terminatio e limitatio cladua beltrao unirio

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História: Questões & Debates, Curitiba, n. 59, p. 173-191, jul./dez. 2013. Editora UFPR TERMINATIO E LIMITATIO: INAUGURAÇÃO, FUNDAÇÃO E CENA RITUAL NA REPÚBLICA ROMANA Terminatio and limitatio: inauguration, foundation and ritual scene in Roman Republic Claudia Beltrão da Rosa * RESUMO Na religião pública e na legislação romana, a organização do espaço determinava a localização da vida pública. Magistrados definiam fronteiras e organizavam territórios em situações específicas, além de orientarem seu uso, num sistema que envolvia e remetia a rituais reli- giosos. Remeter-nos-emos a procedimentos rituais identificados para as fundações de coloniae Latinae entre 334 e 218 a.C., comparando-as a ações rituais do colégio dos áugures, cujas tarefas envolviam a definição e a manutenção das fronteiras entre o divino e o humano, o interior e o exterior, protegendo a urbs fundada, buscando uma via de acesso à compreensão dos fundamentos da lógica espacial romana. Palavras-chave: religião romana; religio publica; rituais e espaço. ABSTRACT In public religion and Roman law, the organization of space determined the location of public life. Magistrates defined boundaries and organized territories in specifics situations, and, in addition, defined their uses in occasions in which religious rituals were involved. We will refer to ritual procedures identified to the foundations of coloniae Latinae between 334 and 218 BC, compared to the ritual actions of the college of augurs, whose tasks involved the definition and maintenance of boundaries between the divine and human, protecting the founded urbs, in order to understand the spatial logic of the Romans. Keywords: Roman religion; religio publica; rituals and space. * Professora Associada de História Antiga do Departamento de História e do PPGH da Uni- versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutora e Mestre em História.

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  • ROSA, C. B. da. Terminatio e limitatio: inaugurao, fundao e cena ritual... 173

    Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 59, p. 173-191, jul./dez. 2013. Editora UFPR

    TERMINATIO E LIMITATIO:INAUGURAO, FUNDAO E CENA RITUAL

    NA REPBLICA ROMANATerminatio and limitatio:

    inauguration, foundation and ritual scene in Roman Republic

    Claudia Beltro da Rosa*

    RESUMO Na religio pblica e na legislao romana, a organizao do espao determinava a localizao da vida pblica. Magistrados definiam fronteiras e organizavam territrios em situaes especficas, alm de orientarem seu uso, num sistema que envolvia e remetia a rituais reli-giosos. Remeter-nos-emos a procedimentos rituais identificados para as fundaes de coloniae Latinae entre 334 e 218 a.C., comparando-as a aes rituais do colgio dos ugures, cujas tarefas envolviam a definio e a manuteno das fronteiras entre o divino e o humano, o interior e o exterior, protegendo a urbs fundada, buscando uma via de acesso compreenso dos fundamentos da lgica espacial romana.Palavras-chave: religio romana; religio publica; rituais e espao.

    ABSTRACT

    In public religion and Roman law, the organization of space determined the location of public life. Magistrates defined boundaries and organized territories in specifics situations, and, in addition, defined their uses in occasions in which religious rituals were involved. We will refer to ritual procedures identified to the foundations of coloniae Latinae between 334 and 218 BC, compared to the ritual actions of the college of augurs, whose tasks involved the definition and maintenance of boundaries between the divine and human, protecting the founded urbs, in order to understand the spatial logic of the Romans. Keywords: Roman religion; religio publica; rituals and space.

    * Professora Associada de Histria Antiga do Departamento de Histria e do PPGH da Uni-versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutora e Mestre em Histria.

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    Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 59, p. 173-191, jul./dez. 2013. Editora UFPR

    Introduo

    sileteque et tacete atque animum aduortite, audire iubet uos imperator

    (Plauto. Poen, 3-4)

    Com essa chamada, que demanda o silncio e a ateno dos es-pectadores para que ouam seu comandante, Plauto inicia sua comdia Poenulus (O pequeno cartagins), datada do incio do sculo II a.C.1. Poucos versos depois, ainda no Prlogo, vemos a seguinte frase: Agora, quero retornar ao argumento, que vocs sabero por mim mesmo. Seus lugares, seus limites, suas fronteiras vou agora determinar, e para tal fui nomeado finitor (Plauto. Poen. 46-49)2.

    O dramaturgo, seguindo seu papel, diz que dividir a pea do mesmo modo pelo qual os finitores dividiam um territrio, parodiando aes rituais dos magistrados, instruindo o praeco a ordenar silncio multido e a todos (praeco, lictores e a audincia) a imitar frmulas verbais que provavelmente eram conhecidas e, com isso, o riso estimulado.

    O teatro romano um veculo para conhecermos, em parte, algo das vozes dos rituais e elementos de suas performances. Vemos, no prlogo do Poenulus, as chamadas, as ordens de silncio, as frmulas rituais, as dupli-caes e respostas dos assistentes/espectadores, refletindo a importncia do ritual e permitindo uma apreciao das aes (drama) que enriquece, para ns, a compreenso de elementos da vida social romana, pois uma encenao s significativa no interior de tradies e de prticas sociais. Encenadas no palco, palavras, gestos e convenes a que todos estavam habituados, ou de que tinham notcias, sobrelevavam a sensibilidade dos espectadores para a cena teatral. Plauto nos apresenta um finitor em cena, organizando os limites da encenao como o magistrado organizava o territrio e ordenava seu uso pelos seres humanos. Com o dramaturgo, entramos em plena cena governamental da Roma mdio-republicana, e uma investigao das aes

    1 Por escapar de nossos propsitos, no discutiremos a datao do Poenulus. Ressaltamos, contudo, o contexto das Guerras Pnicas e da ampliao territorial dos domnios romanos nos argumentos de vrias das comdias plautinas.

    2 Ad argumentum nunc uicissatim uolo remigrare, ut aeque mecum sitis granures. Eis nunc regiones, limites, confinia determinabo: ei rego finitor factussum (Plauto. Poen. 46-49; traduo da autora).

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    governamentais romanas precisa lidar com prticas rituais, conceitos e termos da religio publica. Entramos, portanto, em plena cena ritual.

