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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS FACULDADE DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

Angela Meyer Borba

CULTURAS DA INFNCIA NOS ESPAOS-TEMPOS DO BRINCAR

Orientadora: Prof. Dra. Cecilia Maria Aldigueri Goulart

NITERI 2005

Angela Meyer Borba

CULTURAS DA INFNCIA NOS ESPAOS-TEMPOS DO BRINCARum estudo com crianas de 4-6 anos em instituio pblica de educao infantil

-

Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Educao da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Educao. Campo de confluncia: Linguagem, subjetividade e cultura.

Orientadora: Prof. Dra. Maria Ceclia Aldigueri Goulart

Niteri Universidade Federal Fluminense

Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

B726 Borba, Angela Meyer.Culturas da infncia nos espaos-tempos do brincar: um estudo com crianas de 4-6 anos em instituio pblica de educao infantil / Angela Meyer Borba. 2005. 298 f. Orientador: Cecilia Maria Aldigueri Goulart. Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educao, 2005. Bibliografia: f. 278-293. 1. Educao de crianas. 2. Cultura. 3. Brincadeiras. 4. Brinquedo. 5. Infncia. 6. Sociologia. I. Goulart, Cecilia Maria Aldigueri. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educao. III. Ttulo. CDD 372

s crianas da pesquisa por me permitirem participar de parte de seus mundos sociais cotidianos

AGRADECIMENTOS

Cecilia, grande amiga e orientadora, que sabe to bem ver o outro e estar- fazer com o outro, realizando com sabedoria uma orientao que integra competncia terica, seriedade, crtica, confiana e incentivo, elementos fundamentais para a consecuo deste trabalho.

Faculdade de Educao - Departamento de Educao, Sociedade e Conhecimento - pelo apoio imprescindvel, atravs da concesso de afastamento para a minha qualificao no curso de doutorado.

CAPES, pela bolsa concedida de estgio de doutoramento na Frana, durante seis meses, na Universidade Paris 13.

Ao Prof. Dr. Gilles Brougre - professor de Sciences de lducation na Universidade Paris 13, diretor do GREC (Groupe de Recherche sur les Ressources Educatives et Culturelles) e responsvel pelo DESS em Sciences du Jeu - pelo incentivo ao meu trabalho e pelas suas contribuies atravs do curso e dos encontros de orientao, ajudando-me a construir um olhar sociolgico em relao ao brincar.

s professoras, Prof. Dr. Vera Maria Ramos de Vasconcellos, Prof. Dr. Dominique Colinvaux, Prof. Dr. Maria Ceclia de Ges, pelas contribuies fundamentais para a construo desta pesquisa, por ocasio do meu exame de qualificao. Vera e Dominique, particularmente, pelo incentivo realizao do doutorado.

equipe da Creche UFF, com a qual desenvolvi muitas discusses profcuas sobre a prtica cotidiana junto s crianas e sobre o projeto poltico-pedaggico da creche, que me ajudaram a elaborar o presente trabalho; em especial Mnica, amiga e companheira de trabalho, pela compreenso da minha ausncia e por ter assumido com tanta competncia a disciplina de educao infantil durante o meu afastamento.

equipe da escola Unidade Municipal de Educao Infantil Rosalina de Arajo Costa, particularmente Graa (diretora), Mrcia (coordenadora), Graa Porto, Lilian (professoras das crianas em 2003 e 2004, respectivamente) e Ins (orientadora pedaggica), por terem me acolhido de forma to generosa e afetuosa, apoiando a pesquisa em todo o seu processo; em especial Ins, pelo grande interesse neste trabalho e pela ajuda na sua formatao.

Ao Beto, meu companheiro de longa data, por ser o maior incentivador e cmplice da minha trajetria, sempre me apoiando na realizao de meus projetos;

s minhas filhas, por terem alternado entre a compreenso e a reclamao, chamando-me para a vida nos momentos certos e realimentando-me com o convvio familiar. Paula, particularmente, pelas conversas que tivemos sobre suas brincadeiras de infncia (que no esto to longe, j que tem hoje 13 anos) e pela ajuda precisa na compreenso das falas das crianas nas gravaes em vdeo. Pat, por suportar de forma amadurecida minhas ausncias, muitas vezes fsica e algumas vezes tambm afetiva;

A meus pais, Alice e Ivan, pelo grande incentivo que sempre deram a minha formao e crescimento pessoal, encorajando-me e apoiando-me em todos os momentos da minha vida.

A Clia e Paulo, meus padrinhos, por terem me acolhido carinhosamente em sua casa em Itaipava, oferecendo-me um recanto sossegado e agradvel para o trabalho, distante dos chamados da vida cotidiana;

Aos amigos e familiares prximos, especialmente: Ana Lcia, minha irm, presena sempre amiga e colaboradora; Ana Teresa, minha prima e grande amiga, pela cumplicidade e incentivo permanentes; e Dora, admirvel pessoa, cuja convivncia mais prxima durante nossa estada na Frana constituiu um apoio e uma amizade inestimveis.

SUMRIOLISTA DE QUADROS LISTA DE TABELAS LISTA DE FIGURAS LISTA DE ANEXOS

APRESENTAO CAPTULO 1

13 23

CONSTRUINDO UM OLHAR SOCIOLGICO PARA A COMPREENSO DA INFNCIA1.1

23A SOCIOLOGIA DA INFNCIA: POR UM ESTUDO DA INFNCIA PELOS SEUS 23 48

PRPRIOS MRITOS

1.2 A NOO DE CULTURAS DA INFNCIA E SUAS RELAES COM O BRINCAR: UMATENTATIVA DE APROXIMAO DO QUE SER CRIANA ENTRE CRIANAS

CAPTULO 2PENETRANDO NO MUNDO DAS CRIANAS: AS

79 ESCOLHAS 79

METODOLGICAS E A CONFIGURAO DO ESTUDO

2.1 AS CRIANAS VISTAS COMO ATORES SOCIAIS: IMPLICAES METODOLGICAS 80 2.2 A ADOO DE UMA PERSPECTIVA ETNOGRFICA COM CRIANAS 2.3 QUESTES TICAS NA PESQUISA COM CRIANAS 87 90 93 96 105

2.4 SITUANDO O CONTEXTO DO ESTUDO: A ESCOLA COMO CAMPO DE OBSERVAO,O GRUPO DE CRIANAS PARTICIPANTES E O FOCO NA ATIVIDADE DE BRINCADEIRA

2.5 - A NOSSA AMIGA GRANDE CHEGOU! : O PROCESSO DE CONSTRUO DE UMARELAO DE PROXIMIDADE ENTRE A INVESTIGADORA E AS CRIANAS

2.6 - PROCEDIMENTOS DE FILMAGEM, ENTREVISTAS E ANLISE DOS VDEOS

CAPTULO 3

110

CONHECENDO AS CRIANAS DE DENTRO: RELAES SOCIAIS E PRATICAS CULTURAIS DE BRINCADEIRAS 110

3.2

AS PRTICAS CULTURAIS DE BRINCADEIRA: DE QU AS CRIANAS BRINCAM, 122 125 148

COMO ORGANIZAM AS BRINCADEIRAS E A IMPORTNCIA DAS ROTINAS COMO CONHECIMENTO PARTILHADO

3.2.1 As rotinas de brincadeiras como base comum para a construo de uma atividade conjunta 3.2.2 Papis encenados e planos de ao

3.3 A CONSTRUO DA ORDEM SOCIAL DO GRUPO DE PARES: AS RELAES SOCIAISENTRE AS CRIANAS NO CONTEXTO DA BRINCADEIRA

156 156 185 211

3.3.1 A formao dos grupos de brincadeira: o desejo de brincar junto e os laos com os companheiros de brincadeira tipos de resistncia 3.3.3 Formas de aes conjuntas 3.3.2 O acesso das crianas s brincadeiras: estratgias de entrada e

3.3.4 As funes do lder: decidir, organizar e proteger a brincadeira 220 3.3.5 Eu peguei primeiro: o conflito nas relaes entre as crianas 3.3.6 Brincando com regras vs. brincando com as regras 235 241

CAPTULO 4

254

A CONSTITUIO DE CULTURAS DA INFNCIA NOS ESPAOS-TEMPOS DO BRINCAR: NOTAS CONCLUSIVAS? 254 275

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ANEXOS

LISTA DE QUADROSQuadro 1: Horrio semanal do grupo Quadro 2: Idades das crianas e participao nos episdios registrados Quadro 3: 2003: Participao das crianas nos episdios e companheiros de brincadeira Quadro 4: 2004: Participao das crianas nos episdios e companheiros de brincadeira Quadro 5: 2003: Episdios e composio dos grupos por gnero Quadro 6: 2004: Episdios e composio dos grupos por gnero 113 120 159 160 178 178

LISTA DE TABELASTabela 1: 2003 Freqncia das estratgias de entrada nos episdios registrados Tabela 2: 2004 Freqncia das estratgias de entrada nos episdios registrados Tabela 3: 2003 Percentual de aceitao e de resistncia por tipo de estratgia de entrada Tabela 4: 2004 Percentual de aceitao e de resistncia por tipo de estratgia de entrada Tabela 5: 2003 Freqncia dos tipos de resistncia s tentativas de entrada Tabela 6: 2004 Freqncia dos tipos de resistncia s tentativas de entrada 188 189 189 189 193 193

LISTA DE FIGURASFigura 1: Casinha (vista do parque) Figura 2: Planta da casinha Figura 3: Cozinha Figura 4: Quarto Figura 5: Varanda Figura 6: Vista 1 do parquinho Figura 7: Vista 2 do parquinho Figura 8: Casinha Figura 9: Escorregador Figura 10: Balano-escorregador Figura 11: Casa da bomba Figura 12 : Escorregador Figura 13: Trepa-trepa Figura 14: Escorregador Figura 15: Balano Figura 16: Brincadeira de polcia e ladro Figura 17: Brincadeira de polcia e ladro Figura 18: Rotina matar-morrer-reviver Figura 19: Rotina matar-morrer-reviver Figura 20: Preparao de alimentos Figura 21: Brincadeira de me e filha Figura 22: Brincadeira de me e filha 114 115 115 115 115 117 117 117 117 117 118 118 118 118 118 293 293 293 293 293 294 294

Figura 23: Fazendo areia molhada Figura 24: Jogando bomba/veneno Figura 25: Aes coordenadas integradas Figura 26: Pulando a janela

294 294 294 294

LISTA DE ANEXOS Anexo 1 Autorizao dos pais Anexo 2 Roteiro de entrevista com crianas Anexo 3 Fotos de brincadeiras 291 292 293

