teatro improviso

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MARIA APARECIDA DE SOUZA TEATRO-EDUCAÇÃO E OS PROCESSOS DE INDISTINÇÃO ESTÉTICA NA PÓS-MODERNIDADE: UMA REFLEXÃO SOBRE “IMPROVISAÇÃO PARA O TEATRO” DE VIOLA SPOLIN FLORIANÓPOLIS 2005

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Sobre Teatro de improviso

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  • MARIA APARECIDA DE SOUZA

    TEATRO-EDUCAO E OS PROCESSOS DE INDISTINO ESTTICA NA PS-MODERNIDADE:

    UMA REFLEXO SOBRE IMPROVISAO PARA OTEATRO DE VIOLA SPOLIN

    FLORIANPOLIS2005

  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA-UDESC

    MARIA APARECIDA DE SOUZA

    TEATRO-EDUCAO E OS PROCESSOS DE INDISTINO ESTTICA NA PS-MODERNIDADE:

    UMA REFLEXO SOBRE IMPROVISAO PARA O TEATRO DE VIOLA SPOLIN

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao Mestrado em Teatro, da

    Universidade do Estado de Santa

    Catarina, como requisito parcial

    obteno do ttulo de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Andr Luiz Antunes

    Netto Carreira.

    FLORIANPOLIS2005

  • MARIA APARECIDA DE SOUZA

    TEATRO-EDUCAO E OS PROCESSOS DE INDISTINO ESTTICA NA PS-MODERNIDADE:

    UMA REFLEXO SOBRE IMPROVISAO PARA O TEATRO DE VIOLA SPOLIN

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Mestrado em Teatro, da

    Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial obteno do

    ttulo de Mestre.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Andr Luiz Antunes Netto CarreiraOrientador UDESC

    Prof Dr. Flvio Augusto Desgranges de CarvalhoUSP

    Prof Dr Sandra Regina Ramalho e OliveiraUDESC

    FLORIANPOLIS2005

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo de forma especial ao meu Orientador Prof. Dr. Andr Luiz Antunes

    Netto Carreira por todo desafio proposto, respeito e generosidade.

    Ao incentivo de minha famlia. A Francine, Albertina e Narciso. E de forma

    especial, sem dimenses, minha me, por seu apoio, seu ouvido do tamanho do

    seu corao, seu amor incondicional.

    Aos meus colegas de mestrado Liz e Clvis e em especial a Nerina Dip com

    quem compartilhei horas de trabalho, reflexo e amizade.

    Agradeo a todos que de algum modo contriburam para a concretizao

    deste trabalho.

  • SOUZA, Maria Aparecida de. Teatro-Educao e os processos de indistino esttica na ps-modernidade: uma reflexo sobre improviso para o teatro de Viola Spolin. 2005.106 f. Dissertao (Mestrado em Teatro)-Universidade do Estado de Santa Catarina-UDESC, Florianpolis.

    RESUMO

    Este estudo analisa como a metodologia de Viola Spolin, explicitada no livro Improvisao para o Teatro, (2001), contribui para o aluno empreender reflexo crtica sobre os processos de indistino esttica na ps-modernidade. Esta pesquisa discorre sobre as matrizes teatrais e pedaggicas da metodologia de Spolin partindo de dois pilares desta: jogos e improvisao teatral. Tomando a ps-modernidade como condio histrica e cultural, este texto reflete sobre os conceitos de barbrie, sociedade tecnoesttica, sociedade espetacular ou miditica. Busca-se a discusso sobre como a expanso da imagem associada tecnologia e mercadoria provoca a estetizao do cotidiano, tornando inoperante a capacidade de nossos alunos de diferenciar arte e sua funo social. O trabalho apresenta o embate entre os processos de indistino esttica e o teatro como realizao singular, diferida, trazendo a anlise sobre os procedimentos descritos em Spolin para as prticas de teatro-educao e sobre as maneiras pelas quais estes podem ser vislumbrados como instrumentos de reflexo a respeito dos processos de indistino esttica na ps-modernidade.

    Palavras-chave: Teatro. Educao. Spolin.

  • SOUZA, Maria Aparecida de. Theater-Education and the processes of esthetic indistinctness in post-modernity: a reflection upon Improvisao para o teatro by Viola Spolin. 2005. 107 p. Dissertation (Masters Degree in Theater) University of the State of Santa Catarina UDESC, Florianpolis.