    Busquemos uma definio til do conceito de ritual:

    Ritual um sistema culturalmente constitudo de comunicao simblica. constitudo de sequncias padronizadas e orde-nadas de palavras e atos, frequentemente expressos em media mltiplos, cujo contedo e arranjo so caracterizados em vrios graus pela formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigi-convencionalidade), estereotipia (rigi-dez), condensao (fuso) e redundncia (repetio)3.

    Tal definio remete ao modus operandi do ritual, mas podemos nos perguntar: comunicao de qu? Interessa-nos aqui um tipo de rito pblico. Desse modo, observemos outra definio, igualmente til para nossos propsitos, na qual os ritos pblicos so:

    [...] uma forma de comunicao simblica, disseminando uma representao idealizada da comunidade, de sua liderana, suas unidades constituintes, as relaes necessrias entre elas e o lugar de tudo e de cada coisa no mundo4.

    As performances rituais so ocasies pblicas significativas para a pesquisa histrica. Nelas, encenam-se aes e contedos considerados im-portantes pelos participantes, sejam oficiantes ou espectadores, que estreitam solidariedades, criam e consolidam hierarquias e padres de ordenamento social, definem formas e modos de uso dos bens mveis e imveis, etc. Tudo isso fundamentado em valores e crenas, em cosmovises, imagines mundi que, pelo ritual, so expressos, visualizados, vivenciados. Tornam-se realidades. Do mesmo modo, rituais manifestam um corpo de conhecimentos e de tradies que guiam e comandam as aes do grupo, determinando os atores apropriados, as aes necessrias, os lugares adequados e as formas requeridas pelas quais tanto o ritual quanto as aes pblicas que instituem devem ocorrer.

    3 TAMBIAH, S. Culture, Thought and Social Action: an Anthropological Perspective. Cambridge-MA: Harvard University Press, 1985, p. 128.

    4 GARGOLA, D. J. Lands, Laws and Gods. Magistrates and Ceremony in the Regulation of Public Lands in Republican Rome. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1995, p. 6.

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    Plauto nos traz uma pardia de um magistrado romano em ao e, se podemos pr em causa muitas das descries ou remetimentos a rituais presentes na documentao textual, esta nos permite, minimamente, entre-ver o modo como o escritor e, de certo modo, seu pblico percebia os procedimentos dos magistrados.

    Nosso conhecimento dos rituais, e especificamente dos rituais de terminatio e de limitatio que nos interessam aqui, depende de vrios tipos documentais: fontes literrias, nas quais h descries de ritos, nomes de magistrados e de sacerdotes, registros de cerimnias, que se unem a uma literatura tcnica, como os textos reunidos no Corpus Agrimensorum Ro-manum que, mesmo tendo sido compilados no perodo flaviano, remontam Repblica5. Do mesmo modo, chegaram at ns inscries epigrficas diversas, nas quais entrevemos, por exemplo, leis de fundao de colnias, alm de imagens que trazem representaes de ritos de fundao e objetos do registro arqueolgico, como os cippi, que demarcavam fronteiras e territ-rios. Magistrados definiam fronteiras (termini) e organizavam territrios em situaes especficas (kardi, decumani, centuriae, limites, rigores), alm de orientarem seu uso (lex data/lex dicta). Tal organizao envolvia e remetia a rituais religiosos. Na cena ritual, o oficiante dividia (fisicamente) a terra e definia (verbalmente) seu uso, em aes e formulae anlogas a algumas prticas centrais da religio romana, especialmente a ratio templi.

    guisa de trazer alguns elementos para o debate sobre os limites romanos, apresentaremos uma breve abordagem dos ritos de fundao de cidades, destacando procedimentos atribudos s fundaes das coloniae Latinae no sculo IV a.C., comparando-os a aes rituais do colgio dos ugures cujas tarefas, a nosso ver, envolviam a definio e a manuteno das fronteiras entre o divino e o humano, o interior e o exterior, prote-gendo a urbs fundada (condita, lit. reunida), buscando uma via de acesso compreenso dos fundamentos da lgica espacial romana.

    5 Diversos textos antigos sobre o tema, especialmente do perodo imperial, foram estudados, traduzidos e comentados por especialistas, permitindo um acesso mais fcil a textos tcnicos em latim, como as publicaes a cargo de Franois Favory, Antoine Gonzales, Jean-Yves Guillaumin e Philippe Robin para a Revue Archologique du Centre de la France, em boa parte disponveis no portal Perse: www.persee.fr

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    Magistrados, religio e ao ritual

    Os magistrados romanos agiam em contextos definidos que limita-vam o tempo, o lugar e a forma de suas atividades e, num mundo no qual a oralidade era dominante, podemos perceber a importncia dos rituais e de sua correta execuo para os procedimentos administrativos romanos e, mesmo no perodo que denominamos Repblica tardia, Roma no contava com um nmero extenso de pessoas envolvidas no aparato governamental. Para a Repblica tardia, por exemplo, menos de 50 postos regulares so detectados. Tais postos eram, decerto, complementados por funes ad hoc e magistraturas excepcionais que, assim como as magistraturas maiores e menores regulares, eram limitadas no tempo e nas aes, alm de serem, quase todas, colegiadas. Nenhuma delas agia em total independncia: o Senado acompanhava e intervinha sistematicamente nas aes governamen-tais, alm de os colgios sacerdotais especialmente pontifices e augures , tambm com diferentes reas de atividades e atribuies, permearem as magistraturas e o Senado, agindo conjuntamente. Some-se o fato de haver uma ntida identificao entre liderana poltica e liderana religiosa, o que expresso por Ccero, no sculo I a.C.:

    Entre as muitas instituies, membros do colgio dos pontfices, criadas e estabelecidas por nossos antepassados sob a inspirao dos deuses, nada mais sbio do que sua deciso de atribuir aos mesmos homens o culto dos deuses e o cuidado dos inte-resses do Estado; o resultado que os mais ilustres cidados podem assegurar a manuteno da religio pela administrao apropriada do Estado e a manuteno do Estado pela cuidadosa interpretao da religio (Ccero, De domo sua, 1).