CULTURAS DA INFNCIA NOS ESPAOS-TEMPOS DO BRINCAR

RESUMO

O objetivo central do estudo foi compreender como as crianas, nas relaes entre si e nos espaos-tempos do brincar, constituem suas culturas da infncia, concebidas como formas de ao social sobre o mundo pelas quais se identificam como um grupo de pares. A partir de uma perspectiva etnogrfica, o estudo acompanhou um grupo de crianas de 4-6 anos, situado em uma unidade municipal de educao infantil de Niteri, em suas atividades de brincadeira realizadas nos espaos e tempos organizados pela escola para esse fim. As observaes foram registradas em vdeo e notas de campo. Foram tambm realizadas sesses de conversas com as crianas e de reproduo de vdeos contendo episdios de situaes de brincadeira por elas vivenciadas. A pesquisa fundamentou-se nos principais pressupostos da sociologia da infncia e nos estudos que vm sendo realizados nesse campo sobre as culturas infantis, tendo como ncleo central a noo de infncia como uma construo social e a idia de revelar as crianas como atores sociais, sujeitos participantes na conduo de suas vidas e na construo da sociedade em que se inserem. Dessa forma, as vozes das crianas procuraram ser includas, no apenas no processo interativo-reflexivo do trabalho de campo, como tambm no processo interpretativo de anlise das observaes realizadas. As anlises revelaram que, no grupo e no contexto estudado, as crianas, nas relaes que estabelecem entre si e com as ordens institucionais escolares, constituem suas culturas da infncia, representadas por um conjunto de conhecimentos partilhados que lhes permite brincar e fazer coisas juntas, bem como por uma ordem social por elas construda e instituda que rege suas relaes de pares. Assim, os modos de formao e de organizao dos grupos, as relaes de amizade, as estratgias de participao nas brincadeiras, a negociao de conflitos, a construo de aes conjuntas coordenadas e as relaes com as regras escolares so analisados como elementos estruturantes de uma cultura infantil que identifica e organiza o grupo nas suas formas de pensar, sentir e fazer. As concluses da pesquisa so sintetizadas a partir de trs eixos: (i) a agncia das crianas na regulao de suas relaes e na organizao das brincadeiras; (ii) o desejo de brincar com os outros, a valorizao do espao interativo e a partilha como elementos constitutivos das culturas infantis; (iii) o brincar como atividade criadora, atravs da qual as crianas reinterpretam o mundo e se compreendem como membros de um grupo geracional e como sujeitos na sociedade. Ressalta-se ainda que o reconhecimento das crianas como sujeitos atores sociais plenos implica promover a ampliao dos seus direitos sociais de participao na sociedade e nas instituies de educao infantil, o que significa escutar suas vozes e incluir suas formas prprias de pensar e agir nas organizaes dos espaos-tempos institucionais e de suas vidas.

PALAVRAS-CHAVE: culturas da infncia, brincar, sociologia da infncia

CHILDHOOD CULTURES WITHIN SPACES AND TIMES OF PLAY

ABSTRACT

The main objective of this study was to understand how the children, through their relations with each other during play time, make up their childhood cultures, conceptualized as forms of social action in the world promoting their identification as a particular peer group. From an ethnographic perspective, the research followed a group of children, between 4-6 years old, in a state-funded pre-school in the city of Niteri - Rio de Janeiro. Their play activities carried out in spaces and times organized by the school were observed and recorded on video and first hand note-taking. Conversation sessions with the children also took place. This research underlying principles were based on the new studies of the Sociology of Childhood, particularly, on the researches concerning childrens culture. The sociological approach of childhood understands that childhood is a social construction and that children are social actors, participating actively in the construction of the society of which they are part. For this reason, the present study decided to incorporate their voices not just in the interactive-reflexive process of the participant observation, but also in the analytical interpretation of the observations. The data show that the observed group, through their peer social relations, creates a childhood culture based on the interrelationship between themselves and the institutional context. This culture is revealed by various forms of shared knowledge, which allows them to play and do things together, and by the joint construction of a social order which rules the peer relationships. Thus, the ways in which the groups are organized, the relationships between friends, the strategies used to participate in play activities (access and resistance), the negotiation of conflicts, the construction of coordinated joint actions and the relations with the school rules were analyzed and understood as elements of a child culture which identifies and organizes the group and their members in the ways they think, feel and act. The main findings of the research were synthesized through three topics trends which support some of the propositions of the Sociology of Childhood: (i) the childrens agency in regulating their relations and their play activities; (ii) the desire to play together, the valorization of interactive space and sharing as central elements which participate of the construction of childhood culture; (iii) playing as a creative activity, through which children reinterpret the world and understand themselves as members of an age group and subjects of society. It is also pointed out that the recognition of the children as social actors involves the promotion and amplification of their social rights in participating in society and school institutions. This implies listening to their voices and including their ways of thinking and acting in the organization of spaces and times within these contexts.

KEY-WORDS: childhood cultures; play; sociology of childhood.

CULTURES ENFANTINES EN SITUATIONS DE JEU

RSUM

Lobjectif central de cette tude a t de comprendre comment les enfants, dans leurs relations entre eux et dans les espaces-temps du jeu, constituent leurs cultures enfantines, conues comme formes daction sociale sur le monde travers des quelles ils sidentifient comme un groupe de pairs. partir dune perspective ethnographique, ltude a suivi un groupe denfants de 4 6 ans, dans une colle maternelle publique, Niteri- Rio de Janeiro. Le regard a t pos sur les activits de jeux que les enfants organisent eux mmes, dans les espaces et temps prvus pour cela (la cour de rcration). Les observations ont t enregistres en vido et notes de terrain. On a fait aussi des entretiens avec groupes denfants autour des situations enregistres en vido. En regardant ces situations, o ils taient les protagonistes, les enfants discutaient entre eux et avec le chercheur en sujet de questions concernant la faon dont ils organisent leurs jeux et leurs relations sociales. La recherche est fonde sur les principes centraux de la sociologie de lenfance et sur les tudes des cultures enfantines, ayant comme noyau principal la conception denfance comme une construction sociale et la proposition de comprendre les enfants comme une population part entire. Les enfants sont des acteurs sociaux, sujets participants dans la conduction et construction de leurs vies et de la socit o ils vivent. Ainsi leurs dires et points de vue sont en premier plan de la recherche, non seulement dans les processus du travail de terrain, mais aussi dans le travail dinterpretation et danalyse des observations. Les analyses ont montr que, dans le groupe suivi et le contexte tudi, les enfants, partir des relations quils tablissent entre eux et avec les ordres institutionels scolaires, constituent leurs cultures denfance, rprsentes dune part par un ensemble de connaissances partages qui leur permettent de jouer et faire des choses ensemble, et dautre part par un ordre social construit et institu par eux mmes et par lequel ils grent leurs relations. Ainsi, les modes de formation et dorganisation des groupes, les relations damitis, les stratgies de participation dans le jeu, la ngotiation de conflits, la construction dactions communes coordones et les rapports avec les rgles scolaires sont compris en tant qulments structurants dune culture enfantine qui identifie et organise le groupe dans ses formes de penser, sentir et agir. Les conclusions de la recherche sont synthetiss autour de trois axes: (i) laction sociale des enfants dans la rgulation de leurs relations et lorganisation de leurs jeux; (ii) le dsir de jouer ensemble, la valorisation de lespace interatif et le partage comme lments constitutifs des cultures enfantines; (iii) le jeu comme activit cratrice, travers laquelle les enfants rinterpretent le monde et se comprennent en tant que membres dun groupe gnrationnel et sujets dans la socit. La reconnaissance des enfants comme sujets sociaux entiers implique dassurer leurs droits sociaux de participation dans la socit et les institutions scolaires, ce qui demande linclusion de leurs formes de penser et agir dans lorganisation des espaces et temps institutionnels et de leurs vies quotidiennes. Mots-cls: cultures enfantines; jeu; sociologie de lenfance.

Apresentao

13

...a infncia um outro: aquilo que, sempre alm de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurana de nossos saberes, questiona o poder de nossas prticas e abre um vazio em que se abisma o edifcio bem construdo de nossas instituies de acolhimento. Pensar a infncia como um outro , justamente, pensar essa inquietao, esse questionamento e esse vazio. Jorge Larrosa

APRESENTAO

Escolhi as palavras de Jorge Larrosa (1999, p.184) para abrir esse trabalho, pelo que elas representaram na gestao desta pesquisa. Elas fazem parte de um texto do autor intitulado O enigma da infncia, cujas reflexes exerceram em mim forte provocao, convidando-me a construir um olhar interrogador relativamente s crianas, que pudesse v-las como sujeitos outros, enigmticos, que no aceitam a medida do nosso saber (...) e do nosso poder (ibid. p.186). Para tanto, como indica Larrosa, foi necessrio rever / desconstruir muitas certezas que guiam grande parte dos estudos e pesquisas legitimadores dos saberes dominantes sobre a infncia e sobre as prticas junto s crianas, os quais tm nos levado muito mais a enquadr-las nas suas margens do que propriamente compreender a alteridade da infncia, a sua absoluta heterogeneidade em relao a ns e ao nosso mundo, sua absoluta diferena (ibid, p.185). As palavras de Larrosa encontraram ressonncia no trabalho que vinha e venho realizando na Creche UFF1, um projeto poltico-pedaggico que busca a novidade, ou seja, uma prtica ancorada na compreenso da criana como sujeito autor e ator, construtor de sua experincia de ser criana e sujeito no mundo. A procura de novidade, do no conhecido, abriu um vazio, enfrentado em primeiro lugar pelo questionamento do que eu j sabia sobre as crianas e pela inquietao com a emergncia de questes cujas respostas

A Creche UFF vinculada Universidade Federal Fluminense, PROEX (Pr-Reitoria de Extenso e Pesquisa), como um projeto de ensino, pesquisa e extenso. Foi inaugurada em 1997, por uma equipe multidisciplinar, e trabalha com crianas na faixa etria de 2 a 6 anos, filhas de alunos, funcionrios e professores da universidade. Desde a sua inaugurao, integro a equipe tcnico-cientfica da creche, trabalhando na construo e na implementao do seu projeto poltico-pedaggico, bem como desenvolvendo projetos de extenso e pesquisa sobre a infncia, mais particularmente sobre o brincar e suas relaes com a constituio da infncia.