    ABSTRACT

    This study analyzes how Viola Spolins methodology, shown in the book Improvisao para o Teatro (2001), contributes to the students critical reflection about the processes of esthetic indistinctness in post-modernity. This research deals with theatrical and pedagogical matrixes of Spolins methodology based on two of her pillars: games and theatrical improvisation. Taking post-modernity as a historical and cultural condition, this text reflects upon the concepts of barbarity, techno-esthetic society, spectacular or media society. Its purpose is the discussion on how the spreading of the image associated to technology and merchandise provokes estheticism of the everyday life, making our students capacity for discriminating art and its social function, inoperative. The work presents the opposition between the processes of esthetic indistinctness and the theater as a differed singular accomplishment, bringing the analysis on the procedures described in Spolin for the theater-education practices as well as on the ways through which they can be discerned as instruments of reflection upon the processes of esthetic indistinctness in post-modernity.

    Key words: Theater. Education. Spolin.

  • SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................. 8

    I CAPTULO1 MATRIZES TEATRAIS E PEDAGGICAS DA METODOLOGIA DE VIOLA SPOLIN...................................................................................................................... 161.1 AS DIMENSES POLTICAS E PEDAGGICAS DA IMPROVISAO NO

    TEATRO.................................................................................................................... 30

    II CAPTULO2 O CONTEXTO DA PS-MODERNIDADE E OS PROCESSOS DE INDISTINO ESTTICA................................................................................................................. 392.1 O TEATRO COMO CERIMNIA SOCIAL DIFERIDA......................................... 42

    2.2 A SOCIEDADE ESPETACULAR E SUA INCESSANTE RENOVAO

    TECNOLGICA......................................................................................................... 43

    2.3 PERSPECTIVAS DE RESISTNCIA.................................................................. 50

    2.4 OS PROCESSOS DE INDISTINO ESTTICA...............................................54

    III CAPTULO3 ANLISE DOS PROCEDIMENTOS DE IMPROVISAO PARA O TEATRO EM RELAO AOS PROCESSOS DE INDISTINO ESTTICA DA PS-MODERNIDADE........................................................................................................ 643.1 JOGOS................................................................................................................ 66

    3.2 FISICALIZAO.................................................................................................. 77

    3.3 MOSTRAR E NO CONTAR............................................................................... 79

    3.4 TEXTO - TEATRAL.............................................................................................. 83

    3.5 PLATIA-AVALIAO......................................................................................... 89

  • 3.6 REFLEXES DO CAPTULO.............................................................................. 94

    REFLEXES FINAIS................................................................................................ 98

    REFERNCIA.......................................................................................................... 102

  • INTRODUO

    O tema desta pesquisa refere-se aos questionamentos relacionados minha

    prtica docente. Minha formao profissional: Educao Artstica, habilitao em

    Artes Cnicas (final da dcada de 1980, incio de 1990) contou com uma disciplina

    intitulada Improvisao Teatral. Naquele perodo, a disciplina desenvolveu-se a

    partir da metodologia1 apresentada no livro Improvisao para o Teatro de Viola

    Spolin (2001). Ainda hoje, se mantm na grade curricular do curso que forma

    professores de artes cnicas da Universidade do Estado de Santa Catarina, a

    disciplina Improvisao Teatral I e II. Atualmente, esta no tem apenas como

    referncia Viola Spolin, pois diferentes fontes metodolgicas e bibliogrficas

    relacionadas improvisao so exploradas, contudo essa autora ainda se constitui

    num importante referencial na formao de professores de teatro. Cabe dizer que

    minha formao acadmica no campo do Teatro-Educao est bastante marcada

    por tal metodologia.

    No que se refere a minha prtica profissional na educao, iniciei-me como

    professora de artes cnicas trabalhando com alunos de ensino fundamental de

    escola pblica e posteriormente trabalhei em um Programa Social que atendia

    crianas e adolescentes, na sua maioria provenientes das ruas, cujos vnculos

    familiares estavam enfraquecidos ou eram inexistentes. Paralelamente, atuei como

    professora em carter temporrio na Udesc, ministrando a disciplina de Teatro-

    Aplicado Educao - Estgio II e Esttica Teatral. No momento da escritura desta

    dissertao, desempenho a funo de professora da disciplina de arte-educao

    1 Uso o conceito de Metodologia segundo o dicionrio de filosofia de Nicola Abbagnano (1999, p.669): Com o nome de Metodologia hoje freqentemente indicado um conjunto de procedimentos tcnicos de averiguao ou verificao disposio de determinada disciplina ou grupo de disciplinas.

