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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO - PUCSPPrograma de Estudos Ps-Graduados em Comunicao e Semitica

    A CONSTRUO DA VIOLNCIA URBANANA REVISTAVEJA

    INGRID VALRIA LISBOA

    PUCSPSo Paulo 2007

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO - PUCSP Programa de Estudos Ps-Graduados em Comunicao e Semitica

    A CONSTRUO DA VIOLNCIA URBANA NA REVISTAVEJA

    INGRID VALRIA LISBOA

    Dissertao apresentada BancaExaminadora da Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre emComunicao e Semitica, rea deconcentrao Signo e Significao nasMdias, sob a orientao do Prof. Dr. JosLuiz Aidar Prado.

    PUCSPSo Paulo 2007

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    FOLHA DE APROVAO DA BANCA EXAMINADORA

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    A Rubens Antonio Alves, ouvinte atento e paciente,fiel companheiro de todas as horas.

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    RESUMO

    Esta dissertao analisa discursivamente como a revista semanalVeja constri a

    temtica da violncia urbana. So considerados atos de violncia urbana brigas,acidentes de trnsito, roubos, furtos e seqestros, seguidos ou no de mortes. Foramestudadas as reportagens de capa que se inscrevem nesta temtica, seja por discorrersobre crimes que tiveram grande visibilidade mditica como seqestros eassassinatos, seja por relacionar a violncia urbana a temas scio-econmicos comoa pobreza e a segurana pblica, no perodo de 1968 a dezembro de 2005. Utilizandoa semitica discursiva, a pesquisa analisou comoVeja constri os temas e as figurasda violncia e da criminalidade urbanas; delineou, sob a perspectiva do enunciadorda revista, quais so as causas e as solues para o problema da violncia urbana(fatores histricos e sociais); investigou os contratos de comunicao estabelecidos

    entre a revista e seus leitores; do ponto de vista narrativo, delineou quais so ossujeitos e seus objetos de valor, e como estes sujeitos so modalizados; e traou o percurso passional dos sujeitos da narrativa, que paixes os movem: seus medos,atitudes, temores e crenas no tocante questo da violncia.

    Palavras-chave: violncia urbana, revistaVeja , mdia semanal.

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    ABSTRACT

    This dissertation analysis how the weekly magazineVeja builds the urban violencethematic. Fights, traffic accidents, robberies, thefts and kidnapping are consideredacts of urban violence, probably followed by death. Studies were carried out oncover stories that fit in this thematic, some because of the interest on crimes that had big media coverage such as kidnappings and murders, some because it relates urbanviolence to social-economical themes such as poverty and public security, during the period of 1968 to December 2005. Using the semiotics theory (Denis Bertrand, JosLuiz Fiorin, Eric Landowski, Ana Claudia de Oliveira e Diana Luz Pessoa deBarros), research analyzed howVeja builds the theme and the figures of urbanviolence and criminality; outlined, under the magazine enunciators perspective,which are the causes and solutions for the urban violence problem (historical andsocial factors); investigated the communication contracts established between themagazine and its readers; from the narrative point of view, outlined who the subjectsand their objects of value are, and how these subjects are modalized; and marked outthe passional path of the narrative subjects, what passions move them: their fears,attitudes, threats and believes related to the question of violence.

    Key words: urban violence,Veja magazine, weekly media.

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    SUMRIO

    Introduo .................................................................................................. 1A revistaVeja ............................................................................................. 3

    Corpus e quadro terico de referncia ....................................................... 10Definies e caractersticas da classe mdia brasileira .............................. 14Parte 1 A violncia em questo ............................................................... 211.1. Historicidade e cotidianidade da violncia .......................................... 241.2. Contornos de uma sociedade do risco ................................................. 301.3. A construo da identidade na sociedade do risco .............................. 351.4. Misria gera violncia? ........................................................................ 401.5. Seletividade e vulnerabilidade social ................................................... 431.6. Planejamento urbano e violncia ......................................................... 531.7. Mdia e violncia .................................................................................. 57Parte 2 A violncia urbana na revistaVeja ............................................. 622.1. Apresentao docorpus ....................................................................... 632.2. O plano da expresso das capas deVeja .............................................. 722.3. Anlises das capas e reportagens ......................................................... 78

    2.3.1. Grupo 1 Ameaa s metrpoles ..................................................... 782.3.2. Grupo 2 A violncia ameaa a classe mdia .................................. 1172.3.3. Grupo 3 Classe mdia: vtima da violncia ................................... 1412.3.4. Grupo 4 Pobreza e criminalidade lado a lado ................................ 1662.3.5. Grupo 5 Os crimes da classe mdia ............................................... 1873. Concluso ................................................................................................ 1994. Bibliografia ............................................................................................. 208Anexo 1 Estatsticas sobre violncia urbana ............................................ 214

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    Introduo

    Esta dissertao analisa como a revista semanalVeja constri a temtica daviolncia urbana. Foram estudadas as reportagens de capa que se inscrevem atualmente

    nesta temtica, seja por discorrer sobre crimes que tiveram grande visibilidademditica, como seqestros e assassinatos, seja por relacionar a violncia urbana a temasscio-econmicos como a pobreza e a segurana pblica, no perodo de 1968 a 2005.

    A pesquisa analisou discursivamente como a revista constri os temas e asfiguras da violncia e da criminalidade urbanas; delineou, sob a perspectiva doenunciador da semanal, quais so as causas e as solues para o problema da violnciaurbana (fatores histricos e sociais); investigou o contrato de comunicao estabelecidoentre Veja e seus leitores; do ponto de vista narrativo, delineou quais so os sujeitos e

    seus objetos de valor, e como estes sujeitos so modalizados; bem como o percurso passional destes sujeitos, que paixes os movem: seus medos, atitudes, temores ecrenas no tocante questo da violncia.

    A escolha do tema violncia urbana deve-se a sua relevncia enquanto problemaque suscita discusses desde o mbito poltico-social at o educacional, tanto em pasesdesenvolvidos quanto nos em desenvolvimento. Conforme anota Hermes Ferraz (1994),a preocupao global, faz parte do calendrio poltico de todas as naes, desdeaquelas onde a violncia j tomou conta de suas cidades, aambarcando grande parte

    das decises polticas, das tcnicas, e tambm dos investimentos, at aquelas naescujas cidades ainda no esto sofrendo desse terrvel sinistro (p. 9).

    Especialmente nos centros urbanos brasileiros, o tema tem merecido a atenono somente de organizaes no-governamentais ou das instituies pblicasresponsveis pelo controle da violncia, mas tambm dos meios de comunicao e da populao como um todo. O medo de ser assaltado ou de sofrer um seqestro relmpagoaflige pessoas de todas as classes e de todos os bairros. Jovens, idosos e crianas temema violncia e a mdia a discute como assunto corrente. No entanto, a crescente preocupao das pessoas com a violncia urbana e o sentimento de insegurana que pauta as discusses sobre o seu suposto aumento nem sempre repousam sobreexperincias diretas. No mais das vezes, teme-se um seqestro relmpago ou um assalto por conta do que j se leu ou assistiu nos jornais e revistas, ou do que se ouviu de pessoas que j sofreram os crimes. Dessa forma, entendemos como relevante analisarcomo a revista semanal de maior circulao no Brasil constri a violncia urbana, dada

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    a importncia dos critrios de escolha dos assuntos a serem tratados e da forma deabordagem.

    fato, segundo as estatsticas coletadas no Anexo 1, que a violncia e acriminalidade cresceram especialmente nas trs ltimas dcadas. Argumentamos,

    porm, que mesmo tendo aumentado a partir de meados da dcada de 1970, e durante osanos 1980 e 1990, a criminalidade violenta no evoluiu para os patamaresestratosfricos alardeados pela mdia semanal, conforme indicado nas capas ereportagens analisadas, de onde se depreende, em linhas gerais, que as grandes cidades brasileiras so vtimas de um caos urbano, de um crescimento vertiginoso da violnciaque motivou mudanas radicais de comportamento e de estados de alma especialmentena classe mdia. Afirmamos, noutro sentido, que a visibilidade queVeja d aofenmeno da violncia no corresponde a sua existncia factual, mesmo consideradas as

    estatsticas e a questo das configuraes especficas de risco e perigo na modernidade(ver itemContornos de uma sociedade do risco).

    As capas deVeja nas edies n 340 e n 1093 (abaixo), por exemplo, alardeiamuma violncia desmedida e fomentam medo e ansiedade. Na primeira capa, a personagem que figurativiza a vtima emite um grito de socorro, diante do que seriaum dos assaltos mais violentos que ocorrem a cada 40 minutos nas grandes cidades brasileiras. Na segunda, o enunciador anuncia o risco de ser seqestrado como ummotivador de medo. Ou seja, ainda que no vitimizados por assalto ou seqestro, os

    leitores identificam-se com o risco apresentado.

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    A visibilidade miditica, longe de esvaecer o clima de tenso causado pela prpria existncia histrica da violncia, especialmente em tempos de modernidadetardia, parece consolid-lo. Ora, ainda que em trajetria de crescimento em diversos dos perodos histricos (vide Anexo 1), no se trata de evoluo desmedida, para patamares

    to elevados que se mostrem incontrolveis pelas autoridades responsveis. Em resumo,nossa argumentao vai no sentido de afirmar que o aumento da violncia e dacriminalidade certamente um fato, a despeito de sua prpria historicidade (assuntodiscutido na Parte 1), mas a visibilidade que a mdia semanal d ao fenmeno emesmo a passionalizao construda no corresponde a estes dados, superando-os.

    Tal afirmao no pretende ignorar ou deslindar a existncia de comportamentosde autodefesa e da crescente e perene sensao de medo e pnico nos indivduos. Anosso ver, as alteraes de hbitos e comportamentos das sociedades, real ou

    potencialmente atingidas pela violncia urbana, relacionam-se mais s reaes deadaptao ao risco e ao perigo na modernidade (conforme discutiremos na Parte 1).

    Neste sentido, cabe questionar: a mdia um mecanismo reflexivo que,alimentado pela sensao de insegurana e perigo, fomenta mais insegurana e medoem seus textos? Ou, nos termos de Ulrich Beck (1998), encara os perigos e riscos comooportunidade de mercado e se beneficia deles, produzindo definies de risco nummundo em que cresce o significado social e poltico do saber, e conseqentemente, o poder dos meios que configuram e difundem os riscos da modernidade?