1

Apresentao

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no se encaixavam nesses saberes. O segundo passo foi construir uma atitude de escuta, de tentar olhar a criana como um outro, um outro a encontrar. E foi essa atitude que me levou a construir o objeto de estudo da pesquisa aqui apresentada. Comecei desenvolvendo pequenos trabalhos de pesquisa voltados para o estudo do brincar, observando as formas pelas quais as crianas organizam suas brincadeiras, os significados construdos nas relaes sociais que estabelecem entre si e com os objetos do brincar, buscando aguar o meu olhar para as suas falas, aes e interaes sociais. Sobressaa nesses estudos a forma como as crianas lidam com as referncias culturais do seu meio familiar e da sociedade em que vivem, destacando-se que, nesse processo, tanto reproduzem papis, aes, valores, como produzem algo novo, pela interpretao particular que fazem desses elementos no processo do brincar. Foi o interesse por essa questo que me levou a elaborar um projeto de pesquisa com o qual ingressei no curso de doutorado. No final de 2002 desenvolvi um projeto piloto dessa proposta inicial de pesquisa na Creche UFF. Entrei em campo com o propsito de investigar os aspectos de produoreproduo da cultura presentes no brincar, elegendo a relao da brincadeira com a cultura mais ampla, mais especificamente com a cultura do consumo, como o objeto principal de investigao. Buscava compreender a brincadeira como espao de inveno, criao e produo, e no apenas de reproduo da realidade e da cultura e, para tanto, acompanhei durante dois meses um grupo de crianas de 3 a 6 anos em atividade de brincadeira livre, em uma sala da creche organizada para esse fim, registrando em vdeo as situaes observadas. A turma se dividia em dois grupos, que participavam desta atividade em perodos seqenciais de 40 minutos, durante duas vezes por semana. Nesse estudo, os dados trabalhados com base nas observaes realizadas sinalizaram para a existncia de regularidades relativamente a alguns aspectos das relaes sociais entre as crianas, como: as formas de entrada e participao nas brincadeiras, o papel das alianas e da amizade na organizao dos grupos de brincadeiras, os valores de cooperao se sobrepondo aos valores individualistas (partilha de objetos, papis, ajuda mtua para a resoluo de problemas), a autonomia das crianas para desenvolverem suas aes e gerirem as suas relaes sociais entre pares, e algumas atividades de brincadeira e seqncias de ao que se repetiam, revelando um conjunto de conhecimentos e procedimentos construdos e partilhados pelas crianas. Alm disso, os dados tambm apontavam para a compreenso de que naquele grupo, naquele espao, os elementos culturais externos, prprios da cultura do consumo, eram ressignificados, transformados pelas crianas, atravs de suas prticas

Apresentao

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sociais de brincadeira, de um modo que encontrava sustentao na proposio de Brougre (2002a) de que as crianas se apropriam das referncias culturais externas somente se estas puderem ser incorporadas sua cultura ldica. Essas observaes convergiam para algo que j vinha sendo discutido no campo dos estudos da infncia: a possibilidade da existncia de uma cultura infantil construda e estabelecida pelas crianas nas relaes de pares. O trabalho de campo teve prosseguimento no incio de 2003 e, em abril, foi introduzida uma outra instituio de educao infantil como unidade de investigao, na qual passei a acompanhar um grupo de crianas de 4-5 anos, com vistas a enriquecer o campo de estudos e a propiciar um dilogo com o contexto da Creche UFF. As questes levantadas acima se tornaram cada vez mais inquietantes, levando-me a investir em leituras dirigidas ao tema das culturas da infncia, o que determinou uma mudana no foco da pesquisa, desviado da idia inicial de estudar o brincar atravs das relaes de produoreproduo no contexto da cultura do consumo, e dirigido, a partir de ento, ao estudo da produo das culturas infantis no espao do brincar. A idia era compreender de que modo a atividade de brincadeira relaciona-se constituio e utilizao pelas crianas de um conjunto relativamente estvel de regras, artefatos, formas de comunicao, rituais, rotinas, conhecimentos e valores. A mudana de foco gerou algumas questes de ordem metodolgica, implicando a tomada de decises importantes no redirecionamento da pesquisa. Uma delas decorreu da compreenso de que as observaes realizadas no contexto de pesquisa da Creche UFF se distanciavam cada vez mais das observaes realizadas no contexto da outra instituio. Isso porque na creche as atividades eram observadas em grupos pequenos, arbitrariamente escolhidos pela professora, e varivel a cada dia de acordo com o andamento da rotina diria, o que no me permitia a observao do funcionamento das crianas como um grupo de idade, ou seja, como a totalidade representada por um conjunto de crianas que partilha os espaos-tempos da instituio, em toda a complexidade envolvida nos aspectos relativos s formaes dos grupos, s alianas, s amizades, aos conflitos etc. O que esse espao possibilitava, ao contrrio, era uma observao mais concentrada do funcionamento de grupos menores de brincadeira, sem muitas interferncias externas, o que atendia aos propsitos iniciais da pesquisa, mas no nova orientao, voltada para uma viso sociolgica do brincar e das relaes sociais entre as crianas no contexto de um grupo de

Apresentao

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pares2. Dessa forma, decidi ampliar a pesquisa na outra instituio, que atendia plenamente aos meus propsitos, e no mais incluir a creche como campo de investigao. Esclarecido o processo de construo do objeto e do contexto dessa investigao, passarei a abordar o campo terico que se constituiu como referncia principal do trabalho, a sociologia da infncia, para, em seguida, apresentar as principais definies tericometodolgicas que estruturaram a pesquisa. Aquele vazio mencionado no incio dessa apresentao, decorrente da busca de ver a criana como um outro, e a atitude de interrogao na prtica junto s crianas, provocaram uma investida em novas formulaes tericas, motivada tambm pela busca de conhecimentos produzidos sobre o tema das culturas da infncia. Nesse caminho, cheguei aos estudos sociolgicos sobre a infncia, primeiramente atravs de autores como Brougre (1997, 2002a), Sarmento (2002) e Corsaro (1997). Mas o que esse campo propunha? Que elementos tericos o definiam? Em que medida ajudava-me a investigar as questes que me inquietavam? Vrios autores apontam que, no incio dos anos 90, os estudos sociolgicos sobre a infncia experimentaram um notvel boom (Qvortrup, 1994; 1999; Sirota, 1998, 2001; Montandon, 1998, 2001), gerando um processo de construo e legitimao de um campo especfico de estudos. Esse momento foi marcado pela proliferao de redes de investigadores, pela organizao de eventos cientficos voltados para o tema (em muitos dos quais foram constitudas comisses voltadas para a configurao do campo) e por pesquisas, projetos e publicaes, fatos que convergiram para a sua visibilidade e o seu reconhecimento institucional nos universos acadmicos (anglo-saxnico, centro-europeu e francofnico). Esse boom, segundo Qvortrup (1994, 1991), surgiu em momentos mais ou menos simultneos (e inicialmente independentes) nesses diferentes universos, o que pode estar relacionado, na viso do autor, s semelhanas dessas sociedades ocidentais industrializadas, representadas por problemticas comuns por elas experimentadas, algumas delas relacionadas infncia. O autor aponta, nesse sentido, os principais paradoxos que expressam o desconforto da nossa cultura acerca da ambigidade em relao infncia (1991, p.2): as crianas crescem em importncia na cena poltica, acadmica e miditica no mesmo momento em que os indicadores demogrficos apontam a2

O termo grupo de pares ser utilizado neste trabalho na acepo de Corsaro (1985, 1997), para referir-me a grupos de crianas que partilham espaos-tempos em uma base cotidiana.

Apresentao

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diminuio de seu peso quantitativo nos pases ocidentais industrializados; os adultos, apesar de proclamarem seu amor s crianas e a necessidade de protegerem-nas e acompanharem o seu desenvolvimento, tm cada vez menos tempo de convvio com as mesmas, vivendo suas vidas cada vez mais separadas; os adultos valorizam a espontaneidade das crianas, mas estas tm cada vez mais as suas vidas organizadas e determinadas dentro de margens rgidas de espaos e tempos institucionais; h um discurso adulto de que as crianas esto em primeiro lugar, porm isso no se reflete nas decises econmicas e polticas, que geralmente no as levam em conta, apesar de afetarem-nas direta e indiretamente; a maioria dos adultos defende que os pais devem assumir a maior quota de responsabilidade dos filhos, porm tm cada vez menos condies estruturais para isso; a proclamao pelos adultos da necessidade de liberdade e da importncia da democracia contraditoriamente acompanhada de uma estruturao da vida das crianas em torno do controle e da disciplina; os adultos atribuem papel fundamental s escolas na formao das crianas, mas no reconhecem como vlida a contribuio das crianas na produo de conhecimentos; a infncia considerada, em termos materiais, como mais importante para a sociedade do que para os prprios pais, mas a maior parte dos custos com as crianas delegada aos pais. Foi tentando analisar a experincia da infncia nesse contexto paradoxal e ambguo que novas abordagens comearam a surgir ao longo das ltimas dcadas para o estudo da infncia. Relativamente sociologia da infncia, apesar de percorrer trajetrias diversas em diferentes universos acadmicos, ergueu-se como campo em torno de alguns princpios fundamentais. O princpio gerador foi a construo da infncia como objeto sociolgico, buscando romper com as vises tradicionais de infncia e de criana que, a partir de uma perspectiva biologizante, a reduziam a um ser em devir, em processo de desenvolvimento, que se tornaria futuramente um adulto competente. A criana, nessas vises, vista pelo que no - in-competente, i-matura, i-racional -, e pelo que lhe falta em relao ao adulto. Essa concepo, que durante tanto tempo dominou os estudos da infncia, conduziu, segundo alguns autores, ao silenciamento da infncia e das crianas nas Cincias Sociais, vistas sempre como objetos passivos da socializao imposta pelos dos adultos (James e Prout, 1990; Sirota, 1998). Contrapondo-se a essas vises, a sociologia da infncia props uma virada paradigmtica, ou seja, revelar a criana na sua positividade, como ser ativo, situado no tempo e no espao, nem cpia nem o oposto do adulto, mas sujeito participante, ator e autor na sua relao consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Com base nessa