    9

  • num curso de Especializao para professores que atuam no ensino fundamental e

    mdio.

    Embora ao longo de meu percurso profissional eu tenha entrado em contato

    com diferentes pesquisas em Teatro-Educao e, portanto, tenha experienciado e

    investigado diferentes procedimentos metodolgicos, tenho como uma das

    referncias em minha prtica profissional a metodologia de Improvisao para o

    Teatro.

    Ao longo de minha prtica profissional, pude perceber que a divulgao de

    Improvisao para o Teatro extrapolou o mbito da formao de professores em

    artes cnicas, pois diferentes grupos que praticam o ensino do teatro tomam como

    fundamentao o trabalho terico e prtico de Spolin. Esta metodologia reconhecida

    no Brasil como pioneira na sistematizao do ensino-aprendizagem do teatro,

    tornou-se um guia de tcnicas e jogos para oficinas e workshops teatrais no mbito

    do ensino escolar. A linguagem simples e direta do livro Improvisao para o

    Teatro oferece jogos e exerccios teatrais que se destinam a diferentes faixas

    etrias e a diferentes profissionais. De tal forma que o professor pode seguir seus

    passos e aplic-los paulatinamente durante uma parte do ano letivo at alcanar

    pequenas improvisaes para apresentar, se for o caso, no contexto escolar.

    No incio de minha pesquisa como aluna do programa de mestrado, busquei

    identificar quais os principais referenciais metodolgicos que operavam nos cursos

    de formao de professores de teatro no Brasil. Para tanto, solicitei a professores,

    de diferentes universidades brasileiras, mais especificamente na rea de Teatro-

    Educao, as bibliografias de suas disciplinas com o fim de delimitar os livros com

    maior presena nesse contexto. Nas bibliografias que me foram enviadas, foi

    possvel identificar a referncia Improvisao para o Teatro de Viola Spolin.

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  • Somado a isso, ao fazer leitura dos artigos dos GTs de Teatro-Educao

    publicados nos Anais dos Congressos da ABRACE (Associao Brasileira de

    Pesquisa e Ps-Graduao em Artes Cnicas), nos anos de 1999, 2001, 2003,

    identifiquei que dos 68 artigos, 30% so relatos de experincia com os jogos

    teatrais de Spolin, ou de utilizao, em suas prticas, de um ou mais procedimentos

    desta metodologia. Considerando essa coleo de trabalhos como uma referncia

    de produo de pesquisa no contexto nacional, possvel afirmar que a metodologia

    de Spolin uma forte referncia nas prticas de professores de teatro no conjunto

    do pas.

    Em minha prtica como arte-educadora, posso identificar questes

    coincidentes que se relacionam ao Teatro-Educao tanto no mbito de sua funo

    social, quanto sua dimenso esttica. Diante da indagao sobre o lugar do Teatro-

    Educao no contexto atual, percebem-se, nos discursos de professores, que a

    linguagem teatral sugerida como prtica social de embate e resistncia aos

    processos massificadores e homogeneizadores impostos pelas tecnologias das

    mdias. Uma reinvidicao recorrente por exemplo so resgate de identidades,

    valorizao de temas regionais como tentativas de reconstruir uma prtica

    autntica de arte, libertadora das ameaas impostas pelas mdias. Estas ltimas,

    tambm chamadas de mass-medium, apontadas como capazes de se sobreporem

    a todas as prticas artsticas, ao nvel individual e coletivo, vm preenchendo os

    diferentes espaos do cotidiano de nossos alunos e transformando seus modos de

    ser e de estar no mundo.

    Tais denncias, freqentemente vm acompanhadas de alguns interrogantes:

    como empreender uma prtica pedaggica que proponha resistncia ao universo de

    entretenimento oferecido cotidianamente aos nossos alunos, uma vez que as

    11

  • referncias estticas trazidas por estes para a sala de aula so parte do universo

    oferecido pelos mass-medium.

    O espao para criao, para expresso artstica e para experincia grupal,

    proposto pelos procedimentos metodolgicos das aulas de teatro, so o suficiente

    para por em questo ou estimular a reflexo sobre o universo oferecido pelos meios

    de comunicao de massa?

