tecnologia lÍtica no planalto brasileiro: persistÊnciaou

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Revista de Arqueologia, v.22, n.2, (ago-dez.2009): 35- 53, 2009 35 Artigo TEC NOLO GIA LÍT ICA NO PLA NAL TO BRAS ILEI RO: PERSISTÊNCIA OU MUDANÇA * Águeda Vilhena Vialou ** Resumo É conhecido que os grandes sítiosa céu aberto de povos ceramistas possuem, em geral, uma indústria lítica direcionada às atividades horticultoras. Como reagem as ocupações em sítios com culturas e tradi- ções anteriores a essa nova tecnologia? As pesquisas desenvolvidas em sítios ar- queológicos das áreas da bacia do Paranapanema, São Paulo, e nas forma- ções rochosas da Cidade de Pedra, Mato Grosso, permitem elaborar um quadro de situações referentes a sítios a céu aberto e sítios em abrigo, com sequência de ocu- pações identificadas em estratigrafia ou apenas superficiais. Essas categorias, as- sociadas à posição geográfica dos hábitats, podem interferir no modo de pro- dução lítica, transformado ou não pela pre- sença mais recente de ocupações ceramistas. Nos casos estudados, a per- sistência do lascamento ocorre nitidamen- te em sítios com cerâmica, tanto em abri- * Trabalho apresentado no simpósio Biograhies of landscape and beings, coordenado por Dario Hermo e Laura Miotti, 4 Encontro de Teoria Arqueológica da América do Sul (TAAS), Catamarca (Argentina), julho de 2007. ** Professora Dra do Muséum National d’Histoire Naturelle - 1, Rue René Panhard - 75013 Paris – França. [email protected] .

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Page 1: TECNOLOGIA LÍTICA NO PLANALTO BRASILEIRO: PERSISTÊNCIAOU

Revista de Arqueologia, v.22, n.2, (ago-dez.2009): 35- 53, 2009 35

Artigo

TECNOLO GIA LÍT ICA NO PLA NALTO BRAS ILEI RO:PERSISTÊNCIA OU MUDANÇA*

Águeda Vilhena Vialou** ResumoÉ conhecido que os grandessítiosa céu

aberto de povos ceramistas possuem, emgeral, uma indústria lítica direcionada àsatividades horticultoras. Como reagem asocupações em sítios com culturas e tradi-ções anteriores a essa nova tecnologia?As pesquisas desenvolvidas em sítios ar-queo lógicos das áreas da bacia doParanapanema, São Paulo, e nas forma-ções rochosas da Cidade de Pedra, MatoGrosso, permitem elaborar um quadro desituações referentes a sítios a céu abertoe sítios em abrigo, com sequência de ocu-pações identificadas em estratigrafia ouapenas superficiais. Essas categorias, as-sociadas à posi ção geog rá fi ca doshábitats, podem interferir no modo de pro-dução lítica, transformado ou não pela pre-sença ma is re cent e de ocupaçõesceramistas. Nos casos estudados, a per-sistência do lascamento ocorre nitidamen-te em sítios com cerâmica, tanto em abri-

* Trabalho apresentado no simpósio Biograhies of landscape and beings, coordenado por Dario Hermo eLaura Miotti, 4 Encontro de Teoria Arqueológica da América do Sul (TAAS), Catamarca (Argentina), julhode 2007.** Professora Dra do Muséum National d’Histoire Naturelle - 1, Rue René Panhard - 75013 Paris –França. [email protected].

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VIALOU, A.V.

gos, como a céu aberto quando eles fo-ram ocupados anteriormente à chegadados povos ceramistas. Paisagem, econo-mia e organização social participam nacaracterização da tecnologia lítica.Palavras chave: Tecnologia lítica, cerâmi-ca, sítios a céu aberto e abrigos.

AbstractOpen air sites of ceramic-producing

people usually hold lithic industry directedtowards horticulture. How do occupationsfrom antecedent cultures and traditionsevolve to this newer technology?Researchdeveloped in the archaeological sites of theParanapanema basin, São Paulo, and ofthe rocky formation of Cidade de Pedra,Mato Grosso , allows the des ign of abenchmark for open air sites and rock-shelters sites, with superficial or stratifiedsequential occupation. The lithic industryof these two distinctgroupsassociated withspecific geographical habi tat could beaffected by the fol lowing presence ofceramic occupation. In the cases studied,lithic industry clear ly persists after thearrival of ceramic-producing people in bothrockshelters and open air sites when theywere occupied before the coming of theceramists. Environment, economy and so-cial organizationare all key elements in thecharacterization of the lithic industry.Keywords: Lithic technology, pottery,rockshelters and open air sites,

Este trabalho tem como objetivo anali-sar e compreender as causas das mudan-ças ou da persistência das indústrias líticasnos últimos 4000 anos em sítios arqueo-lógicos do Vale do Paranapanema, SãoPaulo, e em sítios rupestres da região daCidade de Pedra, Mato Grosso. Algunsfatores como a estratigrafia dos sítios, osaldeiamentos e a diversidade da cerâmi-ca vão ser comparados em sítios ampla-

mente pesquisados e em áreas bem deli-mitadas. A presença da cerâmica quandoassociada às aldeias é o fato central, ca-talizador, para avaliar o processo de mu-dança. Vamos tentar mostrar como a pai-sagem, as migrações das populaçõese asorganizações sócio-econômicas são, paraos casos aqui estudados , os fatoresdeterminantes desse processo e como aindústria lítica acompanha esse movimen-to.

I. Holoceno: As IndústriasLíticas e a Sedentarização

O evento da sedentarização traz a cri-ação de núcleos habitacionais, de aldeiasformadas pela densidade demográficanuma mesma área. Essa concentração deindivíduos, famílias e clãs em um territóriolimitado provoca uma organização da so-ciedade com normas sociais e a organiza-ção de uma economia de subsistência ba-seada na produção, com a domesticaçãode plantas e a domesticação de certosanimais,e no controleda distribuição, atra-vés da regulação do abastecimento e doarmazenamento. A fixação dessas comu-nidades ou famílias às terras modificoutambém a confecção de utensílios, com aintrodução da cerâmica para alguns, comuma indústria lítica apropriada à lavoura eà caça para outros.

O processo de neolitização se faz pro-gressivamente durante milênios e diferen-temente conforme a região: é a domina-ção do meio e ao mesmo tempo a domi-nação dos outros homens. É a passagemda predaçãoà produção(JoussaumeapudVialou, 2004:981). No Brasil e na Améri-ca, em geral, esse processo não foi tãonítido e regular e as grandes transforma-ções foram bem tardias.

O Holoceno em território brasileiro seinicia por volta de 11000-10000 anos AP eestá marcado por várias fases de umida-

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de alternadas por fases de aridez. Confor-me a região e micro-áreas, uma importan-te fase de muita umidade, ao redor de6000-5000 anos AP é bem presente nosmeados do Holoceno. Com o aparecimen-to de grupos ceramistasentre 2500 e 1500anos AP, de acordo com a região, desig-nou-se culturalmenteesse períododa Pré-históriacomo HolocenoRecente.O adven-to da cerâmica coincide com o marco dasmudanças econômico-sócio-cultura is,através de provável sedentarização ousemi-nomadismo, com as instalações dealdeias, de suas áreas de plantio (milho,mandioca, tabaco), aproveitamento da flo-ra existente (palmeiras,plantas silvestres),da pesca em função dos rios próximos eda caça (cervos, macacos, queixadas,pacas...) num raio de caminhada de algu-mas jornadas, a partir do centro habita-cional.