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premissa, postula que a infncia e as crianas devem ser estudadas na sua alteridade, pelos seus prprios mritos, e no indiretamente atravs de outras categorias da sociedade. Tornar a infncia objeto sociolgico significa, por um lado, compreend-la como uma categoria social estrutural da sociedade e, por outro lado, revelar as prticas e processos sociais mais concretos atravs dos quais as crianas agem sobre o mundo, participando da construo de suas vidas e da sociedade. Foi nessa segunda vertente terica aberta pelo campo da sociologia da infncia que situei o meu trabalho e onde encontrei as principais referncias tericas e metodolgicas que me ajudaram a reestruturar a pesquisa e a construir um enquadre interpretativo para as observaes realizadas. Alm das leituras empreendidas no sentido de situar e compreender o campo terico da sociologia da infncia (Sirota, 2001, Montandon, 2001, James e Prout, 1990), os estudos de Corsaro (1997) sobre as culturas infantis foram referncias fundamentais nas definies iniciais da pesquisa. A seguir apresento a forma como o trabalho de investigao se organizou. O objetivo central do trabalho foi compreender como as crianas, nas suas relaes entre pares, e nos espaos-tempos do brincar definidos pelo contexto da instituio de educao infantil, constituem suas culturas da infncia, concebidas como formas de ao social sobre o mundo que as identificam como um grupo de pares (grupo de idade). Com base nesse objetivo, a pesquisa procurou revelar, no contexto em que foi realizada, alguns dos principais elementos definidores dessas culturas, ou melhor, aqueles que emergiram nesse espao do brincar e nas relaes entre as crianas nele situadas. O brincar no constituiu apenas um contexto de observao, mas foi tambm focalizado como objeto de investigao sociolgica, nas relaes que estabelece com a produo das culturas da infncia. No processo da pesquisa algumas questes j se colocavam e outras foram emergindo no decorrer das interaes, e foi com base em um processo reflexivo em torno delas que defini mais tarde as categorias de anlise do objeto estudado. As questes organizadoras do estudo se dividiam em dois blocos, um deles mais voltado para o funcionamento do brincar e o outro para as relaes entre as crianas: a) De qu brincam as crianas? Que temas/referncias culturais esto presentes nas brincadeiras? Como as crianas organizam as brincadeiras? Que regras regem a definio e a conduo conjunta das brincadeiras? Que papis so adotados pelas crianas? Como so escolhidos, identificados e encenados? Que valores so agregados aos papis? Existem atividades/ seqncias de ao que se repetem cotidianamente estruturando as

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brincadeiras? Que significados assumem essas rotinas na vida coletiva e individual das crianas? Que elementos esto na base da construo conjunta de uma brincadeira? Que relaes as crianas estabelecem no brincar com a cultura mais ampla? b) Como se organizam e se compem os grupos de brincadeira? Que critrios regem as escolhas de parceiros de brincadeira e as formas de participao? Quais os principais valores associados s relaes entre pares nas brincadeiras? Como se configuram os processos de partilha, cooperao, disputas e conflitos nas relaes entre as crianas? Como essas relaes podem ser situadas no contexto da escola estudada e da sociedade mais ampla em que se inserem? A partir do objetivo central j apontado e das questes levantadas, a pesquisa adotou uma perspectiva etnogrfica, indicada pelos autores do campo como a mais adequada, por conferir s crianas maior participao na produo dos dados. Foi realizada em uma instituio pblica de educao infantil de Niteri, com um grupo de crianas que, durante o perodo do trabalho de campo (duas etapas, a primeira de abril a agosto de 2003 e a segunda de agosto a dezembro de 2004), compreendeu a faixa etria de 4 a 6 anos e um total de participantes que variou entre 18 a 20 crianas. A partir de um processo de observao participante, no qual busquei captar as vozes das prprias crianas, acompanhei as atividades de brincadeiras livres desse grupo nos espaos-tempos definidos pela instituio para esse fim, buscando penetrar nos seus mundos sociais e culturais, atravs da focalizao nas aes e relaes sociais que as crianas individual e coletivamente constroem entre pares no brincar, sem a interveno direta do adulto. O processo de investigao e a minha relao de pesquisadora com os sujeitos da pesquisa foram cotidianamente construdos na prtica interativa e reflexiva desenvolvida com as crianas, e constituiu, em si mesmo, um campo de estudos prprio, ainda que inseparvel do objeto sociolgico de investigao. Digo isso porque houve um investimento grande da minha parte em construir uma prtica de pesquisa coerente com a viso das crianas como atores sociais, que se descolasse das vises tradicionais que vm emudecendo as vozes infantis nas cincias sociais. Desafio enfrentado pelo prprio campo em construo da sociologia da infncia face s complexidades decorrentes da mudana de paradigma, e desafio maior ainda para mim, frente inexperincia com o desenvolvimento de pesquisas de natureza sociolgica. O pressuposto de dar voz s crianas na pesquisa e adotar o seu ponto de vista exigia que a sua participao estivesse includa em todas as fases da investigao. Isso implicava uma reviso radical das prticas dominantes das

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pesquisas sobre crianas - que as concebem como objeto e no como sujeitos participantes - e da minha prpria experincia como pesquisadora, alm da criao de estratgias e procedimentos que instaurassem a pesquisa com crianas, tendo-as como participantes e informantes privilegiados para a compreenso do objeto estudado. As crianas foram observadas em situaes naturais e rotineiras do cotidiano escolar, em suas aes desenvolvidas nos espaos destinados ao brincar - dois parques e uma casa de alvenaria mobiliada com materiais proporcionais ao tamanho das crianas. Suas falas, suas significaes e modos prprios de ao, suas formas de comunicao entre si e de organizao social nas brincadeiras foram os contedos principais da observao. Como forma de registro foram utilizadas videogravaes, audiogravaes e comentrios escritos em notas de campo (dirio de campo). Essas notas incluram as descries das situaes observadas e o contexto em que se constituram, as reflexes que emergiram no/sobre o processo de investigao, sobre a minha relao com as crianas e sobre questes tericas relativas ao objeto de estudo. Foram tambm realizadas entrevistas e conversas informais com as crianas, que se revelaram fundamentais para a compreenso de suas aes e relaes sociais. No decorrer desse processo foram sendo definidas as categorias que estruturaram o processo interpretativo e os ajustes contnuos nos procedimentos de investigao. A seguir apresento as partes que organizam a apresentao do trabalho. No primeiro captulo trabalho com alguns eixos tericos visando construo de um olhar sociolgico para a compreenso da infncia. Desse modo, abordo em primeiro lugar a sociologia da infncia como campo de estudos em construo, objetivando descrever esse processo constitutivo e demarcar os princpios que configuram o principal empreendimento terico dessa nova rea de estudos: uma mudana de paradigma na construo da infncia como objeto sociolgico. Em segundo lugar, focalizo um dos eixos que compem o conjunto das pesquisas que vm sendo realizadas no campo, contribuindo para a sua legitimao: a noo das culturas da infncia. Essa noo tem sido construda atravs de pesquisas de cunho etnogrfico que focalizam as aes e relaes sociais entre as crianas, buscando revel-las como atores sociais, e como grupo de idade, capazes de agenciar suas prprias aes sobre o mundo e, mais particularmente, criar e nutrir suas culturas de pares. Ainda neste captulo, abordo o brincar como um dos pilares das culturas da infncia (Sarmento 2002) e, para tanto, discuto as relaes que os estudos sobre o brincar vm estabelecendo com as noes de cultura e a importncia da interpretao desse

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processo do ponto de vista sociolgico para a compreenso dessas relaes a partir da proposio central das crianas como atores sociais. No segundo captulo trato das escolhas metodolgicas e da configurao do estudo. Assim, inicio com uma discusso terico-metodolgica sobre as implicaes das proposies centrais da sociologia da infncia para a pesquisa com crianas, trazendo as principais reflexes que vm sendo desenvolvidas nessa direo por autores do campo. A seguir assinalo os princpios fundamentais que guiaram o processo investigativo neste trabalho. Aponto ainda algumas questes ticas envolvidas nos estudos com crianas, decorrentes da inteno de incluir as suas vozes nos processos de deciso, da conduo e da interpretao na pesquisa. Depois passo descrio do contexto do estudo, com a apresentao dos motivos e das implicaes da escolha de uma escola como campo de observao, com a configurao do grupo de crianas participantes da pesquisa e com a justificativa do foco do estudo no brincar e nas relaes das crianas entre si e como coletividade. Abordo tambm o processo de construo da minha relao como investigadora com as crianas e de que forma se deu o envolvimento das crianas com a pesquisa. Finalmente, apresento os principais procedimentos de investigao utilizados na pesquisa. O terceiro captulo refere-se ao tratamento dos dados da pesquisa. Em primeiro lugar apresento uma caracterizao da escola e do grupo de crianas participantes do estudo, objetivando fornecer um panorama do contexto estudado, para subsidiar a compreenso dos dados apresentados e discutidos nas sees seguintes. Os dados foram organizados e analisados atravs de categorias definidas no decorrer do estudo, a partir das questes de partida e daquelas que foram sendo levantadas no processo interativo-reflexivo com o campo. Dessa forma, defini inicialmente duas grandes categorias, que foram trabalhadas separadamente, apesar de sua indissociabilidade nas prticas sociais de constituio das culturas de pares. So elas: as prticas culturais de brincadeira e as relaes sociais entre as crianas. A primeira tratou da compreenso de quais so as brincadeiras que permeiam o cotidiano das crianas, as principais rotinas identificadas nas aes coletivas, os papis sociais e as formas pelas quais as crianas organizam suas brincadeiras. O objetivo dessa anlise foi fornecer a base e o contexto sobre o qual as relaes entre pares - a segunda categoria - so estabelecidas, fortalecidas, refletidas, modificadas, configurando uma ordem social estruturante das aes individuais e coletivas. No interior dessa categoria foram definidas subcategorias para destacar os aspectos que

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sobressaram como elementos definidores dessa ordem social, que so: a formao dos grupos de brincadeiras e os principais valores associados; o acesso das crianas s brincadeiras (estratgias de entrada e de resistncia); as diferentes formas de aes conjuntas; as funes do lder na organizao e conduo das brincadeiras; os conflitos nas relaes entre as crianas; e por ltimo, as formas como as crianas lidam com as regras adultas, muitas vezes invertendo/burlando a ordem. Finalmente, concluo o trabalho recuperando os principais achados da pesquisa e apontando suas possveis contribuies para o campo da sociologia da infncia bem como para as prticas educativas junto s crianas nas instituies de educao infantil.

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CAPTULO 1

CONSTRUINDO UM OLHAR SOCIOLGICO PARA A COMPREENSO DA INFNCIA

A inscrio deste trabalho no campo da sociologia da infncia implica assumir o seu princpio gerador que a concepo da infncia como um objeto de estudo sociolgico. Dentro desse contexto, apresento neste item o terreno terico com o qual estabeleci um dilogo em todas as fases da pesquisa. Em primeiro lugar, abordo os principais aspectos que caracterizam o processo de constituio do campo da sociologia da infncia, apontando os seus princpios e teses fundamentais. Em seguida, focalizo a noo de culturas da infncia que vem sendo construda no campo, apresentando as principais compreenses e pesquisas que contribuem para a definio dos seus contornos e discutindo os limites e possibilidades do uso dessa noo. No seio dessa discusso, abordo as relaes entre diferentes abordagens sobre o brincar e a cultura e, mais especificamente, entre o brincar e a noo de culturas da infncia, destacando as principais compreenses que constituram o ponto de partida e o eixo sobre o qual a pesquisa se construiu.