    A revistaVeja

    A importncia da escolha deVejacomo objeto de estudo justifica-se pelo fato deo discurso da revista no figurar como um entre outros da oferta mercadolgica damdia semanal, tampouco da imprensa como um todo. Acreditamos queVejano umarevista entre outras disponveis nas bancas de jornal s quais os leitores escolhem pormero acaso ou porque a matria de capa lhes parea interessante, mas que se compra ese l Veja exatamente por ela ser relevante como formadora de opinio no Brasil. Nas palavras de Maria Celeste Mira (2003), trata-se da maior e mais polmica revista brasileira, que se tornou uma revista de amplitude nacional exatamente por suaatuao poltica (p. 75/80). A autora, ao discorrer sobre o posicionamento ideolgicode Veja, afirma que de fato se trata de uma revista de opinio, bastante polmica, e

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    considera que, ao selecionar, organizar e enunciar as notcias de uma maneira queaparece como objetivista e impessoal (segundo rezam as regras de jornalismodispostas em inmeros livros e manuais de redao),Veja apresenta ao leitor umacobertura aparentemente neutra dos fatos noticiosos. No se trata, porm, de um veculo

    neutro, destitudo de posicionamento social e poltico, mas politicamente posicionado. interessante notar o que diz a prpria revista a este respeito. No material

    publicitrio disposto no site www.veja.com.br em junho de 2006 afirma-se que osnmeros comprovam a afinada relao existente entre aVeja e seus leitores: 59%declaram quea revista contribui para a formao de opinio e 87% dos assinantestm na revista umelemento de integrao social , pois seus assuntos so discutidoscom outras pessoas1 (grifos nossos). Pode-se afirmar, de fato, que a cobertura dada porVeja aos fatos noticiosos partilhada pelos leitores, que seu discurso pauta parte das

    discusses mantidas por estes.Veja se coloca como uma instncia de dilogo quecatalisa e coloca em confronto discursos correntes na sociedade. Afirma que os cerca de7.950.000 leitores que tem no Brasil2, os quais acessam semanalmente a maior e maisqualificada cobertura do Brasil, podem ficar bem informados e confiar plenamente nasinformaes oferecidas, pois a relao queVeja tem com eles de total confiana.Desde o editorial, que se diz baseado em independncia, confiabilidade e compromissocom o leitor at as matrias jornalsticas, pode-se contar, segundo a prpria revista,com uma linguagem clara e atraente, gostosa de ser lida.

    Atualmente, circulam no Brasil quase 1,1 milho de exemplares deVeja a cadasemana, dos quais 83% destinados a assinantes3. Do total de revistas em circulao, 661mil (58%) so vendidos na regio Sudeste, que concentra boa parte da renda do pas4. O perfil do leitor 5 mostra que 26% dos leitores so da classe A, 41% da B e 23% da C, ouseja, 64% dos leitores deVeja so indivduos de classe mdia6. Segundo a publicao A Revista no Brasil (2000), da Editora Abril,Veja adentrou o ano 2000 como a quartamaior revista semanal de notcias do mundo ao atingir picos de 1,7 milho de

    1 Dados provenientes da Pesquisa de Relacionamento com Revistas, elaborada pela empresa ResearchInternational. Segundo o site deVeja trata-se de um projeto exclusivo realizado pela Editora Abril e umdos maiores institutos de pesquisa do mundo. Os dados mostram que pelo menos mais 3 pessoas tmacesso a cada exemplar.2 Fonte: Projeo Brasil. Editora Abril. Base Marplan e IVC (Instituto Verificador de Circulao) - 20053 Fonte: IVC janeiro de 2006.4 Os dados do site deVeja so de fevereiro de 2004, relativos a pesquisa do IVC.5 Fonte: Dados do XLVI Estudos Marplan Consolidado 2003.6 A terminologiaclasse mdia ser definida no final desta Introduo.

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    exemplares semanais, ficando atrs apenas de gigantes do mercado editorial mundialcomoTime, Newsweeke US. News (p. 62).

    Nem sempre, porm,Veja foi um sucesso editorial. Lanada num momentohistrico conturbado tanto no Brasil quanto no resto do mundo setembro de 1968,

    ainda perodo de linha dura do governo militar nos moldes da norte-americanaTime,a revista se propunha a ser grandiosa e atingir leitores em todo o Brasil, com umacobertura diferenciada e mundializada dos fatos noticiosos. A primeiraCarta ao Leitorescrita por Victor Civita remetia ao clima de integrao nacional que segundo M.C.Mira (2003) imperava na poca, o da idia de um Brasil que precisava integrar suas partes mais atrasadas s mais avanadas, por uma questo de segurana, na viso dosmilitares, e pela necessidade de modernizao, no entendimento dos empresrios (p.78). Seguem a capa e trecho do editorial da primeira edio:

    O objetivo deVeja e de Civita, porm, demorou a ser alcanado. Conformecomenta Marlia Scalzo (2004), a revista lutou com dificuldade, durante sete anos,contra os prejuzos e contra a censura do governo militar, at acertar sua frmula (p.31). Do ponto de vista financeiro, a semanal deu prejuzo Editora Abril durante os

    cinco primeiros anos. Quando comeou a ser editada, a previso era de que fosse umsucesso desde o incio, vendendo cerca de 700 mil exemplares semanais, todos em banca. A campanha publicitria de lanamento custou um milho de dlares. O ex-editor deVeja Raimundo Pereira conta7 que a Editora Abril custeou uma rede nacional

    7 Edio especial de setembro de 1972, no 4 aniversrio deVeja Uma histria deVeja. Reflexes deum dia de aniversrio.

    Onde quer que voc esteja, na vastido do territrio brasileiro, estar lendo estas linhas praticamente aomesmo tempo em que todos os demais brasileiros do pas. (...) O Brasil no pode mais ser o velhoarquiplago separado pela distncia, o espaogeogrfico, a ignorncia, os preconceitos e osregionalismos: precisa de informao a fim de escolhernovos rumos. Precisa saber o que est acontecendo nasfronteiras da cincia, da tecnologia e da arte no mundo

    inteiro. Precisa acompanhar o extraordinriodesenvolvimento dos negcios, da educao, doesporte, da religio. Precisa estar, enfim, beminformado. E este o objetivo deVeja.

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    com quase todas as emissoras do pas para veicular, durante 12 minutos, em horrionobre, imagens da produo deVeja, juntamente com declaraes de personalidadesque iam do cantor Agnaldo Rayol ao presidente do Conselho de Segurana daOrganizao das Naes Unidas - ONU.

    A editora montou ainda um indito esquema de distribuio. Uma grande frotade nibus, caminhes, avies e trens foi mobilizada para queVeja chegasse s bancasem praticamente todos os municpios brasileiros na segunda-feira. Desde ento vigoraum esquema logstico responsvel por fazer uma edio fechada na manh de sbadochegar ainda neste dia, ou no domingo, nas grandes cidades do pas. No entanto, todoeste investimento redundou em pouco resultado financeiro imediato.

    Dados levantados por Mira (2003) mostram que as vendas foram despencandodos 650 mil exemplares da primeira edio para cerca de vinte mil unidades nos

    primeiros anos, situao dramtica para uma revista da Editora Abril (p. 80). Dosvinte primeiros nmeros, por exemplo, foram vendidos somente 16 mil semanais, a ponto de o departamento de publicidade oferecer um anncio gratuito na contracapa darevista, por falta de clientes no dia do fechamento. Numa das tentativas de alavancar asvendas, foram editados oito fascculos sobre a viagem do homem Lua, os quaisaumentaram a circulao, atingindo a marca de 228 mil exemplares na ltima edio. No entanto, assim que a srie foi completada as vendas despencaram novamente.Segundo Mira, o principal motivo para o fracasso inicial deVeja foi

    a decepo dos leitores, que esperavam uma revista diferente. O prprio nome faziasupor que ela seria semelhante a Look [semanal norte-americana]. (...) A campanha delanamento dera a entender que a Abril estaria lanando a sua Manchete, ou seja, umarevista semanal ilustrada, quando o que se pretendia lanar era uma revista semanal deinformao, semelhante aTimee Newsweek . (...)Veja se apresentou como uma revistacalcada no texto e sem preocupaes visuais. Os leitores no gostaram (idem, p.82/85).

    De fato, alm de no prezar pelos aspectos visuais fotografia e diagramao o formato deVeja era praticamente metade do tamanho de Manchete. Na verdade, a proposta de lanar uma semanal ilustrada ao estilo Manchete, e no de informao, foicogitada pela Editora Abril. No entanto, Roberto Civita convenceu-se de que a revistailustrada no sobreviveria muito tempo. De certa forma, a deciso foi acertada, pois

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    todas as semanais ilustradas norte-americanas ( Look, Life, Saturday Evening Post ) pararam de circular no incio dos anos 1970.

    No entanto, para sobreviver,Veja teve de se adaptar e fazer alteraes graduais,embora no tenha abandonado o modeloTime. M.C. Mira conta queVeja enfrentou

    uma difcil adaptao do modeloTime tradio jornalstica brasileira e aos hbitos deleitura do pblico, pois mais do que as que lhe antecederam, a revistaVeja constituium bom exemplo das tenses entre o global e o nacional (idem, p. 80).

    Do ponto de vista editorial, Mrio Srgio Conti (1999) afirma que adiagramao inicial era confusa, e as reportagens, prolixas. Lentamente, Mino Carta[diretor de redao] melhorou-a. Chamou Millr Fernandes para fazer duas pginas dehumor. Publicou resenhas de filmes e livros. Colocou na abertura da revista umaentrevista com perguntas e respostas (p. 369), de forma a melhorar a visualidade e os

    aspectos editoriais da publicao. O diretor de redao, Mino Carta, afirmou8 anosdepois sobre a primeira edio deVeja:

    Quando esse nmero comeou a sair das mquinas e quando eu comecei a ver o primeiro caderno, fui tomado de uma profunda sensao de pnico. Porque a ficouclaro que estava tudo errado. (...) E devo tambm confessar que naveguei na mais totalescurido por muito tempo.

    M.C. Mira (2003) conta que o desapontamento dos leitores com a primeiraedio deVeja ficou patente numa pesquisa encomendada pela Abril com empresrios euniversitrios do Rio de Janeiro e So Paulo. Segundo a autora, o principal problemaapontado era a falta de hbito de leitura de revistas de informao, havendo necessidadede induz-lo. Por outro lado, havia problemas de diagramao e visualidade. AfirmaMira que gradativamente

    Veja ir aprimorando seu projeto grfico e ampliando o uso de fotografia e de cores.