Os utensílios se diversificam basica-mente de todo instrumental conhecido datransição do Pleistoceno-Holoceno, nor-malmente com as pontas de projétil emsítios andinos, e em sítios da Patagônia,do pampa argentino, uruguaio e parte daregião sul do Brasil. Utensílios unifaciaisvêm marcar o Holoceno Antigo, entre11000e 8000 anos atrás, com peças volu-mosas e espessas plano convexas, total-mente façonadase retocadas. Distinguem-se também claramente as indústrias doperíodo cerâmico identificadas pelas lâmi-nas de machado polidas ou lascadas,mãos de pilão, polidores, almofarizes…São em geral peças pesadas e grandes,feitas em rochas locais básicas e resisten-tes, como basalto, diabásio, riolito, grani-to, arenito. Nota-se que há uma diversida-de na escolha das rochas apesar de umapadronização de utensílios a partir do po-limento.

Convém lembrar que a introdução denovos artefatos não exclui o fabrico e autilização de outros bem estabelecidos

como ocorreu no Neolítico do Velho Mun-do com o grattoir, o racloir, os furadores,utensílios do Paleolítico Superior e quecontinuaram existindo apesar das novastecnologias líticasligadasà agriculturapro-duzindo instrumentos adaptados à lavou-ra, como mós e machadinhas, e à caça,com a profusão das pontas de projétil. Poroutro lado, é preciso notar as diferenças,seja na sua representatividade quantitati-va, seja no método de lascamento, porexemplo, indústrias de lascas, de lâminas,de lascas grandes, de lascas laminares nacontinuidade de certos artefatos em opo-sição à introdução de novos artefatos in-dicadores esses das mudanças econômi-cas e sociais. Constata-se que o materiallítico ligado às atividades de lavoura, estápresente regularmente nos sítios a céuaberto com evidências de aldeiamentos,compostos de várias cabanas e áreas desepultamento. Até os dias de hoje, as es-cavações arqueológicas realizadas nosCerrados infelizmente não puderam detec-tar as áreas de atividades agrícola ou dehorticultura, ou as escavações não foramrealizadas com o objetivo de identificar asáreasexteriores aos núcleoshabitacionais.

Essas reflexões referem-se ao modelode uma boa parte dos sítios arqueológi-cos estudados e que vai justificar a mu-dança de economia dos grupos de caça-dores coletores aos grupos de horticulto-res, o que implica em uma tecnologia liticacom diminuiçãode utensílios feitos em las-cas, para o aumento de produção de pe-ças polidas. É preciso verificar os casosonde esse modelo não funciona e quaisseriamos parâmetros, como as migrações,a paisagem, o tipo de economia, que vãointerferir nas confecções dos utensílios,oranas mudanças, ora nas persistências.

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II. Paranapanema e Cidade dePedra: Ocupações Pré-históricas do Planalto

O Planalto, platô brasileiro, delimitadopelas cuestas, tem uma altitude regularentre 600 e 1100 metros, e está caracteri-zado pela vegetação de Cerrados, varian-do do Cerradão ao Cerrado ralo. Com-preeende um vasto território que corres-ponde à parte central do país e, conse-quentemente, da América do Sul. Seus li-mites são a Amazônia para o norte, ochaco, os altiplanos andinos e o pantanalpara o oeste, os pampas e as serras parao sul e em todo o setor leste, as serras e aorla marítima com o Atlântico. Apesar demuito extensa,é uma região que têve suaspesquisas arqueológicas concentradasnas áreas mais orientais e meridionais.Somente a partir dos anos 80 é que a Ar-queologia começou a ser desenvolvidaregularmente nos Estadosde Goiáse MatoGrosso.

Os sítios analisados neste artigo seclassificam dentro de quatro categorias:

·Sítios a céu aberto com várias ocupa-ções em estratifgrafia

·Sítios a céu aberto de superfície·Sítios em abrigos com várias ocupa-

ções em estratigrafia·Sítios em abrigos de superfície

Duas áreas de escavações sistemáti-cas, uma no Estado de São Paulo e outrano Estado de Mato Grosso, foram escolhi-das para exemplificar esse fenômeno depersistência cultural coexistindo com asmudanças culturais próximas: 1) sítios ar-queológicos do Vale do Paranapanema,São Paulo, pesquisados por L. Pallestrini,J.L. Morais, A. Vilhena Vialou e D. Vialou;2) sítios arqueológicos da Cidade de Pe-

dra, Mato Grosso, pesquisados por A.Vilhena Vialou, D. Vialou, P. De Blasis, L.Figuti e V. Wesolowski.

2.1. Sitios do Vale doParanapanema e as AldeiasCeramistas

Graças aos dados de pesquisas desen-volvidas no Vale do Paranapanema pude-mos identif icar algumas característicascomuns que aqui agrupamos em três ca-sos (tabela 1).

Tabel a 1 - Da ta çõe s (A P) do Vale doParanapanema, São Paulo.

N ível/sítio Brito Camargo Almeida Jango Luis A lv es Fonseca

lito-cerâmico - - 470 *** - - -

lito-cerâmico - 1030 + 85 ** 930 *** - 1020 *** 1076 ***

lito-cerâmico - - - 1210 *** - -

lític o - - 1500 *

lític o - 2060 + 230 ** 2400 ***

lític o 3930 + 60* - 3600 *

lític o - 4650 + 170 ** -

lític o -

lític o 5080 + 60*

lític o 5920 + 70*

lític o 6550 + 80*

lític o 7020 + 70*

lític o 7950 + 90*

*d ataç õe s ra di oc ar bo no (G IF ); ** da taçõe sra di oc ar bo no (Môn ac o) ; ** * da taçõe stermoluminescência (IEA-USP).

Caso A - sítios a céu aberto com váriasocupações em estratigrafia, sem ocupa-ções superficia is e sem ocupações deceramistas. São povos caçadores coleto-res que frequentaram a região com ativi-dades de oficinas líticas em seus própriosacampamentos e suas ocupações foramrepetitivas durante milêniosàs margens de

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riachos, nas prox imidades dos aflora-mentos rochosos, para a exploração doarenito e do silex como matérias primas.Esses povos não ocuparam mais o localdesde 4000 anos AP, deixando-o bem an-tes da chegada de povos ceramistas.Exemplo: Brito (Sarutaiá).

O sítio Brito, situado à margem direitado ribeirão Jacutinga, numa pequena ele-vação de 3 a 5 metros do nível do rio atuale no fundo de um anfiteatro rodeado pormorros testemunhos areníticos, foi esca-vado por decapagens numa área contíguasobre 500 m2. É composto de ocupaçõesininterruptasdurante4 milênios, entre 8000e 4000 anos. O vestígiopredominante des-sas ocupações é o material lítico, num to-tal de 20000 peças. As ocupações, prova-velmente acampamentos,se caracterizampela produção de artefatos líticos com zo-nas nítidas de áreas de lascamentos. Amatéria prima rochosa em arenito silicifi-cado, a mais empregada pelos morado-res para os lascamentos, foi extraída dopróprio local do acampamento onde ela éabundante. O silex sob forma de nódulose de geôdos se encontrava nas proximi-dades, a menos de 2 km; foi trazido ao lo-cal de acampamento e depois lascado oufraturado no próprio sítio.