1.1 A sociologia da infncia: por um estudo da infncia pelos seus prprios mritosA afirmao de que as crianas devem ser estudadas pelos seus prprios mritos tem sido usada por muitos pesquisadores inscritos no campo da sociologia da infncia e expressa a proposio geral de se compreender as crianas pelo que elas so e no como receptculos da educao dos adultos. Mas o que isso significa? Como a sociologia da infncia se relaciona com o campo mais geral da sociologia? Que quadros tericos demarcam o surgimento desse campo? Esse novo campo introduz um novo paradigma, um novo objeto? Para abordar essas questes, sem pretender respond-las completamente, dado que muitas ainda se encontram em aberto, recorro primeiramente a um dossi dedicado

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sociologia da infncia, publicado em 1998 na revista internacional de sociologia ducation et Socits, com dois nmeros temticos organizados por Rgine Sirota, sociloga francesa. A escolha dessa publicao deve-se sua reconhecida contribuio no meio cientfico para a visibilidade e o reconhecimento da sociologia da infncia como um campo importante e necessrio de estudos. No editorial do primeiro nmero desse dossi, Sirota (1998) aponta que a escolha do tema sociologia da infncia afina-se com os objetivos fundadores da revista: desenvolver uma sociologia da educao que ultrapasse a sociologia da escola, estar atenta s evolues do meio cientfico e exprimir as recomposies do campo onde a sociologia encontra disciplinas vizinhas: filosofia, psicologia, histria, demografia, cincias polticas etc. Nessa publicao, destacarei dois artigos que analisam a emergncia da sociologia da infncia como um campo especfico, um deles focalizando a literatura em lngua francesa (Rgine Sirota) e o outro a de lngua inglesa (Clopatre Montandon). O recorte da paisagem cientfica realizado pelas duas autoras nos referidos artigos revela que as esferas de lngua francesa e de lngua inglesa desenvolveram o objeto de estudo atravs de movimentos paralelos e, em certa medida, impermeveis. Atravs desse trabalho, as autoras buscam romper com essa impermeabilidade, apontando tanto a especificidade desses movimentos quanto os traos que os unificam. Com isso, oferecem-nos um rico panorama do conjunto dos processos de constituio do campo da sociologia da infncia, o qual procuro sintetizar a seguir. Para Sirota (2001), apesar de no ser to nova3, a questo da construo de uma sociologia da infncia foi ignorada ou silenciada no discurso cientfico, at recentemente. Segundo a autora, o objeto de estudo infncia foi qualificado pelos socilogos como fantasma onipresente, terra incgnita, mudo, na literatura de lngua francesa, e como marginalizado, excludo, minoritrio, invisvel, na literatura de lngua inglesa. A constituio de um campo sociolgico destinado ao estudo da infncia marca, pois, a revelao de uma carncia, o des-cobrimento da infncia na paisagem sociolgica e a possibilidade de ultrapassagem de uma viso fragmentada, a partir da incluso por inteiro

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Sirota cita nesse sentido as proposies de Mauss, j em 1937: Nas duas primeiras questes que apresentei, meio social para a criana e o problema das geraes, v-se como a sociologia da infncia pode servir a todas as partes da sociologia e prpria sociologia geral. Por outro lado, na terceira questo, a das tcnicas do corpo, vemos como a sociologia geral serve e deve servir educao da infncia (publicada em Trs observaes sobre a sociologia na infncia, pela editora francesa Gradhiva, excerto de uma comunicao que Mauss devia apresentar por ocasio de um congresso de sociologia da infncia, em 1937, redescoberta por Fournier).

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desse novo objeto de trabalho no discurso cientfico. Apresento a seguir as principais marcas apontadas pela autora na trajetria da insero desse objeto no panorama cientfico. A definio tradicional de infncia como perodo de crescimento, como de um ser em devir, em processo de formao, conduziu a prticas sociais no sentido de proteger esse ser frgil e de mold-lo e instru-lo para alcanar plenamente a racionalidade adulta. Com base nessa viso, os socilogos voltaram sua ateno para as instncias encarregadas do processo de socializao, concebido a partir de uma perspectiva estrutural-funcionalista que, seguindo a definio durkheimiana, encarava a criana como um objeto passivo de uma socializao regida por dispositivos institucionais como a escola, a famlia, a justia. Esse foi o enquadramento que levou ao apagamento ou marginalizao da infncia, uma vez que no percebia a criana em si mesma, como ser protagonista, presente, situado, mas sempre como objeto de uma socializao regida por instituies. Os primeiros elementos que apontam para o nascimento da sociologia da infncia como campo de estudos surgem face oposio concepo de criana como ser em devir e s definies funcionalistas delineadas acima. Tal oposio situa-se no contexto de um movimento geral da sociologia marcado pelo recuo do funcionalismo estruturalista e pelo impulso das pesquisas interacionistas, construcionistas, fenomenolgicas e interpretativas. A partir de uma releitura crtica do conceito de socializao, a sociologia volta-se ento para o ator e para os processos de socializao por este protagonizados. Esse movimento geral da sociologia retoma a concepo da infncia como uma construo social, inaugurada por ries4 atravs da publicao de Lenfant et la vie familiale sous lancien rgime em 1960. A tese de Aris torna-se foco de discusso em um grande nmero de trabalhos, ampliando o interesse pelo objeto no conjunto das cincias sociais. Em relao aos trabalhos em lngua francesa, em 1994, a revista Revue de lInstitut de Sociologie de Bruxelles, em um nmero intitulado Infncia e Cincias Sociais, buscou revelar pela primeira vez a infncia como objeto de estudo. A publicao propunha-se a construir o objeto a partir da concepo de crianas como atores sociais que participam das trocas e das interaes, sendo ao mesmo tempo produtos e produtoras da sociedade. A idia geral que conduzia os trabalhos era compreender a infncia como um grupo social em si, que merece ser estudado, uma vez que possui traos especficos que o diferenciam de outras categorias sociais.

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P. ries. Lenfant et la vie familiale sous lAncien Rgime. Paris: Point Seuil, 1960.

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Sirota destaca como um fato importante no processo de constituio desse novo campo a organizao de dois comits de pesquisa no mbito da Associao Internacional dos Socilogos de Lngua Francesa. Os socilogos dedicados ao estudo da famlia organizaram um encontro, em 1995, em Montreal, intitulado Infncias, apontando que a leitura social da infncia poderia propiciar, a partir de uma perspectiva comparativa internacional, um conhecimento aprofundado dos modos contrastantes de construo social da infncia contempornea. Surge a configurao da criana como parceiro e ator na estrutura familiar. Por seu turno, os socilogos da educao constituram uma comisso denominada Sociologia da Infncia, por ocasio do Colquio Por um novo balano da sociologia da educao, em 1993, buscando uma desescolarizao da sociologia da educao e a revelao da criana em si mesma e no mais somente como aluna. Essa nova abordagem tem continuidade no seminrio parisiense Infncia e Poltica. Tentativa de construo do objeto (organizado pelo Institut National de Recherche Pdagogique / cole des Hautes tudes en Sciences Sociales), realizado tambm em 1993, atravs do qual se investiu na construo de uma rede que buscava o rompimento da fragmentao disciplinar associada aos estudos sobre a infncia, rede esta que originou a publicao dos referidos nmeros da revista Education et Societs, dedicados Sociologia da Infncia. Assim, a autora demarca que, a partir do final dos anos oitenta e no decorrer dos anos noventa, pesquisadores de vrias reas, como historiadores, demgrafos, socilogos e etnlogos investiram no trabalho com esse objeto no interior de suas comunidades, organizando eventos cientficos que tiveram grande importncia na constituio do campo, atravs de trocas, debates e publicaes que contriburam para a sua estruturao. No campo da etnologia, Sirota destaca a importncia do Colquio Anual da Sociedade de Etnologia Francesa, realizado em Lille (Frana), em 1997, que elegeu como tema central Sociedades e culturas infantis. Nesse evento, aprofundaram-se os trabalhos baseados na hiptese da existncia de sociedades e culturas infantis e buscou-se contribuir para a definio de uma etnologia da infncia. O objeto parece ter sido construdo, portanto, na interseo de certo nmero de disciplinas das cincias sociais, o que concorreu para uma recomposio disciplinar. A reviso crtica da sociologia da educao, caracterizada pela busca da compreenso do processo de socializao como um todo e no apenas circunscrito ao processo de escolarizao, exigiu a articulao com outros campos da sociologia (sociologia da famlia, sociologia poltica, sociologia do direito etc.), alm da sociologia geral.

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No que diz respeito evoluo cientfica dos conceitos que permitiram a construo da sociologia da infncia, Sirota afirma que a apario da noo de ofcio de criana foi um elemento determinante, uma vez que introduziu um papel social explcito para a criana, considerando-a como categoria social prpria e reservando-lhe o lugar de objeto sociolgico. Essa noo aparece pela primeira vez com Pauline Kergomard, em seus trabalhos sobre a escola maternal, publicados no perodo de 1886 a 1910. A viso proposta por essa autora que as crianas possuem uma natureza infantil que deve ser levada em considerao pela escola nos seus dispositivos pedaggicos, para que seja propiciado o curso livre dos seus processos de maturao e desenvolvimento. A escola, nessa perspectiva, vista como o local onde a criana poder ento desempenhar o seu papel, o de ser criana. Posteriormente, Chamboredon e Prvot, em artigo intitulado Le mtier denfant, les fonctions diferentielles de lcole maternelle, publicado na Revue de Sociologie Franaise, em 1973, e no Brasil, em 1986, no peridico Cadernos de Pesquisa, retomam a noo, a partir da anlise do ofcio de criana, no mais em termos de uma natureza infantil, mas atravs da confrontao do habitus5 familiar com o habitus escolar. Trata-se agora de confrontar os pressupostos pedaggicos e do funcionamento escolar com o habitus das diferentes classes sociais das crianas e das famlias, configurado por modos especficos de pensar, de agir e de fazer. A criana aqui compreendida atravs do seu papel de aluno, e a nfase passa a recair na anlise crtica da institucionalizao da infncia, posio que passou a dominar os estudos sociolgicos sobre crianas, vistas como objetos mais ou menos passivos de uma ao de socializao. O trabalho de Chamboredon e Prvot abre caminho para o aparecimento, em uma segunda etapa, da noo de ofcio de aluno, na literatura francofnica. O ofcio da criana est diretamente ligado escola e institucionalizao da infncia, ou seja, ao ofcio de aluno, que aprendido pelas crianas, tanto na esfera formal das estruturas acadmicas como nas esferas informais, pelo currculo oculto da escola. Perrenoud, em seu livro

Chamboredon et Prvot (1986) utilizam o conceito de habitus de Pierre Bourdieu (apud Miceli, 1987:XL), que pode ser compreendido como aquilo que explica nossas disposies para determinadas formas de pensar, sentir e fazer. O habitus, na viso do socilogo francs, no um destino, mas um efeito social e no gentico (Bourdieu, em entrevista publicada no site www.dialogus2.org/BOU/habitus.html). A partir de nossa origem social e das nossas experincias e trajetrias sociais, formam-se inclinaes relativas a formas de pensamento, percepo e ao que interiorizamos e incorporamos como forma durvel. O habitus nossa histria em ao e simultaneamente a nossa ao entrando na histria. O trabalho de Bourdieu forneceu uma contribuio mpar para a crtica ao reprodutora da escola, influenciando a anlise realizada por Chamboredon et Prvot dos processos institucionais de socializao da criana pequena.