    Magistrados, sacerdotes e senadores, muitas vezes os mesmos in-divduos, eram as figuras centrais da vida pblica romana6 e esta afirmao pode ser estendida, sem riscos de generalizao abusiva, a todo o perodo republicano romano. Essas figuras controlavam as fronteiras entre os m-

    6 SCHEID, J. Le prtre et le magistrat. Rflexions sur les sacerdoces et le droit public la fin de la Rpublique. In: NICOLET, C. (Org.). Des ordres Rome. Paris: Publications de la Sorbonne, 13, 1984, p. 243-81.

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    bitos humano e divino, entre as esferas pblica e privada, entre o exterior e o interior, etc. A religio e a lei pblica definiam classes de atores (e, por conseguinte, de espectadores), cada qual com responsabilidades, poderes e procedimentos apropriados7. Em tempos e situaes diferentes, um mesmo indivduo desempenhava o papel de magistrado, de senador ou de sacerdote, alm de tambm agir como priuatus, e muitas dificuldades da historiografia moderna advm do descuido na compreenso das interaes entre esses papis. A ao religiosa e governamental propriamente dita concentrava-se na figura do magistrado, o que implicava todo um programa religioso para as magistraturas, incluindo a realizao de sacrifcios, jogos, procisses etc., em tempos fixos ou em situaes excepcionais, e precisamos estar atentos para o fato de que aes governamentais que na modernidade so consideradas seculares (como os julgamentos em tribunais, a presidncia de assembleias populares e as aes de guerra) incluam elementos religiosos, como, e.g., os ritos divinatrios que as precediam (cf. Ccero, N.D., 2,4,11; Diu. 1.17.33; Varro. L.L. 6, 90-92). Para o nosso modo de ver as coisas, as vrias esferas do governo parecem entremescladas na Roma republicana.

    As aes governamentais na Repblica romana nos surgem, portanto, centradas e expressas em ritos religiosos e/ou em cerimoniais pblicos e a distino entre essas categorias altamente discutvel e os magistrados, atores principais desses ritos, eram seus principais oficiantes, o que pode parecer surpreendente, posto que Roma tradicionalmente considerada uma civilizao centrada na lei. Mas preciso lembrar que somente a lei civil romana foi objeto de codificao e, segundo A. Mag-delain, apenas no que concernia a situaes nas quais o cidado particular deveria utilizar a linguagem da lei, geralmente restrita ao magistrado e ao sacerdote; o ius publicum e o ius sacrum (parte do primeiro) nunca foram submetidos a codificao8. Assim, os ritos e cerimnias eram ocasies nas quais se organizava o corpo cvico, se institua e consolidava a liderana, se comunicavam as demandas e decises e se movia o corpo cvico s aes

    7 Ulpiano (Dig. 1.1.1.2), e.g., divide a lei pblica em leis concernentes aos sacerdotes, aos magistrados e s assembleias, seguindo uma diviso apresentada por Ccero (Rep. 1.25.39; 1.27.43; 1.32.48) definindo o termo res publica como a propriedade do populus e tudo o que concernia a ela, e tratando (Leg. 2.27.69 ss.) as leis referentes aos magistrados aps as leis relativas aos sacerdcios e aos sacra.

    8 Cf. MAGDELAIN, A. Ius imperium auctoritas. tudes de droit romain. Rome: cole Franaise de Rome, 1990. Ver tambm SCHEID, J. Oral Tradition, Written Tradition. The Formation of Sacred Law in Rome. In: ANDO, C.; RPKE, J. Religion and Law in Classical and Christian Rome. Mnchen: Franz Steiner Verlag, 2006. p. 14-33.

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    desejadas, ao passo que orientavam e limitavam o tempo, o lugar e a forma das atividades dos representantes e lderes do corpo cvico, com padres, procedimentos e regras bem definidos.

    A partir do sculo IV a.C., a expanso territorial romana paulati-namente estendeu-se para alm do Lcio, em todas as direes. A adminis-trao da res publica e de seu imperium estava localizada, essencialmente, na prpria urbs; na Roma mdio e tardo-republicana, magistrados maiores e menores realizavam a maior parte de suas funes em espaos pblicos, sacralizados pelas tradies e pelas prticas religiosas, conseguindo manter um vasto territrio sobre o qual agiam diretamente num nmero limitado de aes e casos, derivando-se um grau considervel de autonomia local para os povos do imperium. Os magistrados romanos fora de Roma parecem ter sido responsveis, principalmente, pela conduo da guerra, e possvel que estivessem presentes apenas nos locais em guerra ou sob a ameaa de guerra. Em suma, magistrados romanos agiam diretamente nos locais conquistados quando a ordem imposta por Roma parecia ameaada, ou quando tarefas especficas, como a fundao de coloniae9 ou de terras uiritim10, requeriam sua presena para a conduo dos ritos, por um perodo limitado de tempo. Extra Itlia, a presena regular de magistrados romanos foi institucionalizada especialmente aps a formao das primeiras provncias.

    O desenvolvimento de um sistema hierarquizado de estatutos legais de aliados e povos conquistados em relao a Roma um processo que ainda demanda estudos, sendo bastante obscuro at o momento. Temos como hiptese ativa a ideia de que os processos pelos quais Roma assegurou seu domnio sobre seus vizinhos no Lcio e na Itlia central, estendendo as

    9 Em linhas gerais, podemos dizer que a Guerra Latina (circa 340 338 a.C) trouxe grandes mudanas na relao entre Roma e seus aliados e inimigos vizinhos. Algumas comunidades foram incor-poradas a Roma e seus territrios tornaram-se parte integrante do territrio romano, com seus cidados admitidos cidadania romana, enquanto outras no obtiveram o direito de voto em Roma. A certas cidades foi reconhecido o status de municipium, mantendo suas formas de governo, de sacerdcio, leis, costumes, etc. Outras se mantiveram como aliadas independentes, algumas com status de cidadania latina, ao passo que Roma assegurava o controle sobre essa rede de entidades subordinadas criando novos assentamentos para proteger pontos cruciais nas fronteiras e linhas principais de comunicao, servindo como postos avanados contra comunidades inimigas ou potencialmente hostis, as coloniae, cujos habitantes recebiam ora a cidadania romana, ora a latina e eram organizadas segundo modelos da urbs. Uma hiptese recente que demanda maiores estudos foi apresentada por D. Gargola (ver nota 4) sobre o status superior da cidadania latina sobre a romana nesta rede organizacional mdio-republicana.

