temas em neurociências - uel...áreas do conhecimento, especialmente das áreas biológicas e da...
TRANSCRIPT
Temas em Neurociecircncias
Joseacute Luciano Tavares da SilvaJosiane Ceciacutelia Luzia
(Organizadores)
9 786556 680057
ISBN 978-655668005-7
Temas em Neurociecircncias
Joseacute Luciano Tavares da Silva
Josiane Ceciacutelia Luzia
(Organizadores)
2020
Copyright copy 2020 ndash Todos os direitos reservados
Si381t Silva Joseacute Luciano Tavares da Luzia Josiane CeciacuteliaTemas em Neurociecircncias Joseacute Luciano Tavares da Silva Josiane
Ceciacutelia Luzia (Orgs) ndash Editora Scienza 2020 ndash Satildeo Carlos SP Brasil
362 p
ISBN - 978-65-5668-015-6DOI - httpdxdoiorg1026626978-65-5668-015-6B0001
Disponiacutevel em httpwwwuelbrccbfisiologicasportalpagespublicacoesphphttpwwwuelbrccbpgacpagespublicacoesphp
1 Fisiologia humana 2 Neuropsicologia 3 Neurociecircncias 4 Sistema Nervoso I Orgs II Tiacutetulo
CDD 612
Revisatildeo Editoraccedilatildeo E-book e Impressatildeo
Rua Juca Sabino 21 ndash Satildeo Carlos SP(16) 3364-3346 | (16) 9 9285-3689
wwweditorascienzacombrgustavoeditorascienzacom
ReitorDr Seacutergio Carlos de Carvalho
Vice-reitorDr Deacutecio Sabbatini Barbosa
Comissatildeo CientiacuteficaOs capiacutetulos desta obra foram avaliados e receberam pareceres
ad hoc dos seguintes membros da comissatildeo cientiacutefica
bull Dr Amauri Gouveia Juacutenior | Universidade Federal do Paraacute-Paraacute
bull Dra Caacutessia Thais Bussamra Vieira Zaia | Universidade Estadual de Londrina-Paranaacute
bull Dra Claacuteudia Bueno dos Reis Martinez | Universidade Estadual de Londrina-Paranaacute
bull Dr Ernane Torres Uchoa | Universidade Estadual de Londrina-Paranaacute
bull Dra Magda Solange Vanzo Pestun | Universidade Estadual de Londrina-Paranaacute
bull Dr Mauro Leonelli | Universidade Estadual de Londrina-Paranaacute
bull Doutorando Mayron Piccolo | Universidade de Fribourg Fribourg Suiacuteccedila
bull Doutoranda Nancy Nazareth Gatzke Correcirca | Universidade Estadual de Londrina-Paranaacute
bull Dra Regina Ceacutelia Bueno Rezende Machado | Universidade Estadual de Londrina-Paranaacute
bull Mestre Vanessa Santiago Ximenes | Universidade Estadual de Londrina-Paranaacute
bull Mestre Vivian Senegalia Morete | Varas de Famiacutelia e de Infacircncia e JuventudeTribunal de Justiccedila do Estado do Paranaacute
Organizadores
Joseacute Luciano Tavares da Silva
Doutor em Ciecircncias (Fisiologia Humana) pela Universidade de Satildeo Paulo - Satildeo Paulo Mestre em Ciecircncia do Movimento Humano (Fisiologia do Exerciacutecio) pela Universidade Federal de Santa Maria - Rio Grande do Sul Docente do Departamento de Ciecircncias Fisioloacutegicas e dos Cursos de Poacutes-graduaccedilatildeo em Neurociecircncias e em Fisiologia Translacional da sauacutede agrave doenccedilaCoordenador do Programa de Formaccedilatildeo Complementar Temas em Neurociecircncias destinado a estudantes de graduaccedilatildeo poacutes-graduaccedilatildeo e profissionais de diversas aacutereas do conhecimento especialmente das aacutereas bioloacutegicas e da sauacutede
Josiane Ceciacutelia Luzia
Doutora em Neuropsicologia Cliacutenica pela Universidad de Salamanca Espanha Mestre em Neurociecircncias e Comportamento pela Universidade de Satildeo Paulo- Satildeo Paulo Docente do Departamento de Psicologia Geral e Anaacutelise do Comportamento e do Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Sauacutede Mental da Universidade Estadual de Londrina Colaboradora do Programa de Formaccedilatildeo Complementar Temas em Neurociecircncias
Organizadores | 5
Sobre os Autores | 7
Sobre os Autores
Acauatilde Galdino Vieira SilvaGraduaccedilatildeo em Psicologia pela Universidade de Mariacutelia (UNIMAR)
Mariacutelia-Satildeo Paulo Psicoacutelogo Cliacutenico
Andreacute Demambre BacchiDoutor em Ciecircncias Fisioloacutegicas pela Universidade Estadual de
Londrina Docente da Universidade Federal de Rondonoacutepolis - MT
Andressa de Freitas Mendes DionisioDoutora em Farmacologia pela Universidade de Satildeo Paulo
Ribeiratildeo Preto - Satildeo Paulo Poacutes-doutorado pela Universidade do Alabama em Birmingham Estados Unidos da Ameacuterica e pela Faculdade de Medicina pela Universidade de Satildeo Paulo Ribeiratildeo Preto - Satildeo Paulo Docente do Departamento de Ciecircncias Fisioloacutegicas e do Programa Multicecircntrico de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias Fisioloacutegicas da Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
Celio Roberto EstanislauDoutor em Psicobiologia pela Universidade de Satildeo Paulo e Poacutes-
doutor pela Universitat Autoacutenoma de Barcelona Espanha Docente do Departamento de Psicologia Geral e Anaacutelise do Comportamento e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Anaacutelise do Comportamento e Neurociecircncias da Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
Clay BritesDoutor em Ciecircncias Meacutedicas pela UNICAMP ndash Campinas -Satildeo
Paulo Pediatra e Neurologista Infantil do Instituto Neurosaber Londrina-Paranaacute Membro Titular da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) Membro e Vice-Presidente da Associaccedilatildeo Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil e Profissotildees Afins (ABENEPI) - Paranaacute
8 | Temas em Neurociecircncias
Decircnis Augusto Santana ReisMestre em Farmacologia pela Faculdade de Medicina de
Ribeiratildeo Preto-USP Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina Pesquisador do Nuacutecleo de Estudos Violecircncia e Relaccedilotildees de Gecircnero - NEVIRG- UNESPASSIS- Satildeo Paulo
Denise Albieri Jodas SalvagioniDoutora em Sauacutede Coletiva pela Universidade Estadual de
Londrina Docente do Departamento de Enfermagem do Instituto Federal do Paranaacute Londrina-Paranaacute
Edneacuteia Aparecida PeresDoutora em Educaccedilatildeo pela Universidade Estadual Paulista Juacutelio
de Mesquita Filho-Campus Mariacutelia Mariacutelia ndash Satildeo Paulo Docente do Departamento de Psicologia Geral e Anaacutelise do Comportamento da Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
Guilherme Machado BorgesEspecialista em Anaacutelise do Comportamento Aplicado pelo
Centro Universitaacuterio Filadeacutelfia Docente Coordenador de Estaacutegios do Curso de Psicologia da Faculdade de Jandaia do Sul ndash FafiJan Jandaia do Sul - Paranaacute
Isis Amanda Andrade AmadeuEstudante do Curso de Psicologia pela Universidade Estadual de
Londrina Londrina-Paranaacute
Jayme Marrone JuacuteniorDoutorando em Ensino de Ciecircncias pela Universidade Estadual
de Londrina Londrina-Paranaacute Docente do Instituto Federal do Paranaacute Astorga-Paranaacute
Joseacute Luciano Tavares da SilvaDoutor em Ciecircncias pela Universidade de Satildeo Paulo (USP)-Satildeo
Paulo Docente do Departamento de Ciecircncias Fisioloacutegicas e do Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Neurociecircncias (UEL) Docente e coordenador do Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Fisiologia Translacional da sauacutede agrave doenccedila e coordenador do Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo da Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
Sobre os Autores | 9
Josiane Ceciacutelia LuziaDoutora em Neuropsicologia Cliacutenica pela Universidad de
Salamanca Espanha Docente do Departamento de Psicologia Geral e Anaacutelise do Comportamento e do Curso de Poacutes-graduaccedilatildeo em Sauacutede Mental da Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
Lucas Aleacutecio GomesDoutor em Ciecircncias pela Faculdade de Medicina Veterinaacuteria
e Zootecnia da Universidade de Satildeo Paulo- Satildeo Paulo Docente do Departamento de Cliacutenicas Veterinaacuterias e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncia Animal da Universidade Estadual de Londrina-Paranaacute
Mauro LeonelliDoutor em Fisiologia pela Universidade de Satildeo Paulo- Satildeo
Paulo Docente do Departamento de Ciecircncias Fisioloacutegicas e da Poacutes-graduaccedilatildeo em Fisiologia Translacional da sauacutede agrave doenccedilada Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
Rodrigo Moreno KleinDoutorando pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da
Sauacutede da Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
Roberta EkuniDoutora em Ciecircncias pela Universidade Federal de Satildeo Paulo -
Satildeo Paulo Docente da Universidade Estadual do Norte do Paranaacute e do Programa de Mestrado em Educaccedilatildeo (PPEd) Jacarezinho - Paranaacute
Selma Maffei de AndradeDoutorado em Sauacutede Puacuteblica pela Universidade de Satildeo Paulo-
Satildeo Paulo Docente do Departamento de Sauacutede Coletiva e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Sauacutede Coletiva da Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
Silvia Alves SantosDoutora em Educaccedilatildeo pela Universidade Federal de Satildeo Carlos
(UFSCar) Satildeo Carlos - Satildeo Paulo Docente do Departamento de Educaccedilatildeo Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
10 | Temas em Neurociecircncias
Silvia PonzoniDoutora em Ciecircncias pela Universidade de Satildeo Paulo- Satildeo Paulo
e Poacutes-Doutorado pela Universita degli Studi - Modena USMOD Itaacutelia e Universitagrave Degli Studi Di Parma UDSPR Itaacutelia Docente do Departamento de Ciecircncias Fisioloacutegicas e da Poacutes-graduaccedilatildeo em Fisiologia Translacional da sauacutede agrave doenccedilada Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
Thiago Soares CampoliMestre em Anaacutelise do Comportamento pela Universidade
Estadual de Londrina Psicoacutelogo cliacutenico em Londrina-Paranaacute
Wagner Ferreira LimaDoutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista Juacutelio de
Mesquita Filho Assis - Satildeo Paulo Docente do Departamento de Letras Vernaacuteculas e Claacutessicas Centro de Ciecircncias Humanas Universidade Estadual de Londrina Londrina-Paranaacute
Apresentaccedilatildeo | 11
Apresentaccedilatildeo
O aprimoramento notadamente nas duas uacuteltimas deacutecadas da divulgaccedilatildeo cientiacutefica relacionada agraves Neurociecircncias seja por intermeacutedio de manchetes indicando novas descobertas na aacuterea livros voltados exclusivamente a este fim ou ainda por meio de filmes ou seacuteries de TV como ldquoBrain Gamesrdquo (ldquoTruques da Menterdquo no Brasil produzida pela Natgeo) colaborou de forma inequiacutevoca para o crescente interesse despertado no puacuteblico de forma geral Afinal quem natildeo conhece algueacutem mais ou menos proacuteximo que esteja acometido por disfunccedilotildees como doenccedila de Alzheimer ou Parkinson mais comuns a cada ano devido ao envelhecimento populacional Pode ser que na famiacutelia haja uma pessoa que sofra com transtorno obsessivo-compulsivo transtorno de deacuteficit de atenccedilatildeo e hiperatividade um filho para o qual aprender a ler eacute um desafio quase intransponiacutevel ou mesmo um tio que sente dor em uma perna que fora amputada e natildeo existe mais Quem sabe algueacutem tenha passado pelo terror de sentir-se paralisado sem poder mover um muacutesculo sequer ao acordar de madrugada podendo jurar que embora sozinho sentira a presenccedila de algo ldquosobrenaturalrdquo
Eacute fascinante saber que tais exemplos e muitos outros que fazem parte de nosso dia a dia podem ser explicados por alteraccedilotildees no funcionamento dessa massa tortuosa com consistecircncia gelatinosa e cerca de 15 kg contida pelo cracircnio Mesmo com sua aparecircncia relativamente estranha quando comparada aos outros oacutergatildeos do corpo tudo o que pensamos sentimos e experimentamos natildeo passa de mera atividade eletroquiacutemica presente nas trilhotildees de conexotildees entre as ceacutelulas que a compotildee O delicioso cheiro e sabor daquela pizza que acabou de sair do forno a visatildeo da pessoa amada e os sentimentos e emoccedilotildees a ela relacionados o amor incondicional pelos filhos e o medo aterrorizante de perdecirc-los a raiva pelo tracircnsito na hora do rush e a alegria de finalmente chegar em casa ou seja absolutamente tudo aquilo que somos de tal maneira que ao morrermos tudo isso tambeacutem morre conosco Ou seraacute que natildeo
12 | Temas em Neurociecircncias
Torna-se portanto natural o desejo de saber mais sobre o sistema nervoso e assim poder vislumbrar de maneira um pouco mais profunda sua espetacular complexidade Logo natildeo surpreende que o desenvolvimento de um programa complementar de ensino nesta aacuterea tenha obtido tanto sucesso com cerca de 1300 participantes inscritos desde sua primeira ediccedilatildeo em 2010
Com o objetivo de comemoraccedilatildeo ao aniversaacuterio de dez anos do programa de formaccedilatildeo complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo esta obra reuacutene os conteuacutedos trabalhados por alguns de seus colaboradores que dentro de suas aacutereas de conhecimento ministraram palestras orientaram grupos de estudos ou ambos ao longo desta uacuteltima deacutecada Considerando a caracteriacutestica diversificada do programa em relaccedilatildeo aos diferentes temas abordados optamos por organizar os 14 capiacutetulos que compotildeem o livro em trecircs seccedilotildees
A Seccedilatildeo 1 ldquoTeoria e Neurociecircnciasrdquo eacute composta pelos capiacutetulos 1 a 5 em que satildeo apresentadas consideraccedilotildees sobre as caracteriacutesticas do programa desde seu lanccedilamento em 2010 no capiacutetulo 1 os aspectos relacionados agrave evoluccedilatildeo do sistema nervoso no capiacutetulo 2 os denominados ldquoneuromitosrdquo e como estatildeo arraigados na populaccedilatildeo que neles creem no capiacutetulo 3 conjecturas relacionadas agrave associaccedilatildeo entre as Neurociecircncias e a fiacutesica quacircntica no capiacutetulo 4 e uma revisatildeo bibliograacutefica acerca da relaccedilatildeo entre as Neurociecircncias e as denominadas ldquoexperiecircncias paranormaisrdquo no capiacutetulo 5
A Seccedilatildeo 2 ldquoProcessos Baacutesicos em Neurociecircnciasrdquo eacute constituiacuteda pelos capiacutetulos 6 a 9 e apresenta as bases para a dependecircncia quiacutemica no capiacutetulo 6 aspectos neurofisioloacutegicos relacionados agrave dor no capiacutetulo 7 possiacuteveis alteraccedilotildees no sistema nervoso presentes no criminoso no capiacutetulo 8 e aspectos evolucionistas e neurobiologia do transtorno obsessivo-compulsivo no capiacutetulo 9
A Seccedilatildeo 3 ldquoAspectos Cliacutenicos em Neurociecircnciasrdquo eacute constituiacuteda pelos capiacutetulos 10 a 14 em que satildeo apresentados aspectos neurobioloacutegicos da dislexia no capiacutetulo 10 o distuacuterbio psiacutequico associado ao trabalho denominado ldquoSiacutendrome de Burnoutrdquo no capiacutetulo 11 os aspectos farmacoloacutegicos relacionados ao tratamento da dor crocircnica nociceptiva no capiacutetulo 12 a epilepsia em catildees no capiacutetulo 13 e a abordagem do transtorno de ansiedade social sob o ponto de vista da anaacutelise do comportamento no capiacutetulo 14
Apresentaccedilatildeo | 13
Gostaria de manifestar meu reconhecimento e agradecimento a todos os colaboradores palestrantes e orientadores de grupos de estudos que ao longo destes dez anos enalteceram o programa com seus conhecimentos sem os quais o programa e esta obra natildeo existiriam Particularmente agradeccedilo os autores e revisores responsaacuteveis por cada capiacutetulo os quais estatildeo vinculados em sua maioria a Instituiccedilotildees de Ensino Superior seja na categoria de docente estudante de poacutes-graduaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo cientiacutefica e tambeacutem aos profissionais liberais cujos princiacutepios de atuaccedilatildeo estatildeo pautados nos conhecimentos atuais das Neurociecircncias
Tenham todos uma oacutetima leitura
Joseacute Luciano Tavares da Silva
Sumaacuterio | 15
Sumaacuterio
Seccedilatildeo I
Capiacutetulo 1Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo
Ajudando a Compreender o Sistema Nervoso 19Joseacute Luciano Tavares da Silva Silvia Alves Santos Wagner Ferreira Lima e Josiane Ceciacutelia Luzia
Capiacutetulo 2 Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees 35
Silvia Ponzoni
Capiacutetulo 3Neuromitos no Alvo Desmitificando o Ceacuterebro 61
Roberta Ekuni
Capiacutetulo 4A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as
Qualidades da Mateacuteria e a Auto-Organizaccedilatildeo dos Sistemas 79Jayme Marrone Juacutenior
Capiacutetulo 5 As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os
Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo Existe Correlaccedilatildeo e em ateacute que Ponto 107Joseacute Luciano Tavares da Silva e Josiane Ceciacutelia Luzia
Seccedilatildeo II
Capiacutetulo 6Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica 163
Andreacute Demambre Bacchi
16 | Temas em Neurociecircncias
Capiacutetulo 7 Dor Aguda e Dor Crocircnica 185
Mauro Leonelli
Capiacutetulo 8 A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova
Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso 209Decircnis Augusto Santana Reis
Capiacutetulo 9Transtorno Obsessivo-Compulsivo Integraccedilatildeo entre Perspectiva
Evolucionista e Dados Neurobioloacutegicos 239Celio Roberto Estanislau Thiago Soares Campoli Rodrigo Moreno Klein Acauatilde Galdino Vieira Silva Isis Amanda Andrade Amadeu e Guilherme Machado Borges
Seccedilatildeo III
Capiacutetulo 10 Aspectos Neurobioloacutegicos da Dislexia Contribuiccedilotildees
da Neuroimagem 259Clay Brites
Capiacutetulo 11 Siacutendrome de Burnout 275
Denise Albieri Jodas Salvagioni e Selma Maffei de Andrade
Capiacutetulo 12 Aspectos Farmacoloacutegicos dos AINEs e Opiodes no
Tratamento da Dor Crocircnica Nociceptiva 293Andressa de Freitas Mendes Dionisio
Capiacutetulo 13 Epilepsia em Catildees 319
Lucas Aleacutecio Gomes
Capiacutetulo 14 Transtorno de Ansiedade Social Relato de Caso 341
Josiane Ceciacutelia Luzia Edneacuteia Aparecida Peres e Joseacute Luciano Tavares da Silva
SECcedilAtildeO I
TEORIA E NEUROCIEcircNCIAS
Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo Ajudando a Compreender o Sistema Nervoso
Joseacute Luciano Tavares da SilvaUniversidade Estadual de Londrina
Silvia Alves SantosUniversidade Estadual de Londrina
Wagner Ferreira LimaUniversidade Estadual de Londrina
Josiane Ceciacutelia LuziaUniversidade Estadual de Londrina
Introduccedilatildeo
A uacuteltima deacutecada do seacuteculo passado (1990-2000) foi considerada a ldquodeacutecada do ceacuterebrordquo devido ao avanccedilo exponencial das pesquisas cientiacuteficas neste campo Desde 1996 a Fundaccedilatildeo Dana (The Dana Foundation) localizada em Nova York nos Estados Unidos promove anualmente uma campanha global a ldquoSemana do Ceacuterebrordquo (Brain Awareness Week) no decorrer da qual satildeo repassadas ao puacuteblico em geral informaccedilotildees relacionadas ao progresso e benefiacutecios das pesquisas cientiacuteficas sobre o ceacuterebro objetivando conscientizaccedilatildeo acerca de sua importacircncia Aderindo agrave campanha todos os anos diversas instituiccedilotildees do Brasil (universidades hospitais e outras) realizam a ldquoSemana do Ceacuterebrordquo durante o mecircs de marccedilo
O presente programa de formaccedilatildeo complementar em neurociecircncias da Universidade Estadual de Londrina eacute voltado exclusivamente aos estudantes matriculados em instituiccedilotildees de ensino superior tanto em niacutevel de graduaccedilatildeo quanto de poacutes-graduaccedilatildeo e aos profissionais atuantes no mercado de trabalho Como princiacutepio baacutesico apresenta a divulgaccedilatildeo do que se sabe
Autor para correspondecircncia jlucianotavares
gmailcom
1
20 | Temas em Neurociecircncias
atualmente sobre determinados temas baacutesicos e tambeacutem cliacutenicos que estejam direta ou indiretamente relacionados agraves neurociecircncias
Sua importacircncia reside no fato de que a prevenccedilatildeo tratamento e entendimento de alteraccedilotildees funcionais relacionadas ao sistema nervoso requerem noccedilotildees sobre sua funccedilatildeo normal e o que se poderia esperar em caso de anormalidades Isto implica que de maneira direta ou indireta e de forma mais ou menos aprofundada profissionais da aacuterea da sauacutede e de aacutereas afins que lidam com desenvolvimento humano ndash como psicoacutelogos pedagogos assistentes sociais entre outros ndash precisam dispor desta compreensatildeo Eacute evidente por exemplo a dificuldade de muitos professores do ensino fundamental em como proceder para o melhor atendimento agraves crianccedilas que apresentam deficiecircncias eou limitaccedilotildees fiacutesicas e intelectuais apoacutes a sua inclusatildeo em turmas cuja maioria se encaixa nos padrotildees aceitos como normais
Sob o ponto de vista do desenvolvimento tecnoloacutegico no acircmbito industrial o qual se apresenta em franca expansatildeo e envolve desde a confecccedilatildeo de proacuteteses interligadas ao sistema nervoso ateacute a substituiccedilatildeo de oacutergatildeos sensoriais por equivalentes roboacuteticos eacute visiacutevel a necessidade de profissionais capacitados a fazer as interconexotildees entre esta aacuterea e a tecnologia biomeacutedica
Mesmo que por enquanto esteja relativamente longe de explicar de maneira convincente como a consciecircncia em toda sua complexidade adveacutem de uma massa formada por bilhotildees de neurocircnios e outras ceacutelulas que perfazem o enceacutefalo humano o conjunto de ciecircncias relacionadas ao estudo e compreensatildeo do sistema nervoso ou seja as ldquoNeurociecircnciasrdquo tecircm feito progressos inegaacuteveis para tal compreensatildeo
Fundamentada na premissa de que todo comportamento e vida mental originam-se da estrutura e funccedilatildeo do sistema nervoso (Squire Berg Bloom Du Lac Ghosh amp Spitzer 2008) ela se abre aos diversos ramos de pesquisa cada um dos quais regidos por um ponto de vista distinto Com a compreensatildeo dos diferentes aspectos relacionados agrave fisiologia agrave bioquiacutemica agrave farmacologia e agrave estrutura do ceacuterebro de vertebrados a disciplina de neurociecircncias apesar de relativamente nova apresentou grande evoluccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas (Goswami 2004)
Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo Ajudando a Compreender | 21
Neste conjunto de partes que se complementam pode-se citar dentre outros o ramo que estuda sua anatomia ou neuroanatomia a interaccedilatildeo entre o sistema nervoso e o sistema endoacutecrino ou neuroendocrinologia a accedilatildeo de drogas sobre o sistema nervoso ou neurofarmacologia as funccedilotildees do sistema nervoso ou neurofisiologia as patologias do sistema nervoso ou neurologia os distuacuterbios neuroloacutegicos em associaccedilatildeo com distuacuterbios psiquiaacutetricos ou neuropsiquiatria e as relaccedilotildees entre o ceacuterebro e funccedilotildees mentais vale dizer a neuropsicologia (Herculano-Houzel 2008)
Nota-se contudo que o prefixo ldquoneurordquo vem sendo apropriado de maneira no miacutenimo questionaacutevel por diversos setores da sociedade (Neves 2016) Com objetivos oportunistas ou para conquistar maior audiecircncia a imprensa e outros grupos (propositalmente ou natildeo) muitas vezes simplificam fatos e resultados cientiacuteficos podendo inclusive colocar em risco a sauacutede da populaccedilatildeo que crecirc no que eacute divulgado
Assim sendo extrapolando o aspecto profissional o esclarecimento do puacuteblico em geral sobre o papel das neurociecircncias no dia a dia mostra-se essencial para o desenvolvimento cultural e social da sociedade evitando que a populaccedilatildeo seja talhada segundo o interesse comercial de grupos diversos baseados em boatos ou crenccedilas infundadas os denominados ldquoneuromitosrdquo (Ekuni amp Pompeacuteia 2016)
Ao longo dos uacuteltimos anos tem havido grande nuacutemero de concepccedilotildees errocircneas acerca do ceacuterebro as quais satildeo divulgadas pela miacutedia de forma geral muitas relacionadas ao processo de aprendizagem Considerando-se que frequentemente originam-se de elementos cientiacuteficos mesmo que mal interpretados incompletos ou extrapolados para aleacutem das evidecircncias observadas em pesquisas sua refutaccedilatildeo torna-se mais difiacutecil como os exemplos que seguem (OECD 2007)
a) ldquoNatildeo haacute tempo a perder pois tudo que eacute importante acerca do ceacuterebro eacute decidido ateacute a idade de trecircs anosrdquo
b) ldquoExistem periacuteodos criacuteticos nos quais certas mateacuterias devem ser ensinadas e aprendidasrdquo
c) ldquoNoacutes utilizamos normalmente apenas 10 da capacidade de nosso ceacuterebrordquo
22 | Temas em Neurociecircncias
d) ldquoExistem pessoas que utilizam mais o hemisfeacuterio esquerdo e outras o hemisfeacuterio direito do ceacuterebrordquo
e) ldquoHomens e meninos possuem ceacuterebros diferentes de mulheres e meninasrdquo
f) ldquoO ceacuterebro de uma crianccedila pequena eacute capaz de aprender apenas um idioma por vezrdquo entre outros
Por conta de concepccedilotildees como estas observa-se que muitas escolas podem utilizar meacutetodos de ensino baseados em crenccedilas cientificamente infundadas (Brockington amp Mesquita 2016)
Aleacutem dos ldquoneuromitosrdquo pode-se ainda salientar crenccedilas aceitas como verdadeiras por parcela consideraacutevel da populaccedilatildeo tais como ldquoexperiecircncias de quase-morterdquo ldquoabduccedilotildees alieniacutegenasrdquo e outras do gecircnero para as quais existem explicaccedilotildees embasadas na neurociecircncia (Mobbs amp Watt 2011) Em relaccedilatildeo a esta uacuteltima o esclarecimento sobre como o sistema nervoso pode gerar alteraccedilotildees na percepccedilatildeo eou consciecircncia muitas vezes inoacutecuas mas quando apontadas de maneira equivocada como indiacutecios de manifestaccedilotildees sobrenaturais ou de doenccedilas graves poderia acarretar o sensacionalismo que sempre as caracterizam
Considerando a importacircncia de desmistificar tais crenccedilas e esclarecer profissionais e futuros profissionais da aacuterea da sauacutede e afins os quais satildeo (ou ao menos deveriam ser) o elo entre a pesquisa cientiacutefica seacuteria e o puacuteblico em geral este programa de formaccedilatildeo complementar objetiva possibilitar a aquisiccedilatildeo de noccedilotildees baacutesicas fundamentais acerca das funccedilotildees normal e anormal relacionadas ao sistema nervoso
Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo Aspectos Histoacutericos
O Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo foi iniciado na forma de projeto de pesquisa em ensino em agosto de 2010 sendo entatildeo denominado de ldquoEstudos de Casos em Neurociecircncia Cliacutenicardquo
A princiacutepio foi direcionado apenas aos estudantes de graduaccedilatildeo do terceiro e quarto anos do curso de Psicologia da UEL com 43 estudantes inscritos A ideia partiu da necessidade de incrementar a
Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo Ajudando a Compreender | 23
parte de fisiologia do sistema nervoso inserida na disciplina ldquoFisiologia Humanardquo voltada ao curso de Psicologia e que estava vigente na eacutepoca atualmente substituiacuteda pela disciplina ldquoNeurofisiologiardquo
Aleacutem da parte de neurofisiologia o programa englobava toacutepicos cliacutenicos pouco vistos no decorrer da graduaccedilatildeo Na eacutepoca o programa tambeacutem atraiu a atenccedilatildeo de estudantes do curso como mais uma opccedilatildeo para participaccedilatildeo em projeto de ensino e indiretamente como uma porta para projetos de pesquisa de docentes orientadores de casos cliacutenicos em neurociecircncias Tendo em vista a pouca oferta de vagas o projeto foi desenvolvido em salas de aula do departamento de ciecircncias fisioloacutegicas do CCBUEL com baixa capacidade de lotaccedilatildeo Considerando que as palestras e desenvolvimento de estudos foram realizados por docentes colaboradores do projeto que recebiam carga horaacuteria para tal ou por consultores externos convidados natildeo houve necessidade de conseguir financiamento para seu desenvolvimento
No ano seguinte iniciou-se a segunda turma desta vez aberta tambeacutem a estudantes de Fisioterapia do segundo ano sendo formada por 63 estudantes sendo 23 estudantes de Psicologia e 40 estudantes de Fisioterapia A terceira e uacuteltima turma ainda como projeto de pesquisa em ensino foi aberta em 2012 sendo formada por 76 estudantes de graduaccedilatildeo de cursos diversos da UEL e dois estudantes de outras instituiccedilotildees
Encerrado na forma de projeto de pesquisa em ensino no ano de 2012 deu-se origem ao Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo em formato de palestras em um semestre e de estudos em grupos no semestre seguinte Em 2013 no seu primeiro ano como Programa de Formaccedilatildeo Complementar obteve o total de 115 estudantes inscritos dos quais 107 estudantes de graduaccedilatildeo de diversos cursos da UEL e oito participantes externos A turma seguinte em 2014 obteve 121 inscriccedilotildees sendo 59 estudantes de graduaccedilatildeo de cursos diversos da UEL e 62 participantes externos
A turma de 2015 apresentou 166 inscriccedilotildees das quais 94 de estudantes de graduaccedilatildeo de diversos cursos da UEL e 72 participantes externos A turma seguinte de 2016 obteve 220 inscriccedilotildees das quais 120 inscriccedilotildees de estudantes de graduaccedilatildeo da UEL e cem inscriccedilotildees de participantes externos Em 2017 houve 188 inscriccedilotildees das quais
24 | Temas em Neurociecircncias
101 de estudantes de graduaccedilatildeo da UEL e 88 participantes externos Finalmente em 2018 foram realizadas 245 inscriccedilotildees das quais 139 estudantes de graduaccedilatildeo da UEL e 106 participantes externos
O Programa mostra-se um espaccedilo profiacutecuo para o desenvolvimento de temas de pesquisa para alunos e comunidade externa isso significa afirmarmos que sua consolidaccedilatildeo como espaccedilo formativo acadecircmico eacute de grande valia para a sociedade Corroborando tal afirmaccedilatildeo a partir de um grupo de estudos voltado para o tema ldquoSuiciacutediordquo coordenado por uma das colaboradoras do programa foi desenvolvido o evento de extensatildeo Suiciacutedio vocecirc jaacute parou para pensar no formato de ldquomesas redondasrdquo o qual obteve nuacutemero expressivo de inscriccedilotildees gerando livro homocircnimo escrito pelos palestrantes
Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo Aspectos Metodoloacutegicos
O Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo caracteriza-se por palestras diversas relacionadas de maneira direta ou indireta agraves neurociecircncias As atividades ocorrem aos saacutebados no periacuteodo da manhatilde no Centro de Ciecircncias Bioloacutegicas da Universidade Estadual de Londrina (CCBUEL) no decorrer do segundo semestre do ano letivo Aos estudantes de graduaccedilatildeo regularmente matriculados na instituiccedilatildeo e que tenham participado de um nuacutemero miacutenimo de 70 das palestras do semestre anterior eacute oferecida a oportunidade de permanecer no programa no semestre seguinte para participaccedilatildeo em grupos de estudos os quais estatildeo sob a orientaccedilatildeo de docentes ou estudantes de poacutes-graduaccedilatildeo de mestrado ou doutorado tambeacutem da instituiccedilatildeo e tecircm por objetivo o estudo mais aprofundado sobre temas diversos propostos pelos orientadores
Acredita-se que desta maneira seratildeo fortalecidos os conhecimentos acerca do funcionamento global do sistema nervoso visto por diferentes aspectos e abordagens Havendo vagas remanescentes para participaccedilatildeo em grupos de estudos estas satildeo ofertadas a colaboradores externos O criteacuterio utilizado para preferecircncia de participaccedilatildeo eacute o mesmo utilizado para estudantes
Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo Ajudando a Compreender | 25
da UEL ou seja os que apresentam maior participaccedilatildeo na fase de palestras
Desde que se iniciou como programa de formaccedilatildeo complementar em 2013 ateacute o teacutermino do cronograma de 2018 foram ministradas 140 palestras sendo 23 em 2013 25 em 2014 21 em 2015 22 em 2016 26 em 2017 e 23 em 2018 com duraccedilatildeo de 90 a 180 minutos dependendo da complexidade do tema tratado Tendo em vista que atualmente o puacuteblico participante eacute composto por estudantes e profissionais de diversas aacutereas do conhecimento optou-se a partir da turma de 2015 por ministrarem-se palestras relacionadas tanto agrave aacuterea cliacutenica quanto agrave Neurofisiologia baacutesica
As palestras relacionadas agrave Neurofisiologia baacutesica que ocorreram previamente agraves relacionadas agrave aacuterea cliacutenica foram ministradas por docentes das disciplinas de ldquoNeurofisiologiardquo ldquoNeuroendocrinologiardquo e ldquoPsicofarmacologiardquo do curso de Psicologia da UEL e docentes externos e foram as seguintes ldquoAntidepressivosrdquo ldquoCaccediladores de neuromitos o que vocecirc sabe sobre seu ceacuterebro eacute verdaderdquo ldquoControle neuroendoacutecrino da fome e saciedaderdquo ldquoFarmacologia no tratamento da dor crocircnicardquo ldquoNeurotransmissatildeo na dor crocircnicardquo ldquoNeurotransmissatildeo e organizaccedilatildeo do sistema nervosordquo ldquoNeurofisiologia dos sistemas sensoriaisrdquo ldquoNeurofisiologia dos sistemas motoresrdquo ldquoNeurofisiologia das emoccedilotildeesrdquo ldquoNeurofisiologia dos sistemas de memoacuteriardquo ldquoNeurofisiologia do ciclo sono-vigiacuteliardquo e ldquoOrigem e evoluccedilatildeo da vidardquo
As palestras relacionadas agrave neurociecircncia cliacutenica foram ministradas por docentes convidados todos especialistas na aacuterea cujo tema foi abordado vale dizer graduados e poacutes-graduados nas aacutereas de Biomedicina Enfermagem Farmaacutecia Fisioterapia Medicina (Anestesiologia Cirurgia bariaacutetrica Endocrinologia Geriatria Neurocirurgia Neurologia Neuropediatria e Psiquiatria) Medicina Veterinaacuteria Odontologia Psicologia e Psicopedagogia
Os temas das palestras foram os seguintes (em ordem alfabeacutetica) ldquoApneia do sonordquo ldquoAspectos farmacoloacutegicos da analgesia e anestesiardquo ldquoAspectos psicoloacutegicos das emoccedilotildeesrdquo ldquoAtendimento odontoloacutegico ao paciente especialrdquo ldquoBullying consequecircncias psicoloacutegicasrdquo ldquoCirurgia bariaacutetrica aspectos cliacutenicos e psicoloacutegicosrdquo ldquoDemecircncias senisrdquo ldquoDependecircncia quiacutemica e compulsatildeordquo ldquoDepressatildeo
26 | Temas em Neurociecircncias
e suiciacutediordquo ldquoDistuacuterbios do processamento auditivo centralrdquo ldquoDoenccedilas neuromuscularesrdquo ldquoDoenccedila de Parkinsonrdquo ldquoDor e analgesia aspectos emocionaisrdquo ldquoDor neuropaacuteticardquo ldquoEsclerose muacuteltiplardquo ldquoEsquizofreniardquo ldquoFalando sobre surdocegueirardquo ldquoNeuroetologia em epilepsiardquo ldquoNeurologia da aprendizagemrdquo ldquoNeuromarketing e a loacutegica do consumordquo ldquoNeuropatia diabeacuteticardquo ldquoNeuroplasticidade modificaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo do sistema nervosordquo ldquoNeuro-zoonosesrdquo ldquoParalisia cerebralrdquo ldquoPsiquiatria forenserdquo ldquoPsico-neuro-endocrino-imunologiardquo ldquoReconexatildeo de tratos medulares via sistemas inteligentesrdquo ldquoSiacutendrome de anorexia e bulimiardquo ldquoSiacutendrome de burnoutrdquo ldquoSiacutendromes corticaisrdquo ldquoSiacutendrome de Prader-Willyrdquo ldquoTDAH visatildeo do cliacutenicordquo ldquoTDAH visatildeo do psicoacutelogordquo ldquoTDAH visatildeo do psicopedagogordquo ldquoToxina botuliacutenica uso cliacutenicordquo ldquoTranstorno bipolarrdquo ldquoTranstorno obsessivo-compulsivo e siacutendrome de Touretterdquo ldquoTranstornos do sonordquo e ldquoTrauma raqui-medularrdquo
Destacamos que o trabalho realizado no Programa de Formaccedilatildeo Complementar conta tambeacutem com grupos de estudos que auxiliam no aprofundamento dos temas bem como incorporam outros que se relacionam agrave temaacutetica geral da pesquisa em Neurociecircncias
Desde o iniacutecio ainda na forma de projeto de ensino em 2010 ateacute o presente os grupos de estudos se organizaram em torno do aprofundamento dos seguintes temas ldquoAccedilatildeo de drogas sobre ingestatildeo alimentar e gasto energeacuteticordquo ldquoAcidente vascular encefaacutelicordquo ldquoAdaptaccedilotildees fisioloacutegicas do atleta no paradesporterdquo ldquoAntidepressivos e desenvolvimentordquo ldquoAplicaccedilatildeo de conceitos de neurociecircncias na sauacutede coletiva em UBSrdquo ldquoAspectos bioloacutegicos do comportamento sexual e maternalrdquo ldquoAspectos neurobioloacutegicos da criminalidaderdquo ldquoAspectos neurofisioloacutegicos da obesidaderdquo ldquoAspectos neuropsicoloacutegicos do cacircncerrdquo ldquoAspectos psicoloacutegicos da doenccedila de Alzheimerrdquo ldquoAspectos sociais e neuroquiacutemicos de comportamentos suicidasrdquo ldquoAtletas paraliacutempicos e suas particularidadesrdquo ldquoBulimiardquo ldquoContribuiccedilotildees das neurociecircncias agrave educaccedilatildeo especialrdquo ldquoControle neural da funccedilatildeo cardiacuteaca e disfunccedilotildees associadasrdquo ldquoDepressatildeo fisiopatologia e tratamentordquo ldquoDiferenciaccedilatildeo sexual pelo sistema nervoso centralrdquo ldquoDoenccedilas encefaacutelicas em catildees e gatosrdquo ldquoDoenccedila de Parkinsonrdquo ldquoEmoccedilotildees e hipertensatildeordquo ldquoEmpatia e fobia socialrdquo ldquoEpilepsiardquo ldquoEstresse memoacuteria e aprendizagemrdquo ldquoEtologia psicofarmacologia neuropsicologia psicologia evolucionista e psicobiologia da
Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo Ajudando a Compreender | 27
depressatildeordquo ldquoFisiologia do envelhecimentordquo ldquoFunccedilotildees executivas memoacuteria de trabalho velocidade de processamento e atenccedilatildeordquo ldquoLinguagem e cogniccedilatildeo corpoacutereardquo ldquoMecanismos neuroendoacutecrinos relacionados agrave obesidaderdquo ldquoMedo e transtornos de ansiedaderdquo ldquoModelo Psicobioloacutegico e suas relaccedilotildees com o desempenho motorrdquo ldquoNeuroarte e arteterapiardquo ldquoNeurobiologia e farmacologia das drogas de abusordquo ldquoNeurobiologia da linguagemrdquo ldquoNeurociecircncias e espiritualidaderdquo ldquoNeurologia cliacutenica em animais de companhiardquo ldquoNeuropsicologia da empatiardquo ldquoPatologia das disfunccedilotildees linguiacutesticasrdquo ldquoPlantas psicoativasrdquo ldquoProposiccedilatildeo de procedimentos preacute-cliacutenicos com vistas agrave prevenccedilatildeo da recidiva ao consumo de drogasrdquo ldquoSelf mente e comunicaccedilatildeo a reflexividade nas relaccedilotildees interpessoaisrdquo ldquoSentidos e realidade aspectos fiacutesicos e neurocientiacuteficosrdquo ldquoSistema nervoso autocircnomo e metabolismordquo ldquoSubstacircncias psicoativas e comportamentordquo ldquoSuiciacutedio Vocecirc jaacute parou para pensarrdquo ldquoTranstorno bipolarrdquo ldquoTranstorno de deacuteficit de atenccedilatildeo e hiperatividaderdquo e ldquoUso de faacutermacos antidepressivos e gravidezrdquo
Expectativas e Impressotildees do Puacuteblico Participante aobre o Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo
Objetivando identificar o perfil dos participantes do programa e seus interesses dentro das neurociecircncias no primeiro dia dos trabalhos de uma das ediccedilotildees do programa foram aplicados questionaacuterios com questotildees sobre a formaccedilatildeo acadecircmica ou natildeo dos sujeitos participantes quais os motivos levaram o participante a optar por esse Programa qual a relevacircncia do Programa para seu curso para sua profissatildeo ou sua vida e por uacuteltimo quais as expectativas com relaccedilatildeo ao aprendizado obtido pelo Programa
Houve 123 questionaacuterios respondidos dentre os quais 74 estudantes de graduaccedilatildeo de diversos cursos da UEL sendo 21 estudantes de Psicologia 18 de Medicina 9 de Fisioterapia 7 de Biomedicina 5 de Pedagogia 4 de Ciecircncias Bioloacutegicas 4 de Medicina veterinaacuteria 2 de Enfermagem 2 de Farmaacutecia 1 de Engenharia eleacutetrica e 1 de Fiacutesica Aleacutem desses 49 participantes da comunidade externa agrave UEL sendo 20 estudantes de Psicologia 5 estudantes de Medicina 2
28 | Temas em Neurociecircncias
estudantes de Biomedicina 2 estudantes de Fisioterapia 1 estudante de Medicina veterinaacuteria 1 teacutecnico administrativo 4 psicoacutelogos 1 bacharel em Educaccedilatildeo Fiacutesica 1 fisioterapeuta 1 meacutedico veterinaacuterio 1 pedagogo 1 professor de biologia e 9 estudantes de poacutes-graduaccedilatildeo (dois em niacutevel de mestrado e dois de doutorado)
Todas as respostas possuem caracteriacutesticas especiacuteficas acerca do lugar e da situaccedilatildeo em que fala o sujeito No entanto neste trabalho elencamos algumas respostas que trouxeram mais elementos justificaacuteveis em cada uma das questotildees apresentadas
A primeira questatildeo pautou-se na necessidade de colher informaccedilotildees sobre qual seria a relevacircncia do conhecimento dentro da aacuterea de neurociecircncias para o curso a profissatildeo ou para a vida do sujeito
De modo geral as respostas confirmam a ubiquidade das neurociecircncias na vida das pessoas fato que tem despertado o interesse dos acadecircmicos por este Programa de Formaccedilatildeo Complementar Cada qual focaliza um dos aspectos das neurociecircncias que diz respeito agrave sua aacuterea potencial de atuaccedilatildeo O estudante de Psicologia destaca a importacircncia da relaccedilatildeo entre processos cerebrais e psicoloacutegicos (neuropsicologia) para sua carreira profissional
ldquoPenso em futuramente ir para a aacuterea de neuropsico-logia sendo assim o programa de formaccedilatildeo complementar tem muito que me acrescentar aleacutem de ser uma aacuterea muito interessante e o conhecimento aqui adquirido teraacute sua importacircncia para minha profissatildeo independente da aacuterea que eu sigardquo (estudante do 3ordm ano de Psicologia da UEL)
De fato as pesquisas neurocientiacuteficas tecircm jogado uma luz sobre o funcionamento da mente humana por exemplo especificamente no tocante agrave mente emocional trabalhos sobre o papel dos neurotransmissores e do uso de faacutermacos na regulaccedilatildeo do humor e comportamentos satildeo fundamentais Assim as palestras do projeto que tecircm versado direta ou indiretamente sobre tal relaccedilatildeo conseguem atender agraves expectativas dos estudantes de Psicologia
Outro aspecto das pesquisas neurocientiacuteficas mencionado no questionaacuterio concerne ao emprego de conhecimentos neuropsicoloacutegicos na educaccedilatildeo formal As palavras abaixo expressam essa relaccedilatildeo
Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo Ajudando a Compreender | 29
ldquoAtraveacutes da aacuterea de neurociecircncias posso compreender melhor o comportamento de meus possiacuteveis alunos (as) penso que unindo a aacuterea em questatildeo mais os conhecimentos que tenho em Psicologia posso buscar entender de um jeito mais aprofundado os meus alunosrdquo (estudante do 5ordm ano de Pedagogia da UEL)
Essa eacute uma aacuterea a qual as neurociecircncias tecircm muito a oferecer e dessa maneira ela surge como um novo instrumento diagnoacutestico para problemas de aprendizado E natildeo soacute pois fundamental tem sido tambeacutem compreender os problemas comportamentais apresentados por crianccedilas e adolescentes Muitos deles tecircm a ver natildeo apenas com condiccedilotildees socioculturais mas com o amadurecimento cerebral pois o processo de ldquoadolescerrdquo por exemplo tem sido encarado pelas neurociecircncias como um processo acontecendo no ceacuterebro e refletindo-se nas accedilotildees e condutas dos jovens (Herculano-Houzel 2005)
Nesse sentido palestras e grupos de estudo que direta ou indiretamente abordam questotildees relacionadas agrave formaccedilatildeo cognitiva e emocional conseguem dar conta de problemas comportamentais em geral e de crianccedilas e adolescentes em particular no campo da educaccedilatildeo
Outra resposta faz menccedilatildeo a outra forma de aplicaccedilatildeo dos conhecimentos neurocientiacuteficos Trata-se de um ramo profissional muito especiacutefico e teacutecnico mas significativo quanto a abrangecircncia das neurociecircncias nos dias atuais
ldquoA neurociecircncia forma um par excepcional com a Engenharia Eleacutetrica criando a neuroengenharia uma aacuterea que me cativa pela sua importacircncia na mudanccedila de vida das pessoas seja no desenvolvimento de proacuteteses ou na recuperaccedilatildeo de traumas Acredito que por meio da neuroengenharia um dia natildeo existiratildeo pessoas desabilitadas por conta de traumas fiacutesicosrdquo (estudante do 5ordm ano de Engenharia Eleacutetrica da UEL)
Essa percepccedilatildeo alude a um dos campos mais promissores de emprego das neurociecircncias que eacute o da neuroengenharia Nesse tocante destacam-se por exemplo os trabalhos de Nicolelis e colaboradores (2011) os quais mostram ser possiacutevel conectar a atividade de ceacutelulas nervosas com artefatos roboacuteticos e controla-los usando o ldquopoder da menterdquo Atualmente essas pesquisas tecircm se voltado para a confecccedilatildeo de proacuteteses avanccediladas e outros
30 | Temas em Neurociecircncias
procedimentos para a recuperaccedilatildeo de traumas raquidianos e outros (Pruszynsk amp Diedrichsen 2015 King Wang Mccrimmon et al 2015 Bouton Shaikhouni ampAnnetta et al 2016)
Conquanto o programa ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo natildeo tenha esse objetivo especiacutefico como alvo ele colabora de algum modo para a formaccedilatildeo de alunos que se interessam pelo assunto da neuroengenharia As palestras de maneira geral contribuem nesse sentido pois a primeira condiccedilatildeo para trabalhar com a interface ceacuterebro-maacutequina eacute conhecer os princiacutepios de funcionamento da maacutequina mais complexa e maravilhosa do universo ndash o ceacuterebro humano
Outra percepccedilatildeo lembra a importacircncia das neurociecircncias para uma das aacutereas mais carentes de compreensatildeo e demandantes de intervenccedilotildees produtivas vale dizer a educaccedilatildeo especial Embora lacocircnicas as participantes opinam sobre a utilidade do projeto para o progresso profissional
ldquoMelhorar a compreensatildeo dos processos neurofisioloacute-gicos que permeiam as demandas dos estudantes que atendo propiciando assim intervenccedilotildees mais produtivasrdquo (psicoacuteloga atuante na aacuterea de educaccedilatildeo especial)
ldquoTrabalho na educaccedilatildeo especial com educandos que tecircm deacuteficits neuroloacutegicos Assim compreender o funcionamento neuroloacutegico oportunizaraacute elaborar planos e accedilotildees que forneceratildeo a melhoria da qualidade de vida dos educandosrdquo (pedagoga com especializaccedilatildeo em educaccedilatildeo especial e sauacutede mental)
Os interessados em educaccedilatildeo especial tecircm se beneficiado bastante das palestras e dos grupos de estudo Esse campo educacional lida com uma clientela bastante heterogecircnea do ponto de vista das disfunccedilotildees neuropsicoloacutegicas e requer natildeo apenas novos insights sobre essas disfunccedilotildees como tambeacutem formas de intervenccedilatildeo mais eficientes Nesse sentido a pressatildeo eacute cada vez maior por conta das exigecircncias poliacuteticas pela chamada educaccedilatildeo inclusiva Em contrapartida o projeto tem oferecido uma ampla base de conhecimentos especiacuteficos que podem auxiliar os futuros profissionais dessa aacuterea Como visto acima ele tem abordado temas neuropsicoloacutegicos os mais diversos relacionados agrave miriacuteade de problemas que a educaccedilatildeo especial vem encarando
Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo Ajudando a Compreender | 31
Na aacuterea meacutedica o conhecimento neurocientiacutefico eacute absoluta-mente necessaacuterio para o correto diagnoacutestico e tratamento natildeo apenas a profissionais meacutedicos mas a outros profissionais que estejam direta ou indiretamente ligados aos cuidados com o paciente como enfatizam os estudantes abaixo
ldquoNo meu curso e profissatildeo seraacute necessaacuterio o contato direto e constante com pessoas Entender um pouco de neurologia eacute necessaacuterio para poder ajudar bioloacutegica e socialmente os pacientes Aleacutem disso para minha vida isso tambeacutem tem uma importacircncia socialrdquo (estudante do 1ordm ano do curso de Medicina da UEL)
Dentro da enfermagem noacutes trabalhamos com promoccedilatildeo prevenccedilatildeo e recuperaccedilatildeo da sauacutede Como pacientes neuroloacutegicos estatildeo sempre presentes nos serviccedilos de sauacutede eacute fundamental para a enfermagem ter conhecimento sobre a aacuterea para dar mais qualidade agrave assistecircncia prestadardquo (estudante do 4ordm ano de Enfermagem da UEL)
O esclarecimento da etiopatogenia de transtornos da aacuterea de psiquiatria e neurologia e o desenvolvimento de tratamentos satisfatoriamente eficazes satildeo tarefas multidisciplinares que requerem a colaboraccedilatildeo de pesquisadores tanto da aacuterea de neurociecircncias baacutesicas quanto aplicadas (Busatto Filho Britto amp Leite 2012) Ao propiciar informaccedilotildees de ambas por intermeacutedio de palestras e grupos de estudos o programa ldquoTemas em neurociecircnciasrdquo colabora mesmo que de forma modesta para tal desenvolvimento
Finalmente mesmo profissionais da aacuterea teacutecnico-administrativa vislumbram benefiacutecios na obtenccedilatildeo de conhecimentos dentro da aacuterea neurocientiacutefica
ldquoA todo momento lidamos com diferentes pessoas tanto na vida profissional como pessoal e percebemos a complexidade de lidar com cada uma Considero muito importante ter conhecimento na aacuterea de neurociecircncias por mais baacutesico que for Como estou me especializando em gerenciamento estrateacutegico de pessoas acredito que ampliaraacute minha visatildeo sobre essa aacutereardquo (teacutecnica administrativa em administraccedilatildeo hospitalar)
As percepccedilotildees expressas em tais respostas confirmam a interferecircncia das neurociecircncias no cotidiano das pessoas e reforccedila a importacircncia do programa ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo oferecido como complemento de ensino Como sugerem as respostas analisadas
32 | Temas em Neurociecircncias
conhecimentos neurocientiacuteficos perpassam diferentes campos do saber ldquoressignificandordquo conhecimentos estabelecidos e criando novas frentes de atuaccedilatildeo profissional
Consideraccedilotildees Finais
Considerando-se o nuacutemero crescente de participantes desde a primeira turma em 2010 ateacute o presente ano apoacutes ano nota-se a carecircncia e ao mesmo tempo a avidez por conhecimentos dentro da aacuterea de neurociecircncias mesmo em se tratando de estudantes e profissionais da aacuterea de sauacutede Neste aspecto o Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em neurociecircnciasrdquo vem colaborando para a formaccedilatildeo dos participantes e para a divulgaccedilatildeo cientiacutefica que por vezes poderia ficar restrita apenas a especialistas e pesquisadores da aacuterea diminuindo a disseminaccedilatildeo de conhecimentos equivocados e perpetuaccedilatildeo dos chamados ldquoneuromitosrdquo
A caracteriacutestica ecleacutetica do puacuteblico participante torna ainda mais ricas as discussotildees realizadas seja no decorrer de palestras ou dos grupos de estudos ultrapassando-se eventuais barreiras relacionadas agraves aacutereas de formaccedilatildeo e colaborando de forma mais ou menos aprofundada para o enaltecimento da formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo profissionais
Finalmente pode-se concluir que o Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em neurociecircnciasrdquo veio preencher mais uma lacuna em se tratando de divulgaccedilatildeo cientiacutefica junto agrave sociedade cooperando agrave sua maneira para a solidez do trinocircmio Ensino Pesquisa e Extensatildeo papel essencial da universidade puacuteblica
Agradecimentos
Os autores agradecem aos profissionais de diversas aacutereas do conhecimento que desde a primeira ediccedilatildeo do programa contribuiacuteram para a divulgaccedilatildeo cientiacutefica dos inuacutemeros temas apresentados no formato de palestras eou discutidos em grupos de estudos sem os quais o programa natildeo existiria
Programa de Formaccedilatildeo Complementar ldquoTemas em Neurociecircnciasrdquo Ajudando a Compreender | 33
Referecircncias
Bouton C E Shaikhouni A Annetta N V Brockbrader M A Friedenberg D A Nielson DM Sharma G Sederberg P B Glenn B C Mysiw W J Morgan A G Deogaonkar M amp Rezai A R (2016) Restoring cortical control of functional movement in a human with quadriplegia Nature 533 247-250
Brockington G amp Mesquita L (2016) As consequecircncias da maacute divulgaccedilatildeo cientiacutefica Revista da Biologia 15(1) 29-34
Busatto Filho G Britto L R G amp Leite J P (2012) O avanccedilo da neurociecircncia aplicada aos transtornos psiquiaacutetricos e neuroloacutegicos mais do que nunca uma tarefa interdisciplinar Rev Bras Psiquiatr 34(2) S121-S124
Ekuni R amp Pompeacuteia S (2016) O impacto da divulgaccedilatildeo cientiacutefica na perpetuaccedilatildeo de neuromitos na educaccedilatildeo Revista da Biologia 15(1) 21-28
Goswami U (2004) Neuroscience and education Br J Educ Psychol 74 1-14
Herculano-Houzel S (2008) Uma breve histoacuteria da relaccedilatildeo entre o ceacuterebro e a mente In LENT R Neurociecircncia da Mente e do Comportamento Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2-17
Herculano-Houzel S (2005) O ceacuterebro em transformaccedilatildeo Objetiva Rio de Janeiro
King E C Wang P T Mccrimmon C M Chou C C Y Do A H amp Nenadic Z (2015)The feasibility of a brain-computer interface functional electrical stimulation system for the restoration of overground walking after paraplegia Journal of Neuro-Engineering and Rehabilitation 12(80) 1-11
Mobbs D amp Watt C (2011) There is nothing paranormal about near-death experiences how neuroscience can explain seeing bright lights meeting the dead or being convinced you are one of them Trends in Cognitive Sciences 15(10) 447-449 doiorg101016jtics201107010
Neves K A (2016) Neurociecircncia abraccedila o mundo Revista da Biologia 15(1) 35-38
Nicolelis M (2011) Muito aleacutem do nosso eu Cia das letras Satildeo Paulo
OECD (2007) Understanding the Brain The Birth of a Learning Science Disponiacutevel em httpwwwoecdorgsiteeduceri21st40554190pdf Acesso em 14 mar 2019
Pruszynsk J A amp Diedrichsen J (2015) Reading the mind to move the body Science 348(6237)860-861
Squire L Berg D Bloom F du Lac S Ghosh A amp Spitzer N (2008) Fundamental Neuroscience Elsevier
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees
Silvia PonzoniUniversidade Estadual de Londrina
Introduccedilatildeo
A evoluccedilatildeo do primeiro sistema nervoso muito provavelmente se deu apoacutes a mudanccedila evolutiva de formas unicelulares para multicelulares A questatildeo que se apresenta eacute a quais desafios os organismos uni e pluricelulares satildeo submetidos para as suas sobrevivecircncias
Os desafios presentes para a sobrevivecircncia de organismos uni e pluricelulares satildeo basicamente os mesmos alimentaccedilatildeo defesa e reproduccedilatildeo As estrateacutegias utilizadas pelos dois organismos diferem As respostas do organismo unicelular dependem da interaccedilatildeo de sua membrana com o meio externo havendo a necessidade de integraccedilatildeo entre o sinal externo e a resposta Uma bacteacuteria eacute capaz de identificar a fonte de alimento como accediluacutecar ou contaminantes como metais em seu ambiente por meio de quimioceptores e eacute capaz de desviar de obstaacuteculos utilizando as informaccedilotildees provenientes de seus mecanoceptores Estas informaccedilotildees satildeo integradas e por meio de uma cadeia complexa de reaccedilotildees quiacutemicas direcionam o movimento de seus flagelos ou ciacutelios Desta forma mesmo o organismo mais primitivo apresenta componentes para o controle adaptativo de seu comportamento (Roth amp Dicke 2013) Um organismo formado por muitas ceacutelulas apresenta a necessidade de divisatildeo de trabalho implicando na diferenciaccedilatildeo de ceacutelulas com funccedilotildees especiacuteficas formando tecidos e oacutergatildeos As respostas do organismo multicelular para a garantia de sua sobrevivecircncia dependem da coordenaccedilatildeo das diferentes ceacutelulas A associaccedilatildeo de ceacutelulas com funccedilotildees diferenciadas estabelece um novo desafio a eficiecircncia na comunicaccedilatildeo entre elas
Autor para correspondecircncia
ponzauelbr
2
36 | Temas em Neurociecircncias
para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo e a seguranccedila de que todas as ceacutelulas adequaratildeo as suas funccedilotildees agrave necessidade presente Como exemplo utilizemos a reaccedilatildeo ou resposta diante de uma situaccedilatildeo de estresse agudo na qual existe risco de vida real ou fictiacutecio Quando estamos sob ameaccedila observamos aumento no nuacutemero de batimentos cardiacuteacos normalmente congelamos e apresentamos alerta maacuteximo enquanto avaliamos a situaccedilatildeo para decidir se fugir enfrentar que pode significar lutar ou quem sabe em nosso caso tentamos uma negociaccedilatildeo Eacute importante lembrar que o batimento cardiacuteaco aumentado facilitaraacute o aporte de oxigecircnio ao tecido muscular esqueleacutetico no caso de fuga ou luta e de nada adiantaraacute maior quantidade de oxigecircnio se o tecido muscular esqueleacutetico natildeo estiver com disponibilidade de ATP Para aumentar a oferta de ATP as ceacutelulas musculares esqueleacuteticas devem alterar o seu metabolismo ativando quebra de glicogecircnio e concomitantemente inibir sua siacutentese No exemplo acima temos a participaccedilatildeo do ramo simpaacutetico do sistema nervoso neurovegetativo responsaacutevel pela ativaccedilatildeo cardiacuteaca e estimulaccedilatildeo da medula da suprarrenal para liberaccedilatildeo da adrenalina A adrenalina liberada na corrente sanguiacutenea atuando como hormocircnio seraacute o sinal responsaacutevel pela integraccedilatildeo da resposta da ceacutelula muscular agraves necessidades deste animal diante da ameaccedila real ou fictiacutecia
O sistema nervoso para a nossa espeacutecie eacute condiccedilatildeo imprescindiacutevel para a nossa vida e identidade geralmente consideramos o nosso ceacuterebro o sistema nervoso perfeito o aacutepice evolutivo Buscamos o entendimento do funcionamento do nosso ceacuterebro muitas vezes desconhecendo a sua histoacuteria evolutiva
Consideraccedilotildees Sobre Evoluccedilatildeo
Normalmente quando se pensa em evoluccedilatildeo de algum sistema ou em evoluccedilatildeo em sentido geral a tendecircncia eacute acreditar
1 ndash Que evoluir significa sempre sair de uma condiccedilatildeo simples para uma condiccedilatildeo mais complexa ndash nem sempre este eacute o caminho muitas vezes o derivado eacute mais simples que o ancestral
2 ndash Que a evoluccedilatildeo traz sempre acreacutescimo de estrutura e funccedilatildeo - muitas vezes a espeacutecie derivada perde caracteres presentes no seu ancestral e
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 37
3 - Que a evoluccedilatildeo eacute um processo finalista ou seja o ganho de funccedilatildeo decorre da necessidade da mesma frente a um novo desafio ndash a evoluccedilatildeo eacute um processo aleatoacuterio as pressotildees seletivas direcionaram e direcionam a permanecircncia ou perda de caracteres mas natildeo acarretaram o aparecimento destes para a soluccedilatildeo de um desafio a espeacutecie que apresenta este ou aquele caractere que melhor a adapta a determinada condiccedilatildeo apresenta maior chance de sobrevivecircncia (Striedter 2005) Adaptaccedilatildeo eacute a chave para a evoluccedilatildeo
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso - Breve Consideraccedilatildeo
Qual eacute a origem do sistema nervoso Resposta definitiva a esta pergunta ainda natildeo existe os avanccedilos obtidos nos uacuteltimos anos com os avanccedilos obtidos a partir da deacutecada de 1990 com o desenvolvimento da filogeneacutetica molecular trouxe a formulaccedilatildeo de novas hipoacuteteses e teorias As novas metodologias trazem consigo a possibilidade de novos dados e novas interpretaccedilotildees A dificuldade que existe no estudo da filogecircnese do sistema nervoso decorre da inexistecircncia de foacutesseis deste sistema uma vez que o tecido nervoso se decompotildee Foacutesseis de cracircnios permitem apenas inferir sobre tamanho do ceacuterebro os moldes obtidos do interior destes cracircnios natildeo fornecem informaccedilotildees sobre a organizaccedilatildeo funcional do sistema nervoso pertencente ao animal extinto Na verdade conhecer a organizaccedilatildeo e funcionamento de qualquer sistema nervoso a partir de moldes de cracircnios eacute impossiacutevel mesmo para os animais existentes em nossa era
A proposta do presente capitulo eacute apresentar alguns dados e sua interpretaccedilatildeo existentes na literatura que permitam levantar mais questotildees do que respostas sobre a evoluccedilatildeo do sistema nervoso Discorrer sobre toda evoluccedilatildeo de sistema tatildeo complexo e variado considerando a sua estrutura organizaccedilatildeo e funccedilatildeo em invertebrados e vertebrados foge do escopo do presente capiacutetulo
O sistema nervoso encontrado nas espeacutecies existentes invertebrados e vertebrados apresenta uma gama variada de designs como sistema nervoso radial ou rede difusa ou cadeia ganglionar ou ceacuterebro Do ponto de vista bioloacutegico natildeo haacute design vencedor uma vez que cada um atende as demandas da espeacutecie que o possui
38 | Temas em Neurociecircncias
Teria a evoluccedilatildeo dos sistemas nervosos de invertebrados e vertebrados se dado a partir de um ancestral comum ou satildeo independentes em suas origens evolutivas A evoluccedilatildeo a partir de um ancestral comum eacute a hipoacutetese monofileacutetica que pressupotildee que o sistema nervoso evoluiu uma uacutenica vez portanto todos os sistemas nervosos existentes nos animais derivariam de um uacutenico ancestral comum A independecircncia na origem evolutiva constitui a hipoacutetese polifileacutetica a qual pressupotildee que a evoluccedilatildeo do sistema nervoso se deu por convergecircncia ocorrendo independentemente em vaacuterias clades (por clade entende-se um grupo constituiacutedo por uma espeacutecie ancestral e todos os seus descendentes compondo um ramo distinto em uma aacutervore filogeneacutetica Hickman et al 2016) Existe intenso debate com defensores de ambas as hipoacuteteses e o tema foge do escopo do presente capiacutetulo
Qual pressatildeo seletiva direcionou a evoluccedilatildeo e permanecircncia deste sistema complexo e energeticamente dispendioso Seria o sistema nervoso causa ou efeito da relaccedilatildeo presa-predador O sistema nervoso apresenta grande complexidade tanto em sua organizaccedilatildeo quanto em seu funcionamento O ceacuterebro humano constitui 2 do peso corporal e o seu consumo de energia para o funcionamento adequado utiliza 25 do consumo corporal de glicose (Magistretti 1999)
Algumas teorias afirmam que a defesa ou a predaccedilatildeo tenham sido pressotildees que influenciaram o direcionamento da evoluccedilatildeo do sistema nervoso Animais de vida seacutessil ou parasitaacuteria apresentam sistemas nervosos pouco complexos quando comparados a animais com atividade predatoacuteria Eacute interessante observar que alguns antozoaacuterios possuem sistema nervoso na fase larvaacuteria quando apresentam vida livre Este sistema nervoso eacute desmontado apoacutes a metamorfose para a vida adulta quando apresentam vida seacutessil (Monk amp Paulin 2014) Estas constataccedilotildees natildeo garantem que a predaccedilatildeo tenha sido a forccedila direcionadora para a evoluccedilatildeo do sistema nervoso
O raciociacutenio inverso pode tambeacutem ser levado em consideraccedilatildeo a predaccedilatildeo como produto de um sistema nervoso mais complexo e agora ao inveacutes de direcionar o processo passa a ser consequecircncia do mesmo Eacute provaacutevel que a predaccedilatildeo e defesa tenham sido pressotildees
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 39
que contribuiacuteram para a seleccedilatildeo de determinados caracteres e que ambas tenham sido contemporacircneas
Afinal o que eacute o sistema nervoso Quais vantagens este sistema trouxe consigo O que eacute um neurocircnio Qual a origem do neurocircnio Quando aparece o primeiro neurocircnio
Por sistema nervoso entendemos tecido composto por ceacutelulas que apresentam a propriedade de serem excitaacuteveis os neurocircnios e a glia (glia = cola) A glia eacute composta por diferentes tipos celulares que realizam diferentes funccedilotildees como defesa realizada pela microacuteglia manutenccedilatildeo da composiccedilatildeo do liquido cefalorraquidiano pelas ceacutelulas gliais que constituem a barreira hematoencefaacutelica comunicaccedilatildeo em ganho de velocidade de transmissatildeo do impulso nervoso por meio da mielina constituinte da membrana plasmaacutetica de oligodendroacutecitos no sistema nervoso central e ceacutelulas de Schwann no sistema nervoso perifeacuterico limpeza da regiatildeo sinaacuteptica pelos astroacutecitos participaccedilatildeo na siacutentese de neurotransmissores como glutamato e GABA Anatomicamente entendemos o sistema nervoso como um sistema que possui uma regiatildeo central composta por aglomerado de neurocircnios funcionalmente especializados que formam nuacutecleos que por sua vez satildeo interconectados por tratos axonais A existecircncia de uma central para o sistema nervoso que na verdade representa a cefalizaccedilatildeo deste sistema natildeo eacute criteacuterio universal para a definiccedilatildeo de sistema nervoso Animais com simetria radial apresentam sistema nervoso difuso no qual o processamento da informaccedilatildeo se daacute no local da estimulaccedilatildeo com a propriedade de integrar as informaccedilotildees sensoriais provenientes da periferia permitindo resposta comportamental adequada
As vantagens da existecircncia de sistema nervoso em um organismo poderiam ser descritas como rapidez precisatildeo e adequaccedilatildeo nas respostas dos organismos agraves variaccedilotildees de seu ambiente interno e externo garantindo melhor capacidade adaptativa e portanto maior chance de sobrevivecircncia
Por neurocircnio entendemos a ceacutelula polarizada (porccedilatildeo receptora ndash corpo celular dendritos porccedilatildeo transmissora ndash axocircnio) de origem ectodeacutermica que apresenta longos processos (axocircnio) com a propriedade de gerar potencial de accedilatildeo que recebe (de receptores outros neurocircnios) e envia informaccedilotildees para outras
40 | Temas em Neurociecircncias
ceacutelulas (neurocircnios muacutesculos glacircndulas) por meio das sinapses Lembrando que a comunicaccedilatildeo dentro do sistema nervoso se daacute pela geraccedilatildeo e propagaccedilatildeo do potencial de accedilatildeo de uma ceacutelula a outra com a qual estabelece contato por meio das junccedilotildees frouxas nas sinapses eleacutetricas e nas sinapses quiacutemicas o potencial de accedilatildeo eacute o responsaacutevel pela liberaccedilatildeo de sinal quiacutemico do terminal preacute-sinaacuteptico que atuando no elemento poacutes-sinaacuteptico poderaacute facilitar ou dificultar a geraccedilatildeo de novo potencial de accedilatildeo As regiotildees sinaacutepticas apresentam especializaccedilotildees tanto no terminal axocircnio regiatildeo preacute-sinaacuteptica quanto no corpo celular ou dendrito regiatildeo poacutes-sinaacuteptica As regiotildees preacute e poacutes-sinaacutepticas apresentam proteiacutenas especiacuteficas para o funcionamento da transmissatildeo quiacutemica Na regiatildeo preacute-sinaacuteptica satildeo importantes as proteiacutenas que participam na ancoragem da vesiacutecula contendo o neurotransmissor na membrana do terminal axocircnico proteiacutenas canal iocircnico voltagem dependente para o iacuteon caacutelcio proteiacutenas que funcionam como sensores de caacutelcio auto receptores que modulam enzimas importantes no metabolismo do neurotransmissor liberado pelo terminal sinaacuteptico transportadores e recaptadores Para a regiatildeo poacutes-sinaacuteptica o complexo proteico eacute denominado de densidade poacutes-sinaacuteptica (PSD) composto por complexos multiproteicos organizados por diferentes classes de proteiacutenas como canais iocircnicos receptores proteiacutenas de adesatildeo e de citoesqueleto quinases fosfatases e moleacuteculas de sinalizaccedilatildeo
As propriedades descritas para sistema nervoso resumidamente definidas como a capacidade de responder a estiacutemulos e processar informaccedilotildees natildeo eacute exclusiva do sistema nervoso todas as ceacutelulas apresentam estas propriedades
A definiccedilatildeo dada ao neurocircnio estabelece algumas exclusotildees como por exemplo daqueles neurocircnios que natildeo possuem longos processos assim como daqueles que natildeo geram potenciais de accedilatildeo e sim se comunicam por potencial graduado como as ceacutelulas horizontais amaacutecrinas e bipolares da retina humana
A propriedade de gerar potencial de accedilatildeo natildeo eacute exclusiva de neurocircnios Em algumas aacuteguas-vivas as ceacutelulas epiteliais geram potenciais de accedilatildeo que se propagam por meio de junccedilotildees frouxas (gap junctions sinapses eleacutetricas) as ceacutelulas geradoras do ritmo cardiacuteaco existentes no noacutedulo sinoatrial de mamiacuteferos natildeo satildeo neurocircnios A origem epideacutermica do neurocircnio natildeo eacute universal em
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 41
alguns cnidaacuterios alguns neurocircnios tecircm origem endodeacutermica e satildeo ceacutelulas mioepiteliais especializadas que apresentam propriedades mecanoceptoras e contrateis
O problema eacute que ao tentarmos definir o neurocircnio o fazemos por meio de suas propriedades e estas natildeo sendo exclusivas acabam por natildeo defini-lo Uma alternativa para a definiccedilatildeo deste tipo celular seria a existecircncia de moleacuteculas-neurocircnio exclusivas que poderiam ser aquelas que compotildeem os canais iocircnicos voltagem dependentes ou proteiacutenas especiacuteficas de regiotildees sinaacutepticas tanto no elemento preacute quanto no elemento poacutes Infelizmente a busca por estas moleacuteculas de uso exclusivo dos neurocircnios eacute infrutiacutefera uma vez que satildeo encontradas em ceacutelulas que por definiccedilatildeo natildeo satildeo neurocircnios Moleacuteculas homoacutelogas aos canais iocircnicos voltagem dependentes e regiotildees sinaacutepticas foram encontradas em coanoflagelados e bacteacuterias sugerindo que estes genes estavam presentes no ancestral comum procarionteeucarionte haacute aproximadamente 4 bilhotildees de anos atraacutes
Qual poderia ser a funccedilatildeo de canais voltagem dependentes em organismos unicelulares Uma hipoacutetese provaacutevel reside na manutenccedilatildeo do volume celular apresentada pelo ancestral comum que habitava meio hipotocircnico Considerando que a origem da vida ocorre em ambiente aquaacutetico podemos supor que o primeiro organismo unicelular possuiacutea o seu meio interno com a mesma composiccedilatildeo iocircnica que o meio externo O mar primordial era rico em potaacutessio e os organismos unicelulares possuiacuteam o seu meio interno com a mesma composiccedilatildeo do mar externo O metabolismo deste organismo unicelular poderia ter as suas enzimas dependentes de elevadas concentraccedilotildees de potaacutessio As alteraccedilotildees atmosfeacutericas podem ter acarretado a precipitaccedilatildeo do potaacutessio deste meio externo alterando a sua composiccedilatildeo iocircnica com elevadas concentraccedilotildees de soacutedio em relaccedilatildeo ao potaacutessio Desta forma este organismo agora teria duas possibilidades 1- alterar a sua composiccedilatildeo interna para a mesma do meio externo ou 2 ndash estabelecer mecanismos de manutenccedilatildeo da sua composiccedilatildeo interna diferente do meio externo Considerando que o metabolismo deste animal tem dependecircncia de potaacutessio para o oacutetimo funcionamento de suas enzimas a estrateacutegia com melhor resultado parece ter sido a manutenccedilatildeo do soacutedio no ambiente externo e concentrar potaacutessio no seu ambiente interno O iacuteon soacutedio