    No poderia ter sucesso, mesmo sem concorrer diretamente com a televiso, se notrouxesse imagens dos fatos relatados. Mesmo entre os universitrios, segmento em quea revista era mais bem aceita, reclamava-se da falta de ilustrao. (p. 85)

    8 Na edio especial de setembro de 1972 Uma histria deVeja. Reflexes de um dia de aniversrio.

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    Alm destas mudanas, gradualmente foram feitas alteraes editoriais,especialmente na linguagem e no esquema de trabalho e funes dos jornalistas. Porm,em seu quarto ano de circulao, quandoVeja consegue vrias entrevistas sobre ademorada sucesso de Costa e Silva com fontes consideradas inatingveis, passa a ter

    um papel poltico diferenciado, de maior intimidade com os meandros do poder (M.C.Mira, idem, p. 77). Aps o episdio, a sub-editoria de poltica se transformou emeditoria e ampliou-se a cobertura de economia e negcios. Segundo Srgio Pompeu deSouza, ento diretor da sucursal de Braslia, o fortalecimento desses dois setores deu revista imediatamente o carter nacional que ela antes perseguia de uma forma totrabalhosa quanto ineficiente9. No entanto, a grande medida para alavancar a tiragemde Veja foi a venda de assinaturas, fazendo com que a circulao comeasse a crescerconsistentemente a partir de 1971. Especialmente a partir de 1973, a tiragem cresce sem

    parar por conta tambm das alteraes editoriais e grficas. Porm, somente em 1974Veja comea a dar lucro.

    Do ponto de vista poltico, M.S. Conti (1999) conta que trs meses depois dolanamento deVeja, ocorrido em setembro de 1968, o ento presidente Costa e Silvaeditou o Ato Institucional n 5, fechou o Congresso e, no mesmo dia (13/12/1968),enviou um coronel redao da semanal, encarregado de fazer a censura prvia.Durante os oito anos de censura, dois exemplares deVeja foram proibidos de circular.

    Foi durante o perodo em que tentava driblar a censura e publicava reportagens

    crticas em relao ditadura que o diretor de redao Mino Carta, cuja autonomiaeditorial estava prevista contratualmente, saiu deVeja no incio de 1976. Isso porque,inicialmente, a revista se colocava contra as arbitrariedades do perodo militar sem queos Civita interferissem (poderiam discutir cada edio somente aps a publicao). Noentanto, em 1974, Victor Civita, interessado em tomar um emprstimo de cinquentamilhes de dlares junto Caixa Econmica Federal para expanso do Grupo Abril, noconseguia efetiv-lo porque dependia da aprovao dos militares. Estes, incomodadoscom a cobertura crtica ao governo federal conduzida por Mino Carta, barravam asliberaes, a despeito do cumprimento dos trmites legais, conforme conta o entodiretor de redao (2000, p. 172).

    Quatro ministros do presidente Ernesto Geisel pediram a Roberto Civita quedemitisse Mino Carta. O ministro da Justia, Armando Falco, chegou a sugerir o nome

    9 Trecho da edio especial de setembro de 1972 Uma histria deVeja... Ob. cit.

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    79), passando a partir de meados da dcada de 1970 a uma posio mais conservadora,aps presso do governo.

    Apesar de todos os percalos,Vejaatingiu o posto de magazine mais lida e maisvendida no Brasil. Segundo Marlia Scalzo (2004), fora do pas as semanais so bastante

    vendidas, mas no figuram no topo da lista, espao geralmente das revistas de televiso.Outras semanais de informao vieram antes e depois deVeja: Viso em 1952, Istoem1976, Afinal,que circulou somente de 1984 a 1989, poca, em 1998, eCarta Capital ,editada desde 1993 (que inicialmente era mensal, depois quinzenal, passando a semanalem 2001). Nenhuma, porm, foi capaz de, ideolgica ou financeiramente, alcanar o posto deVeja. Os objetivos elencados por Victor Civita naCarta ao Leitor da primeiraedio permanecem, apesar das alteraes efetuadas ao longo das dcadas, conforme pode-se verificar no trecho do contedo editorial em que Roberto Civita apresenta a

    misso deVeja11:

    Nossa misso: ser a maior e mais respeitada revista do Brasil. Ser a principal publicao brasileira em todos os sentidos. No apenas em circulao, faturamento publicitrio, assinantes, qualidade, competncia jornalstica, mas tambm em suainsistncia na necessidade de consertar, reformular, repensar e reformar o Brasil. Essa a misso da revista. Ela existe para que os leitores entendam melhor o mundo em quevivemos.

    Corpus e quadro terico de referncia

    Conforme disposto acima, propomos comocorpus o estudo das capas ereportagens de capa que discorram sobre crimes inseridos no contexto da violnciaurbana ou relacionem a temtica a outros temas scio-econmicos no perodo de 1968(incio da veiculao deVeja) a dezembro de 2005. Como critrio geral, no sero

    analisadas matrias que no figuraram na capa. A opo de estudar a revista desde oincio de suas edies trar a possibilidade de analisar as significaes construdas aolongo do tempo e assim examinar diacronicamente as estratgias discursivas e oscontratos de comunicao propostos aos leitores.

    11 O contedo editorial deVeja foi obtido no site www.veja.com.br.

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    O quadro terico de referncia aponta, na discusso sobre a temtica daviolncia urbana, a abordagem de estudiosos do mbito social como Alba Zaluar,Hermes Ferraz, Ives Michaud, Paulo Srgio Pinheiro, Edmundo Campos, SrgioAdorno, Nancy Cardia, Rgis de Morais; pesquisadores que relacionam a violncia

    mdia impressa, como Maria Victoria Benevides e Ceclia Coimbra; e autores quediscutiram a violncia em perodos passados, como Hannah Arendt, Jean ClaudeChesnais e Geoges Sorel.

    Do ponto de vista da anlise textual utilizaremos a semitica discursiva,conforme abordada nas obras de Denis Bertrand, Jos Luiz Fiorin, Eric Landowski, AnaClaudia de Oliveira e Diana Luz Pessoa de Barros. Conforme afirma D. Bertrand(2003), enquanto teoria da significao, o objeto da semitica o sentido, maisespecificamente o parecer do sentido, que se apreende por meio das formas da

    linguagem e, mais concretamente, dos discursos que o manifestam, tornando-ocomunicvel e partilhvel (p. 11). A revista semanal de informaes, objeto sincrtico,inscreve-se no tipo de texto que pode ser analisado pela semitica discursiva, a fim deestudar suas estruturas significantes, as quais modelam um discurso social especfico.

    Seguem abaixo os conceitos semiticos que sero utilizados.

    No plano da expresso, partimos do entendimento de Ana C. de Oliveira(2004) de que os formantes plsticos so unidades do plano da

    expresso que, quanto sua identificao, podem corresponder a uma oumais unidades do plano do contedo (p. 120). Sendo assim, nosapoiaremos nas categorias da expresso a fim de determinar a funo dosformantes na cadeia significante e, assim, operar as homologaes com o plano do contedo.

    na dimenso eidtica sero analisadas as categoriasvertical/horizontal e perpendicular/ diagonal da disposio dasfiguras e dos textos verbais, para chegarmos simetria entre estescomponentes;

    na dimenso cromtica, sero analisadas as composies dascores e suas polarizaes em termos de claro vs escuro, luminosovs sombrio;

    na dimenso matrica, ser abordada a fisicalidade da revista,como o tamanho e a qualidade do papel;

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    na dimenso topolgica, ser analisada de que maneira adistribuio dos componentes identificados acima se d e, comisso, faz depreender determinados efeitos de sentido.

    No plano do contedo nos apoiaremos nos conceitos de: tematizao/ figurativizao, os quais nos parecem ser essenciais para o estudo das formas pelas quais a revista utiliza figuras domundo natural/sensvel para atribuir significaes ao tema tratadona matria;

    operaes enunciativas de embreagem/ debreagem, por permitirem a anlise de como o enunciador se coloca e se retirado discurso enunciado, assim como a maneira pela qual o

    enunciador se relaciona com o enunciatrio, determinando o tipode interao ocorrida entre eles;

    modalizaes ou modalidades, definidas segundo Diana L. P. deBarros (2003, p. 88) como a determinao que modifica arelao do sujeito com os valores (modalizao do ser) ou quequalifica a relao do sujeito com o seu fazer (modalizao dofazer) dentro da narrativa textual. Ou, como definesumariamente Bertrand (2003, p. 313), trata-se de um enunciado

    que modifica outro enunciado. As modalidades fundamentais dasemitica dever, querer, saber e poder , que podem combinar-se entre si (querer saber) ou ainda modalizarem-se a si prprias(querer querer), sero aplicadas neste trabalho paracompreenso dos valores dos sujeitos das narrativas, daidentidade modal destes;

    o percurso passional ou patmico dos sujeitos da narrativa, as paixes que do ponto de vista da semitica so entendidas comoefeitos de sentido de qualificaes modais que, na narrativa,modificam a relao do sujeito com os valores (Barros, 2002, p.88). Um estado dequerer-ser , por exemplo, pode produzir efeitode sentido de ambio do sujeito. O estudo do percurso passionalse coloca relevante para este estudo pois, conforme afirma DianaL. P. de Barros, numa narrativa, o sujeito segue um percurso, ou

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    seja, ocupa diferentes posies passionais, saltando de estados detenso e de disforia para estados de relaxamento e de euforia, evice-versa (idem, p. 47);

    contrato de leitura entre os sujeitos da enunciao, o qual,

    firmado explcita ou implicitamente, segundo D. Bertrand omecanismo que promove, assume e garante o universo devalores de referncia que circula textualmente (2003, p. 41);

    as axiologias do nvel fundamental do percurso gerativo dosentido, que nos daro os valores inscritos no texto. Aqui,especialmente as categorias tmicas de euforia/disforia, as quaiscircunscrevem os valores considerados positivos e negativos, podero elucidar de que formaVeja se posiciona frente temtica

    da violncia urbana. Conforme anota J. L. Fiorin (2000), euforiae disforia no so valores determinados pelo sistema axiolgicodo leitor, mas esto inscritos no texto (p. 20);

    o conceito de isotopia, que nos parece relevante para o estudo pois se trata do mecanismo que garante coerncia ao texto eorienta a leitura pelo enunciatrio. Nestes termos J. L. Fiorindefine a isotopia: a reiterao, a redundncia, a repetio, a recorrncia de traos semnticos ao longo do discurso. (...) Para o

    leitor, a isotopia oferece um plano de leitura, determina um modode ler o texto (idem, p. 81). Tais reiteraes e redundncias,sejam temticas ou figurativas, nos levaro s marcas textuaisrecorrentes, s constantes discursivas que no somente docoerncia ao texto e/ou orientam sua leitura, mas permitem aapreenso das significaes textuais;

    E o conceito de simulacro, que ser utilizado nesta dissertaosegundo definio do Dicionrio de Semitica de A. J. Greimas eJ. Courts, acepo 1:

    De maneira algo metafrica, se emprega o termo simulacro emsemitica narrativa e discursiva, para designar o tipo de figurasdo componente modal e temtico, com ajuda das quais osactantes da enunciao se deixam apreender mutuamente, umavez projetados no marco do discurso enunciado. Deste ponto de

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    vista, essas figuras podem ser consideradas representativas dascompetncias respectivas que se atribuem reciprocamente osactantes da comunicao. Por isso intervm necessariamente deantemo a todo programa de manipulao intersubjetiva, aconstruo de tais simulacros na dimenso cognitiva (p. 232).