Não há pontas de projétil, nem peçasbifaciais com retoques por pressão. Du-rante o período de 6800 a 5000 anos APas peças com reentrâncias, os denti-culados, os bicos e os furadores são osutensílios mais frequentes. Existem tam-bém os utensílios plano convexos, tiporaspador duplo ou lesma, confeccionadostanto em arenito, como em silex. Trata-sesobretudo de toda a cadeiaoperatória (pro-ximidade da extração da matéria prima,blocos, núcleos, fragmentos de lasca-mento, estilhasde lascamento, lascas, las-cas térmicas, lascas de retoque, peçasretocadas – utensílios e peças desgas-tadas) que está presente no mesmo local,

em um mesmo espaço de ocupação, du-rante quase dois milênios (Vilhena Vialou,1983, 1982).

Caso B - sítios a céu aberto superfici-ais de ceramistas contendo em suaestratigrafia uma sequência de ocupaçõespr é-ce rami stas . São os nú cleo shabitacionais, caracterizados pela poucaquantidade de cerâmica e pela ausênciade vasos utilizados como urnas funerári-as. Foram introduzidos alguns tipos de ar-tefatos específicosda época ceramista (lâ-minas de machado polidas, pilões…), mascontinua sendo preservada, nas mesmasproporções que nos níveis que precedema ocupação cerâmica, a pro fusão dolascamento, confeccionando utensílios di-versificados pela falta de padronização, apartir de lascas com retoques simples.Exemplos: Camargo (Piraju) e Almeida(Tejupá).

O sítio Camargo, situado num terrenocolinar aberto às margens tanto do ribei-rão das Araras, com o do próprio rioParanapanema, foi escavado numa gran-de superfície, com decapagens e trinchei-ras sobre mais de 1600 m2, apresentando4 níveis de ocupações: três níveis líticosde 4650, 2060 e 1030 anos AP, e um nívellito-cerâmico posterior às demais ocupa-ções. A indústria lítica do sítio Camargo ébem elaborada e diversificada sobretudono nível mais antigo, de 4650 anos atrás,com utensílios bifaciais, duas pontas deprojétil, peças unifaciais tipo plano-conve-xas e raspadores tanto com retoqueslamelares, como em escama. A matériaprima mais utilizadaé o arenito silicificado,excelente rocha da formação Botucatu,mas também foram feitos artefatos emsilex. Camargo é um dos poucos sítiosdessa região do Paranapanema a apre-sentar uma bela indústria reservada aoperíodo mais antigo, com utensílios ela-borados de maneira cuidadosa. As indús-trias líticas dos demais níveis são simples,

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expeditivas, incluindo as do nível com ce-râmica (Pallestrini 1977; Morais, 1983,1988).

No sítio Almeida, situado às margensdo ribeirãoNeblina,as escavações de umagrande superfícieevidenciaram 4 níveisdeocupações, datados em 3600 (3° nívellítico), 2400 (2° nível lítico), 1500 (1° nívellítico) e 470 (nível lito-cerâmico) anos AP.O sítio apresenta para os níveis mais re-centes, tanto de 1500 como de 500 anosatrás, estruturas habitacionais, buracos deesteios, estruturas de combustão, sendoque no nívelmais recente e superficial comcerâmica foram evidenciadas manchaspretas de 9 fundos de cabanas. Cerca de7500 peças lí ti cas lasc adas fo ra mcoletadas e analisadas. A quantidade realdas peças não pode ser comparada de umnível para outro por causa dos diferentestamanhos das áreas pesquisadas - redu-zidas para as mais antigas e amplas paraas mais recentes. No entanto, compara-ções podem ser feitas quanto às propor-ções de peças retocadas que são equiva-lentes para cada nível,de mesmo que paraas peças utilizadas e não retocadas (1/3do total dos utensílios em cada nível),alémda presença em todos os níveis depercutores e de núcleos. Verificou-se umacontinuidade no modelo de lascamento(percutor duro, muito acidente siret e las-cas largas) da indústria sobre lasca e doutensílio, todos eles pouco elaborados,prevalecendo peças com reentrâncias,furadores, bicos. As peças excepcionaisdessa co leção, to das do níve l li to -cerâmico, referem-se a duas peças talha-das em plaquetas de arenito, além de lâ-minas de machado e de peças polidas (fi-gura 1) (Pallestr ini , 1975; Vilhena deMoraes, 1977; Vilhena Vialou, 1986).

Figura 1 – Peça unifacial do nivel lito-cerâmico. SítioAl meida , Pa ra na pane ma, SP. (Des en ho T.Blachessen)

Caso C - sítios superficiais a céu aber-to com ocupações de ceramistas e semocupações em estratigrafia. Trata-se denúcleos habitacionais com a identificaçãode fundos de cabanas. Esses sítios-aldei-as possuem grande quantidade de cerâ-mica e algumas urnas - às vezes funerári-as e enterradas exteriormente às cabanas-, possuem também uma grande maioriade instrumentos polidos e quase que au-sência de lascamento lítico. Exemplos:Fonseca (Itapeva), Jango Luis (Angatuba)e Alves (Piraju).

Sítio Fonseca – datado de 1076 anosAP por TL (IEA-USP), é um sítio colinar deocupação superficial composto de 8 man-chas pretas de fundos de cabana e de 6urnas funerárias, dispostas fora das caba-nas. As cerâmicas são variadas, pintadas(tipo Tupiguarani), corrugadas, unguladas

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e lisas. O material lítico é composto deseixos, como percutores e batedores e al-gumas lascas não retocadas de seixos (fi-gura 2) (Pallestrini, 1969).

Figura 2 – Seixos utilizados e quebrados de aldeiaceramista. Sítio Fonseca, Paranapanema, SP (De-senho H. Coelho).

Sítio Jango Luís – datado de 1210anos AP por TL (IEA-USP), é um sítiocolinar de ocupação superficial compostode 10 manchas pretas de fundos de caba-na e de 3 urnas funerárias, dispostas foradas cabanas. Possui uma grande varieda-de de decoraçãocerâmica:corrugada,pin-tada tipo Tupiguarani, serrungulada, pon-teada, lisa. O material lítico é constituídode aguçadores, plaquetas, cris tais dequartzo, percutores, lascas sem retoques,blocos e seixos com marcas de uso(Pallestrini, 1968/9)

Sítio Alves - datado de 1020 anos APpor TL (IEA-USP), é um sítio colinar com 7manchas pretas de fundo de cabana e 5urnas funerárias localizadas fora das ca-banas. Diferentemente dos outros sítios,

ocorrem apenas dois tipos de cerâmica, alisa ou simples, sem decoração, e a cerâ-mica pintada, tipo Tupiguarani. O materiallítico é constituído de seixos com marcasde uso e pouco material lascadoe nenhumretocado (figura 3) (Pallestrini, 1975).

Figura 3 - Cerâmica Tupi-guarani, aldeia ceramista.Sítio Alves, Paranapanema, SP (Desenho H. Coe-lho).

Como interpretar essas ocupações doHoloceno Recente tão diferentes nesseterritório de paisagem de relevo poucoacidentado, constituído de colinas? Os sí-tios dessa porção média do vale doParanapanemaestão situadosnas bordas,nos limites do planalto brasileiro, configu-rados pelas serras e cuestas que os deli-mitam.