42 | Temas em Neurociecircncias
apresenta raio menor que o iacuteon potaacutessio desta forma eacute um iacuteon com grande quantidade de moleacuteculas de aacutegua conhecida como aacutegua de solvataccedilatildeo A entrada do soacutedio para o interior celular traz consigo aumento de moleacuteculas de aacutegua alterando o volume celular A bomba ATP ase soacutedio potaacutessio dependente que expulsa 3 iacuteons soacutedio do meio intracelular para o meio extracelular e coloca 2 iacuteons potaacutessio do meio extracelular para o intracelular pode ter sido o mecanismo adaptativo para a manutenccedilatildeo do volume celular encontrado pelos organismos unicelulares ancestrais O mecanismo de troca iocircnica acima descrito natildeo eacute realizado por canal iocircnico voltagem dependente contudo a assimetria no transporte iocircnico garante o estabelecimento e manutenccedilatildeo de gradiente eletroquiacutemico importante para a geraccedilatildeo de potencial de accedilatildeo em ceacutelulas excitaacuteveis Todas as ceacutelulas mantecircm seu volume intracelular constante todas as ceacutelulas apresentam diferenccedila de potencial as ceacutelulas excitaacuteveis utilizam esta diferenccedila para a geraccedilatildeo de corrente iocircnica que eacute o impulso nervoso O fato interessante eacute que canais iocircnicos voltagem dependentes e trocadores iocircnicos de membrana podem ter sido em um primeiro momento soluccedilotildees para o problema de manutenccedilatildeo do volume celular e estas soluccedilotildees podem mais tarde terem se especializado para uma funccedilatildeo totalmente diferente como a comunicaccedilatildeo celular Bacteacuterias que formam biofilme utilizam canais de potaacutessio voltagem dependentes para informar a sua parceira sobre a presenccedila de metaboacutelitos no meio O metaboacutelito ativa a bacteacuteria que como resposta libera potaacutessio O potaacutessio liberado pela bacteacuteria sinalizadora despolariza as ceacutelulas vizinhas por ativaccedilatildeo do canal de potaacutessio voltagem dependente esta ativaccedilatildeo causa a liberaccedilatildeo de potaacutessio que teraacute o mesmo efeito na bacteacuteria vizinha propagando a informaccedilatildeo de metabolito presente atraveacutes do biofilme Eacute possiacutevel que o canal de potaacutessio voltagem dependente tenha sido o uacutenico canal presente nos primeiros organismos e sua funccedilatildeo mais provaacutevel era a regulaccedilatildeo do volume celular permitindo a alteraccedilatildeo do conteuacutedo iocircnico da ceacutelula em resposta ao estiramento da membrana plasmaacutetica causado por aumento na quantidade de aacutegua no seu interior Provavelmente o proacuteximo canal iocircnico voltagem dependente a ter aparecido tenha sido o canal de caacutelcio como mecanismo de controle do estado metaboacutelico deste organismo unicelular e posteriormente em organismos mais tardios estes canais passaram a participar na regulaccedilatildeo do batimento ciliar e contraccedilatildeo muscular A
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 43
combinaccedilatildeo adequada de canais voltagem dependentes de potaacutessio e caacutelcio existentes em alguns organismos unicelulares pode ter permitido a geraccedilatildeo de potencial de accedilatildeo expandindo a capacidade deste organismo em diferentes direccedilotildees
Os canais de potaacutessio e caacutelcio eram suficientes para a geraccedilatildeo de potencial de accedilatildeo quais as vantagens adicionadas pelo canal de soacutedio voltagem dependente Uma hipoacutetese sugere que os canais de soacutedio voltagem dependentes poderiam integrar estrateacutegias para reduccedilatildeo das concentraccedilotildees intracelulares de caacutelcio impedindo sua accedilatildeo toacutexica outra hipoacutetese sugere que com a participaccedilatildeo do iacuteon soacutedio na geraccedilatildeo do potencial de accedilatildeo os iacuteons caacutelcio poderiam participar de outras funccedilotildees celulares como a liberaccedilatildeo de transmissores e contraccedilatildeo muscular Uma possibilidade alternativa poderia ser a duraccedilatildeo do potencial de accedilatildeo que eacute menor e sua conduccedilatildeo mais raacutepida com a participaccedilatildeo dos canais de soacutedio quando comparado agravequeles com a participaccedilatildeo dos canais de caacutelcio Um dado interessante eacute que os canais voltagem dependentes para soacutedio potaacutessio e caacutelcio satildeo compostos por subunidades homoacutelogas os genes responsaacuteveis pela siacutentese das proteiacutenas que formam os canais de soacutedio e caacutelcio satildeo produtos da duplicaccedilatildeo do gene que codifica o canal de potaacutessio (Kristan Jr 2016 Liebeskind et al 2017)
Uma estrateacutegia interessante de controle da musculatura corporal eacute apresentada pelo grupo das medusas (cnidaacuterios) Estes animais possuem simetria radial o sistema nervoso eacute composto por diferentes tipos celulares como neurocircnio sensorial interneurocircnio e neurocircnio motor Os cnidaacuterios possuem conexotildees sinaacutepticas estabelecidas entre neurocircnios e entre neurocircnios e ceacutelulas musculares A medusa do gecircnero Aglantha apresenta dois tipos de nado um lento e fraco que apresenta contraccedilotildees riacutetmicas da umbrela que movimenta o corpo ritmicamente e outro raacutepido no qual contraccedilotildees mais fortes movimentam o animal de maneira mais raacutepida O segundo tipo de nado ocorre em resposta agrave estimulaccedilatildeo mecacircnica intensa em alguma regiatildeo do animal Tanto as contraccedilotildees fracas quanto a forte satildeo resultantes de um uacutenico potencial de accedilatildeo no mesmo neurocircnio motor gigante Estes neurocircnios apresentam a habilidade de gerarem potencial de accedilatildeo usando tanto canais de soacutedio voltagem dependentes quanto canais de caacutelcio voltagem dependentes Quando os neurocircnios motores satildeo ativados pelos interneurocircnios
44 | Temas em Neurociecircncias
geradores de ritmo a despolarizaccedilatildeo eacute baixa e suficiente para ativar os canais de caacutelcio voltagem dependentes que apresentam baixo limiar O potencial de accedilatildeo propaga-se pelo axocircnio e causa a contraccedilatildeo fraca dos muacutesculos da umbrela nado lento Um estiacutemulo sensorial de maior intensidade acarreta despolarizaccedilatildeo de maior amplitude que ativa os canais de soacutedio voltagem dependentes produzindo potenciais de accedilatildeo de maior amplitude mais raacutepidos no mesmo axocircnio A natureza do potencial de accedilatildeo implica na quantidade de neurotransmissor liberado O potencial de accedilatildeo com a participaccedilatildeo dos canais de soacutedio apresenta maior amplitude e causa maior liberaccedilatildeo de neurotransmissores o que gera maior forccedila na contraccedilatildeo muscular nado raacutepido O mesmo neurocircnio motor controla dois comportamentos distintos pela ativaccedilatildeo de dois canais iocircnicos voltagem dependentes (Kristan Jr 2016 Castelfranco amp Hartline 2016)
A seleccedilatildeo dos canais de soacutedio voltagem dependente parece ter ocorrido quando a predaccedilatildeo com movimentos mais raacutepidos se torna extremamente beneacutefica Pode ser que a seleccedilatildeo por potenciais de accedilatildeo com menor duraccedilatildeo tenha contribuiacutedo para a evoluccedilatildeo de canais de potaacutessio voltagem dependentes com cineacuteticas mais raacutepidas Desta forma a raacutepida despolarizaccedilatildeo causada pelos canais de soacutedio voltagem dependentes terminaria de forma mais precoce com canais de potaacutessio mais raacutepidos permitindo a existecircncia de comportamentos mais velozes uma vez que a duraccedilatildeo das fases do potencial de accedilatildeo seria reduzida (Kristan Jr 2016) Neste contexto tanto a predaccedilatildeo quanto a defesa necessitam de comportamentos que possam ser engatilhados e expressos em curtos intervalos de tempo O gatilho para o comportamento predatoacuterio ou defensivo dependeraacute da capacidade de detecccedilatildeo da presa por parte do predador e do predador por parte da presa o que sugere a existecircncia de sistema eficaz na percepccedilatildeo e sinalizaccedilatildeo Os canais iocircnicos voltagem dependentes para o potaacutessio e caacutelcio podem ter sido eficientes para organismos unicelulares e pequenos animais multicelulares eacute provaacutevel que esta eficiecircncia tenha sido colocada agrave prova com o aumento do tamanho dos animais multicelulares Existe correlaccedilatildeo entre o aumento no tamanho corporal dos animais velocidade de reaccedilatildeo e o estabelecimento dos canais de soacutedio voltagem dependentes
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 45
Mielina ndash Breve Consideraccedilatildeo Sobre sua Evoluccedilatildeo
Os neurocircnios existentes nos vertebrados podem ser amieliacutenicos sem a bainha de mielina (na verdade existe mielina contudo em quantidade muito menor quando comparada agravequela existente nos neurocircnios mieliacutenicos) e mieliacutenicos com a presenccedila desta A diferenccedila entre ambos reside na velocidade de conduccedilatildeo do impulso nervoso sendo maior no neurocircnio que apresenta a bainha de mielina Maior velocidade de conduccedilatildeo favorece os organismos cuja prioridade seja a raacutepida reaccedilatildeo aos eventos ambientais
A descriccedilatildeo da mielina se deu em 1838 por Remak que atribui uma funccedilatildeo de proteccedilatildeo ao axocircnio a esta membrana A principal funccedilatildeo da mielina eacute aumentar a velocidade de conduccedilatildeo do impulso nervoso as funccedilotildees de nutriccedilatildeo e manutenccedilatildeo da integridade neuronal tambeacutem tecircm sido propostas (Zalc 2016) A presenccedila da bainha de mielina confere toleracircncia teacutermica como fator de seguranccedila para a conduccedilatildeo e reduccedilatildeo do custo energeacutetico da atividade neuronal Em muitas espeacutecies de invertebrados e vertebrados o diacircmetro axonal varia de 03 a 30 microm A velocidade de propagaccedilatildeo do potencial de accedilatildeo no axocircnio amieliacutenico de invertebrado de 10 microm de diacircmetro eacute menor do que 1ms Esta velocidade de conduccedilatildeo eacute suficiente para organismos com tamanho entre 01 a 30 cm portanto animais pequenos Esta velocidade de conduccedilatildeo se aplicada para animais maiores oferece risco de comprometimento da integridade e sobrevivecircncia destes (Castelfranco amp Hartline 2016)
Os cefaloacutepodes (polvo lula seacutepia) apresentam axocircnios com diacircmetros iguais ou superiores a 1 mm conhecidos como axocircnios gigantes que apresentam raacutepida velocidade de conduccedilatildeo do impulso nervoso Importante ressaltar que estes neurocircnios com axocircnios gigantes participam de respostas raacutepidas de escape destes cefaloacutepodes Com o aumento da velocidade de conduccedilatildeo os cefaloacutepodes aumentaram o tamanho corporal O recurso de aumento de diacircmetro axonal para aumento de velocidade de conduccedilatildeo encontra nos vertebrados um fator limitante O cracircnio confina o ceacuterebro e as veacutertebras confinam a medula espinhal Para o ser humano manter uma velocidade de conduccedilatildeo de 50ms apenas pelo aumento do diacircmetro de seus axocircnios a medula espinhal precisaria ter 1 metro de diacircmetro A aquisiccedilatildeo da mielina por manter o diacircmetro
46 | Temas em Neurociecircncias
axonal entre 10-15 microm possibilita a espeacutecie humana possuir uma medula espinhal de 6 a 7 cm no maacuteximo (Zalc 2016) A mielinizaccedilatildeo eacute apontada como um dos principais fatores que permitiram o aumento do tamanho corporal por garantir que partes distantes dos organismos pudessem ser integradas em curtos intervalos de tempo juntamente com os canais de soacutedio voltagem dependentes
A mielina natildeo eacute exclusividade dos vertebrados aneliacutedeos da classe oligoqueta (minhocas) crustaacuteceos como camaratildeo e copeacutepodas apresentam mielina embora diferente da existente nos vertebrados desempenha a mesma funccedilatildeo Uma questatildeo importante na mielinizaccedilatildeo axonal seja em neurocircnios do sistema nervoso central ou perifeacuterico eacute a necessidade de interaccedilatildeo entre a ceacutelula glial e o neurocircnio Os neurocircnios mielinizados apresentam maior densidade de canais iocircnicos voltagem dependentes nos noacutedulos de Ranvier e nos segmentos internodulares a densidade eacute baixa Os neurocircnios amieliacutenicos que apresentam densidade de canais iocircnicos constante em toda extensatildeo axonal Esta distribuiccedilatildeo diferenciada de canais iocircnicos indica a existecircncia de sinal do neurocircnio atraindo ou repelindo a ceacutelula glial para a siacutentese de bainha de mielina e envelopamento de segmento axonal como tambeacutem da glia para o neurocircnio sinalizando a inserccedilatildeo de canais iocircnicos em locais corretos da membrana para garantir a conduccedilatildeo do impulso nervoso saltatoacuteria observada nos neurocircnios mieliacutenicos e contiacutenua nos amieliacutenicos
Qual seria o caminho evolutivo para esta interaccedilatildeo entre neurocircnio e as ceacutelulas gliais responsaacuteveis pela mielinizaccedilatildeo do axocircnio
Sinapse Quiacutemica - Breve Consideraccedilatildeo Sobre a sua Evoluccedilatildeo
Seria a sinapse quiacutemica uma invenccedilatildeo de organismos multicelulares
Um dado interessante e ao mesmo tempo surpreendente eacute a presenccedila de genes tanto para moleacuteculas presumidamente sinapse-especiacuteficas em organismos unicelulares quanto de enzimas para a produccedilatildeo e liberaccedilatildeo de transmissores e proteiacutenas estruturais responsaacuteveis pelas respostas poacutes-sinaacutepticas ao transmissor Dados obtidos em estudos eletrofisioloacutegicos e filogeneacuteticos realizados em
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 47
cnidaacuterios e ctenoacuteforos sugerem que a ancestral de uma sinapse quiacutemica tenha sido provavelmente peptideacutergica
Um possiacutevel precursor da transmissatildeo sinaacuteptica eacute observado em coanoflagelados clado com mais de 125 espeacutecies unicelulares Em algumas espeacutecies de coanoflagelados as ceacutelulas se agregam em colocircnias O indiviacuteduo agora passa a ser a colocircnia no sentido de que a sua sobrevivecircncia dependeraacute da accedilatildeo coordenada de cada ceacutelula para a manutenccedilatildeo da colocircnia Como satildeo animais marinhos haacute a necessidade de passagem de aacutegua pela colocircnia que eacute dado pelo movimento flagelar de cada indiviacuteduo Cada ceacutelula eacute capaz de liberar transmissores que atuaratildeo nos receptores dos indiviacuteduos vizinhos produzindo movimento flagelar em toda a colocircnia Esta caracteriacutestica proto-hormonal eacute tambeacutem observada em algumas esponjas As esponjas satildeo animais que natildeo possuem sistema nervoso sendo a maioria marinha de vida seacutessil A alimentaccedilatildeo depende da passagem do ambiente pelo animal que eacute possiacutevel pela existecircncia de muitos poros que compotildee o seu corpo Estes poros satildeo constituiacutedos por ceacutelulas que apresentam flagelos conhecidas como coanoacutecitos dada a sua semelhanccedila com o coanoflagelados O fluxo de aacutegua se daacute pelo batimento flagelar que forccedila a aacutegua para dentro dos poros permitindo que a mesma flua pelo aacutetrio grande cavidade interna sendo eliminada para o meio ambiente pelo oacutesculo (pequena boca) Uma forte estimulaccedilatildeo mecacircnica no corpo da esponja promove a liberaccedilatildeo de glutamato GABA (aacutecido gama-amino-butiacuterico) e oacutexido niacutetrico pelos coanoacutecitos Estes sinalizadores satildeo transportados pela aacutegua causando a coordenaccedilatildeo da contraccedilatildeo da musculatura da parede corporal e oacutesculo As esponjas utilizam os transmissores como hormocircnios e o fluxo de aacutegua se comporta como sistema circulatoacuterio Os receptores para os sinalizadores encontrados em esponjas coanoflagelados e bacteacuterias satildeo metabotroacutepicos ou seja a ligaccedilatildeo da moleacutecula sinalizadora ao seu receptor ativa uma cascata de sinalizaccedilatildeo intracelular na ceacutelula alvo Este tipo de transmissatildeo gera movimentos lentos e prolongados Alguns autores sugerem que a primeira forma de sinalizaccedilatildeo sinaacuteptica tenha sido metabotroacutepica (Kristan Jr 2016)
O placozoa Tricoplax adherens natildeo apresenta ceacutelulas que se assemelhem a neurocircnios ou muacutesculos contudo esta espeacutecie apresenta genes que satildeo responsaacuteveis pela expressatildeo de canais iocircnicos voltagem dependentes estruturas preacute e poacutes-sinaacutepticas e mesmo transmissores
48 | Temas em Neurociecircncias
Proteiacutenas que compotildee a sinapse em espeacutecies que natildeo apresentam neurocircnios sugerem que estas evoluiacuteram antes das ceacutelulas nervosas Genes que codificam proteiacutenas homoacutelogas agraves que compotildee as zonas ativas dos terminais preacute-sinaacutepticos que integram as vesiacuteculas sinaacutepticas que participam do processo de exocitose e da sinalizaccedilatildeo satildeo encontrados em coanoflagelados grupo proacuteximo aos metazoaacuterios Uma vez que estas proteiacutenas nestes grupos natildeo constituem sinapse satildeo denominadas de proto-sinaacutepticas A presenccedila destas proteiacutenas proto-sinaacutepticas em espeacutecies proacuteximas aos metazoaacuterios sugere que o arcabouccedilo molecular criacutetico para a transmissatildeo sinaacuteptica evoluiu antes da origem da sinapse A comunicaccedilatildeo neuronal ocorre pela interaccedilatildeo entre regiotildees preacute-sinaacuteptica e poacutes-sinaacuteptica especializadas que transformam as correntes eleacutetricas da membrana do neurocircnio preacute-sinaacuteptico em sinais quiacutemicos liberados que por sua vez seratildeo transformados em corrente eleacutetrica ou sinal intracelular no neurocircnio poacutes-sinaacuteptico Pouco se conhece sobre as funccedilotildees ancestrais das proteiacutenas sinaacutepticas A primeira sinapse verdadeira pode ter sido a neuromuscular esta poderia ser uma especializaccedilatildeo para curta-distacircncia derivada de interaccedilotildees semelhantes agraves neuroendoacutecrinas utilizadas por coanoflagelados e poriacuteferas (Kristan Jr 2016)
A presenccedila de canais iocircnicos voltagem dependentes e moleacuteculas sinaacutepticas natildeo transforma uma ceacutelula automaticamente em neurocircnio Em linhas gerais estas moleacuteculas devem ser produzidas em nuacutemero adequado terem localizaccedilatildeo e inserccedilatildeo adequada na membrana A capacidade de influenciar ceacutelulas localizadas a grandes distacircncias implica na existecircncia de processos longos e finos e os terminais destes processos devem ser localizados no local adequado do seu parceiro sinaacuteptico Estes dados natildeo podem ser obtidos de foacutesseis Moleacuteculas que participam do desenvolvimento neuronal crescimento axonal e formaccedilatildeo das sinapses tecircm sido investigadas como marcadores para neurocircnios Estas moleacuteculas tecircm evoluccedilatildeo paralela agrave evoluccedilatildeo dos canais iocircnicos voltagem dependentes apresentando significante expansatildeo no Periacuteodo Cambriano Eacute importante ressaltar que os foacutesseis existentes do periacuteodo preacute-cambriano indicam que os primeiros animais fossilizados (560-540 milhotildees de anos atraacutes) foram provavelmente animais sesseis e filtradores apresentando sinais de atividade de cavar o substrato no iniacutecio da explosatildeo cambriana
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 49
(540 milhotildees de anos atraacutes) A escassez de fosseis de animais antes do periacuteodo cambriano pode ser explicada pela condiccedilatildeo ambiental inoacutespita eras glaciais com restriccedilatildeo de oxigecircnio atmosfeacuterico Haacute 525 milhotildees de anos atraacutes os animais filtradores foram substituiacutedos por animais com coberturas externas riacutegidas nas mais variadas formas como espinhos conchas e placas Este rico arranjo de armadura externa e armas de defesa sugere que neste periacuteodo teve iniacutecio a predaccedilatildeo O aumento do tamanho destes animais tornou arriscado deixar sem coordenaccedilatildeo as suas diferentes partes O comportamento predatoacuterio pode ter favorecido animais capazes de movimentos raacutepidos para a obtenccedilatildeo de alimento e claro para escapar de se tornar alimento para outro animal (Kristan Jr 2016) Novamente vale a pena ressaltar que natildeo necessariamente a pressatildeo pela sobrevivecircncia forjou a organizaccedilatildeo do sistema nervoso a existecircncia de sistema nervoso pode ter permitido a emergecircncia de comportamento predatoacuterio e defensivo A pressatildeo por alimento e natildeo virar alimento pode ter favorecido a evoluccedilatildeo e permanecircncia de sistemas de conduccedilatildeo raacutepida como os neurocircnios A primeira indicaccedilatildeo de tecido nervoso eacute o aparecimento de olhos bem definidos e contornos de sistemas nervosos em fosseis de 525 milhotildees de anos (Kristan Jr 2016)
A origem do primeiro sistema nervoso eacute territoacuterio de intensa disputa Das espeacutecies existentes de Radiata (Ctenoacutefora e Cnidaacuteria) e Bilateria todas possuem neurocircnios ao passo que Placozoa e Poriacutefera natildeo A pergunta que se coloca eacute qual eacute o grupo basal Ou seja qual eacute o grupo com menor derivaccedilatildeo que deu origem aos demais grupos Caracteriacutesticas morfoloacutegicas e moleculares sugerem relaccedilotildees entre os quatro grupos Bilateria Cnidaacuteria Placozoa e Poriacutefera a posiccedilatildeo do grupo Ctenophora ainda eacute discutiacutevel Resultados de estudos moleculares mais extensos permitem colocar o grupo Ctenophora como o grupo mais basal dos cinco clados Os Ctenoacuteforos teriam se separado dos metazoaacuterios muito antes do grupo Poriacutefera A definiccedilatildeo do grupo basal eacute importante para a reconstruccedilatildeo dos eventos evolutivos que implicaram nos diferentes desenhos de sistema nervoso Caso o grupo Ctenophora seja o grupo basal para as esponjas a origem do neurocircnio apresenta dois cenaacuterios plausiacuteveis No primeiro cenaacuterio o ancestral comum de todos os maiores clados possuiacutea neurocircnio que foi perdido nos clados Poriacutefera e Placozoa No
50 | Temas em Neurociecircncias
segundo cenaacuterio os neurocircnios teriam duas origens independentes uma no ancestral de Ctenophora e a segunda no ancestral compartilhado pelos ramos Cnidaacuteria e Bilateria (Moroz LL 2009 Budd GE 2016 Castelfranco amp Hartline 2016 Kristan Jr 2016)
A anaacutelise genocircmica permitiraacute o estudo de detalhes destes eventos evolutivos e quem sabe nos traga a resposta de qual o grupo basal a ser considerado para a evoluccedilatildeo do sistema nervoso Outra possibilidade eacute a cooptaccedilatildeo de proteiacutenas com funccedilotildees totalmente distintas das neuronais em grupos basais para esta nova funccedilatildeo em grupos derivados e este evento pode ter ocorrido independentemente em diferentes grupos que convergiram para a evoluccedilatildeo do sistema nervoso (Burkhardt amp Sprecher 2017)
Consideraccedilotildees Sobre a Organizaccedilatildeo do Sistema Nervoso e Repertoacuterio Comportamental
Eacute inegaacutevel que a existecircncia do sistema nervoso permite a emergecircncia de comportamentos complexos Este sistema apresenta a propriedade de armazenar as informaccedilotildees e combinaacute-las nas mais diferentes formas para a soluccedilatildeo de desafios Consideramos inteligentes as espeacutecies que apresentam grandes enceacutefalos a ateacute haacute alguns anos atraacutes a laminaccedilatildeo cortical era sinocircnimo de possibilidade de inteligecircncia para muitos a uacutenica
Noacutes os humanos sempre nos consideramos o topo evolutivo a inteligecircncia suprema relegando as demais espeacutecies a condiccedilatildeo de animais uma vez que temos dificuldade de nos enxergarmos como uma espeacutecie animal
Para a grande maioria das pessoas soacute eacute capaz de sentir dor aquele que possui um ceacuterebro igual ao nosso Para muitos com esta concepccedilatildeo de sistema nervoso resumida a enceacutefalo os invertebrados por natildeo possuiacuterem ceacuterebro igual ao nosso natildeo devem sentir dor e como apresentam poucos neurocircnios em seus sistemas nervosos devem ser incapazes de aprendizado e seus comportamentos devem ser reflexos e natildeo elaborados
As aves por natildeo possuiacuterem neocoacutertex natildeo satildeo inteligentes Por inteligecircncia normalmente entendemos a capacidade de soluccedilatildeo de
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 51
problemas matemaacuteticos falar diversos idiomas interpretar textos e por aiacute afora Muitos indiviacuteduos negam a teoria da evoluccedilatildeo De certa forma eacute muito incomodo um ser tatildeo perfeito como o humano derivar de um ancestral primata natildeo humano A divindade se sente ameaccedilada
Durante muito tempo os paradigmas utilizados para avaliar a inteligecircncia de outros animais foram inadequados por desconsiderar a biologia da espeacutecie em estudo Particularmente considero a inteligecircncia como a capacidade de soluccedilatildeo de problemas biologicamente relevantes As diferentes espeacutecies ocupam diferentes habitats e cada uma enfrenta diferentes problemas para a sua sobrevivecircncia Costumo dizer que se fosse possiacutevel estabelecer diaacutelogo com as outras espeacutecies as visotildees de mundo e vida seriam as mais variadas
Antes de apresentar alguns exemplos de comportamentos elaborados em invertebrados e aves eacute importante esclarecer que a laminaccedilatildeo cortical sempre considerada como o diferencial da nossa espeacutecie natildeo eacute exclusiva desta O peixe dourado a carpa e o peixe paulistinha da famiacutelia dos cipriniacutedeos possuem uma estrutura cerebral laminada o lobo vagal composta por 15 camadas importante para o comportamento alimentar desta famiacutelia permitindo a separaccedilatildeo da boa comida daquela ruim As camadas mais superficiais desta estrutura constituem o componente sensorial (informaccedilotildees gustativas do interior da boca e oacutergatildeo palatal) sendo homoacuteloga ao nuacutecleo do trato solitaacuterio de outros vertebrados as camadas mais profundas constituem o componente motor controla os muacutesculos bucais e eacute homoacuteloga a porccedilotildees do nuacutecleo ambiacuteguo de outros vertebrados Os Gymnotiformes peixes eleacutetricos neotropicais apresentam laminaccedilatildeo no torus semicircularis estrutura mesencefaacutelica importante para a decodificaccedilatildeo dos sinais eleacutetricos emitidos pelo proacuteprio peixe e por outros Esta estrutura apresenta 12 lacircminas e 48 tipos celulares e integra informaccedilotildees nos dois eixos vertical e horizontal O corpo geniculado lateral estrutura integrante da via visual em mamiacuteferos e alguns marsupiais eacute laminado A laminaccedilatildeo traz consigo as seguintes vantagens 1- reduccedilatildeo no comprimento das conexotildees 2 ndash o arranjo retangular das lacircminas reduz o volume da estrutura e 3 ndash facilita a emergecircncia de funccedilatildeo mais complexa uma vez que as lacircminas satildeo passiacuteveis de integraccedilatildeo das informaccedilotildees tanto no eixo vertical quanto horizontal A organizaccedilatildeo laminar promove economia de espaccedilo tempo de conduccedilatildeo e energia sendo portanto uma estrateacutegia
52 | Temas em Neurociecircncias
evolutiva que pode ter ocorrido de maneira independente nas diferentes espeacutecies (Striedter 2005)
Comportamentos Puramente Inatos ou Elaborados
No grupo dos invertebrados os cefaloacutepodes (polvo lula e seacutepia) apresentam sistema nervoso altamente desenvolvido que se caracteriza pela fusatildeo de gacircnglios e o subsequente desenvolvimento destes em loacutebulos formando ceacuterebro complexo proacuteximo ao esocircfago O lobo vertical nos polvos eacute considerado a regiatildeo de maior complexidade Os polvos satildeo considerados os invertebrados mais inteligentes vaacuterios viacutedeos estatildeo disponiacuteveis demonstrando a capacidade de soluccedilatildeo de problemas aprendizado por observaccedilatildeo de outro polvo na soluccedilatildeo do paradigma experimental habilidade de fuga e recentemente o registro de polvos carregando cascas de coco vazias para serem utilizadas como abrigos sugerindo a utilizaccedilatildeo de ferramentas por esta espeacutecie
Outro invertebrado cujo comportamento sugere ser elaborado eacute o caranguejo eremita Pagurus bernhardus Este caranguejo por natildeo possuir carapaccedila habita conchas deixadas por moluscos apresentando predileccedilatildeo pela concha Littorina obtusata a busca por uma nova residecircncia eacute constante havendo competiccedilatildeo entre dois indiviacuteduos da mesma espeacutecie pela posse da concha predileta A escolha pela nova concha implica natildeo soacute na exploraccedilatildeo visual como tambeacutem no abandono da velha concha e entrada na nova para testar se esta preenche os requisitos que satisfaccedilam o novo inquilino O sistema nervoso dos caranguejos eacute constituiacutedo por um gacircnglio denominado de cefaacutelico que desempenha funccedilatildeo na percepccedilatildeo olfativa visual antenal e de equiliacutebrio O gacircnglio cefaacutelico conecta-se ao cordatildeo nervoso ventral por meio do cordatildeo circumesofageano O cordatildeo nervoso ventral nos braquiuacuteros eacute resultante da fusatildeo dos gacircnglios toraacutecicos e abdominais O cordatildeo nervoso ventral integra as informaccedilotildees provenientes do gacircnglio cefaacutelico e adequa o controle motor das pernas ambulatoacuterias e queliacutepodes permitindo resposta comportamental adequada tanto de locomoccedilatildeo quanto de defesa O gacircnglio estomatogaacutestrico situado na regiatildeo dorsal do estomago
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 53
controla os seus movimentos de trituraccedilatildeo e esvaziamento O nuacutemero de neurocircnios que compotildeem o sistema nervoso central de crustaacuteceos eacute pequeno contudo estes animais com poucos neurocircnios e sistema nervoso de organizaccedilatildeo simples satildeo capazes de sentir dor e reagir a ela bem como de blefarem quando o que estaacute em jogo eacute evitar o embate corporal Para muitos de noacutes imaginar que um caranguejo sinta dor soa bastante bizarro talvez se definirmos melhor esta percepccedilatildeo e estabelecermos criteacuterios para constatar esta propriedade de percepccedilatildeo em outras espeacutecies bizarro talvez se torne natildeo termos levado esta possibilidade em conta
A dor pode ser descrita como uma sensaccedilatildeo e sentimento aversivos associados a dano potencial ou real do tecido (Broom2001) A dor conteacutem dois componentes 1 - a capacidade de detectar o estiacutemulo doloroso nocicepccedilatildeo que permitiraacute ao animal a emissatildeo de comportamento adequado e 2- a interpretaccedilatildeo emocional interna que corresponde ao sofrimento desta percepccedilatildeo Os criteacuterios para a demonstraccedilatildeo de dor em outras espeacutecies incluindo vaacuterios invertebrados satildeo
1 ndash Existecircncia de sistema nervoso e receptores
2 ndash Reaccedilatildeo de esquiva
3 ndash Reaccedilotildees motoras protetivas que incluem uso reduzido da aacuterea afetada claudicaccedilatildeo friccionar a aacuterea afetada ou autotomia (em crustaacuteceos a perda das pernas ou queliacutepodes eacute fenocircmeno defensivo de sobrevivecircncia e o processo eacute controlado por dopamina) A autotomia difere da retirada de pernas ou queliacutepodes feitas muitas vezes com a justificativa de pesca de preservaccedilatildeo Na autotomia existe a coagulaccedilatildeo da hemolinfa em concomitacircncia agrave perda do apecircndice na retirada dos apecircndices feitos por exemplo por um humano a hemolinfa leva mais tempo para coagular podendo levar o animal agrave morte por perda do seu suprimento de oxigecircnio
4 ndash Alteraccedilotildees de paracircmetros fisioloacutegicos como glicemia concentraccedilatildeo de lactato
5 ndash Existecircncia de receptores opioides e evidencias de reduccedilatildeo da dor com o uso de anesteacutesicos locais ou analgeacutesicos (Elwood Barr amp Patterson 2009)
Em um artigo publicado por Elwood e Appel em 2009 realizado com o caranguejo eremita estes autores demonstraram nesta espeacutecie a experiencia de nocicepccedilatildeo Os experimentos consistiam em retirar os indiviacuteduos de suas e oferecer a concha predileta para ser ocupada
54 | Temas em Neurociecircncias
O artifiacutecio utilizado pelos autores foi a colocaccedilatildeo de eletrodos no interior das conchas que permitiam a aplicaccedilatildeo de choques eleacutetricos em intensidade inferior agravequela que causa danos teciduais Foram utilizados dois grupos de caranguejos o grupo controle que natildeo recebeu nenhum choque e o grupo experimental que recebeu o choque eleacutetrico Nova concha predileta sem eletrodos era oferecida 20 segundos apoacutes o choque a 5 cm de distacircncia do caranguejo com a sua abertura para baixo Os paracircmetros medidos foram tempo de aproximaccedilatildeo e investigaccedilatildeo da nova concha nuacutemero de vezes que o queliacutepodes era colocada dentro da nova concha Os caranguejos que natildeo receberam choques natildeo abandonaram suas conchas aqueles pertencentes ao grupo experimental demonstraram resistecircncia para abandonar a preferida concha indicando competiccedilatildeo motivacional entre abandonar um recurso precioso e sentir dor O abandono de conchas eacute mais frequente quando o choque eacute realizado em conchas que natildeo satildeo as preferidas Alguns animais do grupo experimental abandonaram as conchas apoacutes o choque limpando o abdocircmen batendo o abdocircmen contra uma concha vazia comportamento usual desta espeacutecie quando deseja expulsar o ocupante de uma concha para fazer uso dela Este comportamento de bater em concha desocupada pode indicar agressatildeo desencadeada por um estiacutemulo nocivo
O comportamento de blefe muito utilizado em jogos de carta como o pocircquer tem o objetivo de enganar o adversaacuterio No caso o jogador sabe o que tem na matildeo desconhece mas suspeita o que contem a matildeo de seu adversaacuterio A fim de evitar ter que mostrar o seu jogo e enganar o adversaacuterio aquele que faraacute uso de blefe assume postura de quem estaacute com o jogo ganho muitas vezes fazendo altas apostas tentando dissuadir o seu oponente a permanecer no jogo O blefe eacute trapaccedila e o caranguejo eremita faz uso desta artimanha para dissuadir o seu oponente do confronto fiacutesico A concha eacute fundamental para a sobrevivecircncia desta espeacutecie As disputas pelas conchas envolvem comportamentos denominados de preacute luta cujo objetivo eacute a mudanccedila do comportamento do oponente Na fase de preacute luta os oponentes exprimem diversos comportamentos que podem resultar na aproximaccedilatildeo ou retirada de seu oponente A preacute luta eacute portanto o momento adequado para a manipulaccedilatildeo do oponente Um dos comportamentos expressos na fase de preacute luta eacute a apresentaccedilatildeo da queliacutepoda A apresentaccedilatildeo honesta eacute aquela que permite ao opositor
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 55
avaliar o seu tamanho estando a queliacutepoda aberta perpendicular ao solo A apresentaccedilatildeo desonesta impede ao oponente a avaliaccedilatildeo do tamanho real uma vez que a queliacutepoda aberta eacute apresentada em posiccedilatildeo frontal acima do opositor Esta eacute a blefe Experimentos onde caranguejos de menor tamanho receberam conchas de tamanho preferido dos caranguejos de maior tamanho e aos caranguejos de maior tamanho foram ofertadas conchas de menor preferecircncia e menores demonstraram que a apresentaccedilatildeo de blefe foi frequentemente utilizada pelos indiviacuteduos de menor tamanho quando confrontados com os maiores A manipulaccedilatildeo utilizada pelos indiviacuteduos menores reduz a probabilidade dos indiviacuteduos de maior tamanho atacarem e se o ataque acontecer haacute reduccedilatildeo das chances de o atacante vencer a disputa (Elwood et al 2005)
Os resultados acima descritos sugerem que apesar de poucos neurocircnios e estrutura pobre em complexidade estes crustaacuteceos parecem conhecer as suas limitaccedilotildees e avaliar as potencialidades de seus adversaacuterios
Durante muito tempo as aves foram consideradas animais sem capacidade de raciociacutenio dada a organizaccedilatildeo de seus ceacuterebros que natildeo apresenta neocoacutertex As novas metodologias permitiram importantes mudanccedilas nestas consideraccedilotildees uma vez que a organizaccedilatildeo nuclear das estruturas cerebrais de aves apresenta homologia com estruturas laminares corticais da nossa espeacutecie
Os corvos possuem sofisticada capacidade mental e utilizam a loacutegica para a soluccedilatildeo de problemas Pedaccedilos de carne pendurados por uma corda amarrada em um poleiro foram oferecidos a corvos situaccedilatildeo pouco provaacutevel na natureza Apoacutes alguns minutos de estudo da situaccedilatildeo corvos adultos resolveram o problema em 30 segundos
A ave com auxiacutelio do bico ergueu a corda utilizando o peacute para segurar o pedaccedilo de corda erguido deixou o pedaccedilo de carne amarrado cair novamente novamente com o bico ergueu a corda soltando a anterior do peacute e segurando o novo segmento as etapas foram repetidas ateacute o comprimento da corda ser o suficiente para permitir agrave ave segurar com o peacute o pedaccedilo de carne e degusta-lo O problema natildeo foi resolvido por tentativa e erro e sim por anaacutelise da situaccedilatildeo e soluccedilatildeo loacutegica uma vez que a tarefa foi realizada na primeira tentativa e em vaacuterias etapas Corvos com um ano de idade necessitaram de seis
56 | Temas em Neurociecircncias
minutos para resolverem o problema utilizando vaacuterias estrateacutegias como voar no alimento tentar cortar ou torcer a corda durante este periacuteodo Vale ressaltar que as aves natildeo foram recompensadas com alimento em nenhuma etapa do processo de erguer-segurar a corda para comer o corvo cumpria a sequecircncia ateacute o fim
Algumas espeacutecies de corvos se alimentam de carne obtida de caccedila abatida por lobos Existe competiccedilatildeo pelo alimento portanto os corvos precisam de adaptaccedilatildeo a um ambiente imprevisiacutevel Quando jovens estas aves praticamente ldquobrincam com o inimigordquo rolando de costas na neve com seus peacutes para o ar proacuteximos aos lobos e agrave caccedila abatida Este comportamento luacutedico prepara o animal a reaccedilotildees raacutepidas e plaacutesticas tornando familiar uma situaccedilatildeo perigosa
Uma caracteriacutestica de o comportamento alimentar dos corvos eacute esconder o pedaccedilo de alimento obtido e o corvo o faz totalmente em privado ou seja longe de seus co- especiacuteficos Este comportamento de esconder o alimento sem dar pistas do esconderijo se justifica uma vez que eacute comum um corvo roubar o alimento escondido por outro Aleacutem da logica estas aves satildeo oportunistas
Em um experimento pesquisadores colocaram dois corvos em uma gaiola um dos corvos podia ser visto pelos corvos soltos em uma aacuterea contendo alimento e locais para esconder o mesmo O outro corvo da gaiola natildeo podia ser visto pelas aves livres pela existecircncia de uma cortina que o escondia Quando os corvos da gaiola foram soltos os autores observaram que o corvo que estava exposto era controlado pelos corvos livres enquanto aquele que ficou atraacutes da cortina era ignorado pelos demais Estes resultados sugerem que os corvos satildeo capazes de identificar e memorizar o indiviacuteduo que oferece risco no caso roubo do alimento escondido (Heinrich amp Bugnyar 2007)
Algumas aves recolhem alimentos na eacutepoca em que estes estatildeo disponiacuteveis como vermes sementes e os escondem para periacuteodos de escassez Experimentos realizados em laboratoacuterio permitiram a verificaccedilatildeo de que estas aves quando lhes eacute dado acesso aos alimentos escondidos ingerem primeiro os vermes que satildeo pereciacuteveis e depois as sementes indicando conhecerem o onde esconderam e quando o fizeram (Clayton et al 2003)
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 57
A vida social pode ter sido o fator que direcionou a evoluccedilatildeo da inteligecircncia uma vez que possuir a habilidade de prever as respostas de outros animais da mesma e de outras espeacutecies torna-se fator extremamente importante A capacidade de resolver problemas biologicamente relevantes permite plasticidade comportamental uma vez que os ambientes habitados pelas diferentes espeacutecies satildeo complexos e imprevisiacuteveis nos quais comportamentos preestabelecidos podem ser inapropriados
Consideraccedilotildees Finais
O sistema nervoso trouxe muitas possibilidades mas natildeo eacute essencial agrave vida uma vez que animais que natildeo o possuem ainda habitam este planeta como as esponjas A simplicidade em sua organizaccedilatildeo ou o nuacutemero reduzido em suas ceacutelulas a sua organizaccedilatildeo ganglionar nuclear ou laminar difuso ou concentrado formando ceacuterebros nada informa sobre a inteligecircncia do animal que possui o sistema Os paradigmas para investigar dor inteligecircncia ndash sempre no sentido de soluccedilatildeo de problemas de relevacircncia bioloacutegica eacute que devem ser adequados agrave espeacutecie em estudo
ldquoA ausecircncia de evidencia natildeo eacute evidencia de ausecircnciardquo (Sherwin 2001) eacute uma frase que tenho sempre em mente e que me auxilia a perguntar sempre que me deparo com afirmaccedilotildees categoacutericas e privadas de dados experimentais confiaacuteveis A evoluccedilatildeo da ciecircncia traz consigo novas metodologias que se adequadamente utilizadas permitiratildeo responder muitas perguntas natildeo soacute sobre a evoluccedilatildeo do sistema nervoso Quem sabe se em um futuro natildeo muito distante a nossa espeacutecie entenda que a sua existecircncia depende do respeito agraves demais espeacutecies existentes em nosso planeta por ser ela mais uma espeacutecie e natildeo a espeacutecie dona do planeta
A trajetoacuteria evolutiva do sistema nervoso eacute longa controversa e ainda em grande parte desconhecida eacute um sistema de alto custo energeacutetico e importante para todas as espeacutecies que o possuem Talvez conhecendo melhor a sua histoacuteria evolutiva entenderemos que eacute imperioso fazer uso do mesmo da melhor maneira possiacutevel afinal desperdiccedilar esta construccedilatildeo da evoluccedilatildeo seria ldquoirracionalrdquo natildeo muito coerente para uma espeacutecie que se julga a mais inteligente do planeta
58 | Temas em Neurociecircncias
Referecircncias
Budd G E (2016) early evolution and the origins of nervous systems PhilTransRSocB 370 20150
Burkhardt P amp Sprecher S G (2017) Evolutionary origin of synapses and neurons Bridging the gap Bioessays 39(10)1700024
Castelfranco A M amp Hartline D K(2016) Evolution of rapid nerve conduction Brain Res1641 11-33
Clayton N S Bussey T J amp Dickinson A (2003) Can animals recall the past and plan for the future Nature Reviews Neuroscience 4(8) 685
Elwood R W Pothanikat R M E amp Briffa M (2006) Honest and dishonest displays motivational state and subsequent decisions in hermit crab shell fights Animal Behav 72 853-859
Elwood R W amp Appel M Pain experience in hermit crabs Animal Behav 77 1243-1246 2009
Elwood R W Barr S amp Patterson L (2009) Pain and stress in crustaceans App Animal Behav Sci 118 128-136
Georg F Striedter (2005) Principles of brain evolution Sinauer Associates INC Sunderland Massachusetts USA
Heinrich B amp Bugnyar T (2007) Just how smart are ravens Sci Am v 4 46
Hickman C et al (2016) Princiacutepios integrados de Zoologia 16ordf Ediccedilatildeo Editora Guanabara Koogan
Kristan Jr W B (2016) Early Evolution of neurons Current Biology 23 R949-R954
Liebeskind B J Hillis D M Zakon H H amp Hofmann H A (2016) Complex homology and the Evolution of nervous systems Trends in Ecol amp Evol 31(2)127-135
Liebeskind B J Hofmann H A Hillis D M amp Zakon H H (2017) Evolution of animal nervous system Annual Rev Ecol Evol and Systematics 48377-398
Magistretti P J (1999) Brain energy metabolismo Apud Fundamental Neuroscience Eds Zigmond MJ Bloom FELandis SC Roberts JL amp Squire LR Academic Press San Diego California USA
Monk T amp Paulin M G (2014)Predation and the origin of neurones Brain Behav and Evolution 84246-261
Moroz L L (2009) On the independent origins of complex brains and neurons Brain Behav Evol 74177-190
Roth G amp Dicke U (2013) Evolution of nervous systems and brains Neurosciences ndash From Molecule to behavior A University textbook Springer-Verlag Berlin Heidelberg
Evoluccedilatildeo do Sistema Nervoso ndash Consideraccedilotildees e Provocaccedilotildees | 59
Sherwin C M (2001) Can invertebrates suffer Or how robust is argument-by-analogy AnimWelf 10 S103-S118
Striedter G F (2005) Principles of brain evolution Sinauer Associates Inc Publishers Sunderland Massachusetts USA
Zalc B (2016) The acquisition of myelin an evolutionary perspective Brain Res 16414-16
Neuromitos no Alvo Desmitificando o Ceacuterebro
Roberta EkuniUniversidade Estadual do Norte do Paranaacute
Introduccedilatildeo
Feche os olhos e tente lembrar de mateacuterias de divulgaccedilatildeo cientiacutefica que viu recentemente Provavelmente dentre as que pensou alguma envolvia o ceacuterebro1 certo Desde a ldquodeacutecada do ceacuterebrordquo (anos 1990) a Neurociecircncia se popularizou ao ocupar tanto capas de revistas cientiacuteficas de alto impacto como ldquoSciencerdquo e ldquoNaturerdquo quanto revistas e jornais populares (Ansari Coch amp De Smedt 2011) Esses estudos exercem um fasciacutenio nas pessoas fenocircmeno conhecido como neurofilia (apetite pelo ceacuterebro) (Fuller 2012) que tambeacutem estaacute presente em programas televisivos e filmes Inclusive como cita Fuller (2012) devido ao grande interesse geral nas questotildees que envolvem ldquoneurordquo no seriado Dr House (uma seacuterie que se passa em um hospital com casos meacutedicos interessantes que devem ser diagnosticados para que o paciente seja salvo) quase 30 dos episoacutedios envolvem casos de siacutendromes neuroloacutegicas Entretanto a expertise do personagem principal eacute nefrologia e doenccedilas infecciosas e natildeo neurologia
Em consonacircncia com essa neurofilia na aacuterea meacutedica a maioria dos livros ranqueados no site da Amazon satildeo da Neurociecircncia sendo que 20 estatildeo no top 100 dos livros de medicina mais vendidos (Fuller 2012) Isso se repete em publicaccedilotildees de uma revista meacutedica de alto impacto no qual a maior porcentagem de artigos publicados
1 No Brasil a traduccedilatildeo de brain eacute enceacutefalo (telenceacutefalo ponte e cerebelo) Entretanto o termo popularmente conhecido eacute ceacuterebro (telenceacutefalo) Como popularmente o termo ceacuterebro eacute utilizado em accedilotildees de divulgaccedilatildeo cientiacutefica (por exemplo em accedilotildees como a Semana do Ceacuterebro chancelada no Brasil pela Sociedade Brasileira de Neurociecircncias e Comportamento - SBNeC) no presente capiacutetulo o termo ceacuterebro seraacute utilizado para se referir agrave traduccedilatildeo popular do termo brain
Autor para correspondecircncia
robertaekuniuenpedubr
Universidade Estadual do Norte do Paranaacute Centro
de Ciecircncias Bioloacutegicas
Rodovia BR-369 Km-54 CP 269Vila Maria CEP
86360-000 Bandeirantes - PR
(43) 3542-8008
Agradecimentos Ao Fundo de Combate aos
Neuromitos por auxiliar o Projeto
ldquoCaccediladores de neuromitosrdquo ao
qual a autora faz parte Aos
queridos Orlando Francisco
Amodeo Bueno (in memorian) e Larissa Zeggio
parceiros do Projeto
Caccediladores de Neuromitos
3
62 | Temas em Neurociecircncias
envolvem neurologia (Fuller 2012) Aleacutem disso haacute muitas informaccedilotildees que antes eram explicadas pelo campo da Psicologia tentando ser substituiacutedas por explicaccedilotildees neurocientiacuteficas (Baron 2018) Talvez isso se deva ao fato de que haacute uma tendecircncia em achar que a Neurociecircncia seja o melhor meacutetodo para explicar fenocircmenos psicoloacutegicos (Weisberg Hopkins amp Taylor 2018)
Frente a esse apetite pelo ceacuterebro temos um fenocircmeno conhecido como neuromitos que de modo geral satildeo informaccedilotildees incorretas sobre o ceacuterebro mais especificamente um ldquoequiacutevoco gerado pelo entendimento incorreto uma maacute interpretaccedilatildeo ou maacute citaccedilatildeo de fatos estabelecidos cientificamente (pela ciecircncia do ceacuterebro)rdquo (OECD 2002 p 111) Um exemplo claacutessico de neuromito eacute que usamos cerca de 10 do ceacuterebro inclusive virou tema de filmes (Lucy filme de Luc Besson e Sem limites filme de Neil Burger) Na Argentina esse foi o neuromito que os professores mais acreditavam ser correto (40) (Hermida Segretin Soni Garciacutea amp Lipina 2016) Em um levantamento 14 dos norte-americanos que diziam ter alto treinamento em Neurociecircncia acreditavam nessa afirmaccedilatildeo (Macdonald Germine Anderson Christodoulou amp McGrath 2017) Outro questionaacuterio realizado com neurocientistas mostrou que uma pequena parcela (6) acreditava nesse mito (Herculano-Houzel 2002) Entretanto em ambos os casos comparado com educadores ou com a populaccedilatildeo em geral a porcentagem de neurocientistas ou pessoas com treinamentos em Neurociecircncia que acreditavam nesse neuromito eacute bem menor De forma breve talvez esse neuromito persista tanto por ser otimista ou seja se o ser humano usasse pouco imagine o que ele poderia fazer se desbloqueasse outras porcentagens Outro fator pode se dar ao fato de que quando as pessoas veem neuroimagem geralmente uma pequena parte estaacute colorida podendo dar uma falsa impressatildeo que o ceacuterebro natildeo estaacute sendo todo utilizado (para desmitificaccedilatildeo completa desse mito ver Abrahatildeo 2017)
Diante disso o objetivo desse capiacutetulo eacute discutir os neuromitos sua origem motivo pelo qual as pessoas tendem a acreditar nessas informaccedilotildees incorretas potenciais prejuiacutezos e como combatecirc-los
Neuromitos no Alvo Desmitificando o Ceacuterebro | 63
Neuromitos Qual a sua Origem
Os neuromitos podem surgir devido a afirmaccedilotildees duvidosas vindas de interpretaccedilotildees de leigos sobre imagens cerebrais ou dados de experimentos neurocientiacuteficos (Lalancette amp Campbell 2012) Aleacutem disso por ignorarem a interconectividade do ceacuterebro ou seja que este funciona de forma conjunta simplificam os achados cientiacuteficos gerando uma divulgaccedilatildeo incorreta dos mesmos (Geake 2008)
Natildeo eacute novidade que haacute um grande aumento do nuacutemero de publicaccedilotildees envolvendo o ceacuterebro nas miacutedias populares (OrsquoConnor Rees amp Joffe 2012) Uma pesquisa mostrou que a miacutedia eacute a maior responsaacutevel por espalhar informaccedilotildees sobre o ceacuterebro para os professores e estudantes inclusive informaccedilotildees erradas (Tardif Doudin amp Meylan 2015) Natildeo eacute a intenccedilatildeo da mesma mas para se fazer entendida muitas vezes ela generaliza e publica informaccedilotildees parciais sobre as descobertas neurocientiacuteficas produzindo interpretaccedilotildees equivocadas (neuromitos) sobre o funcionamento do ceacuterebro que se espraiaram (Pasquinelli 2012) Outro ponto eacute que a miacutedia tende a ser sensacionalista a oferecer informaccedilotildees relevantes (mesmo quando natildeo satildeo) e a omitir informaccedilotildees relevantes (Pasquinelli 2012 Racine Waldman Rosenberg amp Illes 2010) Contudo natildeo se pode julgar que a miacutedia eacute somente ruim visto que a mesma tem efeito positivo para informar a populaccedilatildeo em geral via jornalismo cientiacutefico de qualidade (Ekuni amp Pompeia 2016 Watts 2014)
Ressalta-se que a miacutedia natildeo eacute a uacutenica responsaacutevel pela criaccedilatildeo e propagaccedilatildeo de mitos A ciecircncia estaacute em constante mudanccedila e muitas vezes uma teoria cientiacutefica que eacute aceita em um determinado momento frente a novas evidecircncias passa a natildeo ser mais aceita (OECD 2007) Eacute preciso acompanhar essas mudanccedilas para natildeo manter informaccedilotildees ultrapassadas como corretas Por exemplo antigamente acreditava-se que no ceacuterebro adulto natildeo havia neurogecircnese (produccedilatildeo de novos neurocircnios) mas hoje sabe-se que haacute (OECD 2007)
Aleacutem disso uma pesquisa com professores do Canadaacute apontou que as maiores fontes de aquisiccedilatildeo dos neuromitos investigados por ela (a saber estilos de aprendizagem inteligecircncias muacuteltiplas dominacircncia hemisfeacuterica exerciacutecios coordenados e uso de 10
64 | Temas em Neurociecircncias
do ceacuterebro) foram em cursos de treinamento para professores e vieses cognitivos (por exemplo pela informaccedilatildeo parecer loacutegica ou pela proacutepria experiecircncia do professor em ensinar) (Sarrasin Riopel amp Masson 2019) Nesse sentido eacute necessaacuterio voltar a atenccedilatildeo para os cursos de formaccedilatildeo de docentes para evitar a propagaccedilatildeo de neuromitos
Por Que as Pessoas Acreditam nos Neuromitos
Haacute uma tendecircncia da miacutedia publicar assuntos que estatildeo em voga (OrsquoConnor et al 2012) Entretanto os estudos que mostram que ainda precisam de maiores evidecircncias para fazer recomendaccedilotildees praacuteticas natildeo viram manchetes de notiacutecia (Ekuni amp Pompeia 2016) o que acaba influenciando o julgamento das pessoas devido ao fato delas terem mais acesso aquelas informaccedilotildees De acordo com a Psicologia Cognitiva pelo vieacutes de disponibilidade algo vem agrave mente com mais facilidade devido a familiaridade (Tversky amp Kahneman 1973) assim as pessoas tendem a lembrar mais das informaccedilotildees familiares e repetidas o que influencia seu julgamento
Haacute uma tendecircncia em julgar uma informaccedilatildeo como verdadeira quando a mesma eacute vista pela segunda vez fenocircmeno conhecido como efeito da verdade (the truth effect) (Dechecircne Stahl Hansen amp Waumlnke 2010) Assim como os autores pontuam uma informaccedilatildeo ambiacutegua ou seja que a pessoa tem duacutevida se eacute fato ou natildeo tem mais chances de se tornar percebida como verdadeira se ela for repetida E isso tambeacutem acontece com os neuromitos jaacute que os mesmos estatildeo espalhados em vaacuterios locais (na miacutedia internet e ateacute em cursos voltado para professores) (Goswami 2006) Com isso o indiviacuteduo acaba ouvindo repetidas vezes a mesma informaccedilatildeo e por ela se tornar familiar ela pode pensar ldquohum jaacute ouvi isso em algum lugar deve ser verdaderdquo
Outro fator que pode explicar a crenccedila das pessoas em neuromitos pode se dar diante do termo conhecido como ldquopoacutes-verdaderdquo (post-truth) definido pelo dicionaacuterio Oxford como um adjetivo ldquoque se relaciona ou denota circunstacircncias nas quais fatos objetivos tecircm menos influecircncia em moldar a opiniatildeo puacuteblica do que
Neuromitos no Alvo Desmitificando o Ceacuterebro | 65
apelos agrave emoccedilatildeo e a crenccedilas pessoaisrdquo2 Haacute indicaccedilatildeo que as crenccedilas por exemplo as religiosas poderiam influenciar para maior crenccedila em neuromitos (Hermida et al 2016) Assim haacute uma tendecircncia de interpretar os resultados das pesquisas de maneira que confirmem a crenccedila anterior da pessoa um fenocircmeno conhecido como vieacutes de confirmaccedilatildeo (Nickerson 1998) Isso faz com que a crenccedila em alguns mitos se mantenham com mais vigor por exemplo quando buscam informaccedilotildees online as pessoas tendem a ignorar informaccedilotildees conflitantes com as crenccedilas delas (Del Vicario et al 2016) Isso eacute relevante pois aumenta ainda mais as crenccedilas em neuromitos visto que as pessoas costumam a acreditar neles de forma agrupada (van Dijk amp Lane 2018) Ou seja se uma pessoa acredita que ouvir Mozart deixaraacute seus filhos mais inteligentes buscaraacute outras informaccedilotildees sobre como melhorar a inteligecircncia podendo encontrar outros neuromitos e tomaacute-los todos como verdade
Aleacutem desses vieses cognitivos outro ponto que pode explicar o motivo pelo qual as pessoas acreditam em neuromitos se deve ao fato de que as explicaccedilotildees que envolvem Neurociecircncia tendem a ser mais crediacuteveis para as pessoas que a leem para explicar fenocircmenos psicoloacutegicos mesmo que a explicaccedilatildeo seja irrelevante (Weisberg Keil Goodstein Rawson amp Gray 2008) Isso pode ser elucidado pelo ldquoefeito do fasciacutenio sedutorrdquo (seductive allure effect) no qual pessoas leigas preferem explicaccedilotildees que envolvam Neurociecircncia para fenocircmenos psicoloacutegicos (Weisberg et al 2018) Isso pode ser explicado pelo fato das pessoas poderem ter a percepccedilatildeo de que a Neurociecircncia estaacute mais conectada com diversas aacutereas do conhecimento (Weisberg et al 2018) Em suma parafraseando ldquoraio gourmetizadorrdquo meme que ficou conhecido na aacuterea da alimentaccedilatildeo que transforma comidas simples em verdadeiros objetos de desejos com elevado valor financeiro temos o ldquoraio neurotizadorrdquo Basta colocar o prefixo NEURO em qualquer informaccedilatildeo para ela virar uma ldquoNeuroInformaccedilatildeordquo mais atrativa com uma ldquopegadardquo de neurociecircncias e consequentemente com mais pessoas se interessando pelo assunto (Ekuni Zeggio amp Bueno 2017)
2 httpsenoxforddictionariescomword-of-the-yearword-of-the-year-2016
66 | Temas em Neurociecircncias
Em consequecircncia disso produtos que remetem ao ceacuterebro tendem a ser mais avaliados como mais cientiacuteficas interessantes e efetivas do que o mesmo produto sem remeter ao ceacuterebro (Lindell amp Kidd 2013) Essa avaliaccedilatildeo foi realizada por estudantes de aacutereas diferentes do conhecimento por pais e por estudantes de Psicologia sendo que os alunos de Psicologia julgaram melhor comparado com os pais e alunos de outros cursos Isso mostra o efeito sedutor do ceacuterebro mas tambeacutem que uma formaccedilatildeo adequada pode ter um efeito protetor em relaccedilatildeo agrave crenccedila nos neuromitos (Lindell amp Kidd 2013) Contudo achados com professores da Coreacuteia do Sul concluem que saber Psicologia aumenta o conhecimento geral sobre o ceacuterebro mas natildeo diminui a crenccedila em neuromitos (Im Cho Dubinsky amp Varma 2018) Ou seja haacute indicaccedilatildeo de que natildeo basta apenas aumentar o conhecimento geral sobre Neurociecircncia eacute preciso tambeacutem desmitificar os neuromitos
Por Que os Neuromitos satildeo Prejudiciais
Acreditar em informaccedilotildees erradas sobre o ceacuterebro pode ser prejudicial No caso dos neuromitos potencialmente sim (Dekker Lee Howard-Jones amp Jolles 2012) Um dos motivos se deve ao fato de que as pessoas que adotam praacuteticas baseadas neles investem seu tempo e dinheiro em praacuteticas fadadas ao fracasso ao inveacutes de por exemplo focarem em praacuteticas que podem realmente melhorar a aprendizagem (Busso amp Pollack 2015 Macdonald et al 2017 Pasquinelli 2012) Um exemplo ocorreu na Irlanda do Norte onde houve uma tentativa de implementaccedilatildeo de uma reforma do curriacuteculo educacional supostamente baseada na Neurociecircncia mas que continha muitos equiacutevocos (neuromitos) (Purdy amp Morrison 2009) Por exemplo o neuromito de que as pessoas satildeo naturalmente propensas a aprender melhor se as instruccedilotildees dadas pelos professores forem congruentes com seu estilo de aprendizagem (visuais auditivas ou sinesteacutesicas ndash VAK) (Purdy 2008) Assim pessoas que satildeo visuais aprenderiam melhor se as instruccedilotildees fossem dadas por estiacutemulos visuais vendo graacuteficos imagens etc pessoas auditivas por informaccedilotildees auditivas e pessoas cinesteacutesicas (kinaesthetic) por movimentos por fazer na praacutetica Entretanto natildeo haacute evidecircncias cientiacuteficas que comprovem
Neuromitos no Alvo Desmitificando o Ceacuterebro | 67
esse efeito de congruecircncia entre instruccedilatildeo e estilo de aprendizagem visto que haacute poucas pesquisas que usam meacutetodo cientiacutefico adequado para estudar esse fenocircmeno e os que usam natildeo possuem efeito de congruecircncia (Pashler McDaniel Rohrer amp Bjork 2009 Rohrer amp Pashler 2012)
Essa reforma curricular realizada na Irlanda do Norte foi amplamente criticada por natildeo ser baseada em Neurociecircncia como a mesma afirmava ser o que levou o Conselho Educacional retirar das propostas posteriores que a reforma curricular era baseada em Neurociecircncias (Purdy 2008) No entanto o Conselho que propocircs a reforma manteve seu apoio em cartilhas destinadas a professores com toacutepicos como estilos de aprendizagem conectar o ceacuterebro direito e esquerdo e Brain Gymreg para melhorar a aprendizagem (Purdy 2008) Infelizmente todos esses neuromitos satildeo amplamente difundidos na campo educacional (eg Dekker et al 2012)
Brevemente em relaccedilatildeo a crenccedila de que haacute exerciacutecios para conectar os hemisfeacuterios cerebrais (ceacuterebro direito e o esquerdo) natildeo haacute evidencias que exerciacutecios possam conectar ambos lados (Spaulding Mostert amp Beam 2010) ateacute porque na maioria da populaccedilatildeo haacute um feixe de fibras nervosas o corpo caloso que conecta os hemisfeacuterios cerebrais (Roland et al 2017) Complementarmente a esse neuromito haacute o equiacutevoco de que pessoas que satildeo racionais possuem o lado esquerdo mais dominante e pessoas criativas possuem dominacircncia hemisfeacuterica direita As evidecircncias de neuroimagem com anaacutelise de mais de 1000 pessoas mostram que natildeo haacute uma predominacircncia de ativaccedilatildeo de um hemisfeacuterio especiacutefico (Nielsen Zielinski Ferguson Lainhart amp Anderson 2013)
Jaacute em relaccedilatildeo ao neuromito de que ginaacutestica cerebral mais especificamente o Programa Brain Gymreg supostamente baseado na Neurociecircncia afirma que podem melhorar o aprendizado por meio de exerciacutecios massagens pressotildees em pontos especiacuteficos do corpo As evidecircncias apontam que o programa eacute baseado em suposiccedilotildees teoacutericas invaacutelidas e natildeo haacute pesquisas baseadas no meacutetodo cientiacutefico que comprove a eficaacutecia da mesma (Spaulding et al 2010 Zeggio amp Malloy-Diniz 2015)
Em meio a esse bombardeio de informaccedilotildees que supostamente podem melhorar a educaccedilatildeo somado com uma formaccedilatildeo
68 | Temas em Neurociecircncias
neurocientiacutefica muitas vezes inadequadas com a sede que os educadores tem que inovar o ensino e de conectar o ceacuterebro com a educaccedilatildeo (Geake 2005 Goswami 2006) os educadores podem se apressar em fazer a ponte entre Neurociecircncias e Educaccedilatildeo Ao serem implantadas abordagens no contexto educacional baseadas em neuromitos pode ateacute haver uma percepccedilatildeo positiva dos alunos o que pode aumentar a crenccedila nos mitos entretanto a estrateacutegia natildeo seraacute efetiva (Howard-Jones 2014a) Infelizmente ainda falta conhecimento cientiacutefico para que os educadores possam acessar criticamente as pesquisas (Hook amp Farah 2013) Aleacutem disso as praacuteticas supostamente baseadas na Neurociecircncia ameaccedilam os programas baseados em evidecircncias jaacute que as pessoas podem natildeo acreditar em algo que contradiz o neuromito (Pasquinelli 2012 van Dijk amp Lane 2018)
O Que as Pessoas Sabem Sobre o Ceacuterebro
Muito se fala sobre a ponte entre Neurociecircncia e Educaccedilatildeo e da importacircncia dessa conexatildeo para melhorar a educaccedilatildeo (Sigman Pentildea Goldin amp Ribeiro 2014) Entretanto talvez a Educaccedilatildeo seja a aacuterea que mais sofre com os neuromitos Os educadores mais interessados em neurociecircncias sentem urgecircncia em colocar em praacutetica os conhecimentos das neurociecircncias em salas de aula o que os torna alvos faacuteceis de programas baseados em neuromitos (Dekker et al 2012) E isso se torna um ciclo vicioso pois os educadores acabam difundindo esses conhecimentos inveriacutedicos alguns inclusive em cursos de treinamento para professores (Sarrasin et al 2019)
Diante disso questionaacuterios tecircm sido administrados em vaacuterios paiacuteses para verificar o que os educadores acreditam sobre o ceacuterebro Entretanto devido a diferenccedilas culturais e tamanho da amostra esses dados natildeo satildeo generalizaacuteveis para toda a populaccedilatildeo (van Dijk amp Lane 2018) Mas haacute um ponto em comum as anaacutelises realizadas com educadores no Reino Unido e Holanda (Dekker et al 2012) Portugal (Rato Abreu amp Castro-Caldas 2013) Turquia Greacutecia e China (Howard-Jones 2014b) Brasil (Bartoszeck amp Bartoszeck 2016 Silvia Zeggio amp Ekuni 2014) Turquia (Karakus Howard-Jones amp Jay 2015) Suiacuteccedila (Tardif et al 2015) Ameacuterica Latina (predominantemente da Argentina Chile e Peru alguns participantes do Meacutexico Nicaraacutegua Colocircmbia
Neuromitos no Alvo Desmitificando o Ceacuterebro | 69
e Uruguai) (Gleichgerrcht Lira Luttges Salvarezza amp Campos 2015) Espanha (Ferrero Garaizar amp Vadillo 2016) na Argentina (Hermida et al 2016) Estados Unidos (Macdonald et al 2017 van Dijk amp Lane 2018) e Coreacuteia do Sul (Im et al 2018) mostram que os educadores tendem a acreditar em vaacuterios neuromitos associados ao aprendizado
Eacute difiacutecil dizer quais os neuromitos que as pessoas mais acreditam pois ateacute mesmo levantamentos realizados no mesmo paiacutes tiveram resultados diferentes Por exemplo em um estudo realizado nos EUA os trecircs neuromitos que os educadores mais acreditavam foram que haacute exerciacutecios para integrar o ceacuterebro direito e esquerdo (89) Brain Gymreg ajuda os estudantes a lerem e usarem melhor a linguagem (80) se os alunos aprenderam de forma congruente com seu estilo de aprendizagem predominante aprenderaacute melhor (76) (Macdonald et al 2017) Enquanto que no estudo de van Dijk e Lane (2018) tambeacutem realizado nos EUA a prevalecircncia maior foi que ambientes enriquecidos estimulam o desenvolvimento cerebral de crianccedilas preacute-escolares (94) haacute exerciacutecios para integrar o ceacuterebro direito e esquerdo (78) e a crenccedila de que consumir comidas e bebidas com muito accediluacutecar deixam as crianccedilas inatentas (68) Ou seja como van Dijk e Lane indicam talvez a prevalecircncia da crenccedila em neuromitos dependa da amostra estudada da cultura formaccedilatildeo e outros fatores
Como Combater os Neuromitos Direccedilotildees da Psicologia Cognitiva
As evidecircncias que contrariam neuromitos satildeo publicadas quase que exclusivamente em perioacutedicos especializados em Neurociecircncia aos quais o grande puacuteblico natildeo tem acesso (Howard-Jones 2014b) Contrariamente ao estudo que mostrou que quem lia mais informaccedilotildees sobre o ceacuterebro acreditavam mais em neuromitos (Dekker et al 2012) saber mais fatos sobre Neurociecircncia pode ser um fator preditivo de menor crenccedila nessas informaccedilotildees incorretas (van Dijk amp Lane 2018) Corroborando com isso um estudo que comparou a crenccedila em neuromitos da populaccedilatildeo em geral educadores e pessoas com treinamento em neurociecircncia apontou para o fato de
70 | Temas em Neurociecircncias
que as pessoas com treinamento em Neurociecircncia acreditavam menos em neuromitos (46) quando comparado com educadores (56) e o puacuteblico em geral (68) (Macdonald et al 2017) O mesmo estudo apontou que os preditores de apontar que uma informaccedilatildeo era um neuromito foi ter graduaccedilatildeo ler perioacutedicos cientiacuteficos revisado por pares e ter frequentado vaacuterios cursos de Neurociecircncia Somente ler jornalismo cientiacutefico natildeo eacute o suficiente para identificar um neuromito (Macdonald et al 2017) Ou seja a formaccedilatildeo cientiacutefica adequada pode auxiliar na melhor identificaccedilatildeo do que eacute um fato ou um mito
Eacute dever dos cientistas popularizar a ciecircncia ou seja transformar as descobertas cientiacuteficas em linguagem adequada para natildeo-cientistas (Bueno 2010) Diante disso primeiramente eacute preciso fortalecer a divulgaccedilatildeo neurocientiacutefica Haacute diversas iniciativas espalhadas no Brasil por meio de accedilotildees da extensatildeo universitaacuteria (eg Carvalho Macacare Rocha amp Ekuni 2020 Macacare et al 2018 Martins amp Mello-Carpes 2014 Rocha Macacare Cesaacuterio Benassi-Werke amp Ekuni 2019 Silva Grandi Castro amp Ekuni 2017 Vieira et al 2018 para uma revisatildeo ver Aranha Chichierchio amp Sholl-Franco 2015) Tambeacutem haacute iniciativas globais como ldquoBrain Awareness Weekrdquo promovido pela Dana Foundation e chancelada no Brasil pela Sociedade Brasileira de Neurociecircncia e Comportamento (SBNeC) que incentiva instituiccedilotildees a organizarem eventos que visem popularizar a ciecircncia do ceacuterebro No que diz respeito especificamente aos neuromitos tambeacutem haacute iniciativas de divulgaccedilatildeo cientiacutefica no formato de livros (eg Ekuni Zeggio amp Bueno 2015 Zeggio Ekuni amp Bueno 2017) Macdonald et al (2017) apontam que as pessoas que acreditam em um neuromito tendem a acreditar em vaacuterios de forma agrupada assim no momento de desmitificar deve-se explicar sobre vaacuterios neuromitos juntos
Uma vez que as pessoas comeccedilam a acreditar nos neuromitos mesmo que essas informaccedilotildees incorretas sejam corrigidas ainda pode-se prevalecer a crenccedila na informaccedilatildeo anterior fenocircmeno conhecido com o influecircncia do efeito contiacutenuo da desinformaccedilatildeo (Continued Influence Effect of misinformation) (Ecker Hogan amp Lewandowsky 2017) Para evitar que isso aconteccedila deve-se buscar tentar preencher as lacunas do conhecimento via explicaccedilotildees
Neuromitos no Alvo Desmitificando o Ceacuterebro | 71
alternativas e sempre que possiacutevel repetir essas explicaccedilotildees sem reforccedilar o mito (Lewandowsky Ecker Seifert Schwarz amp Cook 2012)
Pesquisas de memoacuteria que buscam compreender qual a melhor forma que corrigir uma informaccedilatildeo errada mostram que haacute maior probabilidade de correccedilatildeo da informaccedilatildeo se a fonte que corrige eacute dada por uma pessoa de confianccedila que natildeo necessariamente precisa ser expert no assunto (Guillory amp Geraci 2013) Apesar do estudo ser feito no campo de informaccedilotildees poliacuteticas os autores extrapolam esse achado para outras aplicaccedilotildees praacuteticas como desmitificar o fato de que vacina MMR [sarampo (measles) caxumba (mumps) e rubeacuteola (rubella)] natildeo causa autismo Diante disso podemos pensar na importacircncia da divulgaccedilatildeo cientiacutefica se mais pessoas forem alcanccediladas pela divulgaccedilatildeo cientiacutefica de qualidade haacute maior probabilidade de elas poderem corrigir informaccedilotildees erradas para outras pessoas Se a pessoa for de confianccedila possibilidade de corrigir possiacuteveis equiacutevocos eacute ainda maior
Alguns estudos mostram que para evitar o efeito da repeticcedilatildeo natildeo se deve reapresentar o mito antes de desmitificaacute-lo porque ao repeti-lo pode tornaacute-lo mais forte (Dechecircne et al 2010) Por exemplo um estudo em que se apresentava mitos e fatos sobre vacina teve como consequecircncia o efeito de contra-ataque (backfire effect) ou seja fortaleceu a crenccedila no mito da vacinaccedilatildeo (Pluviano Watt Ragazzini amp Della Sala 2019) Contudo outro experimento realizado dando uma informaccedilatildeo incorreta para o participante e depois apontando que a mesma era incorreta mostrou que a correccedilatildeo da informaccedilatildeo foi melhor do que quando natildeo havia essa repeticcedilatildeo da informaccedilatildeo incorreta (Ecker et al 2017) Ou seja ainda haacute controveacutersias na literatura sobre a melhor forma de corrigir uma informaccedilatildeo incorreta
