor enganado, esforços sem recompensa ou o ofício silencioso da fome. Eis a flor do mal, em seu duplo sentido de poema e objeto estético, a beleza dos esgotos da cidade, do bizarro, do transitório, que a moral burguesa condena precipitadamente, o que não pode tolerar uma mente como a de Baudelaire. Daí sua necessidade de viver em Paris. Além de ter que pagar suas dívidas, de dar continuidade a seus projetos de publicação, o que lhe exige batalhar com os editores, a cidade é uma fonte de inspiração/reflexão, a partir de sua posição nesse mundo e de seu próprio sofrimento. Não obstante, esse interesse pelo arruinado faz dele um marginal ou louco – como era considerado – apenas sob o jugo da moral burguesa que o condena de maneira hipócrita. Pichois nos lembra muito bem como a Senhora Aupick escondeu seu parto de uma criança natimorta dia 4 de dezembro de 1828, sendo que o casamento havia sido realizado no dia 8 de novembro.285

O revoltado que foi Baudelaire, assim como o amotinado que foi Charles no colégio (esporadicamente), são dois aspectos de sua personalidade que não retratam totalmente o ser humano que foi. Nesse sentido, o acesso direto à correspondência, notadamente à tradução para o português, tem o papel de nos fornecer um retrato menos redutor. Uma epístola importante para entender sua personalidade é a de 25 de fevereiro de 1834, endereçada ao casal Aupick.

                                                                                                               284 Baudelaire, Charles. Œuvres complètes. Volume I. Texte établi, présenté et annoté par

Claude Pichois. – Paris: Gallimard, 1975. p. 292. “Esses retiros sombrios são os pontos de encontros dos estropiados da vida. É sobretudo para esses lugares que o poeta e o filosofo gostam de dirigir suas ávidas conjeturas. Há ali um pasto certo. […] sentem-se irresistivelmente arrebatados por tudo aquilo que é frágil, arruinado, entristecido, órfão.” (Trad. Nossa)

285 Op. cit., 1987. p. 69.

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Quando la dernière fois encore je vous ai promis de ne plus vous donner de chagrin, je parlais de bonne foi, j’avais la résolution de travailler et de travailler ferme pour que vous puissiez dire: nous avons un fils qui reconnaît nos soins; mais l’étourderie et la paresse m’ont fait oublier les sentiments qui me possédaient, quand je promettais. Ce n’est pas mon coeur qu’il faut corriger, il est bon, c’est mon esprit qu’il faut fixer, qu’il faut faire réfléchir assez solidement pour que les réflexions y restent gravées. Vous commencez à croire que je suis un ingrat, vous en êtes peut-être persuadés. Comment vous prouver le contraire?286

Como confessa Baudelaire, ele foi preguiçoso, indolente e

covarde, mas lembra aos pais que seu coração permanece bom, malgrado seus defeitos de espírito. Desse desnudamento revelado na correspondência, o que o casal Aupick e Alphonse quiseram entender, obtusos em seus valores burgueses? Muito pouco pelo que pôde ser lido nas missivas, ao menos na época, pois a mãe deve ter entrevisto o valor literário da obra do seu filho. As numerosas cartas entre Baudelaire e sua mãe, mesmo que repletas de declarações contraditórias, de manipulações e crueldade, de demonstrações de afeto e de agradecimento, são valiosas justamente por revelar esse complexo relacionamento. É, afinal, conforme o poema em prosa “Os olhos dos pobres”, a incomunicabilidade entre os seres que se amam que representa um imponente obstáculo para o entendimento e a compreensão entre eles, principalmente, entre os que se amam. Asselineau não se engana quando, nos obséquios do amigo em 2 de setembro de 1867 no cemitério Montparnasse, declara, citado por Pichois:

                                                                                                               286 “Quando da última vez ainda prometi de não mais lhes trazer aflição, falava com boa fé,

tinha a resolução de trabalhar e de trabalhar com firmeza para que pudessem dizer: temos um filho que reconhece nossos cuidados; mas a leviandade e a preguiça me fizeram esquecer os sentimentos que me possuíam, quando prometia. Não é o meu coração que precisa ser corrigido, ele é bom, é meu espírito que precisa ser fixado, que é preciso fazer refletir firmemente para que as reflexões permaneçam gravadas. Começam a acreditar que sou um ingrato, talvez estejam até bem persuadidos. Como provar-lhes o contrário?” (Trad. Nossa)