Nessa área do Paranapanema desta-cam-se três tipos de povoamentos ou depopulações:

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1 – Povos instalados, no sítio Brito, ini-cialmente em área aluvial, de 8000 a 7000anos AP, produziram lascamentos emgrandes blocos ou plaquetas. Com o óti-mo climático dessa região entre 6800 e4000 anos AP, eles se deslocaram ape-nas 20 metros em terrenos coluviais, dei-xando o terreno aluvial alagado, indo maispara a par te ligeiramente elevada (5metros de altitudeem relaçãoao nívelatualdo riacho). Criaramaí um verdadeiro atelierde lascamento com as mesmas fontes damatéria prima in loco, constituídas de gran-des blocos de arenito. Existe nesse localde lascamentos uma importante indústrialítica com utensílios confeccionados sobrelascas.

2 – Povos que vieram e ocuparam aregião em períodos mais recentes, 4600anos AP, e que ficaram instalados na áreaaté uma época sub-atual, ao redor de 400anos AP. A tradição de lascamento ficoumantida em todos esses períodos de ocu-pação, não só até o período tardio de há1000 anos, ainda com ocupações pré-ceramistas, como o lascamento continuaa ser preservado aos 400 anos AP, apesarda introdução da cerâmica nos sítios, emseu período mais recente. Verificou-se nosítio Almeida que a quantidade de peçaslascadas e de utensílios, como as reen-trâncias, os denticulados, os equivalentesa raspadores, é distribuída de maneira si-milar pelos níveis arqueológicos, sendoque existe para o nível lito-cerâmico oacréscimo de novos tipos com as peçaspolidas ou similares.

A adoção da cerâmica nesses sítioscom sequência estratigráfica se faz demaneira suave, sem romper com o costu-me de lascar. De fato a introdução da ce-râmica e de certos artefatos polidos nes-ses sítios não foi acompanhada de umaverdadeira aculturação de um novo grupoporque ela não interrompeu a produçãolítica baseada no lascamento. Isso revela

que houve uma aquisição cultural e umaaproximação a outros povos ceramistascontemporâneos e vizinhos

Tanto o sítio Camargo como o Almeidapodem ter tido como antepassados os po-vos que haviam ocupado o sítio Brito até4000 anos AP. Todas as técnicas dessespovos que trabalharam tão bem o arenitosilicificado estão presentes no após Brito.No sítio Almeida há continuidade do mé-todo de lascar e dos utensílios de Brito.Quanto ao Camargo, em seu período maisantigo, 4600 anos AP ocorrem novos tiposde utensílios, peças bifaciais, pontas deprojétil. Trata-se aí da instalação de (oudo contato com) um novo grupo com ins-trumentos diferentes, visto o sítio estar emsituação geográfica favorável a contatosou migrações na confluência de rios, noeixo e nas margens do rio mais importan-te. Como as ocupações que as sucede-ram não mantiveram esses artefatos bi-faciais, isto pode significar que tenha ha-vido um fenômeno esporádico, o que jus-tifica a perda desse modo de confecção.

3 – Povos ceramistas que chegaram naregião por volta de 1200 anos AP semnenhuma tradição cultural de lascamentolítico, por exemplo os sítios Alves, Fonse-ca, Jango Luiz. Esses povos têm uma or-ganização espacial identificada pelos tes-temunhos das cabanas e pelas áreas deenterrar os mortos: são as aldeias, as so-ciedades bem organizadas.

Verifica-se numa mesma paisagem queas necessidades econômicas não são asmesmas conforme o grupo humano. Sãoos modos de vida de acordo com os com-portamentos de subsistência que vãocondicionar o tipo de assimilação. Resul-tam assim dois modelos:

Modelo A – Os povoamentos de tradi-ção lítica, estabelecidos na região desde8000 anosAP, conservaram seus compor-

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tamentos técnicos de caçadores coletoresaté os tempos de contato com o europeu,400 anos atrás.

Ao longo desses milênios foram obser-vadas mudanças na escolha da matériaprima e na confecção de utensílios. O pe-ríodo do ótimo climático foi também deci-sivo na mudançadessescomportamentos.Assim, no sítio Brito as ocupaçõesde 8000a 7000 anos AP, caracterizadas por peçasrobustas e bifacias, distingue-se das de6800 a 5000 anos onde se encontra umamaior diversidade de aproveitamento doarenito si lici fi cado pela profusão delascamentos, algumas peças unifaciais epeças plano-convexas, tipo lesma (figura4). Nas ocupações de 4000 anos AP fo-ram encontrados nesse local mais arran-jos de fogueiras que propriamento zonasde lascamentos. Trata-se, provavelmente,de um deslocamento da área de acampa-mento nessa mesma estratigrafia.

em perfeita associação com os demaisprodutos de lascamentos, com as oficinaslocais (blocos e lascas).

No sí ti o Camarg o (como no síti oAlmeida), existe esse relacionamento depopulação recente ceramista absorvida noambiente de grupos instalados na mesmaárea desde quatro milênios, num espaçocolinar aberto e situado bem às margens,tanto do riacho Corredeira, como do pró-prio rio Paranapanema. Esse sítio possuiuma indústria lítica de utensílios mais di-versificadose de elaboraçãomais comple-xa: pontas de projétil, peças bifaciais e pla-nos-convexos unicamente há 4600 anosAP. Não foram encontradas no nível cerâ-mico urnas funerárias e a distribuição dacerâmica em Camargo não permitiu fazera distinção de núcleos habitacionais. Olascamento persiste tanto em período con-siderado ceramista já na região, ao redorde 1000 anos atrás, como no nível maisrecentecom cerâmica,que o de 1000 anos(não datado).

Modelo B - As populações ceramistassão novas, migraram na região trazendoseu savoir-faire na organização social, or-ganização do espaço e organização eco-nômica com a atividade de horticulturamanifesta pelos instrumentos como mãosde pilão, batedores, lâminas de machadospolidos, afiadores-aguçadores.

Esses grupos ceramistas chegaramseja ignorando, seja não necessitandomais da tradição de lascamento para aconfecção de utensílios líticos lascadoscomo os raspadores, furadores, peçasunifaciais ou bifaciais, plano-convexascomo plainas, lesmas… Esses imigrantesrecém-chegados de há 1200 anos se ins-talam em espaçosdesocupados, vaziosdeoutros moradores, já como uma socieda-de bem organizada, bem estabelecida,onde os padrões sócio-econômicos estãoestruturados.

Figura 4 – Área de lasca mento em aren itosilicificado, nivel datado de 6800 anosAP, Sítio Brito,Paranapanema, SP (Foto A. e D. Vialou).

Em outro sítio, Almeida, observa-se acontinuidade do lascamento desde 3600anos AP até 470 anos AP apesar da cria-ção de uma aldeia ceramista como áreahabitacional. Nesse período recente, ospoucos utensílios polidos e orientados àsatividades de costume de produtos provin-dos da horticultura (deles ou não) estão

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Assim, no Paranapanema houve aomenos duas sociedades indígenas diferen-tes que conviveram, não se ignorando,mas preservando seus modos de vida,suas técnicas. As trocas desses contatossão evidentes pela introdução da cerâmi-ca, pelos utensílios necessários ao esma-gamento de frutos e plantas e ao milho aser pilado. Provavelmente, os grupos quepersistiram às mudanças técnicas manti-veram-se concentrados na caça, não pra-ticandoa horticultura mesmo incipiente. Hápossibilidades de que os grupos tenhamtido contatos, estabelecendo mesmo umarelação econômica entre o núcleo produ-tor de alimentos, como a mandioca ou omilho, e que deveria efetuar a troca entreo produto da roça e o produto da caça, porexemplo.