    10 Em terras mais prximas do ager Romanus, e protegidas por coloniae, os romanos destinavam terras confiscadas a indivduos organizados comunalmente de modo dependente de Roma, o que foi chamado uiritim. Colnias e assentamentos viritanos no foram criados fora da Itlia antes do final do sculo II a.C.

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    fronteiras de seu prprio territrio e tornando suas conquistas mais seguras, podem servir como padres para a organizao de futuras conquistas, nas quais as relaes formalizadas, as categorias legais e os procedimentos ri-tualizados tornavam-se cada vez mais abstratos, mais padronizados e mais elaborados, ocupando um lugar central na viso romana da ordem cvica e imperial. Nesse longo processo, a religio publica, que se alterava e se constitua tambm de acordo com as mudanas polticas e sociais, forne-ceu elementos para a formao, consolidao e canalizao do imperium, a partir de processos que podemos definir como ritualizao, abstrao e sistematizao, subsumidos por J. Rpke no conceito de racionalizao11.

    Inauguratio e a ratio templi

    O colgio dos ugures, segundo Ccero, foi criado por Rmulo (Rep. 2.16), enquanto Tito Lvio atribui sua criao a Numa (4, 4, 2); contudo, declara que Numa fora inaugurado quando chegou a Roma e, em seu relato da fundao, apresenta Rmulo e Remo traando seus espaos augurais, respectivamente, no Palatino e no Aventino (1.18.6-10; 1.6.4). Ccero afirma que os gmeos fundadores eram ugures (Diu. 1.107-8) e, segundo Plutarco, Rmulo teria reunido especialistas etruscos para fazer com que Roma fosse fundada de acordo com os textos e as prticas sagradas (Plut. Rom. 11.1) e temos como pressuposto que esses autores seguiam uma opinio corrente de que a urbs fora fundada segundo os rituais etruscos (cf. Varro, L. L. 5. 143; Festo. 358L, s.v. rituales)12.

    11 Jrg Rpke retoma e redefine o conceito weberiano de racionalizao, abstraindo das assunes de Weber no campo das religies, hoje discutveis, considerando-o como um modelo interpre-tativo til para a compreenso do processo de sistematizao das prticas religiosas e sua transformao em discursos especializados, regras e loci institucionais. Para Rpke, racionalizao implica elaborao, codificao e sistematizao da prtica expressa em performances, guiando a conduta designadamente da elite governamental e as necessrias e eventuais inovaes: RPKE, J. Religion in Republican Rome. Rationalization and Ritual Change. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2012. p. 82-110.

    12 Ccero, membro do colgio dos ugures, declara que a tarefa principal dos ugures era tomar os auspicia (Ccero. ND, 1.112), mas que, para tal, outras cerimnias eram exigidas, bem como diz que os ugures realizavam algumas aes por si mesmos e colaboravam em outras realizadas por magis-trados e pelo pontifex maximus. O colgio, ento, tanto agia por iniciativa prpria quanto sob demanda dos magistrados, do pontifex maximus ou do Senado.

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    Esse colgio era um dos mais importantes colgios sacerdotais republicanos e tinha como tarefa, especialmente, a definio e manuteno das fronteiras entre o divino e o humano; se endereava s divindades nos eixos dessas fronteiras, mediante questes que eram respondidas por sinais que precisavam ser decifrados (decreta et responsa), e o sistema augural ocupava um lugar destacado no governo republicano. Em outras palavras, esse colgio, vinculado a Jpiter e s aes dos magistrados nas quais pes-soas e lugares eram inaugurados, tinha um papel central na categorizao e na definio do espao para fins polticos e religiosos13. Comecemos, ento, pela observao dos rituais dos ugures que se concentravam na inauguratio, em particular do pomerium, separando a zona augural da urbs de outras zonas14. Tais zonas eram definidas, em princpio, por gestos e palavras rituais15. Os ugures tambm preservavam ritualmente as linhas que separavam tipos de terras, segundo Ccero, liberando e desobstruindo a cidade, os campos e os templa (Leg. 2.8.21).

    Essa tarefa implicava duas atividades correlatas: a effatio e a libera-tio. A effatio estabelecia as linhas que separavam o espao augural das terras circundantes, criando os fines (limites). A liberatio, por sua vez, significava remover influncias e interferncias humanas ou divinas indesejadas no ager effatus. A effatio e a liberatio resultavam no processo de inauguratio, ou seja, a criao de um lugar ritualmente definido, um locus inauguratus16, e a lgica dentro/fora fundamental para a classificao augural. Na Roma republicana, as inaugurationes ocorriam entre a meia-noite e a aurora e o silncio era necessrio, bem como a boa visibilidade do auguraculum. O ugure oficiante, capite uelato, levava o lituus em sua mo e precisava ver o lugar que inaugurava, pronunciando as palavras rituais17.

    13 LINDERSKI, J. The augural law. ANRW II. 16.3, 1986. 2146-312.14 O pomerium era um tipo particular de templum. Segundo a tradio literria, o primeiro

    pomerium de Roma situava-se aos ps do Palatino e as pesquisas arqueolgicas de A. Carandini, nos anos 1990, abriram a possibilidade de que um pomerium palatino existisse no sculo VIII a.C.: cf. CARANDINI, A. Palatino e sacra via I. Prima delle mura, let delle mura, let case arcaiche. Roma: Istituto Poligrafo, 1995.

    15 Os procedimentos augurais provavelmente no so criaes romanas, mas o colgio propriamente dito, com seu auguraculum no Arx , possivelmente, uma das criaes institucionais da urbs.

    16 Cf. Festo, s.v. liberata, 128L. Ressaltando o carter especial do locus inauguratus, outra srie de ritos promovia a exauguratio; o relato literrio mais famoso deste tipo o da recusa do deus Ter-minus de sair do stio do templo de Jpiter Capitolino, cf. BELTRO, C. Terminalia: fronteiras e espao sagrado. Phonix, v. 17, p. 82-99, 2011.

    17 As principais fontes textuais para o rito so o relato de T. Lvio sobre Numa em 1.18.6-10 e Varro, L.L. 7.8-10, que apresenta a formula augural no Arx para a criao, delimitao e diviso de um templum.