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On a trop parlé de la “légende” de Charles Baudelaire, sans prendre garde que cette légende n’était que le reflet de son mépris pour la sottise et pour la médiocrité orgueilleuse. Je parle au nom de ceux qui l’ont constamment aimé, suivi, compris, et je l’affirme dans ce moment solennel, avec la gravité de la conviction devant la mort: - Oui, ce grand esprit fut en même temps un bon esprit; ce grand coeur fut aussi un bon coeur.287

Esse trecho do discurso de Asselineau, se espelhado à carta de

Baudelaire para seus pais (25 de fevereiro de 1834), deve provar o quão o gênero epistolar não é apenas ficção, fingimento e manipulação. O futuro poeta se desnuda perante sua mãe, o coronel e seu meio-irmão, mas não foi compreendido. Até mesmo após sua morte, quando Asselineau e Banville encabeçaram a edição das obras completas do amigo, que seriam publicadas por Michel Lévy, sua mãe tentou suprimir o poema Le reniement de Saint Pierre, pois agredia suas crenças católicas. Asselineau enviou uma epístola bastante dura à Senhora Aupick ameaçando abandonar o projeto caso intencionasse entrar na via das supressões. Foi um argumento emocional que a convenceu: “Charles n’est pas là pour se défendre.”288

Baudelaire é, conforme a definição de Malassis, “un excentrique au grand talent”289 que possuia além desse grande espírito, um bom coração, o que podia ser constatado, por exemplo, na sua fidelidade invejável com os amigos e, até mesmo, para com Jeanne, apesar das discussões e separações, e com sua mãe, malgrado sua incompreensão. Essa excentricidade, ou seu lado barroco, como ele mesmo descreveu, afugentou muitos críticos ou artistas da época, caso de Victor Hugo, Sainte-Beuve ou Delacroix, por exemplo. Porém, estamos muito distantes aqui do Príncipe das carniças.

                                                                                                               287   Op.   cit.,   1987.   p.   595.   “Falou-­‐se   por   demais   na   ‘lenda’   de   Charles   Baudelaire,   sem  acautelar-­‐se   que   essa   lenda   não   era   senão   o   reflexo   de   seu   desprezo   pela   tolice   e   pela  mediocridade   orgulhosa.   Eu   falo   em   nome   daqueles   que   constantemente   o   amaram,  acompanharam,   compreenderam,   e   afirmo   nesse  momento   solene,   com   a   gravidade   da  convicção   perante   a   morte:   Sim,   esse   grande   espírito   foi   ao   mesmo   tempo   um   bom  espírito;  esse  grande  coração  foi  também  um  bom  coração.”  (Trad.  Nossa)  288 Idem. Ibid., p. 606. “Charles não está aqui para se defender.” (Trad. Nossa) 289 Idem. Ibid., p. 596. “Um excêntrico ao grande talento.” (Trad. Nossa)

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A lenda se dilatará repentinamente, junto com as críticas virulentas, quando da morte do poeta após 17 meses de sofrimento, lúcido e possuindo plenamente suas capacidades intelectivas, mas preso a um corpo que não mais se exprime. Contudo, para além das lendas, difamações e incompreensão, da famosa carta que endereçou à sua mãe no verão de 1844, uma declaração pungente ecoa ainda até nós: “para minha infelicidade, não sou feito como os outros homens.”290

                                                                                                               290 Op. cit., 1973. p.108. Trata-se da famosa missiva endereçada à mãe no verão de 1844 para

tentar evitar o Conselho judicial.

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Minidicionário Saraiva: Espanhol-português, português-espanhol. – São Paulo: Saraiva, 2000.

Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0 RÓNAI, Paulo. Dicionário Francês-Português. Português-

Francês. Rio de Janeiro: Lexikon Editora Digital, 2007.

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Anexos

Anexo A Conversa com Jean-Paul Avice: colaborador e amigo de Claude Pichois.