Nota-se que há muitas ocupaçõeslíticas ao longo do Paranapanema, e queelas se extendem na região de PresidentePrudente, baixo Paranapanema(trabalhosde R. Kunzli e N. Barracá), e nas margensdireita do rio Paraná, no Porto Primavera.Na forma de seixoscoletados nas margensdos rios, o arenito silicificado é a rochamais utilizada (70%) e é sempreabundanteem toda essa área onde houve derramede basalto. O silex é a segunda matéria-prima utilizada.As datas mais antigas nes-sa área do Alto Paraná, 4000 anos AP,correspondem a ocupações líticas. Osprocessos de instalação dos ocupantesceramistas devem ser os mesmos anali-sados acima e as numerosas dataçõesobtidas indicam instalaçõesde povoamen-tos de ceramistas Tupiguaranidesde 1600anos AP até 240 anos AP (Martins et al,1999; Kashimoto & Martins, 2005).

2.2. Sítios da Cidade dePedra, Estado de MatoGrosso

A Cid ade de Pedra, municíp io deRondonópolis, é uma região bem delimi-tada geográficamente pelo rio Vermelhoonde se inicia o grande Pantanal para ooeste, no sentido das fontes da bacia dorio Cuiabá-Paraguai, e pelas cuestas daserra de São Jerônimo, orientadas para achapada - platô Central do Brasil (tabelas2 e 3). O território definido pelas pesqui-sas que efetuamos em colaboração entreMAE/USP e MNHN corresponde a umaárea de 25 por 20 km, com desnível de400-600 m de altitude. Nesse pequenoespaço entre a chapada e as margens dorio, o relevo é acidentado, composto deformações areníticas ruiniformes, entre-cortadas por riachos com cascatas devidoà descida abrupta e aos bancos compac-tos de arenito fazendo os patamares des-se desnivelamento. A vegetação atual édensa, caracterizada pelo cerradão e pe-las matas ciliares.

Dois tipos de hábitat ocorrem: os sítiosa céu aberto, na beira do rio e riachos, eos sítios em abrigos sob rocha, em topo-grafias de altitude, desde os primeiros pa-tamares rochosos, os mais baixos, até omais alto próximo do platô (Vilhena Vialou,2003, 2006). Foram identificados 125 síti-os: 5 sítios a céu aberto e 120 sítios emabrigos com representações rupestres,dentre eles 7 escavados, evidenciando lo-cais de habitações. As ocupações estãorestritas ao período do Holoceno Médio aoHoloceno Recente e mesmo sub-atual.

Caso A – sítios em abrigos rupestres.Alguns abrigos foram ocupados de manei-ra ininterrupta de 5000 anos até 200 anosatrás e a grande riquezaarqueológicades-se s ab ri go s es tá nã o só na su afrequentação constante, mas na possibili-

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dade de distinguir fases ou modificaçõesculturais no período ceramista durante2000 anos, como é o caso do abrigorupestre Ferraz Egreja (Monteiro, 2006;Vilhena Vialou, 2006).

De fato, as escavações nos abrigos re-velaram que em 4 deles houve ocupaçõesanteriores ao período ceramista, sucedi-das por ocupações ceramistas: abrigosCipó, há 7000 anos, Ferraz Egreja, desde4610 anos e Vermelhos, a partir 4120 anosAP, e Antiqueira, ainda com nível pré-cerâmico não datado. Enquanto que 3 ou-tros abrigos foram ocupados unicamentepor ceramistas: Arqueiros , Pacífico eTocaçu dos Morcegos.

Os abrigos Ferraz Egreja e Vermelhosmostram instalações organizadas pelasgrandes fogueiras com grandes concen-trações de carvões, pelos arranjos cuida-dosos de estruturas de pedras, pelos uten-sílios, pelo número importante de estilhase lascas de retoques e de refugos delascamento, pela escolha e preparo deplaquetas de hematitas, material esse vol-tado bas icamen te às rep resentaçõesrupestres e, enfim, pelo número reduzidode fragmentos cerâmicos, mas muito di-versificados em modelos e decorações depotes de pequenos tamanhos. Em FerrazEgreja, numa superfície de 150 m2 esca-vados e sobre 60 cm de espessura de se-dimentos com vestígios, foram registradoscerca de 2000 fragmentos de cerâmica e14000 líticos, distribuídos nos espaçoshabitacionais e nos distintos níveis arque-ológicos do período ceramista. Foram iden-tif icados, durante as escavações pordecapagens solos de ocupações, comremontagens líticas provindas de lasca-mentos e de retoques e remontagens defragmentações térmicas, estruturas decombustão constituídas de pedras e as-sociadas aos arranjos habitacionais (figu-ra 5).

Figura 5 – Níveis estratigráficos de ocupaçõeslíticas e ceramistas, 2000 anos a 700 anos AP. Abri-go rupestre Ferraz Egreja, Cidade de Pedra, MT(Foto A. e D. Vialou).

Funções dos abrigos rupestres – To-dos os abrigos estudados contêm repre-sentações simbólicas de pinturas, dese-nhos ou gravuras. As funções dos abrigossão bem variadas podendo ser múltiplasmas também com funções específicas. Assuas diferentes funções (ritual, moradia…)e sua complementariedade (arte rupestre,acampamento, necrópole) podem existirentre os próprios hábitats dos abrigos en-tre eles, como podem fazer parte do uni-verso habitacionalque engloba os habitatsdas aldeias a céu aberto.

Nossos critérios básicos de discussãosão: em primeiro lugar os sítios a céu aber-to e os sítios em abrigos e, em segundolugar, os instrumentos polidos associadosà horticultura e instrumentos polidos as-sociados à indústria lítica lascada. Essescritérios enquadram-se nos tipos das fun-ções encontradas nos abrigos:

·Arte rupestre : poderia se tratar emalguns abrigos de um comportamento oca-sional de caçadores, provenientes das al-deias ou de outros abrigos, onde eles mes-mos ou outros acompanhantes estariamrelacionadoscom as manifestaçõesde pin-turas ou gravuras rupestres. Significaria,nesse sentido, que uma ruptura se faz

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entre os hábitos comunitários em aldeiase o comportamento em abrigos, como nocaso dos abrigos rupestresAlvorada, SeteBarras, Ralador, Mano Aroé... sem a pos-sibilidadeda conservaçãode testemunhosde ocupações, pelo solo rochoso.

·Moradias: são os abrigos constituídospor ocupações duradouras, pelas eviden-cias das estruturas habitacionais de gran-des fogueiras, de espaços livres e vaziosde vest íg ios e espaços repletos delascamentos, e também de organizaçõesde pedras, como em Ferraz Egreja e Ver-melhos.

·Acampamentos: são sítios de passa-gens mais longas ou menos longas emfunção da localização dos abrigos numapaisagem escarpada e às vezes muito fe-chada, de sua possibilidade de proteção edo valor das representações nas paredes.Esses abrigos conservam testemunhosdessas passagens, com lascamentos,utensílios lascados e polidos, com peque-nas fogueiras não estruturadas, como emArqueiros e Tocaçu dos Morcegos (figura6).