    O fato de fazermos teatro na escola, independentemente das metodologias

    empregadas, oferecendo ao aluno espao para criao, para a experincia grupal, e

    utilizando o corpo como expresso, por si s constitui uma forma de resistncia?

    Considerando as prticas de teatro na escola como modos resistentes aos

    processos massificadores impostos pelos mass-medium, bem como a importncia e

    o impacto que a proposta metodolgica de Improvisao para o Teatro tem na

    formao e prtica de professores de teatro, entendo ser necessria uma

    abordagem do fenmeno teatral relacionado educao, que considere os fatores e

    os conflitos que so inerentes condio ps-moderna, pois dessa forma, o estudo

    do teatro estaria se relacionando de forma contundente com os processos da vida

    social.

    Ao empreender a tarefa de buscar entender os processos de ressignificao

    das prticas teatrais em educao, particularmente a partir da abordagem de

    metodologia de Spolin, nas especificidades do momento histrico e cultural em que

    estamos inseridos, aproximei-me de um leque de idias que tentam dar conta da

    multiplicidade deste momento. Nessa busca, os conceitos sobre a atualidade com os

    quais me deparei repetidamente foram: sociedade do espetculo, ps-modernidade,

    ps-modernismo, alienao, reificao, sociedade miditica e barbrie.

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  • Para tanto, tenho como marco referencial o pensamento dos tericos: Fredric

    Jameson, Guy Debord, Jean Duvingnaud e Teixeira Coelho. Minha escolha em

    trabalhar com tais pensadores, refere-se sobretudo s relaes que estes fazem

    com as diferentes prticas artsticas e culturais luz dos fenmenos sociais,

    polticos e econmicos, imprimindo ao problema uma viso histrica. O marco

    terico que estes autores propem oferece a possibilidade de um olhar sobre os

    procedimentos metodolgicos em Teatro-Educao referenciado em uma

    abordagem do prprio fenmeno cultural contemporneo.

    Sociedade do Espetculo, ttulo do livro de Guy Debord, o termo

    empregado pelo autor para descrever a sociedade contempornea. Esse autor

    chama de espetacular a forma como a sociedade contempornea organiza-se, isto

    , com a evoluo do sistema econmico capitalista, que tem como alicerce a

    produo de mercadoria atrelada tecnologia, todo e qualquer momento da vida

    transformou-se em representao, ou seja, em espetculo.

    O conceito de ps-modernismo proposto por Jameson marca o perodo

    histrico em que estamos inseridos. Jameson considera o pos-modernismo como a

    "dominante cultural da lgica do capitalismo tardio", segundo a anlise de Ernest

    Mandel. A cultura dominante da segunda metade do sculo XX entendida pelo

    autor como um fenmeno histrico real, e no apenas como um estilo.

    Segundo Jameson (2000), o pos-modernismo caracteriza-se por: estetizao,

    perda de historicidade, consumismo. A expanso da cultura de imagem provoca a

    estetizao, entendida como o rpido fluir de signos e imagens que impregnam o

    tecido da vida cotidiana. A perda de historicidade provocada pela multiplicidade e

    velocidade de informao audiovisual - pos-moderna, impossibilita ao sujeito ter

    referncias do antes e do depois, fato que provoca a perda do sentido de histria. O

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  • impacto das tecnologias miditicas produz a estetizao de tudo que nos cerca,

    dissolvendo inclusive a arte nessa estetizao. Na ps-modernidade, torna-se difcil

    distinguir o objeto artstico e o papel da arte na sociedade. Torna-se confusa

    distino da arte como experincia que se caracteriza pela superao da realidade,

    pois a arte se dissolve no fluxo imagem-mercadoria.

    O pesquisador brasileiro Teixeira Coelho (1989), faz anlise e questionamento

    sobre a noo de cultura no contexto atual. O autor empreende uma distino entre

    cultura e barbrie. Entende cultura como uma ao que impulsiona o indivduo para

    criar condies de diferenciao frente barbrie estabelecida pelos mass-media.

    Segundo Coelho, a produo cultural, atualmente, marcada pela proliferao

    desmedida da oferta de informaes visuais, olfativas e sonoras, num universo

    caracterizado pelo bombardeamento dos sentidos humanos. Nesse universo, tudo

    se iguala sob a planificao da publicidade, e nossa capacidade de valorao torna-

    se inoperante, portanto, estamos em uma poca de barbrie. Segundo o autor, a

    arte uma das manifestaes mais radicais e mais privilegiadas para viabilizar o

    desenvolvimento da capacidade crtica em relao aos processos de indistino

    impostos na ps-modernidade.