Jean-Paul Avice, amigo e colaborador de Claude Pichois em vários livros e revistas dedicados a Charles Baudelaire (ver bibliografia abaixo), a exemplo de L’année Baudelaire, é bibliotecário adjunto da Bibliothèque historique de la Ville de Paris e specialista da obra do poeta. Os trechos dessa conversa (autorizados pelo amigo de Pichois) foram extraídos de dois mails que recebi em 3 e 6 de setembro de 2010, após solicitar a ajuda de Avice a respeito dos autógrafos e das edições da correspondência. 03 de setembro de 2010 Jean-Paul Avice: [...] Jérôme Thélot vous a transmis mon nom, et j'ai reçu hier un message de vous transmis par ma bibliothèque. Jérôme Thélot vous dit que j'ai été l'ami intime de Claude Pichois et que j'ai beaucoup travaillé avec lui dans ses dernières années, mais cela ne fait pas de moi un autre Claude Pichois hélas! Il y a bien d'autres spécialistes de Baudelaire. Si vous m'aviez demandé qui était maintenant le plus compétent concernant cette correspondance, je vous aurais renvoyé vers Jérôme Thélot, mais c'est vrai qu'il travaille maintenant sur bien autre chose. Je pourrais aussi vous donner le nom d'André Guyaux, professeur à la Sorbonne (Paris IV). Il a retrouvé une ou deux lettres inédites en Belgique ces dernières années. En ce qui concerne les autographes, il y en a un peu partout chez des collectionneurs privés puisque Baudelaire est un objet de spéculation en cette période de crise. Il s'est vendu en décembre une lettre, "la lettre du suicide" pour une vraie fortune (230 000 €). Elle a été acquise par le musée des manuscrits. Il y a aussi des lettres à la BnF et à la Bibliothèque littéraire Jacques Doucet. En ce qui concerne les reproductions on en trouve dans de nombreux catalogues de vente.

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Claude Pichois en possédait beaucoup en fac-smilé, mais le gros problème actuel pour moi est que ses dossiers qui ont été donnés avec sa bibliothèque à la Bibliothèque historique de la Ville de Paris où je travaille sont encore en caisse et ne seront pas traités avant peut-être 2011. Quels manuscrits, de quelles lettres cherchez-vous ? Je peux éplucher quelques catalogues de vente pour vous trouver des fac-similés, mais cela prend du temps et ma nouvelle direction cherche à m'occuper à tout autre chose que Baudelaire, hélas! 06 de setembro de 2010 Jean-Paul Avice (JPA): [...] d'abord, je vous remercie de n'être pas du tout d'accord avec Sartre à propos de Baudelaire. Le livre de Sartre sur Baudelaire est totalement détestable. Il reprend l'expression de Baudelaire à propos d'Hugo, pour dire que Baudelaire a le front penché, "tellement penché qu'il ne peut rien voir excepté son nombril". Et c'est totalement stupide, car le différence absolue entre les deux est que Baudelaire analyse lui son narcissisme, le narcissisme de l'écriture et le remet en cause, ce que ni Hugo, ni Sartre ne font.. Sartre nous dit à peu près: "Baudelaire est narcissique, ce n'est pas comme nous, ce n'est pas comme MOI, Sartre, que ne le suis pas..." Mais disant cela il étale son narcissisme. Sartre aurait mieux fait comme Baudelaire d'analyser son propre narcissisme au lieu de reprendre ce que Baudelaire nous avait livré du sien. Celui qui étale son narcissisme comme Baudelaire est plus près de la guérison car il a la "conscience dans le mal". Sartre est plutôt comme George Sand, et comme disait Baudelaire "le mal se connaissant est plus près de la guérison que le mal s'ignorant" ajoutant à peu près "De Sade supérieur à Sand", même si Baudelaire n'avait pas besoin de s'intéresser aux "saloperies" de Sade, connaissant le mal en lui-même comme il le disait à Poulet-Malassis. Je vous réponds sur Sartre car je l'ai lu, je ne vous réponds même pas sur Porché que j'ai jugé inutile de lire. [...] Vous savez sans doute qu'il y a aujourd'hui en France des écoles différentes dans la lecture de Baudelaire. Peut-être avez vous lu un article d'Antoine Compagnon sur les légendes de Baudelaire où il parle de ce qu'on pourrait dire "l'école Bonnefoy" de la lecture de Baudelaire. Il nomme dans cette école, John Jackson, Jérôme Thélot, Patrick Labarthe, c'est-à-dire mes amis. Il ne me nomme pas car je ne suis pas digne d'attirer son attention, mais je suis tout à fait de cette école, étant comme eux un grand ami d'Yves