·Rituais: é provavelmente o caso dacaverna-abrigo Antiqueira (120 m2 de es-cavações), com representações rupestresprincipalmente de cor branca, num ambi-ente vasto e sombrio e com pouquíssimosvestígios, mas suficientespara indicar pas-sagens episódicas no local, deixando mar-cas de fogos, concentrações de carvõescom manchas de aquecimento no solo,fragmentos de dois tipos de cerâmica li-sas, finas e grossas, pertencentes a reci-pientes pequenos e a grandes tijelas (pra-tos rasos). O material lítico é pouco, masos que aí se encontram são particulares,lâminas de machado polidas ou rudimen-tarmente lascadas sobre plaquetas emarenito, apenas com 2 ou 3 retiradas paramodelar a apreensão de uma lâmina demachado e formar o gume, raras lascas enão houve trabalhos de lascamentos in

loco.·Necrópole: há um único sítio, caver-

na-abrigo Cipó, situado no primeiro pata-mar dos afloramentos areníticos com vis-ta total para o rio Vermelho e toda a planí-cie onde se encontram as aldeias de po-vos ceramistas. Ele é particularmente úmi-do, com água das chuvas que se concen-tra e se deposita no meio do abrigo e queo separa em duas par tes. Os enter -ramentos de 9 indivíduos se fizeram sejade forma secundária, em pequenas urnasfunerárias decoradas, seja dispotos nochão do abrigo, mas sempre em suas áre-as mais altas. A função desse sítio paraenterramento é indiscutível; um fragmen-to de cerâmica de urna foi datado, dandoa idade de 1000 anos atrás (Wesolowski2003, 2006).

Figura 6 – Representações rupestres e acampa-mento lito-cerâmico. Abrigo rupestre Arqueiros, Ci-dade de Pedra, MT (Foto A. e D. Vialou).

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Tabela 2 - Datações (AP) dos abrigos rupestres da Cidade de Pedra, Mato Grosso*.

Abrigos rupes tres

Ferraz Egreja Vermelhos Selos Cipó Arqueiros Antiqueira

Nível/Sítio Idade Lab Idade Lab Idade Lab Idade Lab Idade Lab Idade Lab

lito-cerâmico 205 ± 40 Gif -10047 - - - - - - - - - -

lito-cerâmico 420 ± 40 Gif-10044 - - - - - - - - - -

lito-cerâmico - - - - - - - - - - 645 ± 45 Gif -11731

lito-cerâmico 780 ± 20 Gif -10048 - - - - - - - - 830 ± 30 Gif-11732

lito-cerâmico 1060 ± 40 Gif -10048 - - - - 1025 ± 100 FATEC TL 1090 ± 35 Gif-11727 - -

lito-cerâmico 1260 ± 40 Gif- 9645 1250 ± 80 Gif- 8663 - - - - - - - -

lito-cerâmico 1340 ± 50 Gif- 9046 - - - - - - - - - -

lito-cerâmico 1470 ± 40 Gif- 9699 1470 ± 40 Gif- 9700 - - - - - - - -

lito-cerâmico 1570 ± 50 Gif- 7878 - - - - - - - - - -

lito-cerâmico 1700 ± 50 Gif- 7087 - - - - - - - - - -

lito-cerâmico 1900 ± 40 Gif- 9697 1890 ± 50 Gif- 9703 1870 ± 50 Gif - 9705 - - - - - -

lít ico 2110 ± 20 Gif- 6712 2030 ± 40 Gif - 9701 - - - - - - - -

lít ico 2200 ± 80 Gif- 7087 2455 ± 60 Gif-11434 - - - - - - - -

lít ico 2700 ± 50 Gif -10052 2800 ± 35 Gif -11435 - - - - - - - -

lít ico - - 3400 ± 40 Gif -11436 - - - - - - - -

lít ico 3620 ± 60 Gif- 6248 3705 ± 35 Gif -11433 - - - - - - - -

lít ico - - 4120 ± 60 Gif-10681 - - - - - - - -

lít ico 4610 ± 61 Gif- 6250 - - - - - - - - - -

lít ico - - - - - - 7255 ± 50 Gif-11729 - - - -

Tabela 3 – Datações (AP) dos sítios a céu aberto da Cidade de Pedra, Mato Grosso.

Sítios a céu aberto

Fazendinha Baia Jatobá

Nível/Sítio Idade Lab I dade Lab Idade Lab

lito-cerâmico 330 ± 42 FA TEC 1672 - - - -

lito-cerâmico 480 ± 62 FA TEC 1522 - - 480 ± 80 FATEC TL

lito-cerâmico 645 ± 84 FA TEC 1357 640 ± 50 FA TEC TL - -

Caso B – sítios a céu aberto. Os 5 síti-os a céu aberto, Baia 55, Turbina, Jatobá,Fazendinha e Macaúba, são todos unica-mente de ocupações ceramistas, indo de1900 a 330 anos atrás. Localizados emterreno plano foram identificados por son-dagens sistemáticas e por decapagens eescavações em áreas mais limitadas. Um

dos sítios, o Fazendinha, tem uma ampladistribuição das cerâmicas sobre 3 km aolongo do rio Vermelho (Figuti & Monteiro,2003; Figuti, 2006).

Existe uma aparente independênciaterritorial desses sítios às margens do rioVermelho com relação aos da serra, porestarem situados numa superfície aluvial

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e plana. Independência também pelo es-paço fa vorable dessa plan íc ie parahorticultura, com possibilidades de usu-fruirem tanto do plantio, como da pescapela abundância de grandes peixes quetraz ainda hoje esse rio (dourado, pintado,pirapitanga, pacu). Para caçar há aindahoje muitas pacas, capivaras, cotias, cer-vos e queixadas nas proximidades daságuas dos rios e num terreno pantaneiro.Já nas formações rochosas da serra háexcelentes refúgios para os animais, comoa anta e a onça.

Os dois tipos de hábitat, em abrigos e acéu aberto, provocaram aos grupos mora-dores contemporâneos comportamentossociais e técnicos diferentes. De fato, hádiferenças importantes entre os morado-res da serra e a população ribeirinha. Apopulação dos abrigos na serra, não podeser muito numerosa, por se tratar de loca-is restritos de acampamento/moradia. Su-põe-se que alguns abrigos podiam conteralgumas unidades familiares, mas nãouma tribo. Diferentemente do que se pas-sa nas margens do rio, onde há espaçopara se construir uma aldeia. É o que fi-cou demonstrado pelas escavações sobrea dispersão de vestígios sobre centenasde metros e mesmo quilômetros, justifican-do deslocamentos da aldeia em períodosdiferentes, como no sítio Fazendinha comocupações de períodos de 645, 480 e 330anos AP (Figuti & Monteiro, 2003; Figuti,2006; Vilhena Vialou, 2003, 2006).

Mas convém lembrar que essa distin-ção do tempo das ocupações dos sítiossuperficiais a céu aberto se dá nos espa-ços de implantações diferentes e rara-mente através de uma superposiçãoestratigráfica. Esta é a diferença funda-mental com os sítios em abrigo onde oespaçosendo exígüo,os ocupantesse ins-talaram sempre nos mesmos lugares, pro-vocando sequências estratigráficas às ve-zes complexas.