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Fabricao da Experincia Escolar, e tambm em uma srie de artigos intitulada Mtier dlve, recorre noo de ofcio para analisar o papel dos alunos na construo social da escola. O autor, vendo a escolaridade como a principal ocupao das crianas, articula a noo de ofcio de aluno s noes de currculo oculto e currculo real, interessando-se pelas tarefas designadas aos alunos e pelas estratgias por estes utilizadas face s expectativas das famlias e da escola. A sociologia do ofcio de aluno retira o foco at ento centrado nos dispositivos de socializao adotados pelas instituies para coloc-lo no sentido que os alunos atribuem ao trabalho escolar e organizao educativa. Os alunos so considerados nesses trabalhos como sujeitos constitudos em diferentes universos de socializao, como a escola e a famlia. Esse eixo, de acordo com Sirota, aprofundado em um significativo nmero de pesquisas e publicaes, que formam um conjunto terico cuja marca a oposio viso clssica centrada na socializao produzida pela escola, pelo Estado e pela famlia e a adoo da direo inversa de investigao, ou seja, o estudo daquilo que a criana cria no cruzamento dos processos de socializao vividos em diferentes instncias. Uma terceira etapa identificada por Sirota com a constituio de um novo eixo para a interpretao da noo de ofcio: a noo de experincia. Aqui destacam-se os trabalhos de Dubet6, nos quais o ofcio descrito como interpretao permanente que se vivencia como experincia subjetiva e no como papel. Os alunos, nessa viso, aprendem e se constituem como sujeitos pela sua capacidade de dominar experincias, sendo vistos como autores de sua prpria educao. Um conjunto de trabalhos que analisam o processo de socializao especfico pelo/do qual as crianas geram mltiplas aes e registros culturais representa uma quarta etapa. Esses trabalhos giram em torno da tentativa de compreender como se constri o ofcio de criana, no mais somente o de aluno, atravs do conhecimento das mltiplas situaes nas quais a criana se constri como ator social. Segundo Sirota, observa-se nessa perspectiva um retorno, em alguns trabalhos, da idia de Kergomard, sendo que agora a famlia que vista como a instncia que permitiria a ecloso do eu natural da criana. A quinta etapa marca a passagem da sociologia da escolarizao para a sociologia da socializao (Sirota, p.18), buscando-se desescolarizar a abordagem da criana, ou seja,A autora refere-se a uma sucesso de trabalhos de Dubet, nos quais o autor retoma a noo de ofcio no espao escolar a partir da noo de experincia: Les lycens. Paris: Seuil, 1991; Enfances et sciences sociales. Revue de lInstitut de Sociologie. Universit Libre de Bruxelles, 1994; Sociologie de lexprience, Paris: Le Seuil, 1994.6

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compreender aquilo que a criana faz de si e aquilo que se faz dela, e no simplesmente aquilo que as instituies inventam para ela (Sirota, 2001, p.28). Os estudos nessa direo adotam principalmente uma perspectiva socioantropolgica, incluindo a dimenso cultural e a necessidade de se compreender a criana como um outro e em si mesma, como ser protagonista no seu prprio processo de socializao. Segundo ainda Sirota, a literatura anglo-sax referente sociologia da infncia surge mais precocemente e de forma mais estruturada do que a literatura francesa. O grande nmero de trabalhos, a legitimao institucional e a formao de redes de pesquisadores so apontados como elementos facilitadores do confronto de idias, de uma anlise reflexiva e de uma articulao terica e institucional que contribuiu muito para a construo do campo. Outra diferena, apontada pela autora, que no espao francofnico a sociologia da infncia surge no interior da sociologia da educao, enquanto que no mundo anglo-saxo a primeira surge de forma paralela e independente relativamente segunda, e com uma variedade maior de temas, vinculados s diferentes reas que geraram trabalhos significativos para a constituio do campo: antropologia mdica, economia, estudos feministas, estudos folclricos etc. Mas Clopatre Montandon (2001) quem analisa a evoluo do objeto Infncia nos trabalhos de lngua inglesa. Montandon (2001) aponta os anos oitenta como demarcadores do incio, sobretudo nos Estados Unidos, de uma intensa atividade dos socilogos interessados pelas crianas e de um certo reconhecimento da infncia como objeto de estudo sociolgico. Em 1986, a autora sublinha o surgimento do primeiro nmero de uma revista norteamericana especializada nos estudos sociolgicos do desenvolvimento infantil, intitulada Sociological Studies of Child Development, fruto da iniciativa de alguns participantes de um grupo constitudo numa seo criada na Sociedade para o Estudo do Interacionismo Simblico, denominada Desenvolvimento da Criana e Interacionismo Simblico. Mais tarde, em 1992, a revista mudou seu nome para Sociological Studies of Children. Essa revista foi e continua sendo responsvel pela publicao de trabalhos de peso para a estruturao do campo. A formao de grupos de trabalho de pesquisadores interessados nos estudos sociolgicos da infncia tambm um fato a ser demarcado nesse movimento de construo terica. Nesse sentido, o ano de 1990 marcou a primeira reunio de um grupo auto-intitulado socilogos da infncia no Congresso Mundial de Sociologia e, em 1992, foi instituda, na Associao Americana de Sociologia, uma seo de Sociologia das Crianas.

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Vale mencionar nessa trajetria a fundao pelos socilogos britnicos do Childhood Study Group e da rede Childhood and Society, bem como o projeto internacional Childhood as a Social Phenomenon. Esse ltimo reuniu dezesseis pases na realizao de uma pesquisa comparativa coordenada pelo socilogo dinamarqus Jens Qvortrup e dirigida pelo European Centre for Social Welfare Policy and Research, de Viena. Como resultado dessa pesquisa, foi publicada uma srie de relatrios nacionais permitindo uma viso ao mesmo tempo dos traos distintivos e dos traos comuns da categoria infncia em diferentes pases. (Qvortrup, 1991, 1992, 1994, 1999, 2003) Montandon segue apontando que as duas ltimas dcadas do sculo XX revelam uma multiplicao dos trabalhos sociolgicos sobre a infncia em lngua inglesa, com numerosos estudos publicados em revistas especializadas ou no, e com o aparecimento de obras importantes para o campo, dentre estas os trabalhos de Chisholm et al. (1995), Corsaro e Miller (1992), Corsaro e Rizzo (1988), Corsaro e Eder (1990), Corsaro (1979, 1985, 1988, 1997), Frnes (1995), James e Prout (1990), James, Jenks e Prout (1998), Jenks (1982), Qvortrup et al. (1994) e Waksler (1991). Assim como na sociologia de lngua francesa, os trabalhos de lngua inglesa, predominantemente de cunho emprico, tm como objetivo romper com as abordagens clssicas de socializao que concebem as crianas como objetos passivos da socializao dos adultos, para assumir a perspectiva das crianas como atores e sujeitos do processo de socializao. Montandon aponta que esses trabalhos podem ser agrupados em quatro categorias temticas, conforme classificao de Frnes (1994): as relaes entre geraes; as relaes sociais entre crianas e as culturas infantis; as crianas como um grupo de idade e categoria estrutural da sociedade; e os diferentes dispositivos institucionais destinados s crianas e seus efeitos sobre elas. Destacarei aqui duas dessas categorias por serem aquelas nas quais o presente trabalho se inscreve: as relaes sociais entre crianas e as culturas da infncia - foco central da pesquisa - e a criana como categoria estrutural da sociedade, ngulo terico fundamental para a compreenso das relaes entre pares e da produo das culturas infantis. No grupo de trabalhos que tratam do mundo da infncia investigando as interaes e a cultura das crianas, Montandon sublinha os estudos de Corsaro, ressaltando-o como o primeiro autor a se dedicar investigao das interaes entre pares. Suas pesquisas adotam a perspectiva da etnografia, atravs da observao participante e do registro em vdeo e em notas de campo de situaes de interaes entre as crianas, principalmente em atividades de

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brincadeira. O autor aponta que as crianas so produtoras de uma cultura infantil de pares e cria o conceito de reproduo interpretativa, que ser discutido mais adiante neste trabalho, como um eixo importante de anlise dessa cultura. Compreende que a socializao das crianas no deve ser vista como uma questo de adaptao ou de interiorizao de normas e valores da sociedade, mas como um processo de apropriao, marcado ao mesmo tempo pela inovao e pela reproduo da cultura na qual as crianas esto inseridas. Na mesma categoria, Montandon ressalta, entre outros, os seguintes trabalhos: o de Sawyer (1995), que prope que as interaes entre as crianas nas brincadeiras, nas quais se imaginam no lugar de outros, lhes possibilitam criar realidades temporrias que contribuem para a construo de conhecimentos pelas crianas sobre o mundo social; o de Waksler (1986), uma das primeiras socilogas a explorar o mundo social das crianas e a estud-las em si mesmas, e no a partir do que se tornam com o que queremos fazer delas; o de Mandell (1991b), que analisa as maneiras pelas quais as crianas negociam significados nas interaes com seus pares, tendo em conta seus prprios pontos de vista e os dos outros; os de Opie e Opie (republicado em Waksler (1991), mas publicado pela primeira vez em 1959), que apresentam um inventrio dos saberes tradicionais e da linguagem dos escolares da Gr-Bretanha, atravs de um estudo sobre crenas, jogos, adivinhaes, cantos, histrias, trocadilhos, apelidos, grias etc., mostrando que as crianas criam e recriam uma cultura transmitida atravs das geraes com suas variaes e especificidades contextuais. No outro conjunto de trabalhos reunidos na categoria crianas como grupo social, Montandon destaca os trabalhos de Qvortrup (1991, 1993). Esse autor defende que a infncia constitui-se como uma categoria estrutural que possui um ncleo conceitual especfico. Dessa forma, deve ser vista como uma categoria permanente da sociedade, semelhana de outras categorias como classe social e etnia. Tal viso permite estudar as mudanas e variaes sincrnicas e diacrnicas que afetam a infncia como forma social. A obra de James e Prout (1990) tambm destacada por Montandon como um trabalho terico central de peso para a construo de um novo paradigma para o estudo da infncia. Os autores identificam a imposio durante o sculo XX de uma concepo ocidental nica de infncia fundamentada principalmente nos estudos da psicologia, que ajudou a mascarar o fato de que a infncia uma construo social. Sua proposta, confrontando-se com essa viso, construir uma nova abordagem sociolgica da infncia