Uma vez que eacute comum no meio jornaliacutestico e na divulgaccedilatildeo cientiacutefica apresentar mitos e fatos na tentativa de desmitificar uma informaccedilatildeo incorreta pode-se usar uma estrateacutegia cognitiva de solicitar que o leitor faccedila um julgamento da informaccedilatildeo enquanto lecirc o que pode evitar o efeito do contra-ataque quando comparado a solicitar um julgamento baseado na memoacuteria tempo depois de lido (Peter amp Koch 2015) Essa diferenccedila temporal de julgamento pode ser crucial para corrigir uma informaccedilatildeo incorreta jaacute que os autores pontuam que haacute uma tendecircncia de esquecer os argumentos lidos
72 | Temas em Neurociecircncias
que explicam porque a informaccedilatildeo eacute falsa Outra forma de evitar o efeito do contra-ataque eacute enfatizar o fato com poucos argumentos repeti-lo e quando for falar do mito avisar explicitamente o leitor que falaraacute uma informaccedilatildeo incorreta (Lewandowsky et al 2012)
Recomenda-se tambeacutem evitar que a manchete seja sobre o mito em si por exemplo ldquoUsamos soacute 10 do ceacuterebrordquo e soacute no texto dizer algo como ldquocientistas comprovam que essa informaccedilatildeo eacute falsa poisrdquo O motivo pelo qual deve-se evitar destacar o mito se deve ao efeito da distintividade ou seja eventos que se sobressaem que satildeo destacados satildeo mais distintivos assim essas informaccedilotildees tendem a ser mais lembradas do que as que natildeo se sobressaem (Tulving amp Rosenbaum 2012)
Depois da miacutedia a segunda fonte pelo qual os educadores dizem que aprendem informaccedilotildees sobre o ceacuterebro sendo que algumas dessas satildeo equivocadas vem de curso de formaccedilatildeo de professores (Tardif et al 2015) Uma pesquisa no Canadaacute apontou essa fonte como uma das fontes principais de informaccedilotildees incorretas (Sarrasin et al 2019) Isso eacute preocupante e chama a atenccedilatildeo da formaccedilatildeo de qualidade para prevenccedilatildeo da crenccedila em neuromitos (Ekuni amp Pompeia 2016) Como exposto anteriormente uma formaccedilatildeo cientiacutefica adequada pode fazer com que as pessoas se protejam do efeito sedutor da Neurociecircncia (Lindell amp Kidd 2013) Assim outras frentes de combate estariam na melhoria da formaccedilatildeo cientiacutefica dos educadores bem como na ampliaccedilatildeo do diaacutelogo entre cientistas e professores (Ansari et al 2011) Tambeacutem sugere-se a necessidade de uma rede de comunicadores de pesquisa neurocientiacutefica para ampliar a ponte entre Neurociecircncias e Educaccedilatildeo e a oferta de conteuacutedo acessiacutevel e de alta qualidade para a sociedade (Goswami 2006) No Brasil a Rede Ciecircncia para Educaccedilatildeo (Rede CpE)3 eacute uma das redes que visam atingir essa meta
Consideraccedilotildees Finais
Neuromitos satildeo informaccedilotildees duvidosas equivocadas que envolvem a ciecircncia do ceacuterebro Haacute uma alta crenccedila nessas
3 httpcienciaparaeducacaoorg
Neuromitos no Alvo Desmitificando o Ceacuterebro | 73
informaccedilotildees principalmente no campo educacional o que pode levar os educadores a adotarem estrateacutegias potencialmente fadadas ao fracasso Uma das explicaccedilotildees plausiacuteveis pelo qual os neuromitos satildeo espalhados e perpetuados se deve agrave neurofilia e agraves notiacutecias que a miacutedia lanccedila com explicaccedilotildees super simplificadas sobre as pesquisas das Neurociecircncias (Pasquinelli 2012) Como falta formaccedilatildeo (neuro)cientiacutefica adequada haacute pouco senso criacutetico para julgar essas se essas informaccedilotildees satildeo equivocadas ou natildeo Somado a isso haacute fenocircmenos que influenciam o julgamento e haacute variaacuteveis que interferem na correccedilatildeo da informaccedilatildeo incorreta Por exemplo o efeito da repeticcedilatildeo faz com que informaccedilotildees incorretas reapresentadas vaacuterias vezes tendem a ser julgadas como corretas pela familiaridade a poacutes-verdade no qual as crenccedilas individuais satildeo mais fortes do que os fatos e argumentos que contrapotildeem essa crenccedila Aleacutem disso haacute vaacuterios vieses cognitivos que podem fazer com que a crenccedila nessas informaccedilotildees incorretas perpetue como o vieacutes de confirmaccedilatildeo ignorando fatos conflitantes com a crenccedila e focando atenccedilatildeo em fatos que possam confirmar a crenccedila
Outra forma de combater os neuromitos pode se dar por meio de accedilotildees de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de qualidade jaacute que por meio dela pode-se aumentar o conhecimento neurocientiacutefico da populaccedilatildeo Haacute diversas accedilotildees voltadas para isso espalhadas no mundo e no Brasil Entretanto para desmitificar as informaccedilotildees incorretas deve-se fazecirc-lo baseadas em evidecircncias cientiacuteficas levando em consideraccedilatildeo os processos dos estudos de memoacuteria para corrigir uma informaccedilatildeo incorreta tais como tomar cuidado com o efeito do contra-ataque Aleacutem disso deve-se ampliar o diaacutelogo entre Neurociecircncia e Educaccedilatildeo bem como melhorar a formaccedilatildeo cientiacutefica dos educadores
74 | Temas em Neurociecircncias
Referecircncias
Abrahatildeo K P (2017) Uso de 10 do ceacuterebro um mito antigo e persistente In L Zeggio R Ekuni amp O F A Bueno (Eds) Caccediladores de neuromitos desvendando os misteacuterios do ceacuterebro (pp 10-20) Florianoacutepolis Editora IBIES
Ansari D Coch D amp De Smedt B (2011) Connecting education and cognitive neuroscience Where will the journey take us Educational Philosophy and Theory 43(1) 37-42 httpsdoiorg101111j1469-5812201000705x
Aranha G Chichierchio M amp Sholl-Franco A (2015) A divulgaccedilatildeo cientiacutefica como instrumento de desmitificaccedilatildeo e conscientizaccedilatildeo puacuteblica sobre Neurociecircncias In R Ekuni L Zeggio amp O F A Bueno (Eds) Caccediladores de Neuromitos o que vocecirc sabe sobre seu ceacuterebro eacute verdade (pp 204-220) Satildeo Paulo Editora Memnon
Baron J (2018) Forms of explanation and why they may matter Cognitive Research Principles and Implications 3(1) httpsdoiorg101186s41235-018-0143-2
Bartoszeck A B amp Bartoszeck FK (2016) How in-service teachers perceive neuroscience as connected to education An exploratory study European Journal of Educational Research 1(4) 301-319 httpsdoiorg1012973eu-jer14301
Bueno W C (2010) Comunicaccedilatildeo cientifica e divulgaccedilatildeo cientiacutefica aproximaccedilotildees e rupturas conceituais Informaccedilatildeo amp Informaccedilatildeo 15(esp) 1 httpsdoiorg1054331981-89202010v15nespp1
Busso D S amp Pollack C (2015) No brain left behind consequences of neuroscience discourse for education Learning Media and Technology 40(2) 168-186 httpsdoiorg101080174398842014908908
Carvalho M L Macacare O T Rocha M B da S amp Ekuni R (2020) Conhecer para prevenir A importacircncia da Extensatildeo universitaacuteria na divulgaccedilatildeo neurocientiacutefica para prevenccedilatildeo de lesatildeo cerebral Revista Conexatildeo UEPG 16 1-10 httpsdoiorg105212RevConexaov1613672013
Dechecircne A Stahl C Hansen J amp Waumlnke M (2010) The truth about the truth A meta-analytic review of the truth effect Personality and Social Psychology Review 14(2) 238-257 httpsdoiorg1011771088868309352251
Dekker S Lee N C Howard-Jones P amp Jolles J (2012) Neuromyths in education Prevalence and predictors of misconceptions among teachers Frontiers in Psychology 3(OCT) 1-8 httpsdoiorg103389fpsyg201200429
Del Vicario M Bessi A Zollo F Petroni F Scala A Caldarelli G hellip Quattrociocchi W (2016) The spreading of misinformation online Proceedings of the National Academy of Sciences 113(3) 554-559 httpsdoiorg101073pnas1517441113
Ecker U K H Hogan J L amp Lewandowsky S (2017) Reminders and Repetition of Misinformation Helping or Hindering Its Retraction Journal of Applied Research in Memory and Cognition 6(2) 185-192 httpsdoiorg101016jjarmac201701014
Neuromitos no Alvo Desmitificando o Ceacuterebro | 75
Ekuni R amp Pompeia S (2016) The impact of scientific dissemination in the perpetuation of neuromyths in education Revista Da Biologia 15(1) 1-8 httpsdoiorg107594revbio150101
Ekuni R Zeggio L amp Bueno O F A (2015) Caccediladores de neuromitos em busca da verdade sobre o ceacuterebro Satildeo Paulo Editora Memnon
Ekuni R Zeggio L amp Bueno O F A (2017) Por que eacute tatildeo faacutecil acreditar em neuromitos In L Zeggio R Ekuni amp O F A Bueno (Eds) Caccediladores de neuromitos desvendando os misteacuterios do ceacuterebro (pp 2-9) Florianoacutepolis IBIES
Ferrero M Garaizar P amp Vadillo M A (2016) Neuromyths in Education Prevalence among Spanish Teachers and an Exploration of Cross-Cultural Variation Frontiers in Human Neuroscience 10(October) 1-11 httpsdoiorg103389fnhum201600496
Fuller G N (2012) Neurophilia a fascination for neurology ndash a new syndrome Practical Neurology 12(5) 276-278 httpsdoiorg101136practneurol-2012-000400
Geake J (2005) Educational neuroscience and neuroscientific education In search of a mutual middle-way Research Intelligence 92 1-4 Retrieved from httparrtsgtcniorgukgtcnibitstream2428490381Geake+RI+2005pdf5Cnpapers3publicationuuid45A8B05F-4F34-4041-B54A-F6D33238F966
Geake J (2008) Neuromythologies in education Educational Research 50(2) 123-133 httpsdoiorg10108000131880802082518
Gleichgerrcht E Lira Luttges B Salvarezza F amp Campos A L (2015) Educational Neuromyths Among Teachers in Latin America Mind Brain and Education 9(3) 170-178 httpsdoiorg101111mbe12086
Goswami U (2006) Neuroscience and education from research to practice Nature Reviews Neuroscience 7(5) 406-411 httpsdoiorg101038nrn1907
Guillory J J amp Geraci L (2013) Correcting erroneous inferences in memory The role of source credibility Journal of Applied Research in Memory and Cognition 2(4) 201-209 httpsdoiorg101016jjarmac201310001
Herculano-Houzel S (2002) Do you know your brain A survey on public neuroscience literacy at the closing of the decade of the brain Neuroscientist 8(2) 98-110 httpsdoiorg101177107385840200800206
Hermida M J Segretin M S Soni Garciacutea A amp Lipina SJ (2016) Conceptions and misconceptions about neuroscience in preschool teachers a study from Argentina Educational Research 58(4) 457-472 httpsdoiorg1010800013188120161238585
Hook C J amp Farah M J (2013) Neuroscience for educators What are they seeking and what are they finding Neuroethics 6(2) 331-341 httpsdoiorg101007s12152-012-9159-3
Howard-Jones P A (2014a) Evolutionary Perspectives on Mind Brain and Education Mind Brain and Education 8(1) 21-33 httpsdoiorg101111mbe12041
Howard-Jones P A (2014b) Neuroscience and education myths and messages Nature Reviews Neuroscience 15(12) 817-824 httpsdoiorg101038nrn3817
76 | Temas em Neurociecircncias
Im S Hyun Cho J Y Dubinsky J M amp Varma S (2018) Taking an educational psychology course improves neuroscience literacy but does not reduce belief in neuromyths PLoS ONE 13(2) 1-19 httpsdoiorg101371journalpone0192163
Karakus O Howard-Jones P A amp Jay T (2015) Primary and Secondary School Teachersrsquo Knowledge and Misconceptions about the Brain in Turkey Procedia - Social and Behavioral Sciences 174 1933-1940 httpsdoiorg101016jsbspro201501858
Lalancette H amp Campbell S R (2012) Educational neuroscience Neuroethical considerations International Journal of Environmental amp Science Education 7(1) 37-52
Lewandowsky S Ecker U K H Seifert C M Schwarz N amp Cook J (2012) Misinformation and Its Correction Continued Influence and Successful Debiasing Psychological Science in the Public Interest 13(3) 106-131 httpsdoiorg1011771529100612451018
Lindell A K amp Kidd E (2013) Consumers Favor ldquoRight Brainrdquo Training The Dangerous Lure of Neuromarketing Mind Brain and Education 7(1) 35-39 httpsdoiorg101111mbe12005
Macacare O T Rocha M B D S Cruz E M S Lima L V A de Otomura F H amp Ekuni R (2018) Semana do ceacuterebro divulgando a neurociecircncia e integrando ensino pesquisa e extensatildeo Expressa Extensatildeo 23(3) 52-65 httpsdoiorg1015210eev23i312832
Macdonald K Germine L Anderson A Christodoulou J amp McGrath LM (2017) Dispelling the myth Training in education or neuroscience decreases but does not eliminate beliefs in neuromyths Frontiers in Psychology 8(AUG) 1-16 httpsdoiorg103389fpsyg201701314
Martins A amp Mello-Carpes PB (2014) Accedilotildees para divulgaccedilatildeo da Neurociecircncia um relato de experiecircncias vivenciadas no sul do Brasil Revista de Ensino de Bioquiacutemica 12(2) 107-117
Nickerson R S (1998) Confirmation Bias A Ubiquitous Phenomenon in Many Guises Review of General Psychology 2(2) 175-220
Nielsen J A Zielinski B A Ferguson M A Lainhart J E amp Anderson J S (2013) An Evaluation of the Left-Brain vs Right-Brain Hypothesis with Resting State Functional Connectivity Magnetic Resonance Imaging PLoS ONE 8(8) httpsdoiorg101371journalpone0071275
OrsquoConnor C Rees G amp Joffe H (2012) Neuroscience in the Public Sphere Neuron 74(2) 220-226 httpsdoiorg101016jneuron201204004
OECD (2002) Understanding the brain Towards a new learning science httpsdoiorg101136bmj35720474
OECD (2007) Understanding the Brain the birth of a learning science Retrieved from httpswwwoecdorgeducationceriunderstandingthebrainthebirthofalearning sciencehtm
Neuromitos no Alvo Desmitificando o Ceacuterebro | 77
Pashler H McDaniel M Rohrer D amp Bjork R (2009) Learning Styles Concepts and Evidence Psychological Science in the Public Interest 9(3) 105-119 httpsdoiorg101111j1539-6053200901038x
Pasquinelli E (2012) Neuromyths Why Do They Exist and Persist Mind Brain and Education 6(2) 89-96 httpsdoiorg101111j1751-228X201201141x
Peter C amp Koch T (2015) When Debunking Scientific Myths Fails (and When It Does Not) Science Communication 38(1) 3-25 httpsdoiorg1011771075547015613523
Pluviano S Watt C Ragazzini G amp Della Sala S (2019) Parentsrsquo beliefs in misinformation about vaccines are strengthened by pro-vaccine campaigns Cognitive Processing (2017) httpsdoiorg101007s10339-019-00919-w
Purdy N (2008) Neuroscience and education how best to filter out the neurononsense from our classrooms Irish Educational Studies 27(3) 197-208 httpsdoiorg10108003323310802242120
Purdy N amp Morrison H (2009) Cognitive neuroscience and education unravelling the confusion Oxford Review of Education 35(1) 99-109 httpsdoiorg10108003054980802404741
Racine E Waldman S Rosenberg J amp Illes J (2010) Contemporary neuroscience in the media Social Science and Medicine 71(4) 725-733 httpsdoiorg101016jsocscimed201005017
Rato J R Abreu A M amp Castro-Caldas A (2013) Neuromyths in education what is fact and what is fiction for Portuguese teachers Educational Research 55(4) 441-453 httpsdoiorg101080001318812013844947
Rocha M B Macacare O T Cesaacuterio R C Benassi-Werke M amp Ekuni R (2019) Intervenccedilatildeo Musicalizando Experimentaccedilatildeo Musical Em Uma Accedilatildeo Extensionista Revista Brasileira De Extensatildeo Universitaacuteria 10(3) 115-121 httpsdoiorg10243172358-03992019v10i310965
Rohrer D amp Pashler H (2012) Learning styles Wherersquos the evidence Medical Education 46(7) 634-635 httpsdoiorg101111j1365-2923201204273x
Roland J L Snyder A Z Hacker C D Mitra A Shimony J S Limbrick D D hellip Leuthardt E C (2017) On the role of the corpus callosum in interhemispheric functional connectivity in humans Proceedings of the National Academy of Sciences 114(50) 13278-13283 httpsdoiorg101073pnas1707050114
Sarrasin J B Riopel M amp Masson S (2019) Neuromyths and Their Origin Among Teachers in Quebec Mind Brain and Education 13(2) 100-109 httpsdoiorg101111mbe12193
Sigman M Pentildea M Goldin A P amp Ribeiro S (2014) Neuroscience and education prime time to build the bridge Nature Neuroscience 17(4) 497-502 httpsdoiorg101038nn3672
Silva M A Grandi A L Castro B J amp Ekuni R (2017) Praacuteticas Artiacutesticas para divulgar neurociecircncia relato do evento ldquoConhecendo o ceacuterebrordquo Revista de Educaccedilatildeo Artes e Inclusatildeo 13(3) 224-244
78 | Temas em Neurociecircncias
Silvia M A Zeggio L amp Ekuni R (2014) Educaccedilao baseada no ceacuterebro e neuromitos o que os educadores sabem sobre o ceacuterebro Poster Presented in XXXVIII Anual Meeting Da SBNeC Buacutezios Rio de Janeiro
Spaulding L S Mostert M P amp Beam A P (2010) Is Brain Gymreg an Effective Educational Intervention Exceptionality 18(1) 18-30 httpsdoiorg10108009362830903462508
Tardif E Doudin P A amp Meylan N (2015) Neuromyths among teachers and student teachers Mind Brain and Education 9(1) 50-59 httpsdoiorg101111mbe12070
Tulving E amp Rosenbaum R S (2012) What Do Explanations of the Distinctiveness Effect Need to Explain Distinctiveness and Memory 407-423 httpsdoiorg101093acprofoso97801951696690030018
Tversky A amp Kahneman D (1973) Availability A heuristic for judging frequency and probability Cognitive Psychology 5 207-232 httpsdoiorg1010160010-0285(73)90033-9
van Dijk W amp Lane H B (2018) The brain and the US education system Perpetuation of neuromyths Exceptionality 00(00) 1-14 httpsdoiorg1010800936283520181480954
Vieira M N F Macacare O T Cruz E M S Mariquito M T Rocha L R M amp Ekuni R (2018) Relato de experiecircncia visita de alunos da APAE no evento Conhecendo o ceacuterebro 2015 i Experience report APAE students rsquo visit to the ldquo Getting to know the Brain 2015 rdquo Event Revista Eletrocircnica Pesquiseduca 10(21) 484-495
Watts S (2014) Society needs more than wonder to respect science Nature 508(7495) 151 httpsdoiorg101038508151a
Weisberg D S Hopkins E J amp Taylor J C V (2018) Peoplersquos explanatory preferences for scientific phenomena Cognitive Research Principles and Implications 3(44) 1-14 httpsdoiorg101186s41235-018-0135-2
Weisberg D S Keil F C Goodstein J Rawson E amp Gray J R (2008) The Seductive Allure of Neuroscience Explanations Journal of Cognitive Neuroscience 20(3) 470-477 httpsdoiorg101162jocn200820040The
Zeggio L Ekuni R amp Bueno O F A (2017) Caccediladores de neuromitos desvendando os misteacuterios do ceacuterebro Florianoacutepolis Editora IBIES
Zeggio L amp Malloy-Diniz L (2015) Academia do ceacuterebro a falaacutecia da Ginaacutestica Cerebral In R Ekuni L Zeggio amp O F A Bueno (Eds) Caccediladores de Neuromitos o que vocecirc sabe sobre seu ceacuterebro eacute verdade (pp 72-90) Satildeo Paulo Editora Memnon
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria e a Auto-Organizaccedilatildeo dos Sistemas
Jayme Marrone Juacutenior
Introduccedilatildeo
Nos uacuteltimos anos a abordagem neurocientiacutefica se tornou uma referecircncia em pesquisas que buscam entender o ser humano em niacuteveis que vatildeo do fisioloacutegico ao social O caminho para se conseguir uma explicaccedilatildeo razoaacutevel acerca do funcionamento e da capacidade do ceacuterebro bem como sua influecircncia em nosso comportamento exige uma composiccedilatildeo de conteuacutedos que transcendem a especificidade de cada aacuterea do saber e mobilizam uma gama de cientistas que trabalham e pesquisam de forma multirreferencial
Diante deste cenaacuterio acreditamos que a Fiacutesica possa contribuir com algumas discussotildees principalmente com os conceitos da fiacutesica moderna mais especificamente da mecacircnica quacircntica No entanto se algueacutem diz compreender a mecacircnica quacircntica eacute porque verdadeiramente natildeo a conhece (Feynman 1985) Natildeo obstante entendendo nossa limitaccedilatildeo e ainda assim com intenccedilatildeo de favorecer a discussatildeo configuramos uma hipoacutetese que talvez possa acomodar algumas questotildees dentre elas aquela que mais nos incomoda que eacute a percepccedilatildeo da realidade
Os elementos fisioloacutegicos que captam a realidade e formam nossos sentidos (visatildeo audiccedilatildeo tato olfato paladar) satildeo manipulados e interpretados por uma extensa e complexa rede neural O caminho desta percepccedilatildeo inicia quando o estimulo eacute detectado por um neurocircnio sensitivo que converte (luz som cheiro toque) em potenciais de accedilatildeo que desencadeiam um sinal de origem eletroquiacutemica O sinal
Autor para correspondecircncia jaymemarrone
hotmailcom
4
80 | Temas em Neurociecircncias
eacute conduzido a uma aacuterea de processamento primaacuterio de acordo com a natureza do estiacutemulo que por sua vez elabora as caracteriacutesticas iniciais da informaccedilatildeo tal como forma textura cor etc A partir daiacute a informaccedilatildeo elaborada por comparaccedilatildeo eacute transmitida aos centros de processamento secundaacuterio da regiatildeo talacircmica onde se incorpora agrave outras informaccedilotildees de origem liacutembica relacionadas com experiecircncias passadas (memoacuterias) Por fim chega ao seu centro cortical especiacutefico (visual olfativo etc) jaacute deveras alterado
Segundo Maturana amp Varela (1995) eacute possiacutevel observar que mesmo neste breve e simplificado resumo do caminho percorrido pelo estiacutemulo a enorme quantidade de variaacuteveis que podem afetar a percepccedilatildeo da realidade e ainda a dependecircncia que a mesma possui de uma lembranccedila anaacuteloga para que a informaccedilatildeo possa ser classificada e compreendida cognitivamente Desta maneira eacute razoaacutevel afirmar que cores sabores cheiros texturas existem apenas em nossa mente de acordo com os modelos que construiacutemos de nossas experiecircncias do mundo Mesmo sensaccedilotildees de objetos inexistentes podem ser experimentados dependendo da aacuterea cortical estimulada (Blanke 2004) Uma experiecircncia realizada com uma jovem epileacutetica de 22 anos pela equipe de Olaf Blanke da Escola Politeacutecnica Federal de Lausanne na Suiacuteccedila mostrou que ao aplicar estimulaccedilatildeo eleacutetrica localizada perto da regiatildeo de origem dos ataques epileacutepticos (junccedilatildeo temporoparietal esquerda) a paciente revelou sentir que algueacutem estava postado exatamente atraacutes dela
Experiecircncias deste tipo revelam que as percepccedilotildees por vezes diferem qualitativamente do estiacutemulo fiacutesico pois o ceacuterebro eacute sensibilizado pelos dados e os interpreta baseado em experiecircncias anteriores que servem de suporte cognitivo para acomodaacute-los e consequentemente atribuir algum significado em sua associaccedilatildeo
A informaccedilatildeo que natildeo se adequa ao modelo construiacutedo ou que natildeo pode ser apropriada com o arcabouccedilo de memoacuterias preacutevias eacute interpretada como uma perturbaccedilatildeo que pode levar agrave sua dispensa e consequente natildeo percepccedilatildeo ou sua incorporaccedilatildeo por meio de uma remodelaccedilatildeo das estruturas sinaacutepticas reorganizando os circuitos neurais de acordo com a conveniecircncia na necessidade de sua percepccedilatildeo essa eacute nossa premissa
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 81
Compreender a relaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e realidade foi a inspiraccedilatildeo para nossa pesquisa que tem a priori a pretensatildeo de investigar as causas que permeiam essa relaccedilatildeo articulando as propriedades fiacutesicas da mateacuteria com a dinacircmica das redes neurais
Eacute com o intuito de promover essa discussatildeo que descreveremos brevemente os temas que pautaram o desenvolvimento destes estudos iniciais chamado a priori de Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional (HCF) cujo objetivo eacute acrescentar elementos que permitam uma descriccedilatildeo da realidade vinculada agrave materialidade dos objetos fiacutesicos
A percepccedilatildeo desta materialidade eacute uma experiecircncia da consciecircncia e racionalmente explicada em termos de partiacuteculas subatocircmicas tais como proacutetons necircutrons e eleacutetrons
Tais partiacuteculas satildeo definidas a partir de propriedades fiacutesicas como massa e carga eleacutetrica que diante do paradigma atual satildeo consideradas inerentes agrave mateacuteria ou segundo (Moreira 2009) ditas propriedades fundamentais da mateacuteria Quando usamos o termo inerente sugerimos uma existecircncia taacutecita independente de qualquer outro elemento e isso parece natildeo se adequar aos princiacutepios da mecacircnica quacircntica no que tange agrave relaccedilatildeo entre observador e observado O problema eacute que de forma macroscoacutepica toda realidade construiacuteda pode parecer independente de quem observa o que leva o senso comum a concluir que um preacutedio existe independente de qualquer mente consciente que o observe
Esse eacute um ponto a ser discutido jaacute que entendemos a materialidade como consequecircncia da conveniecircncia funcional de uma rede ou sistema O viacutenculo entre observador e observado eacute funcional a ambos pois permite a manifestaccedilatildeo da materialidade dos dois e de todo o sistema
Os conceitos de materialidade e realidade tem na Fiacutesica um campo frutiacutefero de discussatildeo diante da proposta das interaccedilotildees fundamentais1 cuja evoluccedilatildeo parece que caminha a uma unificaccedilatildeo
1 Haacute quatro tipos de interaccedilotildees fundamentais eletromagneacutetica gravitacional forte e fraca A interaccedilatildeo entre um eleacutetron e um nuacutecleo atocircmico (eletromagneacutetica) a atraccedilatildeo entre quarks eacute do tipo interaccedilatildeo forte o decaimento β exemplifica a interaccedilatildeo fraca a interaccedilatildeo gravitacional atua entre todas as partiacuteculas massivas e eacute a que governa o movimento dos corpos celestes
82 | Temas em Neurociecircncias
destas interaccedilotildees o que explicaria o Universo sob uma perspectiva muito mais simples No entanto na busca por um bloco fundamental de mateacuteria percebemos que quanto mais tentamos isolaacute-los mais elementos aparecem por exemplo ao olhamos para uma moleacutecula e percebemos aacutetomos olhando para o aacutetomo percebemos eleacutetrons e nuacutecleo olhando para o nuacutecleo percebemos proacutetons e necircutrons olhando para estes percebemos os quarks e assim parece ser infinita a busca
Cada vez que aprimorarmos nossas lentes sobre o mundo encontraremos mais elementos natildeo por que eles existem por si soacute mas porque convenientemente atribuiacutemos a eles uma funccedilatildeo um significado justificando nossa percepccedilatildeo dos mesmos Eacute essa a ideia inicial para nossa proposiccedilatildeo
Se conseguimos interagir com as coisas e adjetivaacute-las como realidade eacute porque para noacutes sua existecircncia eacute conveniente A manifestaccedilatildeo dessa realidade ocorre na conveniecircncia do observador onde ele proacuteprio eacute resultado desta conveniecircncia em relaccedilatildeo a um sistema mais complexo e assim indefinidamente
Associamos essa conveniecircncia ao termo funcional pois percebemos a realidade naquilo que para noacutes eacute conveniente aquilo que para noacutes tem alguma funccedilatildeo de existir Se isso natildeo ocorrer natildeo percebemos natildeo eacute real
Esta concepccedilatildeo de realidade pautada em uma relaccedilatildeo entre observadorobservado eacute verificada tambeacutem a partir da hipoacutetese de Copenhagen2 que atribui ao ato de observar uma accedilatildeo que provoca o colapso da funccedilatildeo de onda Significa que embora antes da mediccedilatildeo o estado do sistema permita muitas possibilidades o processo de mediccedilatildeo elege apenas uma delas aleatoriamente e a funccedilatildeo de onda modifica-se para o resultado dessa escolha
A contribuiccedilatildeo da HCF eacute que consideramos que natildeo haacute aleatoriedade no colapso da funccedilatildeo de onda e sim uma funcionalidade pressuposta devido ao contexto em que a partiacutecula
2 Desenvolvida por Niels Bohr e Werner Heisenberg que trabalhavam juntos em Copenhague em 1927 Considera sem sentido perguntas como ldquoonde estava a partiacutecula antes de a sua posiccedilatildeo ter sido medida Ela defende que em Mecacircnica Quacircntica os resultados satildeo indeterminiacutesticos e que o ato de observar provoca o ldquocolapso da funccedilatildeo de onda
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 83
se encontra As relaccedilotildees necessaacuterias agrave subsistecircncia do sistema satildeo que determinam qual ou quais qualidades da partiacutecula seratildeo mais adequadas agrave manifestaccedilatildeo
Acreditamos que os sistemas tendem a se auto organizarem para que sejam funcionais e a explicaccedilatildeo para isso eacute a conveniecircncia de sua proacutepria existecircncia A ideia da reorganizaccedilatildeo dos circuitos neurais para construir nossa percepccedilatildeo da realidade encontra na HCF um respaldo que reforccedila sua pertinecircncia uma vez que o rearranjo sinaacuteptico eacute consequecircncia da necessidade de aprimorar ou substituir funccedilotildees neurais fenocircmeno que remete agrave plasticidade cerebral base da memoacuteria e da aprendizagem
Ao considerarmos realidade como um aspecto da materialidade das coisas e essa por sua vez a consequecircncia da manifestaccedilatildeo das propriedades fundamentais das partiacuteculas entatildeo compreender tais propriedades eacute o caminho escolhido por noacutes para investigar essa relaccedilatildeo
Referenciais Teoacutericos
Em nossa revisatildeo bibliograacutefica encontramos vaacuterias definiccedilotildees e classificaccedilotildees do conceito massa Os mais comuns estatildeo associados ainda agraves concepccedilotildees de Isaac Newton em sua obra Princiacutepios Matemaacuteticos da Filosofia Natural de acordo com Castellani (2001) que incorpora a dificuldade de modificar o estado de repouso ou movimento de um objeto com sua massa a chamada Ineacutercia dos corpos Temos ainda uma associaccedilatildeo com um gradiente de energia mas mesmo na Teoria da Relatividade Geral podemos natildeo encontrar uma definiccedilatildeo satisfatoacuteria para massa
Quando procuramos uma definiccedilatildeo de carga eleacutetrica encontramos os mesmos obstaacuteculos ou seja a comunidade cientifica parece direcionar a compreensatildeo de carga eleacutetrica a uma propriedade fundamental da partiacutecula ou uma qualidade da partiacutecula observada experimentalmente pelos desvios em suas trajetoacuterias quando em movimento no interior de um campo magneacutetico
Segundo Young e Freedman (2004) natildeo eacute possiacutevel especificar exatamente o que eacute a carga eleacutetrica mas eacute possiacutevel descrever seu comportamento e suas propriedades Os autores afirmam ainda que
84 | Temas em Neurociecircncias
a carga eleacutetrica eacute uma das principais propriedades das partiacuteculas que constituem a mateacuteria tal como a massa Sobre isto (Nussenzveig 2001) afirma que a carga eleacutetrica eacute uma propriedade intriacutenseca de partiacuteculas que constituem a mateacuteria
O mundo fiacutesico como conhecemos estaacute baseado nessas duas propriedades ditas fundamentais e atribuiacutemos a noccedilatildeo de realidade agrave manifestaccedilatildeo delas ou seja eacute real aquilo que eacute sensiacutevel aos nossos sentidos e que de alguma maneira interage conosco (introspecccedilatildeo)
Sobre a realidade do mundo passamos por vaacuterios pensadores de Aristoacuteteles ateacute Heisenberg no entanto o fiacutesico teoacuterico italiano Carlo Rovelli consegue chegar bem proacuteximo de nossa expectativa acerca do mundo como construccedilatildeo mental
Em seu livro A realidade natildeo eacute o que parece (Rovelli 2017) ele discute alguns desdobramentos da mecacircnica quacircntica no sentido de que a mesma natildeo descreve os objetos como satildeo mas como acontecem e como influenciam uns nos outros O mundo real eacute o mundo das interaccedilotildees possiacuteveis onde a realidade eacute reduzida a relaccedilatildeo Segundo o autor ldquonatildeo satildeo as coisas que podem entrar em relaccedilatildeo mas satildeo as relaccedilotildees que datildeo origem agrave noccedilatildeo de coisardquo (Rovelli 2017 p113)
A mecacircnica quacircntica ainda segundo Rovelli amplia essa relatividade dizendo que todas as caracteriacutesticas (para noacutes qualidades) de um objeto soacute existem em relaccedilatildeo a outros objetos Em nosso trabalho esta relaccedilatildeo eacute a questatildeo da funcionalidade entre os integrantes do sistema
A Teoria Quacircntica coloca algumas questotildees fundamentais diante do paradigma mecanicista de Newton dentre elas duas nos chamam atenccedilatildeo O fato de que o ato de observar influencia o fenocircmeno e a outra chamada de princiacutepio da incerteza de Heisenberg diz que jamais saberemos com exatidatildeo a posiccedilatildeo e o movimento de partiacuteculas Heisenberg deixa claro que o determinismo da natureza eacute uma ilusatildeo A natureza natildeo nos fornece certezas mas probabilidades e assim sendo o mundo eacute apenas uma aproximaccedilatildeo da realidade
Foi Albert Einstein quem inicialmente questionou o caraacuteter inerentemente incerto da natureza em sua criacutetica ao indeterminismo da Teoria Quacircntica Segundo a explicaccedilatildeo para natildeo encontramos o bloco fundamental da mateacuteria natildeo eacute porque a natureza eacute probabiliacutestica
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 85
mas porque natildeo criamos ainda um instrumento adequado para medi-la (Einstein 1936) Neste aspecto a HCF confirma o que Einstein diz jaacute que se conseguimos medir algo eacute porque atribuiacutemos a ele uma funccedilatildeo e desta forma as propriedades fiacutesicas da mateacuteria necessaacuterias agrave percepccedilatildeo satildeo manifestas natildeo porque jaacute existem mas porque eacute conveniente ao sistema que sejam medidas ou percebidas o que chamamos de realidade Essa conveniecircncia eacute um aspecto sutil natildeo atribuiacuteda especificamente a um observador mas ao sistema ao qual esteja associado
No que se refere agrave construccedilatildeo da realidade pelo indiviacuteduo consciente escolhemos a Teoria dos Construtos Pessoais do Fiacutesico Matemaacutetico e Psicoacutelogo americano George Kelly jaacute citado anteriormente Embora Kelly sustente um universo alheio ao observador a maneira como o ser se relaciona e constroacutei seu proacuteprio universo a partir da sua conveniecircncia eacute ponto chave do nosso trabalho A conveniecircncia estaacute associada agrave necessidade de previsatildeo e por consequecircncia de controle cujo intuito eacute a proacutepria manutenccedilatildeo da existecircncia O indiviacuteduo participante do sistema e consciente dele constroacutei sua proacutepria interpretaccedilatildeo do mundo a partir de suas experiecircncias e as modula de acordo com sua conveniecircncia na tentativa de preservar essa construccedilatildeo e com isso consegue atribuir a si mesmo uma funccedilatildeo
Na questatildeo da consciecircncia buscamos em David Chalmers3 que coloca a informaccedilatildeo como uma propriedade tatildeo essencial da realidade quanto a mateacuteria e a energia sendo a experiecircncia consciente uma caracteriacutestica fundamental irredutiacutevel a qualquer coisa baacutesica (Chalmers 1995)
Em (Damaacutesio 2000) a consciecircncia estaacute associada agrave capacidade de percepccedilatildeo de si e do ambiente explicando assim que a materialidade de quem observa eacute por ele manifesta de acordo com o padratildeo neural que possui de si mesmo Em outras palavras criamos a realidade e somos por ela criados compondo um sistema que se auto alimenta diante da materializaccedilatildeo do que venha a ser real
3 Professor de Filosofia Diretor do Centro de Consciecircncia na Universidade Nacional da Austraacutelia
86 | Temas em Neurociecircncias
Desta forma podemos apenas descrever o estado do sistema em um dado ponto da linha temporal de seu desenvolvimento ressaltando eacute claro o estado presente mas podendo sim transitar entre as memoacuterias do passado e as projeccedilotildees das previsotildees futuras seguindo a linha dos construtos pessoais (Kelly 1963)
Natildeo podemos deixar de citar o fiacutesico indiano Amit Goswani4 que em seu livro ldquoO Universo Autoconscienterdquo afirma que eacute a consciecircncia que cria a mateacuteria e natildeo o oposto (Goswami 1998) Para ele a consciecircncia pode ser definida como o agente que afeta objetos quacircnticos para lhes tornar o comportamento apreensiacutevel pelos sentidos o que daacute origem ao que denominamos realidade
Para exemplificarmos um eleacutetron eacute considerado um objeto quacircntico pois seu comportamento por vezes eacute descrito como partiacutecula e por outras como onda
Para a Fiacutesica Moderna natildeo eacute possiacutevel afirmar que um objeto quacircntico se manifeste no espaccedilo-tempo ateacute que o observemos como uma partiacutecula e eacute neste ponto que Goswani (1998) afirma ser a consciecircncia o fator responsaacutevel por produzir o colapso da funccedilatildeo de onda ou em outras palavras eacute a consciecircncia que provoca a materializaccedilatildeo do observador e do objeto simultaneamente entrelaccedilados A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional complementa a afirmaccedilatildeo de Goswani ao supor que o fenocircmeno da consciecircncia surge da necessidade de quem a tenha de atribuir a si eou ao meio uma funccedilatildeo que contribui com a existecircnciamanutenccedilatildeo da rede que os conteacutem
Para discutir a questatildeo formaccedilatildeo dos sistemas natildeo apenas do ponto de vista geomeacutetrico em sua estrutura fiacutesica mas tambeacutem sob a perspectiva das organizaccedilotildees buscamos em (Debrun 1996) os conceitos de Organizaccedilatildeo e Auto-organizaccedilatildeo (AO) Para o autor uma organizaccedilatildeo ou ldquoformardquo eacute auto-organizada quando se produz a si proacutepria Debrun distingue dois tipos de Auto-organizaccedilatildeo
a) Primaacuteria ocorre quando um novo sistema se forma a partir do encontro de elementos que pertenciam a outros sistemas Ex origem da vida
4 PhD em fiacutesica quacircntica autor de inuacutemeros artigos cientiacuteficos aleacutem de pro fessor titular de fiacutesica no Instituto de Fiacutesica Teoacuterica da Universidade do Oregon
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 87
b) Secundaacuteria ocorre em um sistema jaacute constituiacutedo quando um novo padratildeo de organizaccedilatildeo se forma a partir das interaccedilotildees entre seus componentes e com o ambiente Ex jogo de basquete
Dado que toda organizaccedilatildeo tem como base elementos discretos conveacutem apreciar que a forma auto-organizada natildeo se produz no vazio mas a partir de tais elementos Consideramos as influecircncias do meio externo como um dos fatores que desencadeiam o rearranjo sistecircmico mas este soacute ocorre mediante as relaccedilotildees entre os integrantes
Em nossa concepccedilatildeo de auto-organizaccedilatildeo natildeo haacute nenhum tipo de controle imposto pelo meio na configuraccedilatildeo do sistema cujo uacutenico intuito eacute a subsistecircncia do todo O proacuteprio sistema reconhece o meio e consequentemente cria a demanda de reestruturaccedilatildeo Isto ocorre porque eacute na necessidade de refletir sobre as relaccedilotildees novas e antigas entre os integrantes do sistema que eacute pautada a existecircncia do mesmo
Se aplicarmos a hipoacutetese em nosso cotidiano podemos dizer que os problemas que surgem no dia a dia servem apenas para atribuir a noacutes mesmos a funcionalidade de sua resoluccedilatildeo ou seja criamos os problemas para que convenientemente o sistema nos confira uma funccedilatildeo e desta forma possamos pertencer a ele
O fenocircmeno da auto-organizaccedilatildeo tambeacutem eacute discutido por (Prigogine amp Glansdorff 1971)5 a partir da segunda lei da termodinacircmica e mostra que ele gera estruturas dissipativas criadas e mantidas atraveacutes de trocas de energia com o meio externo em condiccedilotildees de natildeo-equiliacutebrio Estas estruturas dissipativas satildeo dependentes de uma nova ordem denominada pelos autores de ordem por flutuaccedilotildees Nestes processos auto-organizadores a estrutura eacute mantida por meio de dissipaccedilotildees energeacuteticas na qual a energia se desloca gerando simultaneamente a estrutura atraveacutes de um processo contiacutenuo Se as flutuaccedilotildees satildeo pequenas o sistema as acomoda natildeo modificando a sua estrutura organizacional mas se as flutuaccedilotildees atingem um tamanho criacutetico desencadeiam um desequiliacutebrio no sistema ocasionando novas interaccedilotildees e
5 Ilya Prigogine quiacutemico russo naturalizado belga Recebeu o Nobel de Quiacutemica de 1977 pelos seus estudos em termodinacircmica de processos irreversiacuteveis com a formulaccedilatildeo da teoria das estruturas dissipativas
88 | Temas em Neurociecircncias
reorganizaccedilotildees intra-sistecircmicas Os antigos modelos interagem entre eles de novas maneiras e estabelecem novas conexotildees As partes se reorganizam em um novo todo e o sistema alcanccedila uma ordem mais elevada
Note que os autores envolvem o ambiente a partir da necessi-dade de troca energeacutetica com os constituintes do sistema e natildeo como elemento influenciador do processo de auto-organizaccedilatildeo Para o nosso estudo essa nova ordem sistecircmica eacute que determina a materialidade funcional e consequentemente qual ou quais propriedades da partiacutecula deveratildeo se manifestar de acordo com sua conveniecircncia
Desenvolvimento
A Proposta
Se a materialidade das coisas eacute atribuiacuteda pelo emaranhado composto pelo observador observado e ambiente e que a necessidade de funcionalidade determina a manifestaccedilatildeo das propriedades fundamentais propomos que a realidade seja uma consequecircncia da conveniecircncia funcional deste sistema onde as relaccedilotildees eacute que satildeo determiniacutesticas e natildeo os objetos O proacuteprio sistema cria e eacute criado a todo instante diante de uma uacutenica proposiccedilatildeo associar-se para existir
Essa conveniecircncia eacute ratificada por exemplo quando acreditamos na continuidade dos objetos que percebemos em nosso redor Na verdade as imagens formadas em nossa retina persistem no local em torno de 01s ateacute que se possa receber outro estimulo visual ou seja aquilo que acreditamos ser continuo na verdade eacute fragmentado
Se tiveacutessemos que lidar com a consciecircncia dessa fragmentaccedilatildeo isso levaria todo o sistema a um colapso de energia (Kist amp Garattoni 2012) Para evitar isso eacute conveniente ao organismo que o ceacuterebro atue na complementaccedilatildeo das lacunas visuais na formaccedilatildeo de imagens com uma memoacuteria experiencial similar da situaccedilatildeo Eacute necessaacuteria uma modulaccedilatildeo das estruturas que compotildeem a percepccedilatildeo da realidade para que o sistema continue funcional e que o Todo se torne mais importante que as partes
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 89
Sob a mesma lente na tentativa de compreender o Universo como um sistema funcional criamos as interaccedilotildees fundamentais para que separadamente pudeacutessemos dar conta de uma descriccedilatildeo apropriada a cada contexto observado ou seja criamos a ideia de que estas interaccedilotildees existem por serem inerentes agrave natureza pois esquecemos que elas surgem quando tentamos delimitar um fenocircmeno
A tentativa de isolarmos determinado evento para simplificar sua compreensatildeo tem como consequecircncia o aparecimento de qualidades decorrentes da separaccedilatildeo Precisamos entender que a atitude de delimitaccedilatildeo eacute possiacutevel mas sempre tendo em mente que algumas variaacuteveis surgem natildeo por serem intriacutensecas ao objeto de estudo mas resultado desta delimitaccedilatildeo Eacute como se imaginaacutessemos uma rede sendo rompida e as pontas soltas satildeo anaacutelogas as variaacuteveis que surgem mas que ao retomar suas conexotildees desaparecem reorganizando a formaccedilatildeo do Todo ou seja de uma rede iacutentegra novamente
Natildeo haacute motivo para descrevermos o Universo em versotildees de massa carga cor ou sabor Estas qualidades satildeo suprimidas quando equacionarmos a associaccedilatildeo o que significa que natildeo precisamos entender o que eacute massa para descrever a accedilatildeo gravitacional mas compreender qual a funccedilatildeo da massa dentro do contexto nem do caraacuteter carga eleacutetrica mas da funccedilatildeo carga e assim sucessivamente
De acordo com a HCF a realidade do Universo eacute consequecircncia de sua funcionalidade e a incerteza bem como as propriedades fundamentais da mateacuteria satildeo recursos necessaacuterios para convenientemente expandir os limites de suas funccedilotildees A expansatildeo do Universo eacute a ampliaccedilatildeo de seus atributos funcionais justamente porque tentamos medi-lo e ao fazecirc-lo oferecemos a ele mais uma funccedilatildeo Isso tambeacutem se aplica a existecircncia dos quarks e outras subpartiacuteculas
A natureza pode ser descrita por sua conveniente funccedilatildeo sendo as propriedades fundamentais da mateacuteria apenas traccedilos elegantes decorrentes da criaccedilatildeo de subsistemas (rupturas do todo) e cuja percepccedilatildeo se natildeo considerarmos o contexto revela apenas versotildees aproximadas de sua existecircncia A partir disso a busca por uma
90 | Temas em Neurociecircncias
unificaccedilatildeo se torna inoacutecua ao inveacutes disso temos outro desafio que eacute descobrir o referencial ao qual tal manifestaccedilatildeo eacute funcional
As coisas satildeo o que satildeo e estatildeo onde estatildeo porque para algueacutem ou algo aquela situaccedilatildeo eacute convenientemente funcional que assim sejam e estejam Assim podemos apenas refletir e compreender que podem ser e podem estar e que natildeo haacute essecircncia em ser e estar
Para ajudar na compreensatildeo dessa proposta reunimos algumas informaccedilotildees jaacute aceitas pelo paradigma cientiacutefico atual direta ou por consequecircncia sob forma de postulados
I A existecircnciarealidade eacute funccedilatildeo direta da observaccedilatildeo Efeito Zeno Quacircntico (Patil Chakram amp Vengalattore 2015)
II A observaccedilatildeo nunca eacute isenta de motivaccedilatildeo A utilidade e a funccedilatildeo (Araujo 2006)
III A Forma eacute uma qualidade de partiacuteculas que agrega funcionalidade tal qual a massa e carga eleacutetrica
Assim a propriedade massa ocorre quando a funccedilatildeo de ser mateacuteria (interaccedilotildees gravitacionais e inerciais) eacute mais conveniente Por exemplo uma pessoa que deseja sentar busca ao seu redor uma cadeira Se no ambiente houver alguma probabilidade de partiacuteculas formarem um sistema que tem por funccedilatildeo ser uma cadeira a qualidade massa daquelas partiacuteculas que constituem o sistema se manifesta no campo de probabilidade local
A carga eleacutetrica tambeacutem se manifesta quando as interaccedilotildees eletromagneacuteticas satildeo mais convenientes como exemplo a repulsatildeo eleacutetrica entre as eletrosferas dos aacutetomos da cadeira e da pessoa jaacute que a repulsatildeo eletromagneacutetica eacute cerca de 1040 vezes mais intensa que a atraccedilatildeo gravitacional evita-se desta forma que a pessoa atravesse a cadeira possibilitando exercer a funccedilatildeo de acondicionar algueacutem sentado
Propomos que tal qual a massa e a carga eleacutetrica o arranjo das partiacuteculas mediante sua funccedilatildeo dentro do contexto eacute uma propriedade fundamental da mateacuteria e como tal deve ser considerada como variaacutevel sistecircmica que tem como premissa representar a relaccedilatildeo
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 91
entre observador e observado em sua disposiccedilatildeo espaccedilo-temporal6 ou melhor dizendo em sua predisposiccedilatildeo espaccedilo-temporal
De certa forma enquanto natildeo for funcional para o sistemarede tudo eacute uma questatildeo de potencial (probabilidade) e a partir daiacute a concepccedilatildeo de onda de probabilidade faz sentido pois elimina a necessidade de atribuirmos inerecircncia agraves coisas
Incorporamos assim o fato de que se de alguma forma um elemento for uacutetil (funcional) as propriedades da mateacuteria se manifestam se natildeo fica na forma de potencial criando a partir do observador consciente um campo de possibilidades
No que diz respeito a este observador ele soacute eacute parte integrante de um sistema se sua funccedilatildeo integrativa contribuir para a subsistecircncia do todo Eacute essa funccedilatildeo integrativa ou seja a dependecircncia entre os constituintes da rede que de forma hieraacuterquica elege uma entre tantas possibilidades descritas na funccedilatildeo de onda explicando desta forma porque indiviacuteduos diferentes manifestam a mesma realidade Caso um deles manifeste algo diferente este evento natildeo contribui para a formaccedilatildeo do grupo Aquele que natildeo comunga da mesma manifestaccedilatildeo se exclui
A maior probabilidade no colapso da funccedilatildeo de onda natildeo eacute uma caracteriacutestica intriacutenseca ao ambiente ou especificamente do observador mas uma necessidade do conjunto que os envolve ao qual denominamos rede ou sistema
Participar de um grupo ou arranjo parece ser mais vantajoso em termos de subsistecircncia do que permanecer isolado jaacute que um conjunto do ponto de vista organiacutesmico possui propriedades especificas que isolados seus integrantes natildeo tecircm Como contempladores da realidade que somos fazemos isso a todo instante criando oportunidades sobrepostas a oportunidades e se acercando delas na tentativa de evitar o risco de natildeo ter funccedilatildeo o que estaacute atrelado agrave inexistecircncia
6 Sistema de coordenadas utilizado como base para o estudo da relatividade restrita e relatividade geral O tempo e o espaccedilo tridimensional satildeo concebidos em conjunto como uma uacutenica variedade de quatro dimensotildees a que se daacute o nome de espaccedilo-tempo Um ponto no espaccedilo-tempo pode ser designado como um ldquoacontecimentordquo Cada acontecimento tem quatro coordenadas (t x y z) ou em coordenadas angulares t r θ e φ que dizem o local e a hora em que ele ocorreu ocorre ou ocorreraacute
92 | Temas em Neurociecircncias
Desta maneira este arranjo denominado por noacutes como Forma possui as mesmas atribuiccedilotildees das grandezas fiacutesicas descritas como massa e carga desde suas transmissotildees via campo ateacute sua mediaccedilatildeo como partiacutecula
Forma uma Questatildeo Ontoloacutegica
De acordo com o contexto Forma pode ser empregada em diversas s i tuaccedilotildees Seu uso comum serve para demonstrar uma f igura externa de um material soacutelido Eacute por isso que podemos classificar os diferentes objetos em quadrados esferas ciacuterculos entre outros Neste sentido a classificaccedilatildeo das formas se refere agraves formas geomeacutetricas Por outro lado o conceito de forma estaacute relacionado agrave organizaccedilatildeo das coisas em nossa mente A maneira como algo eacute estabelecido ou entatildeo o modo como eacute feito tambeacutem eacute conhecido como forma
Segundo a metafiacutesica aristoteacutelica mateacuteria e forma satildeo princiacutepios distintos mas absolutamente complementares (Zingano 2003) A mateacuteria se define por aquilo que uma coisa existe ou quando algo for feito e representa a essecircncia da substacircncia Por exemplo se uma mesa foi feita de pedra sendo esta sua principal substacircncia a pedra eacute por natureza o fundamento da essecircncia eacute a mateacuteria Por outro lado a mesa ao ser feita adquiriu um determinado modelo eacute justamente essa determinaccedilatildeo que se entende por forma Entatildeo a forma faz com que uma coisa seja isso ou aquilo e seu aspecto referencial eacute meramente acidental e natildeo substancial
Mas a que serve a natureza da mesa (pedra) Sua funcionalidade (forma) parece ser mais uacutetil pois se pensarmos em apoiar pratos ou panelas efetivamente natildeo importa se a mesa eacute de pedra ou madeira Entendemos claramente que o conjunto de peacutes e tampo juntos eacute mais efetivo do que separados uma vez que se estivessem simplesmente amontoados natildeo teriam a forma de mesa e portanto sem funccedilatildeo No entanto de acordo com nossa premissa se de alguma maneira interagirmos com os mesmos tornam-se potenciais de ser mesa (funccedilatildeo) o que de maneira consciente passam a ser realidade
A forma parece mais sutil do que a essecircncia Tatildeo sutil e imaterial a ponto de natildeo ser sensiacutevel aos sentidos Ela surge em nossa mente
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 93
e natildeo requer nada material exceto uma experiecircncia anterior daquilo que supostamente como no exemplo chamamos de mesa Sendo assim sobre sua propagaccedilatildeo jaacute que natildeo arrasta mateacuteria pode ser transmitida como onda tal qual a luz Mas a luz em sua propagaccedilatildeo eacute uma interaccedilatildeo de campos eleacutetrico e magneacutetico entatildeo talvez a Forma tambeacutem possa se propagar da mesma maneira Um campo que transporta a forma que daacute origem a ela quando as partiacuteculas que satildeo por ele sensibilizadas se encontram em seu interior um campo MORFO (forma) GENETICO (radical indo-europeu gen-gne- nascer gerar) um campo que gera a forma
Como em nossa proposta colocamos a Forma como uma qualidade da partiacutecula tal qual a massa e a carga eleacutetrica e ainda lembrando que essas qualidades satildeo propagadas atraveacutes de seus respectivos campos recorremos ao trabalho do bioacutelogo Rupert Sheldrake7 (1981) sobre campos morfogeneacuteticos Segundo ele
Eles satildeo campos natildeo fiacutesicos que exercem influecircncia sobre sistemas que apresentam algum tipo de organizaccedilatildeo inerente Todas estas coisas satildeo organizadas por si mesmas Um aacutetomo natildeo tem que ser criado por algum agente externo ele se organiza soacuterdquo ldquoEsta teoria trata sistemas naturais auto-organizados e a origem das formas E eu assumo que a causa das formas eacute a influecircncia de campos organizacionais campos formativos que eu chamo de campos moacuterficos A caracteriacutestica principal eacute que a forma das sociedades ideias cristais e moleacuteculas dependem do modo em que tipos semelhantes foram organizados no passado Haacute uma espeacutecie de memoacuteria integrada nos campos moacuterficos de cada coisa organizada Eu concebo as regularidades da natureza como haacutebitos mais que por coisas governadas por leis matemaacuteticas eternas que existem de algum modo fora da natureza (Sheldrake 1981)
Reconhecemos a contribuiccedilatildeo do autor nesta nova perspectiva sobre os Campos Morfogeneacuteticos no entanto em nosso trabalho noacutes os consideramos como campos fiacutesicos e acreditamos que seu tratamento formal deveraacute seguir os mesmos moldes dos campos gravitacional e eleacutetrico Se cada qualidade da partiacutecula (massa e carga) desenvolve seu proacuteprio campo a Forma natildeo deve ser diferente
7 Bioacutelogo bioquiacutemico parapsicoacutelogo escritor e palestrante inglecircs mais conhecido por sua teoria da morfogecircnese Pesquisador em bioquiacutemica e fisiologia vegetal descobriu junto com Philip Rubery o mecanismo de transporte da auxina
94 | Temas em Neurociecircncias
A analogia dos campos morfogeneacuteticos com os campos fiacutesicos estaacute em sua existecircnciacomprovaccedilatildeo uma vez que o campo gravitacional soacute eacute observaacutevel em seus efeitos sobre partiacuteculas dotadas de massa assim como o campo eletromagneacutetico soacute eacute comprovado por seu efeito sobre cargas eleacutetricas propomos que o campo morfogeneacutetico tenha seu efeito observado sobre a Forma das partiacuteculas Se a mudanccedila no comportamento de partiacuteculas dotadas de carga eou massa quando imersas em seus respectivos campos ratifica a existecircncia desses campos a modificaccedilatildeo na Forma ou organizaccedilatildeo das mesmas tambeacutem comprovaria a existecircncia dos campos morfogeneacuteticos
De acordo com nosso terceiro postulado8 o conceito de campo morfogeneacutetico bem como sua comprovaccedilatildeo fica atrelado agrave causa da forma dos sistemas e sua influecircncia tem por si soacute maior ou menor intensidade de acordo com a necessidade eou importacircncia que a organizaccedilatildeo da particulasistema tem em relaccedilatildeo ao contexto
Entendemos tambeacutem que o aspecto final de um agrupamento pode ser representado em funccedilatildeo de sua estabilidade mecacircnica funcional (massa) estabilidade eletromagneacutetica (carga eleacutetrica) ou ainda estabilidade organizacional (forma) dependendo na necessidade de subsistecircncia do sistema em sua conexatildeo com o ambiente
Essa necessidade natural dos sistemas em se acomodar diante das variaccedilotildees do ambiente eacute melhor compreendida se lanccedilarmos matildeo do conceito de auto-organizaccedilatildeo
Organizaccedilatildeo e Auto-Organizaccedilatildeo
Organizaccedilatildeo do grego organon eacute uma palavra relacionada a agrupamentos que tendo elementos (composiccedilatildeo) juntos (conectividade) se constroem (estrutura) formando nuacutecleos subsistemas (Integralidade) que permitem desta maneira o surgimento de funccedilotildeespropriedades singulares ao conjunto (Funcionalidade)
8 A Forma eacute uma qualidade dos sistemas que agrega funcionalidade tal qual a massa e carga eleacutetrica
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 95
Graccedilas agrave organizaccedilatildeo um sistema assume propriedades que natildeo podem ser encontradas nas entidades isoladas ou mesmo na simples reuniatildeo delas Quando um elemento externo ao sistema provoca a reuniatildeo das partes entendemos que o evento ocorre a custas de um fornecimento de energia e desta maneira temos uma organizaccedilatildeo forccedilada cuja manutenccedilatildeo remete agrave instabilidade (Figura 1)
A probabilidade das bolas se organizarem em uma pilha eacute muito pequena sugerindo entatildeo que algueacutem (elemento externo) faccedila isso ou seja algueacutem forneceu energia para que o sistema se organizasse daquela maneira Observemos ainda que o conjunto possui uma energia potencial devido agrave sua organizaccedilatildeo No entanto quando um sistema eacute sujeito a um estimulo (ruiacutedo) miacutenimo externo (algueacutem tira uma bola da base) este se acomoda de maneira mais estaacutevel (Figura 2) o que eacute comum estar associado a uma desorganizaccedilatildeo que indica um grau mais alto de entropia
Organizado Instaacutevel
Figura 1 Fonte httpsptdreamstimecomfoto-de-stock-equipamento-de-esporte-das-bolas-de-tC3AAnis-no-fundo-branco-image94280211
96 | Temas em Neurociecircncias
Desorganizado Estaacutevel
Figura 2 Fonte httpsbrdepositphotoscom90881494stock-photo-basket- of-tennis-balls-scatteredhtml
Quando isso ocorre o sistema libera energia ao meio externo (Figura 3) e eacute nesse contexto que o ser humano demonstra sua maior habilidade que eacute reconhecer as transformaccedilotildees de energia e utilizaacute-las em seu benefiacutecio pois compreende que ao observar a tendecircncia dos sistemas agrave desorganizaccedilatildeo pode usufruir da energia liberada a seu favor
Verificamos que a maneira como o sistema se estabiliza parece desorganizado no entanto se prestarmos um pouco mais de atenccedilatildeo perceberemos que de todas as possibilidades de desorganizaccedilatildeo uma em especial foi escolhida Eacute como se os integrantes do sistema produzissem o resultado final de acordo com a necessidade de adaptaccedilatildeo ao ambiente para atingir sua estabilidade
Nesse contexto entendemos que a desorganizaccedilatildeo de um sistema eacute o resultado de um processo de auto-organizaccedilatildeo ou seja um evento espontacircneo natildeo aleatoacuterio e com a caracteriacutestica de que a repeticcedilatildeo aumenta sua recorrecircncia
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 97
Ao se desorganizar o sistema liberaenergia ao meio como uma queda
dacuteaacutegua fornece eletricidade
SISTEMA
O sistema recebe energia do meioexterno para se organizar
DesorganizadoEstaacutevel
OrganizadoInstaacutevel
Figura 3 Fonte Do autor
98 | Temas em Neurociecircncias
Um sistema para ser auto-organizado tem algumas caracteriacutesticas especiacuteficas que definem para noacutes as condiccedilotildees fundamentais para o surgimento das propriedades fiacutesicas da mateacuteria Satildeo elas
bull Redundacircncia Estrutural Eacute a repeticcedilatildeo dos elementos baacutesicos constituintes
bull Redundacircncia Funcional Semelhanccedila entre os processos executados
bull Adaptaccedilatildeo Funcional Capacidade do sistema de deslocar e distribuir funccedilotildees
bull Confiabilidade Sistemaacutetica Quando sistemas altamente complexos possuem as trecircs primeiras caracteriacutesticas eles adquirem a capacidade de aceitar um certo niacutevel de intromissatildeo (ruiacutedodesordem) em sua organizaccedilatildeo sem que a estrutura entre em colapso Na verdade o sistema utiliza esse fator de desequiliacutebrio como elemento de complexificaccedilatildeo para que se auto organize em um niacutevel superior de estabilidade o que chamamos de evoluccedilatildeo
Eacute como se o sistema ao evoluir incorporasse outros subsistemas causadores de tais interferecircncias ampliando sua rede e de certa maneira garantindo sua existecircncia Somente pela auto-organizaccedilatildeo eacute possiacutevel promover essa independecircncia pois a organizaccedilatildeo exige de um elemento externo sempre uma certa quantidade de energia para manter seu status de detentor da ordem
Como dissemos anteriormente uma Forma eacute dita auto-organizada quando se produz a si proacutepria o que significa apresentar a capacidade de criar padrotildees de comportamentos natildeo previsiacuteveis descentralizados e em alguns casos de crescente adaptaccedilatildeo Uma vez auto-organizado sistemas semelhantes teratildeo mais chances de repetir a mesma configuraccedilatildeo o que explicaria a memoacuteria integrada nos campos moacuterficos no trabalho de Sheldrake (1981) quando ele cita a cristalizaccedilatildeo espontacircnea de substacircncias
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 99
A competiccedilatildeo entre as formas pode ser explicada pela estabilidade termodinacircmica no entanto a transmissatildeo dessa informaccedilatildeo fica a criteacuterio da ressonacircncia moacuterfica9
Outros exemplos de comparaccedilatildeo entre sistemas organizados e auto-organizados mais tangiacuteveis agrave nossa experiecircncia cotidiana satildeo os semaacuteforos e rotatoacuterias Um conjunto de semaacuteforos (organizado) regula o tracircnsito em um cruzamento
Jaacute as rotatoacuterias (auto-organizado) a decisatildeo de passar esperar eacute transferida para os proacuteprios motoristas (internos ao sistema) Os mesmos orientar-se-atildeo por algumas regras simples internas que iratildeo determinar quando eacute permitido entrar na rotatoacuteria
Para que ocorra a manutenccedilatildeo do sistema a auto-organizaccedilatildeo acaba por determinar qual ou quais propriedades sistecircmicas seratildeo mais apropriadas agrave manifestaccedilatildeo Em alguns casos natildeo satildeo os estados de menor energia as melhores opccedilotildees por vezes a necessidade da forma supera a estabilidade energeacutetica Um exemplo disso eacute a aacutegua cuja moleacutecula possui geometria angular porque o aacutetomo central (oxigecircnio) tem dois pares de eleacutetrons natildeo ligantes
H H
H HH H
OO
104rsquo5ordm
Foacutermulaeletrocircnica
da aacutegua
4 nuvenseletrocircnicas Geometria
angular
Fonte httpsmundoeducacaoboluolbrquimicadeterminacao-geometria-molecularhtm
9 O conhecimento adquirido por um conjunto de indiviacuteduos agrega-se ao patrimocircnio coletivo provocando um acreacutescimo de consciecircncia que passa a ser compartilhado por toda a espeacutecie E esse processo de coletivizaccedilatildeo da informaccedilatildeo foi denominado por Sheldrake de ldquoressonacircncia moacuterficardquo Eacute atraveacutes dela que as informaccedilotildees se propagam no interior do campo moacuterfico alimentando uma espeacutecie de memoacuteria coletiva
100 | Temas em Neurociecircncias
Supondo que a moleacutecula de aacutegua tivesse o formato linear isso satisfaria a repulsatildeo eleacutetrica e a estabilidade estrutural No entanto a aacutegua na forma linear seria considerada apolar sendo classificada como um gaacutes nas CNTP10 A substacircncia natildeo faria ligaccedilatildeo de hidrogecircnio natildeo se associaria e toda vida que conhecemos hoje natildeo existiria uma vez que a mesma supostamente surgiu na aacutegua em seu estado liacutequido
Entendemos que a Teoria da Repulsatildeo dos pares de eleacutetrons da camada de valecircncia explica de maneira cabal a geometria da moleacutecula dado que a repulsatildeo entre pares natildeo-ligantes eacute maior que entre ligantes mas isso eacute a explicaccedilatildeo partindo da preacute-existecircncia das qualidades massa e carga eleacutetrica de seus constituintes O que estamos propondo eacute que a conveniecircncia funcional desta geometria eacute anterior agrave manifestaccedilatildeo de tais propriedades A Forma (a auto-organizaccedilatildeo) se torna mais importante que a configuraccedilatildeo de miacutenima energia para que toda vida sistecircmica seja materializada
Ressaltamos que a persistecircncia na formaccedilatildeo de moleacuteculas de aacutegua eacute mais um exemplo de repeticcedilatildeo de padrotildees formativos que Sheldrake (1981) chama de ressonacircncia moacuterfica e continua ocorrendo para sustentar a vida funccedilatildeo maior do sistema Se ampliarmos nossa atenccedilatildeo e se pudermos romper com o paradigma que manteacutem a moleacutecula de aacutegua com angular e ainda soacute por um momento considerarmos a possibilidade de uma nova geometria perceberemos que a forma da mesma natildeo eacute inerente a ela mas resultado das infinitas vezes que o evento ocorreu e por isso tem muito mais possibilidade de continuar ocorrendo
Essa recorrecircncia faz com que interpretemos de forma ilusoacuteria que a moleacutecula de aacutegua seja estaacutevel e natural acreditando como consequecircncia que ela existe independente de noacutes Insistimos em dizer que ela soacute eacute assim porque eacute conveniente ao sistema que assim seja e que nossa interaccedilatildeo a faz real
10 As condiccedilotildees normais de temperatura e pressatildeo (cuja sigla eacute CNTP no Brasil) referem-se agrave condiccedilatildeo experimental com temperatura e pressatildeo de 27315 K (0 degC) e 101 325 Pa (101325 kPa = 101325 bar = 1 atm = 760 mmHg) respectivamente Esta condiccedilatildeo eacute comumente empregada para medidas de gases em condiccedilotildees atmosfeacutericas (ou de atmosfera padratildeo)
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 101
A todo momento aacutetomos surgem eleacutetrons preenchem as mesmas oacuterbitas ao redor do nuacutecleo aacutetomos se combinam repetidamente para produzir as mesmas formas moleculares Essa repeticcedilatildeo pode ser explicada natildeo porque existem leis fiacutesicas imutaacuteveis que determinam formas eternas mas por conta de uma influecircncia de causa formativa anterior ou seja o campo morfogeneacutetico de sistemas passados aumenta a possibilidade de formas futuras se manifestarem
Uma das consequecircncias de nossa hipoacutetese seria fato de que se todas as propriedades ditas fundamentais ateacute agora sejam resultado da conveniecircncia funcional o tempo seria a uacutenica medida verdadeiramente inerente agrave realidade
A HCF nas Relaccedilotildees Sociais
No acircmbito da convivecircncia entre indiviacuteduos partimos da premissa de que o ser humano tem a tendecircncia a se agrupar se associar Essa tendecircncia provavelmente tem origem na intuiccedilatildeo de que ao formar grupos teremos maior chance de sobreviver agraves influecircncias externas Desta forma quando compartilhamos de uma mesma realidade temos a possibilidade de nos conectar a partir dela ou seja temos algo em comum que nos motiva a formar um grupo (um sistema) Quanto mais pontos em comum tivermos mais forte nossas conexotildees
Vamos voltar ao exemplo da cadeira onde a conveniecircncia de um observador em encontrar um objeto que tenha a funccedilatildeo de acomodaacute-lo sentado faz com que se manifeste massa e carga eleacutetrica nas partiacuteculas que podem a partir do seu campo produzir a materializaccedilatildeo de uma cadeira Outro indiviacuteduo pode percebecirc-la tambeacutem talvez natildeo para sentar mas para compartilhar da mesma conveniecircncia criando uma experiecircncia em comum e consequentemente a possibilidade de associaccedilatildeo Temos entatildeo uma explicaccedilatildeo bastante simples sobre o motivo de indiviacuteduos diferentes produzirem a mesma realidade Isso ocorre porque o objeto em si natildeo eacute o elemento mais importante e sim o fato de que sua realidade seja compartilhada com outro constituinte do sistema Eacute a associaccedilatildeo gerada pelo compartilhamento desta manifestaccedilatildeo que os mantecircm em conexatildeo garantindo aos integrantes uma funcionalidade que eacute a razatildeo de sua existecircncia
102 | Temas em Neurociecircncias
Entendemos que a materialidade natildeo eacute algo intriacutenseco mas resultado da necessidade de associaccedilatildeo Desta maneira tal qual um arranjo molecular todo sistema social eacute pautado nessa concepccedilatildeo uma vez que criamos grupos porque comungamos de uma mesma conveniecircncia A existecircncia de um evento comum eacute sustentada pela necessidade de manter o grupo A crenccedila compartilhada de que algo exista fornece uma qualidade que sustenta o sistema natildeo pela existecircncia do objeto ou evento propriamente dito mas pelo agrupamento motivado por esta crenccedila
A partir deste momento para manter a associaccedilatildeo cada elemento toma para si uma funccedilatildeo baseada em sua proacutepria conveniecircncia e constroacutei sua proacutepria concepccedilatildeo de universo A manutenccedilatildeo das conexotildees garante sua importacircncia diante do sistema por ele criado Eacute por isso que o indiviacuteduo desenvolve seus valores e prerrogativas sempre na tentativa de sustentar seu mundo Esta atitude eacute uma maneira de garantir o controle das interaccedilotildees que ele manteacutem com o sistema
Estar consciente de sua funccedilatildeo frente a uma determinada organizaccedilatildeo eacute o maior desafio do indiviacuteduo Um mesmo indiviacuteduo pode participar de sistemas diferentes com funccedilotildees diferentes por exemplo no trabalho ele pode ser um teacutecnico em informaacutetica em casa ser pai na escola ser professor ou aluno
Natildeo haacute uma essecircncia uacutenica e sim uma habilidade fantaacutestica de modular funccedilotildees no entanto esta habilidade passa despercebida pela maioria das pessoas que acreditam ter uma soacute face uma base primordial soacute que na verdade temos muacuteltiplas faces Ao assumir que possuiacutemos uma essecircncia rejeitamos o exerciacutecio de modularmos nossas funccedilotildees em prol de uma busca quixotesca de nosso bloco fundamental tal qual a ciecircncia o fez sem sucesso Essa postura de dizer que nossa essecircncia permite ou natildeo tal coisa eacute uma maneira de terceirizar nossa responsabilidade diante das nossas relaccedilotildees
A manutenccedilatildeo destas relaccedilotildees exige adaptaccedilotildees funcionais pois caso um dos integrantes natildeo consiga mais executar dada funccedilatildeo outros poderatildeo exercecirc-la (anaacutelogo agrave plasticidade cerebral) Para responder a um certo niacutevel de interferecircncia o sistema entra em um movimento auto-organizativo onde eacute necessaacuterio por vezes uma
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 103
adaptaccedilatildeo na execuccedilatildeo de tarefas o que chamamos anteriormente de redundacircncia funcional
A partir desta necessidade sistecircmica os integrantes tecircm duas possibilidades promover conscientemente esta modulaccedilatildeo funcional e o conjunto evolui ou insistir em manter a mesma funccedilatildeo o que significa buscar outro sistema para exercecirc-la