    Pode-se, ento, pela definio de Greimas e Courts, afirmar queo conceito de simulacro est na base da concepo de identidadede todo destinador, considerando-se, evidentemente, que estestraos semnticos dos quais os sujeitos da enunciao se investem podem ser colocados em discurso de formas diversas, ditadas pelas normas sociais vigentes, grupo social, lugar e poca em quea comunicao ora se d.

    Definies e caractersticas da classe mdia brasileira

    Neste item, procederemos definio conceitual e ao delineamento dascaractersticas da parcela da populao inserida na terminologiaclasse mdia.Acreditamos que a discusso seja necessria por conta de a classe mdia ser o principal

    pblico leitor deVeja, bem como pela relao prxima que a semanal afirma mantercom estes leitores. Bernardo Kucinski (1998), ao discorrer sobre o papel das revistassemanais as relaciona a esta parcela populacional afirmando que

    Essas revistas tm exercido um papel fundamentalmente ideolgico, captando,reprocessando e realimentando os temores das classes mdias. So muito ligadas a seu pblico, que nesse caso no formado pelos prprios protagonistas das notcias e sim por uma classe mdia em constante processo de mutao, ora se enriquecendo, ora seempobrecendo, conforme o andar das crises econmicas. (p. 33)

    Para as definies, ser utilizado o primeiro volume do Atlas da EstratificaoSocial no Brasil , de M. Pochmann e outros (2006). Optamos pela utilizao destetrabalho por ele trazer, do ponto de vista econmico, um mapeamento histrico daclasse mdia brasileira, necessrio para a compreenso do perfil desta parcela da

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    populao nas dcadas de 1970 e 1980, bem como de suas caractersticas na atualidade.Pochmann utiliza a seguinte definio como referncia conceitual da classe mdia:

    O conjunto demogrfico que, embora com relativamente pouca propriedade, destaca-se

    por posies altas e intermedirias tanto na estrutura scio-ocupacional como nadistribuio pessoal da renda e riqueza. Por conseqncia, a classe mdia termina sendoreconhecida como portadora de autoridade e status social reconhecidos, bem comoavantajado padro de consumo. (p. 16)

    O conjunto da classe mdia se subdivide em classe mdia alta (executivos,gerentes, administradores e similares), mdia classe mdia (postos de trabalho centraisda burocracia privada e pblica, ocupaes tcnico-cientficas, entre outros) e baixaclasse mdia (professores, vendedores, lojistas etc). Incluem-se na denominao geralda classe mdia os rentistas financeiros, pessoas vinculadas previdncia social, proprietrios ou arrendatrios de imveis e os portadores de renda via herana.

    Em relao s caractersticas histricas desta parcela da populao, M.Pochmann afirma que a dimenso e a manifestao da classe mdia se tornaram maisevidentes a partir do desenvolvimento capitalista (idem, p. 20), pois, antes deste, haviaum pequeno segmento demogrfico vinculado aos nveis de renda intermedirios. Coma expanso do modo capitalista de produo, pde-se efetivar a constituio de uma

    camada social intermediria. No Brasil, afirma Pochamnn que a classe mdia foi umcorpo ausente durante o Brasil colonial (idem, p. 27), especialmente por conta dascaractersticas do sistema econmico da poca e da escravido, de forma que somentenos perodos da Independncia e da Repblica desenvolveram-se as condieseconmicas potenciais para o aparecimento de grupos sociais novos e distintos dosanteriores. Ainda assim, o autor salienta que as bases econmicas para odesenvolvimento da classe mdia surgem somente a partir de 1930, por conta docrescimento dos empregos assalariados de novos tipos e de mais alto rendimento,

    vinculados aos projetos de urbanizao e industrializao das cidades. Nesta fase de constituio de uma classe mdia urbana, especialmente devida ao

    chamado milagre brasileiro (1968-1973), emergiram postos de trabalho assalariado denvel superior, tais como os associados administrao e gerncia de empresas, burocratas pblicos e privados, bem como professores, mdicos e advogados. Estesempregados de maior qualificao recebiam salrios bem maiores em relao aos

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    funcionrios de baixo valor agregado, o que permitiu a conformao de uma classemdia urbana no Brasil (Pochamnn, 2006, p. 27-31). A partir de 1980, porm, comeoua conteno do avano deste emprego assalariado por conta do abandono, pelo governo,do projeto de industrializao nacional, ao que os empregos tradicionais de classe mdia

    tiveram suas configuraes alteradas. Conforme anota Pochmann,

    Com a desestruturao do mercado de trabalho, uma parcela das ocupaesanteriormente assalariadas foi sendo transformada em postos de trabalho no-assalariados. Destaca-se entre elas o aumento das ocupaes de classe mdia na formade mo-de-obra autnoma para a empresa, como consultores, trabalhadoresindependentes, especialistas organizados em cooperativas e empresas sem empregados(somente pessoa jurdica). (p. 32)

    A partir da dcada de 1990, intensifica-se o desassalariamento de postos detrabalho de classe mdia, a substituio do antigo emprego assalariado por contratos detrabalho autnomos ou contratos de empresa jurdica sem funcionrios (s o proprietrio, atuando como prestador de servios), e a diminuio dos empregos desalrios intermedirios na administrao pblica, devido ao enxugamento do aparelhoestatal.

    Este crescimento dos micro e pequenos empreendimentos sinaliza para o

    aumento de uma classe mdia detentora de uma parte reduzida dos meios de produo. Nesse perodo, emergem as ocupaes vinculadas existncia destas micro e pequenasempresas e as atividades de autnomos. Esta crise do trabalho assalariado de classemdia prejudica enormemente, segundo Pochamnn, as possibilidades de mobilidade eascenso social para este segmento populacional, com reflexos no padro de consumo eestilo de vida.

    Em relao dimenso atual e a concentrao demogrfica dos indivduos declasse mdia, dados coletados por Pochmann12 mostram que 15,4 milhes, ou 31,7% do

    total de famlias existentes no Brasil, fazem parte desta parcela da populao,totalizando 57,8 milhes de brasileiros. A renda familiar mdia, atualizada emnovembro de 2005, vai de R$ 1.556 a R$ 17.351. Em 2000, 33,8% das famlias destesegmento concentrava-se no estado de So Paulo, 11,9% no Rio de Janeiro, 9,8% emMinas Gerais, 7,7% no Rio Grande do Sul e 6,3% no Paran, totalizando 57,2% das

    12 Fonte: Censo Demogrfico 2000 do IBGE.

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    famlias de classe mdia na regio Sudeste e 18,3% na regio Sul do pas. Ou seja, 3 decada 4 famlias de classe mdia vivem nas regies Sul ou Sudeste, por influncia diretado processo de desenvolvimento econmico concentrador em termos espaciais e sociaisexistente no Brasil. Na distribuio por municpio, observa-se que 11,2% da classe

    mdia brasileira vive na capital paulista. No total, das famlias desta faixa socialsitua-se em apenas 6 cidades: So Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Braslia,Curitiba e Porto Alegre.

    Para mapear as caractersticas dos indivduos de classe mdia, Pochmannutilizou dados do Censo Demogrfico de 2000 do IBGE relativos ao perfil dos chefes defamlia. Foram consideradas as variveis demogrficas, educacionais e ocupacionais. Osdados mostram que 81,4% dos chefes de famlia so homens, 54,6% tm entre 30 e 49anos, 63,8% so casados, e 90% vivem em reas urbanas. A mdia de filhos chega a 2,3

    nas regies Sul e Sudeste e de 2,4 a 3 filhos nas demais regies do pas. Tem-se 68,2%da cor branca e 25,3% parda, de forma que somente 4,9% da classe mdia brasileira composta de negros.

    Em relao ao nvel educacional, os dados apontam que os chefes de famlia declasse mdia tm escolaridade bastante superior mdia nacional, com preferncia paraas instituies privadas. Dos que estavam estudando em 2000, 48% cursavam cursossuperiores de graduao ou ps-graduao, contra 24,9% dos chefes de famlia da populao em geral. No total, os chefes de famlia deste segmento tm 40% mais

    escolaridade que os da populao brasileira como um todo. Na rea ocupacional, asestatsticas mostram que os chefes de classe mdia possuem jornada de trabalho de 48,3horas semanais, seu rendimento mdio atinge a mdia de 9,9 salrios mnimos mensais,34,1% possuem carteira assinada, 15,1% so assalariados sem registro em carteira,24,2% so autnomos com alto nvel de escolaridade e especializao tcnico- profissional, 6,1% so empregadores e 19,2% so aposentados. Portanto, os chefes defamlia de classe mdia ocupados exercem atividades com remunerao e especializaoacima da mdia da populao brasileira.

    Alm destas caractersticas, ressalta Pochmann que a classe mdia brasileira possui uma outra, tambm relevante para a formao da identidade, comportamentointergrupo e busca por diferenciao social: seu padro de consumo. Segundo o autor,

    A classe mdia termina estabelecendo por ideal o reino da realizao profissional, dodesempenho destacado na estrutura de poder e da vida cercada pela comodidade do

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    padro de consumo de maior renda possvel. Nesse sentido, a classe mdia caracteriza-se por se tornar uma massa consumidora avantajada de bens e servios. De certa forma,o consumo assume um valor suplementar de relacionamento e de aparncia, capaz de possibilitar identificao com elevado status social, dentro do projeto mais amplo de prosperidade fundado na ascenso e mobilidade intergeracional. (2006, p. 89)

    A despeito de a classe mdia brasileira representar cerca de 31% da populaonacional, seu consumo atinge 50% de todo o mercado consumidor do Brasil, segundo aPesquisa de Oramentos Familiares do IBGE (POF), de 2003. Segundo os dadoscoletados por Pochmann, a classe mdia concentra seus gastos familiares em educao,recreao e cultura, transporte, aumento do ativo e assistncia sade, ao contrrio dasfamlias pobres, que focam as despesas em alimentao, habitao, vesturio, fumo,higiene e cuidados pessoais. O item alimentao responde por 16,5% dos gastos daclasse mdia, metade do que as famlias pobres gastam, 31%. Alm disso, os pobresconcentram suas compras em produtos alimentares bsicos, ao passo que o outrosegmento d preferncia aos produtos mais elaborados, preparados e industrializados.