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    Podemos identificar trs aes bsicas no ritual de definio do espao: 1) a identificao verbal do espao no momento de sua criao; 2) a indicao de seus limites por meio de gestos; 3) o estabelecimento de marcos territoriais permanentes. O locus classicus dessas aes o relato de Tito Lvio sobre Numa e a criao do templum:

    Conduzido ento cidadela pelo ugure, para a qual depois esse sacerdcio tornou-se pblico e permanente, Numa, voltado para o sul, sentou-se numa pedra. O ugure, com a cabea coberta e segurando na mo direita um basto recurvado e sem ns, cha-mado lituus, ocupou o lugar sua esquerda. Em seguida, sendo os deuses invocados, o ugure, mantendo o olhar na direo da cidade e do campo, depois que determinou no cu uma linha do nascente ao poente, afirmou que direita estavam as regies do sul e esquerda as do norte. Mentalmente, fixou o ponto visvel mais distante sua frente. O ugure, ento, transferindo o basto para a mo esquerda e colocando a mo direita sobre a cabea de Numa, pronunciou estas palavras: Se est de acordo com o direito divino este Numa Pomplio, cuja cabea eu seguro, ser rei de Roma, Pai Jpiter, eu suplico que nos mostres sinais seguros entre os limites que tracei. Em seguida arrolou aos auspcios esperados. Tendo sido presenciados os auspcios, Numa, declarado rei, desceu do templo (T. Lvio, 1.18,6-10)18.

    O sacerdote, tomando seu lituus, determinava as regiones (linhas) e separava a rea do templo, enquanto pronunciava uma frmula (legum dictio), pedindo a Jpiter que enviasse signa certa nesses limites19. A lex dicta governava o uso do templum, temporrio ou permanente, de um modo anlogo quele pelo qual a lex pronunciada no momento da dedicao regia um aedes.

    18 Inde ab augure, cuideinde honoris ergo publicum id perpetumm que sacerdotium fuit, deductus in arcem, in lapide ad meridiem uersus consedit. Augur ad laeuameius capite uelato sedem cepit, dextra manu bacullum sine nodo aduncum tenens, quem lituum appellarunt. Inde ubi prospectu in uerbe magrumque capto deos precatus regiones ab oriente ad occasum determinauit, dextras ad meridiem partes, laeuas ad septentrionem esse dixit; signum contra quo longissime conspectum oculi ferebant animo finiuit. Tum, lituo in laeuam manum translato, dextra in caput Numae imposita, precatus ita est: Iuppiter pater, si est faz hunc Numam Pompilium cuius ego caput teneo regem Romae esse, uti tu signa certa adclarassis intereos fines quosfeci. Tum peregituerbis auspicia quaem ittiuellet. Quibus missis, declaratus rex Numa de templo descendit. (T. Lvio, 1.18,6-10; Traduo de Monica Costa Vitorino. Tito Lvio. Histria de Roma desde a fundao da cidade. L. I A Monarquia. Ed. Bilngue. Belo Horizonte: Crislida, 2008).

    19 Cf. tambm: Ccero. Diu. 1.17.31; Varro, L.L. 7,9.

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    Um lugar inaugurado era marcado com uma stella ou uma crux de bronze (cf. Festo, 476L) e, em Roma, tal lugar deveria ser visvel do auguraculum no Arx e era claramente delimitado por marcos (termini ou cippi). Assim, rvores eram derrubadas, bem como construes demolidas, caso obstrussem a viso dos loci inaugurati. Era nefasto cobrir um terminus, bem como termini quebrados ou removidos indevidamente tinham de ser restabelecidos o que nos remete ao relato da recusa de Terminus de sair do Capitlio, permanecendo na cella de Jpiter, que manteve uma abertura no teto20. Publici termini eram sancti21, ou seja, protegidos pela lei augu-ral, e a preservao desses marcos pblicos era uma das mais importantes tarefas dos ugures.

    Em locais inaugurados, ritos pblicos eram iniciados pela tomada dos auspicia e signa ex auibus demonstravam a concordncia de Jpiter. Esses signa eram solicitados (impetratiua), no espontneos, ou seja, ocor-riam por meio do dilogo formal de um ugure com Jpiter, chamado legum dicto, ou nuncupatio, pelo qual os signa se tornavam seguros (certa), no ambguos22. A forma mais comum de inauguratio era a instaurao de um espao retangular o templum que, quando submetido a outros ritos de consecratio e dedicatio, tornava-se o local de um aedes, uma ara, etc.23.

    Os templa eram lugares privilegiados para o funcionamento das magistraturas e dos sacerdcios. Neles, auspicia eram tomados, magis-trados presidiam assembleias e tribunais, censores iniciavam o lustrum, promessas eram feitas, bem como dedicaes, partilhas e senatus consulta s eram vlidos aps serem depositados num aedes de templum (Varro, L.L. 6.86-87, 91). Fora de Roma, acampamentos militares tinham espaos anlogos ao templum (Polbio, Hist. 6. 27-31; T. Lvio. 41. 18,6-10; Tcito,

    20 BELTRO, C. Terminalia: fronteiras e espao sagrado. Phonix, v. 17, p. 82-99, 201121 Sanctus um conceito exclusivo da lei augural. Rigorosamente falando, um aedes ou

    uma ara consagrados eram sacrae, enquanto um templum era res sanctae. Temos um bom exemplo dessa distino no aedes Vestae (Templo de Vesta). Este edifcio era consagrado, era res sacrae, mas no era um templum. O contrrio pode ser visto em relao Cria Hostlia e ao prprio pomerium; ambos eram templa, mas no eram consagrados. A inauguratio cria a res sancta, enquanto a consecratio, a res sacra.

    22 Os ugures provavelmente interpretavam uma grande variedade de signa divinos, dividindo--os em propcios e no propcios.

    23 Ressalte-se que, no caso da consecratio e da dedicatio, outros atores religiosos entravam em cena: a consagrao e a dedicao de um templum a uma divindade particular, sob a forma, e.g., de um aedes, era feita por um magistrado acompanhado por um pontfice, tambm seguindo regras e procedimentos rgidos; cf. Ccero. De domo sua. 52,133; T. Lvio. 1.10,5-7; 2. 8,6,8.

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    Ann. 15,30)24 e ressaltamos que no apenas lugares, mas tambm pessoas eram inauguradas. Como magistrados e pontfices tomavam os auspicia em benefcio da res publica, eram tambm inaugurados pelos ugures. Inaugurar algo ou algum era, em suma, alterar ou elevar radicalmente seu status, tornando-o sanctus.