A insistecircncia em manter a mesma funccedilatildeo eacute causada pela estabilidade energeacutetica e sendo assim desprovidos desta reflexatildeo indiviacuteduos que natildeo desenvolvem essa habilidade preferem mudar de ambiente a modular suas funccedilotildees As vezes essa falta de percepccedilatildeo eacute tamanha que o indiviacuteduo natildeo se encaixa em nenhum outro sistema perdendo efetivamente sua funccedilatildeo e consequentemente sua importacircncia e razatildeo de existir A hipoacutetese vem mostrar que como qualquer conjunto de elementos noacutes como seres sociais fazemos essas adaptaccedilotildees a todo momento A crenccedila em uma uacutenica funccedilatildeo eacute o que determina o individualismo e atribui ao elemento uma importacircncia intriacutenseca que ele verdadeiramente natildeo tem exatamente da mesma forma que atribuiacutemos qualidades intriacutensecas agrave mateacuteria
Na verdade quando uma ou mais qualidades se manifestam naquele lapso temporal elas satildeo uacutenicas e isto faz com que acreditemos que sejam inerentes mas soacute o satildeo diante da necessidade daquele instante
Consideraccedilotildees Finais
O intuito do trabalho foi sugerir argumentos que permitam uma descriccedilatildeo da realidade vinculada agrave necessidade de associaccedilatildeo e formaccedilatildeo de sistemas fiacutesicos
A percepccedilatildeo da realidade eacute resultado de um processo auto organizativo das redes neurais desencadeada por elementos influenciadores que podem ser captados por nossos sentidos ou estimulados diretamente em vias corticais
A HCF revela que importacircncia da associaccedilatildeo natildeo deve ser considerada apenas como requisito de nossa construccedilatildeo da realidade mas sugere que todas as manifestaccedilotildees daquilo que entendemos
104 | Temas em Neurociecircncias
como propriedades intriacutensecas da mateacuteria satildeo resultados desta necessidade de formaccedilatildeo de sistemas
Tais propriedades dependem do seu estado peculiar de associaccedilatildeo e manifestam-se naquilo que for mais funcional e portanto mais conveniente agrave formaccedilatildeo de sistemas Desta maneira propomos que a funcionalidade seja a causa do arranjo espaccedilo-temporal (Forma) de um conjunto de partiacuteculas e que a predisposiccedilatildeo deste arranjo seja considerada uma propriedade das mesmas tal qual a massa carga eleacutetrica cor sabor
Na verdade intuiacutemos que estas propriedades satildeo recursos que a partiacutecula desenvolve para se associar e assim sendo natildeo satildeo proacuteprias da partiacutecula mas resultado de suas conexotildees Sob esta perspectiva as qualidades da mateacuteria satildeo criadas mediante a necessidade de se auto-organizar em um arranjo funcional no contexto do sistema no qual observador e observado integram o que chamamos de realidade A uacutenica propriedade fundamental do sistema seja ele constituiacutedo por partiacuteculas ou pessoas eacute a associaccedilatildeo o arranjo a auto-organizaccedilatildeo que em nosso trabalho denominamos de Forma
A causaccedilatildeo formativa (campo moacuterfico) parece se antecipar a todas as propriedades da mateacuteria desmistificando a inerecircncia das mesmas e vinculando-as a conveniecircncia funcional Daiacute o nome de Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional A existecircncia estaacute no funcional e a realidade encontra-se na conveniecircncia do sistema
A Hipoacutetese da Conveniecircncia Funcional Um Estudo sobre as Qualidades da Mateacuteria | 105
Referecircncias
Araujo C A A (2006) Ciencia como forma de conhecimento Ciecircncia e Cogniccedilatildeo
Blanke O (2004) Out of Body experience and autoscopy of neurological origin Brain a journal of neurology 127 243-258
Castellani O C (2001) Discussatildeo dos Conceitos de Massa Inercial e Massa Gravitacional Revista Brasileira de Ensino de Fiacutesica Satildeo Paulo 23
Chalmers D J (1995) Facing up to the problem of consciusness Journal of consciusness studies 200-219
Damaacutesio A (2000) O misteacuterio da consciecircncia Satildeo paulo Companhia das Letras
Debrun M (1996) Auto-organizaccedilatildeo estudos interdisciplinares Campinas Unicamp Centro de Loacutegica Epistemologia e Histoacuteria da Ciecircncia 18(221) 313-347
EINSTEIN A (1936) Physics and Reality Journal of the Franklin Institute 221 313-347
Feynman R (1985) The character of physical law Twelfth ed London The British Broadcasting Corporation 129 p
Gleiser M (2010) Ciecircncia Satildeo Paulo Disponivel em lthttpswww1folhauolcombrfspcienciafe2908201004htmgt
Goswami A (1998) O universo autoconsciente Como a consciencia cria o mundo material 2ordf ed Rio de Janeiro Rosa dos Tempos
Kelly G A (1963) A theory of personality - The psicology of personal constructs New York WW Norton amp Company
Kist C amp Garattoni B (2012) Descubra as mentiras que o seu ceacuterebro conta para vocecirc Super interessante
Maturana H amp Varela F (1995) A aacutervore do conhecimento as bases bioloacutegicas do entendimento humano Campinas Editorial PSY II
Moreira M A O (2009) Modelo Padratildeo da Fiacutesica de Partiacuteculas Revista Brasileira de Ensino de Fiacutesica 31 1306-2
Nussenzveig M H (2001) Curso de Fiacutesica Basica [Sl] Edgar Blucher v IIIIIIIV
Patil Y S Chakram S amp Vengalattore M (2015) Measurement-Induced Localization of an Ultracold Lattice Gas Physical Review Letters 115 140-402
Prigogine I amp Glansdorff P (1971) Struture stabiliteacute et fluctuations Paris Mason
Rovelli C A (2017) Realidade natildeo eacute o que parece 1ordf ed Rio de Janeiro Objetiva
Sheldrake R A (1981) New cience of life The hypothesis of morphic resonance London Blond amp Briggs
106 | Temas em Neurociecircncias
Young H D amp Freedman R A (2004) Fiacutesica III Eletromagnetismo Satildeo Paulo Addison Wesley
Zingano M (2003) Forma Mateacuteria e Definiccedilatildeo na Metafiacutesica de Aristoacuteteles Caderno de Histoacuteria e Filosofia da CiecircnciaUSP Campinas 13 277-299
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo Existe Correlaccedilatildeo e em ateacute que Ponto
Joseacute Luciano Tavares da SilvaUniversidade Estadual de Londrina
Josiane Ceciacutelia LuziaUniversidade Estadual de Londrina
Introduccedilatildeo
Uma coleccedilatildeo de anotaccedilotildees e cartas escritas por pessoas prestes a serem executadas apoacutes serem acusadas de ajudar judeus a sobreviver no decorrer da segunda guerra mundial mostra algo interessante Todos os relatos escritos por pessoas com muita feacute ou crianccedilas apresentam uma semelhanccedila entre si (de esperanccedila talvez) exceto pelo relato de um homem ateu de dezenove anos que se envolvera com o movimento de resistecircncia em busca de aventura Suas cartas diferiam de todas as outras pois ele era o uacutenico que tinha medo da morte (Mlodinow 2012)
Aparentemente a maioria dos seres humanos eacute constituiacuteda para acreditar que a morte natildeo eacute o final da existecircncia Isso nos eacute inerente considerando que eacute muito difiacutecil conceber que um dia simplesmente ldquodeixaremos de existirrdquo Provavelmente a maioria tambeacutem haacute de concordar que tudo aquilo que vivenciamos no decorrer da vida (pensamentos sensaccedilotildees lembranccedilas sonhos emoccedilotildees e outros) devemos agrave atividade cerebral
Todavia muita gente acredita que embora relacionada ao ceacuterebro a ldquomenterdquo poderia existir de forma independente de sua atividade possuindo um aspecto ldquoeteacutereordquo ou ldquodivinordquo que lhe possibilitaria sobreviver apoacutes a morte encefaacutelica Ou seja Deus criou
Autor para correspondecircncia jlucianotavares
gmailcom
5
108 | Temas em Neurociecircncias
o ceacuterebro e a mente que satildeo relacionados entre si mas apenas ateacute certo ponto
Para as neurociecircncias no entanto a coisa natildeo eacute bem assim Natildeo foi Deus quem criou o ceacuterebro mas sim o ceacuterebro quem criou Deus Ou seja a religiosidade e crenccedila na vida apoacutes a morte nada mais eacute que um subterfuacutegio criado pelo ceacuterebro para nos consolar frente ao fim inevitaacutevel
De forma semelhante ao fato de todas as culturas demonstrarem propensatildeo para desenvolver um idioma todas demonstram claramente propensatildeo para desenvolver uma religiatildeo e crenccedila numa realidade espiritual O termo ldquoespiritualrdquo eacute geralmente aplicado a qualquer essecircncia humana que nos conecte a um mundo invisiacutevel que desafia a mediccedilatildeo cientiacutefica mas que no entanto acreditamos e sentimos existir deixando vestiacutegios aqui e ali Pode referir-se ainda a qualquer coisa transcendente ou algo que nos move ou transporta profundamente e nos conecta de uma maneira ou de outra a algo maior que noacutes mesmos (Nelson 2012)
Enquanto a espiritualidade apresenta um contexto individual o aspecto religioso apresenta contexto social como participar de uma organizaccedilatildeo com tradiccedilotildees costumes doutrinas e crenccedilas (Nelson 2012) Os impulsos religiosos e espirituais geralmente trabalham simultaneamente para ajudar a fortalecer a crenccedila em um deus e na igreja pois certos costumes religiosos como contemplaccedilatildeo canto oraccedilatildeo e engajamento em rituais podem evocar experiecircncias espirituais (Alper 2008)
Embora o aspecto espiritual apresente iacutentima relaccedilatildeo com o religioso tal relaccedilatildeo natildeo eacute exclusiva considerando que a espiritualidade pode existir sem a presenccedila obrigatoacuteria das doutrinas religiosas (Niekerk 2018) Assim eacute possiacutevel uma pessoa ser altamente religiosa (devotada agrave doutrina e ao ritual da igreja) embora completamente incapaz de ter uma experiecircncia espiritual Inversamente eacute igualmente possiacutevel que algueacutem seja altamente espiritual embora nem um pouco religioso (Alper 2008)
Historicamente muito do que seria agora experiecircncia espiritual aconteceu dentro de religiotildees estabelecidas (a palavra ldquoespiacuteritordquo por exemplo eacute mencionada em toda a Biacuteblia judaico-cristatilde) mas com a ascensatildeo do secularismo no final do seacuteculo XIX e no iniacutecio do
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 109
seacuteculo XX a palavra ldquoespiritualrdquo adquiriu significados fora da religiatildeo organizada uma podendo existir de forma independente da outra (Nelson 2012)
Todavia muitas tentativas de definir religiatildeo pareciam estar definindo na verdade a espiritualidade jaacute que esta tambeacutem pode pressupor algumas doutrinas (meditaccedilatildeo ou ldquoreza contemplativardquo por exemplo) que sobrepotildeem-se agraves doutrinas religiosas Assim parece que aqueles que se declaram ldquoespirituais mas natildeo religiososrdquo apresentam uma compreensatildeo empobrecida da espiritualidade (Carey 2018)
As religiotildees de forma geral pregam a existecircncia de ldquovida apoacutes a morterdquo de maneira que a morte pode representar um novo comeccedilo uma passagem para uma outra vida onde nos reunimos com os entes queridos e vivemos eternamente em um paraiacuteso fantaacutestico Esta crenccedila eacute comum na maioria das doutrinas teoloacutegicas sendo solidificadas pelos relatos de pessoas que passaram pelas denominadas ldquoexperiecircncias de quase-morterdquo que seratildeo discutidas adiante Apesar dessas experiecircncias deixarem uma marca indeleacutevel na vida do indiviacuteduo muitas vezes reduzindo qualquer medo de morte preacute-existente haacute quem defenda que todos seus aspectos apresentem base neurofisioloacutegica ou psicoloacutegica (Mobbs amp Watt 2011)
Determinados estados de consciecircncia atingidos por motivos neuroloacutegicos ou mesmo induzidos em laboratoacuterio podem promover a experiecircncia de certos aspectos da realidade que natildeo estatildeo disponiacuteveis em outros estados descartando possiacutevel fingimento ou confabulaccedilatildeo de quem passa pela experiecircncia (Beauregard amp OrsquoLeary 2007)
Mesmo neurocientistas renomados e portanto em sua maioria ceacuteticos em relaccedilatildeo agrave existecircncia do mundo espiritual podem em algum momento viver experiecircncias que os fazem mudar de opiniatildeo De fato o neurocirurgiatildeo e neurocientista da Universidade Harvard Eben Alexander III em livro publicado no Brasil com o tiacutetulo ldquoUma prova do ceacuteurdquo relata sua experiecircncia transcendente apoacutes permanecer entre a vida e a morte (Alexander 2013) Tal fato indica que sendo as experiecircncias espirituais ou religiosas natildeo importando o niacutevel de transcendecircncia que esta alcance apenas fenocircmenos criados pela atividade encefaacutelica sem duacutevida alguma podem convencer mesmo
110 | Temas em Neurociecircncias
aqueles que cuja vida profissional resuma-se a estudar o sistema nervoso de que vecircm de ldquoforardquo deste imitando de forma prodigiosa a percepccedilatildeo do mundo real
Para o psicoacutelogo e escritor Michael Shermer famoso por suas criacuteticas ao que ele denomina ldquopseudociecircnciasrdquo os sistemas que nos fazem crer em algo sobrenatural satildeo poderosos Funcionando como uma espeacutecie de ldquomaacutequina de crenccedilardquo o ceacuterebro busca e encontra padrotildees para os quais infunde significado com objetivo de obter explicaccedilotildees sobre o porquecirc das coisas acontecerem Tais padrotildees significativos tornar-se-atildeo as crenccedilas que uma vez constituiacutedas induzem o ceacuterebro a procurar e encontrar evidecircncias que as reforcem e confirmem (Shermer 2012) A capacidade de encontrar padrotildees eacute tatildeo importante para a sobrevivecircncia que o ceacuterebro passa a identificar alguns padrotildees imaginaacuterios sem considerar exemplos genuiacutenos de causa e efeito (Wiseman 2017)
Enquanto o princiacutepio religioso ou espiritual aceita determinados fenocircmenos ditos ldquoparanormaisrdquo pela crenccedila ou feacute um dos princiacutepios fundamentais da ciecircncia eacute que toda accedilatildeo produz um efeito e todo efeito apresenta uma causa a princiacutepio explicaacutevel do ponto de vista cientiacutefico Natildeo haacute portanto espaccedilo para a possibilidade de determinados fenocircmenos considerados por muitos como ldquoparanormaisrdquo serem outra coisa a natildeo ser ilusotildees criadas pelo ceacuterebro
Contudo nem todos os fenocircmenos ditos ldquoparanormaisrdquo apresentam soacutelida base neurocientiacutefica tendo em vista existirem algumas evidecircncias cujas causas ainda encontram-se aleacutem da explicaccedilatildeo pelos meacutetodos investigativos utilizados natildeo significando contudo que natildeo poderatildeo ser explicados posteriormente (Greyson Holden amp Lommel 2012)
Objetivo Geral
Estabelecer ateacute que ponto fenocircmenos considerados espirituais sob o ponto de vista religioso ou ldquoparanormaisrdquo podem ser explicados pelas neurociecircncias
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 111
Objetivos Especiacuteficos
bull Enumerar fenocircmenos que podem ser considerados pelo puacuteblico em geral como indicativos de paranormalidade
bull Confrontar tais fenocircmenos a princiacutepio paranormais com estudos publicados e que inferem para estes explicaccedilotildees plausiacuteveis do ponto de vista cientiacutefico
bull Verificar ateacute que ponto tais fenocircmenos podem ou natildeo ser explicados agrave luz das neurociecircncias e o que pode-se concluir a partir de tal verificaccedilatildeo
Desenvolvimento
Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo
O falecido astrofiacutesico Carl Sagan em uma das passagens do livro ldquoO mundo assombrado pelos democircniosrdquo (Sagan 2006) relata a suposiccedilatildeo de algueacutem afirmando o seguinte ldquoum dragatildeo que cospe fogo pelas ventas vive em minha garagemrdquo Na esperanccedila de verificar por si mesmo a existecircncia de um dragatildeo ao vivo e a cores vocecirc pede a quem afirmou que lhe mostre o bicho O problema eacute que o dragatildeo eacute invisiacutevel e vocecirc natildeo pode vecirc-lo Daiacute vocecirc propotildee espalhar farinha no chatildeo da garagem para tornar visiacuteveis as pegadas do dragatildeo O problema eacute que ele flutua pelo ar e natildeo deixa pegadas Em seguida a proposta eacute utilizar um sensor infravermelho para detectar o fogo invisiacutevel O problema eacute que o fogo que o dragatildeo produz eacute desprovido de calor A proposta entatildeo eacute borrifar tinta no dragatildeo para tornaacute-lo visiacutevel O problema eacute que trata-se de um dragatildeo incorpoacutereo e a tinta natildeo iraacute aderir e assim por diante Qual seria entatildeo a diferenccedila entre o suposto dragatildeo e um dragatildeo inexistente
ldquoTodos os processos mentais mesmo os processos psicoloacutegicos mais complexos adveacutem de operaccedilotildees no ceacuterebrordquo A afirmaccedilatildeo de Erik Kandel (Kandel Schwartz Jessell Siegelbaum amp Siegelbaum 2014) um dos mais renomados neurocientistas da atualidade eacute incisiva no que tange agraves experiecircncias aparentemente ldquosem explicaccedilatildeordquo pelas ciecircncias naturais
Ainda nos primoacuterdios da ciecircncia ocidental no seacuteculo XVII Reneacute Descartes apresentava uma visatildeo dualiacutestica com distinccedilatildeo entre o que
112 | Temas em Neurociecircncias
seria denominado ldquomenterdquo e ldquoceacuterebrordquo Nesta interpretaccedilatildeo o ldquoceacuterebrordquo exerceria funccedilotildees tambeacutem observadas em animais inferiores tais como percepccedilatildeo memoacuteria atividades motoras desejos e paixotildees ao passo que a ldquomenterdquo teria uma conotaccedilatildeo ldquoeteacutereardquo exclusiva do ser humano Tal conotaccedilatildeo representaria a ldquoalmardquo ou ldquoespiacuteritordquo cuja comunicaccedilatildeo com o ldquoceacuterebro animalrdquo ocorreria por intermeacutedio da glacircndula pineal localizada no centro do ceacuterebro No entanto apoacutes casos documentados de pacientes neuroloacutegicos afetados por lesotildees encefaacutelicas e que deixaram claro que a separaccedilatildeo entre ldquomenterdquo e ldquoceacuterebrordquo natildeo fazia o menor sentido tal dualidade caiu por terra (Damaacutesio 2005)
Mesmo assim as propriedades da mente aparentam ser tatildeo radicalmente diferentes das propriedades da mateacuteria viva um fenocircmeno agrave parte quando em comparaccedilatildeo com os encontrados nos tecidos bioloacutegicos que por vezes eacute difiacutecil acreditar que a primeira deriva desta uacuteltima
A mente dotada de subjetividade eacute denominada ldquomente conscienterdquo ou apenas ldquoconsciecircnciardquo (Damaacutesio 2011) cuja construccedilatildeo misteriosa pelo ceacuterebro humano eacute um tema que certamente ainda renderaacute deacutecadas de pesquisa cientiacutefica Sendo a mente derivada do ceacuterebro nossas lembranccedilas e personalidade estatildeo armazenadas em seus padrotildees e coacutedigos neuronais Se este morre obviamente os neurocircnios e tais padrotildees e conexotildees se rompem destruindo irreversivelmente nossas lembranccedilas e personalidade natildeo restando absolutamente nada no que diz respeito agrave consciecircncia a qual simplesmente deixa de existir O problema eacute que ldquodeixar de existirrdquo pode parecer agrave primeira vista simplesmente inconcebiacutevel levando agrave crenccedila de que apoacutes a morte do corpo a mente continuaria existindo de uma forma eteacuterea como alma ou espiacuterito
Assim o ceacuterebro seria apenas o lado ldquofisicordquo ao passo que a ldquomenterdquo seria representada pela ldquoalmardquo A explicaccedilatildeo da mente com base na atividade encefaacutelica eacute a crenccedila dos denominados ldquomonistasrdquo ao passo que os ldquodualistasrdquo defendem a existecircncia de mente e ceacuterebro separadamente Diferente do monismo que eacute contraintuitivo a crenccedila no dualismo eacute intuitivo e por isso atribuia atividade mental a uma fonte independente da funccedilatildeo cerebral (Shermer 2012)
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 113
Pensando na proacutepria finitude e preocupados com o que nos aguarda de maneira inevitaacutevel num futuro mais ou menos proacuteximo talvez tenhamos simplesmente ldquoinventadordquo a ldquovida apoacutes a morterdquo ou ldquovida espiritualrdquo Por outro lado inuacutemeros relatos de pessoas que vivenciaram fenocircmenos ditos ldquoparanormaisrdquo ou natildeo explicaacuteveis pelas ciecircncias naturais (pelo menos para tais pessoas) datildeo a entender que tais fenocircmenos satildeo a prova da existecircncia do ldquooutro ladordquo
A seguir abordaremos alguns fenocircmenos considerados por muitos como paranormais e como a neurociecircncia pode (ou natildeo) explicaacute-los
Familiaridade com o que Ainda natildeo Havia Ocorrido o deacutejagrave vu
O termo deacutejagrave vu trata-se da expressatildeo no idioma francecircs para ldquo jaacute vistordquo ou seja eacute a impressatildeo de que determinado momento jaacute foi vivenciado anteriormente (poreacutem sabendo por intermeacutedio de lembranccedila consciente que tal fato natildeo ocorreu realmente) O fenocircmeno geralmente eacute acompanhado por crenccedilas de prediccedilatildeo ou profecia incluindo lembranccedilas de encarnaccedilotildees passadas sonhos profeacuteticos ou outros fatores sejam estes naturais ou sobrenaturais
Na verdade o deacutejagrave vu eacute uma experiecircncia bastante comum e normal sendo que a maioria das pessoas jaacute o vivenciaram ao menos uma vez na vida (OacuteConnor Barnier amp Cox 2008) mas cujo mecanismo exato ainda eacute desconhecido
Uma das teorias que foram associadas agrave ocorrecircncia de deacutejagrave vu a denominada ldquoteoria da via duplardquo tornou-se popular no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX sendo ainda frequentemente citada como a explicaccedilatildeo do fenocircmeno devido agrave sua plausibilidade intuitiva A teoria propotildee que o deacutejagrave vu eacute experimentado quando sinais sensoriais transmitidos por mais de uma via neuronal natildeo convergem nas aacutereas corticais no mesmo momento preciso fazendo com que o ceacuterebro interprete mal um uacutenico encontro como uma experiecircncia duplicada Como a diferenccedila entre a entrada das duas vias tem apenas milissegundos de duraccedilatildeo a primeira experiecircncia neuronal natildeo eacute codificada como um evento em si e portanto natildeo eacute lembrada desencadeando uma sensaccedilatildeo de familiaridade com um passado
114 | Temas em Neurociecircncias
indefinido quando a segunda experiecircncia neuronal eacute encontrada Foi proposto que a sensaccedilatildeo origina-se nos nervos oacutepticos e portanto o deacutejagrave vu resultaria de um atraso no percurso das vias oacutepticas O problema com esta explicaccedilatildeo eacute que o fenocircmeno tambeacutem ocorre com a participaccedilatildeo de outros sentidos como audiccedilatildeo tato e olfaccedilatildeo aleacutem de ocorrer tambeacutem em pessoas cegas (OacuteConnor amp Moulin 2006)
Embora outras explicaccedilotildees tenham sido sugeridas como processos cognitivos momentaneamente fora de sincronia ou desatenccedilatildeo (Brown 2003) sabe-se atualmente que o deacutejagrave vu estaacute associado a alteraccedilotildees fisioloacutegicas normais e tambeacutem patoloacutegicas em determinadas aacutereas encefaacutelicas Do ponto de vista fisioloacutegico relaciona-se com atividade momentaneamente anormal de aacutereas associadas direta ou indiretamente agrave sensaccedilatildeo de familiaridade e memoacuteria Em condiccedilotildees patoloacutegicas pode estar presente tanto em disfunccedilotildees neuroloacutegicas como a epilepsia do lobo temporal (onde se localizam as estruturas que respondem pela memoacuteria e familiaridade) que seraacute abordada nesta revisatildeo quanto anormalidades de fundo psiquiaacutetrico como a esquizofrenia (Pašić et al 2018)
Em estudo com pacientes epileacuteticos pacientes neuroloacutegicos e pessoas normais Warren-Gash e Zeman (2014) avaliaram a prevalecircncia de deacutejagrave vu em 150 indiviacuteduos sendo 50 pacientes epileacuteticos 50 pacientes neuroloacutegicos sem epilepsia e 50 estudantes saudaacuteveis verificando que 100 dos pacientes epileacuteticos 735 dos pacientes neuroloacutegicos e 88 dos estudantes haviam experimentado o deacutejagrave vu ao menos uma vez na vida Segundo Brown (2003) a frequecircncia tende a diminuir com a idade o que explica a maior frequecircncia em estudantes (mais jovens) quando em comparaccedilatildeo com pacientes neuroloacutegicos
Haacute contudo diferenccedilas entre os sintomas do deacutejagrave vu normal ou fisioloacutegico e o patoloacutegico Diferentemente do deacutejagrave vu fisioloacutegico (onde a sensaccedilatildeo restringe-se agrave familiaridade com determinada situaccedilatildeo ainda natildeo vivenciada) no fenocircmeno associado agrave epilepsia (deacutejagrave vu ictal) os pacientes apresentam maior propensatildeo a relatar sintomas como fadiga preacutevia desrealizaccedilatildeo alucinaccedilotildees olfativas e gustativas dores de cabeccedila sensaccedilotildees abdominais e medo (Warren-Gash amp Zeman 2014)
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 115
O deacutejagrave vu ictal geralmente origina-se em uma rede neural que inclui estruturas do lobo temporal medial notadamente o coacutertex rinal constituiacutedo pelos coacutertices perirrinal e entorrinal responsaacuteveis pela sensaccedilatildeo de ldquofamiliaridaderdquo (Guedj Aubert McGonigal Mundler amp Bartolomei 2010 Takeda et al 2011 Bartolomei et al 2012 Brandt Eysenck Nielsen amp Oertzen 2016) os quais localizam-se adjacentes ao hipocampo estrutura relacionada agrave memoacuteria expliacutecita
Ao estudar aacutereas encefaacutelicas associadas ao reconhecimento de faces e palavras sejam estas familiares ou natildeo Brandt et al (2016) confirmaram que dano ao coacutertex entorrinal esquerdo acarreta prejuiacutezo no processo de familiaridade em relaccedilatildeo a uma lista de palavras deixando contudo o processo de lembranccedila intacto Esses resultados sugerem que o coacutertex entorrinal suporta a memoacuteria de reconhecimento baseada na familiaridade (livre de contexto) e que a familiaridade e a lembranccedila satildeo subservidas por regiotildees distintas dentro dos lobos temporais mediais
Takeda et al (2011) relatam a presenccedila de constante deacutejagrave vu em paciente cujo exame de Cintilografia de Perfusatildeo Cerebral (conhecida pelo acrocircnomo SPECT que vem do inglecircs Single Photon Emission Computed Tomography) indicava hiperperfusatildeo e foco epileacutetico localizado no coacutertex rinal mais especificamente coacutertex entorrinal esquerdo A sensaccedilatildeo de familiaridade era de tal maneira persistente que o paciente descrevia seu estado como se estivesse vivendo a mesma vida que jaacute havia vivido anteriormente (neste caso denominado usualmente como deacutejagrave veacutecu ou ldquo jaacute vividordquo) O paciente relatava que quando via algueacutem pela primeira vez sentia que jaacute conhecia a pessoa antes quando visitava algum lugar pela primeira vez sentia que jaacute estivera laacute e mesmo quando via notiacutecias na TV ou jornal sentia que jaacute sabia de todas elas com antecedecircncia
Estudando o caso de uma paciente com grave foco epileacutetico seletivo para a mesma regiatildeo (coacutertex entorrinal lateral esquerdo) Brandt Conway James e Oertzen (2018) confirmaram a existecircncia de uma relaccedilatildeo direta entre a atividade anormal desta aacuterea e as experiecircncias de deacutejagrave vu e deacutejagrave veacutecu De maneira semelhante Martin et al (2019) estudando casos de epilepsia de lobo temporal medial tambeacutem relacionada ao coacutertex rinal (peririnal e entorrinal) verificaram que a falsa sensaccedilatildeo de familiaridade no decorrer das crises deve-se agrave atividade do coacutertex rinal mas a preservaccedilatildeo da
116 | Temas em Neurociecircncias
lembranccedila (funccedilatildeo do hipocampo) natildeo eacute obrigatoacuteria para a ocorrecircncia do fenocircmeno Corroborando tais achados o estudo de Curot et al (2019) relata o caso de paciente epileacutetico com danos bilaterais exclusivamente no hipocampo mas com a regiatildeo perirrinal estrutural e funcionalmente intacta Apesar de apresentar amneacutesia grave o paciente ainda relatava episoacutedios tanto de deacutejagrave vu quanto de deacutejagrave veacutecu mostrando que os fenocircmenos podem ocorrer mesmo em casos de hipocampos massivamente danificados e confirmando que a regiatildeo do coacutertex perirrinal apresenta papel central em sua ocorrecircncia
Em se tratando do deacutejagrave vu fisioloacutegico o estudo de Braacutezdil et al (2012) realizado em sujeitos saudaacuteveis com ou sem relatos do fenocircmeno mostrou quantidade significativamente menor de substacircncia cinzenta em regiotildees corticais (com predomiacutenio no lobo temporal medial) e subcorticais de indiviacuteduos que relataram passar pela experiecircncia Nessas regiotildees o volume de massa cinzenta foi inversamente correlacionado com a frequecircncia dos episoacutedios apoiando uma explicaccedilatildeo neuroloacutegica para o fenocircmeno
Pešlovaacute et al (2018) tambeacutem encontraram relaccedilotildees entre o deacutejagrave vu fisioloacutegico e a diminuiccedilatildeo no volume de substacircncia cinzenta de determinados subaacutereas do hipocampo Como a funccedilatildeo de memoacuteria parece exigir o envolvimento coordenado do hipocampo com toda a rede localizada no lobo temporal medial eacute possiacutevel que o deacutejagrave vu fisioloacutegico resulte de sinalizaccedilatildeo aberrante dentro desse circuito envolvendo interaccedilotildees neurais que produzem um sentimento errocircneo de familiaridade (Shaw Marecek amp Braacutezdil 2016)
Aparentemente tambeacutem haacute uma relaccedilatildeo entre a incidecircncia de episoacutedios de deacutejagrave vu e niacuteveis elevados de estresse e fadiga conforme demonstrado por Wells OrsquoConnor e Moulin (2018) que observaram maior frequecircncia do fenocircmeno em pessoas com ansiedade cliacutenica notadamente em periacuteodos em que esta ansiedade estaacute mais exacerbada Tais pacientes tambeacutem apresentam maior anguacutestia durante os episoacutedios em comparaccedilatildeo a controles saudaacuteveis
Urquhart Sivakumaran Macfarlane e OrsquoConnor (2018) utilizaram metodologia para gerar familiaridade e novidade dentro de um anaacutelogo deacutejagrave vu em sujeitos neurologicamente saudaacuteveis Por intermeacutedio da combinaccedilatildeo de familiaridade gerada experimentalmente e sugestotildees que indicavam que esta estava incorreta foi gerado um conflito
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 117
cognitivo nos participantes Foram coletados dados de ressonacircncia magneacutetica funcional (fMRI) e comportamentais de 21 participantes 16 dos quais relataram deacutejagrave vu Os autores inferiram que o deacutejagrave vu trata-se de uma experiecircncia impulsionada por conflitos mnemocircnicos com a participaccedilatildeo dos coacutertices cingulado anterior preacute-frontal medial e parietal Assim regiotildees frontais envolvidas no controle cognitivo monitoramento e resoluccedilatildeo de conflitos podem tambeacutem apresentar um papel na fenomenologia da experiecircncia
Eacute possiacutevel portanto inferir que apesar da possiacutevel participaccedilatildeo de outras estruturas corticais e subcorticais no deacutejagrave vu aparentemente alteraccedilotildees funcionais da atividade no lobo temporal medial mais especificamente do coacutertex rinal apresentam importante papel no advento do fenocircmeno em situaccedilotildees fisioloacutegicas normais mas tambeacutem em determinadas condiccedilotildees patoloacutegicas que envolvam tais aacutereas Contudo conforme indicam Pašić et al (2018) apesar de comum o deacutejagrave vu ainda eacute um fenocircmeno que merece maior investigaccedilatildeo principalmente por meio de abordagens multidisciplinares via cooperaccedilatildeo entre neurobioacutelogos neurologistas neurocientistas psiquiatras e psicoacutelogos experimentais que certamente poderatildeo colaborar de maneira mais eficaz para sua melhor elucidaccedilatildeo
Fenocircmenos Relacionados ao Esquema Corporal
Seres humanos satildeo indiviacuteduos autoconscientes cujo pensamento e comportamento satildeo baseados em processos corporais baacutesicos que transcendem os domiacutenios de sensaccedilatildeo corporal (somatosensaccedilatildeo) e accedilatildeo motora Nosso corpo pode ser visto e suas partes podem ser localizadas no espaccedilo mesmo na escuridatildeo total sabemos para onde estamos indo e podemos sentir o coraccedilatildeo batendo O espaccedilo corporal eacute um espaccedilo multissensorial constituiacutedo continuamente por impressotildees exteroceptivas (taacuteteis visuais olfativas auditivas) proprioceptivas (vestibulares muscularesmotoras) e interoceptivas (viscerais) A sensaccedilatildeo de self ou ldquoeurdquo localizado em determinado lugar no espaccedilo eacute constituiacutedo pelas muacuteltiplas interaccedilotildees entre essas impressotildees (Brugger amp Lenggenhager 2014 Dieguez amp Lopes 2017)
Consequentemente a variedade de distuacuterbios que afetam o corpo de uma pessoa eacute consideraacutevel podendo este ser
118 | Temas em Neurociecircncias
experimentado como ldquoperdidordquo ldquosem pertencerrdquo ldquosem controlerdquo ldquovaziordquo ldquofeiordquo ldquodesapegadordquo ou ateacute mesmo ldquoduplicadordquo Tais distuacuterbios do self abrangem todos os niacuteveis de representaccedilatildeo corporal de membros uacutenicos a todo o corpo em um contexto social (Brugger amp Lenggenhager 2014) e satildeo denominados como distuacuterbios do ldquoesquema corporalrdquo
Os distuacuterbios do esquema corporal podem envolver apenas um lado do corpo sendo classificados como unilaterais ou podem se estender ao corpo todo sendo denominados distuacuterbios natildeo-lateralizados Dentre os distuacuterbios unilaterais pode-se citar os denominados ldquomembros fantasmas supranumeraacuteriosrdquo onde o paciente refere a niacutetida sensaccedilatildeo de apresentar membros adicionais embora invisiacuteveis as ldquohemiassomatognosiasrdquo ou apenas ldquoassomatognosiasrdquo inconsciente e consciente onde na primeira o paciente ignora um dos lados do corpo como se este nunca houvesse existido e na segunda apresenta viacutevida sensaccedilatildeo de que uma parte do corpo desapareceu e por uacuteltimo a ldquosomatoparafreniardquo onde o paciente refere partes de seu corpo como pertencentes a outras pessoas (Dieguez amp Lopes 2017)
A sensaccedilatildeo de membros fantasmas supranumeraacuterios pode ser causada por vaacuterios tipos de lesotildees cerebrais que resultem no comprometimento do sistema de feedback sensorial para o esquema corporal interno e para o movimento (Kim et al 2017) ao passo que as assomatognosias podem resultar de grandes lesotildees envolvendo muacuteltiplos setores temporoparietais e fronto-mediais (Feinberg Venneri Simone Fan amp Northoff 2010)
A assomatognosia e a somatoparafrenia satildeo distuacuterbios semelhantes O primeiro compromete o senso de propriedade sendo caracterizado pela falha do paciente em ter uma sensaccedilatildeo sentimento ou julgamento contiacutenuo de que a parte do corpo (normalmente o membro comprometido) lhe pertence A somatoparafrenia estaacute tipicamente associada a deacuteficits motores e somatossensoriais profundos Com lesotildees maiores envolvendo aleacutem da aacuterea temporoparietal tambeacutem a aacuterea orbitofrontal esta disfunccedilatildeo propicia ao paciente forte senso de desapropriaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao membro comprometido (asomatognosia) juntamente com a atribuiccedilatildeo ilusoacuteria desse membro a outra pessoa (Romano amp Maravita 2019 Feinberg et al 2010)
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 119
Sabe-se haacute deacutecadas que disfunccedilotildees numa determinada regiatildeo encefaacutelica no hemisfeacuterio direito denominada ldquo junccedilatildeo temporoparietalrdquo (JTP) associa-se ao fenocircmeno de somatoparafrenia (Bisiach Rusconi amp Vallar 1991) observando-se a presenccedila de lesotildees nesta aacuterea em vaacuterios pacientes sintomaacuteticos (Vallar amp Ronchi 2009)
Considerando a funccedilatildeo da JTP na integraccedilatildeo das diversas informaccedilotildees sensoriais advindas da periferia ou ldquointegraccedilatildeo multissensorialrdquo (Vallar amp Ronchi 2009) aleacutem de ser forte candidata agrave fonte da autoconsciecircncia e o local onde o self eacute representado (Ionta et al 2011 Cheyne amp Girard 2009) o papel da JTP no ldquoesquema corporalrdquo eacute particularmente relevante
Apesar de ainda natildeo haver um consenso em relaccedilatildeo agrave sua anatomia precisa geralmente a JTP eacute considerada uma aacuterea cortical situada na junccedilatildeo do loacutebulo parietal inferior coacutertex occipital lateral e sulco temporal superior posterior (Mars et al 2012 Donaldson Rinehart amp Enticott 2015) Seja a JTP uma regiatildeo cortical precisamente identificaacutevel ou um grupamento de sub-regiotildees com funccedilotildees separadas sabe-se que ela apresenta papel crucial para o processamento e integraccedilatildeo de muacuteltiplas modalidades sensoriais aleacutem de gerar uma percepccedilatildeo coerente das alteraccedilotildees na autolocalizaccedilatildeo e espaccedilo extrapessoal por intermeacutedio dos diversos referenciais sensoriais que a ela convergem (Kheradmand amp Winnick 2017)
Em se tratando das disfunccedilotildees do esquema corporal natildeo-lateralizadas ou que se estendem ao corpo todo podem-se citar a macrosomatognosia onde o paciente refere que alguma parte de seu corpo aumenta de tamanho podendo por exemplo ldquoocupar o espaccedilo de uma salardquo (Dieguez amp Lopez 2017) aleacutem de outras percepccedilotildees bizarras como alteraccedilatildeo de tamanho e formato do corpo e ilusotildees de mudanccedilas nas formas dimensotildees e movimentos de objetos Por conta disso a macrosomatognosia tambeacutem eacute denominda ldquoSiacutendrome de Alice no Paiacutes das Maravilhasrdquo considerando que as ilusotildees e alucinaccedilotildees se assemelham aos fenocircmenos estranhos que a personagem Alice apresentava no famoso conto de Charles Lutwidge Dodgson (cujo pseudocircnimo era Lewis Carroll) experimentando ele mesmo tais sintomas A anomalia pode derivar de crises epileacuteticas parciais complexas enxaqueca infecccedilotildees ou intoxicaccedilotildees (Fine 2013)
120 | Temas em Neurociecircncias
Outras disfunccedilotildees do esquema corporal que envolvem o corpo todo satildeo os denominados ldquofenocircmenos autoscoacutepicosrdquo ou autoscopia (Dieguez amp Lopez 2017) que culturalmente costumam apresentam explicaccedilotildees ldquosobrenaturaisrdquo e seratildeo tratados detalhadamente a seguir
Autoscopia ou ldquoFenocircmenos Autoscoacutepicosrdquo
O termo ldquoautoscopiardquoderiva do grego autos que significa ldquoegordquo e skopeo que significa ldquoolhar parardquo e eacute utilizado para descrever diferentes fenocircmenos de vaacuterias etiologias e mecanismos (Anzellotti et al 2011)
Do ponto de vista cultural o conceito de autoscopia estaacute incorporado a um grupo de crenccedilas relacionadas agrave ldquobilocaccedilatildeordquo ou suposta capacidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo Considerado por muitos como paranormal e natildeo meacutedico postula que as pessoas podem se dissociar em dois corpos materiais ou em um corpo material e outro com caracteriacutestica ldquoeteacutereardquo Tambeacutem se relaciona agrave noccedilatildeo paranormal de hipoteacuteticos ldquocorpos astraisrdquo que ligam o corpo terrestre a uma representaccedilatildeo astral superior supostamente portadora de energia psiacutequica (Dening amp Berrios 1994)
Na verdade os fenocircmenos autoscoacutepicos tambeacutem fazem parte da gama de disfunccedilotildees relacionadas ao esquema corporal caracterizando-se por experiecircncias visuais ilusoacuterias que consistem na percepccedilatildeo da imagem do proacuteprio corpo no espaccedilo seja de um ponto de vista interno como de um espelho ou de um ponto de vista externo (Anzellotti et al 2011)
A forma mais simples de fenocircmeno autoscoacutepico envolve a sensaccedilatildeo de ldquopresenccedilardquo de algueacutem proacuteximo sem contudo que tal presenccedila seja vista No denominado efeito doppelganger1 o sujeito o percebe como sendo o proacuteprio corpo um ldquoduplordquo tambeacutem visualmente O corpo reduplicado eacute visto ou sua presenccedila eacute ldquosentidardquo a uma distacircncia especiacutefica do proacuteprio corpo uma distacircncia
1 doppelgaumlnger eacute uma palavra advinda da junccedilatildeo em alematildeo de doppel que significa ldquoduplordquo ldquoreacuteplicardquo ou ldquoduplicatardquo e ganger que significa ldquoandanterdquo ldquocaminhanterdquo ou ldquoaquele que vairdquo
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 121
frequentemente estaacutevel dentro de um determinado episoacutedio (Brugger 2002)
A mente literaacuteria geralmente retrata o doppelgaumlnger como um ser que eacute ldquoparte eurdquo ldquoparte outrordquo como um pressaacutegio de morte ou calamidade Agraves vezes este eacute a projeccedilatildeo visiacutevel e tangiacutevel de uma consciecircncia culpada que se torna cada vez mais intoleraacutevel ateacute que por fim a viacutetima ataca violentamente seu duplo e descobre que atacou a si mesma Agraves vezes o duplo eacute invisiacutevel e intangiacutevel mas ainda assim evidencia sua existecircncia (por exemplo bebendo a aacutegua que o sujeito coloca agrave noite na moringa) (Sacks 2013)
As experiecircncias autoscoacutepicas podem ser classificadas principalmente em quatro tipos distintos sensaccedilatildeo de presenccedila alucinaccedilatildeo autoscoacutepica heautoscopia e experiecircncia extracorpoacuterea (Brugger 2002)
Sensaccedilatildeo de ldquoPresenccedilardquo
Nesta sensaccedilatildeo nenhuma impressatildeo visual estaacute envolvida mas frequentemente a presenccedila eacute sentida ldquoagrave margem da visatildeordquo e pode ser relatada por pessoas saudaacuteveis em condiccedilotildees de privaccedilatildeo sensorial ou isolamento social Frequentemente satildeo relatadas sensaccedilotildees referentes a ldquopresenccedilas fantasmagoacutericasrdquo (como se algueacutem ou alguma coisa ldquoinvisiacutevelrdquo estivesse muito proacuteximo) Eacute comumente relatada por pessoas submetidas a niacuteveis intensos de stress como montanhistas exploradores sobreviventes e apoacutes a perda de algueacutem muito proacuteximo como o cocircnjuge por exemplo Tambeacutem podem estar presentes em situaccedilotildees de exaustatildeo e privaccedilatildeo de oxigecircnio e em pessoas acometidas por doenccedilas psiquiaacutetricas ou neuroloacutegicas (Anzellotti et al 2011 Blanke et al 2014)
Pessoas perfeitamente normais por vezes viram-se para surpreender quem a espreita de maneira bem proacutexima mas natildeo veem ningueacutem Embora natildeo experimentem ver a ldquopresenccedilardquo estatildeo convencidos desta podendo inclusive descrever sua localizaccedilatildeo espacial com muita precisatildeo (Blanke Arzy amp Landis 2008)
Apesar de ser comumente associada agrave presenccedila real de algo sobrenatural uma situaccedilatildeo bastante comum que pode acarretar tal sensaccedilatildeo eacute a ldquoparalisia do sonordquo fenocircmeno comum tambeacutem presente
122 | Temas em Neurociecircncias
em pessoas normais e caracterizado por paralisia motora enquanto o sistema sensorial estaacute ativo Tal condiccedilatildeo comumente inclui de maneira simultacircnea a presenccedila de alucinaccedilotildees denominadas hipnagoacutegicas ou hipnopocircmpicas (se no iniacutecio ou final do sono respectivamente) as quais envolvem aleacutem de ver e ouvir tambeacutem sentir uma presenccedila intrusa e ameaccediladora (Jalal amp Ramachandran 2014)
A paralisia do sono vem sendo documentada haacute seacuteculos Em 1664 o meacutedico holandecircs Isbrand Van Diemerbroeck (1609-1674) publicou uma coleccedilatildeo de histoacuterias de casos sendo que uma das quais com o tiacutetulo Of the Night Mare (ldquoDo Pesadelordquo) descreve as experiecircncias noturnas de uma mulher de 50 anos relatando os sintomas claacutessicos da paralisia do sono acompanhados por alucinaccedilotildees hipnagoacutegicas (Kompanje 2008)
durante a noite quando estava se recompondo para dormir agraves vezes acreditava que o diabo estava sobre ela e a segurava agraves vezes que era sufocada por um grande cachorro ou ladratildeo deitado sobre o peito para que mal pudesse falar ou respirar e quando ela se esforccedilou para jogar fora a carga ela natildeo foi capaz de agitar seus membros E enquanto ela estava naquele conflito agraves vezes com grande dificuldade ela acordava Essa afecccedilatildeo eacute denominada iacutencubus ou o night-mare2 que eacute um interceptador do movimento da voz e da respiraccedilatildeo com um sonho falso de algo repousando pesadamente sobre o peito impedindo o livre influxo dos espiacuteritos para os nervos
O medo associa-se a tais alucinaccedilotildees notadamente com a sensaccedilatildeo de presenccedila detectada e contribuem para a elaboraccedilatildeo de outras alucinaccedilotildees em especial as que envolvem experiecircncias visuais (Cheyne Newby-Clark amp Rueffer 1999) Neste ponto a ldquopresenccedila intrusardquo pode assumir formas diversas podendo-se citar os inuacutemeros relatos de pessoas que descrevem de maneira sincera e altamente emotiva a experiecircncia que tiveram ao serem sequestradas por seres extraterrestres Muitos destes relatos aleacutem de absolutamente sinceros apresentam em comum o sentimento aterrorizante de que
2 Mare vem do inglecircs antigo maere que significa gnomo ou iacutencubo (em portuguecircs sonho aflitivo que produz sensaccedilatildeo opressiva pesadelo) Acreditava-se que o tal maere (gnomo) atacava os seres humanos enquanto eles estavam dormindo sentavam-se em seus peitos e produziam uma sensaccedilatildeo de sufocaccedilatildeo dificultando o sono (Barbosa 2010)
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 123
o sujeito encontra-se totalmente paralisado enquanto determinadas criaturas providenciam para que este flutue no ar enquanto ascende em direccedilatildeo a determinada espaccedilonave (Sagan 2006)
No entanto embora sem duacutevida alguma particularmente aterrorizadoras as sensaccedilotildees de presenccedilas intrusivas satildeo explicadas pela neurociecircncia e podem ser recriadas por intermeacutedio de estimulaccedilatildeo eleacutetrica na JTP mesma regiatildeo que pode participar da somatoparafrenia e outras alucinaccedilotildees Ao estudarem o caso de uma jovem que estava sendo avaliada para tratamento de epilepsia com eletrodos colocados sobre a superfiacutecie cortical Arzy Seeck Ortigue Spinelli e Blanke (2006) verificaram que apoacutes estimulaccedilatildeo eleacutetrica na JTP esquerda a paciente relatava tais presenccedilas Estimulaccedilotildees leves com a jovem deitada propiciavam a sensaccedilatildeo de que havia algueacutem deitado atraacutes dela Estiacutemulos mais intensos propiciavam a sensaccedilatildeo mais detalhada de que a presenccedila era de algueacutem jovem poreacutem de sexo inderterminado e tambeacutem deitado na mesma posiccedilatildeo A repeticcedilatildeo do estiacutemulo com ela sentada com os joelhos entre os braccedilos provocava a sensaccedilatildeo de que um ldquohomemrdquo estava sentado atraacutes dela com seus braccedilos ao seu redor Procedendo em seguida a leitura de um texto o ldquohomemrdquo desta vez colocava-se a seu lado direito mas desta vez provocando a sensaccedilatildeo de que a presenccedila tinha intenccedilotildees agressivas Os autores concluiacuteram que a falta de integraccedilatildeo multissensorial eou sensoacuterio-motora na JTP devido agrave estimulaccedilatildeo eleacutetrica pode levar a uma ilusatildeo do proacuteprio corpo como sendo de outra pessoa no espaccedilo extrapessoal proacuteximo Embora a paciente estivesse ciente da semelhanccedila entre seus proacuteprios traccedilos posturais e posicionais e os da pessoa ilusoacuteria ela natildeo reconheceu que essa pessoa era uma ilusatildeo de seu proacuteprio corpo de maneira semelhante ao que ocorre com muitos pacientes esquizofrecircnicos
Aleacutem da JTP aparentemente outras regiotildees encefaacutelicas tambeacutem apresentam funccedilatildeo no processo de integraccedilatildeo multissensorial Tsakiris Hesse Boy Haggard e Fink (2007) verificaram atividade da iacutensula posterior na integraccedilatildeo de informaccedilotildees multissensoriais para decidir sobre a atribuiccedilatildeo de partes do corpo que lhe pertencem mesmo na ausecircncia de informaccedilotildees eferentes (motoras) O estudo de Blanke et al (2014) mostrou que lesotildees no coacutertex insular e especialmente no coacutertex frontoparietal tambeacutem estatildeo associadas agrave maacute-interpretaccedilatildeo da fonte e identidade dos sinais sensoacuterio-
124 | Temas em Neurociecircncias
motores (taacuteteis proprioceptivos e motores) do proacuteprio corpo o que pode gerar a falsa sensaccedilatildeo de presenccedila Neste mesmo estudo os autores tambeacutem induziram tais sensaccedilotildees em pessoas normais por intermeacutedio de um mecanismo roboacutetico que gerou conflitos sensoacuterio-motores nos participantes permitindo induzir nestes a mesma sensaccedilatildeo de presenccedila observada nos pacientes
Outros estudos poreacutem caracterizam a sensaccedilatildeo de presenccedila por motivos diferentes dos observados na autoscopia como o caso descrito por Picard (2010) no qual uma paciente com foco epileacutetico no hemisfeacuterio esquerdo relatou sentir muacuteltiplas presenccedilas inexistentes poreacutem reconhecendo estas como ldquomembros da famiacuteliardquo Como o caso pareceu contradizer a hipoacutetese de fenocircmeno autoscoacutepico que envolve a ldquoreduplicaccedilatildeo neural do proacuteprio corpordquo a autora propocircs que poderia tratar-se de um tipo de alucinaccedilatildeo diferente da autoscopia A parestesia lateralizada no hemicorpo direito juntamente com dados neurorradioloacutegicos indicou provaacutevel origem na iacutensula esquerda que tambeacutem poderia participar do componente emocional relacionado a tais sensaccedilotildees
A sensaccedilatildeo de presenccedila tambeacutem pode ocorrer em doenccedilas neurodegenerativas como a Doenccedila de Parkinson e tambeacutem parece natildeo ir ao encontro do que eacute observado em situaccedilotildees de autoscopia Em muitos casos a sensaccedilatildeo de presenccedila foi identificada como a de um parente preciso iniciando ocasionalmente quando este parente deixa a presenccedila do paciente indicando um gatilho externo Aleacutem disso embora a presenccedila pudesse ser sentida nas proximidades do paciente agraves vezes era localizada em outro cocircmodo ou fora da casa Finalmente em um caso a presenccedila sentida era de um catildeo o que dificilmente eacute consistente com um ldquoeu ilusoacuteriordquo (Fenelon Soulas Langavant Trinkler amp Bachoud-Levi 2011)
Pode-se portanto inferir que atividades anocircmalas de aacutereas neurais que estejam associadas agrave autoconsciecircncia poderiam responder pela falsa sensaccedilatildeo de presenccedila Sabendo-se que a JTP iacutensula e coacutertex frontoparietal integram sinais corporais multissensoriais e satildeo considerados como locais neurais da autoconsciecircncia corporal aparentemente a sensaccedilatildeo de presenccedila de origem autoscoacutepica pode ser consequecircncia de alteraccedilotildees em tais estruturas acarretando uma percepccedilatildeo errocircnea da fonte e identidade dos sinais do proacuteprio corpo (Case Solcagrave Blanke amp Faivre 2020) Contudo em determinadas
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 125
disfunccedilotildees neuropatoloacutegicas eacute possiacutevel que tais sensaccedilotildees possam tambeacutem derivar de fontes diferentes das observadas na autoscopia
Alucinaccedilatildeo Autoscoacutepica
Durante uma alucinaccedilatildeo autoscoacutepica (AH) a pessoa experimenta ver seu ldquooutro corpordquo ou ldquoduplordquo no espaccedilo extracorpoacutereo mas sem a sensaccedilatildeo de ldquosair do proacuteprio corpordquo (ou desencarnaccedilatildeo) Os indiviacuteduos com AH experimentam ver o mundo atraveacutes de sua perspectiva visuo-espacial habitual e experimentam seu self ou ldquocentro de consciecircnciardquo dentro de seus corpos fiacutesicos (Mohr amp Blanke 2005) Este tipo de alucinaccedilatildeo tambeacutem denominada ldquoalucinaccedilatildeo em espelhordquo (do inglecircs mirror-hallucination) geralmente apresenta duraccedilatildeo de apenas alguns minutos e consiste na percepccedilatildeo visual exata de uma imagem de si mesmo como visto num espelho poreacutem natildeo localizando-se como na posiccedilatildeo do outro corpo ilusoacuterio (Anzellotti et al 2011)
A auto-identificaccedilatildeo a auto-localizaccedilatildeo e a perspectiva da primeira pessoa permanecem centradas no corpo fiacutesico com o corpo alucinatoacuterio frequentemente experimentado de maneira invertida como no espelho Considerando a relaccedilatildeo da AH com lesotildees em aacutereas corticais associadas a aspectos visuais a alucinaccedilatildeo eacute vista do lado do campo visual deficiente oposto ao do lado da lesatildeo encefaacutelica (Heydrich amp Blanke 2013)
Brugger (2002) cita o caso de um homem de 41 anos que oito dias depois de ficar cego em consequumlecircncia de um tumor de hipoacutefise repentinamente notou um rosto em sua frente que olhava para ele a uma distacircncia estimada de 60-100 cm A experiecircncia foi inicialmente assustadora mas se acalmou ao reconhecer que o que via era a imagem do proacuteprio rosto Em uma inspeccedilatildeo mais minuciosa notou que sempre via o rosto de frente e que este imitava instantaneamente suas proacuteprias expressotildees faciais O paciente natildeo tinha duacutevidas sobre a ldquoqualidade do espelhordquo da alucinaccedilatildeo enfatizando que quaisquer movimentos faciais produzidos ldquoexperimentalmenterdquo foram copiados em tempo real ldquoexatamente como no espelhordquo
Zamboni Budriesi e Nichelli (2005) descrevem o caso de uma paciente de 30 anos que sofreu hemorragia nos polos occipitais estendendo-se agrave junccedilatildeo parieto-occipital direita por complicaccedilotildees
126 | Temas em Neurociecircncias
cardiovasculares decorrentes de eclampsia Trecircs meses apoacutes a ocorrecircncia a paciente relatou a visatildeo de uma imagem como se estivesse olhando para um espelho que estava constantemente em frente a ela agrave distacircncia de cerca de um metro A imagem era transparente e acompanhava sua visatildeo de tal maneira que aparecia deitada no chatildeo se olhasse para baixo ou no teto se olhasse para cima Usualmente apresentava apenas cabeccedila e ombros mas tambeacutem o restante do corpo se a paciente a explorasse movendo o olhar para baixo aleacutem de vestir-se exatamente como ela Desaparecia quando fechava os olhos e progressivamente desapareceu por completo apoacutes trecircs meses O exame neuroloacutegico durante o periacuteodo de AH mostrou fraqueza do membro inferior direito heminegligecircncia visuo-espacial esquerda3 ataxia oacuteptica4 apraxia ocular5 percepccedilatildeo de profundidade prejudicada agnosia6 grave para objetos prosopagnosia7 e alexia8
Em relato de caso Joshi Thapa e Shakya (2017) verificaram a presenccedila de AH no estado de abstinecircncia de aacutelcool onde o indiviacuteduo enquanto consciente se viu como se olhasse para um espelho por cerca de 3 segundos durante o periacuteodo do amanhecer e do anoitecer O caso indicou possiacutevel associaccedilatildeo entre autoscopia e a siacutendrome de dependecircncia de aacutelcool
Malik Mehra e Jangra (2019) descrevem o caso de uma pessoa jovem do sexo feminino que dentre outros sintomas psiquiaacutetricos como alucinaccedilatildeo auditiva e ilusatildeo de perseguiccedilatildeo eventualmente apresentava medo apontando os dedos em direccedilatildeo agrave parede Ao ser perguntada a razatildeo disso ela dizia ver uma coacutepia sua agrave sua frente a cerca de um metro e meio de distacircncia de seu corpo Ela descreveu a imagem com caracteriacutesticas faciais semelhantes agrave sua como cor e estilo de cabelo dizendo ldquoeacute outro eurdquo Ela dizia que seu duplo aparecia nu para ela e era como sua ldquoimagem no espelhordquo Posteriormente
3 Heminegligecircncia ndash Falta de atenccedilatildeo aos estiacutemulos advindos do lado oposto ao da lesatildeo encefaacutelica com falha em relatar responder ou orientar-se a estiacutemulos significativos A disfunccedilatildeo adveacutem de lesotildees que atingem coacutertex parietal direito e giro supramarginal estendendo-se a aacutereas subcorticais
4 Ataxia Oacuteptica ndash Incapacidade de alcanccedilar corretamente objetos guiados pela visatildeo5 Apraxia Ocular ndash Ausecircncia ou defeito no movimento ocular controlado voluntaacuterio e
intencional6 Agnosia ndash Incapacidade de identificaccedilatildeo7 Prosopagnosia ndash Incapacidade de identificaccedilatildeo de rostos8 Alexia ndash Incapacidade de leitura (Koob Moal amp Thompson 2010)
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 127
foi realizado diagnoacutestico de esquizofrenia e apoacutes alguns meses com tratamento farmacoloacutegico observou-se melhora de 70 a 80
A presenccedila de AH estaacute associada com lesotildees em aacutereas encefaacutelicas mais posteriores nas regiotildees corticais occipito-parietal e occipto-temporal (Blanke amp Mohr 2005) Considerando a normalidade da autoconsciecircncia corporal durante as alucinaccedilotildees os autores especulam se estas satildeo caracterizadas por um distuacuterbio da representaccedilatildeo do proacuteprio corpo causada por danos agraves vias visuais ventrais associadas com a percepccedilatildeo e reconhecimento do corpo humano partes do corpo e faces (Heydrich amp Blanke 2013)
Jonas et al (2014) descrevem os casos de dois pacientes de neurocirurgia por conta de epilepsia o primeiro do sexo masculino e 46 anos e a segunda uma mulher de 24 anos Nenhum dos pacientes relatava AH no decorrer de suas crises e foram submetidos agrave delineaccedilatildeo dos focos epileacuteticos por intermeacutedio de implantaccedilatildeo de eletrodos no lobo temporal medial do paciente 1 e iacutensula posterior do paciente 2 Foram realizadas estimulaccedilotildees intracerebrais visando localizar a zona epileacutetica sem que os pacientes soubessem quando a estimulaccedilatildeo iniciava ou terminava Ao iniciar a estimulaccedilatildeo na parte mais lateral do sulco occiptoparietal direito do primeiro paciente este imediatamente ralatou estar vendo sua proacutepria face e busto no campo visual esquerdo Se a estimulaccedilatildeo ocorresse fora deste local especiacutefico o paciente relatava alucinaccedilotildees com faces desconhecidas A estimulaccedilatildeo tambeacutem no sulco occiptoparietal direito da paciente 2 propiciou alucinaccedilotildees semelhantes em que a paciente relatou estar vendo sua proacutepria imagem como num espelho
Os autores concluiacuteram que a junccedilatildeo occipitoparietal medial regiatildeo que apresenta papel central em vaacuterias operaccedilotildees de autoprocessamento e especialmente no reconhecimento de faces mais particularmente da proacutepria face tambeacutem eacute fundamental na geraccedilatildeo de AH Tal representaccedilatildeo visual do proacuteprio rosto pode ser uacutetil para processos de reconhecimento de face e cogniccedilatildeo social que envolvem julgamento de semelhanccedila facial com outras pessoas
Tambeacutem foram relatadas AHs em desordens neuroloacutegicas (como epilepsia enxaqueca deliacuterio tumor cerebral isquemia e infecccedilatildeo) no contexto de desordens psiquiaacutetricas (como desordens psicoacuteticas desordens do humor distuacuterbios de ansiedade e desordem de
128 | Temas em Neurociecircncias
identidade dissociativa) bem como durante os estados hipnagoacutegicos ou hipnopocircmpicos do sono Aleacutem disso existem alguns relatos de casos de AHs que se manifestam no campo hemianoacutepsico na hemianopsia (perda parcial ou total de metade do campo visual de um ou ambos os olhos) (Blom 2010)
Eacute possivel portanto inferir que AHs tratam-se principalmente de fenocircmenos visuais (com componentes multissensoriais) geralmente de pouca duraccedilatildeo (alguns segundos ou minutos) e podendo ocorrer repetidamente poreacutem sem alteraccedilatildeo no self corporal em que um ldquoeu verdadeirordquo ldquoresiderdquo no ldquomeurdquo corpo e percebe o mundo da perspectiva desse corpo (Case et al 2020)
Heautoscopia
A heautoscopia estaacute localizada em algum ponto entre a autoscopia e a experiecircncia fora do corpo A principal caracteriacutestica desse fenocircmeno eacute alternacircncia entre perceber a proacutepria imagem corporal no espaccedilo extracorpoacutereo da perspectiva do corpo interno e perceber o proacuteprio corpo fiacutesico da perspectiva do duplo extracorpoacutereo (Hoepner et al 2012)
Trata-se de um fenocircmeno autoscoacutepico caracterizado por forte distuacuterbio da auto-consciecircncia corporal incluindo alteraccedilotildees na auto-identificaccedilatildeo alteraccedilotildees emocionais e afinidade com o corpo autoscoacutepico frequentemente associado a alteraccedilotildees na perspectiva da primeira pessoa e na auto-localizaccedilatildeo (Heydrich amp Blanke 2013) Uma alucinaccedilatildeo autoscoacutepica ou ldquoem espelhordquo envolve a reduplicaccedilatildeo puramente visual das proacuteprias caracteriacutesticas enquanto a heautoscopia tambeacutem envolve a projeccedilatildeo de aspectos somesteacutesicos e motores na figura alucinada (Brugger 2005)
A ldquoposse do corpordquo eacute definida como uma experiecircncia imediata e contiacutenua de que nosso corpo pertence a noacutes ao passo que a auto-localizaccedilatildeo eacute definida como a experiecircncia na qual o self (ou personificaccedilatildeo) estaacute localizado em determinada posiccedilatildeo no espaccedilo Neste tipo de alucinaccedilatildeo o paciente observa um ldquoduplordquo de si mesmo no espaccedilo extra pessoal Todavia este ldquoduplordquo natildeo se trata de uma mera imagem ou alucinaccedilatildeo visual pois o self pode ser experimentado como presente na posiccedilatildeo do corpo fiacutesico (quadro
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 129
de referecircncia centrado no corpo) e simultaneamente ou em raacutepida alternacircncia na posiccedilatildeo do corpo duplicado no espaccedilo extra pessoal (Lopez amp Blanke 2007)
Martiacutenez-Horta et al (2020) em estudo de caso com paciente jovem (31 anos) portador de mutaccedilatildeo geneacutetica relacionada agrave doenccedila de Huntington descrevem a presenccedila de sintomas psiquiaacutetricos associados agrave autoscopia (iniciando com a sensaccedilatildeo de presenccedila e daiacute progredindo para experiecircncia extracorpoacuterea e heautoscopia) antes do iniacutecio de sintomas motores O paciente relata que em diversas ocasiotildees quando em relaccedilatildeo sexual com sua parceira foi ldquoexpulso de-repenterdquo de seu corpo por uma terceira pessoa que de fato era ele mesmo mas a quem referiu por ldquooutrordquo Seu self estava localizado em uma perspectiva visuo-espacial elevada da qual foi capaz de olhar para o ldquooutrordquo sendo progressivamente mais agressivo durante a relaccedilatildeo sexual Desta perspectiva extracorporal foi incapaz de retornar a seu corpo fiacutesico sendo preenchido pelo sentimento extremamente frustrante de observar sua parceira tendo relaccedilotildees sexuais com ldquooutro homemrdquo A experiecircncia foi finalizada drasticamente com sua parceira gritando e perguntando porque ele estava sendo tatildeo agressivo
Brugger Agosti Regard Wieser e Landis (1994) descrevem o caso de um sujeito que aos 15 anos comeccedilou a apresentar sinais de epilepsia com crises parciais complexas cujos exames mostraram foco epileptogecircnico no lobo temporal esquerdo Pela manhatilde o paciente sentiu-se tonto e virando-se ele se viu ainda deitado na cama Ele ficou zangado com ldquoesse cara que eu sabia que era eu mesmo e que natildeo acordava e portanto arriscava chegar atrasado no trabalhordquo Ele tentou acordar o corpo na cama primeiro gritando com ele depois tentando sacudi-lo e pulando sobre ele repetidamente O corpo deitado natildeo mostrou reaccedilatildeo Soacute entatildeo o paciente comeccedilou a ficar intrigado com sua dupla existecircncia e a ficar cada vez mais assustado com o fato de natildeo poder mais dizer qual dos dois realmente era Vaacuterias vezes sua consciecircncia corporal passou do que estava de peacute para o que ainda estava deitado na cama quando estava deitado na cama sentia-se bastante acordado mas completamente paralisado e assustado pela figura de si mesmo curvando-se e batendo nele Sua uacutenica intenccedilatildeo era tornar-se uma uacutenica pessoa novamente e olhando pela janela (de onde ainda podia ver seu corpo deitado na cama) ele de repente decidiu pular ldquopara impedir a intoleraacutevel sensaccedilatildeo de
130 | Temas em Neurociecircncias
se dividir em doisrdquo Ao mesmo tempo ele esperava que ldquoessa accedilatildeo realmente desesperada amedrontasse a pessoa na cama e o instasse a se fundir comigo novamenterdquo A proacutexima coisa que ele lembra eacute ldquoacordar com dor no hospitalrdquo
Modelos explicativos para a heautoscopia sugerem um distuacuterbio da integraccedilatildeo de sinais multissensoriais incluindo tambeacutem sinais interoceptivos (viscerais) e motores Eacute importante ressaltar que o ldquooutrordquo eacute frequentemente relatado como ofensivo e agressivo em alguns casos dando a impressatildeo de progressivamente se tornar mais autocircnomo e eventualmente controlar e interferir nas accedilotildees e movimentos do paciente Tambeacutem haacute associaccedilatildeo entre a heautoscopia e episoacutedios dramaacuteticos que tecircm um profundo impacto emocional e em alguns casos tem sido associada a ideacuteias de referecircncia paranoacuteia e suiciacutedio (Anzellotti et al 2011)
Segundo Lopez e Blanke (2007) uma integraccedilatildeo central coerente de informaccedilotildees sensoriais e motoras eacute necessaacuteria para o processamento acurado do proacuteprio corpo self e ldquoautoconsciecircnciardquo No entanto tal integraccedilatildeo estaacute anormal em sujeitos que apresentam os fenocircmenos de heautoscopia e de ldquoexperiecircncia extracorpoacutereardquo sugerindo uma integraccedilatildeo multissensorial deficiente em relaccedilatildeo aos planos de referecircncias de tais pacientes Segundo os autores sinais vestibulares que proveem concomitantemente informaccedilotildees sobre a posiccedilatildeo do corpo e movimento deste no espaccedilo e que apresentam papel-chave na integraccedilatildeo de sinais da gravidade e referecircncia de localizaccedilatildeo do corpo natildeo estatildeo funcionando de maneira adequada em tais pacientes
A presenccedila de disfunccedilotildees natildeo eacute contudo um preacute-requisito para que algueacutem possa experimentar o fenocircmeno da heautoscopia como demonstrado no estudo de Ionta et al (2011) que utilizando tecnologia roboacutetica em sujeitos saudaacuteveis aliada a determinadas simulaccedilotildees criaram nos participantes o sentimento de ser uma entidade localizada em outra posiccedilatildeo no espaccedilo e de perceber o mundo a partir dessa posiccedilatildeo e perspectiva alterando sua auto-localizaccedilatildeo
Aymerich-Franch Petit Ganesh e Kheddar (2016) foram mais aleacutem ao utilizar realidade virtual juntamente com um robocirc humanoide recriando uma experiecircncia de reduplicaccedilatildeo do proacuteprio corpo percebido simultaneamente no corpo fiacutesico e no corpo do robocirc Os
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 131
voluntaacuterios apresentaram uma ilusatildeo que se assemelha fortemente agrave heautoscopia sugerindo que uma mente humana saudaacutevel tambeacutem eacute capaz de se bilocar em dois corpos diferentes simultaneamente
Aleacutem de propiciar a ilusatildeo de mudanccedila na autolocalizaccedilatildeo e perspectiva em sujeitos saudaacuteveis o estudo de Ionta et al (2011) tambeacutem os comparou com pacientes que apresentavam experiecircncias autoscoacutepicas Por intermeacutedio de Imagens por Ressonacircncia Magneacutetica Funcional (fMRI) verificaram quais aacutereas encefaacutelicas respondiam pelas experiecircncias relatadas em um ou outro caso Assim como observado nos estudos de Arzy et al (2006) e Blanke et al (2014) em relaccedilatildeo agrave ldquosensaccedilatildeo de presenccedilardquo as mudanccedilas subjetivas verificadas sobre a localizaccedilatildeo e perspectiva do self foram refletidas na atividade da JTP bilateralmente Os autores observaram ligaccedilatildeo causal entre o dano desta mesma aacuterea no grupo de pacientes neuroloacutegicos fornecendo evidecircncias de que esta aacuterea tambeacutem codifica a auto-localizaccedilatildeo refletindo um dos sentimentos subjetivos mais fundamentais dos seres humanos o sentimento de ser uma entidade localizada em certa posiccedilatildeo no espaccedilo de onde percebe o mundo
Uma forma simples de se manipular a sensaccedilatildeo de ter um corpo cujas partes lhe pertencem eacute por meio da denominada ldquoilusatildeo da matildeo de borrachardquo na qual participantes experimentam a sensaccedilatildeo de posse de uma matildeo artificial (como se fosse sua proacutepria matildeo) quando a matildeo real eacute escondida de seu campo de visatildeo e substituiacuteda por uma falsa matildeo de borracha O fenocircmeno ocorre quando tanto a matildeo real escondida quanto a matildeo falsa visiacutevel satildeo tocadas da mesma maneira e de forma sincronizada propiciando a ilusatildeo de que a matildeo de borracha eacute na verdade a matildeo verdadeira Quando a ilusatildeo eacute produzida observa-se (dentre outras aacutereas) a ativaccedilatildeo da JTP (Wawrzyniak Klingbeil Zeller Saur amp Classen 2018) Considerando a funccedilatildeo desta aacuterea na integraccedilatildeo multissensorial (Kheradmand amp Winnick 2017) a falha em integrar aspectos mecanorreceptivos e visuais (por exemplo estimular a matildeo real e a matildeo de borracha de maneira natildeo sincronizada) pode causar a inabilidade em incorporar a matildeo de borracha na representaccedilatildeo do corpo tal como eacute observado em pacientes com determinadas lesotildees encefaacutelicas (Wawrzyniak et al 2018)
Para criar uma representaccedilatildeo central do proacuteprio corpo o ceacuterebro deve integrar e pesar as evidecircncias de diferentes fontes sensoriais
132 | Temas em Neurociecircncias
(como informaccedilotildees visuais taacuteteis proprioceptivas e vestibulares) e chegar rapidamente a uma decisatildeo Isso envolve mecanismos para impor coerecircncia agraves informaccedilotildees de diferentes fontes sensoriais e mecanismos para diminuir incoerecircncias para evitar incertezas Assim o ceacuterebro deve criar representaccedilotildees sensoriais-centrais do movimento e posiccedilatildeo do corpo e sua posiccedilatildeo no espaccedilo extrapessoal mesmo que isso exija a inibiccedilatildeo temporaacuteria de entradas discrepantes Por exemplo entradas proprioceptivas discrepantes podem ser descartadas (e consideradas como ruiacutedo) se entradas visuais taacuteteis e vestibulares sobre a posiccedilatildeo e o movimento do proacuteprio corpo concordarem entre si (Melzack 1990)
Aleacutem da JTP o cortex insular posterior tambeacutem trata-se de uma aacuterea multimodal no que diz respeito agrave integraccedilatildeo de diversas informaccedilotildees sensoriais incluindo sinais somatossensoriais visuais auditivos e vestibulares aleacutem de relacionar-se com funccedilotildees motoras e liacutembicas ou emocionais (Flynn Benson amp Ardilas 1999)
De fato Heydrich e Blanke (2013) identificaram que danos no coacutertex insular posterior esquerdo pode relacionar-se ao fenocircmeno da heautoscopia Aparentemente a falta de integraccedilatildeo entre os sinais corporais exteroceptivos somatossensoriais e visuais juntamente com sinais viscerais e emocionais resulta numa auto-identificaccedilatildeo errocircnea dos pacientes com heautoscopia aumentando a afinidade emocional destes com o ldquocorpo autoscoacutepicordquo