    Tambm no item habitao que inclui aluguel, servios, manuteno do lar,artigos de limpeza, eletrodomsticos, mobilirio e consertos os pobres gastam mais(36,9%) do que a classe mdia (29,4%). O mesmo ocorre no item vesturio, queresponde por 5,5% dos gastos das famlias pobres e 4,9% das de classe mdia, com

    exceo do subitem jias, mais consumidas pelos indivduos de maior renda. No itemtransporte que abarca os subitens transporte urbano, combustvel, manuteno deveculo prprio, aquisio de veculo e viagens o consumo maior tambm dasfamlias pobres, que concentram seus gastos no transporte urbano, ao passo que asfamlias de classe mdia gastam mais em combustvel, manuteno e aquisio deveculo, e viagens.

    No item higiene e cuidados pessoais, os gastos dos pobres tambm so maiores:2,4% da renda total, contra 1,9% da classe mdia. No que concerne s despesas com

    assistncia sade, com exceo do subitem remdios, mais consumido pelas famlias pobres, as de classe mdia tm consumo mais elevado. Esta parcela tende a despendermais recursos com plano de sade (1,7% contra 0,3% dos pobres) e tratamento dentrio(0,6% contra 0,2%), especialmente por conta da precria prestao de servios pblicosna rea da sade.

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    No item educao, os gastos da classe mdia so quatro vezes maiores que osdas famlias pobres, atingindo 3,7% e 0,9%, respectivamente. Chamam a ateno ositens curso superior e cursos regulares, que somados demandam 2,3% das despesas daclasse mdia, contra 0,2% das famlias mais carentes. Em relao aos livros didticos e

    artigos escolares, a classe mdia gasta duas vezes mais. No item recreao e cultura, a classe mdia direciona 2,2% de sua renda e as

    famlias carentes 1%. Quando observado o subitem peridicos, livros e revistas, osnmeros so ainda maiores: a classe mdia destina quatro vezes mais dinheiro para estetipo de despesa. Segundo Pochmann, num pas de leitores pouco assduos como oBrasil, este subitem denota uma forma de manuteno da desigualdade social, pois

    o acesso informao de melhor qualidade, cultura, ao pensamento crtico e ao

    debate nacional tende a passar ao largo do cotidiano da populao que no ascendeu amelhores nveis de renda. Naturalmente, isso tem reflexos que vo alm do treinamentotcnico da mo-de-obra em escolas formais. Alcana inclusive a poltica e os rumos do pas, j que parte significativa da populao est excluda deste debate e, por isso, dasdecises nacionais. (idem, p. 92)

    No item fumo (1,1% contra 0,6%) os gastos dos pobres superam os da classemdia, bem como em servios pessoais (cabeleireiro, manicure, consertos de artigos

    pessoais), que demandam 0,7% e 0,9%, respectivamente. J no item outras despesascorrentes os gastos dos mais bem aquinhoados superam os das famlias carentes,especialmente devido aos melhores nveis de renda. Nos subitens impostos (3,7% contra1,5%), contribuies trabalhistas (3% ante 0,8%), servios bancrios (0,8% e 0,1%), penses, mesadas e doaes (1,4% contra 0,8%) e previdncia privada (0% e 0,2%)estas discrepncias so evidentes. No mesmo sentido, o item aumento do ativo mostra amaior alocao de recursos financeiros provenientes das famlias de classe mdia emaquisio de imveis (1,6% contra 0,6% dos pobres) e reforma destes (2,1% ante 1,6%).

    A fim de ressaltar a relevncia da classe mdia tanto no sculo XX quanto naatualidade, quer seja por seu padro de consumo e caractersticas scio-econmicas,quer seja por sua participao nas decises polticas do pas, M. Pochmann finalizaafirmando que

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    Sua importncia no se assenta apenas em nmeros que apontam para uma participao significativa no total da populao urbana, emprego ou consumo do pas. Na verdade, seu valor vem do vnculo com o intenso perodo de industrializao eurbanizao nacional, compreendido entre 1930 e 1980. Nesses, a grosso modo, 50anos, a classe mdia foi compondo a base social de apoio ideolgico e forneceu braos ementes para a industrializao e o crescimento econmico. Foi ela que aos poucos passou a deter parte das decises, tanto no Estado como no setor privado, e a utilizar aeducao e o conhecimento tcnico em favor do planejamento micro e macro-econmico. (...) Em outras palavras, a continuidade do processo de industrializao ecrescimento econmico era condio necessria para sua existncia e crescimentoenquanto grupo social. (p. 101)

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    Parte 1A violncia em questo

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    Palavra de difcil definio,violncia permite usos e significados diversos, tendosido teorizada relativamente a temas como guerra, poltica, terrorismo, polcia, narcotrfico e famlia. Muitos conceitos de violncia foram propostos para designardiversos tipos de prticas e hbitos, de forma que, de acordo com a cultura e o perodo

    histrico, variados comportamentos sociais puderam e podem ser caracterizadoscomo violentos. A violncia contra a mulher, por exemplo, foi aceita e praticada durantecerto perodo de tempo. Atualmente, ainda que sua prtica persista, h delegaciasespecializadas em criminalizar os familiares que a cometem. No existe, portanto, uma percepo nica e inequvoca do que seja a violncia, dada a multiplicidade de atosviolentos cujas significaes podem ser analisadas luz de normas, condies sociais econtextos culturais os mais diversos.

    Para Hannah Arendt (1985), que estudou o tema no mbito poltico, a violncia

    implica um carter instrumental, trata-se de um instrumento capaz de aumentar a forahumana a fim de se atingir um objetivo.

    A violncia distingue-se [do poder, da fora e da autoridade] por seu carterinstrumental. Do ponto de vista fenomenolgico, ela est prxima do vigor, uma vezque os instrumentos da violncia, como todos os demais, so concebidos e usados parao propsito da multiplicao do vigor natural at que, no ltimo estgio dedesenvolvimento, possam substitu-lo. (p. 25)

    Georges Sorel (1993) defende o uso poltico da violncia e acredita haver um pouco de tolice na admirao que nossos contemporneos tm pela suavidade, mas emsuas Reflexes sobre a violncia prope como ato violento nada alm de greves geraisdos trabalhadores industriais. Sorel afirma que a violncia somente pode prejudicar o progresso econmico ou mesmo ser perigosa para a moralidade, quando ultrapassa umcerto limite, fora do qual perfeitamente til.

    J Jean Claude Chesnais (1981) apresenta formas de violncia registradas em

    diferentes pocas e sociedades. O autor classifica a violncia em dois grandes grupos: a privada, subdividida em criminal e no criminal, e a coletiva, dos cidados contra o poder; a violncia do poder contra os cidados e a violncia da guerra (p. 32-34),ambas definidas no mbito da violncia fsica. Outro tipo de violncia seria aeconmica, que se refere especificamente aos prejuzos causados ao patrimnio ou

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    propriedade alheia, especialmente os resultantes de atos de delinqncia, vandalismo ecriminalidade.

    Para A. Nogueira (apud H. Ferraz, 1994, p. 17), a violncia pode serconceituada como ato de fora exercido contra as pessoas e as coisas, na inteno de

    violent-las ou delas se apossar. No mesmo sentido, H.D. Graham e T. R. Gurr (apudY. Michaud, 1989, p. 10) afirmam que a violncia se define, no sentido estrito, comoum comportamento que visa causar ferimentos s pessoas ou prejuzos aos bens. J Y.Michaud, num mbito que abarca tanto violncia fsica quanto simblica, afirma haverviolncia quando, numa situao de interaco, um ou vrios atores agem de maneiradireta ou indireta, maica ou esparsa, causando danos a uma ou vrias pessoas em grausvariveis, seja em sua integridade fsica, seja em sua integridade moral, em suas posses,ou em suas participaes simblicas e culturais (idem, p. 11).

    Etimologicamente, a palavra violncia vem do latimviolentia, que significaviolncia, carter violento ou bravio, fora. J o verboviolare quer dizer tratar comviolncia, profanar, transgredir. Tais termos remetem avis, que significa fora, vigor, potncia, emprego do fora fsica (Y. Michaud, idem, p. 8), e, no Dicionrio Aurlio daLngua Portuguesa, define-se violncia como qualidade de violento, ato violento;definindo-se a palavraviolentocomo que age com mpeto, agitado, tumultuoso, emque se faz uso da fora bruta, contrrio ao direito e justia.

    Considerando todas as definies deviolncia(especialmente a de Y. Michaud,

    mais abrangente) e tomando a palavraurbano como aquilo relativo cidade,consideraremos como atos de violncia urbana, para os limites desta pesquisa: ofensas, brigas, discusses agressivas verbais, acidentes e brigas de trnsito, roubos, furtos eseqestros (com ou sem conseqncias fatais) e assassinatos (figura l). Mas interessamtambm a esta investigao capas deVeja que relacionem a violncia urbana comquestes sociais (figura 2, que correlaciona violncia a pobreza); e ainda as capas queconfrontem a temtica vida nas grandes metrpoles, pois como se observa na figura 3,cidades como So Paulo e Rio de Janeiro so apresentadas como locais eivados deinsegurana. Acreditamos que a anlise desta segunda categoria de capas nos permitiradensar na compreenso de como a mdia semanal constri a violncia e a criminalidadeurbanas, dada a complexidade do fenmeno, especialmente na contemporaneidade.

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    Na figura l, o enunciador discorre sobre o assassinato da estudante AdrianaCiola durante assalto num bar da cidade de So Paulo em agosto de 1996, crime deviolncia fsica ocorrido na classe mdia. Na figura 2,Veja apresenta dois meninos derua e os insere na problemtica da violncia de forma dicotmica ao afirmar seremfilhos da misria e do crime, relacionando diretamente a marginalidade social violncia. Na figura 3, o enunciador alardeia sua preocupao com a falta de segurananas grandes cidades ao mostrar a imagem de uma famlia urbana tradicional (pai, me efilhos) se protegendo da violncia vestida com armaduras de guerra e gritandoSocorro!. Nem todas as capas, conforme visto, discorrem sobre crimes violentos ou

    agresses fsicas. No entanto, nos parecem relevantes para o delineamento da forma pela qual a revista constri a temtica.

    1.1. Historicidade e cotidianidade da violncia

    fato que a violncia urbana est presente na vida de qualquer cidado que vivaem grandes metrpoles ou em cidades interioranas. fato tambm que esto sujeitos a

    atos de violncia tanto moradores da periferia quanto os dos bairros mais abastados. Noentanto, as discusses correntes no mbito da opinio pblica costumam girar em tornode um progressivo aumento da criminalidade nas grandes cidades nos ltimos anoscomo se, no passado, a criminalidade e a violncia urbana no existissen, ou ocorressemsegundo ndices muito mais baixos. Crimes como o seqestro relmpago e os padrescoletivos de organizao criminosa certamente se inscrevem no contexto da

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    contemporaneidade, mas a criminalidade sempre existiu, conforme anota EdmundoCampos (1988), a respeito das novas modalidades criminosas.