    Esse sistema, segundo Rasmussen e Rasmussen,

    [...] emerge como uma disciplina cientfica fundada em sua prpria dimenso temporal e espacial, caracterizada por um profissionalismo estrito, aplicando uma metodologia especial destinada a: 1) observar vrios fenmenos portentosos; 2) clas-sificar essas informaes; 3) interpret-las; 4) permitir anlises comparativas e 5) realizar investigaes diacrnicas. Todo o sistema fundado num conjunto de observaes pontuais e as anlises empricas eram levadas a cabo por especialistas religiosos que interpretavam o material, em sua dimenso espao-temporal, com o objetivo de compreender o mundo e estabelecer contextos sagrados e profanos.25

    A auspicao era um ritual religioso e poltico, no pleno sentido do termo. O colgio dos ugures mantinha Jpiter sob controle26 ao dividir simbolicamente o cu e a terra, criando um templum de quatro partes, com as grandes linhas, o kardo e o decumanus, que surgem tambm na ao dos agrimensores e cujos princpios de diviso espacial so semelhantes aos da ratio templi.

    Semelhantes, mas no idnticos. preciso, ento, comparar a inauguratio do templum e o ritual de fundao, buscando suas analogias e suas diferenas.

    24 Ver tambm: WALBANK, F. W. A Historical Commentary on Polybius. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 709-723.

    25 RASMUSSEN, A. H.; RASMUSSEN, S. W. (Ed.). Religion and Society: Rituals, Resources and Identity in the Ancient Graeco-Roman World. The BOMOS Conference 2003-2005. Analecta Romana Instituti Danici. Rome: Quasar, 2008. p. 207.

    26 SCHEID, J. Numa et Jpiter, ou les dieux citoyens de Rome. Archives des Sciences Sociales des Religions, v. 59, n. 1, p. 41-53, 1985.

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    Marcos territoriais e limitatio

    Marcos territoriais visveis eram e so uma necessidade. Cippi ou termini e limites (fronteiras) eram recomendados, ordenados e esperados em vrias circunstncias, e a tradio representava Rmulo estabelecendo o pomerium de Roma, com seus termini.

    Cato (Agr.) e Varro (R. 1.14-15) orientavam aos proprietrios privados que plantassem rvores e outros expedientes para indicar os limites de suas propriedades. Os marcos fsicos, contudo, garantidos e protegidos por Terminus, definindo as propriedades, eram mais do que uma necessi-dade de uso particular, recebendo destaque nos Fasti, L. II, de Ovdio. A defesa desses marcos contra os efeitos do tempo e da atividade humana era tema de grande relevncia. Dionsio de Halicarnasso (2.74) afirma que Numa recomendara que priuati instaurassem marcos de fronteira com ritos apropriados em honra de Jpiter Trmino, bem como que os limites da terra pblica fossem estabelecidos do mesmo modo. A agresso a esses marcos terminus motus ou crimen termini moti era uma das mais antigas violaes sancionadas da lei romana e sua origem foi atribuda a Numa (cf. Dion Hal. 2.74; Plut. Num. 16, Quaest. Rom. 15; Festus, 505L).

    Observemos, em linhas gerais, a complexa classificao das terras e territrios em relao s regras, rituais, atores e atividades neles permitidos. H de considerar, em primeiro lugar, as distines entre o territrio de Roma propriamente dito e outros territrios. Seguiremos, para tal, a classificao exposta por Varro (L. L. 5.33)27.

    A classificao das terras era um item da lei augural e Varro argu-menta que os ugures reconheciam cinco tipos de terras: ager Romanus, ager Gabinus, ager peregrinus, ager hosticus e ager incertus28. O ager Romanus teria um sentido augural pleno29. A distino entre ager Romanus e ager

    27 No que tange documentao textual, outros textos remetem ao tema da classificao das terras. Citamos, e.g., De Domo Sua, de Ccero, que vincula a aplicao da lei romana ao ager Romanus ao tratar do direito de exlio, baseado na prtica aparentemente arcaica do postliminium, que permitia ao cidado reclamar seu status e suas propriedades na urbs aps seu retorno, e uma passagem da correspon-dncia de Plnio, o Jovem (Ep. 10.50), na qual as fronteiras do ager Romanus surgem marcando os limites das prticas religiosas romanas.

    28 No foi possvel delimitar as datas de origem desse sistema de classificao; Varro o apresenta como uma antiguidade.

    29 possvel que esse sentido augural pleno se refletisse nos rituais arcaicos de fronteira, como a Terminalia. Pelo relato de T. Lvio, podemos compreender algo sobre as exaugurationes e sobre o status legal dos termini.

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    Gabinus pode remontar a fins do sculo VI a.C., quando Gabius tornou-se aliada de Roma30. Para Christian Kvium, os trs primeiros tipos eram terri-trio romano; o hosticus era terra estrangeira, potencialmente hostil, e a quinta categoria, ager incertus, de mais difcil definio31. Segundo Varro, cada uma dessas cinco categorias tinha suas prprias formas de auspicia e.g., na urbs, os magistrados tomavam os auspicia urbana e as linhas de separao (fines) entre os diferentes agri tinham um significado ritual.

    No interior da urbs, uma distino espacial parece ter sido im-portante: a urbs e o suburbium, tendo o pomerium como demarcao que estabelecia a distino e o relacionamento das esferas das domi e das militia, central na determinao dos poderes e da atuao dos magistrados e dos direitos dos cidados. O ager effatus no era definido segundo essas cate-gorias, podendo ser compreendido, grosso modo, como a rea exterior ao pomerium e, para Rpke, o ager Romanus inclua a urbs e o ager effatus, com a linha do pomerium interconectando mais que separando essas duas reas32. E um dos papis talvez o principal dos ugures era o de proteger a urbs, smbolo do imperium romanum, i.e., sua expresso espacial fundada (literalmente reunida) no pomerium.