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que compreenda a criana como ator social, participante pleno na construo e determinao de suas vidas e da sociedade em que vivem. As anlises realizadas por Montandon e Sirota sinalizam a existncia de pontos comuns aos trabalhos de lngua inglesa e de lngua francesa no campo da sociologia da infncia, relacionados negao de algumas idias dominantes e afirmao de certas posies. Os trabalhos sociolgicos sobre a infncia de maneira geral se opem principalmente: - viso restritiva da socializao como um processo unilateral em que as crianas se adaptariam aos dispositivos das instituies e dos agentes sociais; - viso de crianas como receptculos vazios a serem preenchidos pelos conhecimentos, hbitos e valores necessrios a sua transformao em adultos competentes; - concepo de criana como ser futuro, vir-a-ser, negativo da adultez; - compreenso do processo de constituio do sujeito como um percurso linear, sendo a infncia a primeira etapa da progresso da irracionalidade para a racionalidade, da imaturidade para a maturidade. Em relao s proposies, os pontos comuns desses trabalhos so: - a criana uma construo social; - os modos de construo da infncia so variveis tanto diacronicamente quanto sincronicamente; - a infncia um componente da cultura e da sociedade; uma forma estrutural que no desaparece; - as crianas so atores sociais, sendo ao mesmo tempo produtoras e produtos dos processos sociais; - a infncia uma varivel de anlise sociolgica que deve ser considerada em sentido pleno, articulando-se a outras variveis clssicas como classe social, gnero e etnia. No Brasil, a sociologia da infncia ainda no se configura como um campo de estudos, porm alguns dos seus princpios esto na base de muitas pesquisas e do debate cientfico que cerca o tema da infncia nas duas ltimas dcadas, sobretudo a perspectiva da infncia como construo social. Esse movimento localiza-se na confluncia de estudos vinculados a vrias reas e perspectivas terico-metodolgicas que tratam da infncia, com uma concentrao nas reas da educao e da psicologia. No campo educacional, observase uma priorizao de temas como as relaes travadas nas instituies de educao infantil, as abordagens histricas da educao infantil, as polticas pblicas, a formao de profissionais e o trabalho pedaggico voltados para a infncia. J a rea da psicologia

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infantil tem privilegiado as temticas do binmio desenvolvimento-aprendizagem, o papel das interaes criana-criana e adulto-criana na constituio da subjetividade infantil e a linguagem e a mediao entre sujeitos (Rocha, 1999). Dentro desse panorama, todavia, as culturas infantis e as relaes sociais entre crianas ainda so temas pouco abordados. Sendo o campo de estudos sobre a infncia no Brasil um campo recente e pouco explorado relativamente a algumas perspectivas tericas, como a sociolgica e a antropolgica, decorre que pouco sabemos ainda sobre as crianas brasileiras, sobre seus modos de ver o mundo, seus saberes e fazeres, suas formas de se relacionar com outras crianas e com os adultos e suas possibilidades de reproduzir e produzir a realidade. As principais contribuies tericas sobre a infncia no Brasil que adotam uma perspectiva sociolgica so reunidas e destacadas por Quinteiro (2002). O primeiro trabalho citado o do socilogo Florestan Fernandes, As trocinhas do Bom Retiro: contribuies ao estudo folclrico e sociolgico da cultura e dos grupos infantis, realizado na dcada de 1940 e publicado pela primeira vez em 1947. Trata-se de um registro indito de aspectos constitutivos da cultura infantil, captados atravs de uma etnografia de grupos de crianas residentes no bairro operrio de So Paulo. Florestan realiza uma etnografia sobre grupos de brincadeiras de rua de crianas nos bairros operrios na cidade de So Paulo, registrando, de forma indita, o modo como se realiza o processo de socializao das crianas nas brincadeiras, a forma como constroem seus espaos de sociabilidades, as caractersticas das prticas sociais de brincadeiras, construindo um desenho indito das culturas infantis. Com efeito, esse trabalho de Florestan (1979) traz uma grande contribuio ao estudo sociolgico da cultura e dos grupos infantis (cf. Borba, 2005), indicando procedimentos de pesquisa e de interpretao valiosos para a penetrao nos mundos sociais e culturais das crianas. (Bastide, 1979; Martins, 1998). O autor realiza a pesquisa por meio da observao direta das trocinhas infantis, de forma minuciosa e prolongada, deixando emergir nesse processo os aspectos relacionados ao comportamento das crianas nos grupos sociais em relao: definio e obedincia s regras, solidariedade, hierarquia nas relaes de interaes entre iguais, s relaes entre meninos e meninas, entre crianas de diferentes idades, classes sociais e nacionalidades. Outro trabalho destacado por Quinteiro a coletnea de textos organizada por Jos de Souza Martins (1998), O Massacre dos Inocentes: a criana sem infncia no Brasil. Esses textos centram-se na criana como testemunha da histria, reconhecendo que suas

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vozes devem ser tomadas como vlidas para contarem as suas vidas, suas formas de pensar, de sentir e de agir sobre o mundo. Dessa forma, Martins desafiou a tendncia predominante nas cincias sociais de se utilizar como informantes apenas os sujeitos que supostamente tm uma viso mais ampla das coisas, os adultos, trazendo as prprias falas das crianas como reveladoras do que ser criana. No campo da antropologia, Quinteiro cita o texto de Valente (1997) e a dissertao de Pereira (1997) sobre a sociedade das crianas Auwe-Xavante. O trabalho de Gusmo (1999) tambm apontado pela autora como uma importante contribuio, ao apresentar as representaes sociais de crianas negras atravs da anlise de seus desenhos. O trabalho de Marcos Cesar de Freitas (1997), propondo uma sociologia histrica da infncia no Brasil, tambm destacado neste panorama, por trazer para o debate, atravs de uma coletnea de textos de vrios autores, aspectos histricos, sociolgicos, psicolgicos e pedaggicos constitutivos da infncia, apresentando uma rica cartografia das representaes sobre a criana, defendendo e configurando a infncia como um tema interdisciplinar. Os textos publicados em 1979, no peridico Cadernos de Pesquisa n 31, apresentados por Flvia Rosemberg, so tambm considerados por Quinteiro um marco na produo sobre infncia e educao no Brasil. Esses textos colocaram em cena a situao da criana brasileira, reunindo temas como sexualidade, trabalho, escravido, direito, sade, consumo, educao e pesquisa. Tambm relacionando infncia e cultura, destaco outros trabalhos como os de Medeiros (1986), Dauster (1992), Mata e Dauster (1993) e Gouveia (1993). Esses estudos, com um vis antropolgico, abordam as culturas como estruturantes do cotidiano das crianas, expressando-se nos modos de sentir, pensar, agir e se relacionar com as coisas e as pessoas no mundo. Mais recentemente, Faria, Demartini e Prado (2002) organizaram uma coletnea de artigos (na qual est includo o texto de Quinteiro acima citado) apresentando pesquisas sobre a infncia a partir dos seguintes eixos presentes na produo das culturas da infncia: as relaes construdas entre as crianas no mundo adulto, produzindo a cultura infantil; as relaes entre as crianas e os adultos, e entre os adultos, na produo da cultura da infncia. Nesses trabalhos, se observa uma preocupao dos autores em dar voz s crianas, compreendendo-as como protagonistas nas aes e interaes que estabelecem com o mundo. Outra vertente importante nos estudos sobre a infncia localiza-se na perspectiva histrica, com a abordagem das condies histricas e sociais das crianas, especialmente das crianas pobres, focalizada na histria da assistncia infncia, bem como na histria

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das famlias e da educao infantil. O trabalho de Kuhlman Jr (1991), entre outros autores (Kishimoto, 1988, 1993; Civiletti, 1988, Rizzini, 1997), constitui uma referncia fundamental para a histria da infncia e da educao infantil no Brasil. No mbito educacional, cabe enfatizar a valiosa contribuio que Snia Kramer (1982, 1987, 1996, 2002, entre outros) tem fornecido constituio de um campo de estudos sobre a infncia. Trazendo para o debate cientfico, no incio da dcada de1980, o questionamento das vises de natureza infantil e da significao ideolgica da idia de infncia, e afirmando a condio histrica desse conceito, apoiada ento nos trabalhos de ries (1978) e de Charlot (1983), Kramer abriu caminho para a produo de estudos que analisam o carter histrico, ideolgico e cultural do conceito de infncia. Mencionei apenas alguns trabalhos que se constituem em marcos relativamente construo de um olhar sociolgico para a infncia, sabendo que muitos outros que aqui ficaram de fora somam-se a, e/ou cruzam-se com esses, abrindo muitas possibilidades de estudos e de aprofundamento dos temas ligados infncia no contexto brasileiro. Nesse sentido, penso que um cruzamento frutfero pode ser o dos estudos scio-histricos da psicologia com os estudos da sociologia da infncia. Particularmente, a perspectiva sciohistrica do desenvolvimento infantil, juntamente com as contribuies de Bakhtin e Benjamim, tem ancorado muitos trabalhos de investigao, contribuindo para a construo de uma concepo de infncia historicamente situada, que busca romper com as vises tradicionais que dominavam o campo. (ver Kramer, 1996, 2000; Freitas, 1994; Souza, 1994; Ges e Smolka, 1997). Certamente, as articulaes e o debate em torno desses diversos olhares podem nos ajudar a compreender com mais profundidade os processos de construo das identidades singulares e coletivas nas relaes das crianas com a microestrutura dos grupos sociais dos quais fazem parte e com a macroestrutura da sociedade em que esto inseridas. possvel dizer que, hoje, o conjunto j existente de estudos sobre a infncia no Brasil, caracterizado pela diversidade de perspectivas tericas e metodolgicas, reflete um campo interdisciplinar com vrias reas convergindo para uma compreenso da criana no mais como objeto, como tradicionalmente era vista, mas como sujeito da histria. A seguir, destacarei os princpios fundamentais que vm consolidando e configurando a sociologia da infncia como um novo campo de estudos.