    At a primeira metade da dcada de 1960, o assalto a banco era uma modalidade de

    crime virtualmente desconhecida no Brasil, bem como os seqestros para obteno deresgate. (...) O pungista, que agia com base numa habilidade de prestidigitadoraprendida com os grandes mestres do ofcio, cedeu lugar ao assaltante violento de rua.(...) Mesmo o homicdio, que h duas ou trs dcadas era, predominantemente, umcrime de natureza passional, tornou-se nos dias de hoje uma atividade organizada deconflito entre quadrilhas. (p. 145)

    Ainda que os ndices da violncia urbana no devam de forma alguma sersubestimados (estatsticas so tratadas no Anexo 1), segundo Yves Michaud (1989) odiscurso da opinio pblica sobre sua progresso desmedida no se fundamentaestatisticamente, ou seja, no encontra abrigo se analisado o volume efetivo ainda quecrescente da criminalidade, mas se relaciona com as normas a partir das quais soconcebidos os atos criminosos.

    Ao contrrio das sociedades do passado, as nossas esto habituadas a uma seguranacada vez maior, que no depende s dos nmeros da criminalidade, mas tambm e atmais da organizao dos seguros e da previdncia social, da homogeneidade de um espaode livre circulao, da regulao de mltiplos aspectos da vida atravs do Estado. Sob o pano de fundo de uma segurana crescente, os comportamentos criminosos so percebidos com uma ansiedade desproporcional ao seu volume real. (p. 33)

    Alm disso, concorrem para a obssesso das sociedades contemporneas comrisco e segurana a prpria configurao da vida e o perfil do risco na modernidade,assunto que ser discutido no prximo item.

    Do ponto de vista histrico, Y. Michaud afirma que a violncia a marca

    registrada de perodos inteiros do passado. Abaixo, dispomos citaes tanto deY.Michaud quanto de G.Sorel e M. A. Rosa, de fatos violentos que ciclicamente serepetiam nos sculos passados, a fim meramente de exemplificar a historicidade dacriminalidade urbana. Isso porque h precariedade de dados estatsticos que assinalemtal historicidade.

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    Em Anvers, durante a segunda metade do sculo XIV, os registros decrimes mostram a freqncia de brigas e de rixas violentas e mortais. Osroubos eram to temidos quanto as violncias fsicas. (Y. Michaud, 1989, p.33);

    Em Genebra, em 1562, de 197 delitos e crimes, havia 20% de roubos,20% de crimes passionais, 11% de infraes profissionais e 11% de brigas. (idem, p.33)

    Em Paris, em junho de 1488, de cem pessoas mortas numa semana, 50%deveu-se a violncia fsica, 13% a roubos e 12% a dvidas; (idem, p. 34);

    Em Paris, na segunda metade do sculo XVII, descreve o escritor A.Farge no livroVivre dans le rue Paris au XVIII sicle: a violncia darua espanta nossas sensibilidades modernas. Os relatrios dos mdicos e

    dos cirurgies de Chtelet encarregados de examinar os ferimentos e de prescrever os cuidados necessrios nos informam sobre a gravidade dosataques. Para atacar, vale tudo: utenslios cortantes, garrafas, banquinhosde madeira, podadeiras, caarolas e caldeires, garfos de assadeiras(idem, p 34);

    Na Frana, os costumes doscompagnonnages(pees de fbrica)durante muito tempo se destacaram por sua brutalidade; antes de 1840,havia invariavelmente tumultos, s vezes sangrentos, entre grupos do

    ritos diferentes; Martin-Saint Leon apresenta em seu livro sobrecompagnonnagesextratos de canes realmente brbaras; as recepeseram cheias de provas muito duras; os jovens eram tratados comoverdadeiros prias (G. Sorel, ob cit. p. 162)

    Os crimes da Santa Inquisio so conhecidos de todos. Nunca repetiamo mesmo martrio para que o condenado no sucumbisse e, tambm, paraexerccio da criatividade sdica dos torturadores. O flagelo deveriadurar o maior tempo possvel para que toda a execuo fosse concluda(M.A. Rosa, 2002, p.162)

    Tambm Simon Schwartzman (1980) ratifica a historicidade da violncia urbanaao afirmar que este no , como sabemos, um fenmeno novo. A histria dassociedades humanas tem sido uma histria de violncia crescente, e isto vale tambm para o Brasil, apesar do mito do homem cordial (p. 365). Ruben George Oliven

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    (1980) acrescenta que embora a violncia tenha sido um recurso constantementeutilizado durante o desenvolvimento da sociedade brasileira desde seus primrdios, persiste uma negao sistemtica, de mbito ideolgico, pois ao contrrio do que ocorreem outros pases historicamente marcados pela violncia,

    no Brasil haveria uma ndole pacfica supostamente herdada do portugus, que teriasabido to gostosamente promover uma suave mistura de raas, criando aqui nostrpicos uma sociedade harmnica. (p. 371)

    Mas de fato a histria do Brasil, como de outros pases, mostra que a violnciaesteve regularmente incorporada ao cotidiano dos indivduos. Segundo Srgio Adorno e Nancy Cardia (1999), a utilizao, aceitao e legitimao da violncia como forma de

    resolver conflitos sociais ou no desfecho de tenses nas relaes intersubjetivas, referia-se ao modo de vida do

    Brasil tradicional, ainda dependente de prticas herdadas do passado colonial, em que predominava um padro de vida associativa, cujas bases materiais se assentavam no parentesco, no escravismo e nos interesses ditados pela grande propriedade rural e cujasexpresses culturais se materializavam na intensidade dos vnculos emocionais, no altograu de intimidade e de proximidades pessoais e na perspectiva de sua continuidade notempo e no espao. (p. 67)

    Afirmam os autores que no Brasil colonial a transgresso de normas legais outcitas era punida com a violncia, inclusive fsica, a qual, legitimada, funcionavacomo forma de se recomporem laos e elos rompidos na rede de relaes sociais(idem, p. 67). No ltimo quarto do sculo XIX, com a emergncia da sociedadecapitalista e a instaurao da Repblica, havia a expectativa de que o alardeadocrescimento econmico, o desenvolvimento social, as novas tecnologias eespecialmente as novas formas de governo regidas por legislaes supostamente justas(j que discutidas antes de sua promulgao), seriam instituies qualificadas paracoibirem as diversas formas de violncia no Brasil, de forma que

    as pendncias pessoais bem como os conflitos sociais seriam carreados para ostribunais e seriam julgados segundo critrios fundados em leis universais, vlidas paratodos os cidados, independentemente de clivagens econmicas, sociais ou culturais. A

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    institucionalizao de um poder nico, reconhecido e legitimado, enfeixando todos ossistemas possveis e paralelos de poder, haveria de tornar a violncia um fenmenoanacrnico na vida social brasileira. (Adorno& Cardia, idem, p. 67)

    No entanto, a despeito das expectativas do propagado progresso, a violncia,em suas diversas manifestaes seja de ordem fsica ou simblica continuou a fazer parte do cotidiano dos brasileiros, inclusive como forma de reao e tentativa deresoluo de conflitos advindos de diferenas sociais, de poder (inclusive poltico, viarepresso durante a ditadura militar), de propriedade, gnero e classe social. E ao longodo processo de democratizao do Pas, ganhou status de questo pblica, de problemanacional, sendo discutida como assunto corrente pelos governos e passando a fazer parte do noticirio da imprensa.

    Conforme anota R.G.Oliven (1980), o mito da ndole pacfica do brasileiroconseguiu se perpetuar apesar das evidentes manifestaes de violncia ocorridasdurante dcadas, comeando seu processo de desgaste somente a partir de 1964,quando a represso poltica tambm atingiu a classe mdia atravs da tortura pelosrgos de segurana (p. 371) e, na seqncia, pelo incio do processo de aberturaeconmica e de transio democrtica do Pas (1979-1989). Com o modelo econmicoem crise, o aumento da inflao e do desemprego, a crise poltica (no someme adecorrente da flagrante violao de direitos durante a represso, mas devida a problemas

    institucionais) e a carncia de fundamento do discurso federal da segurana nacionalat ento alardeado, foi preciso, segundo o autor, a criao de um novo bodeexpiatrio com que se preocupar. Da advm a caracterizao da violncia como problema nacional, como questo e ser debatida e discutida como assunto corrente esocialmente relevante. E, ademais, como assunto de risco nas sociedades.

    Chama a ateno o fato de que quando comea a abertura, o mito da ndole pacficado brasileiro relegado a um segundo plano no discurso oficial e a violncia urbana

    alada posio de problema nacional, aparentemente por terem as classes mdia ealta sido tambm atingidas por ela. (idem, p. 372)

    A este entendimento, S. Adorno e N. Cardia aduzem o fato de que, no decursodo processo de democratizao do Pas, agravaram-se as situaes de violncia em suasdiversas formas, inclusive a causada pelos agentes pblicos destinados a cont-la.

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    Por um lado, persistiram as graves violaes de direitos humanos praticadas poragentes do Estado na implementao do controle social. As mortes extrajudiciais praticadas pela Polcia Militar, em geral sob a rubrica de estrito cumprimento do deverou resistncia a voz de priso mantiveram-se ao longo dos anos 80 como estratgiainstitucional normal de controle da criminalidade. (...) Por outro lado, verificou-seuma verdadeira exploso de litigiosidade no seio da sociedade civil, em particular nos bairros onde habitam majoritariamente classes trabalhadoras de baixa renda, resultandoem desfechos fatais. (idem, p. 68-69)

    A partir destas informaes, h que se considerar o fato de que a violnciainstitucional praticada pelo Estado brasileiro deve ser considerada quando se trata dediscutir o aumento ou no da violncia no Brasil a partir de 1964. Pois existe a possibilidade de que se, num primeiro momento de acumulao de capital emodernizao conservadora do Pas , o regime poltico em vigor tenha minimizado erelativizado os efeitos sociais da poltica econmica praticada e do arbtrio poltico(=violncia dos rgos de segurana), aps a abertura poltico-econmica acriminalidade violenta passou a ser apresentada com grande visibilidade como questoendmica s cidades brasileiras, especialmente s em fase de modernizao eindustrializao. Aqui, cabem algumas perguntas: Por que a violncia passou a serconsiderada como problema justamente naquele momento histrico? Por que este temaespecfico foi alado categoria de questo relevante, digna de discusses cotidianas e polticas, de abordagem enftica pela mdia (como veremos mais frente)? Por que nodiscutir o aumento dos crimes do colarinho branco ou a crescente quantidade decrianas vitimizadas pela misria nos estados nordestinos, por exemplo?