    Dentro do quadro abrangente da problemtica que envolve o ps-modernismo

    e sua multiplicidade de termos, busquei uma delimitao operacional para o estudo

    proposto. A partir disso trabalhei com a idia de indistino sttica que articulo a

    partir do conceito de indistino de Teixeira Coelho (1989), pois considero isso como

    elemento concreto para a reflexo sobre nossas prticas pedaggicas. Assim, luz

    dos referenciais tericos apresentados anteriormente, analisei os procedimentos

    metodolgicos descritos no livro Improvisao para o Teatro, tentando refletir como

    a metodologia de Viola Spolin prope ao aluno o desenvolvimento de um

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  • pensamento crtico que possibilite o enfrentamento dos processos de indistino

    esttica no contexto da ps-modernidade.

    Esta pesquisa est dividida em trs captulos. No primeiro captulo,

    identifico o contexto sociocultural das matrizes teatrais e pedaggicas de Viola

    Spolin, as transformaes do teatro enquanto fenmeno artstico e suas relaes

    com as prticas do teatro na educao.

    A partir do teatro moderno2 a improvisao teatral configura-se como prtica

    pedaggica e mais especificamente nas dcadas de 1960 e 1970, na renovao do

    teatro norte-americano, a improvisao teatral passa a ser instrumento de

    contestao poltica e cultural. Compem parte deste captulo as contribuies de

    Marco de Marinis, Marvin Carlson sobretudo no que se relaciona s transformaes

    culturais e mais especificamente teatrais das dcadas de 1960 e 1970. Conto ainda

    com as referncias de Ingrid Dormien Koudela, no que se refere introduo e

    divulgao da metodologia de Spolin no Brasil, bem como nas relaes que

    estabelece com o Teatro-Educao.

    O segundo captulo aborda a ps-modernidade como condio histrico-

    cultural. Inicia-se com o conceito de pos-modernismo abordado por Jameson e se

    desenvolve junto s reflexes de Debord e Teixeira Coelho. Jameson (2000) e

    Debord (1997) utilizam o conceito marxista de alienao, o que me fez empreender

    um estudo desses conceitos em outras fontes, para poder entend-los no contexto

    da atualidade.

    Para melhor entender as relaes entre imagem e mdia, abordo o conceito

    de mass-media, a partir das categorizaes da semiloga Lcia Santaella (2003).

    2 SegundoJean-Jacques Roubine (1982) Trs elementos marcam o nascimento do teatro moderno: A expanso tecnolgica-industrial do final do sculo XIX e comeo do sculo XX. A Iluminao eltrica como resultado desse avano tecnolgico, e a explorao de suas inmeras possibilidades em cena e o surgimento do encenador moderno.

    15

  • Este captulo atravessado pelo confronto entre os processos de indistino

    esttica da ps-modernidade e o teatro como uma realizao singular,

    diferennciada.

    No terceiro captulo, analiso os procedimentos metodolgicos do livro

    Improvisao para o Teatro luz dos referenciais tericos descritos anteriormente.

    Para tanto, os procedimentos que considerei para anlise foram: jogos,

    fisicalizao, avaliao e platia, mostrar e no contar. Alm desses

    procedimentos descritos no livro, abordo a relao da metologia de Spolin com o

    texto teatral.

    Entendo que, como educadores ou produtores de arte, temos de reconhecer o

    dado inegvel de termos o mercado e a mdia como norteadores da cultura

    contempornea, nesse sentido, algumas reflexes tornam-se necessrias: Como

    podemos nos posicionar como profissionais da arte e da educao diante dos

    processos de indistino da ps-modernidade? Quais os mecanismos de nossa

    prtica podem ser vislumbrados como possibilidade de enfrentamento ou de

    resistncia ao igualamento da esttica triunfante?

    Entendo que investigar os procedimentos metodolgicos de Improvisao

    para o Teatro luz das problemticas que envolvem a ps-modernidade pode

    fornecer instrumento terico que ajude a compreenso do teatro no mbito da

    educao, bem como na criao de zonas de resistncia aos intensos processos de

    perda do sentido social das prticas pedaggicas.