A atividade de aacutereas corticais relacionadas agrave integraccedilatildeo multissensorial eacute suficiente para redefinir os limites do corpo e incorporaccedilatildeo de ateacute mesmo um espaccedilo vazio mesmo que a informaccedilatildeo visual contradiga diretamente a presenccedila de um membro fiacutesico (Guterstam Gentile amp Ehrsson 2013) de maneira semelhante com o que ocorre no fenocircmeno do membro fantasma
A sensaccedilatildeo viacutevida de presenccedila de determinado membro apoacutes sua amputaccedilatildeo (podendo tambeacutem ocorrer apoacutes amputaccedilatildeo de outras partes inervadas do corpo tais como mama ou pecircnis) apoacutes a destruiccedilatildeo de suas raiacutezes sensoriais ou mesmo apoacutes secccedilatildeo completa da medula espinhal (que pode levar agrave sensaccedilatildeo de um corpo fantasma abaixo do niacutevel da lesatildeo) eacute relativamente comum As experiecircncias do membro fantasma apresentam-se como sensaccedilotildees reais considerando que satildeo produzidas pelos mesmos processos
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 133
encefaacutelicos (ou redes neurais) que fundamentam a experiecircncia do corpo quando este estaacute intacto (Melzack 1990)
Embora as experiecircncias corporais envolvam um acreacutescimo agrave faixa normal de percepccedilatildeo o ganho perceptivo parece apresentar mais problemas do que sua perda considerando que o primeiro eacute mais propenso a ser envolto no manto do paranormal do que o segundo Em terminologia mais convencional existe uma maior disponibilidade para relacionar a perda de funccedilatildeo agrave perda de estrutura do que interpretar novas funccedilotildees para as quais natildeo haacute equivalente estrutural evidente (Wade 2009)
Ambos os conjuntos de fenocircmenos podem ser interpretados em termos sobrenaturais mas os membros fantasmas provaram ser mais passiacuteveis de incorporaccedilatildeo no corpo da ciecircncia normal Caixas de espelhos tecircm sido empregadas para fornecer estimulaccedilatildeo visual que poderia corresponder agravequela decorrente da falta de uma parte do corpo O deslocamento visual no espelho de todo o corpo apresenta semelhanccedilas com a autoscopia e portanto pode fornecer uma ponte conceitual e experimental entre membros fantasmas e fenocircmenos autoscoacutepicos (Wade 2009)
Experiecircncia Extracorpoacuterea
Uma das crenccedilas metafiacutesicas sobrenaturais mais difundidas eacute a de uma alma que consiste em um self essencial e um self fundamental que transcende o corpo fiacutesico e sua explicaccedilatildeo pelas ciecircncias naturais (Cheyne amp Girard 2009) A maioria das pessoas jaacute ouviu falar do termo ldquoexperiecircncia de quase-morterdquo (EQM) seja em programas de TV ou reportagens ou porque jaacute vivenciou o fenocircmeno em algum momento da vida Dentre outros sintomas (que seratildeo tratados mais adiante em toacutepico especiacutefico) aquele que eacute relatado com bastante frequecircncia eacute a experiecircncia extracorpoacuterea (EEC) considerada como sendo a sensaccedilatildeo de sair do corpo fiacutesico e em muitos casos vendo a si mesmo de um ponto de vista situado acima deste Assim como outros fenocircmenos autoscoacutepicos a EEC relaciona-se com distuacuterbios da percepccedilatildeo e cogniccedilatildeo do corpo ou imagem corporal que depende de informaccedilotildees proprioceptivas taacuteteis visuais
134 | Temas em Neurociecircncias
e vestibulares bem como em sua integraccedilatildeo com informaccedilotildees sensoriais do espaccedilo extrapessoal (BLANKE et al 2004)
Segundo Sacks (2013) haacute seacuteculos existem histoacuterias sobre pessoas que passaram por EECs mas o termo soacute foi introduzido nos anos 60 pela psicoacuteloga de Oxford Celia Green que examinou sistematicamente relatos feitos por mais de quatrocentas pessoas que as vivenciaram
Embora a EEC possa fazer parte da EQM na maioria das vezes natildeo requer que o sujeito esteja agrave beira da morte para ser experimentada Um dos primeiros registros de EEC ocorreu durante craniotomia acordada9 realizada pelo neurocirurgiatildeo Wilder Penfield Durante o procedimento um paciente com histoacuterico de epilepsia habitual experimentou uma EEC no momento em que o giro temporal superior direito foi estimulado eletricamente Na ocasiatildeo o paciente registrou a sensaccedilatildeo como se estivesse flutuando para longe de si mesmo exclamando ldquoOh meu Deus Estou deixando meu corpordquo (Penfield 1955) A experiecircncia de Penfield em neurocirurgia foi repetida apenas cerca de 70 anos depois quando num procedimento de craniotomia realizada tambeacutem com o paciente acordado este reportou a sensaccedilatildeo de EEC apoacutes estiacutemulo realizado na JTP esquerda (Bos Spoor Smits Schouten amp Vincent 2016)
Contudo o fenocircmeno da EEC tambeacutem pode ser induzido ao se utilizar determinados procedimentos natildeo invasivos que possam alterar as informaccedilotildees sensoriais provocando divergecircncias entre as informaccedilotildees que chegam ao sistema nervoso Sinais multissensoriais sincronizados poreacutem manipulados por espelhos viacutedeos ou realidade virtual de forma a propiciar conflitos localizacionais podem induzir uma mente humana saudaacutevel a perceber sua auto-localizaccedilatildeo fora das fronteiras corporais produzindo uma ilusatildeo que se assemelha a uma EEC (Blanke amp Metzinger 2009 Ionta et al 2011 Bourdin Barberia Oliva amp Slater 2017 Guterstam Bjoumlrnsdotter Gentile amp Ehrsson 2015)
9 Craniotomia trata-se de procedimento ciruacutergico em que um retalho oacutesseo do cracircnio eacute temporariamente removido para acesso ao ceacuterebro A craniotomia acordada eacute usada principalmente para mapeamento e ressecccedilatildeo de lesotildees em aacutereas cerebrais de importacircncia vital (aacutereas motoras e de linguagem) nas quais a imagem natildeo eacute suficientemente sensiacutevel (Zhang amp Gelb 2018)
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 135
Utilizando a hipnose Facco et al (2019) tambeacutem obtiveram um meacutetodo natildeo-invasivo para induccedilatildeo da EEC de maneira controlada Os sujeitos que participaram do experimento relataram que claramente haviam deixado o corpo na cadeira e flutuaram perto do teto da sala com a consciecircncia neste mesmo local mostrando vaacuterias caracteriacutesticas fenomenoloacutegicas das EECs espontacircneas Utilizando anaacutelise de ondas de eletroencefalograma os autores tambeacutem observaram papel-chave na atividade da JTP em sua induccedilatildeo
Considerando que a JTP tambeacutem apresenta importante papel no processamento de sensaccedilotildees vestibulares (Buumlnning amp Blanke 2005 Blanke amp Arzy 2005) alteraccedilotildees no funcionamento dessa aacuterea seja por lesatildeo drogas ou estados neurais espontacircneos como sono REM poderiam gerar experiecircncias corporais vestibulares anocircmalas como alucinaccedilotildees de flutuaccedilatildeo de voo e motoras Se suficientemente intensas tais alteraccedilotildees tambeacutem podem evocar sensaccedilotildees mais elaboradas como de ldquocorpo desencarnadordquo que por sua vez preparam o cenaacuterio para a experiecircncia autoscoacutepica de EEC na qual pode-se ver o corpo fiacutesico de um ponto de vista externo (Cheyne amp Girard 2009)
Conforme indicam Lopez Halje e Blanke (2008) a EEC estaacute fortemente associada a alteraccedilotildees funcionais na regiatildeo central do coacutertex vestibular (ldquocoacutertex vestibular parieto-insularrdquo) Logo estimulaccedilotildees vestibulares em pessoas normais podem ser um meio eficiente de alterar a integraccedilatildeo multissensorial com objetivo de investigar a base neural da sensaccedilatildeo de posse do proacuteprio corpo
Lopez e Elziegravere (2018) mostram o papel de distuacuterbios vestibulares perifeacutericos como fatores desencadeantes da EEC a qual pode surgir a partir de uma combinaccedilatildeo de incoerecircncia perceptiva (devido a sinais vestibulares conflitantes com outros sinais sensoriais sobre orientaccedilatildeo e movimento do corpo) com fatores psicoloacutegicos (despersonalizaccedilatildeo desrealizaccedilatildeo depressatildeo e ansiedade) e neuroloacutegicos (enxaqueca) Outras alteraccedilotildees neuroloacutegicas podem induzir a EEC em certas situaccedilotildees conforme demonstrado por Blanke Landis Spinelli e Seeck (2004) ao estudar pacientes epileacuteticos que relatavam experiecircncias autoscoacutepicas principalmente EEC Durante as crises ou no decorrer de avaliaccedilatildeo por eletroestimulaccedilatildeo os autores verificaram a presenccedila de dano ou disfunccedilatildeo cerebral localizados na JTP Os resultados sugeriram que os processos de percepccedilatildeo e cogniccedilatildeo do corpo e a criaccedilatildeo inconsciente de representaccedilotildees centrais deste satildeo preacute-
136 | Temas em Neurociecircncias
requisitos para uma accedilatildeo raacutepida e eficaz com o meio ambiente Havendo dados ambiacuteguos de diferentes sistemas sensoriais segue-se a experiecircncia intrigante de ver o proacuteprio corpo em uma posiccedilatildeo que natildeo coincide com aquela que eacute sentida
Eacute contudo possiacutevel que outras aacutereas encefaacutelicas tambeacutem apresentem importantes interconexotildees com a JTP e com isso possam tambeacutem participar do fenocircmeno da EEC conforme indica Hiromitsu Shinoura Yamada e Midorikawa (2020) em estudo de caso onde uma paciente acometida por tumor no coacutertex cingulado posterior (PCC) apresentou vaacuterios episoacutedios de EEC Os episoacutedios foram abolidos apoacutes neurocirurgia para extirpaccedilatildeo do tumor sugerindo que o PCC contribui para a auto-localizaccedilatildeo dependendo da perspectiva visual Os resultados vatildeo ao encontro do estudo de Guterstam et al (2015) o qual sugere papel-chave do PCC na integraccedilatildeo de representaccedilotildees neurais da auto-localizaccedilatildeo e propriedade do corpo
Yu et al (2018) estudando o caso de uma adolescente com epilepsia intrataacutevel verificaram a ocorrecircncia de EEC ao se proceder estimulaccedilatildeo do coacutertex insular anterior esquerdo por eletrodos intracranianos Apoacutes a destruiccedilatildeo de vaacuterios locais precisamente localizados nesta aacuterea via termocoagulaccedilatildeo por radiofrequecircncia as crises da paciente desapareceram e a EEC natildeo mais pode ser reproduzida mesmo estimulando esses locais repetidamente Os autores sugerem que o envolvimento do coacutertex insular anterior na EEC deve-se agrave funccedilatildeo desta aacuterea na integraccedilatildeo de sinais multissensoriais e seu importante papel na autoconsciecircncia aleacutem do JTP
O estudo de Ridder Laere Dupont Menovsky e Heyning (2007) mostra o advento de EEC mediado pela estimulaccedilatildeo da parte posterior do giro temporal superior direito em paciente com eletrodos implantados nesta aacuterea para tratamento de zumbido Exames de imagem mostraram ativaccedilatildeo na JTP (mais especificamente nos giros angular e supramarginal que fazem parte desta aacuterea)
O uso abusivo de certas drogas tais como maconha LSD e principalmente a ketamina tambeacutem classicamente relacionam-se com o advento de EEC e outros fenocircmenos relacionados (Wilkins Girard amp Cheyne 2011) Aleacutem disso o uso tanto da maconha quanto da ketamina satildeo considerados como modelos de induccedilatildeo de sintomas
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 137
de esquizofrenia (Fletcher amp Honey 2006) dentre os quais eacute possiacutevel a manifestaccedilatildeo de alucinaccedilotildees autoscoacutepicas (Malik et al 2019)
Finalmente apoacutes o exposto eacute possiacutevel afirmar que de acordo com estudos de vaacuterios grupos de pesquisa a EEC juntamente com os demais fenocircmenos autoscoacutepicos apresentam-se muito bem fundamentados em alteraccedilotildees (patoloacutegicas ou natildeo) da atividade encefaacutelica notadamente em se tratando da atividade da JTP e outras aacutereas adjacentes eou que influenciem sua funccedilatildeo A importacircncia destas regiotildees encefaacutelicas para o processamento e integraccedilatildeo de muacuteltiplas modalidades sensoriais que a ela convergem gerando a partir daiacute uma percepccedilatildeo coerente da autolocalizaccedilatildeo e espaccedilo extrapessoal parece ser indiscutiacutevel
Eacute provaacutevel que algumas aacutereas encefaacutelicas envolvidas nos fenocircmenos autoscoacutepicos tambeacutem sejam ativadas na denominada ldquoexperiecircncia de quase-morterdquo que seraacute tratada a seguir Contudo apesar desta geralmente apresentar a EEC dentre os fenocircmenos observados sua natureza eacute heterogecircnea e de mais difiacutecil explicaccedilatildeo face agrave complexidade das sensaccedilotildees relatadas por aqueles que a vivenciaram
Experiecircncia de Quase-Morte
O termo ldquoexperiecircncia de quase-morterdquo (EQM) foi introduzido pelo meacutedico e filoacutesofo Raymond A Moody autor do livro Live after life (ldquoA vida depois da vidardquo na ediccedilatildeo em portuguecircs) em 1975 O livro acabou fazendo muito sucesso mostrando o grande desejo pela existecircncia de uma ldquooutra vidardquo que viria apoacutes a vida terrena Considerando a formaccedilatildeo do autor na aacuterea meacutedica e psicoloacutegica o fato da ciecircncia natildeo poder explicar os fenocircmenos relatados seria de certa maneira um aval para a realidade daquilo que eacute descrito (Kasten amp Geier 2014) Assim natildeo apenas este mas muitos livros populares sobre EQM tornaram-se best-sellers provavelmente porque um grande nuacutemero de pessoas quer acreditar que a imortalidade da ldquoalmardquo eacute cientificamente possiacutevel tornando mais toleraacutevel a inevitabilidade da morte (Agrillo 2011)
Certamente a tentativa da civilizaccedilatildeo moderna de explicar tudo em bases cientiacuteficas enfraquece racionalmente a esperanccedila de
138 | Temas em Neurociecircncias
uma existecircncia de vida ou ldquoalmardquo apoacutes a morte Assim de maneira simultacircnea o medo do inevitaacutevel fim da vida cresce conforme avanccedila o progresso tecnoloacutegico (Kasten amp Geier 2014)
As EQMs satildeo caracterizadas por eventos psicoloacutegicos profundos com elementos transcendentais e miacutesticos que de certa maneira transcendem o ego pessoal incluindo inefabilidade e um sentimento de uniatildeo com um princiacutepio divino ou superior Tais eventos ocorreriam tipicamente em indiviacuteduos proacuteximos agrave morte ou em situaccedilotildees de intenso perigo fiacutesico ou emocional (Greyson 2000)
Moody (1975) analisou centenas de casos de EQM desenvolvendo uma ideacuteia da sequecircncia em que ocorrem os fenocircmenos pelos que os experimentaram Assim a EQM iniciaria por determinado sentimento (muito diacuteficil de ser explicado) para em seguida ouvir algueacutem (o meacutedico por exemplo) relatar sua morte Apoacutes o reconhecimento da situaccedilatildeo de morte10 seguiria um sentimento de paz e quietude percepccedilatildeo de um ruiacutedo (por exemplo zumbido sinos ou muacutesica) sensaccedilatildeo de ser puxado para um tuacutenel escuro sensaccedilatildeo de sair do corpo (EEC) encontro com outros (seres espirituais) visatildeo de luz muito brilhante ver as memoacuterias de experiecircncias que teve na vida passar diante de si (em ordem cronoloacutegica ou natildeo) e daiacute alcanccedilar um certo ldquolimiterdquo ou ldquobordardquo para chegar a algum lugar (uma porta neacutevoa linha cerca ou algo assim) e finalmente o ldquoretorno de volta agrave vidardquo
Uma visatildeo mais cientiacutefica e sistemaacutetica do fenocircmeno foi examinada pelo cientista Bruce Greyson da Universidade de Virgiacutenia que passou anos estudando aspectos psiquiaacutetricos da EQM Em uma de suas pesquisas estudando 67 pessoas que estiveram agrave beira da morte e utilizando 80 manifestaccedilotildees caracteriacutesticas de EQM formulou 16 questotildees de muacuteltipla escolha divididas em quatro caracteriacutesticas gerais Cognitiva (pensamentos) Afetiva (sentimentos) Paranormal (ex EEC) e Transcedental (ex encontro com espiacuteritos) A partir destas questotildees com pontuaccedilatildeo variando de zero a dois dependendo da resposta chegando ao maacuteximo de 32 pontos formulou um score miacutenimo de sete pontos para que determinado evento possa ser
10 Apesar do ldquoreconhecimento de que se estaacute mortordquo fazer parte das EQMs tal situaccedilatildeo natildeo eacute limitada a tais experiecircncias pois uma intrigante e rara siacutendrome denominada ldquoSiacutendrome de Cotardrdquo ou ldquoSiacutendrome do Cadaacutever Ambulanterdquo faz com que o sujeito acredite que estaacute morto mesmo que todas as evidecircncias indiquem o contraacuterio (Grover Aneja Mahajan amp Varma 2014)
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 139
considerado uma EQM (Greyson 1983 Nelson 2012) Serralta Cony Cembranel Greyson e Szobot (2010) adaptaram a escala de Greyson para a cultura brasileira mantendo equivalecircncia semacircntica entre a versatildeo original e a nacional podendo segundo os autores ser utilizada para pesquisas dentro desta aacuterea no Brasil
Apesar de comuns as EQM ainda apresentam etiologia desconhecida (Peinkhofer Dreier amp Kondziella 2019) e face agrave complexidade dos relatos com suas implicaccedilotildees cientiacuteficas teoloacutegicas e filosoacuteficas o estudo deste fenocircmeno representa um dos principais desafios da neurociecircncia moderna Para complicar ainda mais mesmo considerando o termo ldquoquase morterdquo as experiecircncias tambeacutem podem ocorrer a pessoas que embora possam estar doentes natildeo estatildeo nem perto da morte considerando os dados em seus registros meacutedicos Muitas dessas pessoas podem temer que estejam prestes a morrer mesmo que natildeo estejam (Stevenson Cook amp McClean-Rice 1989)
Para Lake (2019) natildeo existe dicotomia real entre as chamadas verdadeiras EQMs desencadeadas por situaccedilotildees de real risco agrave vida e as experiecircncias semelhantes agraves EQMs que natildeo estatildeo associadas a uma emergecircncia meacutedica Ambas satildeo provavelmente mediadas pela sobreposiccedilatildeo de aspectos fisioloacutegicos psicoloacutegicos e culturais podendo propiciar efeitos semelhantes nos valores e comportamentos que influenciam a aptidatildeo do ponto de vista evolutivo
Contudo as EQM podem ser experimentadas de forma diferente dependendo do sujeito estar ou natildeo realmente proacuteximo da morte Um estudo foi realizado em um grupo de 58 pacientes dos quais 28 considerados tatildeo proacuteximos da morte que teriam morrido sem intervenccedilatildeo meacutedica e 30 sem risco de morrer embora muitos pensassem que a morte era iminente Os pacientes de ambos os grupos relataram EQM muito semelhantes mas os pacientes que realmente estavam perto da morte eram mais propensos a relatar uma percepccedilatildeo aprimorada da presenccedila de uma luz e tambeacutem um aprimoramento da capacidade cognitiva (Owens Cook amp Stevenson 1990) Para Lake (2019) o funcionamento cognitivo aprimorado nestes momentos poderia permitir a transmissatildeo de valores emocionais e espirituais positivos entre parentes e entes queridos Tais valores seriam posteriormente conservados na populaccedilatildeo resultando em aumento da aptidatildeo do grupo reduzindo o medo de morrer e da morte
140 | Temas em Neurociecircncias
Apesar de pouco ser conhecido sobre a personalidade das pessoas que experienciaram a EQM segundo Martial Cassol Charland-Verville Merckelbach e Laureys (2018) uma das caracteriacutesticas poderia ser a propensatildeo agrave fantasia Os autores utilizaram a escala de Greyson para selecionar pessoas que passaram pela experiecircncia comparando aqueles que alcanccedilaram escore miacutenimo de 7 pontos com outro instrumento de pesquisa para medir tal propensatildeo o ldquoQuestionaacuterio de Experiecircncias Criativasrdquo (CEQ) Desenvolvido por Merckelbach Horselenberg e Muris (2001) o CEQ apresenta correlaccedilotildees substanciais com medidas de esquizotipia e dissociaccedilatildeo intimamente ligadas agrave propensatildeo agrave fantasia
No entanto segundo Martial et al (2018) as pessoas que relataram EQMs sem risco de morte tiveram uma pontuaccedilatildeo mais alta na propensatildeo agrave fantasia quando em comparaccedilatildeo com pessoas que relataram EQMs claacutessicas (com risco real de morte) indiviacuteduos cujas experiecircncias natildeo atenderam aos criteacuterios de EQM e controles correspondentes Indiviacuteduos que relataram EQMs claacutessicas demonstraram envolvimento na fantasia de forma semelhante a sujeitos controles correspondentes
Embora natildeo seja num preacute-requisito eacute possiacutevel que a crenccedila na transcendecircncia espiritual e vida apoacutes a morte seja importante para que as EQM ocorram conforme indica Chandradasa Wijesinghe Kuruppuarachchi e Perera (2018) que avaliaram a prevalecircncia de EQM em hospital caracterizado pelo atendimento de pacientes seguidores de diversas religiotildees diferentes A maior prevalecircncia de EQM foi em pacientes seguidores das religiotildees teiacutestas (que afirmam a crenccedila da existecircncia de Deus) cristianismo islamismo e hunduismo quando em comparaccedilatildeo com o budismo uma religiatildeo natildeo teiacutesta (que natildeo inclui a ideacuteia de um deus)
Num estudo prospectivo Lommel Wees Meyers e Elfferich (2001) estudaram o advento de EQM em pacientes que foram submetidos a ressuscitaccedilatildeo cardiopulmonar e que passaram pela experiecircncia em comparaccedilatildeo com outros submetidos ao mesmo procedimento sem contudo relatar EQM Concluiacuteram que apenas fatores meacutedicos natildeo poderiam explicar a ocorrecircncia de EQM pois embora todos os pacientes estivessem segundo os autores ldquoclinicamente mortosrdquo a maioria natildeo passou pelo fenocircmeno Verificaram ainda que a gravidade da crise natildeo estava relacionada agrave ocorrecircncia ou profundidade da
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 141
experiecircncia natildeo sendo tambeacutem possiacutevel considerar carecircncia de oxigenaccedilatildeo cerebral medicaccedilatildeo ou fatores psicoloacutegicos como agentes causadores do fenocircmeno Aleacutem disso segundo os autores seria impossiacutevel haver consciecircncia e posterior memoacuteria dos fenocircmenos ocorridos considerando situaccedilotildees em que o registro da atividade eleacutetrica de coacutertex e tronco encefaacutelico por eletroencefalografia (EEG) se mostraria horizontal (sem atividade eleacutetrica)
French (2001) contudo contesta tal impossibilidade afirmando que natildeo haacute como saber se as EQM reportadas pelos pacientes realmente ocorreram quando natildeo havia atividade eleacutetrica encefaacutelica ou se ocorreram rapidamente antes ou quando estes estavam gradualmente se recuperando do evento Considerando que memoacuterias falsas relacionadas por exemplo agrave simples imaginaccedilatildeo podem ser indistinguiacuteveis das verdadeiras (Shaw 2016) tais fenocircmenos poderiam estar relacionados com memoacuterias daquilo que na verdade natildeo ocorreu realmente
Lake (2019) considera a possibilidade do ceacuterebro ainda estar em funcionamento nos momentos que antecedem ou se seguem agrave perda de consciecircncia mesmo que a EEG indique o contraacuterio Aleacutem disso Martens (1994) mostra que alteraccedilotildees da memoacuteria sob a influecircncia de hipoacutexia e hipercarbia (excesso de CO2) ocorrem somente apoacutes vaacuterios minutos de isquemia cerebral Consequentemente a ocorrecircncia e a recuperaccedilatildeo de EQMs satildeo limitadas a uma janela de tempo estreita permitindo um certo grau de hipoacutexia cerebral e hipercarbia necessaacuteria para desencadear a experiecircncia mas com restauraccedilatildeo oportuna do suprimento de oxigecircnio e diminuiccedilatildeo do CO2 para preservar a memoacuteria de curto prazo
Por outro lado eacute comum quem passa por uma EQM referir que natildeo apresenta nenhuma duacutevida sobre a realidade dos fenocircmenos vicenciados descrevendo sua experiecircncia como ldquomais real do que a realidaderdquo ou ldquomais real do que qualquer outra coisa que jaacute experimenteirdquo (Greyson 2014) De fato Thonnard et al (2013) mostram que as memoacuterias de EQM conteacutem mais caracteriacutesticas fenomenoloacutegicas (sensoriais e emocionais) do que as memoacuterias de eventos reais e de coma sugerindo que natildeo podem ser consideradas apenas como lembranccedilas imaginadas de eventos Pelo contraacuterio suas origens fisioloacutegicas poderiam levaacute-las a serem percebidas como absolutamente reais
142 | Temas em Neurociecircncias
Palmieri et al (2014) investigando o fenocircmeno das memoacuterias de EQM serem declaradas como sendo ldquomais reais que a realidaderdquo adotaram uma abordagem integrada O estudo envolveu hipnose para melhorar a recuperaccedilatildeo e diminuir erros de memoacuteria e dados de EEG com objetivo de comparar as caracteriacutesticas das memoacuterias de EQM e seus marcadores neurais com memoacuterias de eventos reais e imaginados Os resultados indicaram que as memoacuterias de EQM satildeo diferentes das memoacuterias autobiograacuteficas imaginadas e muito semelhantes agraves memoacuterias de eventos reais em termos de riqueza de detalhes informaccedilotildees autorreferenciais e emoccedilotildees
No entanto nada pode garantir que as memoacuterias de EQM natildeo possam ser de certa forma ldquoexageradasrdquo ou ldquofloreadasrdquo com o passar dos anos de tal maneira que os relatos dos sujeitos que passaram pela experiecircncia natildeo apresente um vieacutes voltado para o que a miacutedia coloca em relaccedilatildeo a tais experiecircncias Com o objetivo de investigar este aspecto Greyson (2007) comparou memoacuterias de EQM quando estas aconteceram e vinte anos apoacutes o evento concluindo que ao contraacuterio do esperado relatos de EQM e particularmente relatos de seus efeitos positivos mantiveram suas caracteriacutesticas mostrando que aparentemente tais memoacuterias parecem ser mais estaacuteveis do que lembranccedilas de outros eventos traumaacuteticos
Em relaccedilatildeo aos seus efeitos positivos na vida de quem a experimentou a EQM parece ter efeitos protetores no bem-estar psicoloacutegico dos pacientes (Cant Cooper Chung amp OrsquoConnor 2012) Tais efeitos satildeo geralmente associados a transformaccedilotildees positivas com maior senso de significado e interesse em alguns aspectos da vida dentre os quais menos medo da morte (geralmente perda completa do medo da morte) maior sensaccedilatildeo de altruiacutesmo como amor empatia e responsabilidade em relaccedilatildeo aos outros e tambeacutem de estar mais conectado com outras pessoas maior feacute e interesse no significado da vida e menor materialidade (Klemenc-Ketis 2013 Greyson 2014) aleacutem de conversatildeo religiosa e impacto positivo na sauacutede mental inclusive por ex-detentos (Braghetta Santana Cordeiro Rigonatti amp Lucchetti 2013) Algumas pessoas podem lutar por anos para tentar entender e integrar suas experiecircncias mas essas satildeo raras exceccedilotildees (Greyson 2014)
Greyson e Khanna (2014) utilizaram a ldquoescala de transformaccedilatildeo espiritualrdquo desenvolvida originalmente para testar mudanccedilas
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 143
espirituais em pacientes apoacutes diagnoacutestico de cacircncer (Cole Hopkins Tisak Steel amp Carr 2008) para comparar a transformaccedilatildeo espiritual entre experimentadores de EQM e controles Quem experimentou a EQM apresentou pontuaccedilatildeo significativamente maior indicando maior transformaccedilatildeo espiritual ao se comparar com os que natildeo passaram pela experiecircncia Assim o crescimento espiritual apoacutes trauma estaacute associado natildeo apenas agrave sobrevivecircncia apoacutes o evento traumaacutetico mas tambeacutem agrave ocorrecircncia e profundidade de EQMs durante o evento desencadeante A relevacircncia da transformaccedilatildeo espiritual para a vida cotidiana dos indiviacuteduos e as associaccedilotildees com o bem-estar sugerem que mais pesquisas nesse sentido satildeo justificadas e que estrateacutegias para melhorar o crescimento espiritual podem acarretar benefiacutecios ao paciente se incorporadas agrave praacutetica terapecircutica
Mas ateacute que ponto pode-se conjeturar que todos os fenocircmenos observados na EQM podem ou poderatildeo um dia ser totalmente explicados pela ciecircncia Como poderia ser criado um traccedilo tatildeo niacutetido de memoacuteria da EQM em situaccedilotildees em que os processos cerebrais funcionariam com capacidades diminuiacutedas Como as teorias atuais da memoacuteria podem explicar essas experiecircncias Seriam necessaacuterios fatores adicionais para explicar totalmente a memoacuteria criada em situaccedilotildees criacuteticas (Martial Cassol Laureys amp Gosseries 2020)
Uma ampla gama de teorias orgacircnicas da EQM eacute apresentada incluindo aquelas baseadas em hipoacutexia cerebral anoacutexia e hipercarbia endorfinas e outros neurotransmissores e atividade anormal nos lobos temporais (French 2005) Haacute contudo que se ponderar que apesar de determinadas pesquisas relacionadas agraves EQMs especularem sobre as possiacuteveis causas do fenocircmeno este ainda apresenta-se como uma incoacutegnita face agrave ausecircncia de dados neuroloacutegicos As condiccedilotildees meacutedicas e neuroloacutegicas associadas agraves EQMs e relacionadas agrave interferecircncia cerebral ou dano cerebral satildeo parada cardiacuteaca anestesia geral epilepsia do lobo temporal estimulaccedilatildeo eleacutetrica do ceacuterebro e anormalidades do sono como por exemplo intrusotildees REM (Blanke Faivre amp Diegues 2016)
Mesmo adotando uma rigorosa metodologia cientiacutefica o debate teoacuterico eacute amplamente aberto e natildeo eacute possiacutevel tirar conclusotildees firmes sobre a origem de tais experiecircncias (Agrillo 2011) As teorias espirituais assumem que a consciecircncia pode se separar do substrato neural do ceacuterebro e que a EQM pode fornecer um vislumbre de uma vida
144 | Temas em Neurociecircncias
apoacutes a morte As teorias psicoloacutegicas incluem a proposta de que a EQM eacute um mecanismo de defesa dissociativo que ocorre em tempos de extremo perigo ou menos plausivelmente que a EQM reflete memoacuterias de nascer (French 2005)
Haacute grande nuacutemero de relatos que associam previamente a EQM agrave sensaccedilatildeo de calma e euforia Assim dado que muitas EQM ocorrem como o nome sugere quando haacute perigo real de morte faria sentido que o corpo liberasse substacircncias quiacutemicas que induzissem um estado de calma e serenidade Por exemplo se algueacutem apresenta uma hemorragia com risco de morte entrar em pacircnico acelerando a atividade cardiacuteaca apenas aceleraria a perda de sangue Seria portanto uma vantagem o corpo induzir um estado de calma e euforia desacelerando desta maneira a frequecircncia cardiacuteaca e consequentemente a perda de sangue Esta seria provavelmente uma funccedilatildeo adaptativa de uma EQM levando em consideraccedilatildeo que a calma em meio a eventos ameaccediladores da vida reforccedila as chances de sobrevivecircncia (Alper 2008)
De fato o vieacutes positivo para a vida apoacutes uma EQM relaciona-se com os aspectos positivos e agradaacuteveis experimentados no decorrer do fenocircmeno tais como tranquilidade paz e senso de harmonia com o universo (Charland-Verville et al 2014)
Poreacutem nem sempre as experiecircncias satildeo agradaacuteveis e por assim dizer ldquoharmoniosasrdquo pois embora mais raras experiecircncias verdadeiramente aterradoras ou ldquoinfernaisrdquo tambeacutem foram relatadas sendo possiacutevel que tais experiecircncias estejam na verdade sub-documentadas por motivos diversos tais como memoacuterias ldquodolorosasrdquo ou risco de estigmatizaccedilatildeo (Cassol et al 2019)
Quem passa por EQMs angustiantes natildeo diferem em termos de gecircnero e idade em comparccedilatildeo com as EQMs claacutessicas As experiecircncias angustiantes contudo incluem mais sobreviventes de suiciacutedio ao passo as claacutessicas parecem incluir pessoas mais velhas (Cassol et al 2019) As narrativas relacionadas a experiecircncias angustiantes tambeacutem podem conter recursos pertencentes ao tipo positivo (visatildeo de luz e tuacutenel EEC e revisatildeo da vida) todavia interpretadas pelos que a vivenciaram como ldquoterriacuteveisrdquo ao inveacutes de confortantes Tambeacutem ocorrem situaccedilotildees em que a experiecircncia eacute de ldquonatildeo-existecircnciardquo ou de ser condenado a um ldquovazio inexpressivo
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 145
para a eternidaderdquo com o desespero de sentir natildeo apenas que a vida como a conhecia natildeo mais existe mas tambeacutem que nunca existiu A experiecircncia tambeacutem inclui imagens e sons terriacuteveis tais como avistar uma paisagem feia ou agourenta eou a presenccedila de seres demoniacuteacos ouvir ruiacutedos altos eou irritantes ver animais assustadores eou encontrar outros seres em extrema anguacutestia (Greyson amp Bush 1992)
Natildeo obstante a crenccedila popular acerca das caracteriacutesticas aparentemente paranormais das EQMs sejam estas positivas ou negativas Mobbs e Watt (2011) em revisatildeo sobre o tema apresentam explicaccedilotildees cientiacuteficas para (segundo eles) ldquotodosrdquo os fenocircmenos relatados por quem vivenciou a EQM sugerindo que natildeo haacute nada paranormal nessas experiecircncias Considerando que seriam apenas manifestaccedilatildeo de funccedilatildeo cerebral anocircmala durante um evento traumaacutetico e agraves vezes inofensivo os autores defendem ainda que todos os aspectos da experiecircncia tecircm uma base neurofisioloacutegica ou psicoloacutegica A experiecircncia extra-corpoacuterea revisatildeo da vida e visatildeo de pessoas falecidas estariam por exemplo relacionadas a intrusotildees do sono REM (tambeacutem defendido por Nelson Mattingly Lee e Schmitt em 2006) ao passo que o prazer viacutevido e a euforia poderiam ser o resultado da liberaccedilatildeo de opioides provocada pelo medo
Quanto agraves alucinaccedilotildees visuais ou outras tambeacutem frequentemente presentes nas experiecircncias Mobbs e Watt (2011) explicam que estas tambeacutem ocorrem em pessoas acometidas por doenccedilas neurodegenerativas do sistema nervoso tais como Alzheimer e Parkinson Assim as visotildees de entidades e pessoas falecidas poderiam indicar uma anormalidade pontual nas mesmas aacutereas acometidas nestas doenccedilas Em se tratando da visatildeo de luzes brilhantes e de tuacutenel especulam que estas poderiam ser o resultado de um colapso perifeacuterico agrave foacutevea do sistema visual por meio da privaccedilatildeo de oxigecircnio
Esse estudo foi contudo criticado pelo grupo do Dr Bruce Greyson (Greyson Holden amp Lommel 2012) pois ao afirmarem que ldquotodosrdquo os aspectos das EQM poderiam ser explicados os autores ignoraram muitos aspectos que natildeo poderiam explicar negligenciando um corpo substancial de pesquisa empiacuterica sobre o Assunto Natildeo considerando indiacutecios de possiacuteveis caracteriacutesticas natildeo explicaacuteveis pelas ciecircncias naturais nas EQMs a alegaccedilatildeo de que natildeo
146 | Temas em Neurociecircncias
haacute nada paranormal nestes fenocircmenos natildeo pode ser considerada como baseada em evidecircncias
Em relaccedilatildeo agrave intrusatildeo do sono REM natildeo haveria condiccedilotildees para tal pois nas condiccedilotildees onde as experiecircncias satildeo geralmente vivenciadas este estaria na verdade totalmente inibido Aleacutem disso a oferta de oxigecircnio ao enceacutefalo estaacute igual ou ateacute maior e as alucinaccedilotildees associadas a doenccedilas degenerativas do enceacutefalo geralmente satildeo associadas a sentimentos de medo sem apresentar a riqueza de sensaccedilotildees e interatividade das observadas nas EQM que aleacutem de vistas podem tambeacutem ser ouvidas cheiradas e tocadas sendo na maior parte dos casos muito bem-vindas
Haacute tambeacutem que se ponderar a existecircncia de relatos de EQMs nos quais pacientes relataram visotildees de pessoas falecidas mas cuja morte natildeo tinham conhecimento que faleceram momentos antes ou no exato momento em que ocorria a EQM ou mesmo pessoas falecidas que nunca conheceram desafiando portanto a interpretaccedilatildeo dessas visotildees como meras alucinaccedilotildees (Greyson 2010)
Parece portanto indiscutiacutevel que as EQMs natildeo podem ser simplesmente reduzidas agrave imaginaccedilatildeo medo da morte alucinaccedilatildeo psicose uso de drogas ou deficiecircncia de oxigecircnio (Lommel 2011) Na tentativa de explicar o que ao menos aparentemente natildeo apresenta explicaccedilatildeo Blanke Faivre e Diegues (2016) propotildeem que os estudos futuros sobre EQMs possam ser concentrados mais nos mecanismos funcionais e neurais dos fenocircmenos tanto em populaccedilotildees de pacientes quanto indiviacuteduos saudaacuteveis Agindo desta maneira a ciecircncia poderia ajudar a desvendar ao menos parcialmente os mecanismos neurofisioloacutegicos de aspectos ainda natildeo compreendidos das EQMs que tanto intrigam cientistas estudiosos e leigos
Sem duacutevida eacute um desafio cientiacutefico consideraacutevel discutir novas hipoacuteteses que possam explicar a possibilidade de uma consciecircncia clara e aprimorada abrangendo memoacuterias identidade proacutepria cogniccedilatildeo e emoccedilotildees durante um periacuteodo de aparente coma Talvez a mera visatildeo materialista da relaccedilatildeo entre consciecircncia e ceacuterebro como defendida pela maioria dos meacutedicos filoacutesofos e psicoacutelogos seja muito restrita para uma compreensatildeo adequada desse fenocircmeno que apesar de poder durar apenas alguns minutos pode acarretar mudanccedilas profundas em quem o vivenciou (Lommel 2011)
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 147
Para finalmente ratificar as mudanccedilas no modus vivendi extensivamente relatadas conveacutem citar o estudo em formato de testemunho de Woollacott e Peyton (2020) baseado em um estudo de caso detalhado extensivamente verificado e documentado de uma meacutedica (e autora do estudo) que sofreu uma EQM durante o nascimento de seu terceiro filho aos 32 anos de idade Com os olhos fechados com uma fita ela referiu seis percepccedilotildees durante a parada cardiacuteaca que foram verificadas pelos funcionaacuterios do hospital Sem possibilidade de explicaccedilatildeo pela perspectiva fisioloacutegica o caso obteve uma pontuaccedilatildeo pela escala de Greyson igual a 23 caracterizando uma EQM profunda
As autoras sugerem que tais experiecircncias abrem uma porta para uma consciecircncia mais alta ou expandida associada agrave tranquilizaccedilatildeo da atividade cerebral Os dados mostram que essa experiecircncia inicial tem um efeito imediato eacute ldquoplantada uma sementerdquo que transforma a compreensatildeo do indiviacuteduo sobre a natureza da consciecircncia Aleacutem disso serve como um gatilho para um processo de transformaccedilatildeo espiritual de longo prazo incluindo a busca para encontrar um caminho de volta para essa experiecircncia que no caso citado levou a um estudo aprofundado da meditaccedilatildeo e espiritualidade e uma transformaccedilatildeo na sua abordagem como meacutedica aos cuidados paliativos voltados ao paciente no final da vida
De fato experiecircncias espiritualmente transformadoras espontacircneas ou procuradas de maneira intencional levam as pessoas a perceber a si mesmas e ao mundo de maneiras profundamente diferentes expandindo sua identidade aumentando suas sensibilidades e alterando seus valores prioridades senso de significado e propoacutesito na vida (Greison 2014)
Consideraccedilotildees Finais
Embora a plena compreensatildeo de como o ceacuterebro cria a consciecircncia e a experiecircncia do self ainda esteja muito longe de ser alcanccedilada a evoluccedilatildeo das neurociecircncias nas uacuteltimas deacutecadas permitiu um aumento exponencial do conhecimento sobre suas funccedilotildees e conexotildees Tal evoluccedilatildeo propiciou melhora substancial no tratamento prognoacutestico e qualidade de vida de milhotildees de pessoas
148 | Temas em Neurociecircncias
que sofrem de distuacuterbios neuroloacutegicos e psiquiaacutetricos Poreacutem mesmo com tudo o que jaacute se pesquisou e descobriu desde a denominada ldquodeacutecada do ceacuterebrordquo nos anos 90 ateacute os dias atuais o ceacuterebro ainda eacute capaz de surpreender e maravilhar quem dedica a vida a estudaacute-lo
Sabe-se por exemplo que determinados fenocircmenos considerados por muitos como ldquoparanormaisrdquo e aparentemente inexplicaacuteveis pelas ciecircncias naturais como o deacutejagrave vu e os fenocircmenos autoscoacutepicos (experiecircncia extra-corpoacuterea e outros) apresentam explicaccedilatildeo cientiacutefica convincente podendo inclusive serem reproduzidos de maneira experimental Natildeo existe contudo um uacutenico ldquomoacutedulo especializadordquo no ceacuterebro que tenha como funccedilatildeo a criaccedilatildeo de crenccedilas e experiecircncias sobrenaturais embora algumas aacutereas parecem ter uma importacircncia especial na criaccedilatildeo de alguns desses fenocircmenos como a junccedilatildeo temporoparietal em experiecircncias autoscoacutepicas e o coacutertex rinal na experiecircncia do deacuteja vuacute
Outros fenocircmenos relativamente comuns na populaccedilatildeo como certos aspectos das ldquoexperiecircncias de quase morterdquo (EQM) tambeacutem apresentam teorias que podem explicar parcialmente sua origem seja por anomalias momentacircneas ou disfunccedilotildees de determinadas aacutereas encefaacutelicas Entretanto muitos destes aspectos apresentam lacunas do ponto de vista cientiacutefico ao passo que outros ainda satildeo uma completa incoacutegnita Isso natildeo significa obviamente que natildeo poderatildeo ser explicados no futuro por mais estranhas e ldquoreaisrdquo que sejam as sensaccedilotildees referidas por quem jaacute passou pela experiecircncia
Poreacutem mesmo que num futuro mais ou menos distante possamos compreender todos os aspectos da consciecircncia e comprovar que todos os fenocircmenos vivenciados por quem passou pela EQM podem ser inequivocamente atribuiacutedos agrave atividade encefaacutelica ainda natildeo seraacute possiacutevel nem haveraacute motivo para simplesmente descartar a possibilidade de existecircncia de algo que transcenda o aspecto fiacutesico e que sobreviva agrave morte do corpo
Embora desde o iniacutecio da histoacuteria da humanidade ateacute o momento em que este texto eacute escrito a alma ou espiacuterito de quem quer que seja que tenha passado pela morte definitiva jamais tenha comprovadamente retornado para relatar a respeito natildeo eacute possiacutevel descartar tal possibilidade simplesmente porque natildeo haacute prova cabal de que apoacutes a morte natildeo haacute nada aleacutem da ldquonatildeo-existecircnciardquo
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 149
Muitos pacientes em estado grave sem possibilidade de cura e pouco tempo de vida ainda apresentam a esperanccedila de que espiritualmente continuaratildeo a existir simplesmente considerando que a ldquonatildeo-existecircnciardquo natildeo lhes eacute mentalmente concebiacutevel Se apenas a crenccedila sem prova alguma de que a morte natildeo eacute o final de tudo de que haacute possibilidade de reencontrar pessoas amadas que faleceram e de que em breve natildeo mais existiraacute dor ou tristeza num paraiacuteso perfeito puder elevar a qualidade do tempo de vida que resta ao paciente jaacute seria motivo mais do que suficiente para incentivaacute-la
Sem duacutevida alguma meacutedicos e outros profissionais da sauacutede devem ter um comprometimento eacutetico com a ciecircncia e com a divulgaccedilatildeo cientiacutefica procurando evitar arqueacutetipos relacionados a crendices infundadas Mas destruir em nome da ciecircncia a feacute que pode ser a uacutenica coisa que resta aquele que sofre natildeo parece ser muito eacutetico ou profissional
Concordando com Kyriacou (2018) noacutes seres humanos fomos abenccediloados com um corpo e uma mente e natildeo honrariacuteamos a feacute negligenciando a ciecircncia Pelo contraacuterio entendemos que a feacute comeccedila onde a ciecircncia termina sem perder de vista os limites do que nos eacute possiacutevel saber Mas tambeacutem se faz necessaacuteria suficiente humildade para natildeo refutar em nome da ciecircncia o que para muitos pode ser tudo o que resta a realidade da feacute
150 | Temas em Neurociecircncias
Referecircncias
Agrillo C (2011) Near-death experience out-of-body and out-of-brain Review of General Psychology 15(1) 1-10 doi 101037a0021992
Alexander E III (2013) Uma prova do ceacuteu A jornada de um neurocirurgiatildeo agrave vida apoacutes a morte Rio de Janeiro Sextante ISBN 978-85-7542-894-8
Alper M (2008) A parte divina do ceacuterebro Rio de Janeiro Best Seller ISBN-13 978-8576842842
Anzellotti F Onofrj V Maruotti V Ricciardi L Franciotti R Bonanni L hellip Onofrj M (2011) Autoscopic phenomena Case report and review of literature Behavioral and Brain Functions 7(1) 1-11 doi 1011861744-9081-7-2
Arzy S Seeck M Ortigue S Spinelli L amp Blanke O (2006) Induction of an illusory shadow person Nature 443(7109) 287-287 doi 101038443287a
Aymerich-Franch L Petit D Ganesh G amp Kheddar A (2016) The second me Seeing the real body during humanoid robot embodiment produces an illusion of bi-location Consciousness and Cognition 46 99-109 doi 101016jconcog201609017
Barbosa E (2010) A Origem das Palavras Satildeo Paulo RG Editores ISBN-13 978-8579520068
Bartolomei F Barbeau E J Nguyen T McGonigal A Reacutegis J Chauvel P amp Wendling F (2012) Rhinalndashhippocampal interactions during deacutejagrave vu Clinical Neurophysiology 123(3) 489-495 doi 101016jclinph201108012
Beauregard M amp OrsquoLeary D (2007) The spiritual brain A neuro-scientistrsquos case for the existence of soul New York Harper One and Harper Collins ISBN-13 978-0061625985
Bisiach E Rusconi M L amp Vallar G (1991) Remission of somatoparaphrenic delusion through vestibular stimulation Neuropsychologia 29(10) 1029-1031 doi 1010160028-3932(91)90066-h
Blanke O amp Arzy S (2005) The out-of-body experience Disturbed self-processing at the temporo-parietal junction Neuroscientist 11(1)16-24 doi 1011771073858404270885
Blanke O amp Metzinger T (2009) Full-body illusions and minimal phenomenal selfhood Trends in Cognitive Sciences 13(1) 7-13 doi 101016jtics200810003
Blanke O amp Mohr C (2005) Out-of-body experience heautoscopy and autoscopic hallucination of neurological origin implications for neurocognitive mechanisms of corporeal awareness and self consciousness Brain Research Reviews 50(1) 184-199 doi 101016jbrainresrev200505008
Blanke O Arzy S amp Landis T (2008) Illusory perceptions of the human body and self Handbook of Clinical Neurology Neuropsychology and Behavioral Neurology 88 (3rd series Chap 22 pp 429-458) doi 101016s0072-9752(07)88022-5
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 151
Blanke O Faivre N amp Dieguez S (2016) Leaving body and life behind Out-of-body and near-death experience In S Laureys O Gosseries amp G Tononi (Ed) The Neurology of Consciousness (2a ed Cap 20 pp 323-347) New York Academic Press doi101016b978-0-12-800948-200020-0
Blanke O Landis T Spinelli L amp Seeck M (2004) Out-of-body experience and autoscopy of neurological origin Brain 127(2) 243-258 doi 101093brainawh040
Blanke O Pozeg P Hara M Heydrich L Serino A Yamamoto A Rognini G (2014) Neurological and robot-controlled induction of an apparition Current Biology 24(22) 2681-2686 doi 101016jcub201409049
Blom J D (2010) A Dictionary of Hallucinations New York Springe doi 101007978-1-4419-1223-7 ISBN 978-1-4419-1222-0
Bos E M Spoor J K H Smits M Schouten J W amp Vincent A J P E (2016) Out-of-body experience during awake craniotomy World Neurosurgery 92 586e9-586e13 doi 101016jwneu201605002
Bourdin P Barberia I Oliva R amp Slater M (2017) A virtual out-of-body experience reduces fear of death PLoS ONE 12(1) e0169343 1-19 doi 101371journalpone0169343
Braghetta C C Santana G P Cordeiro Q Rigonatti S P amp Lucchetti G (2013) Impact of a near-death experience and religious conversion on the mental health of a criminal Case report and literature review Trends Psychiatry Psychother 35(1) 81-84 doi 101590S2237-60892013000100010
Brandt K R Conway M A James A amp Oertzen T J van (2018) Deacutejagrave vu and the entorhinal cortex Dissociating recollective from familiarity disruptions in a single case patient Memory Nov 7 1-10 doi 1010800965821120181543436
Brandt K R Eysenck M W Nielsen M K amp Oertzen T J van (2016) Selective lesion to the entorhinal cortex leads to an impairment in familiarity but not recollection Brain and Cognition 104 82-92 doi 101016jbandc201602005
Braacutezdil M Mareček R Urbaacutenek T Kašpaacuterek T Mikl M Rektor I amp Zeman A (2012) Unveiling the mystery of deacutejagrave vu The structural anatomy of deacutejagrave vu Cortex 48(9) 1240-1243 doi 101016jcortex201203004
Brown A S (2003) A review of the deacutejagrave vu experience Psychological Bulletin 129(3) 394-413 doi 1010370033-29091293394
Brugger P (2002) Reflective mirrors Perspective-taking in autoscopic phenomena Cognitive Neuropsychiatry 7(3) 179-194 doi 10108013546800244000076
Brugger P (2005) From mirror neurons to mirror hallucinations gaps in our current understanding of autoscopic phenomena Acta Neuropsychologica 3(3) 190-201 Recuperado de httpswwwyumpucomendocumentread8597553from-mirror-neurons-to-mirror-hallucinations-gaps-
Brugger P amp Lenggenhager B (2014) The bodily self and its disorders Neurological psychological and social aspects Current Opinion in Neurology 27(6) 644-652 doi 101097WCO0000000000000151
152 | Temas em Neurociecircncias
Brugger P Agosti R Regard M Wieser H G amp Landis T (1994) Heautoscopy epilepsy and suicide Journal of Neurology Neurosurgery and Psychiatry 57(7) 838-839 doi 101136jnnp577838
Buumlnning S amp Blanke O (2005) The out-of body experience Precipitating factors and neural correlates Progress in Brain Research The Boundaries of Consciousness Neurobiology and Neuropathology 150 (Cap 24) 331-350 doi 101016S0079-6123(05)50024-4
Cant R Cooper S Chung C amp OrsquoConnor M (2012) The divided self Near death experiences of resuscitated patients ndash A review of literature International Emergency Nursing 20(2) 88- 93 doi 101016jienj201105005
Carey J (2018) Spiritual but not religious On the nature of spirituality and its relation to religion International Journal for Philosophy of Religion 83 261-269 doi 101007s11153-017-9648-8
Case L K Solcagrave M Blanke O amp Faivre N (2020) Disorders of body representation In K Sathian amp V S Ramachandran (Orgs) Multisensory Perception (Cap 18 pp 401-422) Laboratory to Clinic London Academic Press Recuperado de httpsnfaivrenetlifyappfilesreprint_Sathian2019pdf doi 101016B978-0-12-812492-500018-8
Cassol H Martial C Annen J Martens G Charland-Verville V Majerus S amp Laureys S (2019) A systematic analysis of distressing near-death experience accounts Memory27(8) 1122-1129 doi 1010800965821120191626438
Chandradasa M Wijesinghe C Kuruppuarachchi K A L A amp Perera M (2018) Near-death experiences in a multi-religious hospital population in Sri Lanka Journal of Religion and Health 57 1599-1605 doi 101007s10943-017-0442-9
Charland-Verville V Jourdan J-P Thonnard M Ledoux D Donneau A-F Quertemont E amp Laureys S (2014) Near-death experiences in non-life-threatening events and coma of different etiologies Frontiers in Human Neuroscience 8(203) 1-8 doi 103389fnhum201400203
Cheyne J A amp Girard T A (2009) The body unbound Vestibularndashmotor hallucinations and out-of-body experiences Cortex 45(2) 201-215 doi 101016jcortex200705002
Cheyne J A Newby-Clark I R amp Rueffer S D (1999) Relations among hypnagogic and hypnopompic experiences associated with sleep paralysis Journal of Sleep Research 8(4) 313-317 doi 101046j1365-2869199900165x
Cole B S Hopkins C M Tisak J Steel J L amp Carr B I (2008) Assessing spiritual growth and spiritual decline following a diagnosis of cancer reliability and validity of the spiritual transformation scale Psycho-Oncology 17(2) 112-121 doi 101002pon1207
Curot J Pariente J Hupeacute J M Lotterie J-A Mirabel H amp Barbeau E J (2019) Deacutejagrave vu and prescience in a case of severe episodic amnesia following bilateral hippocampal lesions Memory Oct 6 1-16 doi 1010800965821120191673426
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 153
Damaacutesio A R (2005) O erro de descartes Emoccedilatildeo razatildeo e ceacuterebro humano (2a ed) Satildeo Paulo Companhia das Letras ISBN-13 978-8535922004
Damaacutesio A R (2011) E o ceacuterebro criou o homem Satildeo Paulo Companhia das Letras ISBN-13 978-8535919615
Dening T R amp Berrios G E (1994) Autoscopic phenomena The British Journal of Psychiatry 165(6) 808-817 doi 101192bjp1656808
Dieguez A amp Lopez C (2017) The bodily self Insights from clinical and experimental research Annals of Physical and Rehabilitation Medicine 60(3) 198-207 doi 101016jrehab201604007
Donaldson P H Rinehart N J amp Enticott P G (2015) Noninvasive stimulation of the temporoparietal junction A systematic review Neuroscience and Biobehavioral Reviews 55 547-572 doi 101016jneubiorev201505017
Facco E Casiglia E Al Khafaji B E Finatti F Duma G M Mento G hellip Tressoldi P (2019) The neurophenomenology of out-of body experiences induced by hypnotic suggestions International Journal of Clinical and Experimental Hypnosis 67(1) 39-68 doi 1010800020714420191553762
Feinberg T E Venneri A Simone A M Fan Y amp Northoff G (2010) The neuroanatomy of asomatognosia and somatoparaphrenia Journal of Neurology Neurosurgery amp Psychiatry 81(3) 276-281 doi 101136jnnp2009188946
Fenelon G Soulas T Langavant L C de Trinkler I amp Bachoud-Levi A-C (2011) Feeling of presence in Parkinsonrsquos Disease Journal of Neurology Neurosurgery amp Psychiatry 82(11) 1219-1224 doi 101136jnnp2010234799
Fine E J (2013) The Alice in Wonderland syndrome Progress in Brain Research Literature Neurology and Neuroscience Neurological and Psychiatric Disorders 206(Cap 8) 143-156 doi 101016B978-0-444-63364-400025-9
Fletcher P C amp Honey G D (2006) Schizophrenia ketamine and cannabis Evidence of overlapping memory deficits Trends in Cognitive Sciences 10(4) 167-174 doi 101016jtics200602008
Flynn F G Benson D F amp Ardila A (1999) Anatomy of the insula - Functional and clinical correlates Aphasiology 13(1) 55-78 doi 101080026870399402325
French C C (2001) Dying to know the truth Visions of a dying brain or false memories Lance 358(9298) 2010-2011 doi 101016S0140-6736(01)07133-1
French C C (2005) Near-death experiences in cardiac arrest survivors Progress in Brain Research The Boundaries of Consciousness Neurobiology and Neuropathology 150(Cap 25) 351-367 doi 101016S0079-6123(05)50025-6
Greyson B (1983) The near-death experience scale Construction reliability and validity Journal of Nervous amp Mental Disease 171(6) 369-375 doi 10109700005053-198306000-00007
154 | Temas em Neurociecircncias
Greyson B (2000) Near-death experiences In E Cardentildea S J Lynn amp S Krippner (Eds) Varieties of anomalous experience Examining the scientific evidence (Cap 12 pp 315-352) Washington American Psychological Association Recuperado de httpsdoiorg10103710371-010
Greyson B (2007) Consistency of near-death experience accounts over two decades Are reports embellished over time Resuscitation 73(3) 407-411 doi 101016jresuscitation200610013
Greyson B (2010) Seeing dead people not known to have died ldquoPeak in Darienrdquo experiences Anthropology and Humanism 35(2) 159-171 doi 101111j1548-1409201001064x
Greyson B (2014) Differentiating spiritual and psychotic experiences Sometimes a cigar is just a cigar Journal of Near-Death Studies 32(3) 123-136 Recuperado de httpsmedvirginiaeduperceptual-studieswp-contentuploadssites360201701NDE69-cigar-JNDSpdf
Greyson B amp Evans Bush N (1992) Distressing near-death experiences Psychiatry Interpersonal amp Biological Processes 55(1) 95-110 1992 doi 10108000332747199211024583
Greyson B amp Khanna S (2014) Spiritual transformation after near-death experiences Spirituality in Clinical Practice 1(1) 43-55 doi 101037scp0000010
Greyson B Holden J M amp Lommel P van (2012) There is nothing paranormal about near-death experiencesrsquo revisited Comment on Mobbs and Watt Trends in Cognitive Sciences 16(9) 445 doi 101016jtics201207002
Grover S Aneja J Mahajan S amp Varma S (2014) Cotardrsquos syndrome Two case reports and a brief review of literature Journal of Neurosciences in Rural Practice 5(Suppl 1) S59-S62 doi 1041030976-3147145206
Guedj E Aubert S McGonigal A Mundler O amp Bartolomei F (2010) Deacutejagrave-vu in temporal lobe epilepsy Metabolic pattern of cortical involvement in patients with normal brain MRI Neuropsychologia 48(7) 2174-2181 doi 101016jneuropsychologia201004009
Guterstam A Bjoumlrnsdotter M Gentile G amp Ehrsson H H (2015) Posterior cingulate cortex integrates the senses of self-location and body ownership Current Biology 25(11) 1-10 doi 101016jcub201503059
Guterstam A Gentile G amp Ehrsson H H (2013) The invisible hand illusion Multisensory integration leads to the embodiment of a discrete volume of empty space Journal of Cognitive Neuroscience 25(7) 1078-1099 doi 101162jocn_a_00393
Heydrich L amp Blanke O (2013) Distinct illusory own-body perceptions caused by damage to posterior insula and extrastriate coacutertex Brain 136(3) 790-803 doi 101093brainaws364
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 155
Hiromitsu K Shinoura N Yamada R amp Midorikawa A (2020) Dissociation of the subjective and objective bodies Out-of-body experiences following the development of a posterior cingulate lesion Journal of Neuropsychology 14(1) 183-192 doi 101111jnp12199
Hoepner R Labudda K Hoppe M Schoendienst M Schulz R Tomka-Hoffmeister M hellip Brandt C (2012) Unilateral autoscopic phenomena as a lateralizing sign in focal epilepsy Epilepsy amp Behavior 23(3) 360-363 doi 101016jyebeh201201010
Ionta S Heydrich L Lenggenhager B Mouthon M Fornari E Chapuis D hellip Blanke O (2011) Multisensory mechanisms in temporo-parietal cortex support self-location and first-person perspective Neuron 70(2) 363-374 doi 101016jneuron201103009
Jalal B amp Ramachandran V S (2014) Sleep paralysis and ldquothe bedroom intruderˮ The role of the right superior parietal phantom pain and body image projection Medical Hypotheses 83(6) 755-757 doi 101016jmehy201410002
Jonas J Maillard L Frismand S Colnat-Coulbois S Vespignani H Rossion B amp Vignal J-P (2014) Self-face hallucination evoked by electrical stimulation of the human brain Neurology 83(4) 336-338 doi 101212wnl0000000000000628
Joshi S Thapa B amp Shakya R (2017) Autoscopic hallucination in alcohol dependence syndrome A rare or missed phenomenon Case Reports in Psychiatry 2017(2598973) 1-3 doi 10115520172598973
Kandel E R Schwartz J H Jessell T M Siegelbaum S A amp Siegelbaum A J (2014) Princiacutepios de Neurociecircncias (5a ed) Satildeo Paulo Artmed ISBN 978-85-8055-406-9
Kasten E amp Geier J S (2014) Near-death-experiences Between spiritual transmigration and psychopathological hallucinations Journal of Studies in Social Sciences 9(1) 34-82 Recuperado de httpswwwresearchgatenetpublication267330185
Kheradmand A amp Winnick A (2017) Perception of upright Multisensory convergence and the role of temporo-parietal cortex Frontiers in Neurology 8(552) 1-22 doi 103389fneur201700552
Kim H-R Han J Park Y H Kim B J Yang W amp Kim S (2017) Supernumerary phantom limb in a patient with basal ganglia hemorrhage - a case report and review of the literature BMC Neurology 17(1) 180 1-6 doi 101186s12883-017-0962-7
Klemenc-Ketis Z (2013) Life changes in patients after out-of-hospital cardiac arrest The effect of near-death experiences International Journal of Behavioral Medicine 20(1) 7-12 doi 101007s12529-011-9209-y
Kompanje E O J (2008) The devil lay upon her and held her down Hypnagogic hallucinations and sleep paralysis described by the Dutch physician Isbrand van Diemerbroeck (1609ndash1674) in 1664 Journal of Sleep Research 17(4) 464-467 doi 101111j1365-2869200800672x
156 | Temas em Neurociecircncias
Koob G F Moal M Le amp Thompson R F (2010) Encyclopedia of Behaviour Neuroscience Amsterdam Elsevier Science Academic Press ISBN-13 978-0080447322
Kyriacou D (2018) Are we wired for spirituality An investigation into the claims of neurotheology HTS Teologies e StudiesTheological Studies 74(3) 4973 doi 104102htsv74i34973
Lake J (2019) The near-death experience (NDE) as an inherited predisposition Possible genetic epigenetic neural and symbolic mechanisms Medical Hypotheses 126 135-148 doi 101016jmehy201903016
Lommel P van (2011) Near-death experiences The experience of the self as real and not as an illusion Annals of the New York Academy of Sciences 1234 19-28 doi 101111j1749-6632201106080x
Lommel P van Wees R van Meyers V amp Elfferich I (2001) Near-death experience in survivors of cardiac arrest A prospective study in the Netherlands Lancet 358(9298) 2039-2045 doi 101016S0140-6736(01)07100-8
Lopez C amp Blanke O (2007) Neuropsychology and neurophysiology of self-consciousness Multisensory and vestibular mechanisms In A Holderegger B Sitter-Liver CW Hess amp G Rager (Orgs) Hirnforschung und Menschenbild Beitraumlge zur interdisziplinaumlren Verstaumlndigung (pp 183-206) Fribourg Basel Academic Press Recuperado de httpesprascicogfrLopez_Blanke_2007_PROOFS2pdf
Lopez C amp Elziegravere M (2018) Out-of-body experience in vestibular disorders ndash A prospective study of 210 patients with dizziness Cortex 104 193-206 doi 101016jcortex201705026
Lopez C Halje P amp Blanke O (2008) Body ownership and embodiment Vestibular and multisensory mechanisms Clinical Neurophysiology 38(3) 149-161 doi 101016jneucli200712006
Malik Y K Mehra A amp Jangra M (2019) The existence of autoscopic hallucination ndash A case report and review of literature Journal of Medical Science and Clinical Research 7(7) 145-147 doi 1018535jmscrv7i729
Mars R B Sallet J Schuffelgen U Jbabdi S Toni I amp Rushworth M F S (2012) Connectivity-based subdivisions of the human right ldquotemporoparietal junction areardquo Evidence for different areas participating in different cortical networks Cerebral Cortex 22(8) 1894-1903 doi 101093cercorbhr268
Martens P R (1994) Near-death-experiences in out-of-hospital cardiac arrest survivors Meaningful phenomena or just fantasy of death Resuscitation 27 171-175 doi 1010160300-9572(94)90010-8
Martial C Cassol H Charland-Verville V Merckelbach H amp Laureys S (2018) Fantasy proneness correlates with the intensity of near-death experience Frontiers in Psychiatry 9(190) 1-7 doi 103389fpsyt201800190
Martial C Cassol H Laureys S amp Gosseries O (2020) Near-death experience as a probe to explore (disconnected) consciousness Trends in Cognitive Sciences 24(3) 173-183 doi 101016jtics201912010
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 157
Martin C B Mirsattari S M Pruessner J C Burneo J G Hayman-Abello B amp Koumlhler S (2019) Relationship between deacutejagrave vu experiences and recognition-memory impairments in temporal lobe epilepsy Memory Jul 24 1-11 doi 1010800965821120191643891
Martiacutenez-Horta S Perez-Perez J Pagonabarraga J Sampedro F Horta-Barba A Blanke O amp Kulisevsky J (2020) Autoscopic phenomena as an atypical psychiatric presentation of Huntingtonrsquos disease A case report including longitudinal clinical and neuroimaging data Coacutertex 125 299-306 doi 101016jcortex202001024
Melzack R (1990) Phantom limbs and the concept of a neuromatrix Trends in Neurosciences 13(3) 88-92 doi 1010160166-2236(90)90179-E
Merckelbach H Horselenberg R amp Muris P (2001) The creative experiences questionnaire (CEQ) A brief self-report measure of fantasy proneness Personality and Individual Differences 31(6) 987-995 doi 101016s0191-8869(00)00201-4
Mlodinow L (2012) Existe uma realidade fundamental In D Chopra amp L Mlodinow (Orgs) Ciecircncia x espiritualidade Dois pensadores duas visotildees de mundo (pp 236-249) Rio de Janeiro Sextante Recuperado de httpsissuucomcarvalhozdocsciencia_x_espiritualidade_-_deepak_ ISBN 9788575428023
Mobbs D amp Watt C (2011) There is nothing paranormal about near-death experiences How neuroscience can explain seeing bright lights meeting the dead or being convinced you are one of them Trends in Cognitive Sciences 15(10) 447-449 doi 101016jtics201107010
Mohr C amp Blanke O (2005) The demystification of autoscopic phenomena Experimental propositions Current Psychiatry Reports 7(3) 189-195 doi 101007s11920-005-0052-1
Moody R A (1975) Life after life Fairhope Alabama Mockingbird Books Publishing ISBN 978-0-89176-037-5
Nelson K (2012) The spiritual doorway in the brain A neurologistrsquos search for the god experience New York Plume ISBN-13 978-0452297586
Nelson K R Mattingly M Lee S A amp Schmitt F A (2006) Does the arousal system contribute to near death experience Neurology 66(7) 1003-1009 doi 10121201wnl00002042961560737
Niekerk B van (2018) Religion and spirituality What are the fundamental differences HTS Teologiese StudiesTheological Studies 74(3) 1-11 doi 104102htsv74i34933
OrsquoConnor A R amp Moulin C J A (2006) Normal patterns of deacutejagrave experience in a healthy blind male Challenging optical pathway delay theory Brain and Cognition 62(3) 246-249 doi 101016jbandc200606004
OrsquoConnor A R Barnier A J amp Cox R E (2008) Deacutejagrave vu in the laboratory A behavioral and experiential comparison of posthypnotic amnesia and posthypnotic familiarity International Journal of Clinical and Experimental Hypnosis 56(4) 425-450 doi 10108000207140802255450
158 | Temas em Neurociecircncias
Owens J Cook E W amp Stevenson I (1990) Features of ldquonear-death experienceˮ in relation to whether or not patients were near death Lancet 336(8724) 1175-1177 doi 1010160140-6736(90)92780-l
Palmieri A Calvo V Kleinbub J R Meconi F Marangoni M Barilaro P hellip Sessa P (2014) ldquoRealityrdquo of near-death experience memories Evidence from a psychodynamic and electrophysiological integrated study Frontiers in Human Neuroscience 8(429) 1-16 doi 103389fnhum201400429
Pašić M B Velić E H Fotak L Pašić H Imširagić A S Milat D GadŽe Z P (2018) Many faces of deacutejagrave vu A narrative review Psychiatria Danubina 30(1) 21-25 doi 1024869psyd201821
Peinkhofer C Dreier J P amp Kondziella D (2019) Semiology and mechanisms of near-death experiences Current Neurology and Neuroscience Reports 19(9) 62 doi 101007s11910-019-0983-2
Penfield W (1955) The twenty-ninth maudsley lecture The role of the temporal cortex in certain psychical phenomena The Journal of Mental Science 101(424) 451-465 doi 101192bjp101424451
Pešlovaacute E Mareček R Shaw D J Kašpaacuterek T Pail M amp Braacutezdil M (2018) Hippocampal involvement in nonpathological deacutejagrave vu Subfield vulnerability rather than temporal lobe epilepsy equivalent Brain and Behavior e00996 1-9 doi 101002brb3996
Picard F (2010) Epileptic feeling of multiple presences in the frontal space Cortex 46(8) 1037-1042 doi 101016jcortex201002002
Ridder D de Laere K van Dupont P Menovsky T amp Heyning P van de (2007) Visualizing out-of-body experience in the brain New England Journal of Medicine 357(18) 1829-1833 doi 101056NEJMoa070010
Romano D amp Maravita A (2019) The dynamic nature of the sense of ownership after brain injury Clues from asomatognosia and somatoparaphrenia Neuropsychologia 132(107119) 1-11 doi 101016jneuropsychologia2019107119
Sacks O (2013) Doppelgaumlngers Alucinaccedilatildeo consigo mesmo In O Sacks A Mente Assombrada (Cap 14 pp 230-244) Satildeo Paulo Companhia das Letras ISBN 97853592259-2
Sagan C O (2006) Mundo assombrado pelos democircnios A ciecircncia vista como uma vela no escuro (R Eichenberg Trad) Satildeo Paulo Companhia das Letras ISBN 9788535908343
Serralta F B Cony F Cembranel Z Greyson B amp Szobot C M (2010) Equivalecircncia semacircntica da versatildeo em portuguecircs da escala de experiecircncia de quase-morte Psico-USF 15(1) 35-46 doi 101590S1413-82712010000100005
Shaw D J Mareček R amp Braacutezdil M (2016) Structural covariance mapping delineates medial and medio-lateral temporal networks in deacutejagrave vu Brain Imaging and Behavior 10(4) 1068-1079 doi 101007s11682-015-9471-8
As Neurociecircncias a Experiecircncia Espiritual Religiosa e os Fenocircmenos ldquoParanormaisrdquo | 159
Shaw J (2016) The memory illusion Remembering forgetting and the science of false memory London Random House 2016 ISBN-13 978-1847947628
Shermer M (2012) Ceacuterebro e crenccedila Satildeo Paulo JSN Editora ISBN-13 978-8585985325
Stevenson I Cook E W amp McClean-Rice N (1989) Are persons reporting ldquonear-death experiencesˮ really near death A study of medical records Omega 20(1) 45-54 Recuperado de httpsmedvirginiaeduperceptual-studieswp-contentuploadssites360201806Stevenson-Omega-201-45-54-1989-90pdf
Takeda Y Kurita T Sakurai K Shiga T Tamaki N amp Koyama T (2011) Persistent deacutejagrave vu associated with hyperperfusion in the entorhinal coacutertex Epilepsy amp Behavior 21(2) 196-199 doi 101016jyebeh201103031
Thonnard M Charland-Verville V Breacutedart S Dehon H Ledoux D Laureys S amp Vanhaudenhuyse A (2013) Characteristics of near-death experiences memories as compared to real and imagined events memories PLoS ONE 8(3) e57620 1-5 doi 101371journalpone0057620
Tsakiris M Hesse M D Boy C Haggard P amp Fink G R (2007) Neural signatures of body ownership A sensory network for bodily self-consciousness Cerebral Cortex 17(10) 2235-2244 doi 101093cercorbhl131
Urquhart J A Sivakumaran M H Macfarlane J A amp OrsquoConnor A R (2018) fMRI evidence supporting the role of memory conflict in the deacutejagrave vu experience Memory Sep 20 1-12 doi 1010800965821120181524496 sep 2018
Vallar G amp Ronchi R (2009) Somatoparaphrenia A body delusion A review of the neuropsychological literature Experimental Brain Research 192(2) 533ndash551 doi 101007s00221-008-1562-y
Wade N J (2009) Beyond body experiences Phantom limbs pain and the locus of sensation Cortex 45(2) 243-255 doi 101016jcortex200706006
Warren-Gash C amp Zeman A (2014) Is there anything distinctive about epileptic deacutejagrave vu Journal of Neurology Neurosurgery amp Psychiatry 85(2) 143-147 doi 101136jnnp-2012-303520
Wawrzyniak M Klingbeil J Zeller D Saur D amp Classen J (2018) The neuronal network involved in self-attribution of an artificial hand A lesion network-symptom-mapping study NeuroImage 166 317-324 doi 101016jneuroimage201711011
Wells C E OrsquoConnor A R amp Moulin C J A (2018) Deacutejagrave vu experiences in anxiety Memory Nov 1 1-9 doi 1010800965821120181538418
Wilkins L K Girard T A amp Cheyne J A (2011) Ketamine as a primary predictor of out-of-body experiences associated with multiple substance use Consciousness and Cognition 20(3) 943-950 doi 101016jconcog201101005
Wiseman R (2017) Paranormalidade Por que vemos o que natildeo existe Rio de Janeiro Best Seller ISBN-13 978-8576845522
160 | Temas em Neurociecircncias
Woollacott M amp Peyton B (2020) Verified account of near-death experience in a physician who survived cardiac arrest Explore online 1-7 doi 101016jexplore202003005
Yu K Liu C Yu T Wang X Xu C Ni D amp Li Y (2018) Out-of-body experience in the anterior insular cortex during the intracranial electrodes stimulation in an epileptic child Journal of Clinical Neuroscience 54 122-125 doi 101016jjocn201804050
Zamboni G Budriesi C amp Nichelli P (2005) ldquoSeeing oneselfˮ A case of autoscopy Neurocase 11(3) 212-215 doi 10108013554790590944799
Zhang K amp Gelb A W (2018) Awake craniotomy Indications benefits and techniques Colombian Journal of Anestesiology46(Supp 2) 46-51 doi 101097CJ90000000000000045
SECcedilAtildeO II
PROCESSOS BAacuteSICOS EM NEUROCIEcircNCIAS
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica
Andreacute Demambre Bacchi
Introduccedilatildeo
O uso de substancias psicoativas tem feito parte da vida do ser humano haacute milecircnios (Austin 1978) Enquanto aproximadamente metade da populaccedilatildeo mundial utiliza ao menos uma substacircncia psicoativa o consumo de aacutelcool tabaco e outras drogas figuram entre as principais causas de morte evitaacuteveis no planeta (World Health Organization 2004)