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Bonnefoy. Je veux bien, malgré mon incompétence essayer de répondre à vos questions: Gilles Abes (GA): Je pense que Eugène Crépet, Jacques Crépet et Claude Pichois sont les principaux responsables de la publication (la plus sérieuse et complète) de la correspondance générale. Il me semble que l'on doit la correspondance à ces trois générations de chercheurs et passionnés de Baudelaire. Est-ce correct? JPA: Oui je suis tout à fait d'accord avec vous et je crois que tous les chercheurs du monde se réfèrent aux travaux de Claude Pichois qui a poursuivi l'oeuvre des Crépet. (Entre parenthèses, Pichois en fut l'héritier spirituel, et ma bibliothèque (la Bibliothèque historique de la Ville de Paris) a hérité par Pichois de la table de travail et des fauteuils d'Eugène Crépet, mais Jean Ziegler a découvert, très tard, je crois vers 30 ans ou plus qu'il était le fils de Jacques Crépet...) GA: Suis-je dans le vrai de choisir l'édition de 1973 (Pichois, Gallimard), plus celle de 2000 chez Fayard (Nouvelles lettres) pour ma traduction et ma thèse? JPA: Donc, oui, vous êtes dans le vrai, mais en fait Claude Pichois l'a corrigé au cours des années, et il considérait que 1973 était seulement la date de sa première édition. Quant aux Nouvelles lettres, il n'y en a pas encore d'autres éditions,. Je vous ai signalé que deux ou trois lettres ont été retrouvées depuis. On les trouve dans L'Année Baudelaire, Je pourrai vous donner les références ou vous en envoyer le texte si l'Année Baudelaire introuvable en France est aussi introuvable au Brésil... GA: Existe-t-il, à votre connaissance, une édition étrangère en français de la correspondance générale? JPA: Non je ne vois pas de quelle édition vous parlez, mais je ne vois pas comment quelqu'un aurait fait une édition sans s'appuyer sur les travaux de Claude Pichois. Claude Pichois n'interprétait pas. Il laissait chacun libre d'interpréter, mais il donnait à chacun le matériel qui permettait d'éviter de dire des bêtises dans l'interprétation. En ce qui concerne les manuscrits, l'édition de Pichois en donne la situation dans ses notes chaque fois qu'il les connaît. Mais comme je

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vous l'ai dit ces lettres sont très dispersées. [...] S'il s'agit de vous trouver quelques manuscrits de lettres pour illustrer votre thèse, je le pourrai peut-être, mais je ne peux me livrer à des recherches systmatiques dans tous les catalogues de vente, surtout que les papiers de Claude Pichois ne sont pas encore accessibles. Bibliografia AVICE, Jean-Claude; PICHOIS, Claude. Baudelaire, Paris. Paris: Ed. Paris Musées, 1994. AVICE, Jean-Claude; PICHOIS, Claude. Dictionnaire Baudelaire. Paris: Du Lérot, 2002. AVICE, Jean-Claude; PICHOIS, Claude. Passion Baudelaire: l’ivresse des images. Paris: Textuel, 2003. AVICE, Jean-Claude; PICHOIS, Claude. Les dessins de Baudelaire. Paris: Textuel, 2003. AVICE, Jean-Claude; PICHOIS, Claude. Baudelaire Paris, sans fin. Paris: Ed. Paris Musées, 2004.

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Anexo B

Lista de siglas encontras nas notas da tradução. BET – C. Pichois, Baudelaire. Études et témoignages. Neuchâtel, La Baconnière, [1967]. EB – Études baudelairiennes, publiées sous la direction de Marc Eigeldinger, Robert Kopp et Cl. Pichois, Neuchâtel, La Baconnière, depuis 1969. EJC – Baudelaire. Étude biographique d’Eugène Crépet revue et mis à jour par Jacques Crépet, Léon Vanier, A. Messein successeur, 1906; retirages. ICO – Iconographie de Charles Baudelaire, recueillie et commentée par Cl. Pichois et Fr. Ruchon, Genève, Pierre Cailler, 1960. LIS – Lettres inédites aux siens, p. p. Ph. Auserve, Grasset, [1966]. MF – Mercure de France. RHLF – Revue d’histoire littéraire de la France. RSH – Revue de sciences humaines, Lille.