    16

  • I CAPTULO

    1 MATRIZES TEATRAIS E PEDAGGICAS DA METODOLOGIA DE VIOLA

    SPOLIN

    Na dcada de 1970, um grupo de professores e alunos de ps-graduao em

    Teatro-Educao da Escola de Comunicao e Artes - USP, envolvidos com a

    problemtica do teatro no ensino escolar, decidiu pesquisar a bibliografia disponvel

    no Brasil sobre Teatro-Educao e realizou levantamento bibliogrfico das

    publicaes estrangeiras relacionadas a esse tema. Do material selecionado, o livro

    Improvisao para o Teatro, de Spolin, foi escolhido para fundamentar uma prtica

    com jogos teatrais, durante 1978 e 1979. (KOUDELA, 1990, p.10/11). Nesse

    contexto, aconteceu a traduo, para o portugus, deste livro, pelos pesquisadores

    Eduardo Amos e Koudela. Esta ltima, considerada responsvel pela introduo e

    divulgao da metodologia teatral de Spolin no Brasil, desenvolveu diferentes

    trabalhos a partir dessa metodologia. Realizou experincia na Associao Paulista

    de Teatro para a Infncia e Juventude (APTIJ) e publicou o livro Jogos Teatrais,

    baseado em sua dissertao de mestrado, defendida em 1982. A partir disso, o livro

    Improvisao para o Teatro foi difundido no Brasil, causando impacto, sobretudo,

    no mbito da pedagogia do teatro.

    A difuso da metodologia de trabalho de Spolin contribuiu para uma

    reavaliao, no Brasil, da dimenso esttica do teatro na educao e, tambm, do

    17

  • papel do teatro na formao do aluno. At os dias de hoje, diferentes prticas em

    Teatro-Educao so realizadas, tomando como fundamentao o trabalho terico e

    prtico de Spolin: Improvisao para o Teatro, tanto para a formao de

    professores de teatro, quanto para prticas pedaggicas de nvel escolar e, at

    mesmo, para prticas independentes.

    No contexto universitrio, o conceito improvisao teatral, imediatamente nos

    remete Commedia dellArte3 e Spolin e seu livro "Improvisao para o Teatro.

    Tambm, quando lemos indicaes ou comentrios a respeito de sua metodologia,

    percebemos que muitos professores tomam esse material como um guia sistemtico

    de tcnicas e jogos de ensino de teatro. A metodologia teatral de Spolin se constri

    sobre dois pilares: improvisao e jogos. Por isso, considero importante discorrer

    sobre aspectos tericos que, historicamente, fundamentam ambos.

    No sculo XVIII, enquanto o pensamento filosfico era extremamente

    racionalista, priorizando a objetividade, marcado pelo primado da razo, Jean-

    Jacques Rousseau destacou-se por pensar num plano mais subjetivo, enfatizando a

    individualidade e sensibilidade humana. Este desenvolveu estudo sobre as

    diferentes particularidades da infncia, defendendo a idia de liberdade e

    espontaneidade natural da criana, que influenciou os movimentos pedaggicos do

    sculo XIX e XX.

    Ame a infncia; estimule seus jogos, seus prazeres, seus encantadores instintos. [...]. A natureza deseja que as crianas sejam crianas antes de serem homens [...]. A infncia tem seus meios prprios de ver, pensar, sentir, que lhes so convenientes; [...]. (ROUSSEAU apud COURTNEY, 2001, p.17).

    3A commedia dellarte era, antigamente, denominada Commedia all improviso, commedia a soggeto, commedia di zani, ou na Frana, comdia italiana, comdia de mscaras. Foi somente no sculo XVIII (segundo C. MIC, 1927) que essa forma teatral, existente desde meados do sculo XVI, passou a denominar-se Commedia dellarte. A commdia dellarte se caracterizava pela criao coletiva dos atores, que elaboram um espetculo improvisado gestual ou verbalmente a partir de um cavenas, no escrito anteriormente por um autor e que sempre muito sumrio (indicaes de entradas e sadas e das grandes articulaes da fbula). (PAVIS, PATRICE, 1999, p.61).