    De fato, vrios atores tinham o direito de definir limites em diferentes ocasies: proprietrios privados marcavam as fronteiras de suas prprias terras e magistrados o faziam em relao a terras pblicas, seja para fins religiosos ou no. Nos sculos III e II a.C., magistrados especficos os finitores eram encarregados dessas tarefas e, a partir de fins do sculo II a.C., poca dos irmos Graco, plebiscitos instituam comisses especiais tres uiri coloniae deducendae para demarcar o territrio de colnias e assignar propriedades privadas e colgios os decemuiri agro dando para as aes equivalentes em territrios viritanos. No mesmo perodo, censores, cnsules e pretores tinham o ius publicum priuatorum locorum para a definio dos espaos

    30 Para Catalano, contra Mommsen, que defendia que a categoria Gabinus inclua todos os territrios latinos incorporados a Roma, apenas o territrio de Gabius foi classificado em separado, enquanto os territrios dos demais povos latinos eram ager peregrinus, cf. CATALANO, P. Aspetti spaziali del sistema giuridico-religioso romano. Mundus, templum, urbs, ager, Latium, Italia. ANRW II, v. 16, n. 1, p. 440-553, 1978.

    31 KVIUM, Ch. Inauguration and Foundation. An Essay on Roman Ritual Classification and Continuity. In: RICHARDSON, J. H.; SANTANGELO, F. Priests and State in the Roman World. Mnchen: Franz Steiner Verlag, 2011. p. 63-90, p. 65.

    32 RPKE, J. Domi militiae. Die religise Konstruktion des Krieges in Rom. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 1990. p. 31-35.

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    pblicos, assim como esses magistrados e os duumuiri aedibus dedicandae definiam templos, altares e os dedicavam aos deuses, at a lex Papiria (174 ou 154 a.C.) que limitou o nmero de magistrados com poder para tal.

    Assim, terras eram destinadas a usos especficos, exigindo que magistrados definissem a rea em questo, e as regras que a governariam (leges datae ou leges dictae), estabelecidas pela autoridade instituda e reconhecida como tal. Fundadores de colnias, no momento da criao do assentamento, proclamavam pela lei e pela religio, a lex do assentamen-to e a rea sobre a qual esta se aplicava, muitas vezes identificando suas fronteiras em detalhes33.

    Podemos dizer que o controle dos marcos territoriais simbolizava o controle do territrio e, consequentemente, a ordem cvica e religiosa. Um exemplo provm de T. Lvio, sobre a deditio da Collatia:

    Tenho a informao de que os colatinos se renderam e que foi esta a frmula da rendio. O rei perguntou: Por acaso vs sois os embaixadores e os porta-vozes enviados pelo povo colatino para que vs e o povo colatino vos rendsseis?; Somos; Por acaso o povo colatino est em seu pleno poder de delibe-rao?; Sim; Por acaso vs vos entregais e tambm o povo colatino, a cidade, os campos, a gua, os limites, os templos, os utenslios e todas as coisas sagradas e profanas para meu poder e do povo romano?; Entregamos; E eu recebo. (T. Lvio. 1.38-1-2; grifo nosso)34.

    A conquista romana, obviamente, agiu sobre o territrio de povos distintos e sobre a paisagem, a partir de uma rede de estradas, limites, etc.,

    33 H diversos exemplos em inscries epigrficas, como em ILS 112: [...] his legibus hisque regionibus dabo dedicaboque, quas his hodie palam dixero (Eu darei e dedicarei por essas leis e essas regiones que eu direi aqui publicamente; traduo da autora). Vemos, pelo exemplo, uma caracterstica dessas inscries epigrficas: destacam o papel do magistrado e suas aes, sua autorizao e, por fim, o status da terra. Os procedimentos rituais recebem mais nfase do que os resultados. Ver tambm ILS 24; 9376.

    34 Deditosque Collatinos ita accipio eamque deditionis formulam esse: rex interrogauit: Estisnes uos legatioratores quem issi a populo Collatino ut uos populumque Collatinum dederetis? Sumus. Estne populus Collatinus in sua potestate? Est. Deditisne uos populumque Collatinum, urbem, agros, aquam, terminos, delubra, utensilia, diuina humanaque omnis, in meam populique Romani dicionem? Dedimus. At ego recipio. (T. Lvio. 1.38-1-2; Traduo de Monica Costa Vitorino. Tito Lvio. Histria de Roma desde a fundao da cidade. L. I A Monarquia. Ed. Bilngue. Belo Horizonte: Crislida, 2008).

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    num processo que mudava o padro de uso dessas terras e estabelecia novas formas. O ritual de fundao de colnias, que nos interessa aqui especifica-mente, ocorria de acordo com a inauguratio de um pomerium e era, entre os sculos IV e II a.C., realizado por um dos trs legados senatoriais, institudos por uma lex coloniae deducendae. Os tres uiri coloniae deducendae eram magistraturas extraordinrias cum imperium que monitoravam os trabalhos dos agrimensores antes da construo propriamente dita, bem como eram os responsveis pelos ritos de inaugurao do pomerium. Para Mario Torelli, seu modelo eram os companheiros-guerreiros (suodales) de Poplios Va-lesios, que fizeram para si mesmos o monumento do Lapis Satricanus (ca. 500 a.C.) e desempenharam um papel central na colonizao do Lcio no sculo V a.C., que, aos poucos, foi organizada institucionalmente35.

    Na diviso das terras, conhece-se o sistema de Kardi, decumani, centuriae, limites (faixas), rigores (linhas), j utilizados em assenta-mentos viritanos, como Privernium e o ager Falernus (340 a.C.), e nas primeiras colnias: Cales (334), Luceria (314), Alba Fucens (303), Cosa (273), Ariminium (268), Cremona (219) e, depois, nas colnias de Bono-nia (189), Luna (177), Mutina (183) e Parma (183), criando um sistema bastante regular de diviso de terras e sua distribuio, e esse sistema tinha claras analogias com os rituais augurais. Magistrados romanos realizavam a terminatio para definir os limites externos de uma seo de terra e estavam tambm autorizados a dividir tal terra em vrias sees internas (limitatio), visando sua distribuio, assignao ou venda entre colonos. Segundo Catalano, a limitatio seguia procedimentos que podem ser datados do sculo IV a.C. (1978), tratando de dividir a terra paralelamente aos decumani em faixas estreitas (limites) e, ento, estabelecendo linhas (rigores) transversais, subdividindo-os e, com isso, criando mdulos retangulares homogneos, que podiam tambm ser subdivididos, como vemos no modelo da pgina seguinte.