Segundo a quinta ediccedilatildeo do Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico dos Transtornos Mentais - DSM-V os transtornos relacionados ao uso de substacircncias abrangem classes distintas de drogas como aacutelcool cafeiacutena cannabis alucinoacutegenos inalantes opioacuteides hipnosedativos ansioliacuteticos estimulantes tabaco entre outras substacircncias De modo geral eacute possiacutevel afirmar que a maioria das drogas que provocam dependecircncia possuem em comum a ativaccedilatildeo do sistema de recompensa cerebral que estaacute envolvido no reforccedilo de comportamentos e na produccedilatildeo de memoacuterias (American Psychiatric Association 2013) A ativaccedilatildeo desse sistema pelo uso de determinadas substacircncias pode ser intensa a ponto de ldquosequestrarrdquo os circuitos cerebrais envolvidos na aquisiccedilatildeo de recompensas naturais relevantes agrave sobrevivecircncia enquanto indiviacuteduo (como a busca por alimentos) ou enquanto espeacutecie (oportunidades de acasalamento) (Hyman 2005)
Os mecanismos de accedilatildeo farmacoloacutegicos pelos quais cada droga produz recompensa diferem entre si mas geralmente acabam levando agrave ativaccedilatildeo desse sistema produzindo sensaccedilatildeo de prazer frequentemente denominada de ldquobaratordquo (do inglecircs hight) ou ldquoviagemrdquo (do inglecircs trip) Aleacutem disso deficiecircncias em mecanismos cerebrais inibitoacuterios e determinados contextos sociais podem fazer com
Autor para correspondecircncia bacchiufredubr
Professor de Farmacologia do
Curso de Medicina da Universidade
Federal de Rondonoacutepolis
Instituto de Ciecircncias Exatas e Naturais Avenida
dos Estudantes 5055 - Cidade
Universitaacuteria Rondonoacutepolis - MT
CEP 78735-901
6
164 | Temas em Neurociecircncias
que certos indiviacuteduos sejam particularmente mais vulneraacuteveis ao desenvolvimento de transtornos por uso de substacircncias (American Psychiatric Association 2013)
Contudo mesmo constituindo um problema de sauacutede puacuteblica haacute escassez de tratamentos para esses transtornos se comparados a outros como depressatildeo e ansiedade Essa falta de tratamentos psicofarmacoloacutegicos efetivos pode ter provocado certo grau de omissatildeo terapecircutica quanto agrave abordagem medicamentosa para o manejo da dependecircncia Infelizmente parece haver certo ceticismo quando se fala em desenvolvimento de faacutermacos para o tratamento do abuso de substacircncias Esse raciociacutenio pode ter diversas origens entre elas o fato de que haacute um grande nuacutemero de usuaacuterios que natildeo conseguem atingir a abstinecircncia total eou que sofrem frequentes recaiacutedas Aleacutem disso haacute tambeacutem o estigma com consequente preconceito por parte de cientistas e profissionais de sauacutede que leva agrave crenccedila equivocada de que ao contraacuterio de outras doenccedilas ou transtornos ldquoo dependente quiacutemico se coloca voluntariamente nessa situaccedilatildeordquo e por esse motivo deve ter menor prioridade em relaccedilatildeo aos demais pacientes (Stahl 2013)
Nesse contexto um dos pontos de partida para se discutir a eficaacutecia e o desenvolvimento de tratamentos efetivos para os transtornos por uso de substacircncia eacute o conhecimento da base neurocientiacutefica dos circuitos de recompensa Assim o objetivo deste capiacutetulo eacute municiar o leitor com a base bioloacutegica que possibilitaraacute a compreensatildeo de como o abuso de drogas eacute capaz de promover neuroadaptaccedilotildees disfuncionais no dependente quiacutemico tornando-o ldquorefeacutem de si mesmordquo
A Dependecircncia Quiacutemica como Fenocircmeno Multidimensional
Sem uma droga de abuso ou sem um circuito cerebral de recompensa natildeo haveria dependecircncia quiacutemica Contudo embora esses sejam os elementos-chave desse transtorno esse fenocircmeno sofre influecircncia de muitos outros fatores Afinal nem todas as pessoas que fazem uso de uma droga tornam-se dependentes dela
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica | 165
A Figura 1 mostra que aleacutem dos aspectos neurobioloacutegicos os aspectos comportamentais geneacuteticos e ambientais satildeo cruciais para o desenvolvimento da dependecircncia quiacutemica
Neurobiologia
Comportamento
Ambiente
Geneacutetica
Figura 1 Dependecircncia quiacutemica como fenocircmeno multidimensional Embora as caracteriacutesticas farmacoloacutegicas de cada droga de abuso e as neuroadaptaccedilotildees dos neurocircuitos sejam aspectos fundamentais envolvidos na dependecircncia quiacutemica os fatores geneacuteticos ambientais e comportamentais satildeo capazes de modificar e interferir significativamente nesse processo
Por um lado algumas substacircncias parecem ser intrinsecamente mais aditivas do que outras Por outro algumas pessoas podem ser mais impulsivas ou podem apresentar um sistema de recompensa geneticamente disfuncional Em outras palavras traccedilos impulsivos e disfunccedilotildees no sistema de recompensa podem facilitar o uso abusivo de substacircncias e alguns indiviacuteduos podem ser naturalmente mais vulneraacuteveis a se tornarem compulsivos com o uso frequente (Ersche Turton Pradhan Bullmore amp Robbins 2010)
Impulsividade e Compulsividade na Dependecircncia Quiacutemica
A dependecircncia pode ser descrita neuroquimicamente como uma transiccedilatildeo de accedilotildees compulsivas para accedilotildees compulsivas
166 | Temas em Neurociecircncias
(Volkow Wang Fowler Tomasi amp Telang 2011) No transtorno por uso de substacircncias estaacute presente um conjunto de sintomas cognitivos comportamentais e fisioloacutegicos caracterizados pela incapacidade em adiar recompensas (impulsividade) e pelo uso contiacutenuo da droga apesar das consequecircncias significativamente negativas (compulsividade) De maneira simplificada podemos afirmar que impulsividade e compulsividade satildeo sintomas que derivam da dificuldade do ceacuterebro em ldquodizer natildeordquo (Everitt et al 2008 Moeller Barratt Dougherty Schmitz amp Swann 2017)
De modo mais preciso impulsividade pode ser definida como uma accedilatildeo sem reflexatildeo preacutevia ou ausecircncia de reflexatildeo sobre as consequecircncias de determinado comportamento Haacute portanto grande dificuldade em se adiar recompensas com predileccedilatildeo a uma recompensa imediata em detrimento agrave outra potencialmente mais beneacutefica poreacutem tardia Seria o que na linguagem coloquial chamariacuteamos de ldquofalta de forccedila de vontade para resistir a tentaccedilotildeesrdquo (Moeller et al 2017) Por outro lado a compulsividade eacute caracterizada por presenccedila de accedilotildees inapropriadas a certa situaccedilatildeo mas que persistem mesmo produzindo consequecircncias nocivas (Everitt et al 2008)
Embora relacionadas com aacutereas ligeiramente distintas no ceacuterebro tanto impulsividade como compulsividade podem ser consideradas como impulsos neurobioloacutegicos ldquode baixo para cimardquo (por exemplo da aacuterea tegmental ventral para o nuacutecleo accumbens) que podem sofrer supressatildeo por estiacutemulos ldquode cima para baixordquo (oriundos do coacutertex preacute-frontal) Nesse contexto impulsividade e compulsividade seriam resultado da falha na resposta dos sistemas de inibiccedilatildeo ldquode cima pra baixordquo ou da ativaccedilatildeo excessiva ldquode baixo pra cimardquo (Goldstein amp Volkow 2002) Diversos estudos de neuroimagem tecircm dado suporte a esse modelo (Limbrick-Oldfield Van Holst amp Clark 2013) e essas alteraccedilotildees parecem ser a fonte das constantes recaiacutedas do usuaacuterio de drogas que caracterizam a dependecircncia quiacutemica (Koob 2013)
Podemos considerar que o uso inicial de uma droga eacute em geral voluntaacuterio e estaacute ligado ao traccedilo de impulsividade Esse contato inicial com a substacircncia provoca uma sensaccedilatildeo de prazer e satisfaccedilatildeo Se isso ocorre com pouca frequecircncia e intensidade a busca e o consumo podem permanecer sob controle caracterizando
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica | 167
um usuaacuterio ldquoocasionalrdquo Contudo as primeiras doses costumam ser as mais reforccediladoras pois satildeo praticamente isentas de penalidades Isso pode facilitar que o uso se torne frequente evoluindo para o uso compulsivo caracterizado pela necessidade de maiores doses para a obtenccedilatildeo do efeito desejado (toleracircncia) e a necessidade de utilizaccedilatildeo para reduzir os sintomas incocircmodos de abstinecircncia na ausecircncia da droga (Clark Robbins Ersche amp Sahakian 2006)
O fenocircmeno de toleracircncia ocorre com frequecircncia para drogas de abuso e diversas formas de toleracircncia podem ocorrer durante o consumo crocircnico de uma droga A toleracircncia varia de acordo com a geneacutetica individual bem como com o grau de exposiccedilatildeo agrave substacircncia Um dos tipos de toleracircncia que pode ocorrer eacute a toleracircncia farmacocineacutetica Nesse caso a toleracircncia resulta de maior eliminaccedilatildeo da substacircncia pelo organismo Esse tipo de toleracircncia estaacute associada ao fenocircmeno de induccedilatildeo de enzimas hepaacuteticas apoacutes o uso repetitivo da droga Quanto maior atividade biotransformadora enzimaacutetica maior eacute a eliminaccedilatildeo da substacircncia e maior dose eacute necessaacuteria para obter o mesmo efeito de antes
Outros tipos de toleracircncia como a toleracircncia farmacodinacircmica (relacionada aos receptores nos quais a substacircncia atua) e toleracircncia funcional (quando o organismo compensa certos efeitos por meio de uma desregulaccedilatildeo endoacutegena) podem tambeacutem participar dos mecanismos de toleracircncia agraves drogas
Poreacutem independentemente do tipo o fenocircmeno de toleracircncia eacute um processo reversiacutevel Ou seja apoacutes um periacuteodo de abstinecircncia a toleracircncia pode ser revertida podendo levar a overdoses acidentais (Golan Tashjian Jr Armstrong amp Armstrong 2012)
Para ilustrar esse processo podemos utilizar como exemplo o caso da cantora Amy Winehouse Amy utilizou grandes quantidades de etanol de forma crocircnica durante sua vida desenvolvendo toleracircncia agrave bebida Por esse motivo conseguia (e sentia necessidade de) consumir uma grande quantia de aacutelcool diariamente Contudo apoacutes cessar o uso da droga por algumas semanas em uma tentativa de se manter ldquolivre do viacuteciordquo seu organismo foi capaz de retornar ao estado basal Assim sua toleracircncia ao aacutelcool diminuiu drasticamente Poreacutem em um episoacutedio de recaiacuteda consumiu a mesma quantidade que estava habituada anteriormente Sem estar tolerante ao etanol
168 | Temas em Neurociecircncias
Amy acabou sofrendo uma superdosagem alcooacutelica que culminou em seu oacutebito (Bacchi 2020)
James Olds Peter Milner e a Descoberta do ldquoCentro de Recompensa Cerebralrdquo
As bases neurobioloacutegicas da dependecircncia quiacutemica tecircm sido alvo de crescente interesse uma vez que o melhor entendimento dos mecanismos cerebrais ligados ao comportamento de dependecircncia tecircm permitido a busca de tratamentos medicamentosos mais eficazes para o comportamento repetitivo da busca pelas substacircncias assim como para a siacutendrome de abstinecircncia (Figlie Bordin amp Laranjeira 2014)
Na metade do seacuteculo XIX algumas teorias sobre motivaccedilatildeo afirmavam que o ldquocomportamento dependenterdquo resultava de instintos subconscientes Essas teorias eram pouco claras e natildeo demonstravam de maneira satisfatoacuteria quais elementos materiais estariam envolvidos na dependecircncia quiacutemica No iniacutecio da deacutecada de 40 contudo uma nova explicaccedilatildeo surgiu abrangendo conceitos de psicologia e psiquiatria Essa teoria chamada de teoria do reforccedilo teve como pioneiro o trabalho realizado por Spragg (1940) no qual apoacutes receberem repetidamente drogas opioides chimpanzeacutes trabalhavam voluntariamente para ter acesso a estas substacircncias contrariando o esperado de seus comportamentos inatos
Essas pesquisas despertaram o interesse da comunidade cientiacutefica pelo tema e em 1954 os pesquisadores James Olds e Peter Milner observaram que ratos com eletrodos introduzidos em regiotildees especiacuteficas do ceacuterebro pressionavam uma barra para receber estiacutemulos eleacutetricos nessas regiotildees Esse comportamento de autoestimulaccedilatildeo chegava a ser tatildeo intenso a ponto de os animais deixarem de se alimentar ou dormir para continuar pressionando a barra Essas e outras observaccedilotildees levaram agrave descoberta de que as regiotildees cerebrais relacionadas ao comportamento de autoestimulaccedilatildeo eram as mesmas regiotildees responsaacuteveis pelo consumo de aacutegua e comida e estariam portanto relacionadas com recompensa e motivaccedilatildeo (Olds amp Milner 1954) Portanto as vias dopamineacutergicas mesoliacutembica e mesocortical estariam envolvidas com a recompensa e seriam provavelmente estimuladas pelas
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica | 169
drogas de abuso Assim acredita-se que o sistema dopamineacutergico mesocorticoliacutembico desempenhe um papel central nas siacutendromes de dependecircncia (Volkow amp Fowler 2000 Volkow Fowler amp Wang 2003)
Dopamina e a Neurobiologia da Recompensa
Cada droga de abuso possui seu proacuteprio mecanismo de accedilatildeo mas geralmente atuam direta ou indiretamente ativando um mesmo circuito cerebral o sistema dopamineacutergico de recompensa a via final comum de reforccedilo e recompensa no ceacuterebro A via dopamineacutergica mesoliacutembica parte da aacuterea tegmental ventral e projeta-se ao nuacutecleo accumbens um dos principais componentes do estriado que tem sido considerado estrutura fundamental na mediaccedilatildeo de processos motivacionais emocionais e nos efeitos de certas drogas psicoativas Alguns autores consideram portanto que este seja o ldquocentro do prazerrdquo do ceacuterebro (Nestler 2005) Por conta disso a dopamina frequentemente eacute descrita popularmente como sendo ldquoo neurotransmissor do prazerrdquo uma definiccedilatildeo reducionista e imprecisa Eacute mais adequado conforme visto ateacute aqui considerar que a dopamina possui um papel de destaque na recompensa e na motivaccedilatildeo
Haacute diversas maneiras de desencadear ldquonaturalmenterdquo a liberaccedilatildeo de dopamina na via mesoliacutembica Realizar com sucesso tarefas intelectuais ou atleacuteticas degustar uma boa refeiccedilatildeo atingir o orgasmo apaixonar-se ou ateacute mesmo ouvir suas muacutesicas favoritas podem ser alguns desses exemplos As substacircncias que provocam dependecircncia tambeacutem seguem essa loacutegica neurobioloacutegica Contudo elas produzem um grau de disparo dopamineacutergico muito mais intenso do que aquele gerado por substacircncias ou comportamentos mais elementares relativos agrave sobrevivecircncia Esse estiacutemulo mais acentuado provocado por algumas drogas pode levar a alteraccedilotildees no circuito de recompensa conduzindo a um ciclo de busca pela substacircncia fissura dependecircncia e abstinecircncia na retirada da droga (Hyman Malenka amp Nestler 2006)
Ademais a gratificaccedilatildeo experimentada inicialmente quando a droga eacute consumida tende a diminuir com o decorrer do tempo (por mecanismos de toleracircncias farmacocineacutetica e farmacodinacircmica) podendo exigir aumento da dose para obtenccedilatildeo do mesmo efeito e
170 | Temas em Neurociecircncias
intensificando o processo de dependecircncia quiacutemica (Kalivas amp Volkow 2005)
Coloquialmente poderiacuteamos dizer que o ceacuterebro ldquoperceberdquo que natildeo eacute necessaacuterio ganhar essa recompensa naturalmente uma vez que eacute possiacutevel consegui-la de maneira mais intensa e com menor esforccedilo pelo uso de uma substacircncia quiacutemica Natildeo apenas drogas mas comportamentos potencialmente desadaptativos como jogo patoloacutegico uso intenso de internet compras compulsivas entre outros podem tambeacutem levar agrave liberaccedilatildeo de dopamina na via mesoliacutembica de maneira semelhante (Balodis et al 2012)
Com o passar do tempo natildeo apenas a recompensa mas tambeacutem a antecipaccedilatildeo da recompensa associa-se agrave busca da droga ou de situaccedilotildees envolvidas nos transtornos impulsivos-compulsivos Ou seja os neurocircnios dopamineacutergicos deixam de responder apenas ao reforccedilador inicial (como a droga de abuso) e passam a responder ao estiacutemulo condicionado (ver a droga ou as pessoas ou locais que se relacionam ao seu consumo) Isso corresponde neurobiologicamente agrave migraccedilatildeo do aumento de dopamina do nuacutecleo accumbens para o estriado dorsal caracterizando a transiccedilatildeo da impulsividade para a compulsividade (Dalley Everitt amp Robbins 2011 Everitt amp Robbins 2013)
A dopamina estaacute portanto associada agrave motivaccedilatildeo para a busca e consumo de drogas caracteriacutesticas centrais do dependente quiacutemico Assim o indiviacuteduo apresenta foco e motivaccedilatildeo quando busca obter a droga poreacutem demonstra apatia quando envolvido em atividades que natildeo se relacionam com ela A dissonacircncia entre expectativa dos efeitos da droga e os efeitos cada vez mais atenuados da dopamina manteacutem o uso compulsivo da substacircncia como uma tentativa de conquista da recompensa esperada (Melis Spiga amp Diana 2005)
A Forma de Utilizaccedilatildeo e o Risco de Dependecircncia
A velocidade com a qual uma droga atinge seu siacutetio de accedilatildeo pode determinar a intensidade dos efeitos e o grau da experiecircncia subjetiva do indiviacuteduo e portanto tambeacutem contribui para aumentar ou reduzir as chances de uma pessoa se tornar dependente Eacute por isso que muitas das drogas de abuso satildeo injetadas ou inaladas
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica | 171
sendo consideravelmente mais reforccediladoras assim do que se fossem utilizadas por outras vias como a via oral Sendo assim a maneira mais raacutepida e potente de fazer com que uma substacircncia alcance o sistema nervoso central de maneira simples e natildeo invasiva eacute fumando aquelas que satildeo compatiacuteveis com essa via Por isso o cigarro de tabaco maconha crack metanfetamina entre outras costumam ser utilizadas por essa via levando a descargas faacutesicas (e em grande quantidade) de dopamina (Ferris et al 2012)
Desse modo os efeitos reforccediladores da droga dependem natildeo apenas da presenccedila de dopamina no circuito de recompensa cerebral mas tambeacutem da intensidade da sua liberaccedilatildeo Essa intensidade por sua vez depende intrinsecamente do mecanismo de accedilatildeo de cada droga e tambeacutem eacute determinada pela via de administraccedilatildeo adotada Um aumento abrupto e pronunciado de dopamina mimetiza a liberaccedilatildeo dopamineacutergica faacutesica associada agrave recompensa e motivaccedilatildeo favorecendo a dependecircncia (Lodge amp Grace 2006)
Por outro lado alguns faacutermacos que tambeacutem provocam essa liberaccedilatildeo de dopamina quando administradas por via oral e em baixas doses atuam pouco como reforccediladores e podem ser utilizados no tratamento de alguns transtornos Esse eacute o exemplo do uso da Ritalinareg (metilfenidato) para o tratamento do transtorno do deacuteficit de atenccedilatildeo e hiperatividade (TDAH) Isso natildeo extingue a possibilidade de o metilfenidato provocar dependecircncia mas certamente confere a esse faacutermaco um efeito menos reforccedilador que a cocaiacutena ou metanfetamina por exemplo (Volkow 2006 Volkow Fowler Wang Ding amp Gatley 2002)
Nem soacute de Dopamina Vive um Ceacuterebro ldquoDependenterdquo
Ateacute aqui af irmamos que a dopamina eacute o principal neurotransmissor envolvido na motivaccedilatildeo e recompensa Entretanto se diferentes classes de drogas de abuso possuem mecanismos de accedilatildeo distintos podendo provocar diversos tipos de efeitos como todas elas de alguma forma aumentam dopamina
Ainda que o sistema dopamineacutergico mesocorticoliacutembico represente o sistema de recompensa cerebral neurotransmissores
172 | Temas em Neurociecircncias
como serotonina noradrenalina acetilcolina glutamato e o aacutecido gama-aminobutiacuterico (GABA) satildeo tambeacutem responsaacuteveis pela modulaccedilatildeo dos neurocircnios dopamineacutergicos da via mesoliacutembica e estatildeo envolvidos nesse sistema Endorfinas e opioides endoacutegenos bem como endocanabinoacuteides (como anandamida) tambeacutem influenciam esse circuito favorecendo atividade dopamineacutergica (Koob amp Volkow 2010)
Sendo assim diversas substacircncias psicotroacutepicas de uso abusivo possuem a capacidade de mimetizar esses sinalizadores endoacutegenos atuando como agonistas de receptores cerebrais no sistema de recompensa tendo como efeito final a liberaccedilatildeo ldquoartificialrdquo de dopamina Assim o aacutelcool (que reforccedila os efeitos do GABA e opioides) os proacuteprios opioides exoacutegenos (como a morfina) os estimulantes (que aumentam a liberaccedilatildeo e inibem recaptaccedilatildeo da proacutepria dopamina) a maconha (que estimula receptores canabinoacuteides) os benzodiazepiacutenicos (que reforccedilam accedilatildeo do GABA) os alucinoacutegenos (que estimulam receptores serotonineacutergicos) e a nicotina (que mimetiza a accedilatildeo da acetilcolina) satildeo capazes de afetar e desregular o sistema dopamineacutergico mesoliacutembico favorecendo a dependecircncia (Stahl 2013)
A Figura 2 resume essa complexa relaccedilatildeo Neurocircnios dopamineacutergicos projetam-se da aacuterea tegmental ventral para o nuacutecleo accumbens Conforme mencionamos anteriormente o aumento da liberaccedilatildeo de dopamina nessa aacuterea estaacute associado agrave recompensa e motivaccedilatildeo Esses neurocircnios dopamineacutergicos sofrem regulaccedilotildees negativas e positivas por diversos outros neurocircnios (natildeo mostrados na figura) e seus neurotransmissores Faacutermacos estimulantes cocaiacutena metanfetamina aumentam diretamente a disponibilidade sinaacuteptica de dopamina Opioides e drogas sedativas inibem interneurocircnios inibitoacuterios o que leva a uma desinibiccedilatildeo dos neurocircnios dopamineacutergicos enquanto o cigarro e drogas alucinoacutegenas estimulam esses neurocircnios Poreacutem independente do mecanismo de accedilatildeo o resultado final eacute o aumento de dopamina no nuacutecleo accumbens
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica | 173
Nucleo Accumbens
Aacuterea Tegmental Ventral
Interneurocircnio gabaeacutergico
ndash Opioides endoacutegenos e exoacutegenosndash GABA (e Hipnosedativos)ndash Aacutelcool
ndash Acetilcolina (e Nicotina)ndash Serotonina (e Alucinoacutegenos)
DOPAMINA(recompensa) ndash Faacutermacos Estimulantes
ndash Cocaiacutena
Figura 2 A ldquofarmaacuteciardquo cerebral no circuito da recompensa A via dopamineacutergica mesoliacutembica eacute regulada por diversos neurotransmissores As drogas de abuso mimetizam e potencializam a accedilatildeo dessas moleacuteculas favorecendo direta ou indiretamente o aumento de dopamina no nuacutecleo accumbens
Aspectos Comportamentais e Ambientais da Dependecircncia
Resumidamente um comportamento ou resposta tem maior probabilidade de voltar a ocorrer por meio de um processo comportamental chamado reforccedilo Isso acontece tanto quando haacute a inserccedilatildeo de uma estimulaccedilatildeo apetitiva para o sujeito (reforccedilo positivo) que pode vir acompanhada de uma sensaccedilatildeo de prazer ou quando haacute a retirada de uma estimulaccedilatildeo aversiva (reforccedilo negativo) que gera uma sensaccedilatildeo de aliacutevio (Baron amp Galizio 2005)
Um jeito simples de entender esses conceitos eacute imaginar um alimento Por exemplo para uma pessoa que goste muito de chocolate buscar sempre esse alimento que traz para ela uma sensaccedilatildeo prazerosa ateacute mesmo quando ela natildeo estaacute com fome mostra que o doce estaacute atuando como reforccedilo positivo Por outro lado podemos comer uma comida que nem gostamos porque estamos com muita
174 | Temas em Neurociecircncias
fome e este eacute o uacutenico recurso disponiacutevel Nesse caso a comida estaacute aliviando um desconforto (fome) e atuando como reforccedilo negativo
De modo semelhante sabemos que as drogas de abuso aumentam a liberaccedilatildeo de dopamina no nuacutecleo accumbens Dessa forma as pessoas podem utilizar as drogas em busca de uma sensaccedilatildeo de bem-estar e euforia (reforccedilo positivo) ou podem usar drogas para aliviar sensaccedilotildees ruins como ansiedade depressatildeo estados de tristeza ou mesmo para aliviar a siacutendrome de abstinecircncia (reforccedilo negativo) Isso certamente aumenta a chance de a droga ser utilizada novamente
Nos estados de abstinecircncia em geral a pessoa apresenta sintomas opostos aos observados quando estaacute sob o efeito agudo da droga abusada Por exemplo na ausecircncia de benzodiazepiacutenicos - drogas que induzem o sono - o indiviacuteduo pode experienciar um quadro de insocircnia intensa Esses sintomas satildeo acompanhados pela depleccedilatildeo dos niacuteveis de dopamina no nuacutecleo accumbens que estaacute relacionada com o forte desejo de utilizar a droga novamente (fissura) (Schulteis Stinus Risbrough amp Koob 1998)
Fissura - ou craving - eacute definida como um sentimento de desejo urgente e ldquoincontrolaacutevelrdquo de usar a substacircncia com pensamentos intrusivos que alteram o humor do usuaacuterio e provocam sensaccedilotildees fiacutesicas e alteraccedilotildees de seu comportamento Estudos apontam que a fissura estaacute relacionada tanto a desencadeadores externos (por exemplo a proacutepria droga) quanto internos (como ansiedade) (Tiffany Carter amp Singleton 2000)
Quando falamos em abuso e dependecircncia haacute vaacuterios indiacutecios que estiacutemulos ambientais possam influenciar no risco de utilizar droga (condicionamento ao ambiente) Um animal de estimaccedilatildeo que ouccedila ou veja seu dono pegando a vasilha da raccedilatildeo costuma se agitar e correr em direccedilatildeo ao local antecipando a recompensa Podemos considerar que com as drogas de abuso algo semelhante aconteccedila a visatildeo do local no qual o usuaacuterio costumava utilizar a droga por exemplo pode ser suficiente para desencadear a vontade de usaacute-la novamente uma vez que ocorre a associaccedilatildeo entre o ambiente e o efeito da droga (Rehman Mahabadi amp Rehman 2019)
Haacute relatos por exemplo de que a cantora e compositora Janis Joplin estava haacute algum tempo sem consumir heroiacutena buscando a
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica | 175
abstinecircncia completa quando reencontrou uma amiga com a qual utilizava a droga no passado juntamente com seu antigo fornecedor Isso foi suficiente para que ela tivesse uma recaiacuteda que a levou a uma overdose fatal (Bacchi 2020)
O papel do estresse na dependecircncia tambeacutem demonstra a importacircncia do ambiente para o abuso de drogas Natildeo eacute raro observarmos o comportamento de pessoas abusando de bebidas alcooacutelicas para relaxar e aliviar o estresse Certamente parte desse comportamento eacute socialmente aprendido enquanto outra parte se relaciona com as propriedades ansioliacuteticas do aacutelcool
Contudo eacute necessaacuterio frisar que nem sempre as condiccedilotildees ambientais favorecem o consumo de drogas Viver em um ambiente rico em estiacutemulos positivos com maior interaccedilatildeo social com acesso a mais recursos eou com estresse diminuiacutedo pode na verdade reduzir a autoadministraccedilatildeo de drogas (Alexander Beyerstein Hadaway amp Coambs 1981)
Geneacutetica e Dependecircncia Quiacutemica
Eacute certo que fatores geneacuteticos desempenham importante papel na dependecircncia quiacutemica Estudos epidemioloacutegicos mostram que a dependecircncia ao aacutelcool por exemplo possui um forte componente familiar com parte dessa influecircncia relacionada a caracteriacutesticas herdadas por meio de genes Essa maior vulnerabilidade geneacutetica natildeo implica necessariamente em uma dependecircncia futura mas sim no aumento do risco para dependecircncia somado aos outros fatores abordados neste capiacutetulo Nesse contexto estima-se que fatores geneacuteticos possam contribuir com em meacutedia 40 dos transtornos por abuso de substacircncias variando valores de acordo com o sexo e com a substacircncia utilizada (Swendsen amp Le Moal 2011)
Existem genes identificados que potencializam alteraccedilotildees metaboacutelicas em resposta a substacircncias especiacuteficas (facilitando ou dificultando sua toleracircncia por exemplo) e genes que influenciam diretamente a funccedilatildeo do sistema de recompensa cerebral (Agrawal et al 2012) Sobre estes uacuteltimos indiviacuteduos podem apresentar predisposiccedilotildees geneacuteticas que aumentem a chance de provocar um mau funcionamento da via mesoliacutembica de recompensa - por
176 | Temas em Neurociecircncias
reduccedilatildeo na expressatildeo de receptores de dopamina - resultando em um estado ldquohipodopamineacutergicordquo que facilita a dependecircncia compulsatildeo e impulsividade Assim pesquisadores cunharam o termo ldquoSiacutendrome da deficiecircncia de recompensardquo para representar esse desbalanccedilo neuroquiacutemico geneacutetico (Blum et al 1990 Blum et al 2012) Contudo esse tipo de influecircncia geneacutetica provavelmente natildeo se restringe apenas a genes especiacuteficos do circuito de recompensa mas tambeacutem se estende interaccedilotildees entre muacuteltiplos genes e em diferentes vias bioloacutegicas (Lobo amp Kennedy 2006)
Sendo assim a personalizaccedilatildeo de intervenccedilotildees terapecircuticas com base na geneacutetica individual tem deixado de ser algo ldquofuturistardquo para se tornar realidade em diversas especialidades meacutedicas e isso natildeo exclui os tratamentos na aacuterea de sauacutede mental (Malhotra Zhang amp Lencz 2012)
Bases do Tratamento da Dependecircncia Quiacutemica
O tratamento da dependecircncia eacute algo ainda muito incipiente considerando que foi soacute a partir do seacuteculo XXI que comeccedilamos a ter um entendimento mais soacutelido sobre a neurobiologia da dependecircncia (Oliveira Schwartz amp Stahl 2015)
Tendo em vista o que foi exposto neste capiacutetulo seria razoaacutevel imaginar que pacientes que sofram de dependecircncia quiacutemica possam se beneficiar de intervenccedilotildees farmacoloacutegicas e psicoteraacutepicas Contudo tratamentos baseados em evidecircncias com esse objetivo ainda estatildeo comeccedilando a surgir
O tratamento da dependecircncia quiacutemica se divide atualmente entre as abordagens farmacoloacutegicas e as psicossociais A maior parte dos autores e dos estudos sugere que a administraccedilatildeo isolada de faacutermacos natildeo deve ser o tratamento definitivo nos casos de dependecircncia sendo geralmente recomendada em conjunto com as abordagens psicossociais (Oliveira et al 2015)
Dentre as abordagens farmacoloacutegicas temos a divisatildeo entre terapias de substituiccedilatildeo e as terapias de natildeo substituiccedilatildeo A terapia de substituiccedilatildeo envolve o uso de um medicamento da mesma classemecanismo da droga que era utilizada em sua substituiccedilatildeo Por exemplo eacute possiacutevel substituir a heroiacutena (uma droga opioide injetaacutevel
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica | 177
de meia-vida curta) pela metadona (um medicamento opioide via oral com longa meia-vida) Essa troca auxilia a aliviar os sintomas de abstinecircncia e promove reduccedilatildeo de danos pois o paciente natildeo utilizaraacute a via injetaacutevel (com o risco de contaminaccedilatildeo por compartilhamento de seringas) nem estaraacute exposto a picos plasmaacuteticos muito intensos e de curta duraccedilatildeo que favorecem o consumo compulsivo da heroiacutena Posteriormente trabalha-se a substituiccedilatildeo da metadona por um opioide de accedilatildeo parcial como buprenorfina e por fim a abstinecircncia O uso de adesivos ou gomas de nicotina no tratamento do tabagismo segue uma loacutegica semelhante
Jaacute as terapias de natildeo substituiccedilatildeo envolvem o tratamento dos sintomas de abstinecircncia No mesmo exemplo da dependecircncia por heroiacutena pode-se usar clonidina para controlar o aumento da pressatildeo arterial benzodiazepiacutenicos para reduzir ansiedade e insocircnia analgeacutesicos para dor etc (Golan et al 2012)
A dependecircncia por cada droga especiacutefica teraacute um conjunto de ferramentas farmacoloacutegicas mais indicado para ser utilizado Contudo aleacutem da dependecircncia por heroiacutena citada anteriormente os tratamentos farmacoloacutegicos mais bem estabelecidos e com base em evidecircncia se restringem agrave dependecircncia por etanol e nicotina
Na dependecircncia por aacutelcool utiliza-se aleacutem do tratamento sintomaacutetico principalmente
bull Dissulfiram um faacutermaco que impede que um produto toacutexico da biotransformaccedilatildeo do etanol (o acetaldeiacutedo) seja corretamente eliminado fazendo com o que o paciente sinta naacuteusea e outros sintomas desconfortaacuteveis durante o consumo de aacutelcool
bull Naltrexona antagonista opioide utilizado para evitar recaiacuteda por dependentes de heroiacutena ou aacutelcool jaacute desintoxicados
bull Acamprosato um faacutermaco com accedilatildeo semelhante ao aacutelcool nos receptores de GABA e glutamato Funciona como um ldquoaacutelcool falsordquo que visa aliviar os sintomas de abstinecircncia
Assim como nas demais dependecircncias os tratamentos farmacoloacutegicos na dependecircncia do etanol satildeo mais efetivos quando integrados com a psicoterapia (Anton et al 2006 De Witte Littleton Parot amp Koob 2005 Roozen et al 2006)
O tratamento da dependecircncia por nicotina tambeacutem eacute complexo em especial pelo seu alto poder de adicccedilatildeo Mesmo interrompido o uso do cigarro a duraccedilatildeo da ldquonecessidadevontade de fumarrdquo
178 | Temas em Neurociecircncias
pode ser muito longa chegando a durar anos Os tratamentos farmacoloacutegicos especiacuteficos aprovados no contexto da dependecircncia agrave nicotina envolvem
bull Nicotina na forma de adesivos gomas ou pastilhas substituiccedilatildeo da nicotina fumada pelo cigarro de maneira mais controlada de modo a tentar reduzir a fissura e abstinecircncia (Stahl 2013)
bull Bupropiona faacutermaco antidepressivo que aumenta levemente a biodisponibilidade de dopamina ldquosuprindordquo parcialmente a necessidade dopamineacutergica do circuito de recompensa que estaacute hipoativo apoacutes a cessaccedilatildeo do tabagismo (Culbertson et al 2011)
bull Vareniclina substitui parcialmente a accedilatildeo da nicotina ao mesmo tempo estimulando de modo mais brando o circuito de recompensa (aliviando a fissura) e impedindo a accedilatildeo da nicotina fumada (reduzindo o reforccedilo associado ao uso da droga) (Crunelle Miller Booij amp van den Brink 2010)
Para drogas estimulantes como cocaiacutena crack e metanfetamina natildeo haacute tratamento farmacoloacutegico especiacutefico aprovado Por um raciociacutenio bioloacutegico e anaacutelogo ao dos tratamentos citados anteriormente substituiccedilatildeo por bupropiona d-anfetamina e modafinil foram cogitadas sem conclusotildees significativas (Castells et al 2010) Antidepressivos tambeacutem foram estudados com melhor resposta para os antidepressivos triciacuteclicos (Pani Trogu Vecchi amp Amato 2011) Uma vez que os estudos conduzidos ateacute agora natildeo satildeo suficientes para apoiar o uso desses faacutermacos enquanto protocolo oficial o tratamento farmacoloacutegico das dependecircncias por drogas estimulantes se restringe ao controle dos sintomas de abstinecircncia
Os tratamentos psicossociais constituem parte importantiacutessima no manejo dos transtornos por uso de substacircncias psicoativas Haacute diversas abordagens possiacuteveis que podem ter melhor desempenho dependendo da substacircncia e das necessidades particulares do paciente e podem ser aplicadas tanto no contexto individual quanto em grupo A Terapia Cognitivo-Comportamental e a Anaacutelise do Comportamento parecem ser abordagens funcionais para a grande maioria dos transtornos por abuso de substacircncia enquanto a Entrevista Motivacional tem demonstrado eficaacutecia para dependecircncia ao aacutelcool nicotina e THC (Cannabis) O programa de 12 passos tem sido tradicionalmente utilizado com maior sucesso nas dependecircncias de aacutelcool opioides e drogas estimulantes enquanto a terapia familiar parece exercer um impacto significativo na adesatildeo ao tratamento farmacoloacutegico nas dependecircncias por aacutelcool e opioides (Stahl amp Grady 2016)
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica | 179
Em linhas nota-se que frequentemente o melhor tratamento psicoteraacutepico para as dependecircncias depende mais do psicoterapeuta em si do que da abordagem ou teacutecnica especiacutefica adotada Talvez isso ajude a explicar o motivo de os ldquoProgramas de 12 passosrdquo serem tatildeo populares enquanto modalidade de tratamento das dependecircncias uma vez que satildeo administrados muitas vezes por pessoas que se recuperaram e que de fato se importam com essa experiecircncia em contraste com o julgamento e preconceito que ainda podem permear a praacutetica de alguns profissionais
Consideraccedilotildees Finais
O conhecimento soacutelido sobre as bases neurobioloacutegicas envolvidas na dependecircncia bem como sua integraccedilatildeo com aspectos psicoloacutegicos comportamentais e geneacuteticos eacute de fundamental importacircncia para o desenvolvimento e adoccedilatildeo de estrateacutegias preventivas e terapecircuticas para os transtornos relacionados ao uso de substacircncias
A maioria dos aspectos neurobioloacutegicos das dependecircncias podem resultar da desregulaccedilatildeo de mecanismos moleculares relacionados agrave recompensa motivaccedilatildeo e memoacuteria e nesse contexto alguns faacutermacos tecircm sido utilizados para auxiliar a ldquocorrigirrdquo esse desbalanccedilo e aliviar crises de abstinecircncia Jaacute os comportamentos relacionados a essa desregulaccedilatildeo podem ser suprimidos por mecanismos de controle que requerem a accedilatildeo do coacutertex preacute-frontal e que podem ser exercitados treinados e desenvolvidos por meio de teacutecnicas de tratamento psicoteraacutepico (Anton et al 2006)
Todavia mesmo com o uso dessas ferramentas recaiacutedas ocorrem Portanto aleacutem dos avanccedilos na aacuterea psicofarmacoloacutegica e psicoteraacutepica eacute provaacutevel que o maior esclarecimento do papel da expressatildeo gecircnica na dependecircncia quiacutemica possa trazer novas abordagens como avanccedilos na farmacogeneacutetica para o tratamento e prevenccedilatildeo desse complexo fenocircmeno (Maze amp Nestler 2011)
Referecircncias
180 | Temas em Neurociecircncias
Agrawal A Verweij K J H Gillespie N A Heath A C Lessov-Schlaggar C N Martin N G hellip Lynskey M T (2012) The genetics of addictiona translational perspective Translational Psychiatry Vol 2 p e140 httpsdoiorg101038tp201254
Alexander B K Beyerstein B L Hadaway P F amp Coambs R B (1981) Effect of early and later colony housing on oral ingestion of morphine in rats Pharmacology Biochemistry and Behavior 15(4) 571-576 httpsdoiorg1010160091-3057(81)90211-2
American Psychiatric Association (2013) Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders httpsdoiorg101176appibooks9780890425596
Anton R F OrsquoMalley S S Ciraulo D A Cisler R A Couper D Donovan D M hellip COMBINE Study Research Group for the (2006) Combined Pharmacotherapies and Behavioral Interventions for Alcohol Dependence JAMA 295(17) 2003 httpsdoiorg101001jama295172003
Austin G A (1978) Perspectives on the history of psychoactive substance use (1st
ed) Rockville National Institute on Drug Abuse
Bacchi A D (2020) Desafios Toxicoloacutegicos (1a) Salvador Editora Sanar
Balodis I M Kober H Worhunsky P D Stevens M C Pearlson G D amp Potenza M N (2012) Diminished Frontostriatal Activity During Processing of Monetary Rewards and Losses in Pathological Gambling Biological Psychiatry 71(8) 749-757 httpsdoiorg101016jbiopsych201201006
Baron A amp Galizio M (2005) Positive and negative reinforcement Should the distinction be preserved Behavior Analyst 28(2) 85-98 httpsdoiorg101007BF03392107
Blum K Noble E P Sheridan P J Montgomery A Ritchie T Jagadeeswaran P hellip Cohn J B (1990) Allelic association of human dopamine D2 receptor gene in alcoholism JAMA 263(15) 2055-2060
Blum Kenneth Cshen A L C Giordano J Borsten J Chen T J H Hauser M hellip Barh D (2012) The addictive brain All roads lead to dopamine Journal of Psychoactive Drugs 44(2) 134-143 httpsdoiorg101080027910722012685407
Castells X Casas M Peacuterez-Mantildeaacute C Roncero C Vidal X amp Capellagrave D (2010) Efficacy of Psychostimulant Drugs for Cocaine Dependence In Cochrane Database of Systematic Reviews httpsdoiorg10100214651858cd007380pub3
Clark L Robbins T W Ersche K D amp Sahakian B J (2006) Reflection Impulsivity in Current and Former Substance Users Biological Psychiatry 60(5) 515-522 httpsdoiorg101016jbiopsych200511007
Crunelle C L Miller M L Booij J amp van den Brink W (2010 February) The nicotinic acetylcholine receptor partial agonist varenicline and the treatment of drug dependence A review European Neuropsychopharmacology Vol 20 pp 69-79 httpsdoiorg101016jeuroneuro200911001
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica | 181
Culbertson C S Bramen J Cohen M S London E D Olmstead R E Gan J J hellip Brody A L (2011) Effect of bupropion treatment on brain activation induced by cigarette-related cues in smokers Archives of General Psychiatry 68(5) 505-515 httpsdoiorg101001archgenpsychiatry2010193
Dalley J W Everitt B J amp Robbins T W (2011) Impulsivity Compulsivity and Top-Down Cognitive Control Neuron 69(4) 680-694 httpsdoiorg101016jneuron201101020
De Witte P Littleton J Parot P amp Koob G (2005 August 29) Neuroprotective and abstinence-promoting effects of acamprosate Elucidating the mechanism of action CNS Drugs Vol 19 pp 517-537 httpsdoiorg10216500023210-200519060-00004
Ersche K D Turton A J Pradhan S Bullmore E T amp Robbins T W (2010) Drug Addiction Endophenotypes Impulsive Versus Sensation-Seeking Personality Traits Biological Psychiatry 68(8) 770-773 httpsdoiorg101016jbiopsych201006015
Everitt B J Belin D Economidou D Pelloux Y Dalley J W amp Robbins T W (2008) Neural mechanisms underlying the vulnerability to develop compulsive drug-seeking habits and addiction Philosophical Transactions of the Royal Society B Biological Sciences 363(1507) 3125-3135 httpsdoiorg101098rstb20080089
Everitt B J amp Robbins T W (2013 November) From the ventral to the dorsal striatum Devolving views of their roles in drug addiction Neuroscience and Biobehavioral Reviews Vol 37 pp 1946-1954 httpsdoiorg101016jneubiorev201302010
Ferris M J Calipari E S Mateo Y Melchior J R Roberts D C amp Jones S R (2012) Cocaine Self-Administration Produces Pharmacodynamic Tolerance Differential Effects on the Potency of Dopamine Transporter Blockers Releasers and Methylphenidate Neuropsychopharmacology 37(7) 1708-1716 httpsdoiorg101038npp201217
Figlie N B Bordin S amp Laranjeira R (2014) Aconselhamento em Dependecircncia Quiacutemica (2nd ed) Rio de Janeiro Rocca
Golan D E Tashjian Jr A H Armstrong E J amp Armstrong A W (2012) Princiacutepios de farmacologia a base fisiopatoloacutegica da farmacologia (3a) Guanabara Koogan
Goldstein R Z amp Volkow N D (2002) Drug Addiction and Its Underlying Neurobiological Basis Neuroimaging Evidence for the Involvement of the Frontal Cortex American Journal of Psychiatry 159(10) 1642-1652 httpsdoiorg101176appiajp159101642
Hyman S E (2005) Addiction A Disease of Learning and Memory A Hijacking of Neural Systems Related to the Pursuit of Rewards Am J Psychiatry 162(8) 1414-1422 Retrieved from httpajppsychiatryonlineorg
Hyman S E Malenka R C amp Nestler E J (2006) NEURAL MECHANISMS OF ADDICTION The Role of Reward-Related Learning and Memory Annual Review of Neuroscience 29(1) 565-598 httpsdoiorg101146annurevneuro29051605113009
182 | Temas em Neurociecircncias
Kalivas P W amp Volkow N D (2005) The Neural Basis of Addiction A Pathology of Motivation and Choice American Journal of Psychiatry 162(8) 1403-1413 httpsdoiorg101176appiajp16281403
Koob G F (2013 August) Negative reinforcement in drug addiction The darkness within Current Opinion in Neurobiology Vol 23 pp 559-563 httpsdoiorg101016jconb201303011
Koob G F amp Volkow N D (2010) Neurocircuitry of addiction Neuropsychophar-macology 35(1) 217-238 httpsdoiorg101038npp2009110
Limbrick-Oldfield E H Van Holst R J amp Clark L (2013) Review Article Fronto-striatal dysregulation in drug addiction and pathological gambling Consistent inconsistencies NeuroImage Clinical Vol 2 pp 385-393 httpsdoiorg101016jnicl201302005
Lobo D S S amp Kennedy J L (2006) The genetics of gambling and behavioral addictions CNS Spectrums 11(12) 931-939
Lodge D J amp Grace A A (2006) The Hippocampus Modulates Dopamine Neuron Responsivity by Regulating the Intensity of Phasic Neuron Activation Neuropsychopharmacology 31(7) 1356-1361 httpsdoiorg101038sjnpp1300963
Malhotra A K Zhang J-P amp Lencz T (2012) Pharmacogenetics in psychiatry translating research into clinical practice Molecular Psychiatry 17(8) 760-769 httpsdoiorg101038mp2011146
Maze I amp Nestler E J (2011) The epigenetic landscape of addiction Annals of the New York Academy of Sciences 1216(1) 99-113 httpsdoiorg101111j1749-6632201005893x
Melis M Spiga S amp Diana M (2005) The Dopamine Hypothesis of Drug Addiction Hypodopaminergic State In International review of neurobiology (Vol 63 pp 101-154) httpsdoiorg101016S0074-7742(05)63005-X
Moeller F G Barratt E S Dougherty D M Schmitz J M amp Swann A C (2017) Psychiatric Aspects of Impulsivity Psychiatric Aspects of Impulsivity 158 1783-1793 httpsdoiorg102307jctt1ww3vmm21
Nestler E J (2005) Is there a common molecular pathway for addiction Nature Neuroscience 8(11) 1445-1449 httpsdoiorg101038nn1578
Olds J amp Milner P (1954) Positive Reinforcement Produced by Electrical Stimulation of Septal Area and Other Regions of Rat Brain rsquo Stimuli have eliciting and reinforcing func- tions In studying the former one concentrates on the responses which come after the stimu- lus In J Comp Physiol Psychol 47(6) 419-427
Oliveira I R Schwartz T amp Stahl S M (2015) Integrando Psicoterapia e Psicofarmacologia (1ed ed) Porto Alegre Artmed
Pani P P Trogu E Vecchi S amp Amato L (2011) Antidepressants for cocaine dependence and problematic cocaine use Cochrane Database of Systematic Reviews (12) httpsdoiorg10100214651858cd002950pub3
Bases Neurobioloacutegicas da Dependecircncia Quiacutemica | 183
Rehman I Mahabadi N amp Rehman C I (2019) Classical Conditioning In StatPearls StatPearls Publishing
Roozen H G de Waart R van der Windt D A W M van den Brink W de Jong C A J amp Kerkhof A J F M (2006 July) A systematic review of the effectiveness of naltrexone in the maintenance treatment of opioid and alcohol dependence European Neuropsychopharmacology Vol 16 pp 311-323 httpsdoiorg101016jeuroneuro200511001
Schulteis G Stinus L Risbrough V B amp Koob G F (1998) Clonidine Blocks Acquisition But not Expression of Conditioned Opiate Withdrawal in Rats Neuropsychopharmacology 19(5) 406-416 httpsdoiorg101016S0893-133X(98)00036-0
Spragg S D S (1940) Morphine addiction in chimpanzees Comparative Psychology Monographs 15(7) 132
Stahl S M (2013) Stahlrsquos essential psychopharmacology neuroscientific basis and practical application (4th ed) Cambridge University Press
Stahl S M amp Grady M M (2016) Transtornos Relacionados a Substacircncias e do Controle de Impulsos (1ed ed) Porto Alegre Artmed
Swendsen J amp Le Moal M (2011) Individual vulnerability to addiction Annals of the New York Academy of Sciences 1216(1) 73-85 httpsdoiorg101111j1749-6632201005894x
Tiffany S T Carter B L amp Singleton E G (2000) Challenges in the manipulation assessment and interpretation of craving relevant variables Addiction (Abingdon England) 95 Suppl 2 S177-87
Volkow N D (2006) Stimulant Medications How to Minimize Their Reinforcing Effects American Journal of Psychiatry 163(3) 359-361 httpsdoiorg101176appiajp1633359
Volkow N D amp Fowler J S (2000) Addiction a Disease of Compulsion and Drive Involvement of the Orbitofrontal Cortex Cerebral Cortex 10(3) 318-325 httpsdoiorg101093cercor103318
Volkow Nora D Fowler J S amp Wang G-J (2003) Positron emission tomography and single-photon emission computed tomography in substance abuse research Seminars in Nuclear Medicine 33(2) 114-128 httpsdoiorg101053snuc2003127300
Volkow Nora D Wang G J Fowler J S Tomasi D amp Telang F (2011 September 13) Addiction Beyond dopamine reward circuitry Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America Vol 108 pp 15037-15042 httpsdoiorg101073pnas1010654108
Volkow Nora D Fowler J S Wang G J Ding Y S amp Gatley S J (2002) Role of dopamine in the therapeutic and reinforcing effects of methylphenidate in humans results from imaging studies European Neuropsychopharmacology The Journal of the European College of Neuropsychopharmacology 12(6) 557-566
184 | Temas em Neurociecircncias
World Health Organization - WHO (2004) Neuroscience of psychoactive substance use and dependence Geneva Disponiacutevel em httpsbooksgooglecombrbooksid=naYsDwAAQBAJamplpg=PR11ampots=nfauqiDe5Iampdq=Who2C20W20H20O20(2004)20of20psychoactive20substance20use20and20dependenceamplramphl=pt-BRamppg=PR11v=onepageampq=Who20W20H20O20(2004)20of20psychoactive20substance20use20and20dependenceampf=false
Dor Aguda e Dor Crocircnica
Mauro LeonelliUniversidade Estadual de Londrina
Introduccedilatildeo
A dor eacute uma das queixas mais comuns entre os pacientes que buscam atendimento meacutedico O sofrimento que a dor causa ao paciente pode levar a alteraccedilotildees do comportamento do humor e da regulaccedilatildeo de funccedilotildees dos sistemas cardiacuteaco circulatoacuterio e endoacutecrino entre outros A dor tambeacutem tem potencial de gerar alteraccedilotildees na maneira que o indiviacuteduo cuida de si proacuteprio como ele se relaciona com outras pessoas e tambeacutem na sua capacidade de trabalho Nesse sentido a dor eacute uma das principais causas de afastamento do trabalho aleacutem de gerar gastos consideraacuteveis para o seu controle
Neste capiacutetulo nossos objetivos incluembull A compreensatildeo da dor e dos processos que podem levar a sua
cronificaccedilatildeo
bull Os mecanismos baacutesicos para o desenvolvimento das dores agudas e crocircnicas
bull As aacutereas do enceacutefalo que satildeo importantes para a percepccedilatildeo da dor
bull A importacircncia que a dor pode ter quando ocorre em concordacircncia com algum estiacutemulo lesivo ou potencialmente lesivo
Desenvolvimento
O que eacute a Dor e Por Que a Sentimos
A dor eacute um dos toacutepicos da fisiologia do sistema nervoso que mais desperta interesse das pessoas ao longo dos seacuteculos uma vez que eacute a modalidade sensorial que tem inerentemente grande capacidade de direcionar a atenccedilatildeo do indiviacuteduo para ela proacutepria
Autor para correspondecircncia
mauroleonelliuelbr
Departamento de Ciecircncias Fisioloacutegicas
Rodovia Celso Garcia CidPr 445
Km 380 Caixa Postal 10011 -
CEP 86057-970 - Londrina-PR
7
186 | Temas em Neurociecircncias
Uma busca simples pelo termo ldquopainrdquo em uma ferramenta online como o pubmedgov identifica quase oitocentos mil artigos cientiacuteficos catalogados naquela base de dados (acesso em 12 agosto de 2019) o que indica o enorme esforccedilo cientiacutefico despendido para seu estudo Resumidamente a dor surge como expressatildeo da atividade neuronal que informa ao nosso ceacuterebro que algo estaacute errado em nosso corpo seja uma lesatildeo verdadeira ou mesmo alguma alteraccedilatildeo da atividade neuronal que interfere na sinalizaccedilatildeo das vias sensoriais da dor A dor eacute portanto muito mais do que apenas um sinal sensorial que gera uma percepccedilatildeo definida e analisaacutevel de forma objetiva Ao se expressar como percepccedilatildeo gera tambeacutem alteraccedilotildees emocionais e neurovegetativas (Craig 2003) de forma que nosso sistema nervoso seja capaz de identificar o possiacutevel local de origem do estiacutemulo doloroso e paralelamente iniciar a atividade de outras regiotildees do enceacutefalo que permitem o alerta por ativar circuitos que aumentam a atividade neuronal basal de aacutereas essenciais do sistema nervoso de forma que nossos outros sentidos tambeacutem fiquem mais sensiacuteveis a estiacutemulos e nossas respostas motoras mais raacutepidas e vigorosas a programaccedilatildeo motora para proteger a aacuterea supostamente lesionada a aversatildeo um estado emocional subjetivo que nos informa de que algo estaacute errado com o nosso organismo as respostas neurovegetativas que incluem a modulaccedilatildeo do sistema nervoso simpaacutetico e liberaccedilatildeo de hormocircnios ligados a situaccedilotildees de estresse como aqueles estimulados pelo eixo hipotalacircmico-hipofisaacuterio-adrenal e o aprendizado seja para evitar no futuro o que causou a dor ou para amplificar ou controlar as outras respostas geradas pela dor
Definiccedilotildees de Dor
Definir a dor natildeo eacute algo trivial Sabemos que se perguntarmos a uma pessoa sobre um som puro ela daraacute informaccedilotildees como a intensidade se eacute agudo ou grave e talvez sobre o timbre Se o som for muito grave provavelmente vai dizer que o som eacute soturno ou triste e se for muito agudo sentiraacute incocircmodo e se queixaraacute que o som eacute irritante Se perguntarmos sobre a cor azul talvez usaraacute o frio como referecircncia para expor a emoccedilatildeo que a lembranccedila da percepccedilatildeo daquela cor gera Assim os diversos sentidos podem gerar
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 187
percepccedilotildees bem definidas e de relativa facilidade de se reproduzir em outros indiviacuteduos (um objeto com temperatura a zero grau Celsius seraacute sentido como frio pela grande maioria das pessoas se natildeo por todas) mas podem gerar tambeacutem respostas mais complexas que dependem do momento em que o estiacutemulo estaacute sendo realizado do grau de alerta do indiviacuteduo do seu estado emocional e das memoacuterias e associaccedilotildees que obteve com suas experiecircncias de vida
A dor tambeacutem envolve desde respostas relativamente simples como reflexos motores a outras muito elaboradas como identificaccedilatildeo do local do estiacutemulo intensidade duraccedilatildeo e grau de sofrimento que gera aleacutem de alteraccedilotildees comportamentais e neurovegetativas que podem ser severas dentre outras caracteriacutesticas e assim carece de definiccedilatildeo ampla Segundo a Associaccedilatildeo Internacional para o Estudo da Dor (IASP - International association for the study of pain) a dor pode ser definida como ldquouma experiecircncia sensorial e emocional desagradaacutevel associada a lesatildeo tecidual verdadeira ou potencial ou descrita com os mesmos termos de tal lesatildeordquoa (Bonica 1979) Por essa definiccedilatildeo nota-se que eacute esperado que a dor por si inclua a alteraccedilatildeo emocional do paciente e como tal tem alto potencial de gerar alteraccedilotildees neurovegetativas mesmo que o paciente as negue ou mesmo que mascare as alteraccedilotildees comportamentais que seriam esperadas pelo quadro Assim mesmo que o paciente natildeo se queixe da dor que sente eacute de se esperar que seu estado emocional e consequentemente suas funccedilotildees neurovegetativas sejam condizentes com uma situaccedilatildeo de estresse seja ele agudo ou crocircnico (exemplos em Nordin amp Fagius 1995 Hannibal amp Bishop 2014) Pela mesma definiccedilatildeo o estabelecimento da dor e de suas respostas precede em importacircncia a sua causa por um aspecto a necessidade primordial de se reconhecer a dor
A dor pode estar associada a lesatildeo de tecidos do organismo ou mesmo a situaccedilotildees de lesatildeo potencial como por exemplo quando comprimimos a matildeo com forccedila e temos dor enquanto a compressatildeo permanece mas cessa assim que a compressatildeo tambeacutem eacute reduzida Adicionalmente um paciente pode ter dor mesmo na ausecircncia de
a Traduccedilatildeo livre da definiccedilatildeo da IASP para dor ldquoan unpleasant sensory and emotional experience associated with actual or potential tissue damage or described in terms of such damagerdquo Disponiacutevel em httpswwwiasp-painorg Acesso em 1 ago 2019
188 | Temas em Neurociecircncias
causas mais comuns que causariam a dor como eacute observado nas dores neuropaacuteticas Nesse caso a dor eacute gerada por mecanismos que afetam o funcionamento das vias de transmissatildeo e processamento da dor como regiotildees de nervos ou locais de transmissatildeo entre neurocircnios de nuacutecleos cerebrais de controle da dor e dessa forma o paciente se queixa da dor mesmo que uma lesatildeo natildeo exista ou seja o paciente descreve a dor e tem a sensaccedilatildeo de que uma lesatildeo existe mas aparentemente eacute o sistema nervoso do paciente que interpreta de forma atiacutepica os sinais que recebe De qualquer forma a pessoa sente a dor e sofre com ela devendo ter acesso a tratamento adequado assim como a pessoa que tem uma lesatildeo verdadeira e a dor resultante dela
Dessa forma fica claro que a definiccedilatildeo da dor inclui fatores objetivos e outros subjetivos e ambos satildeo essenciais para que natildeo haja exclusatildeo de casos em que a expressatildeo dor seja encontrada em um paciente que a expresse de forma atiacutepica Outros autores tentam estabelecer definiccedilotildees mais abrangentes para a dor Por exemplo segundo Cohen et al (2018) ldquoa dor eacute uma experiecircncia somaacutetica mutuamente reconheciacutevel que reflete a apreensatildeo de uma pessoa de ameaccedila agrave sua integridade fiacutesica ou existencialrdquob Por essa definiccedilatildeo o caraacuteter emocional da dor eacute ainda mais valorizado bem como a capacidade que a dor tem de funcionar como linguagem Pelos sinais que gera em um indiviacuteduo a dor pode ser reconhecida entre membros da mesma espeacutecie ou mesmo de espeacutecies diferentes e assim pode ser capaz de alterar o comportamento natildeo soacute daquele indiviacuteduo que a sofre como de algum observador gerando respostas sociais adaptativas
Essas respostas sociais causadas pela dor incluem aquilo que chamamos de empatia que eacute a resposta que um indiviacuteduo pode ter ao observar nesse caso o sofrimento do outro Essas respostas satildeo comuns em humanos mesmo naqueles que nascem sem a capacidade para sentir dor Aparentemente a incapacidade de sentir dor natildeo impede que a pessoa entenda o sofrimento (Danziger et al 2009) que faz parte das alteraccedilotildees causadas pela dor mas natildeo eacute exclusiva a ela (Chen 2018) Jaacute foi demonstrado inclusive que animais expressam empatia pelo sofrimento de outros da mesma
b Traduccedilatildeo livre de ldquoPain is a mutually recognizable somatic experience that reflects a personrsquos apprehension of threat to their bodily or existential integrityrdquo (Cohen et al 2018)
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 189
espeacutecie dessa forma reagindo ao perceber que um semelhante estaacute em sofrimento e mesmo libertando-o de situaccedilotildees estressantes (Ben-Ami Bartal et al 2011)
Quando comparamos a dor com outras modalidades sensoriais percebemos enormes diferenccedilas com relaccedilatildeo agraves respostas que os estiacutemulos de dor podem gerar nas pessoas Possivelmente se um colega tocar na palma da sua matildeo com uma bola de algodatildeo vocecirc perceberaacute o estiacutemulo localizado sua textura e forccedila de compressatildeo sobre a matildeo Caso quem te faccedila o estiacutemulo seja uma pessoa que vocecirc natildeo tem ligaccedilatildeo afetiva possivelmente nenhuma emoccedilatildeo te ocorreraacute durante o estiacutemulo Se esse estiacutemulo ocorrer de forma constante provavelmente vocecirc natildeo o perceberaacute apoacutes alguns segundos pois por vaacuterios mecanismos moleculares locais ou mesmo por outros mais complexos processados pelo seu sistema nervoso central ele perde sua relevacircncia ao natildeo variar com o tempo Jaacute um estiacutemulo doloroso pode ativar maior nuacutemero de aacutereas do seu sistema nervoso central e assim geralmente eacute um estiacutemulo de maior relevacircncia funcional para seu enceacutefalo A dor pelos circuitos que ativa em uma resposta padratildeo a uma lesatildeo tem maior capacidade de gerar respostas mais abrangentes intensas e de difiacutecil adaptaccedilatildeo
Parte dos circuitos neuronais envolvidos na percepccedilatildeo da dor satildeo organizados de forma que sua atividade tambeacutem eacute capaz de gerar as respostas a dor ou de recrutar outras aacutereas do enceacutefalo para tanto sendo que grande parte dessas respostas satildeo essenciais para a proteccedilatildeo do organismo exatamente contra as possiacuteveis causas da dor Por exemplo as estruturas encefaacutelicas responsaacuteveis pela cogniccedilatildeo ou seja pela aquisiccedilatildeo processamento estoque e geraccedilatildeo de respostas pelo sistema nervoso central em parte tambeacutem satildeo utilizadas pelos sistemas que permitem a percepccedilatildeo e resposta agrave dor (Lawlor 2002) A dor em si eacute um processo cognitivo uma vez que eacute utilizada como forma de avaliaccedilatildeo das condiccedilotildees do organismo Diversas regiotildees encefaacutelicas que sabidamente satildeo importantes para a percepccedilatildeo possuem outras funccedilotildees em outros processos cognitivos assim tanto a dor eacute capaz de alterar as funccedilotildees cognitivas do indiviacuteduo como tambeacutem o proacuteprio indiviacuteduo e seu estado mental em determinado momento tem a possibilidade de modular a percepccedilatildeo da dor conscientemente (Moriarty et al 2011) Esses conceitos satildeo coerentes com a visatildeo atual de que a dor assim como outros sistemas natildeo
190 | Temas em Neurociecircncias
depende exclusivamente de uma aacuterea encefaacutelica para sua expressatildeo embora vaacuterias sejam essenciais para que a dor se expresse de forma completa em um indiviacuteduo Assim o funcionamento coordenado de diversas regiotildees encefaacutelicas inicialmente codificados geneticamente e posteriormente adaptados pelas experiecircncias do indiviacuteduo (Melzack 1990) parece ser o substrato de toda a plecirciade de respostas observadas pela dor ao contraacuterio da visatildeo mais claacutessica de circuitos bem isolados para cada sistema
A memoacuteria da Dor natildeo eacute Apenas Dor
Com as deacutecadas e o avanccedilo dos estudos sobre dor fica cada vez mais difiacutecil de ela ser comparada diretamente com outros sistemas sensoriais Para exemplificar a evocaccedilatildeo da memoacuteria da dor vamos utilizar como exemplos estiacutemulos no sistema auditivo e nos sistemas da olfaccedilatildeo e paladar Se lembrarmos de uma muacutesica que nos cause emoccedilatildeo podemos lembrar-nos dos acordes da letra e podemos nos emocionar inclusive como se a estiveacutessemos ouvindo no momento Podemos lembrar-nos da casa da nossa matildee que possuiacutea um cheiro caracteriacutestico do ambiente daquele prato preferido que vocecirc devorava haacute anos o que poderaacute despertar inclusive alteraccedilotildees emocionais incluindo as parassimpaacuteticas se for o caso Mas vocecirc natildeo se lembraraacute do sabor de forma exata e teraacute de provar novamente para ter a mesma sensaccedilatildeo o que provavelmente seraacute muito mais intenso que a simples evocaccedilatildeo da memoacuteria
As respostas emocionais e neurovegetativas da recordaccedilatildeo da dor natildeo necessariamente teratildeo valecircncia negativa apenas por estarem associadas agrave dor Em trageacutedias acidentes tratamentos meacutedicos natildeo-eletivos e outras situaccedilotildees claramente negativas a memoacuteria da dor resultaraacute em uma recordaccedilatildeo negativa pelo paciente (Williams e Baird 2016) Por outro lado eacute sugerido que a experiecircncia da dor em mulheres durante o parto por exemplo uma situaccedilatildeo associada agrave maternidade e a todos os valores positivos que esse momento pode ser capaz de gerar pode alterar o modo como a experiecircncia da dor eacute memorizada de forma que parece haver reduccedilatildeo da valecircncia negativa da experiecircncia da dor nesse processo (Babel et al 2015)
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 191
A pessoa ao recordar a dor natildeo se lembra apenas dos seus aspectos fiacutesicos mas dos psicoloacutegicos e daqueles referentes ao local condiccedilatildeo e fatores que a levaram a sentir dor de forma que esses fatores em conjunto e natildeo a percepccedilatildeo dolorosa isolada eacute que levam agrave recriaccedilatildeo do contexto e da recordaccedilatildeo do sofrimento Isso ocorre pois o que uma pessoa sente quando estaacute com alguma dor natildeo eacute reflexo da ativaccedilatildeo de uma regiatildeo do ceacuterebro apenas mas da ativaccedilatildeo de uma sequecircncia coordenada de regiotildees do enceacutefalo que acabam por gerar a percepccedilatildeo da dor e de seus contextos cognitivos emocionais e neurovegetativos ao mesmo tempo e grande parte da interpretaccedilatildeo ocorre de forma paralela e interdependente (Becker et al 2019)
Em consequecircncia para as situaccedilotildees mais amenas a que estamos expostos na vida e mesmo para as mais graves poreacutem evitaacuteveis pela voliccedilatildeo a memoacuteria associada a um evento doloroso pode ser fisiologicamente didaacutetica na medida em que pode gerar mudanccedilas de comportamentos por meio do aprendizado a fim de que o indiviacuteduo natildeo se exponha a situaccedilotildees que causem dor no futuro Adicionalmente esses fatores aumentam o leque de possibilidades para a terapecircutica aplicada agrave analgesia uma vez que se mais regiotildees estatildeo envolvidas na geraccedilatildeo dos aspectos negativos da dor maior nuacutemero de mecanismos moleculares pode se tornar alvos farmacoloacutegicos para seu tratamento direto e de suas consequecircncias sobre o comportamento do indiviacuteduo com dor (Alvarado et al 2015)
O Processamento da Dor se Inicia como a Detecccedilatildeo de Padrotildees Potencialmente Associados a Lesotildees
Como todo sistema sensorial a dor eacute organizada de forma que o estiacutemulo inicial eacute inicialmente detectado por ceacutelulas especializadas e haacute a propagaccedilatildeo da informaccedilatildeo sensorial detectada por neurocircnios que projetam para outros neurocircnios de regiotildees especiacuteficas do sistema nervoso central que vatildeo gerar a percepccedilatildeo e respostas associadas ao estiacutemulo Os receptores que detectam a dor satildeo chamados de nociceptores Satildeo neurocircnios especializados em detectar estiacutemulos potencialmente nocivos As fibras dessas ceacutelulas natildeo formam oacutergatildeos especializados e assim as terminaccedilotildees nervosas livres desses
192 | Temas em Neurociecircncias
neurocircnios se localizam na pele e em tecidos profundos do organismo Interessantemente o sistema nervoso central eacute desprovido de nociceptores Qualquer dor associada aos processos inflamatoacuterios infecciosos traumaacuteticos ou de tumores no sistema nervoso central se daacute pela ativaccedilatildeo de nociceptores nas membranas que revestem esse tecido nos vasos sanguiacuteneos ou por lesotildees causadas em nuacutecleos de processamento da dor
Nociceptores satildeo associados a dois tipos de fibras nervosas Os nociceptores que possuem mielina satildeo ceacutelulas mais raacutepidas chamadas de fibras A-delta enquanto as fibras mais lentas que natildeo possuem mielina satildeo as fibras do tipo C Essas fibras respondem a diferentes estiacutemulos e satildeo classificadas de acordo com os estiacutemulos que as ativam Os nociceptores do tipo A-delta ativados por temperatura acima de 43ordmC e abaixo de 5ordmC satildeo os nociceptores teacutermicos enquanto os nociceptores mecacircnicos satildeo aqueles ativados por estiacutemulos mecacircnicos como a pressatildeo intensa Os receptores polimodais satildeo fibras do tipo C ativadas por fortes estiacutemulos mecacircnicos pelo frio e calor intensos ou por estiacutemulos quiacutemicos como a queda do pH extracelular O quarto tipo satildeo os nociceptores silenciosos que satildeo encontrados em viacutesceras e natildeo satildeo normalmente ativados Sua ativaccedilatildeo eacute mais proeminente quando haacute um processo inflamatoacuterio ou liberaccedilatildeo de agentes quiacutemicos (Bell 2018)
A dor que temos quando um nociceptor eacute ativado por um estiacutemulo como os citados anteriormente eacute chamada de dor nociceptiva pois necessariamente haacute a ativaccedilatildeo de fibras nervosas perifeacutericas para a sua deflagraccedilatildeo Esse tipo de dor geralmente perdura enquanto o estiacutemulo inicial continua ativando o nociceptor e cessa assim que o estiacutemulo for removido Quando um nociceptor teacutermico eacute exposto a uma temperatura acima de 43ordmC por exemplo quando vocecirc aquece demais a aacutegua do chuveiro e verifica com a matildeo se estaacute quente demais uma classe de moleacuteculas da superfiacutecie dessa fibra eacute ativada Satildeo proteiacutenas que formam canais que permitem a passagem de caacutetions pela membrana celular os canais do tipo TRPV1 Essas proteiacutenas satildeo ativadas por temperatura alta (gt43ordm) e sua ativaccedilatildeo excita os nociceptores que disparam potenciais eleacutetricos que percorrem toda a fibra sensorial em direccedilatildeo ao sistema nervoso central Os canais TRPV1 tambeacutem podem ser ativados pelo pH aacutecido tiacutepico de tecidos inflamados (Caterina et al 1997) Assim cada moleacutecula desencadeadora de estiacutemulos nos nociceptores
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 193
funciona como batedores que satildeo capazes de gerar a ativaccedilatildeo dos nociceptores a diversos estiacutemulos associados a lesatildeo celular real ou potencial A importacircncia dessas proteiacutenas eacute tatildeo grande que mutaccedilotildees em uma delas um canal para soacutedio chamado Nav17 pode fazer com que os nociceptores simplesmente natildeo respondam a estiacutemulos e que o indiviacuteduo natildeo sinta dor (Cox et al 2006) O potaacutessio extracelular elevado pode levar a ativaccedilatildeo dos dois tipos de nociceptores A loacutegica por traacutes desse processo eacute que o aumento de potaacutessio extracelular ocasionado por exemplo pela lesatildeo e morte de ceacutelulas altera a dinacircmica do fluxo de iacuteons atraveacutes da membrana dos nociceptores reduzindo o escape natural de potaacutessio que ocorreria nos nociceptores dessa forma ativando essa ceacutelula mais facilmente
O processo inflamatoacuterio tambeacutem produz substacircncias que podem ativar e amplificar a resposta dos nociceptores o que chamamos de dor inflamatoacuteria ou dor com componente inflamatoacuterio Nesse caso a intensidade de ativaccedilatildeo do nociceptor seraacute maior mesmo para um estiacutemulo que anteriormente era inoacutecuo Por exemplo se sairmos pela manhatilde com um sapato novo provavelmente ele natildeo incomodaraacute muito mas se com o passar do dia for gerada uma inflamaccedilatildeo no calcanhar o mesmo toque do sapato que antes natildeo causara nenhuma sensaccedilatildeo ruim agora causaraacute dor pois o tecido estaacute inflamado Essa condiccedilatildeo eacute chamada de hiperalgesia O processo inflamatoacuterio recruta ceacutelulas que produzem localmente substacircncias como prostaglandinas leucotrienos ATP bradicinina serotonina histamina entre outras que aumentam a sensibilidade dos nociceptores ao atuar direta ou indiretamente em canais iocircnicos como o TRPV1 e outras moleacuteculas de sinalizaccedilatildeo celular Vaacuterias dessas moleacuteculas satildeo derivadas do aacutecido araquidocircnico e tem a sua produccedilatildeo reduzida por anti-inflamatoacuterios o que justifica sua utilizaccedilatildeo no tratamento desse tipo de dor A ativaccedilatildeo repetida dos nociceptores tambeacutem acarreta uma maior eficiecircncia na sinapse entre nociceptores e neurocircnios de segunda ordem de forma que esse evento plaacutestico tambeacutem resulta em aumento da sensibilidade das vias de transmissatildeo da dor (Costigan et al 2009)
Circuitos Neuronais para a Dor
As vias de transmissatildeo de dor em direccedilatildeo ao enceacutefalo satildeo rotas formadas por neurocircnios que levam informaccedilatildeo da medula espinhal