    18

  • Na primeira metade do sculo XX, os olhares sobre a relao da educao

    com a sociedade comearam a refletir dois elementos fundamentais para a

    compreenso das propostas pedaggicas do perodo. Um deles foi o ensino de

    tcnicas profissionais e o desenvolvimento das capacidades produtivas do aluno

    para atender a demanda da crescente sociedade tecno-industrial. O outro, as

    investigaes da psicologia, que transformaram radicalmente a concepo de

    infncia e trouxeram a percepo de evoluo da psique infantil e suas

    necessidades especficas para cada etapa de vida da criana. Essas idias, que

    confirmaram o entendimento de Rousseau sobre educao e infncia, influenciaram

    a valorizao de temas como espontaneidade, afetividade, jogo, livre atividade. Tais

    aspectos contriburam para a insero das artes no currculo escolar e,

    paralelamente, orientaram o movimento educacional da Escola Nova. Que tambm

    ficou conhecido no Brasil com o nome de escolanovismo.

    A Escola Nova, cujas bases encontram-se em fins do sculo XIX nos Estados

    Unidos e na Europa, representava um movimento de transformao de concepo

    educacional, baseado na idia de que a escola era o grande impulsionador da

    democratizao da sociedade. (MANACORDA, 1999, p.304/305).

    Para o filsofo e pedagogo John Dewey, um dos responsveis por este

    movimento nos Estados Unidos, a escola e sociedade deveriam ter mais integrao,

    contribuindo, assim, para uma educao mais descentralizada. O movimento

    opunha-se s prticas pedaggicas tidas como tradicionais, visando uma educao

    que pudesse integrar o indivduo na sociedade e, ao mesmo tempo, ampliar o

    acesso de todos escola. No ideal de renovao da educao, estava o respeito s

    caractersticas individuais de cada indivduo, inserindo-o em seu grupo social com

    19

  • respeito sua singularidade, mas como parte integrante e participativa de um

    coletivo.

    O Movimento Escolanovista contribuiu decisivamente para as modificaes na

    prtica pedaggica da arte. Uma das mais marcantes modificaes foi a valorizao

    do processo em detrimento do produto. Ou seja, a importncia da arte na educao

    no estava em produzir, mas, sim, em aprender experimentando. Como objetivos

    especficos, ela se propunha a desenvolver aspectos como a criatividade, favorecer

    a socializao, propiciar o autoconhecimento, desenvolver flexibilidade de adaptao

    a novas situaes, promover a intensificao da percepo e da imaginao, entre

    outros.

    Ao discorrer sobre os pressupostos tericos de Dewey, Koudela apresenta

    exemplificao sobre estes princpios:

    A principal raiz de toda atividade educacional est nas atitudes instintivas e impulsivas da criana e no na apresentao e aplicao de material exterior, seja atravs de idias de outros ou por meio dos sentidos; portanto as atividades espontneas da criana, como jogos, mmica etc., so passveis de serem usados para fins educacionais, ou ainda, constituem o fundamento de mtodos educacionais. (DEWEY apud KOUDELA, 1990, p.19).

    Os jogos, como as brincadeiras, pertencentes ao universo natural da criana,

    no poderiam receber nenhuma imposio de proposta esttica definida a priori,

    pois a criatividade era mais importante do que a veiculao de qualquer contedo.

    Sob a orientao do pensamento da Escola Nova, no comeo do sculo XX,

    os jogos dramticos apareceram como excelentes antdotos ao teatro tradicional

    no meio escolar. De maneira geral, no teatro da escola tradicional, a nfase era na

    exposio verbal, restringindo-se a levar os alunos a decorarem os textos literrios

    para apresent-los nas datas comemorativas. O aluno deveria apenas decorar o

    texto dramtico (clssico, erudito) para recit-lo em cena. As aulas de artes

    20

  • limitavam-se a copiar modelos externos (relao mimtica, cpias do natural). Essa

    forma de teatro no meio escolar foi criticada pelos defensores da Escola Nova por se

    mostrar artificial, rgida, autoritria e por desconsiderar o processo de aprendizagem,

    bem como as necessidades subjetivas dos alunos, tolhendo sua criatividade e

    espontaneidade.

    Segundo Courtney (1980, p.42/43), Winifred Ward criou nos Estados Unidos o

    movimento Creative Dramatics: uma juno de play way, o jogo livre, e teatro para

    crianas, desenvolvido inclusive em comunidades de Bairro. Mas, a primeira

    formulao de jogos dramticos foi em 1917 com Caldwell Cook (play way ou jogo

    de regras). Seu mtodo estava formulado por trs princpios bsicos:

    1. Proficincia e aprendizado no advm da disposio de ler ou escutar, mas da ao, do fazer, e da experincia;

    2. bom trabalho mais freqentemente resultado do esforo espontneo e livre interesse, que da compulso e aplicao forada;

    3. meio natural de estudo, para a juventude, o jogo. (COOK apud COURTNEY, 1980, p.43).