Essas diferenças no tempo, no espaçocomo paisagem e no território habitacionalvão condicionar comportamentos diferen-tes entre os grupos habitantes de abrigose os gruposhabitantes de sítiosa céu aber-to, como por exemplo:

- a horticultura, mesmo incipiente, sópode ser praticada nas baixadas. Em to-dos esses sítios em caverna ou abrigorupestre da Cidade de Pedra não há nadapropício a essa atividade do cultivo deplantas por causa da falta de condiçõesligadas ao espaço do terreno: ora por es-tar próximo de terreno encharcado, as ve-redas, como é o caso de Ferraz Egreja,ora por estar em terreno com falta de fon-tes de águas regulares, como nos abrigosVermelhos. Mas a vegetação do entornodos abrigos é exuberante e rica em plan-tas silvestres comestíveis, como o coqui-nho de buriti e o jatobá mirim, frutos essesencontrados nos solos de ocupações pré-históricas dos abrigos.

Se os acidentes geográficos justificamessas diferenças do modo de subsistên-cia ligada ao espaço, torna-se claro quehaverá limites para que haja uma organi-zação social mais complexa, enquanto nasaldeias (uma concentração de cabanas) oestilo de vida é em comunidade e isso sig-nifica hierarquia social pelo poder, com aschefias variadas.

- a tecnologia lítica, não é a mesmapara os dois tipos de ocupações condicio-nados pela paisagem, aldeias ao ar livre eacampamentos em abrigos.Essas diferen-ças corroboram e comprovam a utilisaçãode artefatos apropriados. Enquanto quenas aldeias não se encontram áreas delascamentos e a indústria lítica é reduzidaa peças polidas e excepcionalmente autensílios lascados já prontos, nos abrigosconcomitantemente às peças polidas (lâ-minas de machado), ocorrem importantesquantidades de testemunhos de lasca-mentos in loco. Persiste nos abrigos essa

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relação da busca da matéria-prima, emgeral distantes dos abrigos de habitação,com a transformação do bloco, seixo... emnúcleos para produzir utensílios através desuas lascas. A cadeia operatória que vaidos blocos naturais já selecionados desuas matrizes,e os seixos trazidosao abri-go ao objeto confeccionado, terminado,existe nitidamente nos abrigos.

- a perenidade - o fato do lascamentoperdurar ao longo de todo o per íodoceramista dos abrigos reflete uma resis-tência à mudança tecnológica e é a ex-pressão de uma outra necessidade eco-nômica e que nesse sentido diverge docomportamento do povo horticultor das al-deias situadas a menos de 5 km dos abri-gos.

É preciso levar em consideração o fa-tor da cronologia das instalações. No es-tado atual das pesquisas, os sítios deceramistasa céu aberto são em geral maisrecentes que os ceramistas dos abrigos,como é o caso de Ferraz Egreja, mascontemporâneos nesses últimos mil anos.

Os estudos da cerâmica mostraramuma grande diversidade de formas de con-tornos dos recipientes, de técnicas, dedecoração. O abrigo Ferraz Egreja, talvezpela sua longa sequência de ocupaçõescom cerâmica, apresenta a maior diversi-dade da cerâmica e também mudanças detipos em função da posição estratigráficados objetos. Mostraram também possibili-dades de haver afinidade entre algunsabrigos e certos sítios a céu aberto, e nãonecessariamente entre os sítios a céuaberto entre si (Monteiro, 2006).

Se por outro lado os acampamentos emabrigos poderiam estar dissociados doshabitantes das aldeias em sítios a céuaberto, as populações mais recentes dosabrigos não podem ter ignorado as popu-lações das aldeias,não só porque elas são

muitas vezes visíveis desses abrigos quepossuem vistas panorâmicas em altitude,como também porque deveria ser um lu-gar de passagem obrigatória para suasincursões aos grandes rios.

Vale a pena considerar também umoutro aspecto ainda não registrado nos sí-tios pesquisados, o fato que muitos povosnunca se tornaram ceramistas, como ocor-re ainda hoje com alguns grupos indíge-nas do Planalto Central, moradores de al-deias muito bem estruturadas e hierar-quizadas.

III. Exemplos de OutrasPesquisas a TítuloComparativo

O estudo intensivo realizado em váriasoutras áreas do Planalto Central, permiteque sejam aqui expostos alguns de seusresultados que podem reforçar certas hi-póteses levantadas.

- Sitios de Serranópolis e Caiapônia,bacias do Paranaíba e Araguaia, Estadode Goiás, pesquisados por P. I. Schmitz.As escavações em 26 abrigos de Serra-nópolis, em Goiás, (a uns 400 km a lestedos sítios da Cidade de Pedra, Mato Gros-so) mostraram uma antiga sequência deocupações em abrigos de arenito com al-guns sepultamentos, muito ricas em faunae em material lítico feito em quartzito localou calcedonia. Das 266000 peças da in-dústria lítica e 244000 produtos de lasca-mento, as peças bem elaboradas perten-cem aos níveis entre 11000 e 8500 anosAP onde há centenas de peças plano-con-vexas ou lesmas e dezenas de pontas (nafaixa de idade mais recente- 8500 anos).Entre 8000 e 5500 anos AP ocorrem ou-tros tipos de instrumentos, menos elabo-rados, associados a uma grande quanti-dade de moluscos. Essas ocupações nãotiveram continuidade nos abrigos, no perí-odo do ótimo climático e mesmo em um

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período mais recente e seco. Mais tarde,há 1000 anos atrás, novas ocupações seinstalam nos abrigos já com cerâmica.Embora sejam reduzidos nesse período,os ocupantes ceramistas continuam a pro-duzir lítico lascado (Schmitz et al, 1989,2004).

Em Caiapônia (42 sítios - 30 rupestres,10 a céu aberto e 2 de exploração da ro-cha), as ocupações a partir de 4415 anosAP são bem mais recentes que as deSerranópolis, mas contemporâneas e se-melhantes às dos abrigos da Cidade dePedra. São para esse período, ocupaçõespuramente líticas, lascamento feito sobreseixosde quartzito.Elas são sucedidasporocupações ceramistas a partir de 1200anos AP com recipientes de pequeno ta-manho. O lítico continua a ser lascado,com o acréscimo de tipos associados àcerâmicae ao polimento, como talhadores,cunha, mão de pi lão. Nas alde iasceramistas o material lítico é reduzido erefere-se às peças de lâmina de macha-do, batedor... (Schmitz et al, 1986).

- Sítios do Peruaçu, bacia do São Fran-cisco, Minas Gerais, pesquisados por A.Prous. No vale do rio Peruaçu, tipo canyon,dos vários abrigos rupestres pesquisadosé o grande abrigo Boquete que possui umaimportante sequência de ocupações des-de 12000/11000 anos até 1000 anos AP,época com cerâmica. Em Boquete, os pe-ríodosmais antigos revelarammaterial las-cado bem elaborado, peças plano-conve-xas e algumas bifaciais, os níveis interme-diários com objetos de retoques simples eo período recente com cerâmica atestamudanças nos instrumentos, quer dizerpeças mais robustas e com polimento.Uma tese recente (Rodet, 2006) sobre osmétodos de lascamento, mostrou tambémque essa indústria não era baseada emtipos de artefatos padronizados e que osinstrumentos sobre lascas de confecçãosimples perduraram durante milênios. Há

duas grandes mudanças, a mais antiga,de 11000 a 8000 anos, é caracterizada por1 ponta de projétil e algumas peças bifa-ciais, e a mais recente já com a introdu-ção da cerâmica e com uma evolução dostipos de artefatos, apesar de continuar olascamento nos abrigos. Foi importantenesse estudo a caracterização dos méto-dos de lascamento e seus esquemas paraa obtenção de utensílios, deixando entre-ver a possibilidade de sítios complemen-tares na produção de objetos: alguns síti-os da área de Peruaçu estariam espe-cializados no preparo e na redução damatéria prima e outros nos acabamentosdos utensílios.