194 | Temas em Neurociecircncias
em direccedilatildeo a centros de processamento da informaccedilatildeo Uma dessas vias eacute o trato espinotalacircmico cujas fibras de neurocircnios de segunda ordem chegam ao taacutelamo fazendo nova sinapse com neurocircnios que iratildeo projetar para regiotildees do coacutertex cerebral A ativaccedilatildeo desse trato naturalmente ou experimentalmente pode levar o paciente a sentir dor Ainda em alguns casos de dor crocircnica esse trato pode ser excisado cirurgicamente na tentativa de reduccedilatildeo do quadro algeacutesico (Romanelli et al 2004) Outras vias levam informaccedilatildeo para outras aacutereas essenciais para as respostas fisioloacutegicas da dor O trato espinoreticular atinge a formaccedilatildeo reticular do bulbo e algumas de suas fibras fazem sinapse com neurocircnios de terceira ordem que atingem o taacutelamo onde nova sinapse com neurocircnios de quarta ordem vatildeo atingir regiotildees do coacutertex cerebral O trato espinomesencefaacutelico eacute composto por fibras que projetam para a formaccedilatildeo reticular do mesenceacutefalo substacircncia cinzenta periaqueductal e nuacutecleo parabraquial onde fazem sinapse com neurocircnios que projetam para as amiacutegdalas de forma que participam nas respostas afetivas e emocionais da dor O trato espino-hipotalacircmico possui axocircnios que projetam para o hipotaacutelamo uma regiatildeo diencefaacutelica essencial para a regulaccedilatildeo neurovegetativa do organismo regulando a funccedilatildeo autonocircmica hormonal e alguns comportamentos baacutesicos e essenciais ligados agrave sobrevivecircncia do indiviacuteduo e da espeacutecie
Quais Regiotildees do Enceacutefalo satildeo Ativadas pelos Estiacutemulos Dolorosos
O processo de detecccedilatildeo da dor de forma consciente eacute muito complexo e envolve a ativaccedilatildeo de diversas regiotildees em niacuteveis diferentes do SNC O processo inicial de ativaccedilatildeo dos nociceptores e ativaccedilatildeo inicial das vias de projeccedilatildeo a aacutereas mais superioras do SNC eacute chamada de nocicepccedilatildeo que eacute a detecccedilatildeo e processamento inicial do estiacutemulo doloroso Embora essencial para vaacuterios mecanismos de controle comportamental e neurovegetativo essa fase inicial ainda natildeo implica que a pessoa percebe conscientemente o estiacutemulo Para que haja percepccedilatildeo consciente de um estiacutemulo doloroso eacute necessaacuteria que haja a ativaccedilatildeo de vias que levam a informaccedilatildeo para taacutelamo e regiotildees especiacuteficas do coacutertex cerebral Somente com a
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 195
ativaccedilatildeo dessas regiotildees eacute que o indiviacuteduo eacute capaz de reportar que sente dor e assim pode reagir a ela
As regiotildees talacircmicas que processam a informaccedilatildeo de dor satildeo essenciais para a percepccedilatildeo consciente da dor Um tipo de dor que pode ser desenvolvida eacute a dor central causada por lesotildees talacircmicas ou de suas projeccedilotildees para o coacutertex As projeccedilotildees talacircmicas atingem vaacuterias regiotildees corticais direta e indiretamente (Garcia-Larrea amp Bastuji 2018) As regiotildees de coacutertex somatossensorial primaacuterio e secundaacuterio satildeo aquelas mais envolvidas com as funccedilotildees de localizaccedilatildeo do estiacutemulo da dor Aacutereas corticais motoras tambeacutem satildeo ativadas e refletem a complexidade que a percepccedilatildeo dolorosa pode gerar uma vez que essas regiotildees quando ativadas estatildeo potencialmente relacionadas com a programaccedilatildeo motora que pode fazer com que o indiviacuteduo se proteja da dor O coacutertex cingulado anterior participa da adequaccedilatildeo das respostas emocionais agrave dor A remoccedilatildeo ciruacutergica dessa regiatildeo liacutembica reduz a percepccedilatildeo dolorosa (Sharim amp Pouratian 2016) Outra regiatildeo ativada por estiacutemulos dolorosos eacute o coacutertex insular Essa regiatildeo eacute essencial para a percepccedilatildeo consciente da dor Pacientes com lesotildees nessa regiatildeo satildeo capazes de perceber e de relatar a dor mas apresentam severo deacuteficit na geraccedilatildeo de respostas emocionais agrave dor estado conhecido como assimbolia para a dor (Berthier et al 1988)
Por Que a Intensidade de uma Dor Varia no Dia
A percepccedilatildeo da dor varia muito entre pessoas e tambeacutem para a mesma pessoa na dependecircncia do contexto na qual ela estaacute exposta como a hora do dia se ela estaacute em uma situaccedilatildeo de estresse se ela estaacute motivada se estaacute com alguma outra doenccedila sistecircmica dentre vaacuterias outras situaccedilotildees Os mecanismos que podem estar por traacutes disso satildeo vaacuterios Um deles eacute um sistema neuronal que parte do tronco encefaacutelico em direccedilatildeo a diversos niacuteveis medulares onde modula a capacidade de transmissatildeo de informaccedilatildeo na primeira sinapse das aferecircncias sensoriais relacionadas agrave dor O sistema de controle endoacutegeno da dor inclui a substacircncia cinzenta periaqueductal (PAG) uma regiatildeo mesencefaacutelica que quando estimulada pode gerar intensa analgesia A PAG se conecta com outros nuacutecleos do tronco
196 | Temas em Neurociecircncias
encefaacutelico incluindo vias noradreneacutergicas que partem do locus ceruleus e serotonineacutergicas que partem dos nuacutecleos da rafe Esses nuacutecleos participam de grande nuacutemero de funccedilotildees no sistema nervoso central aleacutem do controle da dor Fibras descendentes partindo desses nuacutecleos se encaminham ao corno dorsal da medula espinhal onde agem direta e indiretamente nas sinapses entre os nociceptores e os neurocircnios de segunda ordem das vias nociceptivas A accedilatildeo pode ser predominantemente inibitoacuteria no caso da noradrenalina ou no caso da serotonina na dependecircncia do tipo de receptor onde age pode ser de accedilatildeo inibitoacuteria ou excitatoacuteria (Bannister amp Dickenson 2017)
As fibras descendentes tambeacutem fazem sinapses com interneurocircnios inibitoacuterios localizados no corno dorsal da medula Esses interneurocircnios produzem opioides endoacutegenos principalmente encefalinas e dinorfinas Usadas como neurotransmissores essas moleacuteculas ativam receptores acoplados a proteiacutenas G do tipo inibitoacuterias (proteiacutenas Gi) cuja ativaccedilatildeo acaba por inibir a liberaccedilatildeo do neurotransmissor excitatoacuterio glutamato utilizado na sinapse entre os nociceptores e os neurocircnios de segunda ordem das vias de dor A ativaccedilatildeo de receptores para opioides na preacute-sinapse ativa canais para potaacutessio o que faz com que o terminal preacute-sinaacuteptico tenda a natildeo despolarizar e ainda bloqueia canais para caacutelcio dependentes de voltagem o que reduz a liberaccedilatildeo de glutamato A ativaccedilatildeo desse receptor na poacutes-sinapse leva a eventos similares mas culmina na geraccedilatildeo de potenciais inibitoacuterios poacutes-sinaacutepticos o que pode reduzir a excitabilidade dos neurocircnios de segunda ordem A ativaccedilatildeo desse mesmo sistema por opioides exoacutegenos eacute muito potente no controle da dor e ateacute mesmo soldados do exeacutercito de alguns paiacuteses satildeo treinados para se auto aplicar medicamentos opioides o mais comum sendo a morfina no caso de lesotildees em campo de batalha para o controle da dor (Williams amp Baird 2016)
Situaccedilotildees relacionadas ao aumento da motivaccedilatildeo podem fazer com que os nuacutecleos onde se situam os neurocircnios noradreneacutergicos e serotonineacutergicos tenham sua atividade modulada assim resultando em alteraccedilatildeo da excitabilidade da primeira sinapse das vias nociceptivas como por exemplo durante o exerciacutecio (Lima et al 2017) A ativaccedilatildeo das vias descendentes do controle de dor tambeacutem pode ser ocasionada por situaccedilotildees de estresse muito intenso Lesotildees extensas normalmente causariam dor muito intensa em qualquer
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 197
indiviacuteduo mas o estresse e a motivaccedilatildeo podem levar agrave ativaccedilatildeo dos mesmos nuacutecleos fazendo com que a percepccedilatildeo da dor seja em muito atenuada (Butler amp Finn 2009) Em proporccedilotildees menores o mesmo sistema de controle endoacutegeno da dor nos permite suportar a dor mesmo conscientemente por exemplo quando seguramos algum objeto que nos eacute precioso e ele estaacute muito quente Nosso movimento estereotipado seria o de largar o objeto para reduzir a percepccedilatildeo de dor mas podemos conscientemente garantir a atividade de nuacutecleos motores que determinam que continuemos a segurar o objeto e outros os sistemas descendentes que atenuam em parte a sensaccedilatildeo dolorosa enquanto segurarmos o objeto que estaacute causando dor Isso ocorre pois as vias que geram a percepccedilatildeo da dor bem como os mecanismos inerentes de controle da dor satildeo muito conectados a outras aacutereas funcionais do sistema nervoso que podem assim influenciar na percepccedilatildeo dolorosa
A Dor Referida
Ao nos chocarmos contra um peacute de mesa por exemplo a primeira resposta que temos eacute um reflexo natural o reflexo de retirada que faz com que nossa perna que sofreu o choque flexione enquanto que a perna contralateral iraacute estender mantendo nossa postura ao mesmo tempo em que afasta o peacute da fonte de lesatildeo Paralelamente satildeo ativadas vias que levam a informaccedilatildeo ao nosso coacutertex somatossensorial de forma que possamos localizar a dor com maior precisatildeo Na superfiacutecie do corpo em locais muito especiacuteficos como na cavidade oral possuiacutemos um nuacutemero grande de nociceptores Ocorre que tambeacutem possuiacutemos nociceptores profundos em viacutesceras e eles tambeacutem projetam para neurocircnios de segunda ordem Poreacutem grande parte dos nociceptores que projetam a partir de viacutesceras e cavidades do nosso corpo compartilham os neurocircnios secundaacuterios dos nociceptores da superfiacutecie do corpo de forma que se temos uma lesatildeo interna os nociceptores ativados iratildeo recrutar na medula espinhal os neurocircnios de segunda ordem que informaratildeo sobre a superfiacutecie do corpo Assim uma lesatildeo no coraccedilatildeo causada por exemplo for um infarto do miocaacuterdio ativaraacute neurocircnios de segunda ordem que mapeiam a superfiacutecie cutacircnea da
198 | Temas em Neurociecircncias
regiatildeo da claviacutecula e braccedilo esquerdo gerando o que eacute chamado de dor referida Uma lesatildeo em ureter causada pela passagem de um caacutelculo provavelmente geraraacute dor que pode se estender desde o final do gradil costal da regiatildeo lombar do paciente se encaminhando para a regiatildeo anterior e descendo ateacute a regiatildeo genital dependendo da localizaccedilatildeo do caacutelculo
Dor Adaptativa e Dor natildeo Adaptativa
A dor sendo um possiacutevel sinal de lesatildeo ao organismo organiza respostas comportamentais e neurovegetativas que tendem a proteger o indiviacuteduo contra a suposta agressatildeo Se pisamos em um caco de vidro a dor gerada nos faraacute proteger o peacute lesionado nos proacuteximos passos Quando a resposta agrave dor eacute coerente com a lesatildeo temos um exemplo do que eacute chamado de dor adaptativa A dor adaptativa eacute aquela que tem iniacutecio com um estiacutemulo nociceptivo verdadeiro podendo ou natildeo ser potencializada por algum processo inflamatoacuterio mas que cessa assim que o estiacutemulo ou a inflamaccedilatildeo tecidual tiver a sua resoluccedilatildeo Dessa forma ela funciona como um aviso real ao organismo natildeo apenas informando que algo natildeo estaacute bem mas principalmente podendo organizar respostas do organismo que tendem agrave proteccedilatildeo ao reparo do dano e agraves mudanccedilas comportamentais e neurovegetativas necessaacuterias para essas respostas serem possiacuteveis As dores do tipo adaptativas estatildeo geralmente associadas mecanisticamente agrave dor nociceptiva e dor inflamatoacuteria ambas jaacute discutidas
Em outras situaccedilotildees um paciente pode se queixar que sente dor mas essa natildeo informa adequadamente sobre a origem da suposta lesatildeo e muito menos eacute capaz de servir como substrato para a organizaccedilatildeo de uma resposta que possibilite a resoluccedilatildeo dessa dor Esse eacute o caso da dor natildeo-adaptativa Esse tipo de dor estaacute geralmente associado ao aumento da atividade neuronal das vias nociceptivas e que por muitas vezes natildeo apresentam correlaccedilatildeo direta com a atividade dos nociceptores em si Satildeo ocasionadas por mecanismos plaacutesticos das vias de dor que aumentam a excitabilidade neuronal dessas vias o que pode ocorrer em diversos niacuteveis do sistema nervoso Assim mesmo na ausecircncia de um estiacutemulo que
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 199
possa causar dor as vias nociceptivas podem ser ativadas levando agrave percepccedilatildeo de dor pelo indiviacuteduo Mais do que isso a percepccedilatildeo de dor nesse caso tambeacutem geraraacute alteraccedilatildeo comportamental e neurovegetativa no paciente mas que natildeo resultaraacute em benefiacutecio para a resoluccedilatildeo da dor Um exemplo claacutessico eacute a lesatildeo de nervos perifeacutericos que pode ocasionar dor intensa mesmo depois de a lesatildeo ter sua resoluccedilatildeo A dor desenvolvida nesse caso eacute percebida pelo paciente e sua origem se daacute pelo aumento da excitabilidade de neurocircnios das vias nociceptivas Por mais que o paciente proteja o membro e que haja alteraccedilatildeo neurovegetativa condizente com o grau da dor nenhuma dessas respostas seraacute capaz de reduzir a percepccedilatildeo da dor ou de reduzir a excitabilidade dessas vias O gasto energeacutetico ocasionado com as mudanccedilas comportamentais e neurovegetativas ocasionados pelas respostas geradas pela dor nesse caso seraacute muito alto comparado com algum possiacutevel benefiacutecio que o paciente poderia ter dessa situaccedilatildeo Aleacutem disso essas alteraccedilotildees podem gerar tambeacutem reduccedilatildeo da qualidade de vida do paciente como padratildeo de sono capacidade de concentraccedilatildeo entre outras respostas que afetam de forma direta o seu desempenho no trabalho seu prazer nas atividades diaacuterias e sua capacidade de se relacionar com outros indiviacuteduos afetando negativamente a qualidade de vida As dores natildeo-adaptativas podem estar associadas a mecanismos plaacutesticos que ocorrem por toda a via nociceptiva como por exemplo na dor neuropaacutetica ou ainda por ativaccedilatildeo de mesma via por mecanismos desconhecidos como na dor disfuncional (Costigan et al 2009)
Classificaccedilatildeo da Dor Segundo os Mecanismos que a Causam
Qualquer dos tipos de dor mencionados anteriormente podem ou natildeo gerar dor crocircnica Eacute faacutecil imaginar que os tipos de dor nociceptiva e dor inflamatoacuteria satildeo os que possuem menor probabilidade de se cronificarem uma vez que a resoluccedilatildeo do processo que iniciou a dor ou a inflamaccedilatildeo iraacute cessar o estiacutemulo dos nociceptores Por outro lado em alguns casos como na artrite reumatoide o processo inflamatoacuterio pode perdurar e dessa forma o paciente iraacute continuar com dor havendo sua cronificaccedilatildeo
200 | Temas em Neurociecircncias
As dores do tipo neuropaacutetica e as dores disfuncionais possuem como caracteriacutestica a cronificaccedilatildeo Os mecanismos associados agrave ativaccedilatildeo das vias sensoriais da dor parecem nesse caso serem intensos e de mais difiacutecil resoluccedilatildeo natural A dor neuropaacutetica eacute definida como sendo a dor que resulta inicialmente da lesatildeo de vias nociceptivas perifeacutericas e centrais e de consequentes mecanismos plaacutesticos subjacentes de forma que essas vias ficam ativas ou podem ser ativadas por estiacutemulos muito mais fracos ou mesmo na ausecircncia de estiacutemulos ou seja espontacircnea Nesse caso a doenccedila de base eacute a proacutepria alteraccedilatildeo da organizaccedilatildeo e funcionamento do sistema nociceptivo (Colloca et al 2017) Algumas doenccedilas ou situaccedilotildees que podem levar agrave dor neuropaacutetica satildeo aquelas que causam por conseguinte lesotildees no sistema nociceptivo como a neuropatia diabeacutetica a infecccedilatildeo pelo HIV hanseniacutease a neuralgia poacutes-herpeacutetica as radiculopatias amputaccedilotildees e lesotildees nervosas perifeacutericas entre outras Aleacutem disso os mecanismos plaacutesticos que ocorrem podem levar a alodinia uma situaccedilatildeo em que estiacutemulos inofensivos como toque leve temperaturas amenas e outros podem levar a ativaccedilatildeo de vias nociceptivas e percepccedilatildeo de dor pelo paciente (Jensen amp Finnerup 2014)
Ainda uma quarta classificaccedilatildeo inclui a dor natildeo adaptativa chamada dor disfuncional Nela natildeo satildeo observados sinais de inflamaccedilatildeo perifeacutericos ou alguma modificaccedilatildeo plaacutestica molecular ou estrutural dos circuitos centrais que controlam a dor Exemplos de dores disfuncionais incluem a cistite intersticial e a fibromialgia Nesses casos as teorias mais aceitas indicam que a dor surge devido agrave amplificaccedilatildeo de sinais nociceptivos em circuitos centrais e alteraccedilatildeo do padratildeo natural de processamento sensorial (Costigan et al 2009) Tanto as dores neuropaacuteticas quanto as dores disfuncionais possuem em comum algumas caracteriacutesticas como o aumento da intensidade agrave dor para estiacutemulos repetidos a reduccedilatildeo dos limiares para a dor e o espalhamento da dor para aacutereas mais abrangentes (Von Hehn et al 2012)
Em diversas situaccedilotildees a dor pode apresentar um padratildeo misto Por exemplo no decorrer da instalaccedilatildeo de tumores malignos o tecido em crescimento pode acarretar lesatildeo em nervos perifeacutericos ao mesmo tempo em que ativa nociceptores dessa forma apresentando tanto o componente neuropaacutetico quanto o nociceptivo
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 201
Cronificaccedilatildeo da Dor
Por muito tempo se imaginou que a dor deveria ser considerada como crocircnica caso ela perdurasse aleacutem do tempo esperado para a resoluccedilatildeo do quadro primaacuterio que a causou ou ainda seria considerada crocircnica no caso de uma dor que natildeo tem a funccedilatildeo de alertar para uma possiacutevel lesatildeo Esse conceito foi aos poucos sendo substituiacutedo por definiccedilotildees mais abrangentes por causa de diversos fatores Por exemplo o tempo para que haja a resoluccedilatildeo de um quadro de dor em um paciente que realizou uma cirurgia simples pode ser razoavelmente predito muito embora ele varie dadas as respostas inerentes do indiviacuteduo como a capacidade de cicatrizaccedilatildeo do seu organismo e por fatores ambientais outros como a volta ao trabalho Em outras situaccedilotildees como em um paciente que sofreu fratura oacutessea e lesotildees de nervos em acidente automobiliacutestico o tempo de recuperaccedilatildeo e a cessaccedilatildeo da dor natildeo pode ser predito e o desenvolvimento de processos complicadores para a dor como a dor neuropaacutetica podem ser causas de permanecircncia da dor por periacuteodos longos ou mesmo por toda a vida Por essas razotildees os criteacuterios usados para que a dor seja considerada crocircnica independem da causa da dor de forma que se a dor eacute recorrente ou permanece por mais de 90 dias jaacute eacute considerada crocircnica inclusive dentro das definiccedilotildees da classificaccedilatildeo estatiacutestica internacional de doenccedilas e problemas relacionados agrave sauacutede (CID-11 Treede et al 2019) O protocolo cliacutenico e diretrizes terapecircuticas para dor crocircnica (PCDT) publicado pelo Ministeacuterio da Sauacutede de 2012 indica que a dor passa a ser considerada crocircnica quando prevalece por mais de 30 dias (Portaria SASMS nordm 1083 de 02 de outubro de 2012 retificada em 27 de novembro de 2015)
Como visto anteriormente as causas de cronificaccedilatildeo da dor satildeo vaacuterias e podem se sobrepor Por essas razotildees muitos foram os esforccedilos dos uacuteltimos anos para a adequaccedilatildeo de criteacuterios para a classificaccedilatildeo da dor crocircnica (Treede et al 2019) A versatildeo atualizada da classificaccedilatildeo estatiacutestica internacional de doenccedilas e problemas relacionados agrave sauacutede o CID-11 que seraacute colocada em praacutetica a partir de janeiro de 2022 pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede dispotildee de um coacutedigo apenas para a dor crocircnica (MG30) e para as doenccedilas mais comuns desse grupo dessa forma incluindo a dor crocircnica primaacuteria e
202 | Temas em Neurociecircncias
as siacutendromes de dor crocircnica secundaacuteria ou seja aquelas associadas a outras doenccedilas como sua causa primaacuteria sendo elas a dor crocircnica relacionada ao cacircncer a dor crocircnica poacutes-ciruacutergica ou poacutes-traumaacutetica a dor crocircnica neuropaacutetica a dor crocircnica secundaacuteria agrave enxaqueca ou orofacial a dor crocircnica visceral secundaacuteria e a dor crocircnica secundaacuteria musculoesqueleacutetica
A dor crocircnica tem consequecircncias mais amplas e severas para o paciente Aleacutem das respostas comportamentais incluindo as respostas emocionais e neurovegetativas discutidas anteriormente os quadros de dor crocircnica frequentemente causam interferecircncia na vida diaacuteria e na sauacutede geral do paciente ocasionando incapacidades e distresse O distresse eacute por definiccedilatildeo a resposta de estresse que tem reflexos negativos para o paciente Uma vez que a causa inicial do distresse permanece essas respostas podem adicionar ao quadro inicial do paciente outras comorbidades que agravam ainda mais a sua sauacutede geral e reduzem a capacidade de melhora do quadro (Carstens amp Moberg 2000)
Nem sempre as alteraccedilotildees que a dor crocircnica traz agrave vida de uma pessoa satildeo notadas por seus proacuteximos ou mesmo pela proacutepria pessoa A cronificaccedilatildeo da dor e a necessidade que a pessoa tem de continuar vivendo tendo sua rotina e trabalho propiciam que o paciente crie mecanismos para poder lidar com a sua condiccedilatildeo e enquanto esses mecanismos se desenvolvem paralelamente aos processos normais da vida do indiviacuteduo os sintomas da dor crocircnica podem passar despercebidos por quem observa o paciente em algumas situaccedilotildees Mesmo se o paciente natildeo se queixe mais da dor ela ainda o pode influenciar psicologicamente alterando seus processos cognitivos levando a preocupaccedilotildees e catastrofizaccedilatildeo a alteraccedilotildees comportamentais e emocionais como medo e raiva com seus reflexos sociais como mudanccedilas nos padrotildees de relacionamento com outras pessoas (Turk et al 2016)
As formas que o paciente encontra para aprender a lidar com a dor crocircnica e a alteraccedilatildeo decorrente no comportamento do paciente podem fazer com que a dor natildeo seja notada pelas pessoas mais proacuteximas do paciente como causa dessas proacuteprias alteraccedilotildees comportamentais Principalmente em idosos com perda cognitiva mesmo as pessoas mais proacuteximas podem ter dificuldade em acessar se o paciente estaacute com dor (Cravello et al 2019) Essa
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 203
mesma dificuldade de associaccedilatildeo da dor crocircnica com alteraccedilatildeo de comportamento tambeacutem jaacute foi reportada para animais de companhia e parece que sua causa eacute o desconhecimento do repertoacuterio de respostas naturais a dor que outras espeacutecies tecircm em comparaccedilatildeo aos humanos o que dificulta a interpretaccedilatildeo dos sinais da dor pelo cuidador (Merola amp Mills 2015)
Seria Bom Entatildeo natildeo Sentir Dor ( ou )
Se a dor gera respostas aparentemente negativas eacute um tanto quanto justo se perguntar se natildeo seria mais interessante entatildeo natildeo a sentir E a resposta eacute direta natildeo Uma vez que a dor avisa o sistema nervoso que algo estaacute possivelmente ocorrendo de forma errada no organismo ou que ele estaacute sendo lesionado por um agente externo a dor eacute essencial para que possamos nos afastar de estiacutemulos nocivos para nossa proteccedilatildeo fiacutesica e por informar inclusive que algo estaacute errado com um oacutergatildeo interno Pessoas que nascem sem poder sentir dor natildeo possuem uma vantagem sobre a maioria dos indiviacuteduos que sentem dor quando por exemplo acertamos a ponta de um dedo de um peacute contra uma parede Indiviacuteduos que natildeo sentem dor podem se desenvolver desde o nascimento com seacuterios prejuiacutezos exatamente pela falta das correccedilotildees de comportamento incluindo as correccedilotildees posturais que a dor nos exige Se vocecirc ficar com a coluna vertebral inclinada para um lado provavelmente sentiraacute dor jaacute nos primeiros minutos A pessoa que natildeo sente dor natildeo corrigiraacute sua postura e isso traz seacuterias consequecircncias com os anos e ainda mais seacuterias por ocorrer desde a infacircncia Quando mastigamos o alimento evitamos certos movimentos pois sabemos que morder a liacutengua causa dor intensa e que perdura por dias Isso natildeo ocorre em quem natildeo sente dor Uma coacutelica uma lesatildeo maior interna um incocircmodo esofaacutegico causado por refluxo uma simples lsquoassadurarsquo de pele em um bebecirc natildeo gera reclamaccedilotildees na crianccedila que nasce sem sentir dor Todas essas situaccedilotildees obrigam os pais dessas crianccedilas a desenvolver meacutetodos de vigilacircncia muito mais intensos pois o sistema de dor o alarme natural que a crianccedila teria natildeo cumpre a sua funccedilatildeo (Cox et al 2006 Mannes amp Iadarola 2007)
204 | Temas em Neurociecircncias
Consideraccedilotildees Finais
Alguns dos principais pontos hoje que permeiam os estudos sobre a dor abordam mecanismos moleculares envolvidos na dor e estudo de alvos potenciais farmacoloacutegicos mecanismos neuroplaacutesticos responsaacuteveis pelo desenvolvimento da cronificaccedilatildeo da dor e possiacuteveis manobras moleculares para reverter ou atenuar seu processo de desenvolvimento expressatildeo de genes nas mais diversas condiccedilotildees de desenvolvimento da dor nos diversos niacuteveis do sistema nervoso perifeacuterico e central envolvimento de regiotildees especiacuteficas do sistema nervoso central na geraccedilatildeo dos padrotildees de comportamento associados agrave dor e a influecircncia de comorbidades no desenvolvimento e manutenccedilatildeo da dor como distuacuterbios metaboacutelicos sepse depressatildeo entre outros Por parte da cliacutenica muito eacute estudado tambeacutem a respeito da prevenccedilatildeo da dor e dos processos plaacutesticos que podem levar a alteraccedilotildees moleculares e morfoloacutegicas de difiacutecil reparo o que pode reduzir as chances de cronificaccedilatildeo em algumas situaccedilotildees Inuacutemeras outras frentes de estudo sobre os mecanismos envolvidos na dor e sobre o seu tratamento satildeo realizadas diariamente Esses estudos satildeo realizados em culturas celulares em animais de laboratoacuterios em animais silvestres e domesticados em humanos e mesmo em modelos computacionais
Enquanto natildeo forem exauridas as possibilidades de estudo e de descobertas na aacuterea eacute justificado por nossa capacidade de empatia que grandes esforccedilos sejam realizados no sentido de amenizar o sofrimento e melhorar a qualidade de vida dos pacientes e consequentemente de seus mais proacuteximos tambeacutem reduzindo seus gastos pessoais com tratamentos meacutedicos e o custo social que essa demanda gera
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 205
Referecircncias
Alvarado S et al (2015) An epigenetic hypothesis for the genomic memory of pain Front Cell Neurosci 9 88 ISSN 1662-5102 (Print)1662-5102 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg103389fncel201500088gt
Babel P Pieniazek L amp Zarotynski D (2015) The effect of the type of pain on the accuracy of memory of pain and affect Eur J Pain 19 (3) 358-68 Mar 2015 ISSN 1090-3801 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101002ejp554gt
Bannister K amp Dickenson A H (2017) The plasticity of descending controls in pain translational probing J Physiol 595 (13) 4159-4166 Jul 1 2017 ISSN 0022-3751 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101113jp274165gt
Becker S et al (2019) The role of hedonics in the Human Affectome Neurosci Biobehav Rev 102 221-241 ISSN 0149-7634 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101016jneubiorev201905003gt
Bell A (2018) The neurobiology of acute pain Vet J 237 55-62 ISSN 1090-0233 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101016jtvjl201805004gt
Ben-Ami Bartal I Decety J amp Mason P (2011) Empathy and pro-social behavior in rats Science 334 (6061) p 1427-1430 ISSN 0036-8075 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101126science1210789gt
Berthier M Starkstein S amp Leiguarda R (1988) Asymbolia for pain a sensory-limbic disconnection syndrome Ann Neurol 24 (1) 41-49 ISSN 0364-5134 (Print)0364-5134 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101002ana410240109gt
Bonica J J (1979) The need of a taxonomy Pain 6 (3) 247-248 ISSN 0304-3959 (Print)0304-3959 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorggt
Butler R K amp Finn D P (2009) Stress-induced analgesia Prog Neurobiol 88(3) 184-202 ISSN 0301-0082 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101016jpneurobio200904003gt
Carstens E amp Moberg G P (2000) Recognizing pain and distress in laboratory animals Ilar j 41(2) 62-71 ISSN 1084-2020 (Print)1084-2020 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101093ilar41262gt
Caterina M J et al (1997) The capsaicin receptor a heat-activated ion channel in the pain pathway Nature 389(6653) 816-824 Disponiacutevel em lthttpwwwncbinlmnihgoventrezqueryfcgicmd=Retrieveampdb=PubMedampdopt=Citationamplist_uids=9349813gt
Chen J (2018) Empathy for Distress in Humans and Rodents Neurosci Bull 34(1) 216-236 ISSN 1995-8218 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101007s12264-017-0135-0gt
Cohen M Quintner J amp Van Rysewyk S (2018) Reconsidering the International Association for the Study of Pain definition of pain Pain Rep 3(2) e634 ISSN 2471-2531 Disponiacutevel em lthttpswwwncbinlmnihgovpubmed29756084gt
206 | Temas em Neurociecircncias
Colloca L et al (2017) Neuropathic pain Nat Rev Dis Primers 3 17002 ISSN 2056-676X (Electronic) Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101038nrdp20172gt
Costigan M Scholz J amp Woolf C J (2009) Neuropathic pain a maladaptive response of the nervous system to damage Annu Rev Neurosci 32 1-32 ISSN 0147-006x Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101146annurevneuro051508135531gt
Cox J J et al (2006) An SCN9A channelopathy causes congenital inability to experience pain Nature 444(7121) 894-898 ISSN 0028-0836 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101038nature05413gt
Craig A D (2003) A new view of pain as a homeostatic emotion Trends Neurosci 26(6) 303-307 ISSN 0166-2236 (Print)0166-2236 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorggt
Cravello L et al (2019) Chronic Pain in the Elderly with Cognitive Decline A Narrative Review Pain Ther 8(1) 53-65 ISSN 2193-8237 (Print)2193-651X (Electronic) Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101007s40122-019-0111-7gt
Danziger N Faillenot I amp Peyron R (2009) Can we share a pain we never felt Neural correlates of empathy in patients with congenital insensitivity to pain Neuron 61(2) 203-212 ISSN 0896-6273 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101016jneuron200811023gt
Garcia-Larrea L amp Bastuji H (2018) Pain and consciousness Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry 87(Pt B) 193-199 ISSN 0278-5846 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101016jpnpbp201710007gt
Hannibal K E amp Bishop M D (2014) Chronic Stress Cortisol Dysfunction and Pain A Psychoneuroendocrine Rationale for Stress Management in Pain Rehabilitation In (Ed) Phys Ther 94 1816-1825 ISBN 0031-9023 (Print)1538-6724 (Electronic)
Jensen T S amp Finnerup N B (2014) Allodynia and hyperalgesia in neuropathic pain clinical manifestations and mechanisms Lancet Neurol 13(9) 924-935 ISSN 1474-4422 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101016s1474-4422(14)70102-4gt
Lawlor P G (2002) The panorama of opioid-related cognitive dysfunction in patients with cancer a critical literature appraisal Cancer 94(6) 1836-1853 ISSN 0008-543X (Print)0008-543x Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101002cncr10389gt
Lima L V Abner T S S amp Sluka K A(2017) Does exercise increase or decrease pain Central mechanisms underlying these two phenomena J Physiol 595(13) 4141-4150 ISSN 0022-3751 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101113jp273355gt
Mannes A amp Iadarola M (2007) Potential downsides of perfect pain relief Nature England 446(7131) 24 ISSN 1476-4687 (Electronic)0028-0836 (Linking) Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101038446024agt
Melzack R (1990) Phantom limbs and the concept of a neuromatrix Trends Neurosci 13 (3) 88-92 ISSN 0166-2236 (Print)0166-2236 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorggt
Dor Aguda e Dor Crocircnica | 207
Merola I amp Mills D S (2015) Systematic review of the behavioural assessment of pain in cats httpsdoiorg1011771098612X15578725 2015-05-13 Disponiacutevel em lthttpsjournalssagepubcomdoiabs1011771098612X15578725journalCode=jfmagt
Moriarty O Mcguire B E amp Finn D P(2011) The effect of pain on cognitive function a review of clinical and preclinical research Prog Neurobiol 93(3) 385-404 ISSN 0301-0082 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101016jpneurobio201101002gt
Nordin M amp Fagius J (1995) Effect of noxious stimulation on sympathetic vasoconstrictor outflow to human muscles J Physiol 489(Pt 3) 885-94 ISSN 0022-3751 (Print)1469-7793 (Electronic) Disponiacutevel em lthttpdxdoiorggt
Romanelli P Esposito V amp Adler J (2004) Ablative procedures for chronic pain Neurosurg Clin N Am 15(3) 335-342 ISSN 1042-3680 (Print)1042-3680 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101016jnec200402009gt
Sharim J amp Pouratian N (2016) Anterior Cingulotomy for the Treatment of Chronic Intractable Pain A Systematic Review Pain Physician 19(8) 537-550 ISSN 1533-3159 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorggt
Treede R D et al (2019) Chronic pain as a symptom or a disease the IASP Classification of Chronic Pain for the International Classification of Diseases (ICD-11) Pain 160(1) 19-27 ISSN 0304-3959 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101097jpain0000000000001384gt
Turk D C et al (2016) Assessment of Psychosocial and Functional Impact of Chronic Pain J Pain 17(9) Suppl p T21-49 ISSN 1526-5900 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101016jjpain201602006gt
Von Hehn C A Baron R amp Woolf C J (2012)Deconstructing the neuropathic pain phenotype to reveal neural mechanisms Neuron 73(4) 638-652 ISSN 0896-6273 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101016jneuron201202008gt
Williams A C C amp Baird E (2016) Special Considerations for the Treatment of Pain from Torture and War Curr Anesthesiol Rep 6 (4) 319-326 ISSN 1523-3855 (Print)1523-3855 Disponiacutevel em lthttpdxdoiorg101007s40140-016-0187-0gt
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso
Decircnis Augusto Santana Reis
Criminologia
A palavra criminologia remonta da palavra latina crimino (crime) e da palavra grega logos (estudo tratado) significando o ldquoestudo do crimerdquo
O termo ldquocriminologiardquo foi usado por Garoacutefalo para designar ldquociecircncia do crimerdquo apoacutes vieram outros estudiosos que aprimoraram o significado do termo criminologia1
No ponto de vista de Shecaira (2012) a criminologia pode ser conceituada como
Estudo e a explicaccedilatildeo da infraccedilatildeo legal os meios formais e informais de que a sociedade se utiliza para lidar com o crime e com os atos desviantes a natureza das posturas com que as viacutetimas desses crimes satildeo atendidas pela sociedade e por derradeiro o enfoque sobre o autor desses fatos desviantes (Shecaira 2012 p 35)
Desse modo a criminologia pode ser conceituada como uma ciecircncia empiacuterica e interdisciplinar que tem por objeto o estudo do delito em todas as suas circunstacircncias tais como a anaacutelise do delito da personalidade do ofensor do comportamento delitivo da viacutetima e o controle social das condutas tidas como criminosas
A interdisciplinaridade da criminologia decorre da sua proacutepria consolidaccedilatildeo histoacuterica uma vez que recebeu influecircncia de outras ciecircncias tais como a sociologia a psicologia o direito a medicina legal dentre outras
1 GAROFALO R Criminologia estudo sobre o direito e a repressatildeo penal seguido de apecircndice sobre os termos do problema penal Ed Peacutetrias Campinas 1997
Autor para correspondecircncia denisaugustosr
gmailcom
8
210 | Temas em Neurociecircncias
Feitos tais esclarecimentos eacute importante salientar que a criminologia possui os seguintes objetos de estudo o delito delinquente a viacutetima e o controle social
Por outro lado enquanto o direito penal eacute uma ciecircncia normativa que tem por objeto o delito como regra anormal de conduta que deve ser sancionada A criminologia eacute uma ciecircncia causal-explicativa que tem por objeto estudar o delito o delinquente e montar esquemas de combate da criminalidade desenvolver meios preventivos e meacutetodos que impeccedilam a reincidecircncia do delinquente2 bem como desenvolvendo pesquisas teoacutericas acerca da etiologia do delito
No que tange o conceito legal de crime o art 1ordm da Lei de Introduccedilatildeo ao Coacutedigo Penal3 dispotildee que o crime eacute a infraccedilatildeo penal punida com pena de reclusatildeo ou detenccedilatildeo contrapondo-se agrave contravenccedilatildeo penal que por sua vez eacute a infraccedilatildeo penal para a qual a lei comina pena de prisatildeo simples
Ressalte-se que o conceito de crime para a criminologia natildeo eacute o mesmo do direito penal enquanto para segundo o crime em sentido analiacutetico seria uma accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica iliacutecita e culpaacutevel merecedora de puniccedilatildeo para a primeira o crime seria um fenocircmeno comunitaacuterio e um problema social
Em relaccedilatildeo ao delinquente Schecaria (2012) ensina que eacute um ser histoacuterico real e complexo um ser normal e que estaacute sujeito agraves influecircncias do meio descartando qualquer determinismo4 seja ele social ou bioloacutegico
Cesare Lombroso ndash O Nascimento da Teoria Bioloacutegica da Criminalidade
O fundador da criminologia moderna foi Cesare Lombroso com a publicaccedilatildeo em 1876 de seu livro ldquoO homem delinquenterdquo
2 Fernandes Valter Criminologia Integrada 4ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo Revistas dos Tribunais 2012 p 30
3 Art 1ordm Considera-se crime a infraccedilatildeo penal que a lei comina pena de reclusatildeo ou de detenccedilatildeo quer isoladamente quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa contravenccedilatildeo a infraccedilatildeo penal a que a lei comina isoladamente pena de prisatildeo simples ou de multa ou ambas alternativa ou cumulativamente
4 Schecaria Seacutergio Salomatildeo Criminologia 4ordf ed rev e atual Ed Revista dos tribunais Satildeo Paulo 2012 p 46
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 211
Nessa obra e em outras que a sucederam Lombroso (2010)atraveacutes do meacutetodo empiacuterico indutivo sistematizou e reuniu de forma articulada uma seacuterie de conhecimentos que estavam esparsos e por isso eacute considerado o pai e maior expoente da Antropologia Criminal conforme assevera Antocircnio Garcia Pablo Molina
A contribuiccedilatildeo principal de Lombroso para a Criminologia natildeo reside tanto em sua famosa tipologia (onde destaca a categoria do ldquodelinquente natordquo) ou em sua teoria criminoloacutegica senatildeo no meacutetodo que utilizou em suas investigaccedilotildees o meacutetodo empiacuterico Sua teoria do ldquodelinquente natordquo foi formulada com base nos resultados de mais de quatrocentas autoacutepsias de delinquentes e seis mil anaacutelises de delinquentes vivos e o atavismo que conforme seu ponto de vista caracteriza o tipo criminoso ndash ao que parece ndash contou com o estudo minucioso de vinte e cinco mil reclusos de prisotildees europeias (Molina 2002 p 191)
De acordo com Viana (2018) o sistema lombrosiano possui trecircs pontos centrais
bull O criminoso diferencia-se dos natildeo criminosos por meio de inuacutemeros sinais fiacutesicos e psiacutequicos
bull O criminoso eacute uma variante da espeacutecie humana um ser ataacutevico
bull O atavismo pode ser transmitido ao longo das geraccedilotildees (Viana 2018 p 57)
Em suma Lombroso (2010) natildeo refutava os fatores exoacutegenos da gecircnese criminal ambientais e sociais (o clima o abuso de aacutelcool a educaccedilatildeo o trabalho e etc) mas defendia enfaticamente que eram os fatores endoacutegenos os bioloacutegicos que levavam os indiviacuteduos a cometerem delitos ao passo que os exoacutegenos apenas desencadeariam a propulsatildeo interna para o delito pois o criminoso jaacute nasce criminoso (determinismo bioloacutegico)
A Criminologia Moderna
Segundo Molina (2002) a evoluccedilatildeo da criminologia culminou no surgimento de trecircs orientaccedilotildees teoacutericas as psicoloacutegicas as socioloacutegicas e as bioloacutegicas
A teoacuterica psicoloacutegica busca a explicaccedilatildeo para o comportamento delitivo na mente do indiviacuteduo nos processos psiacutequicos anormais
212 | Temas em Neurociecircncias
(psicopatologia) ou nas vivecircncias subconscientes que tecircm origem no passado remoto do indiviacuteduo
A teoria socioloacutegica entende o delito como um fenocircmeno social aplicando em sua anaacutelise diversos marcos teoacutericos como o ecoloacutegico estrutural funcionalista subcultural conflitual internacionalista e etc
A teoria bioloacutegica5 busca localizar e identificar em alguma parte do corpo ou no funcionamento do sistema nervoso a existecircncia de algum fator diferencial que explique a conduta delitiva supondo sempre que o delito seja resultado de alguma patologia disfunccedilatildeo ou transtorno orgacircnico
Frisa-se que o presente ater-se-aacute a uacuteltima orientaccedilatildeo uma vez que tem como norte a investigaccedilatildeo dos aspectos neurobioloacutegicos da criminalidade com ecircnfase nos estudos de neurociecircncias mas antes eacute importante demonstrar de forma sucinta como as teorias bioloacutegicas da criminalidade se desenvolveram
Os primeiros estudos criminoloacutegicos de cunho bioloacutegico foram desenvolvidos pelo frenologista Franz Joseph Gall seguido por Cesare Lombroso a partir da anaacutelise morfoloacutegica de delinquentes Frisa-se que esses estudos serviram de base para a antropometria que estudava a criminalidade analisando as medidas e proporccedilotildees do corpo humano para fins de estatiacutestica e comparaccedilatildeo
Esses estudos serviram de substrato para o desenvolvimento da fase poacutes-lombrosiana da criminologia materializada pelos estudos biotipoloacutegicos endocrinoloacutegicos e psicopatoloacutegicos relacionados com a criminologia cliacutenica
Entretanto apesar de todo esforccedilo e rigor cientiacutefico desses estudos os mesmos mostraram-se insuficientes para explicar a causalidade criminal sobretudo porque tinham forte tendecircncia discriminatoacuteria haja vista que esses estudos relacionavam a existecircncia
5 As causas bioloacutegicas sempre seratildeo referidas como neurobioloacutegicas ou neurocientiacuteficas ao longo desse trabalho por uma questatildeo de singularidade do toma que versa o estudo da influecircncia do substrato cerebral com a criminologia
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 213
de certas caracteriacutesticas corporais com a propensatildeo em cometer crimes6
Em siacutentese essas teorias bioloacutegicas da criminalidade defendiam que existem indiviacuteduos predispostos para o crime cuja propensatildeo depende de sua formaccedilatildeo orgacircnica e que o criminoso eacute diferente de um cidadatildeo normal natildeo criminoso bem como desconsiderava os demais fatores que comprovadamente estatildeo relacionados com a criminalidade como os sociais7
As teorias acima citadas culminaram nos modernos estudos criminoloacutegicos desenvolvidos pela neurociecircncia envolvendo aspectos geneacuteticos neurofisioloacutegicos bioquiacutemicos moleculares visando entender o funcionamento do ceacuterebro dos criminosos e os motivos que os levam a cometer crimes
Neurociecircncia e Criminologia
Por muito tempo a pobreza a desigualdade social a baixa escolaridade e as maacutes companhias foram considerados os principais fatores criminoacutegenos
Atualmente sabe-se que esses fatores desempenhem um papel relevante nada obstante tem-se reconhecido que fatores neurobioloacutegicos tambeacutem satildeo importantes na modelagem do comportamento criminoso por conseguinte no cometimento de crimes
De acordo com Vold (1998) a variaacutevel bioloacutegica da criminalidade pode ser definida como
6 Kretschmer (2015) diferenciou quatro tipos de constituiccedilatildeo corporal1 Leptossocircmicos alta estatura toacuterax largo peito fundo cabeccedila pequena peacutes e matildeos
curtos cabelos crespos (propensatildeo ao furto e estelionato)2 Atleacuteticos estatura meacutedia toacuterax largo musculoso forte estrutura oacutessea rosto uniforme
peacutes e matildeos grandes cabelos fortes (crimes violentos)3 Piacutecnicos toacuterax pequeno fundo curvado formas arredondadas e femininas pescoccedilo
curto cabeccedila grande e redonda rosto largo e peacutes matildeos e cabelos curtos (menor propensatildeo ao crime)
4 Displaacutesicos pessoas com corpo desproporcional com crescimento anormal (crimes sexuais) (Penteado Filho Nestor Sampaio Manual de Criminologia 3ordfed Saraiva Satildeo Paulo 2013 p 102)
7 Farias Juacutenior Joatildeo Manual de criminologia 3 ed Juruaacute Curitiba 2006 p 58
214 | Temas em Neurociecircncias
Algumas dessas caracteriacutesticas bioloacutegicas satildeo geneacuteticas e herdadas () Outras resultam de mutaccedilotildees geneacuteticas que ocorrem no momento da concepccedilatildeo ou se desenvolvem enquanto o feto estaacute no uacutetero Essas caracteriacutesticas bioloacutegicas satildeo geneacuteticas mas natildeo herdadas Finalmente outras podem se desenvolver como resultado do ambiente das pessoas que vai desde lesotildees a uma dieta inadequada Essas caracteriacutesticas bioloacutegicas natildeo satildeo geneacuteticas nem herdadasrdquo (Vold 1998 p 68)
Apesar dos estudos dos caracteres bioloacutegicos da criminalidade terem entrado em crise Serrano Maiacutello assegura que haacute uns anos ndash dez ou quinze aproximadamente ndash vem sendo levado agrave seacuterio as variaacuteveis de caraacuteter bioloacutegico em criminalidade (Serrano 2016)
Serrano (2016) tambeacutem aponta que uma das razotildees para o renascimento das variaacuteveis bioloacutegicas da criminalidade pode ser o fato de que ateacute o momento houve o predomiacutenio das teorias de orientaccedilatildeo socioloacutegica8 poreacutem as explicaccedilotildees do fenocircmeno delitivo dada por elas natildeo satildeo consideradas integralmente satisfatoacuterias ou seja essas teorias natildeo tecircm sido capazes de explicar satisfatoriamente importantes diferenccedilas individuais no acircmbito da criminalidade
As teorias de orientaccedilatildeo socioloacutegica natildeo conseguem explicar como indiviacuteduos exposto a ambientes semelhantes se comportem de maneira tatildeo diferente e que sujeitos que crescemdesenvolvem-se em ambientes criminoacutegenos natildeo delinquam ao passo que outros que vivem em ambientes com riscos ambientais miacutenimos cometam delitos
8 Teoria da Desorganizaccedilatildeo Social entende que o crime eacute fruto da ruptura e maacute estruturaccedilatildeo das unidades familiares que controlariam o crime A desorganizaccedilatildeo social causa uma perturbaccedilatildeo da cultura existente por mudanccedila social evidenciada por falha dos controlos sociais tradicionais morais conflitantes e no decliacutenio da confianccedila dessas instituiccedilotildees
Teoria da Subcultura Delinquente prega a existecircncia de uma subcultura da violecircncia o que leva algumas sociedades a aceitar a violecircncia como uma maneira normal de resolver conflitos sociais e tambeacutem sustenta que alguns grupos ateacute valorizam a violecircncia
Teoria da Anomia sustenta que o crime eacute um fenocircmeno normal e intriacutenseco da estrutura social considerando que ateacute um certo ponto o crime eacute tido como necessaacuterio e uacutetil para o equiliacutebrio social A anomia eacute caracterizada por uma situaccedilatildeo social onde falta coesatildeo e ordem especialmente no tocante a normas e valores
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 215
Nesse liame foi natural o ressurgimento de pesquisas envolvendo neurociecircncias e criminologia merecendo destaque os estudos desenvolvidos por Adrian Raine9
Tal ressurgimento pode ser constatado pelo levantamento realizado pela MacArthur Foundation Research Network on Law and Neuroscience da Vanderbilt University que mostra o aumento no nuacutemero de publicaccedilotildees envolvendo direito e neurociecircncias entre os anos de 1984-201710
Segundo Ventura (2010) a neurociecircncia compreende o estudo do sistema nervoso e suas ligaccedilotildees com toda a fisiologia do organismo incluindo a relaccedilatildeo entre ceacuterebro e comportamento O controle neural das funccedilotildees vegetativas11 das funccedilotildees sensoriais e motoras da locomoccedilatildeo reproduccedilatildeo alimentaccedilatildeo e ingestatildeo de aacutegua os mecanismos da atenccedilatildeo e memoacuteria aprendizagem emoccedilatildeo linguagem e comunicaccedilatildeo satildeo temas de estudo da neurociecircncia
Robert Lent (2010) assevera que ldquoo que chamamos simplificadamente como neurociecircncia eacute na verdade neurociecircnciasrdquo em virtude da interdisciplinaridade que envolve o estudo do ceacuterebro e de modo esquemaacutetico essa aacuterea do conhecimento pode ser dividida em cinco grandes disciplinas neurocientiacuteficas a saber neurociecircncia molecular neurociecircncia celular neurociecircncia sistecircmica neurociecircncia comportamental e neurociecircncia cognitiva12
Apesar do termo mais adequado ser neurociecircncias doravante apenas nomearemos essa ciecircncia no singular ou seja como neurociecircncia
9 Disponiacutevel em lthttpspsychologysasupennedupeopleadrian-rainegt Acesso em 21 jan 2019
10 Evoluccedilatildeo das publicaccedilotildees envolvendo direito e neurociecircncias entre os anos de 1984 a 2017 Disponiacutevel em httpwwwlawneuroorgbibliographyphp Acesso em 22 jan 2019
11 Digestatildeo circulaccedilatildeo respiraccedilatildeo homeostase temperatura12 Grossi (2014) explica que a neurociecircncia pode ser compreendida por meio de cinco
abordagens 1 Neurociecircncia Molecular investiga a quiacutemica e a fiacutesica envolvidas na funccedilatildeo neural Estuda as diversas moleacuteculas de importacircncia funcional no sistema nervoso 2 Neurociecircncia Celular investiga os tipos celulares sistema nervoso e o funcionamento de cada um 3 Neurociecircncia Sistecircmica estuda as regiotildees do sistema nervoso dos processos como a percepccedilatildeo o discernimento a atenccedilatildeo e o pensamento 4 Neurociecircncia Comportamental estuda a interaccedilatildeo entre os sistemas que influenciam o comportamento explica as capacidades mentais que produzem comportamentos como o sono emoccedilotildees sensaccedilotildees visuais dentre outros 5 Neurociecircncia Cognitiva estuda as capacidades mentais mais complexas como aprendizagem linguagem memoacuteria e planejamento
216 | Temas em Neurociecircncias
Sobre esse tema Fernandes (2010) ensina que a aplicaccedilatildeo da neurociecircncia ao direito possibilitaraacute o entendimento da conduta humana de maneira iacutempar
Neurociecircncias e Direito constituem sem duacutevida um tema novo Um tema com implicaccedilotildees sociais ontoloacutegicas e metodoloacutegicas de uma dimensatildeo natildeo comparaacutevel com nenhum outro pois se refere especificamente agrave relaccedilatildeo entre os mecanismos que geram a conduta humana o ceacuterebro e as consequecircncias em sociedade dessa conduta () E ainda quando a Neurociecircncias e o Direito parecem ter distintos objetivos e interesses no sentido de que a primeira busca entender a conduta humana (pensamento emoccedilatildeo etc) e o segundo julgaacute-la (intencionalidade culpabilidade responsabilidade etc) resulta evidente que ambas as disciplinas tambeacutem podem ajudar-se mutuamente Apesar de que entender e julgar satildeo atividades diferentes os esforccedilos por entender o comportamento humano suas causas motivaccedilotildees limites e fatores condicionantes podem ser de grande apoio natildeo somente nos juiacutezos sobre culpabilidade ou inocecircncia senatildeo tambeacutem no proacuteprio processo de realizaccedilatildeo praacutetico-concreta (interpretaccedilatildeo justificaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo) do Direito (Fernandes 2010)13
Atualmente com o advento das tecnologias de imagens cerebrais aliada a todo conhecimento acerca do funcionamento cerebral da neurociecircncia e aacutereas correlatas tem-se um instrumento muito sensiacutevel para investigar a anatomia cerebral da violecircncia
Segundo Daile Valančienė (2013) os meacutetodos e teacutecnicas de imageamento cerebral podem ser divididos em teacutecnicas de imagens funcionais que determinam funccedilotildees fisioloacutegicas e que utilizam de tomografia computadorizada por emissatildeo de foacuteton uacutenico (SCPECT) tomografia por emissatildeo de poacutesitrons (PET scan) ressonacircncia magneacutetica funcional (fMRI) eletroencefalografia (EEG) magnetoencefalografia (MEG) e tomografia por impedacircncia eleacutetrica (EIT) e teacutecnicas de imagens estruturais que procuram identificar informaccedilotildees anatocircmicas feitas por
13 Fernandes Atahualpa Os labirintos neuronais do Direito livre-arbiacutetrio responsabilidade racionalidade Disponiacutevel em httpswwwresearchgatenetprofileAtahualpa_Fernandez2publication237065374_os_labirintos_neuronais_do_direito_livrearbitrio_responsabilidade_racionalidadelinks00b7d51b1f54f5ff6b000000os-labirintos-neuronais-do-direito-livre-arbitrio-responsabilidade-racionalidadeorigin=publication_detail Acesso em 23 mar 2019
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 217
radiografia tomografia computadorizada (CT) ressonacircncia magneacutetica (MRI) e ultrassonografia (US)
A tomografia por emissatildeo de poacutesitrons (PET scan) destaca-se uma vez que permite medir simultaneamente a atividade metaboacutelica de diversas regiotildees do ceacuterebro14 sendo possiacutevel investigar se haacute alteraccedilotildees no funcionamento cerebral especialmente em regiotildees envolvidas com inibiccedilatildeo modulaccedilatildeo comportamental como o coacutertex preacute-frontal e a amigdala
Com efeito a utilizaccedilatildeo de utilizaccedilatildeo de teacutecnicas de imageamento cerebral tem permitido compreensatildeo delinquente bem como tem possibilitado a aplicaccedilatildeo adequada da sanccedilatildeo pois conforme veremos a seguir o indiviacuteduo pode cometer crimes baacuterbaros influenciados por alguma disfunccedilatildeo cerebral e natildeo muitas vezes sequer consegue se controlar ou entende o caraacuteter iliacutecito da sua contduta
Nessa perspectiva Adrian Raine (2015) sugere ldquo() devemos ser cautelosos A violecircncia eacute extremamente complexa ()rdquo de modo que disfunccedilotildees de uma determinada regiatildeo cerebral pode ajudar a
14 PET scan eacute a sigla em inglecircs para a tomografia por emissatildeo de poacutesitrons (Positron Emission Tomography) e eacute uma modalidade de diagnoacutestico por imagem que permite o mapeamento de diferentes substacircncias quiacutemicas radioativas no organismo
Esse exame foi desenvolvido na Universidade de Washington em 1973 pelos meacutedicos Edward Hoffman e Michael E Phelps
A PET Scan eacute um exame que une os recursos da medicina nuclear e da radiologia uma vez que sobrepotildee imagens metaboacutelicas agraves imagens anatocircmicas produzindo assim um terceiro tipo de imagem
A PET Scan mede a atividade metaboacutelica celular de qualquer regiatildeo do corpo demonstrando assim o de atividade delas podendo mostrar a presenccedila de alteraccedilotildees funcionais antes mesmo das morfoloacutegicas permitindo um diagnoacutestico ainda mais precoce de doenccedilas ou disfunccedilotildees
Na preparaccedilatildeo para o exame eacute necessaacuterio jejum de quatro a seis horas bem como uma alimentaccedilatildeo pobre em carboidratos na noite que o antecede Antecedendo o exame o paciente deve receber uma injeccedilatildeo de glicose ligada a um elemento radioativo (quase sempre fluacuteor radioativo) e cerca de sessenta minutos depois deve submeter-se a uma tomografia computadorizada
A PET Scan capta os sinais de radiaccedilatildeo emitidos pelo elemento radioativo transformando-os em imagens e determinando assim os locais onde haacute presenccedila deste accediluacutecar demonstrando que neste local haacute um metabolismo acentuado
Entatildeo as regiotildees que metabolizam essa glicose em excesso regiotildees do ceacuterebro em intensa atividade e o coraccedilatildeo apareceratildeo em vermelho numa imagem criada por computador Ao passo que regiotildees pouco ativas apresentaratildeo coloraccedilotildees frias azul verde
(Adaptado de ABC MED Disponiacutevel em lthttpswwwabcmedbrpexames-e-procedimentos740267pet+scan+o+que+e+por+que+fazer+como+e+feita+quem+deve+e+quem+ nao+deve+fazer+quais+sao+as+possiveis+complicacoeshtmgt Acesso em 20 jan 2019
218 | Temas em Neurociecircncias
entender um tipo de crime mas a mesma explicaccedilatildeo natildeo pode ser estendida aos demais
Conforme tambeacutem veremos a seguir os estudos em que ceacuterebros de criminosos foram submetidos a exames com PET scan em sua maioria natildeo demonstram causalidade apenas associaccedilotildees entre a disfunccedilatildeo de determinada aacuterea cerebral e o cometimento de algum delito
Plea Bargain ndash Resultados de Exames de Imagens Cerebrais Possibilitaram a Realizaccedilatildeo de um Acordo na Fase de Preacute-Julgamento
De acordo com a mateacuteria publicada no jornal New York Times (200715) e com a anaacutelise do caso People v Weinstein (Supreme Court New York County 1992)16 Herbert Weinstein 65 anos era um executivo de sucesso na aacuterea de publicidade
Em 07011991 envolveu-se em uma discussatildeo com sua esposa mas no meio da discussatildeo decidiu parar de discutir e afastar-se poreacutem a cocircnjuge foi atraacutes do mesmo e arranhando a sua face O mencionado golpe foi decisivo para que Weinstein estrangulasse a esposa e a jogasse pela janela do apartamento que ficava no 12ordm andar
Ao analisarem o caso os advogados de defesa ficaram intrigados pelo fato de Weinstein natildeo possuir qualquer histoacuterico de violecircncia o que foi motivo suficiente para submetecirc-lo a um exame de ressonacircncia magneacutetica cerebral e PET scan
15 Disponiacutevel em httpswwwnytimescom20070311magazine11Neurolawthtml Acesso em 23 mar 2019
16 156 Misc2d 34 People v Weinstein Supreme Court New York County1992 Disponiacutevel em lthttpswwwleaglecomdecision1992190156misc2d341186gt Acesso em 10 jan 2019
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 219
O resultado foi estarrecedor o executivo ora criminoso possuiacutea um cisto aracnoide17 no lobo frontal esquerdo e que comprimia o coacutertex frontal e temporal
Os resultados foram apresentados numa audiecircncia preacutevia e analisados pelo neurologista Antonio Damaacutesio que foi contundente ao defender que o Reacuteu tinha uma reduccedilatildeo na capacidade de regular suas emoccedilotildees e tomar decisotildees racionais
Apoacutes o parecer do expert e acusaccedilatildeo que pleiteava nada menos do que 25 anos de prisatildeo concordou com a tese da defesa de homiciacutedio culposo impondo-lhe uma pena de 7 anos de prisatildeo
Essa foi a primeira vez acusaccedilatildeo e defesa por meio do plea bargain negociaram a reduccedilatildeo da pena e a reclassificaccedilatildeo do crime cometido diante das provas obtidas atraveacutes de exames de imagens cerebrais e analisadas a luz da neurociecircncia
Esclarece Adrian Raine (2015) que
O caso de Herbert Weinstein destaca mais uma vez a importacircncia do ceacuterebro na predisposiccedilatildeo agrave violecircncia Mais especificamente o caso sugere que deacuteficit estrutural do coacutertex preacute-frontal esquerdo resulta em uma anormalidade do oacutergatildeo que por sua vez resulta em violecircncia A causa dos cistos como o de Weinstein eacute desconhecida e eles podem crescer durante um longo periacuteodo de tempo Tambeacutem podem benignos mas especialistas no caso testemunharam que o cisto resultou em uma disfunccedilatildeo cerebral que afetou de modo substancial a capacidade de Weinstein de pensar racionalmente Isso reforccedilou a credibilidade de sua defesa que alegava insanidade (Raine 2015 p 133)
Analisando o caso e as caracteriacutesticas bioloacutegicas de Weinstein fica evidente que o episoacutedio de violecircncia que culminou na morte de sua esposa deu-se pela falta do controle do coacutertex preacute-frontal sobre as regiotildees liacutembicas do ceacuterebro as quais satildeo sabidamente envolvidas
17 Os cistos aracnoacuteides satildeo coleccedilotildees intraracnoacuteides de liacutequido ceacutefalo raquiano (LCR) Satildeo de natureza congecircnita e se formam graccedilas a defeito valvular das membranas aracnoacuteides que facilita a passagem do LCR para o interior do cisto e dificulta a saiacuteda1 Embora muitos podem constituir achados incidentais outros podem causar sintomas por compressatildeo do parecircnquima cerebral ou aumento da pressatildeo intracraniana (Castro Samuel Caputo de Cistos aracnoacuteides intracranianos tratamento pela neuroendoscopia Arq Neuro-Psiquiatr Satildeo Paulo v 57 n 1 p 63-67 mar 1999)
220 | Temas em Neurociecircncias
com o processamento das emoccedilotildees que por sua vez satildeo moduladas e processadas pelo coacutertex preacute-frontal
Logo a anormalidade estrutural e funcional do ceacuterebro de Weinstein natildeo permitiria que ele esboccedilasse respostas natildeo violentas a anormalidade foi determinante para o cometimento do crime
A Classificaccedilatildeo de Criminosos sob Prisma da Atividade do Coacutertex Preacute-Frontal ndash Criminosos Reativos e Proativos
Atualmente os criminosos podem ser classificados em proativos ou reativos a depender do modo como cometem crimes e do perfil de funcionamento do coacutertex preacute-frontal (Raine 2006 Dodge 1991 Meloy 1988)
Criminosos proativamente agressivos conseguem planejar suas accedilotildees satildeo equilibrados controlados movidos por recompensas externas (materiais) ou internas (psicoloacutegicas) tem sangue frio e natildeo possuem compaixatildeo alguma sendo essas caracteriacutesticas encontradas em assassinos em seacuterie18 Os agressivos reativos possuem sangue quente natildeo conseguem apresentar respostas controladas e racionais quando se deparam a ocasiotildees estressantes ou ateacute mesmo quando satildeo repreendidos
Com base nessa classificaccedilatildeo Raine et al (1998 2006)conseguiram classificar criminosos reativos e proativos de acordo com a atividade do coacutertex preacute-frontal em um estudo intitulado Reduced prefrontal and increased subcortical brain functioning assessed using positron emission tomography in predatory and affective murderers
Nesse trabalho a pesquisa foi iniciada com 41 criminosos e para classificaacute-los em reativosproativos foram analisadas as fichas criminais registros advocatiacutecios depoimentos perante as autoridades policiais e nos tribunais reportagens relatos de psicoacutelogos psiquiatras e assistentes sociais Ao final dos 41 24 foram classificados como
18 ldquoUm monte de assassinos em seacuterie se ajusta a isso ndash como Harold Shipman na Inglaterra que matou um nuacutemero de 284 pessoas a maior parte delas mulheres idosas Ted Kaczynski o Unabomber cuja campanha de terror foi realizada por meio de bombas enviadas pelo correio Peter Sutcliffe que eliminou 13 mulheres no norte da Inglaterra e Ted Bundy que cuidadosamente matou cerca de 35 mulheres jovens muitas delas estudantes universitaacuteriasrdquo (Raine 2015 p 75)
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 221
criminosos reativos e 15 como criminosos proativos alguns possuiacuteam ambas as caracteriacutesticas e foram excluiacutedos do estudo
Tambeacutem foi constatado que o criminoso reativo possui baixo funcionamento da regiatildeo ventral do coacutertex preacute-frontal em contraste com o proativo que possui uma ativaccedilatildeo expressiva na referida regiatildeo o que explicaria porque apenas os uacuteltimos conseguem planejar o crime e ainda obteacutem certa satisfaccedilatildeo psicoloacutegica ao obterem ecircxito
Adrian Raine sugere que as caracteriacutesticas dos criminosos proativos podem ter relaccedilatildeo com as condutas dos terroristas que reagem a um insulto sociopoliacutetico ideoloacutegico planejando cuidadosamente um contra-ataque (Raine 2015)
Eacute importante esclarecer que o coacutertex preacute-frontal estaacute envolvido nas funccedilotildees executivas as quais estatildeo relacionadas com as habilidades para diferenciar pensamentos conflitantes tomada de decisotildees previsatildeo de fatos expectativas baseadas em accedilotildees e controle social de modo que deacuteficits no coacutertex preacute-frontal conduzem a uma maior impulsividade agressividade e inadequaccedilatildeo social em outras palavras eacute responsaacutevel pelo surgimento de um fator criminoloacutegico de muita relevacircncia e ateacute entatildeo desconhecido (Rolls 2004 Holbrook et al 2015)
Aleacutem disso esses achados tambeacutem sugerem que o coacutertex preacute-frontal age controlando as emoccedilotildees desenfreadas geradas por estruturas liacutembicas no caso dos criminosos reativos bem como tambeacutem eacute responsaacutevel pela sofisticaccedilatildeo e planejamento dos crimes cometidos pelos proativos os quais satildeo guiados por uma satisfaccedilatildeo abstrata
Assim as descobertas dos estudos de neuroimagem satildeo corroboradas pelos resultados em neurociecircncias demonstram a existecircncia de uma base neurobioloacutegica para criminalidade e o coacutertex preacute-frontal estaacute envolvido
Pedofilia o Elo entre o Desenvolvimento de um Tumor no Ceacuterebro e o Cometimento de Crimes
Burns amp Swerdlow (2003) relatam a histoacuteria de Michael professor infantil casado tinha uma enteada de 12 anos sem antecedentes psiquiaacutetricos ou de qualquer comportamento desviante era um tiacutepico cidadatildeo estadunidense
222 | Temas em Neurociecircncias
Por volta dos 40 anos de idade o comportamento de Michael comeccedilou a mudar interessando-se por pornografia infantil e culminando no abuso sexual da enteada
Apoacutes foi diagnosticado como pedoacutefilo e condenado pela agressatildeo sexual podendo optar por submeter-se a um tratamento para pedoacutefilos ou cumprir uma pena em regime fechado
Michael optou pelo tratamento mas natildeo demorou para ser expulso do programa uma vez que as tentativas de satisfazer os seus desejos sexuais eram constantes
Um dia antes de iniciar o cumprimento da pena procurou um hospital queixando-se de dor de cabeccedila Apoacutes ser atendido e quando estava prestes a ser liberado alegou que acaso fosse liberado estupraria a dona do local onde estava morando O que forccedilou a equipe meacutedica a internaacute-lo na ala psiquiaacutetrica
O neurologista Russell Swerdlow percebeu problemas na marcha e que Michael urinava sobre si mesmo sem qualquer preocupaccedilatildeo sintomas que o levaram a fazer um exame de Ressonacircncia Magneacutetica do ceacuterebro do paciente
O exame mostrou que Michael tinha um tumor crescendo na base do coacutertex orbitofrontal (sub-regiatildeo do coacutertex preacute-frontal) e comprimindo a regiatildeo preacute-frontal direita conforme observa-se a seguir
Figura 1 ndash Imagem de ressonacircncia magneacutetica do ceacuterebro do Sr Oft Presenccedila de um tumor na regiatildeo do coacutertex orbitofrontal (dentro do ciacuterculo vermelho) A B e C referem-se aos diversos planos do exame Fonte Adaptado - Disponiacutevel em httpsdxdoiorg101001archneur603437 Acesso em 26 jan 2019
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 223
Apoacutes a retirada do tumor pelos neurocirurgiotildees a emoccedilatildeo a cogniccedilatildeo e a atividade sexual de Michael voltaram ao normal e a culpa pelo que havia feito com a enteada vieram agrave tona19
Michael recebeu alta meacutedica concluiu o programa de tratamento de pedoacutefilos e apoacutes alguns meses voltou a residir com a esposa e a enteada
Entretanto apoacutes certo tempo o comportamento de Michael retornou a mesma situaccedilatildeo de antes da retirada do tumor apoacutes exames a mesma equipe meacutedica constatou a recidiva do tumor
Apoacutes a nova cirurgia para retirada o tumor o comportamento voltou a melhorar dessa vez a recuperaccedilatildeo foi completa
O coacutertex orbitofrontal eacute uma sub-regiatildeo do coacutertex preacute-frontal envolvida com a regulaccedilatildeo do controle social Lesotildees nessa regiatildeo comprometem o desenvolvimento do sensojulgamento social e moral resultando no empobrecimento nas tomadas de decisotildees impulsividade e sociopatia Tambeacutem eacute de conhecimento que o coacutertex orbitofrontal eacute uma das estruturas responsaacuteveis pela inibiccedilatildeo dos impulsos sexuais (Eslinger e Damasio 1985 Beauregard et al 2001)
Nesse liame assevera Priscilla Placha Saacute que a pedofilia enseja um julgamento bastante severo em face de quem o pratica no caso em comento para que o juiacutezo de reprovabilidade eacute menor pelo fato de que haacute uma ldquoexplicaccedilatildeordquo neurobioloacutegica bastante razoaacutevel e que natildeo estaacute no domiacutenio do sujeito o tumor eacute o responsaacutevel pela libido pervertida do sujeito e a doenccedila eacute o mal ou seja o conhecimento do fator criminoacutegeno neurobioloacutegico o tumor torna desnecessaacuteria a imposiccedilatildeo de qualquer pena mas impotildee o tratamento adequado caso exista
Assim tem-se que o surgimento de diferentes paradigmas cliacutenicos da neurociecircncia estaacute convergindo para a mesma conclusatildeo de que haacute uma significativa base neurobioloacutegica para a criminalidade
19 O caso descrito foi publicado no artigo cientiacutefico intitulado ldquoRight Orbitofrontal Tumor With Pedophilia Symptom and Constructional Apraxia Signrdquo publicado na revista Archives of Neurology em 2003
224 | Temas em Neurociecircncias
Relaccedilatildeo Temporal entre Lesotildees Cerebrais e o Cometimento de Crimes
Com o intuito de demonstrar que disfunccedilotildees no funcionamento cerebral podem ter um papel relevante para o cometimento de crimes pode-se observar na Tabela 1 alguns casos de correlaccedilatildeo entre a ocorrecircncia de lesotildees cerebrais e o aparecimento do comportamento desviantecometimento de crimes
Tabela 1 - Relaccedilatildeo entre cometimento de crimes apoacutes a lesatildeo de determinadas regiotildees cerebrais (continua)
Caso Comportamento EtiologiaLesatildeo
(idade)Crime
(idade)Referecircncia
1Raiva agressatildeo e incecircndio criminoso
Ressecccedilatildeo de abscesso cerebral
16 48Tonkonogy 1991
2Raiva agressatildeo e destruiccedilatildeo de propriedade
Trauma 23 42Tonkonogy 1991
3Raiva agressatildeo e destruiccedilatildeo de propriedade
Desconhecido 21 42Tonkonogy 1991
4
Agressatildeo verbalfiacutesica mentira roubo falta de empatia culpa remorso e comportamento sexual de risco
Trauma 15 3Anderson et al 1999
5