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Principais proposies da sociologia da infncia

Como j evidenciado, a constituio da sociologia da infncia como novo campo de estudos marcada por uma busca de mudana do foco at ento predominante nos estudos da infncia. James e Prout (1990), autores ingleses que, como vimos acima, tiveram importante papel na construo do campo, destacaram, na introduo do livro por eles organizado, intitulado Constructing and reconstructing childhood, os seguintes princpioschave configuradores de um novo paradigma para a compreenso da infncia: 1) A infncia compreendida como uma construo social. Nesse sentido, no se identifica com a imaturidade biolgica, ou seja, como uma fase inicial no percurso maturacional para a vida adulta. No se identifica tampouco com a noo de universalidade. Na verdade, as crianas devem ser compreendidas como seres presentes, que agem de forma prpria e intencional sobre o mundo atravs das interaes que estabelecem com seus pares, com os adultos e com a sociedade mais ampla. 2) A infncia uma varivel de anlise social. Isso significa que considerada objeto de estudo sociolgico e parte da estrutura da sociedade, articulando-se a outras variveis como gnero, classe ou etnia, no podendo delas ser dissociada. 3) As culturas e as relaes sociais das crianas devem ser estudadas em si mesmas. H nessa viso uma mudana do olhar adultocntrico que constri a infncia de fora, do exterior, para um outro olhar situado no universo de dentro, buscando perceber a criana atravs dos significados e sentidos que atribui s situaes que vive e atravs dos conhecimentos e valores produzidos coletivamente nas suas interaes sociais. As crianas so sujeitos que contribuem para a reproduo e para a produo da cultura e da sociedade em que esto inseridas. 4) A etnografia uma metodologia particularmente til para o estudo da infncia. Ela permite uma maior penetrao no mundo da infncia, conferindo participao e voz mais direta s crianas na produo dos dados sociolgicos. 5) A infncia um fenmeno em relao ao qual a dupla hermenutica das cincias sociais est vivamente presente. A proclamao de um novo paradigma no estudo sociolgico da infncia implica o engajamento em um processo de reconstruo da criana e da sociedade (James e Prout, 1998, p.8-9). Os autores utilizam o conceito de dupla hermenutica de Giddens (2003), definido por esse autor como a interseo de duas redes de significado como parte

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logicamente necessria da cincia social, o mundo social significativo constitudo por atores leigos e as metalinguagens inventadas por cientistas sociais; h uma oscilao constante de uma rede para a outra envolvida na prtica das cincias sociais (p. 441). De acordo com os referidos autores, e em consonncia com as anlises de Sirota e Montandon, esse conjunto de princpios reflete mudanas no pensamento cientfico, que surgiram, principalmente, por oposio ao modelo explicativo que tem dominado os estudos da infncia, vinculados principalmente psicologia do desenvolvimento. Representa, nesse contexto, uma convocao para a compreenso das crianas como atores sociais, ou seja, sujeitos que ao mesmo tempo so constitudos pelas, e constituem as, sociedades em que vivem. Para James e Prout (1990), o conceito-chave dos modelos tradicionais da psicologia que tm demarcado a compreenso dominante de infncia o de desenvolvimento e sua vinculao a trs noes: racionalidade, natureza e universalidade. Essas noes estruturaram um modo de pensamento que ultrapassou os limites da psicologia, atingindo outros domnios do estudo de crianas como a sociologia e a pedagogia, alm de penetrar igualmente no contexto scio-poltico da infncia. A abordagem desenvolvimentista fundamenta-se na idia de crescimento natural em direo racionalidade, compreendida como o pensamento adulto, ponto de chegada de um percurso de aprendizagem iniciado na infncia. Esta vista ento como um estgio biologicamente determinado e incompleto do desenvolvimento, situado no incio da escada que leva ao estgio completo, que seria o da racionalidade adulta. O desenvolvimento seria governado por princpios universais responsveis pela evoluo progressiva do pensamento humano, ou seja, pela substituio gradativa de idias menos sofisticadas por idias mais sofisticadas. Nesse modelo explicativo, as atividades infantis - sua linguagem, suas interaes sociais e brincadeiras seriam marcas simblicas do processo de progresso do desenvolvimento. E a criana vista pelos olhos da sociologia? Onde esto e como so compreendidas? Jenks (1982) afirma que a criana tem sido condenada a ser uma presena ausente na sociologia, que encontra voz apenas no eco distante do que ainda se tornar (p.14). A infncia assim compreendida como uma categoria residual e incorporada atravs de teorias de socializao que apresentam a estrutura normativa do mundo adulto como a sua varivel independente. Assim, a sociologia contribui, junto aos discursos tradicionais das cincias sociais, particularmente o da psicologia, para o uso de metforas como vir-a-ser, tabula rasa, inadequao, imaturidade, inexperincia, incompletude etc., as quais refletem

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uma concepo de criana em referncia ao que lhe falta em relao ao adulto, representante do ponto de completude e de chegada natural do processo de desenvolvimento. Alm disso, o autor aponta que a viso das normas sociais do mundo adulto como o ponto final do percurso de socializao, visto como um percurso natural, encobre o carter intencional desse processo como mantenedor de uma ordem social particular. James, Jenks e Prout (1998), na obra Theorizing Childhood, classificam as abordagens sobre a infncia em uma fase pr-sociolgica e uma fase sociolgica. Na fase pr-sociolgica os autores identificam cinco modelos de discursos dominantes que continuam a informar no presente as aes cotidianas e prticas junto s crianas: (i) o da criana m encontra seus fundamentos na doutrina do pecado original e reveste a crianas com as idias de corrupo e de maldade, como parte da essncia infantil. A criana, vista como ser demonaco, pode a qualquer momento mobilizar as foras do mal, implicando a necessidade da imposio de limites e do direcionamento dos seus comportamentos; (ii) o da criana inocente surge em oposio ao anterior, tendo Rousseau como um dos seus principais precursores, compreendendo as crianas como essencialmente puras, angelicais, incorruptveis, a partir de uma viso romntica e centrada na criana como investimento futuro; (iii) o da criana tabula rasa acredita que a criana como uma folha de papel em branco que adquire conhecimento atravs da experincia, tornando-se ser racional e membro integrante da sociedade atravs da educao; (iv) os modelos ligados idia de desenvolvimento infantil, construdos pela psicologia do desenvolvimento, baseiam-se em duas posies principais: a de que a infncia um fenmeno natural e no social e o de que parte dessa natureza estende-se ao seu processo de maturao; (v) e, finalmente, os autores apontam o modelo da criana inconsciente, influenciado pelo impacto das idias freudianas, que prega igualmente uma viso maturacional calcada no modelo adulto, a partir da abordagem de elementos da personalidade (id, ego e super-ego) e de estgios de desenvolvimento que sustentam a arquitetura de uma psicologia adulta, sendo a infncia vista como a base e a causalidade dos comportamentos adultos. Os autores destacam em sua anlise a influncia que o modelo piagetiano - situado nas perspectivas desenvolvimentistas - exerceu na compreenso dominante da criana no pensamento ocidental contemporneo. Na perspectiva terica do epistemlogo suo, a criana um sujeito ativo que interpreta, organiza e usa as informaes do ambiente, construindo concepes prprias do mundo. O desenvolvimento intelectual no

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simplesmente um acmulo de atividades, mas uma progresso constituda de estgios distintos de habilidade cognitiva que vo do perodo sensrio-motor ao nvel das operaes formais. A construo da racionalidade cientfica, culminncia da linha do

desenvolvimento intelectual, descrita por Piaget como sendo movida pelo processo de equilibrao majorante, o qual impulsiona a criana passagem ativa de estgios menos complexos para estgios mais complexos, at chegar competncia lgica, marca da racionalidade adulta. O modelo piagetiano, segundo James e Prout (1990), no rompe com as idias de natureza e de universalidade. Jenks (1982) tambm afirma que, a partir das idias piagetianas, as crianas reais e historicamente situadas foram subsumidas s determinaes de um modelo nico e universal de racionalidade cientfica. Com efeito, se por um lado Piaget revelou a criana como sujeito epistmico, ativo, inteligente, construtor do seu prprio desenvolvimento, rompendo assim com as idias de sujeitos passivos, receptculos de informaes, conhecimentos e prticas, por outro lado, aludiu a uma representao nica e universal da criana e do percurso seqencial da racionalidade emergente, a partir do qual todas as crianas so referenciadas, ficando excludas desse modelo explicativo as determinaes socioculturais e outras vias diferenciadas de percursos de desenvolvimento. A teoria de Piaget teve forte influncia no pensamento ocidental durante o ltimo quarto do sculo XX, constituindo a principal estrutura de anlise de pesquisas sobre a infncia em vrios domnios, bem como orientando muitas prticas sociais junto a crianas. Sabemos que a teoria piagetiana vem sendo rediscutida, revista e ressignificada a partir de novas pesquisas, dando origem a novas abordagens da cognio, merecedoras de um estudo mais aprofundado naquilo que podem contribuir para o conhecimento dos processos de construo do pensamento infantil. Essa discusso, contudo, foge aos limites do presente trabalho. Numa perspectiva que tem recebido denominaes diferenciadas como

socioconstrutivista, co-construtivista ou histrico-cultural (com vistas a sublinhar a incluso dos fatores sociais, culturais e histricos no modelo explicativo dos processos de construo do desenvolvimento), Vygotsky tambm representa uma oposio s vises tradicionais. O materialismo histrico e dialtico a fonte essencial da construo da teoria vygotskyana sobre os processos psquicos humanos, sendo que um dos princpios bsicos da perspectiva marxista que orienta o pensamento desse autor a idia de histria e de mudana. Vygotsky impe-se como desafio a reconstruo da origem e do curso do

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comportamento humano e da conscincia, entendendo que todo fenmeno tem uma histria e que essa histria marcada por mudanas qualitativas e quantitativas. Assim, vai buscar compreender como se construram as formas culturais do comportamento humano, investigando as mudanas qualitativas que ocorrem ao longo do desenvolvimento e, dessa forma, trazendo a cultura para o foco da constituio do sujeito. Caminha, assim, de mos dadas com Marx, que afirmava que mudanas histricas na sociedade e na vida material produzem mudanas na natureza humana. Tambm para Vygotsky 1989) mudanas histricas na sociedade e na vida material produzem mudanas no funcionamento mental humano. James, Jenks e Prout (1998), bem como Corsaro (1997), analisam que, ainda que o autor sovitico represente um grande avano no que diz respeito considerao dos fatores histrico-sociais como constitutivos do sujeito, sua perspectiva terica tambm no consegue romper com a viso antecipatria do desenvolvimento. Ainda est fortemente presente em seu modelo explicativo do desenvolvimento humano a idia de um caminho que tem como ponto de chegada a competncia adulta. De fato, esta realmente tem sido uma crtica formulao vygotskyana, no prprio mbito da psicologia, e vem originando novos estudos que buscam ultrapassar as limitaes identificadas na construo terica do autor sovitico. Seguindo ainda a anlise dos autores acima, a psicologia