Além do mais é importante precisar quenos abrigos de Serranópolis e do Peruaçuforam encontrados sepultamentos de pe-ríodos diversos, entre 6000 e 1000 anosAP. Os sepultamentos ocorreram nessessítioshabitacionais muitosdelesperturban-do os solos das ocupações anteriores,como em Boquete (Prous, 1991).

IV. Considerações FinaisEnfim, não há duvidas de que o com-

portamento de grupos moradores em síti-os a céu aberto deva ser distinto dos mo-radores dos sítios em abrigos. Tratam-sede paisagens e espaços tão distintos queobrigam adaptações locais. As diferençasquanto ao emprego de utensílios líticos, àutilização diversificada da cerâmica entreesses dois tipos de hábitat se vêm aindamais reforçadas no sentido da continuida-de do lascamento em sítios aonde já havi-am ocupantes pré-ceramistas.

É a nova vaga de migrações de povosceramistas que se instalam em áreas ain-da virgens - sít ios a céu aberto semestratigrafia - e que vão se distinguir dasocupações vigentes anteriores aos cera-mistas. A cerâmica passa a fazer parte docenário das ocupações superficiais comuma distribuiçãode cabanas, formando al-

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Tecnologia lítica no planalto brasileiro: persistência ou mudança

deias, mas não altera o comportamentodos povos vizinhos que têm um passadono local. São os povos dos sítios com se-quênciade ocupações em estratigrafia quemantêm a produção de utensílios líticoslascados, apesar da introdução de utensí-lios polidos e outros ligados as atividadeshorticultoras.

Em conclusão, quando a cerâmica apa-rece em sítios com ocupações de perío-dos pré-cerâmicos observa-se uma adap-tação de um novo instrumental: os potescerâmicos e os artefatos polidos nas habi-tações, sem modificação do hábito de las-car. A produção lítica, a partir de lasca-mentos, é mantida e continua sendo simi-lar àquela que se fazia antes da chegadada cerâmica. Nesses casos se justifica oemprego do têrmo pré-cerâmico pois serefere a ocupaçõesem cronologiasequen-cial com e sem cerâmica. Isso revela queficaram preservados os sistemas econô-micos anteriores e também que a organi-zação social se distingue dos gruposceramistas bem estabelecidos em aldeiase com seus sistemas funerários comple-xos. Tratam-se de grupos que vivem para-lelamente, de grupos que se completamou dos mesmos grupos com locais de ati-vidades distintas? Essa questão é válidaparticularmente para as áreas onde háabrigos e sítios a céu aberto e que sejamcontemporâneos (Cidade de Pedra, Caia-pônia); e não para os sítios a céu abertoentre si (Paranapanema).

A respeito da mobilidade possível en-tre os povos da Cidade de Pedra, o estu-do das cerâmicas mostrou que as urnasfunerárias de Cipó podem estar relaciona-das tanto ao abrigo Ferraz Egreja, comoaos sítios a céu aberto (Monteiro, 2006). Acerâmica, pela sua quantidade e varieda-de, foi considerada pelo exposto acimacomo um elemento determinante que vaijustificar ou não a perenidade do lasca-mento lítico. Normalmente, nas publica-

ções foram distinguidas as cerâmicas dosabrigos caracterizadas pelos autores deuma tradição sempre com pequenos po-tes não decorados. Mas pouco ficou ob-servado até então quanto a questão dapersistência das indústrias líticas a fim decompreender porque essas sociedadescontinuam a lascar. Da mesma forma po-demos indagar porque existe nos abrigosuma cerâmica específica e aonde foramconfeccionadas?

Entretanto, uma outra questão deveriaser igualmente observada e que pode es-tar int imamente ligada à presença erepresentatividade da cerâmica nos sítios:será de distinguir os grupos que utilizam acerâmica dos que a fabricam? Todos osgrupos analisados do período ceramistautilizam a cerâmica em diferentes ocasi-ões ou proporções. Entretanto, é precisosaber qual é o grupo realmente ceramista.Pode ser que aí tenhamos a chave paracompreender a abundância ou a escassezdo lítico em função do grupo produtor deobjetos de cerâmica, e que, por sua vez,devia se instalar em um terreno que pos-sua as argilas propícias para essa confec-ção.

Notamos enfim que as atividades daspopulações ceramistas em certos hábitatsnão provocaram mudanças tecnológicasradicais na organização material e econô-mica, mantendo o mesmo tipo de produ-ção de objetos líticos lascados. Verifica-se que apesar da introdução de utensíliosadaptados ao trabalho de uma agriculturaincipiente e de suas vasilhas cerâmicas, olascamento persiste. Observa-se tambémque o comportamento dos ocupantes pré-históricos varia em função do tipo de habi-tação, gerando assim espaços de ativida-des diferenciais. Podem ser as mesmaspopulações, ou eventualmente populaçõesque se conhecem percorrendo o mesmoterritório, mas que estabelecem distinçõestecnológicas em relação às atividades e

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VIALOU, A.V.

de acordo com o local da habitação.Em resumo, apresentamos uma classi-

ficação cronológica sintética distinguindoa persistência ou não do lascamento apartir das áreas analisadas por períodos etipos de sítios:

1. Período de 11000 a 8000 anos AP -sítios líticos em abrigos (Serranópolis ePeruaçu), com lascamentoabundante, pe-ças unifaciais plano-convexas e presençade peças bifaciais e algumas pontas deprojétil.

2. Período de 8000 a 4000 anos AP -sit ios líti cos a céu aberto do Parana-panema (Brito e Camargo), com lasca-mento abundante, peças unifaciais plano-convexas e presença de poucas peçasbifaciais e poucas pontas de projétil.

3. Periodo de 4000 a 2000 anos AP -sítios pré-cerâmicos a céu aberto (Para-napanema) e em abrigos (Cidade de Pe-

dra e Caiapônia), com lascamento abun-dante, indústria lítica simples, peças comre toqu es un if ac ia is : re en tr âncias efuradores.

4. Período de 2000 a 500 anos AP -sítios a céu aberto com pouca cerâmicano vale do Paranapanema (Almeida,Camargo) e sítios líticos e cerâmicos emabr igos em Cidade de Pedra (FerrazEgreja, Abrigos Vermelhos), com lasca-mento abundante, indústria lítica simples,peças com retoques uni facia is: reen-trâncias e furadores, peças robustas, lâ-minas de machado lascadas e presençade utensílios polidos. Sítios ceramistas acéu aberto do vale do Paranapanema eda Cidade de Pedra, raros lascamentos,aparecimento de utensílios polidos.

Recebido para publicação em junhode 2009.

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