    Por que certos temas se constituem, em determinados momentos histricos oucontextos sociais especficos, mais relevantes do que outros? Teria o Estado brasileiro e,na esteira, os meios de comunicao fabricado o discurso da violncia como forma deminimizar e relativizar a importncia da violncia praticada pelo prprio Estado? Noitem Mdia e violncia, estas questes sero relacionadas teoria daagenda setting .

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    1.2. Contornos de uma sociedade do risco

    Segundo Anthony Giddens (1991), amodernidade radicalizada do final dosculo XX um fenmeno de dois lados: trouxe novas oportunidades e modos de vida,

    mas tambm novos riscos e perigos. Com o desenvolvimento das instituies sociaismodernas e sua propagao no mbito mundial as sociedades passaram a contar commaiores oportunidades para uma vivncia segura e feliz, como em nenhum outro perodo histrico se havia conseguido. Os modos de vida advindos da modernidade tiraram os indivduos de uma maneira sem precedentes de todos os tipos tradicionais deordens sociais. Segundo o autor, as transformaes envolvidas na modernidade somais profundas que a maioria dos tipos de mudana caractersticos dos perodos precedentes; pois tanto em termos de extenso quanto intencionais, elas vieram a

    alterar algumas das mais ntimas e pessoais caractersticas de nossa existnciacotidiana (p. 14), criando modos de vida ainda no vistos ou vislumbrados na histriadas sociedades.

    Porm, a modernidade tem ao mesmo tempo um lado sombrio bastanteevidente na atualidade, que relaciona de uma nova forma segurana, risco e perigo. Aocontrrio do que se esperava, a emergncia da modernidade e do progresso no trouxeconsigo uma ordem social mais segura. Afirma A.Giddens que o mundo em quevivemos hoje um mundo carregado e perigoso (p. 17-19), no mais sujeito aos

    perigos e riscos de ontem, mas a outros, novos e no menos atemorizantes. Ulrich Beck(1998) classifica o destino das sociedades modernas as sociedades do risco comodestino de perigo (p. 47), j que com o desenvolvimento da civilizao surge umanova frente de perigos, produzidos sistematicamente pelos processos avanados demodernizao. Desponta uma poca em que os riscos so um trao caracterstico einevitvel nas sociedades.

    Na modernidade desenvolvida, que havia surgido para eliminar as limitaes derivadas

    do nascimento e permitir que os seres humanos obtivessem mediante sua prpriadeciso e sua prpria atuao um lugar no tecido social, aparece um novodestino de perigo, do qual no h como escapar. [...] Este destino tampouco se encontra sob osigno damisria [como nas situaes de diviso de classe do sculo XX], mas sob osigno domedo, e no precisamente uma relquia tradicional, mas um produto da

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    modernidade, em seu estadomximo de desenvolvimento. (idem, p. 12, grifos doautor)

    Neste sentido, A.Giddens (1991) afirma haver, na modernidade radicalizada, um

    novo ambiente de risco para as sociedades, se comparado ao enfrentado pelas culturas pr-modernas. O ambiente de risco das sociedades precedentes envolvia primordialmente ameaas e perigos emanados da natureza (doenas, alteraesclimticas e desastres naturais) e a violncia humana vinha por parte de exrcitos pilhadores, senhores de guerra locais, bandidos e salteadores. Nas sociedadesmodernas os riscos e perigos emanam da reflexividade da modernidade, e as ameaasde violncia humana se do a partir da industrializao da guerra e da iminncia de umadestruio parcial ou em massa da humanidade (p.104). Porm Giddens salienta que,

    apesar do perfil de risco ser diferente em relao violncia humana e suasconseqncias, a insegurana das sociedades tradicionais no era menor do que asentida na atualidade, bem como os mecanismos de proteo, ento ao alcance de parcela diminuta das populaes, pois nas culturas pr-modernas:

    poucos grupos da populao podiam sentir-se seguros por longos perodos da violnciaou ameaa de violncia por parte de exrcitos invasores, bandoleiros, senhores de guerralocais, salteadores, ladres ou piratas. [...] Os meios urbanos modernos so

    freqentemente considerados perigosos devido ao risco de um ataque ou assalto. Masno apenas este nvel de violncia caracteristicamente menor se comparado commuitos cenrios pr-modernos; tais meios so apenas bolses relativamente pequenosdentro de reas territoriais maiores, nas quais a segurana contra a violncia fsica imensamente maior do que jamais foi possvel em regies de tamanho comparvel nomundo tradicional. (idem, p. 109)

    As sociedades enfrentam hoje ameaas e perigos especficos da vida socialmoderna, de modo que tanto riscos de alta conseqncia como ataques nucleares edesastres ecolgicos quanto os menores, mas tambm ameaadores da vida ou do patrimnio como assaltos, homicdios e seqestros configuram-se geradores deansiedades e angstias nos indivduos, afetando direta e significativamente as atividades

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    e os comportamentos cotidianos e, em suma, a integridade da segurana ontolgica13 dos indivduos, que cotidianamente tm de viver no mundo fluido, globalizado, incertoe imprevisvel da modernidade, alm de dirigir o carro de Jagren, teorizado porGiddens como

    uma mquina em movimento de enorme potncia que, coletivamente como sereshumanos, podemos guiar at certo ponto mas que tambm ameaa escapar de nossocontrole e poderia se espatifar. [...] A viagem no de modo algum inteiramentedesagradvel ou sem recompensas; ela pode com freqncia ser estimulante e dotada deesperanosa antecipao. Mas, at onde durarem as instituies da modernidade, nuncaseremos capazes de controlar completamente nem o caminho nem o ritmo da viagem.(1991, p. 140)

    Aduz Giddens que ao dirigir o carro de Jagren, ou ao viver em condies demodernidade, os indivduos nunca sero capazes de se sentir inteiramente seguros dadasas caractersticas tortuosas do terreno pelo qual o carro tem de trafegar, repleto de riscose perigos, e no qual sentimentos de segurana ontolgica e ansiedade existencial podem coexistir em ambivalncia (idem, p. 140), ainda que haja procura constante de proteo e segurana. Configura-se, assim, a sociedade do risco de U. Beck, quecotidianamente convive com perigos e riscos produzidos pela prpria modernidade. Masse so a insegurana, os riscos e perigos inerentes modernidade, o que deve oindivduo fazer? Pode a sociedade aplacar ou mitigar as inseguranas, temores eansiedades dos indivduos?

    Em tempos de modernidade radicalizada (ou modernidade lquida), afirma Z.Bauman (2003) que a sociedade, ento imaginada como pai rigoroso e poderoso, mascuidadoso e protetor, diluiu-se, esvaiu-se, perdeu muito de sua aparncia paternalespecialmente no que tange ao provimento dos bens materiais e simblicos necessrios para se enfrentarem adversidades como a insegurana da vida moderna. Ao no

    satisfazer a necessidade e o desejo dos indivduos de terem um lar seguro, a sociedademostra que no cumpriu suas promessas; negou abertamente as mais vitais delas (p.

    13A segurana ontolgica teorizada por Giddens (1991) como a crena que a maior parte dosindivduos tm na continuidade de sua auto-identidade e na constncia dos ambientes de ao social ematerial circundantes, que tem a ver com o serou, nos termos da fenomenologia, o ser-no-mundo(p. 95).

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    101). Mais do que no trazer segurana, promete mais insegurana e transfere aoindivduo a responsabilidade de buscar a soluo para seus problemas e temores.

    Entre as totalidades imaginrias a que as pessoas acreditavam pertencer e aonde

    acreditavam poder procurar (e eventualmente encontrar) abrigo, um vazio boceja nolugar outrora ocupado pela sociedade. (idem, p. 102)

    Especificamente sobre o papel do Estado na garantia da segurana e bem-estardos cidados, Z. Bauman (2001) afirma ter havido, de fato,

    a renncia, adiamento ou abandono, pelo Estado, de todas as suas principaisresponsabilidades em seu papel como maior provedor (talvez mesmo monopolstico) decerteza, segurana e garantias, seguido de sua recusa em endossar as aspiraes decerteza, segurana e garantia de seus cidados. (p. 211)

    Ou seja, esperar que os governos chamem para si a tarefa de protegerefetivamente o cidado e mitigar suas inseguranas existenciais no parece surtir efeito.Ao contrrio, Bauman acredita que assim como outros aspectos da vida humana nummundo inexoravelmente individualizado e privatizado, a segurana passou a ser umaempreitada individual. A defesa do lugar, do espao inseguro, passa a ser, portanto,tarefa do cidado, de um pequeno grupo, ou de uma comunidade, e no mais do Estado.

    Como muitas outras iniciativas dos poderes pblicos, o sonho da pureza foi, na era damodernidade lquida, desregulamentado e privatizado; agir sobre esse sonho foi deixado para a iniciativa privada local, de grupos. A proteo da segurana pessoal agorauma questo de cada um, e as autoridades e a polcia local esto mo para ajudar comconselhos, enquanto as imobilirias assumem de bom grado o problema daqueles queso capazes de pagar por seus servios. (2001, p. 207)

    Para U. Beck (1998), entre as novas formas de consenso e de organizao produzidas pela sociedade do risco esto projetos como as comunidades de ameaa,organizadas em torno da utopia da segurana (p. 53/55) e que objetivam proteger seusmembros das ameaas e perigos inerentes modernidade. Se nas sociedades de classe a palavra de ordem era Tenho fome!, ao contrrio,

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    O movimento que se pe em marcha com a sociedade do risco se expressa na fraseTenho medo!. Em lugar dacomunidade da misriaaparece acomunidade do medo. Neste sentido, a sociedade do risco marca uma poca social na qual a solidariedade surge pormedo e se converte em uma fora poltica. (idem, p. 56)

    Segundo Z. Bauman (2003), ainda que os indivduos sonhem com talcomunidade, na qual estejam ou se sintam totalmente seguros de perigos e ameaas,a comunidade realmente existente disposio em tempos de modernidade lquidaexige uma rigorosa contrapartida em troca da segurana que oferece. Exige a liberdade,total ou parcial. Este o preo do privilgio de viver numa comunidade prometidamentesegura como condomnios fechados e prdios ultra-seguros dos bairros abastados dascidades brasileiras, cujo pagamento se d em nova moeda circulante a liberdade.