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Anexo C

Relação das 95 cartas traduzidas:

1. A Alphonse Baudelaire - Paris, 9 de janeiro de 1832; 2. A Alphonse Baudelaire - 1° de fevereiro de 1832. Lyon; 3. A Alphonse Baudelaire - [Lyon, 3 de março de 1832]; 4. A Alphonse Baudelaire - Lyon. 1° de abril de 1832; 5. A Alphonse Baudelaire - [Lyon,] 25 de abril de 1832, quinta-feira; 6. A Alphose Baudelaire - [Lyon, 3 de julho de 1832.]; 7. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] Segunda-feira. 6 de agosto [1832]; 8. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] 6 de [setembro] de 1832; 9. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] Dia 9 de novembro de 1832; 10. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] Dia 15 de dezembro [1832]; 11. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] Dia 27 de dezembro [1832]; 12. A Alphonse Baudelaire - [Lyon, 30 de dezembro de 1832.]; 13. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] Dia 31 de janeiro de 1833; 14. A Alphonse Baudelaire - [Lyon, 12 de março de 1833.]; 15. A Alphonse Baudelaire - [Lyon, 25 de março de 1833.]; 16. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] Dia 17 de maio de [1833]; 17. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] Dia 12 de julho de 1833; 18. A Alphonse Baudelaire - Lyon, dia 22 de novembro de 1833; 19. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] Dia 23 de novembro de 1833; 20. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] 1° dia do ano novo 1834; 21. À Senhora Aupick - [Lyon.] Quinta-feira [6 de fevereiro de 1834 (?)]; 22. À Senhora Aupick - [Lyon, metade de fevereiro 1834 (?)]; 23. Ao Tenente-Coronel e à Senhora Aupick - Lyon, dia 25 de fevereiro [1834]; 24. A Alphonse Baudelaire - Lyon, dia 26 de fevereiro de 1834; 25. À Senhora Aupick - [Lyon.] Segunda-feira 24 de março [1834]; 26. À Senhora Aupick - [Lyon.] Dia 2 de maio [1834] à noite; a. A Alphonse Baudelaire da Senhora Aupick – 30 de junho de 1834; 27. À Senhora Aupick - [Lyon, 1834 ou 1835 (?).]; 28. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] Dia 20 de outubro de 1834; 29. À Senhora Aupick - [Lyon.] Dia 21 de Xbro a noite [1834.]; 30. A Alphonse Baudelaire - [Lyon,] 27 à noite [dezembro de 1834]; 31. A Alphonse Baudelaire - [Lyon, final de agosto ou início de setembro de 1835.];

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32. A Alphonse Baudelaire - [Lyon.] Dia 27 de Xbro de 1835; 33. A Alphonse Baudelaire - [Paris.] Dia 25 de fevereiro de 1836; 34. À Senhora Aupick - [Paris (?) 1837 (?).]; 35. À Senhora Aupick - [Paris,] 22 de março [1837]; 36. À Senhora Aupick - [Paris, 23 (?) de abril 1837 (?).]; 37. À Senhora Aupick - [Paris, final de junho (?) de 1837.]; 38. À Senhora Aupick - [Paris, sexta-feira 7 ou sábado 8 de julho de 1837(?).]; 39. À Senhora Aupick - [Paris, domingo 30 (?) julho de 1837.]; 40. À Senhora Aupick - [Paris, aproximadamente 15 de agosto de 1837.]; 41. A Alphonse Baudelaire - [Paris.] Quinta-feira 2 de novembro [1837]; 42. À Senhora Aupick - [Paris, segunda-feira 6 de novembro de 1837.]; 43. À Senhora Aupick - [Paris, 7 de novembro de 1837.]; 44. À Senhora Aupick - [Paris.] Terça-feira à noite [21 de novembro de 1837]; 45. À Senhora Aupick - [Paris, 5 de dezembro de 1837.]; 46. À Senhora Aupick - [Paris, 16 de dezembro de 1837.]; 47. À Senhora Aupick - [Paris, janeiro de 1838.]; 48. À Senhora Aupick - [Paris, fevereiro (?) 1838.]; 49. A Alphonse Baudelaire - [Paris, 5 de março de 1838.]; 50. À Senhora Aupick - [Paris, segunda quinzena de maio 1838.]; 51. À Senhora Aupick - [Paris, 24 de maio de 1838.]; 52. À Senhora Aupick - [Paris, aproximadamente 10 de junho de 1938.]; 53. À Senhora Aupick - [Paris.] Terça-feira [19 de junho de 1838]; 54. À Senhora Aupick - [Paris, 27 de junho de 1838.]; 55. À Senhora Aupick - [Paris, 2 de julho de 1838.]; 56. Ao Coronel Aupick - [Paris, 17 de julho de 1838.]; 57. À Senhora Aupick - [Paris,] 3 de agosto [1838]; 58. À Senhora Aupick - Paris, dia 23 de [agosto] de 1838; 59. A Alphonse Baudelaire - [Paris, 23 de agosto de 1838.]; 60. À Senhora Aupick - [Paris.] Nesta sexta-feira dia 19 de outubro [1838]; 61. A Alphonse Baudelaire - [Paris.] Terça [23 de outubro de 1838]; 62. À Senhora Aupick - [Paris, 3 (?) de dezembro de 1838.]; 63. A Alphonse Baudelaire - [Paris, 31 de dezembro de 1838.]; 64. Ao Coronel Aupick - [Paris,] 26 de fevereiro [1839];