Agressatildeo verbalfiacutesica mentira roubo falta de empatia culpa remorso e comportamento sexual de risco
Tumor 1 9Anderson et al 1999
6Mentira roubo fraude e crimes financeiros
Tumor 33 33Meyers et al 1992
7Mentira decisotildees financeiras ilegais
Tumor 35 35Eslinger e Damasio 1985
8Roubo agressatildeo e violecircncia
Tumor 56 56Blair e Cipolotti 2000
Fonte Adaptado de Darby 2018 p 601-606
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 225
Tabela 1 - Relaccedilatildeo entre cometimento de crimes apoacutes a lesatildeo de determinadas regiotildees cerebrais (conclusatildeo)
Caso Comportamento EtiologiaLesatildeo
(idade)Crime
(idade)Referecircncia
9Decisotildees financeiras ilegais e desonestidade
Trauma 54 54Tranel et al 2002
10Decisotildees financeiras ilegais e desonestidade
Acidente vascular encefaacutelico
32 32Tranel et al 2002
11Agressatildeo violecircncia roubo e suiciacutedio
Hemorragia sub-aracnoacuteide
5 14Nakaji et al 2003
12 Violecircncia e agressatildeo Tumor 4 6Nakaji et al 2004
13 Estupro (3 vezes) Tumor 26 naMitchell et al 2006
14 Homiciacutedio e estupro Trauma 32 32Mitchell et al 2006
15Homiciacutedio e estupro (2 vezes)
Tumor 14 18Mitchell 2006
16Homiciacutedio da matildee apoacutes tentar o mesmo crime 2 anos antes
Lesatildeo ciruacutergica
40 62Orellana et al 2013
17 Homiciacutedio Trauma 7 34Sener et al 2015
Fonte Adaptado de Darby 2018 p 601-606
Analisando-se a tabela acima eacute possiacutevel constatar a existecircncia do nexo de causalidade entre o aparecimento de tumores traumas lesotildees ciruacutergicas acidentes vasculares encefaacutelicos hemorragias sub-aracnoacuteide ressecccedilatildeo de abscesso cerebral com significativas mudanccedilas comportamentais e com o cometimento de crimes
A Influecircncia da Neurociecircncia nas Decisotildees da Suprema Corte dos EUA ndash Decisotildees Acerca da Culpabilidade Criminal de Adolescentes
A Suprema Corte dos EUA ao longo dos uacuteltimos anos ao julgar casos envolvendo a culpabilidade criminal de jovens fundamentou
226 | Temas em Neurociecircncias
suas decisotildees em estudos de neurociecircncias20 Thompson vOklahoma 487 US 815 (1988)21 Roper v Simmons 543 US 551 (2005)22 Graham v Florida 560 US 48 (2010)23
No caso mais recente (2010) a Corte decidiu que as decisotildees condenavam adolescentes a prisatildeo sem a possibilidade de liberdade condicional satildeo inconstitucionais Neste caso a decisatildeo da Suprema Corte foi baseada em estudos cientiacuteficos que demonstram que os ceacuterebros de adolescentes ainda natildeo estatildeo totalmente desenvolvidos satildeo imaturos no aspecto psicoloacutegico e neurobioloacutegico natildeo sendo portanto plenamente responsaacuteveis pelo seu comportamento como os adultos
Frisa-se que os crimes cometidos por adolescentes normalmente decorrem de decisotildees impulsivas seja porque seus coacutertex preacute-frontais ainda natildeo estatildeo totalmente desenvolvidos seja porque o corpo estriado ventral eacute mais responsivo a recompensas ou estiacutemulos emocionais os levando a assumirem mais riscos24
Jaacute foi constatado que o estriado ventral e o coacutertex ventromedial estatildeo mais ativados durante a adolescecircncia em relaccedilatildeo a infacircncia ou a vida adulta Considerando que essas regiotildees satildeo relevantes no processamento das emoccedilotildees avaliaccedilatildeo das recompensas e puniccedilotildees tudo indica que natildeo eacute plausiacutevel impor uma pena tatildeo severa para um agente que ainda natildeo possui o desenvolvimento mental completo (Hare et al 2008)
Desse modo a neurociecircncia natildeo apenas auxilia a compreender os motivos que levaram o indiviacuteduo a cometer determinado crime podendo tambeacutem ser uma ferramenta de grande valia para aplicar adequadamente as puniccedilotildees agravequeles que violam as leis
20 Steinberg L The influence of neuroscience on US Supreme Court decisions about adolescentsamp39 criminal culpability Nature Reviews Neuroscience v 14 p 513 0612online 2013
21 Disponiacutevel em lt httpssupremejustiacomcasesfederalus487815gt Acesso em 7 abr 2019
22 Disponiacutevel em lt httpssupremejustiacomcasesfederalus543551gt Acesso em 7 abr 2019
23 Disponiacutevel em lt httpssupremejustiacomcasesfederalus56048gt Acesso em 7 abr 2019
24 Steinberg L Should the science of adolescent brain development inform public policy American Psychologist US v 64 n 8 p 739-750 2009 ISSN 1935-990X
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 227
A influecircncia da Neurociecircncia no Direito Penal
Primeiramente eacute importante que nas palavras do professor Luiz Regis Prado (2013) ldquoo delito analiticamente eacute a accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica iliacutecita e culpaacutevelrdquo ou seja possuem trecircs elementos essenciais e necessaacuterios
Tais elementos podem ser melhor compreendidos com a liccedilatildeo de Rogeacuterio Greco que discorre o seguinte
A tipicidade a antijuridicidade e a culpabilidade satildeo trecircs elementos que convertem uma accedilatildeo em um delito A culpabilidade ndash a responsabilidade pessoal por um fato antijuriacutedico ndash pressupotildee a antijuridicidade do fato do mesmo modo que a antijuridicidade por sua vez tem de estar concretizada em tipos legais A tipicidade a antijuridicidade por sua vez tem de estarem concretizadas em tipos legais A tipicidade a antijuridicidade e a culpabilidade estatildeo relacionadas logicamente de tal modo que cada elemento posterior do delito pressupotildee o anterior (Greco apud Hans Welzel 2012 p 29)
Nesse liame ressalta-se que esse toacutepico ater-se-aacute ao uacuteltimo elemento acima mencionado a culpabilidade
Ao longo dos anos a doutrina tem estudado e formulado diversas teorias sobre acerca da culpabilidade culminando na criaccedilatildeo a teoria limitada da culpabilidade que considera que a culpabilidade eacute composta pelos elementos imputabilidade potencial consciecircncia da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa25 (Masson 2016)
Masson (2016) esclarece a partir da anaacutelise do tratamento do erro (arts 19 e 21 do CP) e do item 19 da Exposiccedilatildeo de motivos da Nova Parte Geral do Coacutedigo Penal eacute possiacutevel constatar que a legislaccedilatildeo Paacutetria acolheu a teoria limitada da culpabilidade
Repete o Projeto as normas do Coacutedigo de 1940 pertinentes agraves denominadas ldquodescriminantes putativasrdquo Ajusta-se assim o Projeto agrave teoria limitada pela culpabilidade que distingue o erro incidente sobre os pressupostos faacuteticos de uma causa de justificaccedilatildeo do que incide sobre a norma permissiva Tal como no
25 Analisando as circunstacircncias judiciais do art 59 caput do Coacutedigo Penal conclui-se que a culpabilidade que ldquose determina pela imputabilidade exigibilidade de conduta diversa e possibilidade do conhecimento do injustordquo (STF - HC 73097 MS)
228 | Temas em Neurociecircncias
Coacutedigo vigente admite-se nesta aacuterea a figura culposa (artigo 17 sect 1ordm)26
De acordo com a doutrina de Miguel Reale Juacutenior (2000) que ldquoculpabilidade eacute a reprovaccedilatildeo por ter o agente agido antijuridicamente optando assim por um desvalor quando podia abster -se de fazecirc-lo jaacute que lhe era facultado motivar-se pelo valor imposto pela norma e pelo valor da norma como deverrdquo
Assim pode-se conceituar a culpabilidade como sendo o juiacutezo de censura o juiacutezo de reprovabilidade que incide sobre a formaccedilatildeo e exteriorizaccedilatildeo da vontade do responsaacutevel por um fato tiacutepico e iliacutecito com o propoacutesito de aferir a necessidade de pena de modo a culpabilidade tambeacutem eacute o fundamento e limite da pena
Quanto ao elemento imputabilidade conforme assevera Nucci (2016) corresponde ao conjunto de condiccedilotildees pessoais envolvendo a inteligecircncia e vontade que permite ao agente ter entendimento do caraacuteter iliacutecito do fato comportando-se de acordo com esse conhecimento possuindo como binocircmio necessaacuterio para a formaccedilatildeo das condiccedilotildees pessoais do imputaacutevel a sanidade mental e maturidade
Nucci (2016) tambeacutem ensina que o inimputaacutevel (doente mental ou imaturo que o menor) natildeo comete crime mas pode ser sancionado penalmente aplicando secirc-lhe medida de seguranccedila27 que se baseia no juiacutezo de periculosidade diverso portanto da culpabilidade nos termos do arts 96 e seguintes do Coacutedigo Penal
Caso o agente natildeo tenha as condiccedilotildees acima mencionadas seraacute considerado inimputaacutevel por faltar-lhe a culpabilidade
Por outro lado se o agente em virtude de perturbaccedilatildeo de sauacutede mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado natildeo era inteiramente capaz de entender o caraacuteter iliacutecito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento seraacute considerado
26 Disponiacutevel em lthttpswww2camaralegbrleginfeddeclei1940-1949decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-exposicaodemotivos-148972-pehtmlgt Acesso em 1 maio 2019
27 Medida de seguranccedila eacute uma espeacutecie de sanccedilatildeo penal destinada aos inimputaacuteveis e excepcionalmente aos semi-imputaacuteveis autores de fato tiacutepico e antijuriacutedico embora natildeo possam ser considerados criminosos por natildeo sofrerem o juiacutezo de culpabilidade mas sim de periculosidade devendo ser submetidos a internaccedilatildeo ou a tratamento ambulatorial pelo miacutenimo de um a trecircs anos sem prazo maacuteximo definido
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 229
semi-imputaacutevel podendo a pena ser reduzida de um a dois terccedilos (art 26 paraacutegrafo uacutenico CP)28
Como demonstrado anteriormente muitos indiviacuteduos natildeo conseguem entender ou se controlar em situaccedilotildees estressantes natildeo conseguindo exprimir resposta que natildeo seja violenta explosiva e sem qualquer valoraccedilatildeo entre certoerrado ou melhor natildeo conseguem pautar-se por tal compreensatildeo ou sendo ela incompletaparcial e muitas vezes acabam praticando fato tiacutepico e antijuriacutedico mas natildeo culpaacutevel sendo o agente considerado inimputaacutevel ou semi-imputaacutevel a depender da analise concreta
Desse modo um indiviacuteduo que comete um fato tiacutepico e antijuriacutedico sem a plena compreensatildeo do que fazia natildeo merece ser considerado criminoso mas deve ser submetido a medida de seguranccedila
Nesse liame Nucci (2016) esclarece que a medida de seguranccedila natildeo eacute pena mas natildeo deixa de ser uma espeacutecie de sanccedilatildeo penal aplicaacutevel aos inimputaacuteveis ou semi-imputaacuteveis que praticam fatos tiacutepicos e iliacutecitos (injustos) e precisam ser internados ou submetidos a tratamento tratando-se pois de medida de defesa social
Eacute de suma importacircncia a anaacutelise das condiccedilotildees pessoais do agente maturidade (18 anos ou mais) e higidez biopsiacutequica compreendida pela sauacutede mental e capacidade de apreciar a criminalidade do fato para compreender-se adequadamente a culpabilidade
No caso em comento para se averiguar a imputabilidade ou melhor a inimputabilidade ou a semi-imputabilidade de algum acusado face alguma evidecircncia neurocientiacutefica faz-se necessaacuterio compreender melhor a higidez mental que pode ser avaliada com o auxiacutelio dos seguintes criteacuterios
28 Art 26 - Eacute isento de pena o agente que por doenccedila mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado era ao tempo da accedilatildeo ou da omissatildeo inteiramente incapaz de entender o caraacuteter iliacutecito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento
Reduccedilatildeo de pena Paraacutegrafo uacutenico - A pena pode ser reduzida de um a dois terccedilos se o agente em
virtude de perturbaccedilatildeo de sauacutede mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado natildeo era inteiramente capaz de entender o caraacuteter iliacutecito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento
230 | Temas em Neurociecircncias
bull Bioloacutegico leva-se em conta exclusivamente a sauacutede mental do agente isto eacute se o agente eacute ou natildeo doente mental ou possui ou natildeo um desenvolvimento mental incompleto ou retardado A adoccedilatildeo restrita desse criteacuterio faz com que o juiz fique absolutamente dependente do laudo pericial
bull Psicoloacutegico leva-se me consideraccedilatildeo unicamente a capacidade que o agente possui para apreciar o caraacuteter iliacutecito do fato ou de comportar-se de acordo com esse entendimento Acolhido esse criteacuterio de maneira exclusiva torna-se o juiz a figura de destaque nesse contexto podendo apreciar a imputabilidade com imenso arbiacutetrio
bull Biopsicoloacutegico leva-se em conta os dois criteacuterios anteriores ou seja verifica-se se o agente eacute mentalmente satildeo e se possui capacidade de entender a ilicitude do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento Eacute o princiacutepio adotado pelo Coacutedigo Penal como se pode vislumbrar no art 26 () Logo natildeo eacute suficiente que haja algum tipo de enfermidade mental mas que exista prova de que esse transtorno afetou realmente a capacidade de compreensatildeo do iliacutecito ou de determinaccedilatildeo segundo esse conhecimento (Nucci 2016 p 269)
No Brasil os juristas ainda satildeo muito resilientes diante da possibilidade de levar situaccedilotildees baseadas na neurociecircncia aos tribunais possivelmente por desconhecimento da infinidade de oportunidades dessa ciecircncia especialmente por permitir o melhor entendimento do crime e do criminoso
A oportunidade de utilizar a neurociecircncia na praacutetica forense pauta-se no criteacuterio biopsicoloacutegico da inimputabilidade (art 26 do CP) e do instrumento processual para dirimir tal controversa corresponde ao incidente da insanidade mental (art 149 e seguintes do CPP) mas acredito que o uacuteltimo ainda natildeo eacute utilizado em sua plenitude pois as modernas teacutecnicas de neuroimagens ainda natildeo satildeo utilizadas
Como demonstramos e defendemos que os crimes podem ter uma origem neurobioloacutegica que decorre de algum defeito congecircnito geneacutetico ou traumaacutetico que altera o funcionamento cerebral
Eacute fato que essas sutis alteraccedilotildees no padratildeo de funcionamento do ceacuterebro soacute podem ser identificadas ao utilizar-se a metodologia adequada como exames de imagens cerebrais de modo que questionamentos ou testes realizados por meacutedicos forenses satildeo incapazes de identificar tais alteraccedilotildees
Eacute importante ressaltar que nesse liame objetivo dos advogados deve ser o de diminuir a responsabilidade legal dos criminosos
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 231
alegando e provando que as anormalidades neurobioloacutegicas afetam o comportamento e a tomada de decisotildees ou seja demonstrando que eacute inimputaacutevel ou semi-imputaacutevel sendo vedada a arguiccedilatildeo geneacuterica sob pena de banalizar-se esse instituto e cair em descreacutedito perante os operadores do direito
Por outro lado promotores de justiccedila podem utilizar a neurociecircncia para demonstrar a periculosidade futura dos criminosos uma vez que a causa bioloacutegica que contribuiu para o cometimento do crime sempre estaraacute presente no indiviacuteduo natildeo restaurando-se com o cumprimento de pena restritiva de liberdade ou tampouco com apoacutes a aplicaccedilatildeo de uma pena alternativamedida de seguranccedila
Assim caberaacute ao juiz ou ao corpo de jurados dependendo do tipo de crime avaliar todas peculiaridades do crime do criminoso e as informaccedilotildees obtidas atraveacutes de exames de imagens em outras palavras o sucesso da defesa estaraacute pautada na escolha do exame de imagem adequado desafiando a aacuterea afetada com o intuito de mostrar a contribuiccedilatildeo da sua disfunccedilatildeo com o cometimento do delito bem como toda a fundamentaccedilatildeoargumentaccedilatildeo neurobioloacutegica a convencer o juiz ou os jurados
No que tange a prova no processo penal assevera Lima (2015) que a confiabilidade eacute o ponto crucial para as provas periciais nos tribunais Em casos que envolvem transtornos mentais os juiacutezes geralmente apoiam as decisotildees em opiniotildees e depoimentos de testemunhas ou de profissionais especializados no cruzamento da sauacutede mental com a lei
Aleacutem disso Nucci (2016) ensina que lei penal adotou o criteacuterio misto (biopsicoloacutegico) sendo indispensaacutevel a existecircncia de laudo meacutedico para comprovar a doenccedila mental ou mesmo o desenvolvimento mental incompleto ou retardado (eacute a parte bioloacutegica) situaccedilatildeo natildeo passiacutevel de verificaccedilatildeo direta pelo juiz
Nada obstante ainda remanesce o lado psicoloacutegico que consiste na capacidade de se conduzir de acordo com tal entendimento compreendendo o caraacuteter iliacutecito do fato Cabendo a anaacutelise desse criteacuterio ao magistrado analisando as provas colhidas ao longo da instruccedilatildeo natildeo ficando adstrito ao laudo podendo aceitaacute-lo ou rejeitaacute-lo no todo ou em parte (art 182 do CPP) ou ateacute mesmo substituir o expert
232 | Temas em Neurociecircncias
A relevacircncia dos exames de imagens e da neurociecircncia na praacutetica forense estaacute justamente em se observar a criminalidade isto eacute observar o substrato neural responsaacutevel pelo delinquente cometer determinado delito observar o que haacute de errado se haacute soluccedilotildees natildeo havendo aplicar-lhe a medida de seguranccedila adequada
Ainda de acordo com Lima (2013) os indiviacuteduos que estudados ateacute o momento podem ser tratados como biodelinquentes que satildeo distinguidos do demais por cometerem a praacutetica delituosa alheios agrave proacutepria voliccedilatildeo e que agem pressionados por transtornos neuroloacutegicos originaacuterios de doenccedilas preacute-existentes adquiridas ou traumatizantes da caixa craniana natildeo alcanccedilaacuteveis ou natildeo pelas teacutecnicas de neuroimagem atuais
Esses biodelinquentes ou apenas criminosos natildeo possuem desenvolvimento mental incompleto ou retardado muitas vezes natildeo sendo abobalhados ou expressando qualquer exteriorizaccedilatildeo dessa disfunccedilatildeo mas conforme ensina Nucci (2016) esses criminosos possuem uma diminuta capacidade de compreensatildeo do iliacutecito ou falta de condiccedilotildees de se autodeterminar conforme o precaacuterio entendimento tendo em vista ainda natildeo ter o agente atingido a sua maturidade intelectual e fiacutesica seja por conta da idade seja porque apresenta alguma caracteriacutestica particular como o silviacutecola natildeo civilizado ou o surdo-mudo sem capacidade de comunicaccedilatildeo
Ainda sobre a oacutetica da imputabilidade Eagleman (2012) defende que os criminosos que possuem alguma disfunccedilatildeo cerebral deveriam sempre serrem tratados como incapazes de ter atuado de outra maneira de modo que a atividade criminosa deve ser compreendida como produto de uma anormalidade cerebral
Eduardo Demetrio Crespo e Manuel Moroto Calatayud fazem o seguinte alerta
No caso em que novos conhecimentos empiacutericos obtidos por exemplo atraveacutes das modernas teacutecnicas de neuroimagem demonstrem que se vinha imponde penas a suspeitos cuja conduta delitiva agora sabemos se devia a deacuteficits cerebrais isso deve ser levado em conta a favor do autor Em particular eacute muito provaacutevel que os novos conhecimentos deem lugar a uma ampliaccedilatildeo dos casos de inimputabilidade e semi-imputabilidade (Crespo amp Calatayud 2013 p 39)
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 233
Arremata Placha Saacute dizendo que muitos sujeitos foram tratados como crueacuteis e malvados sem na verdade o serem pois natildeo se conhecianatildeo se aplicava a neurociecircncia na praacutetica forense como no caso do homem que comeccedilou a se comportar como um pedoacutefilo quando na verdade era um tumor cerebral que pressionava uma aacuterea responsaacutevel pela libido ou seja o criminoso era o tumor e natildeo o agente
Nessa linha de raciociacutenio eacute que a neurociecircncia por ser tida como uma veia libertadora ao se constatar que a causa do (f)ato eacute uma doenccedila que pode ser extirpada e que pode ser tratada libera-se o sujeito de sua responsabilidade por que natildeo haveria necessidade de imposiccedilatildeo de qualquer imposiccedilatildeo de qualquer consequecircncia juriacutedico-penal por algo que eacute eventual e fora do domiacutenio e do controle de sua vontade Parece que essa possibilidade poderia ser compreendida a parir de uma leitura ampliada do que descrito nos art 26 caput e 28 sect1ordm do Coacutedigo Penal em que a questatildeo do fortuito e da forccedila maior que toma o livre-arbiacutetrio do sujeito excluem sua responsabilidade penal Eacute possiacutevel notar que para alguns haacute certo pesar pelo fato de esse conhecimento neurocientiacuteficos ter sido descoberto soacute mais recentemente o que faria pensar que muitos sujeitos foram tratados como crueacuteis e malvados sem na verdade o serem (Placha Saacute 2014 p 221)
Em decisatildeo que limitou o prazo maacuteximo de cumprimento de medida de seguranccedila tambeacutem eacute importante ressaltar que pelo fato das disfunccedilotildees neurobioloacutegicas em via de regra serem permanentes mesmo apoacutes o cumprimento integral da medida de seguranccedila imposta o agente continuaraacute a ter a disfunccedilatildeo neurobioloacutegica que foi responsaacutevel pelo crime anteriormente cometido
Apesar do agente submetido a excepcional medida de seguranccedila natildeo ter cura ou natildeo se regenerar com os passar os anos veda-se a sua internaccedilatildeo ou enclausuramento por tempo indeterminado nos termos do art 5ordm XLVII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica garantia constitucional abolidora das prisotildees perpeacutetuas
Nesse diapasatildeo o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que a medida de seguranccedila tem natureza punitiva razatildeo pela qual a ela se aplicam o instituto da prescriccedilatildeo e o tempo maacuteximo de duraccedilatildeo de 30 anos esse uacuteltimo decorrente da vedaccedilatildeo constitucional agraves penas perpeacutetuas (HC 98360 Rel Min Ricardo Lewandowski Primeira Turma Dje 23102009)
234 | Temas em Neurociecircncias
Feitos tais esclarecimentos pode-se concluir que a neurociecircncia precisa ser inserida na praacutetica forense brasileira a exemplo dos Estados Unidos
Natildeo obstante eacute fato que a utilizaccedilatildeo da neurociecircncia na praacutetica forense depende da participaccedilatildeo e interesse dos seus principais operadores (peritos assistentes teacutecnicos advogados promotores e juiacutezes) possibilitara a evoluccedilatildeo da justiccedila criminal brasileira elevando-a para um novo patamar permitindo a melhor compreensatildeo dos crimes e dos criminosos e por conseguinte lhes seraacute imposta a sanccedilatildeo correta seja ela uma pena seja ela uma medida de seguranccedila Portanto propiciaraacute o alcance da justiccedila criminal
Consideraccedilotildees Finais
A utilizaccedilatildeo da neurociecircncia na praacutetica forense tem o potencial de melhorar a precisatildeo das decisotildees judiciais diminuindo os erros e permitindo a aplicaccedilatildeo sanccedilatildeo adequada e justa aos criminosos bem como possibilita entender as possiacuteveis causas neurobioloacutegicas que levaram criminosos a delinquir
Nada obstante eacute importante ressaltar que que a neurociecircncia seraacute uma relevante ferramenta a serviccedilo da justiccedila ao passo que advogados poderatildeo utilizaacute-la para diminuir a pena e atenuar a responsabilidade dos reacuteus alegando e provando que as anormalidades neurobioloacutegicas afetaram o comportamento e a tomada de decisotildees dos acusados Os promotores poderatildeo demonstrar a periculosidade futura dos acusados uma vez que a causa neurobioloacutegica que contribuiu para o cometimento do crime sempre estaraacute presente no indiviacuteduo natildeo restaurando-se com o cumprimento de qualquer tipo de sanccedilatildeo
Portanto a aplicaccedilatildeo da neurociecircncia a praacutetica forense brasileira seraacute de grnde valia pois aumentaraacute a profundidade das decisotildees judiciais cabendo ao julgador avaliar todas as suas peculiaridades analisar robustos exames de imagens cerebrais e as possiacuteveis influecircncias neurobioloacutegicas bem como sopesar os argumentos e provas produzidas por advogados e promotores ao longo dos processos criminais tudo a fim de se atingir a justiccedila criminal
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 235
Referecircncias
Anderson S W et al (1999) Impairment of social and moral behavior related to early damage in human prefrontal cortex Nat Neurosci 2 (11) 1032-1037
Beauregard M Leacutevesque J amp Bourgouin P (2001) Neural Correlates of Conscious Self-Regulation of Emotion The Journal of Neuroscience
Blair R J amp Cipolotti L (2000) Impaired social response reversal A case of lsquoacquired sociopathyrsquo Brain 123 (Pt 6) 1122-1141
Burns J M amp Swerdlow R H (2003) Right Orbitofrontal Tumor With Pedophilia Symptom and Constructional Apraxia Sign Archives of Neurology 60 (3) 437-440
Castro S C de (1999) Cistos aracnoacuteides intracranianos tratamento pela neuroendoscopia Arq Neuro-Psiquiatr Satildeo Paulo 57 (1) 63-67
Crespo E D amp Calatayud M M (2013) Neurociencias y Derecho Penal nuevas perpectivas en el aacutembito de la culpabilidade y tratamento juriacutedico-penal de la peligrosidad Montevideo B de F Buenos Aires Ed Euros
Darby R R et al Lesion network localization of criminal behavior Proc Natl Acad Sci U S A v 115 n 3 p 601-606 2018
Dodge K A (1991) The structure and function of reactive and proactive aggression In Pepler D Rubin K editors The Development and Treatment for Childhood Aggression Hillsdale Erlbaum
Eagleman D (2012) Incoacutegnito as vidas secretas do ceacuterebro Trad Ryta Vinagre Rio de Janeiro Rocco
Eslinger P J amp Damasio A R (1985) Severe disturbance of higher cognition after bilateral frontal lobe ablation patient EVR Neurology 35 (12) 1731-1741
Farias Juacutenior J (2006) Manual de criminologia 3 ed Juruaacute Curitiba
Fernandes A (2010) Os labirintos neuronais do Direito livre-arbiacutetrio responsabilidade racionalidade Disponiacutevel em httpswwwresearchgatenetprofileAtahualpa_Fernandez2publication237065374_Os_labirintos_neuronais_do_direito_l ivrearbitr io_responsabi l idade_racional idadelinks00b7d51b1f54f5ff6b000000os-labirintos-neuronais-do-direito-livre-arbitrio-responsabilidade-racionalidadeorigin=publication_detail Acesso em 23 mar 2019
Fernandes V (2012) Criminologia Integrada 4ordf Ediccedilatildeo Revistas dos Tribunais Satildeo Paulo
Grossi M G R Lopes A M amp Couto P A (2014) A neurociecircncia na formaccedilatildeo de professores um estudo da realidade brasileira Revista da FAEEBA ndash Educaccedilatildeo e Contemporaneidade Salvador 23(41) 27ndash40
Hare T A et al (2008) Biological substrates of emotional reactivity and regulation in adolescence during an emotional go-nogo task Biological psychiatry 63(10) 927-934
236 | Temas em Neurociecircncias
Holbrook C et al (2015) Neuromodulation of group prejudice and religious belief Social Cognitive and Affective Neuroscience
Kretschmer E (2015) Constitucioacuten y Caraacutecter Investigaciones acerca del problema de la constitucioacuten y de la doctrina de los temperamentos (1921) [Constitution and character Research on the constitution and the doctrine of temperaments (1921)] Vertex (Buenos Aires Argentina) 26(122) 303ndash317
Lent R (2010) 100 bilhotildees de neurocircnios Rio de Janeiro Editora Atheneu
Lima J E M (2013) Neurodireito ndash repercussatildeo e implicaccedilotildees da neurociecircncia para o direito penal Trabalho de Conclusatildeo de Curso (Bacharel em Direito) ndash Universidade Regional de Blumenal Santa Catarina Blumenau 100p
Lombroso C O (2010) Homem Delinquente Traduccedilatildeo Sebastian Joseacute Roque 1 Reimpressatildeo Satildeo Paulo Iacutecone
Masson C (2016) Direito penal esquematizado - Parte geral -1 10ordf ed rev atual e ampl - Rio de Janeiro Forense Satildeo Paulo Meacutetodo
Mitchell D G et al (2006) Instrumental learning and relearning in individuals with psychopathy and in patients with lesions involving the amygdala or orbitofrontal cortex Neuropsychology 20(3) 280-289
Meloy J R (1988) The psychopathic mind origins dynamics and treatment Northvale NJ J Aronson
Meyers C A et al (1992)Case report acquired antisocial personality disorder associated with unilateral left orbital frontal lobe damage J Psychiatry Neurosci 17(3) 121-125
Molina A G P de amp Luiz F (2002) Criminologia introduccedilatildeo a seus fundamentos teoacutericos introduccedilatildeo agraves bases criminoloacutegicas da Lei 909995 lei dos juizados especiais criminais RT Satildeo Paulo
Nakaji P Meltzer H S Singel S A amp Alksne J F (2003) Improvement of aggressive and antisocial behavior after resection of temporal lobe tumors Pediatrics 112(5) e430
Nakaji P amp Spetzler R F (2004) Innovations in surgical approach the marriage of technique technology and judgment Clinical neurosurgery 51 177ndash185
Nucci G S (2016) Manual de direito penal 11 ed re e ampl Rio de Janeiro Forense
Orellana G et al (2013) Psychosis-related matricide associated with a lesion of the ventromedial prefrontal cortex J Am Acad Psychiatry Law 41(3) 401-406
Penteado Filho N S (2013) Manual de Criminologia 3ordfed Saraiva Satildeo Paulo
Placha Saacute P (2014) Narrativas e discursos sobre a ldquoloucurardquo In BUSATO Paulo Ceacutesar (Org) Neurociecircncia e direito penal Satildeo Paulo Editora Atlas SA
Prado Luiz Regis (2013) Curso de direito penal brasileiro parte geral vol 1 12 ed Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais
A Influecircncia da Neurociecircncia na Criminologia Uma Nova Perspectiva de Anaacutelise do Criminoso | 237
Raine A (2015) The anatomy of violence The biological roots of crime New York Pantheon Random House London Allen Lane Penguin Amsterdam Balans
Raine A et al (2006) The Reactive-Proactive Aggression Questionnaire Differential Correlates of Reactive and Proactive Aggression in Adolescent Boys Aggressive behavior
Raine A amp Yang Y (2006) Neural foundations to moral reasoning and antisocial behavior Social cognitive and affective neuroscience 1(3) 203ndash213
Raine A et al (1998) Reduced prefrontal and increased subcortical brain functioning assessed using positron emission tomography in predatory and affective murderers Behav Sci Law
Reale Juacutenior M (2000) Teoria do delito 2 ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais
Rolls E T (2004) The functions of the orbitofrontal cortex Brain and Cognition
Schecaria S S (2012) Criminologia 4ordfedrev e atual Ed Revista dos tribunais Satildeo Paulo
Sener M T et al (2015) Criminal Responsibility of the Frontal Lobe Syndrome Eurasian J Med 47(3) 218-222
Serrano M A (2016) Curso de criminologia 3ordfed rev atual e ampl Satildeo Paulo
Steinberg L (2013) The influence of neuroscience on US Supreme Court decisions about adolescentrsquos criminal culpability Nature Reviews Neuroscience 14 513
Tonkonogy J M (1991) Violence and temporal lobe lesion head CT and MRI data The Journal of neuropsychiatry and clinical neurosciences 3(2) 189ndash196
Tranel D Bechara A amp Denburg N L (2002) Asymmetric functional roles of right and left ventromedial prefrontal cortices in social conduct decision-making and emotional processing Cortex 38(4) 589-612
Valančienė D (2013) Neurolaw is the dialogue between neuroscience and law inevitable Education Kūno Kultūra Sportaas
Ventura D F (2010) Um retrato da aacuterea de Neurociecircncia e comportamento no Brasil Psic Teor e Pesq Brasiacutelia 26 ( n spe) 123-129
Viana E (2018) Criminologia 6ordf Ed rev atual e ampl JusPODIVM Salvador
Vold G B Bernard T J amp Sinpes J B (1998) Theoretical Criminology 4 ed New York e Oxford Oxford University Press
Transtorno Obsessivo-Compulsivo Integraccedilatildeo entre Perspectiva Evolucionista e Dados Neurobioloacutegicos1
Celio Roberto EstanislauUniversidade Estadual de Londrina
Thiago Soares CampoliUniversidade Estadual de Londrina
Rodrigo Moreno KleinUniversidade Estadual de Londrina
Acauatilde Galdino Vieira SilvaUniversidade Estadual de Londrina
Isis Amanda Andrade AmadeuUniversidade Estadual de Londrina
Guilherme Machado BorgesUniversidade Estadual de Londrina
Introduccedilatildeo
O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) eacute caracterizado por obsessotildees e compulsotildees As obsessotildees satildeo compostas por conteuacutedos intrusivos tais como pensamentos imagens etc As compulsotildees assumem a forma de atos que podem ser repetitivos estereotipados e perseverantes As compulsotildees constituem tentativas de aliacutevio ainda que temporaacuterio da ansiedade induzida pelas obsessotildees A conexatildeo entre elas eacute no entanto muitas vezes pobre e pouco razoaacutevel (American Psychiatric Association 2013)
A visatildeo tradicional apresenta o TOC como uma doenccedila mental Essa concepccedilatildeo deriva da observaccedilatildeo de que pessoas que preenchem os criteacuterios diagnoacutesticos para o transtorno apresentam disfunccedilatildeo psicoloacutegica sofrimento e resposta culturalmente atiacutepica (Barlow amp Durand 2008)
Autor para correspondecircncia celioestanislau
gmailcom
1 Durante a elaboraccedilatildeo do capiacutetulo nosso grupo contou
com apoio de Fundaccedilatildeo
Araucaacuteria (prot 38134) e Conselho
Nacional de Desenvolvimento
Cientiacutefico e Tecnoloacutegico
(CNPq) (proc 4712142014-0)
CE recebeu bolsa de pesquisa
do CNPq (proc 3073882015-8) IAAA recebeu
bolsa de iniciaccedilatildeo cientiacutefica da
Fundaccedilatildeo Araucaacuteria
9
240 | Temas em Neurociecircncias
Com prevalecircncia ao longo da vida de 12 (Kessler et al 2005) e taxas crescentes entre parentes de primeiro grau gecircmeos dizigoacuteticos e monozigoacuteticos respectivamente o TOC seguramente sofre importantes influecircncias de fatores geneacuteticos (American Psychiatric Association 2013) De forma geral caracteres que satildeo transmitidos geneticamente estatildeo por certo sujeitos aos efeitos da seleccedilatildeo com o passar das geraccedilotildees Ou seja o TOC pode evidenciar algum mecanismo que eacute produto da seleccedilatildeo natural Pode o TOC ter raiacutezes em mecanismos originalmente beneacuteficos A resposta a essa pergunta passa por algumas pistas Uma delas eacute a de que eacute notaacutevel a quantidade de pessoas que sem preencher plenamente os criteacuterios para o diagnoacutestico de TOC ainda assim apresentam alguns sintomas ldquosubcliacutenicosrdquo do transtorno (Ruscio Stein Chiu amp Kessler 2010) Outra pista decorre de observaccedilotildees de que na infacircncia eacute comum se observar algumas manifestaccedilotildees que se assemelham a sintomas de TOC Essas manifestaccedilotildees aleacutem de envolverem temaacuteticas como seguranccedila limpeza e acumulaccedilatildeo podem tambeacutem envolver algo que eacute na literatura em inglecircs referenciado como um senso de ldquo just rightrdquo ou seja uma aparente necessidade que a crianccedila pode apresentar de que determinados objetos sejam posicionados de formas especiacuteficas do contraacuterio haacute manifestaccedilotildees de desconforto (Evans amp Leckman 2006) Essas informaccedilotildees oriundas de populaccedilotildees natildeo-cliacutenicas de adultos e de crianccedilas sugerem que o TOC pode consistir de um mau funcionamento de algum mecanismo que estaacute presente nas pessoas em geral
Objetivo
Tendo em conta suas caracteriacutesticas e o papel de fatores geneacuteticos no TOC o objetivo deste capiacutetulo eacute apresentar uma leitura evolucionista do transtorno baseada num modelo em que convergem modelos funcionais dados neurobioloacutegicos e explicaccedilotildees evolucionistas
Transtorno Obsessivo-Compulsivo Integraccedilatildeo entre Perspectiva Evolucionista | 241
Um Olhar Evolucionista sobre o TOC
Eacute possiacutevel que os comportamentos presentes no TOC tenham efetivamente sido conservados durante a evoluccedilatildeo (Stein 2000) De modo geral pode-se ter como hipoacutetese de trabalho que a forma que caracteriacutesticas psicoloacutegicas assumem atualmente decorre de as mesmas terem sido boas soluccedilotildees para problemas de sobrevivecircncia ou reproduccedilatildeo no passado (Goldfinch 2015) Assim comportamento de limpeza e acumulaccedilatildeo por exemplo teriam trazido algumas vantagens de sobrevivecircncia e portanto foram selecionados No TOC poreacutem satildeo observadas manifestaccedilotildees disfuncionais dos mesmos
Eacute muito conhecida a frase segundo a qual ldquonada na Biologia faz sentido exceto agrave luz da evoluccedilatildeordquo (Dobzhansky 1973) A perspectiva evolucionista aleacutem de como veremos originar teorias e concepccedilotildees sobre os transtornos cumpre um importante papel de princiacutepio integrador Ou seja mesmo teorias que natildeo se originam diretamente dessa perspectiva se tornam mais soacutelidas se sobrevivem ao crivo do olhar evolucionista
Os defensores de um olhar evolucionista apresentam um leque de possiacuteveis explicaccedilotildees para os transtornos (Glass 2012) Um transtorno pode por exemplo representar uma combinaccedilatildeo desastrosa de caracteriacutesticas que individualmente satildeo cada uma adaptativa ou pode constituir um extremo populacional de uma caracteriacutestica que na maior parte da populaccedilatildeo eacute vantajosa ou ainda o que aparece como transtorno em ambiente urbano no seacuteculo XXI eacute constituiacutedo por respostas que seriam adaptativas em ambiente ancestral Isso satildeo apenas exemplos de explicaccedilotildees evolucionistas possiacuteveis
As pressotildees seletivas podem assumir diferentes formas Os seres vivos encaram diversos desafios que podem acarretar danos para sua vida e de seus coespeciacuteficos Predadores contaminaccedilotildees quedas hierarquia social e outras situaccedilotildees podem diminuir a chance de sucesso reprodutivo Alguns desses riscos podem ser ao mesmo tempo extremamente danosos e improvaacuteveis de forma que podem nem mesmo ocorrer no periacuteodo de vida da maioria dos indiviacuteduos Por outro lado a capacidade de antecipar e evitar riscos mesmo que pouco provaacuteveis tem oacutebvia vantagem evolutiva Considerando que o
242 | Temas em Neurociecircncias
TOC eacute uma patologia que envolve obsessotildees e compulsotildees muitas vezes relacionadas agrave seguranccedila do indiviacuteduo e de pessoas proacuteximas a ele pode ser produtivo examinaacute-lo enquanto funcionamento anormal de um sistema psicoloacutegico selecionado para evitar riscos futuros em potencial Tal mecanismo estaria presente nas pessoas em geral
O fenocircmeno cliacutenico das obsessotildees apresenta grande semelhanccedila com algo experimentado por grande parte da populaccedilatildeo os pensamentos intrusivos No estudo de Rachman amp De Silva (1978) aproximadamente 80 da amostra de indiviacuteduos natildeo-psiquiaacutetricos reportaram em um questionaacuterio ter experimentado pensamentos intrusivos O achado foi replicado (Salkovskis amp Harrison 1984) e teve importante impacto na aacuterea (Rassin amp Muris 2007)
Na esteira dos achados de Rachman e De Silva (1978) Muris (1997) estudou se tambeacutem alguns comportamentos ritualiacutesticos semelhantes agraves compulsotildees de pacientes com TOC estariam presentes em indiviacuteduos natildeo-psiquiaacutetricos O autor encontrou que 547 dos entrevistados relataram ter comportamentos ritualiacutesticos como checagem limpeza repetida ou ainda comportamentos de proteccedilatildeo ldquomaacutegicardquo (tocar um objeto de sorte dizer algum nuacutemero em particular ou contar nuacutemeros) Adicionalmente Freeston Ladouceur Thibodeau e Gagnon (1991) relataram que 92 dos estudantes universitaacuterios entrevistados em seu estudo disseram ter desenvolvido alguma atividade sistemaacutetica em resposta a pensamentos intrusivos experimentados Comportamentos ritualiacutesticos como os descritos nesses estudos apresentam semelhanccedilas com as compulsotildees apresentadas por indiviacuteduos com TOC
Conjuntamente essas observaccedilotildees apontam para um continuum entre a populaccedilatildeo cliacutenica e indiviacuteduos sem qualquer transtorno psiquiaacutetrico no que se refere agraves obsessotildees e compulsotildees Aleacutem disso tais observaccedilotildees se alinham agrave noccedilatildeo de que essas caracteriacutesticas foram favorecidas ao longo da evoluccedilatildeo humana
Um curioso aspecto do TOC que merece apreciaccedilatildeo a partir da perspectiva evolucionista satildeo as diferenccedilas de gecircnero Nesse sentido diferenccedilas entre homens e mulheres quanto ao conteuacutedo e forma de obsessotildees e compulsotildees podem estar relacionados com diferenccedilas quanto ao que cada sexo teria enquanto desafios para a promoccedilatildeo de aptidatildeo inclusiva (ou seja a promoccedilatildeo da
Transtorno Obsessivo-Compulsivo Integraccedilatildeo entre Perspectiva Evolucionista | 243
multiplicaccedilatildeo e sobrevivecircncia de coacutepias de seus genes) Dessa forma desafios relacionados agrave formaccedilatildeo de casal e ao cuidado da cria poderiam explicar pelo menos parte das diferenccedilas sexuais A perspectiva evolucionista pode ser aplicada ainda a variaccedilotildees em um dos gecircneros por exemplo ao abordar alteraccedilotildees na intensidade das obsessotildees de contaminaccedilatildeo ao longo do ciclo menstrual de uma mulher Assim a perspectiva evolucionista eacute capaz de gerar hipoacuteteses sobre diferenccedilas de gecircnero que talvez jamais se originariam a partir apenas de investigaccedilatildeo de mecanismos proximais (Saad 2006)
O TOC eacute bastante heterogecircneo de forma que haacute diversas manifestaccedilotildees de obsessotildees e compulsotildees Assim curiosamente duas pessoas diagnosticadas com TOC podem apresentar sintomas que natildeo coincidem Em um estudo epidemioloacutegico dos sintomas obsessivo-compulsivos realizado na National Comorbidity Survey Replication foram entrevistados face a face 9282 indiviacuteduos com idade de 18 anos ou mais sendo que 22 responderam jaacute terem apresentado algum sintoma obsessivo-compulsivo em algum momento da vida e reportaram a seguinte incidecircncia checagem (793) acumulaccedilatildeo (623) ordenaccedilatildeo (57) questotildees morais (43) questotildees sexuaisreligiosas (302) contaminaccedilatildeo (257) preocupaccedilotildees com doenccedilas (143) e outros (19) com 81 dos participantes apresentando sintomas de muacuteltiplos tipos (Ruscio et al 2010)
Os Sintomas de TOC se Agrupam em Torno de Determinados temas
A Yale-Brown Obsessive Compulsive Disorder Symptom Checklist (Y-BOCS) eacute uma lista que abrange 50 tipos de obsessotildees e compulsotildees que representam a maior parte dos sintomas obsessivos-compulsivos observados clinicamente (Goodman et al 1989) Apoacutes seu desenvolvimento houve algumas tentativas de classificar empiricamente os sintomas listados A primeira tentativa ocorreu com Baer (1994) que por meio de anaacutelise fatorial identificou trecircs fatores simetriaacumulaccedilatildeo contaminaccedilatildeochecagem e obsessotildees puras A categoria de obsessotildees puras incluiu obsessotildees relacionadas agrave
244 | Temas em Neurociecircncias
religiatildeo sexualidade eou agressividade em contextos onde suas compulsotildees natildeo fossem prontamente identificaacuteveis
Leckman amp cols (1997) fizeram outra anaacutelise das categorias listadas na Y-BOCS e descrevem um modelo de quatro fatores que envolvem agrupamentos de sintomas obsessivo-compulsivos Esses fatores constituem o que eacute conhecido como as dimensotildees de sintomas do TOC O primeiro agrupamento de sintomas indica associaccedilatildeo entre obsessotildees relacionadas a comportamentos agressivos dirigidos a si e aos outros bem como obsessotildees sexuais e morais ou religiosas Essas obsessotildees satildeo acompanhadas por compulsotildees de checagem O segundo grupo inclui obsessotildees relacionadas agrave simetria exatidatildeo repeticcedilatildeo e compulsotildees de contagem e de ordem O terceiro grupo envolve obsessotildees de contaminaccedilatildeo e compulsotildees de lavagem ou de limpeza O quarto grupo eacute composto pelas obsessotildees e compulsotildees de acumulaccedilatildeo
Se satildeo produto da seleccedilatildeo natural seraacute que esses temas das dimensotildees de sintomas correspondem a possiacuteveis ameaccedilas que poderiam ser prevenidas antecipadamente Glass (2012) faz algumas intrigantes especulaccedilotildees a respeito Em alguns casos eacute mais faacutecil aplicar esse raciociacutenio Por exemplo eacute plausiacutevel conceber que pressotildees seletivas relacionadas agrave contaminaccedilatildeo possam ter favorecido traccedilos que levam a compulsotildees de limpeza Da mesma forma a sazonalidade de determinados recursos ou seja o fato de que em determinadas eacutepocas se tornavam escassos pode ter representado uma pressatildeo para um traccedilo que no extremo leva a compulsotildees de acumulaccedilatildeo Talvez o raciociacutenio de que dimensotildees de sintomas refletem o efeito de uma pressatildeo seletiva deva ir um pouco aleacutem Nesse sentido obsessotildees relacionadas com pensamentos lsquoproibidosrsquo de conteuacutedo moral sexual ou religioso e compulsotildees de checagem que muitas vezes as acompanham talvez reflitam o funcionamento de um mecanismo que resultou de pressotildees por um ceacuterebro que escrutina relaccedilotildees causais e que antecipa possiacuteveis ameaccedilas De forma aproximadamente similar obsessotildees e compulsotildees de repeticcedilatildeo contagem ordem e simetria podem refletir pressotildees seletivas que favoreceram ceacuterebros que buscavam padrotildees regularidades etc
Transtorno Obsessivo-Compulsivo Integraccedilatildeo entre Perspectiva Evolucionista | 245
Aspectos Neurobioloacutegicos do TOC
Se eacute verdade que no TOC ocorre hiper ou mau funcionamento de alguns mecanismos que em sua essecircncia satildeo adaptativos informaccedilotildees provenientes da neurobiologia e da neuropsicologia satildeo pertinentes para a compreensatildeo desses mecanismos em seu funcionamento normal e patoloacutegico Com efeito diversos circuitos e estruturas estatildeo envolvidos no TOC
Uma infinidade de estudos implicam o coacutertex orbitofrontal no TOC Essa aacuterea estaacute associada agrave funccedilatildeo de planejamento e raciociacutenio aleacutem de comportamentos socialmente aceitaacuteveis de forma que sua hipoatividade estaacute relacionada a condutas inapropriadas falhas no planejamento rigidez e inflexibilidade do aprendizado A hiperatividade do coacutertex orbitofrontal por sua vez teria a capacidade de propiciar sintomas como preocupaccedilatildeo social excessiva meticulosidade evitaccedilatildeo e haacutebitos escrupulosos caracteriacutesticas muitas vezes associadas ao TOC (Bruno Basabilbaso amp Cursack 2013) Aleacutem disso a hiperatividade dessa regiatildeo foi vinculada a alguns sintomas caracteriacutesticos do TOC como a apariccedilatildeo de sequecircncias repetitivas observaacuteveis nos rituais compulsivos a rigidez cognitiva o aumento da preocupaccedilatildeo e os sentimentos de culpa que acompanham as obsessotildees (Bruno et al 2013)
O circuito orbitofrontal-estriatal-talacircmico-orbitofrontal eacute relacionado a funccedilotildees executivas as quais satildeo responsaacuteveis por modular processos mentais de alto niacutevel sendo eles sensoriais motores cognitivos mnemocircnicos e afetivos Por meio das funccedilotildees executivas eacute possiacutevel o indiviacuteduo executar tarefas de planejamento monitorar o proacuteprio comportamento e alterar respostas frente a mudanccedilas ambientais A tomada de decisotildees vantajosas exige que essas funccedilotildees trabalhem adequadamente em articulaccedilatildeo com a memoacuteria e a atenccedilatildeo (Cavedini Gorini amp Bellodi 2006)
Os nuacutecleos da base cumprem papel chave nos sintomas de TOC pois participam de um repertoacuterio de padrotildees fixos relacionando-se com funccedilotildees especificamente adaptativas Aleacutem disso organizam-se em um sistema que integra aferecircncias sensoriais (Bruno et al 2013)
A amiacutegdala atua na expressatildeo de respostas de medo de forma que a hiperativaccedilatildeo da amiacutegdala pode causar manifestaccedilotildees
246 | Temas em Neurociecircncias
excessivas dessa emoccedilatildeo mantendo relaccedilatildeo com os transtornos de ansiedade e com o TOC Entretanto enquanto em transtornos de ansiedade os pacientes apresentam conectividade reduzida entre amiacutegdala e coacutertex preacute-frontal pacientes com TOC possuem esta conectividade aumentada O hipocampo por sua vez participa da modulaccedilatildeo das respostas da amiacutegdala proporcionando informaccedilotildees contextuais acerca da situaccedilatildeo de medo (Diniz et al 2012)
Investigaccedilotildees neuropsicoloacutegicas indicam que pacientes com TOC podem apresentar deacuteficits cognitivos em funccedilotildees executivas especialmente quanto ao controle inibitoacuterio e agrave flexibilidade cognitiva (Diniz et al 2012) Em um teste cujo objetivo era avaliar as estrateacutegias utilizadas na tomada de decisatildeo pessoas com TOC tiveram tendecircncia por tomar decisotildees desvantajosas encorajados por possiacuteveis ganhos imediatos enquanto o grupo controle foi haacutebil em selecionar decisotildees vantajosas e evitar as desvantajosas (Cavedini et al 2006) Em comparaccedilatildeo com pacientes portadores de transtorno do pacircnico os pacientes com TOC tambeacutem apresentaram deacuteficits significativos quanto agraves funccedilotildees executivas aleacutem de deacuteficits quanto a habilidades motoras (Diniz et al 2012) Outros estudos apontam que a ativaccedilatildeo dos nuacutecleos da base estaria comprometida devido a alteraccedilotildees no fluxo sanguiacuteneo cerebral de pacientes com TOC Aleacutem disso foi reportado um decreacutescimo na resposta fronto-estriatal de pacientes com TOC durante atividades de planejamento (Cavedini et al 2006)
Como se pode ver a partir desses exemplos de aacutereas cerebrais e funccedilotildees que podem estar alteradas no TOC esse eacute um transtorno complexo resultante de diferentes tipos de disfunccedilotildees A fim de buscar explicar os principais elementos do mau funcionamento observado no TOC modelos explicativos satildeo desenvolvidos A seguir trataremos de um modelo que tem ganhado destaque
Modelos Explicativos do TOC o Sistema Motivacional de Seguranccedila
Vimos que o TOC pode ser expressatildeo de algo moldado pela seleccedilatildeo que crianccedilas e a populaccedilatildeo em geral apresentam por vezes comportamentos semelhantes a sintomas de TOC que esses sintomas podem ser vistos a partir de quatro agrupamentos principais
Transtorno Obsessivo-Compulsivo Integraccedilatildeo entre Perspectiva Evolucionista | 247
(as dimensotildees de sintomas) e vimos que determinadas estruturas encefaacutelicas estatildeo diretamente relacionadas com o transtorno Agora nos direcionaremos para o sistema que teria um mau funcionamento no TOC
Se os sintomas do transtorno estatildeo relacionados com prevenccedilatildeo de alguma adversidade haacute de haver um sistema responsaacutevel pela identificaccedilatildeo desse tipo de cenaacuterio Ao executar essa tarefa o sistema poderia cometer o erro de deixar de identificar uma ameaccedila que de fato iraacute se concretizar ou o erro de identificar como perigoso algo que na verdade eacute inofensivo Dado que o prejuiacutezo no primeiro tipo de erro eacute bem maior que o desperdiacutecio de energia no segundo tipo eacute razoaacutevel que a seleccedilatildeo tenha favorecido um sistema inclinado a apresentar alarmes falsos
Existem diferentes sistemas relacionados agrave defesa e autopreservaccedilatildeo Um cuidado importante ao se descrever a relevacircncia de aspectos emocionais relacionados ao TOC eacute o de diferenciaacute-lo dos transtornos de ansiedade e do proacuteprio medo Por mais que os sintomas se entrelacem o TOC pode ser apresentado como um subproduto do medo tal como a ansiedade Pois sob o ponto de vista das teorias das emoccedilotildees o medo pode ser considerado uma emoccedilatildeo simples e discreta mesmo que seja fundamental e pode aparecer em qualquer sujeito a qualquer fase da vida Jaacute a ansiedade se trata de uma mistura de emoccedilotildees na qual o medo se torna algo predominante (Baptista Carvalho amp Lory 2005 Plutchik 2003)
A hipoacutetese de que a evoluccedilatildeo selecionou um sistema psicoloacutegico dedicado a detecccedilatildeo e prevenccedilatildeo de riscos natildeo eacute nova Abed Pauw e Karel (1999) chamaram de Sistema Involuntaacuterio Gerador de Cenaacuterios de Risco o mecanismo que produziria aprendizagem de esquiva de situaccedilotildees potencialmente danosas ou fatais a partir de cenaacuterios imaginados gerados involuntariamente Esse sistema permitiria que uma pessoa aprendesse a evitar situaccedilotildees de risco potencial sem nunca estar efetivamente na presenccedila de tal perigo De acordo com os autores a excessiva ativaccedilatildeo desse sistema seria o responsaacutevel pelas obsessotildees e compulsotildees no TOC
De forma semelhante Szechtman e Woody (2004) propuseram o sistema motivacional de seguranccedila (SMS) o qual seria dedicado agrave detecccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de perigos potenciais aleacutem da geraccedilatildeo de
248 | Temas em Neurociecircncias
respostas a esses De acordo com essa proposta o sistema possui trecircs moacutedulos o de avaliaccedilatildeo de riscos potenciais o de motivaccedilatildeo de seguranccedila e o de programaccedilatildeo relacionada a seguranccedila atividade dos quais pode culminar na execuccedilatildeo de respostas viscerais e motoras (Figura 1) Assim inicialmente pistas ambientais mesmo que extremamente sutis satildeo detectadas e avaliadas Se detectadas ameaccedilas para si ou para outros o moacutedulo de motivaccedilatildeo de seguranccedila eacute ativado Ele eacute prontamente ativado e muito lentamente desativado produzindo um sustentado estado emocional de ansiedade e alerta Esse estado emocional estimula a alccedila de avaliaccedilatildeo de riscos potenciais a continuar buscando pistas ambientais que sinalizam perigo Por fim o subsistema de motivaccedilatildeo de seguranccedila ativa o de programaccedilatildeo relacionada a seguranccedila que conteacutem a programaccedilatildeo espeacutecie-especiacutefica para proteccedilatildeo do indiviacuteduo e de outros Respostas de precauccedilatildeo adequadas aos perigos potenciais satildeo apresentadas A desativaccedilatildeo do sistema ocorreria de duas formas por meio de sinais de seguranccedila produzidos pelas respostas de precauccedilatildeo ou por meio de algo equivalente a um senso de ldquoobjetivo cumpridordquo provocado pela proacutepria emissatildeo dessas respostas
Senso de ldquoobjetivo cumpridordquo
Avaliaccedilatildeo de riscos potenciais
Sinais doambiente
Motivaccedilatildeo de seguranccedila
Programaccedilatildeorelacionadaagrave seguranccedila
Respostasviscerais
e motoras
Figura 1 Visatildeo esquemaacutetica do sistema motivacional de seguranccedila Baseado em Szechtman e Woody (2004)
Para Szechtman e Woody (2004) problemas no SMS poderiam explicar tanto a sintomatologia do TOC quanto a de transtornos de ansiedade em especial a do de ansiedade generalizada Em relaccedilatildeo ao TOC os autores salientam que as compulsotildees seriam consequecircncia de uma inefetiva desativaccedilatildeo do sistema devido agrave ausecircncia do senso de ldquoobjetivo cumpridordquo acima mencionado
Transtorno Obsessivo-Compulsivo Integraccedilatildeo entre Perspectiva Evolucionista | 249
Sem a desativaccedilatildeo produzida por esse sinal comportamentos de prevenccedilatildeo de possiacuteveis riscos seriam continuamente apresentados Jaacute o transtorno de ansiedade generalizada ocorreria pela excessiva ativaccedilatildeo do primeiro moacutedulo o de avaliaccedilatildeo de riscos potenciais mas com efetiva desativaccedilatildeo por emissatildeo de comportamentos de proteccedilatildeo
O SMS portanto participaria da avaliaccedilatildeo e gerenciamento de risco potencial sendo uacutetil para a compreensatildeo dos sintomas do TOC os quais muitas vezes estatildeo relacionados com proteccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de risco como quando assumem a forma de pensamentos recorrentes e persistentes ou comportamentos repetitivos e rituais Com isso o TOC aparenta decorrer de disfunccedilatildeo nesse sistema Essa disfunccedilatildeo pode decorrer de problemas de iniciaccedilatildeo dos comportamentos relacionados agrave seguranccedila (haveria excitaccedilatildeo do sistema em intensidade patoloacutegica) ou de problemas de interrupccedilatildeo dos mesmos (por falha no processo normal de finalizaccedilatildeo) (Szechtman amp Woody 2004) O TOC seria assim produto da falha de um mecanismo de ldquosaciedaderdquo para comportamentos relacionados agrave prevenccedilatildeo de ameaccedilas
A esse sistema correspondem circuitos neurobioloacutegicos (Woody amp Szechtman 2011) que se baseiam em alccedilas envolvendo conexotildees coacutertico-estriado-paacutelido-taacutelamo-corticais em interaccedilatildeo com o tronco encefaacutelico Dessa forma existe a alccedila de avaliaccedilatildeo de riscos potenciais que processa diversos inputs sensoriais e emocionais e por isso deve receber inputs de regiotildees corticais e liacutembicas Comporiam essa alccedila o hipocampo a amiacutegdala e o nuacutecleo leito da estria terminal Passando para a segunda a alccedila de afeto e motivaccedilatildeo de seguranccedila a qual seria composta por um circuito nuacutecleos da base-taacutelamo-cortical Esse circuito envolveria uma parte liacutembica do estriado Essa alccedila teria a capacidade de prolongar e sustentar a ativaccedilatildeo uma propriedade fundamental da motivaccedilatildeo A reverberaccedilatildeo dessa alccedila ativaria a terceira alccedila A alccedila de programaccedilatildeo relacionada agrave seguranccedila implementaria seus programas por meio de outro circuito nuacutecleos da base-taacutelamo-cortical Esse circuito envolveria uma parte motora do estriado Por fim haacute a rede de outputs do tronco Nuacutecleos do tronco encefaacutelico servem de mediadores entre programas motores relacionados agrave seguranccedila e respostas comportamentais Aleacutem disso outputs do tronco atingem a parte liacutembica do estriado bem como as
250 | Temas em Neurociecircncias
regiotildees medial e orbital do coacutertex preacute-frontal Dessa forma o tronco teria um papel importante na produccedilatildeo de retroalimentaccedilatildeo negativa para a motivaccedilatildeo de seguranccedila o que eacute experimentado como o senso de objetivo cumprido
O funcionamento do SMS se desdobraria ainda em respostas fisioloacutegicas em termos de atividade endoacutecrina e autonocircmica Pelo fato do sistema ser ativado por ameaccedilas potenciais e estar voltado para a accedilatildeo satildeo necessaacuterios recursos energeacuteticos para o trabalho fiacutesico e que potencializem os mecanismos psicoloacutegicos de detecccedilatildeo de ameaccedilas (Woody amp Szechtman 2011)
Portanto de acordo com essa perspectiva o TOC seria uma disfunccedilatildeo do SMS a qual resultaria de uma accedilatildeo insuficiente da rede de outputs do tronco a qual eacute responsaacutevel por um mecanismo especiacutefico equivalente ao de saciedade poreacutem relacionado agrave seguranccedila O hipofuncionamento desse mecanismo faria com que natildeo ocorresse a inibiccedilatildeo normal das alccedilas de avaliaccedilatildeo de riscos potenciais e de motivaccedilatildeo de seguranccedila
Implicaccedilotildees para a Compreensatildeo do Transtorno
Um conceito que pode contribuir para a reflexatildeo sobre o caraacuteter patoloacutegico do TOC eacute o de disfunccedilatildeo prejudicial (Wakefield 1992) Esse conceito estabelece dois criteacuterios para que uma alteraccedilatildeo possa verdadeiramente ser considerada um transtorno A alteraccedilatildeo deveria consistir de uma disfunccedilatildeo ou seja de um mau funcionamento de algum sistema e em acreacutescimo a isso a alteraccedilatildeo deveria tambeacutem causar algum tipo de prejuiacutezo para o indiviacuteduo ou para a sociedade Dessa forma por exemplo a tendecircncia que as pessoas tecircm por preferirem alimentos doces e gordurosos embora certamente seja prejudicial natildeo constituiria disfunccedilatildeo psicoloacutegica pois eacute uma manifestaccedilatildeo de comportamento adaptativo (ie funcional) em ambiente ancestral Assim essa tendecircncia natildeo deveria ser considerada um transtorno De forma reversa alguma alteraccedilatildeo que representasse uma alteraccedilatildeo no funcionamento (disfunccedilatildeo) mas que natildeo resultasse em prejuiacutezos tambeacutem natildeo deveria ser considerada um transtorno
Ainda que se possa conceber uma origem adaptativa para o TOC ao se aplicar a noccedilatildeo de disfunccedilatildeo prejudicial chega-se a
Transtorno Obsessivo-Compulsivo Integraccedilatildeo entre Perspectiva Evolucionista | 251
conclusatildeo de que o TOC constitui verdadeiramente um transtorno pois gera sofrimento (prejuiacutezo) e consiste de um exagero ou mau funcionamento de um mecanismo que originalmente pode ter sido beneacutefico Nesse sentido pode ser uacutetil o conceito de SMS (Szechtman amp Woody 2004) abordado anteriormente o qual acionaria comportamentos que garantiriam a prevenccedilatildeo de ameaccedilas Um sistema motivacional como esse aumentaria a aptidatildeo de seu portador por tratar antecipadamente de ameaccedilas que possam vir a se materializar Natildeo obstante seu valor de sobrevivecircncia um mecanismo como esse ao apresentar um mau funcionamento poderia constituir a base para a manifestaccedilatildeo de diversos sintomas de TOC
As dimensotildees de sintomas tambeacutem podem ter implicaccedilotildees para a compreensatildeo do TOC Conforme apresentado em outra parte desse texto os sintomas de TOC formam quatro agrupamentos principais Esses agrupamentos podem ter sido selecionados de forma paralela posto que se relacionam com problemas de sobrevivecircncia especiacuteficos Essas dimensotildees de sintomas levantam inclusive a possibilidade de que estejam sendo tratados de forma unitaacuteria fenocircmenos de categorias diferentes Algo que poderaacute ser determinado por estudos futuros eacute se cada uma das dimensotildees de sintomas constituiria um transtorno a parte com bases geneacuteticas e neurobioloacutegicas distintas
Atualmente o tratamento do TOC eacute feito por meio de terapias farmacoloacutegicas e psicoloacutegicas Dentre os tratamentos mais efetivos estatildeo a farmacoterapia com inibidores seletivos de recaptaccedilatildeo de serotonina (Soomro Altman Rajagopal amp Oakley Browne 2008) e terapias cognitivas e comportamentais (Gava et al 2007) Em alguns casos recorre-se ainda a faacutermacos antipsicoacuteticos e ateacute mesmo agrave neurocirurgia (Dougherty et al 2002 Stahl 2000) O fato de que eacute difiacutecil prever qual desses eacute o tratamento mais recomendaacutevel para determinada pessoa combinado agrave heterogeneidade que o transtorno apresenta a qual eacute ilustrada pelas diferentes dimensotildees de sintomas previamente abordadas eacute algo que fortalece a suspeita de que possa haver subtipos de TOC cada um talvez com resposta diferente para cada tratamento
Isso ilustra que as implicaccedilotildees da visatildeo evolucionaacuteria sobre o TOC podem atingir o niacutevel da prevenccedilatildeo e do tratamento Com efeito em um artigo que aborda a lsquoPsicologia cliacutenica evolucionaacuteriardquo Glass
252 | Temas em Neurociecircncias
(2012) faz uma seacuterie de apontamentos nesse terreno A seguir alguns deles satildeo brevemente apresentados
Em primeiro lugar a leitura evolucionista do transtorno aponta e dados empiacutericos suportam (Ruscio et al 2010) que caracteriacutesticas de TOC estatildeo presentes na populaccedilatildeo em geral em niacuteveis abaixo do lsquolimiarrsquo patoloacutegico Essa noccedilatildeo pode contribuir para que os profissionais de sauacutede sejam mais empaacuteticos com pessoas diagnosticadas com o transtorno
Havendo o entendimento de que os sintomas de TOC consistem de disfunccedilatildeo de mecanismos que em sua essecircncia satildeo adaptativos uma possiacutevel abordagem ao problema seria no lugar de se tentar erradicar os sintomas se buscar a sua reduccedilatildeo para niacuteveis aceitaacuteveis Programas de tratamento poderiam ser consideravelmente diferentes ao se adotar esse ponto de vista
No plano da prevenccedilatildeo na infacircncia o autor faz alguma recomendaccedilatildeo tambeacutem Essa se daacute com base na observaccedilatildeo de que as compulsotildees na infacircncia estatildeo muitas vezes relacionadas ao tema da seguranccedila como por exemplo com relaccedilatildeo agrave proximidade da figura de apego Assim a prevenccedilatildeo passaria por garantir por meio de diferentes estrateacutegias que a crianccedila natildeo se sentisse ameaccedilada de forma que sentimentos de seguranccedila pudessem se perpetuar tanto quanto possiacutevel
Consideraccedilotildees Finais
O TOC eacute um transtorno com componentes cognitivos e comportamentais que se por um lado pode envolver consideraacutevel grau de sofrimento e comprometer o funcionamento individual por outro lado aparenta ter elementos presentes de forma branda na populaccedilatildeo natildeo-cliacutenica Os sintomas de TOC se agrupam em torno de determinados temas os quais podem ter relaccedilatildeo com prevenccedilatildeo de ameaccedilas potenciais Essas observaccedilotildees combinadas agrave participaccedilatildeo do fator geneacutetico no TOC fazem da perspectiva evolucionista um prisma importante para a compreensatildeo desse transtorno Com efeito essa perspectiva tem contribuiacutedo para a formulaccedilatildeo de hipoacuteteses e o desenvolvimento da pesquisa desde os aspectos de caracterizaccedilatildeo do transtorno ateacute agrave sua prevenccedilatildeo e tratamento
Transtorno Obsessivo-Compulsivo Integraccedilatildeo entre Perspectiva Evolucionista | 253
Referecircncias
Abed R T Pauw D amp Karel W (1999) An evolutionary hypothesis for obsessive-compulsive disorder a psychological immune system Behavioural Neurology 11(4) 245-250 httpsdoiorg1011551999657382
American Psychiatric Association (2013) Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed) Arlington VA American Psychiatric Publishing
Baer L (1994) Factor analysis of symptom subtypes of obsessive compulsive disorder and their relation to personality and tic disorders The Journal of Clinical Psychiatrylinical Psychiatry 55 Suppl 18-23 Retrieved from httpwwwncbinlmnihgovpubmed8077163
Baptista A Carvalho M amp Lory F (2005) O medo a ansiedade e as suas perturbaccedilotildees Psicologia 19(1-2) 267-277 Retrieved from httpwwwscielomecptscielophpscript=sci_arttextamppid=S0874-20492005000100013
Barlow D H amp Durand V M (2008) Psicopatologia - uma abordagem integrada Satildeo Paulo Cengage Learning
Bruno M E Basabilbaso J amp Cursack C (2013) Un Estado del Arte sobre Estudios Neurocientiacuteficos del Trastorno Obsesivo Compulsivo Cuadernos de Neuropsicologiacutea 7(1) 38-49 httpsdoiorg107714cnps71202
Cavedini P Gorini A amp Bellodi L (2006) Understanding obsessive-compulsive disorder Focus on decision making Neuropsychology Review 16(1) 3-15 httpsdoiorg101007s11065-006-9001-y
Diniz J B Miguel E C de Oliveira A R Reimer A E Brandatildeo M L de Mathis M A hellip Hoexter M Q (2012) Outlining new frontiers for the comprehension of obsessive-compulsive disorder A review of its relationship with fear and anxiety Revista Brasileira de Psiquiatria 34(SUPP 1) S81-S103 httpsdoiorg101590S1516-44462012000500007
Dobzhansky T (1973) Nothing in Biology makes sense except in the light of evolution The American Biology Teacher 35(3) 125-129 httpsdoiorg1023074444260
Dougherty D D Baer L Cosgrove G R Cassem E H Price B H Nierenberg A A Rauch S L (2002) Prospective Long-Term Follow-Up of 44 Patients Who Received Cingulotomy for Treatment-Refractory Obsessive-Compulsive Disorder American Journal of Psychiatry 159(2) 269-275 httpsdoiorg101176appiajp1592269
Evans D W amp Leckman J F (2006) Origins of Obsessive-Compulsive Disorder Developmental and Evolutionary Perspectives In Developmental Psychopathology Second Edition (Vol 3 pp 404-435) httpsdoiorg1010029780470939406ch10
Freeston M H Ladouceur R Thibodeau N amp Gagnon F (1991) Cognitive intrusions in a non-clinical population I Response style subjective experience and appraisal Behaviour Research and Therapy 29(6) 585-597 httpsdoiorg1010160005-7967(91)90008-Q
254 | Temas em Neurociecircncias
Gava I Barbui C Aguglia E Carlino D Churchill R De Vanna M amp McGuire H (2007) Psychological treatments versus treatment as usual for obsessive compulsive disorder (OCD) In I Gava (Ed) Cochrane Database of Systematic Reviews (p CD005333) Chichester UK John Wiley amp Sons Ltd httpsdoiorg10100214651858CD005333pub2
Glass D J (2012) Evolutionary clinical psychology broadly construed perspectives on obsessive-compulsive disorder Journal of Social Evolutionary and Cultural Psychology 6(3) 292-308 httpsdoiorg101037h0099250
Goldfinch A (2015) Rethinking Evolutionary Psychology New York Palgrave Macmillan
Goodman W K Price L H Rasmussen S A Mazure C Fleischmann R L Hill C L hellip Charney D S (1989) The Yale-Brown obsessive compulsive scale I Development use and reliability Archives of General Psychiatrygeneral Psychiatry 46(11) 1006-11 Retrieved from httpwwwncbinlmnihgovpubmed2684084
Kessler R C Berglund P Demler O Jin R Merikangas K R amp Walters E E (2005) Lifetime prevalence and age-of-onset distributions of DSM-IV disorders in the National Comorbidity Survey Replication Archives of General Psychiatry 62 593-602 Retrieved from httpwwwphuclaeduepifacultydetelsPH150Kessler_DSMIV_AGP2009pdf
Leckman J F Grice D E Boardman J Zhang H Vitale A Bondi C hellip Pauls D L (1997) Symptoms of obsessive-compulsive disorder American Journal of Psychiatry 154(7) 911-917 httpsdoiorg101176ajp1547911
Muris P (1997) Abnormal and normal compulsions 35(3) 249-252
Plutchik R (2003) Emotions and life Perspectives from psychology biology and evolution Washington DC American Psychological Association
Rachman S amp De Silva P (1978) Abnormal and normal obssesions Behaviour Research and Therapy 16(4) 233-248 httpsdoiorg101016jbrat200605005
Rassin E amp Muris P (2007) Abnormal and normal obsessions A reconsideration Behaviour Research and Therapy 45(5) 1065-1070 httpsdoiorg101016jbrat200605005
Ruscio A M Stein D J Chiu W T amp Kessler R C (2010) The epidemiology of obsessive-compulsive disorder in the National Comorbidity Survey Replication Molecular Psychiatry 15(1) 53-63 httpsdoiorg101038mp200894
Saad G (2006) Sex differences in OCD symptomatology An evolutionary perspective Medical Hypotheses 67(6) 1455-1459 httpsdoiorg101016jmehy200605017
Salkovskis P M amp Harrison J (1984) Abnormal and normal obsessions - A replication Behaviour Research and Therapy 22(5) 549-552 httpsdoiorg1010160005-7967(84)90057-3
Transtorno Obsessivo-Compulsivo Integraccedilatildeo entre Perspectiva Evolucionista | 255
Soomro G M Altman D G Rajagopal S amp Oakley Browne M (2008) Selective serotonin re-uptake inhibitors (SSRIs) versus placebo for obsessive compulsive disorder (OCD) Cochrane Database of Systematic Reviews 23 httpsdoiorg10100214651858CD001765pub3
Stahl S M (2000) Essential psychopharmacology neuroscientific basis and practical applications Cambridge Cambridge University Press
Stein D J (2000) Neurobiology of the obsessive-compulsive spectrum disorders Biological Psychiatry 47 296-304
Szechtman H amp Woody E (2004) Obsessive-compulsive disorder as a disturbance of security motivation constraints on comorbidity Psychological Review 111(1) 111-127 httpsdoiorghttpdxdoiorg1010370033-295X1111111
Wakefield J C (1992) Disorder as harmful dysfunction a conceptual critique of DSM-III-Rrsquos definition of mental disorder Psychological Review 99(2) 232-247 httpsdoiorg1010370033-295X992232
Woody E Z amp Szechtman H (2011) Adaptation to potential threat The evolution neurobiology and psychopathology of the security motivation system Neuroscience and Biobehavioral Reviews 35(4) 1019-1033 httpsdoiorg101016jneubiorev201008003