    Neste tipo de comunidade, segurana e liberdade configuram-se como valores paradoxais e continuamente em tenso, ainda que amplamente desejados e valorizados pelos que se protegem das inseguranas da vida urbana. Pois, ora,

    Voc quer segurana? Abra mo de sua liberdade, ou pelo menos de boa parte dela.Voc quer poder confiar? No confie em ningum de fora da comunidade. No fale comestranhos. (...) Voc quer essa sensao de aconchego? Ponha alarmes em sua porta ecmeras de tev no acesso. Voc quer proteo? No acolha estranhos. (p. 10)

    Mas pode uma nova entidade, a comunidade, fornecer um ambienteefetivamente seguro e acolhedor, um colo paterno e protetor para os indivduos? Seriaeste ambiente seguro a soluo para os temores naturalizados e institucionalizados davida moderna? O que parece ocorrer que, mesmo estando em comunidade, osindivduos ainda sentem-se inseguros (ou de fato estejam), num processo contnuo derealimentao em que no lugar de aplacada, a insegurana aumenta. Canalizada emediada pela ansiedade descomunal nos cuidados com proteo e segurana, a vida emcomunidade e a inerente perda de liberdade parece o remdio, mas se mostra o placebo. Por sua configurao existencial especfica ela realimenta, e no mitiga, ainsegurana e a liberdade. Contrariamente, acredita Z. Bauman (2001) que, apesar de no processo de busca de equilbrio entre liberdade e segurana o comunitarismo ter ficadosempre ao lado desta ltima e aceitado que os dois valores esto em oposio, existe a possibilidade de se aliar segurana e liberdade.

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    Uma possibilidade que os comunitrios no admitem que a ampliao e oenraizamento da liberdade humana podem aumentar a segurana, que a liberdade e asegurana podem crescer juntas, e menos ainda que cada uma s pode crescer emconjunto com a outra. A imagem da comunidade a de uma ilha de tranqilidadecaseira e agradvel num mar de turbulncia e hostilidade. Ela tenta e seduz, levando osadmiradores a impedir-se de examin-la muito de perto, pois a eventualidade decomandar as ondas e domar os mares j foi retirada da agenda como uma proposiotanto suspeita quanto irrealista. (p. 208)

    1.3. A construo da identidade na sociedade do risco

    O conceito de identidade est sujeito a interpretaes/teorizaes que vo dafilosofia psicologia. Neste trabalho, no intentamos discuti-lo em profundidade oudebat-lo sob as diversas abordagens que o teorizam. Ao contrrio, utilizaremos oconceito para estudar de que forma circulam os valores identitrios do grupo dereferncia de leitores que o discurso deVeja apresenta, para que analisemos os critriosde diferena e semelhana que aproximam e/ou afastam este grupo de seu Outro e deque lugar de fala este discurso construdo. Conforme ressalta Z. Bauman (2005),identidade um conceito enormemente discutido e contestado. Porm, sempre que secitar ou discutir sobre ele, sabe-se que l estar havendo uma batalha, pois o campode batalha o lar natural da identidade. Ela s vem luz no tumulto da batalha, dorme esilencia no momento em que desaparecem os rudos da refrega (p. 84). Sendo a mdiasemanal (e a mdia como um todo) um campo de batalha discursivo, para ondeconvergem e onde se criam e circulam discursos sociais especficos, importa-nosrelacionar o conceito de identidade s significaes construdas porVeja sobre atemtica da violncia, dadas as relaes que se estabelecem.

    Conforme disposto no item anterior, a emergncia da modernidade tardia notrouxe uma ordem social existencialmente mais segura para os indivduos. Segundo A.Giddens (2002), atualmente as sociedades desenvolvidas vivem sob o signo do risco. No no sentido de que a vida nas sociedades modernas seja mais perigosa do que nassociedades tradicionais. O fato que, como visto, o conceito de risco participaessencialmente da forma pela qual os indivduos organizam o mundo social e, na

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    esteira, pela maneira como constrem suas prprias identidades, o seu ser na sociedade.E, assim como em relao aos riscos e perigos inerentes modernidade, tambm oconceito de identidade includo seu processo de formao , apresenta-se como um projeto reflexivo. Afirma o autor que em ambientes modernos, o eu comumente

    alterado, explorado e redefinido, parte de um processo reflexivo de conectar mudana pessoal e social (p. 37). Ou seja, no mais sob a forma de ritos de passagem, comoeram marcadas as mudanas identitrias e as transies na vida dos indivduos dassociedades tradicionais, mas ininterrupta e reflexivamente. H de fato uma interconexoentre eu e sociedade, tpica dos ambientes globalizados, de forma que

    As transformaes na auto-identidade e a globalizao, como quero propor, so dois plos da dialtica do local e do global nas condies da alta modernidade. Em outras

    palavras, mudanas em aspectos ntimos da vida pessoal esto diretamente ligadas aoestabelecimento de conexes sociais de grande amplitude. (...) O nvel dedistanciamento tempo-espao produzido pela alta modernidade to amplo que, pela primeira vez na histria humana, eu e sociedade esto inter-relacionados num meioglobal. (idem, p. 36)

    Este processo de construo reflexiva do eu , porm, inerentemente gerador deinseguranas e ansiedades para as quais h somente um recurso a lanar mo: aconfiana bsica. Segundo Giddens (2002), a confiana bsica um mecanismo sem oqual as pessoas no teriam como inocular as ansiedades existenciais que as acometemem tempos de alta modernidade,

    um dispositivo de triagem em relao a riscos e perigos que cercam a ao e ainterao. o principal suporte emocional de uma carapaa defensiva oucasulo protetor que todos os indivduos normais carregam como meio de prosseguir com osassuntos cotidianos. (p. 43)

    esta proteo contra ameaas e perigos futuros que permite s pessoasmanterem coragem e esperana frente s circunstncias debilitantes da vida moderna,uma barreira protetora que, apesar de poder ser rompida temporria ou permanentemente a qualquer momento, cria um sentido de invulnerabilidade nosindivduos, o qual bloqueia as possibilidades negativas em favor das positivas,derivadas da confiana bsica. Ocasulo protetor permite ao indivduo construir

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    reflexivamente sua identidade, vivenciar a sensao de saber quem ele , o que faz,como sua vida, uma sensao fsica e psquica de estar vontade nas circunstnciasrotineiras da vida cotidiana (idem, p. 120).

    Sob esse ponto de vista, cabe perguntar quem seria o Outro ameaador do estilo

    de vida e da segurana da classe mdia grupo de referncia discursivo para o qual sedirige Veja e se esse Outro causaria a destruio dessa sensao. Isso porque, no processo de rotinizao da vida diria, articula-se um mecanismo que Giddens (2002)identifica como segregao da experincia, o qual se refere a processos de ocultaoque separam as rotinas da vida ordinria dos seguintes fenmenos: loucura;criminalidade; doena e morte; sexualidade; e natureza. Giddens argumenta que asegurana ontolgica ou confiana bsica que a modernidade tardia adquiriurelativamente constncia das rotinas dirias, depende de uma excluso institucional

    em relao vida social de questes existenciais fundamentais que apresentam dilemasmorais centrais para os homens. (p. 145). Ou seja, os indivduos utilizam-se dossistemas especializados prprios das instituies modernas para se verem afastados detais fenmenos, os quais adentram suas vidas somente quando se constituem emepisdios ou momentos de carter relevante, porm no rotineiro como assaltos eseqestros, tratando-se especificamente da criminalidade. Ocorre que inexistemambientes modernos totalmente seguros. E mesmo antes da modernidade, estes locaisnunca existiram.

    Mas, afinal, quem o Outro ameaador da segurana e estabilidade da classemdia? Para a definio do Outro do qual esta parcela da populao se distingue, sediferencia e portanto teme , partiremos da conceituao de Eric Landowski (2002) deque o sujeitons, para constituir-se semioticamente, necessita de umele, um outro doqual estens se diferencie, mas a partir do qual se defina, pois,

    com efeito, o que d forma minha prpria identidade no s a maneira pela qual,reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir) em relao imagem que outrem me

    envia de mim mesmo; tambm pela maneira pela qual, transitivamente, objetivo aalteridade do outro atribuindo um contedo especfico diferena que me separa dele(p. 4)

    A definio de uma identidade passa, portanto, pela construo de umaalteridade, de forma que as revistas semanais, ao construrem os valores identitrios do

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    grupo de referncia, ao mesmo tempo estruturam os valores de um Outro grupo do qualeste se diferencia. No tocante violncia urbana poderamos questionar: que valoresmarcam as diferenas entre esta classe mdia ameaada pela violncia e este Outro, oameaador, o criminoso? De que lugar discursivo construda a violncia urbana nas

    pginas deVeja?Segundo E. Landowski (2002), h quatro formas de articulao das

    dessemelhanas entre o grupo de referncia e seu Outro: assimilao, excluso,segregao e admisso14. Destas, acreditamos que, relativamente s atitudes pelas quaisa classe mdia articula suas diferenas em relao ao Outro criminoso e ameaador, aabordagem seja a da excluso. Vejamos algumas capas que ilustram este posicionamento.

    Nas capas, observa-se que as significaes construdas porVeja so de que oOutro ameaador da segurana do grupo de referncia discursivo o pobre, o filho damisria e do crime, o morador da periferia, espao social que invade o colorido daclasse mdia, local de segurana e harmonia, ambiente do Mesmo.

    Para Landowski, a articulao das diferenas pela excluso no difcil de ser

    compreendida se analisados os pressupostos (mais precisamente, os preconceitos) quecircundam e circunscrevem o conjunto sociocultural de figuras e de espaos do Outro.Segundo o autor, trata-se basicamente de uma imagem de um Ns supervalorizadoque deve ser preservado custe o que custar, em sua integridade, em sua pureza original (idem, p. 9), criada concomitantemente figura de um Eles subvalorizado,

    14 Para aprofundamento das quatro formas de articulao, ver Eric Landowski, 2002.

  • 7/25/2019 Tese _ aviolenciaurbana_IngridLisboa

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    heterogneo, carente de originalidade e autenticidade. Este Outro diferente e impuro, seorigem ou histria, colocado

    face a uma identidade de referncia concebida como perfeitamente homognea

    e colocada como devendo ficar imutvel, [de forma que] a alteridade s podeser pensada como uma diferena, vinda dealhures, e que assume, por natureza,a forma de umaameaa. (idem, p. 10)

    importante ressaltar que as diversidades que diferenciam e separam o grupo dereferncia de seu Outro so construdas e naturalizadas. A necessidade de separao dogrupo de referncia de seu dessemelhante, visto como ameaa estabilidade e aoequilbrio interno, no , segundo Landowski (2002), nem uma disfuno social nemuma heterogeneidade preestabelecida pela natureza. Ao contrrio, as significaes quedemarcam e diferenciam, em nosso caso de estudo, a classe mdia e seu Outro sosocialmente construdas. E, acrescentamos, posteriormente internalizadas, naturalizadase reproduzidas, num lema de sempre foi assim.

    Na realidade, as diferenas pertinentes, aquelas sobre cuja base se cristalizam osverdadeiros sentimentos identitrios, nunca so inteiramente traadas por antecipao:elas s existem na medida em que os sujeitos as constrem