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65. A [Jules Pierrot, Diretor do Louis-le-Grand] - [Paris,] 18 de abril de 1839; 66. A Alphonse Baudelaire - [Paris, aproximadamente dia 18 de maio de 1839.]; 67. À Senhora Aupick - [Paris.] Segunda-feira de manhã [10 (?) de junho de 1839.]; 68. Ao Coronel Aupick - [Paris, aproximadamente dia 18 de junho de 1839.]; 69. À Senhora Aupick - [Paris.] dia 3. Quarta-feira [julho de 1839.]; 70. Ao Coronel Aupick - [Paris.] Segunda-feira [8 ou 15 de julho de 1839]; 71. À Senhora Aupick - [Paris.] Terça-feira, 16 de julho de 1839; 72. Ao General Aupick - [Paris, 13 de agosto de 1839]; 73. A Alphonse Baudelaire - [Paris.] Sexta-feira 23 [agosto de 1839]; 74. A Alphonse Baudelaire - [Paris.] Quarta-feira [20 de novembro de 1839.]; 75. A Alphonse Baudelaire - [Paris, segunda-feira, 2 de dezembro de 1839.]; 76. A Alphonse Baudelaire - [Paris.] Terça-feira [3 de dezembro de 1839]; 77. A Victor Hugo - [Paris, terça-feira 25 de fevereiro de 1840.]; 78. A Alphonse Baudelaire - [Paris, 8 de agosto de 1840.]; 79. A Alphonse Baudelaire - [Paris, 1º de novembro de 1840.]; 80. A Alphonse Baudelaire - [Paris.] Quinta-feira. [31 de dezembro de 1840.]; 81. A Alphonse Baudelaire - [Paris.] Quarta-feira à noite [20 de janeiro de 1841]; b. Resposta à 81: De Alphonse Baudelaire a Charles - 25 de janeiro de 1841; 82. A Alphonse Baudelaire - [Paris, segunda-feira 1º de fevereiro de 1841.]; c. Resposta à 82: de Alphonse Baudelaire a Charles - 03 de fevereiro de 1841; d. Do General Aupick a Alphonse Baudelaire - 19 de abril de 1841; e. Resposta a uma nota: de Alphonse Baudelaire a Charles - 30 de abril de 1841; 83. À Senhora Aupick - [Creil, início de maio (?) 1841.]; 84. À Senhora Aupick - [Em mar.] Quarta-feira [9] de junho de 1841; 85. A Adolphe Autard de Bragard - [Ilha Bourbon.] Dia 20 de outubro de 1841;

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f. Ao General Aupick de Alphonse Baudelaire - 19 de janeiro de 1842; 86. Ao General Aupick - [Bordeaux,] 16 de fevereiro [1842]; 87. À Senhora Aupick - [Bordeaux,] 16 de fevereiro [1842]; 88. À Senhora Aupick - [Paris, 6 de maio de 1861.]; g. A Charles Asselineau da Senhora Aupick – 1868.

Final da seleção. _________

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Anexo D

Tradução das Cartas. (não disponível nesta tese).