    O registro arqueolgico permite detectar uma regularidade no sis-tema de fundao e diviso de terras, a partir de decumani teoricamente seguindo a linha leste-oeste e kardi tendendo ao curso norte-sul com intersees em ngulos retos, os limites, divididos em rigores. Dois eixos ortogonais principais eram o decumanus maximus e o Kardo maximus, cuja

    35 TORELLI, M. Religious Aspects of Early Roman Colonization. In: ______. Tota Italia. Essays in the Cultural Formation of Roman Italy. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 14-42.

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    interseo formava o ponto central do territrio (ao menos conceitualmen-te). Quando possvel, os limites eram paralelos e separados distncia de 20 actus (708 m) e os quarteires formados por tais faixas contavam 200 iugera, sendo conhecidos como centuriae. Cada centria podia ser subdi-vidida em rigores, criando pequenos lotes de terra (neste caso, os padres no so regulares). As centrias ficavam direita (dextra) ou esquerda (sinistra) do Kardus maximus e abaixo (kitra) ou acima (ultra) do decu-manus maximus, facilitando a localizao das unidades, com a numerao iniciando-se na interseo do Kardo maximus com o decumanus maximus. Em ILS 24, por exemplo, h uma inscrio de um marco territorial de Caio Graco; o local era a interseo do 11. limes kitra do decumanus com o 1. da sinistra do Kardo.

    A observao das formas de fundao e demarcao de terras per-mite supor que o sistema era baseado no ritual religioso. possvel, dada a indissociabilidade entre religio e poltica, que os romanos tenham usado antigos sistemas de orientao religiosa, que esto na base da auspicatio, como forma de orientao e diviso do espao em geral. Associados aos templa por analogia, a ao de magistrados fundadores de colnias criava espaos definidos, sacralizando-os no somente pelos rituais realizados, mas pelo prprio sistema de marcao e orientao das linhas no solo.

    FIGURA 1 ESQUEMA DO SISTEMA ROMANO DE CENTURIAO.(FONTE: http://www.uea.ac.uk/~jwmp/glossary.html)

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    De acordo com Servius, o finitor de uma colnia apresentava-se capite uelato como um ugure e togado de modo militar solene, cinctus Gabinus, o que denota que o ritual da fundao recaa na interseo das esferas religiosa e militar (miliae = fora do pomerium) e todos os textos suprstites so unnimes em citar um boi (no exterior e direita) e uma vaca (no interior e esquerda) no rito de fundao para o traado do pomerium, o que implica um sentido anti-horrio na marcao do solo36.

    Segundo Kvium:

    Rigorosa e semanticamente falando, os procedimentos rituais se referem fundao das 33 coloniae Latinae na Itlia entre 334 e 218 a.C., todas erguidas a fundamento. Seu propsito era, sem dvida, militar, defensivo e eram reconhecidas por Roma como ciuitates, fosse qual fosse sua composio tnica. Talvez o conservadorismo ritual tenha mantido os augrios e a marcao na terra de fundaes posteriores, que no eram mais denominadas urbes; essas tinham diferentes propsitos e, muitas vezes, eram sobrepostas a comunidades urbanas preexistentes. E, mais importante, no eram reconhecidas como novas nationes e seus colonos retinham sua cidadania romana, ou a recebiam37.

    Mais do que um conservadorismo ritual, que pode levar (falsa) crena de que a religio romana era um corpo de prticas e conhecimentos cristalizados e repetidos exausto, consideramos que os rituais de fundao e seu desenvolvimento no tempo e no espao refletem a centralidade das prticas rituais romanas na urbs e seu papel no processo de racionalizao de aes governamentais que esto na base da criao e do sucesso do sistema imperial romano. Esse processo, que possivelmente visava soluo de problemas ad hoc, estava calcado no sistema de valores e na viso de mundo romana ou de sua elite institucionalizando aes e conhecimen-tos tcnicos e administrativos, constantemente abstrados, reelaborados e ressignificados ao longo dos tempos.

    36 Tais elementos nos permitem pensar em um conjunto de oposies intercambiveis: vaca/feminino/dentro/esquerda x boi/masculino/fora/direita, por exemplo.

    37 KVIUM, Ch. Inauguration and Foundation. An Essay on Roman Ritual Classification and Continuity. In: RICHARDSON, J. H.; SANTANGELO, F. Priests and State in the Roman World. Mnchen: Franz Steiner Verlag, 2011. p. 63-90, p. 83.

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    O finitor qualificava as divises das inaugurationes: o pomerium e o murus so sancti, i.e., so sujeitos lei augural (Plut. Quaest. Rom. 27). O fundador, contudo, no um sacerdote: um magistrado e guerreiro e usa o cinctus Gabinus, modo de arrumar a toga usado em rituais religiosos. Seu murus estabelece um ager effatus num local exterior (fori), que no somente o domnio estrangeiro dos deuses (pars hostilis), mas tambm o domnio da guerra, militiae. Uma parte domstica, pars familiaris, e per-tence ao nascimento e vida, onde os mortos sero estritamente proibidos (uma reiterao das leges de colnias); a outra pars hostilis, esfera da morte e da guerra. O finitor pe os coloni no interior de uma ciuitas que foi condita (posta num lugar, reunida) e, ao criar portas em seu murus, o agora conditor cria o espao de transio entre as esferas da urbs e do ager: os mortos podem passar por elas, pois no so sanctae, permitindo tambm que os guerreiros, ritualmente purificados, possam retornar e que deuses euocati possam ser incorporados e instalados na nova cidade.

    Poderamos nos perguntar se o ritual de fundao e as tcnicas da limitatio realmente seguiam padres religiosos ou se os escritores romanos da Repblica tardia e do principado trataram de explicar tais mtodos a partir de paralelos visveis com as prticas rituais da inauguratio. Seja como for, os rituais de fundao eram verdadeiros palcos de comunicao e publicizao de aes e criaes poltico-institucionais e as analogias provavelmente faziam sentido para os romanos. Sua reiterao poderia re-sultar na criao de novas prticas ou na modificao de antigas, alterando, ressignificando e consolidando novos conhecimentos e prticas religiosas, polticas e administrativas de um modo tal que as inovaes ganhavam ares de antiguidade, autoridade e realidade, e a ordem romana tornava-se ordem sagrada.

    Recebido em setembro de 2012.Aprovado em junho de 2013.