    Podemos perceber que, no comeo do sculo XX, a Europa e os Estados

    Unidos tinham idias coincidentes sobre transformaes no mbito do teatro e da

    educao. Para ambos os contextos culturais, h uma dicotomia evidente entre

    teatro e drama. Teatro pode ser identificado como arte profissional, sofisticada,

    produto tradicional adulto no relacionado ao universo infantil. J o drama era

    entendido como prtica correspondente s necessidades emocionais e psicolgicas

    da criana.

    As idias de Dewey e do crtico de arte e poeta ingls Herbert Read, autor do

    livro Education Through Art, de 1943, contriburam para uma renovao

    educacional brasileira. O pedagogo e filsofo Ansio Teixeira foi um dos

    responsveis pela introduo e expanso das idias de Dewey no Brasil. Tambm o

    21

  • artista plstico Augusto Rodrigues, que em 1948, fundou com um grupo de

    educadores, a Escolinha de Arte do Rio de Janeiro. A Escolinha de Arte tornou-se

    um centro de treinamento de professores de arte, formando profissionais que iriam

    fundar e orientar outras unidades no Brasil e na Amrica Latina.

    No mbito do Teatro-Educao, as idias sobre criatividade e espontaneidade

    foram bastante difundidas atravs das propostas do Ingls Peter Slade.

    Seguindo a idia de que o jogo dramtico inerente natureza humana, o

    pedagogo Peter Slade publicou em 1954, na Inglaterra, o livro Child Drama,

    defendendo que, atravs dos jogos dramticos, podem-se atingir objetivos amplos,

    como criatividade, imaginao e espontaneidade. Alm de distinguir jogos

    dramticos de teatro, Slade estabelece posio importante para os jogos no

    currculo escolar.

    Teatro significa uma ocasio de entretenimento ordenada e uma experincia emocional compartilhada; h atores e pblicos, diferenciados. Mas a criana, enquanto ilibada, no sente tal diferenciao, particularmente nos primeiros anos cada pessoa tanto ator quanto auditrio. (SLADE, 1978, p.18).

    As diversas interpretaes, no Brasil, sobre as idias de Dewey e tambm de

    Peter Slade, contriburam para elementos como a espontaneidade, criatividade e

    expresso livre, mais que uma das caractersticas do universo infantil, se tornassem

    objetivos a serem atingidos atravs do Drama.

    Se por um lado as concepes da Escola Nova foram importantes para

    romper com os padres estticos e metodolgicos tradicionais, por outro, as

    interpretaes equivocadas de sua metodologia receberam muitas crticas, por

    criarem uma postura no diretiva, desvalorizando a aprendizagem de contedos

    organizados, assim tudo em arte era permitido em nome da livre-expresso. Nesse

    22

  • sentido, a expresso era considerada uma descarga de sentimentos, uma liberao

    emocional reconstruda pela arte. (BARBOSA, 2002, p.19).

    Cabe destacar que paralelo recepo e difuso no Brasil das idias de

    Dewey, Read e Slade no meio educacional nas dcadas de 1950 e 1960, Augusto

    Boal e o teatro de Arena formavam uma nova concepo de espetculo e de

    espectador. Em 1959, Boal inaugurou junto ao Arena um Laboratrio de

    Interpretao com objetivo de integrar mais uma platia popular e participativa. Muito

    embora as experincias populares de Boal voltadas aos temas sociais no

    estivessem inseridas diretamente nas escolas, sua prtica e bibliografia sobre jogos

    teatrais tambm influenciaram as prticas de teatro em comunidades e no mbito

    escolar. Podemos entender que no Brasil diferentes abordagens teatrais dentro ou

    fora da escola contriburam para conformar diferentes metodologias teatrais no

    mbito educacional.

    Ao retomarmos as influncias que fazem conexo e so bases fundantes da

    metodologia de Spolin, podemos destacar, do movimento de renovao educacional

    que emerge nos anos de 1920 e 1930 nos Estados Unidos e Europa, alguns pontos

    fundamentais. Um deles, a experincia teatral realizada atravs de jogos. Tambm

    marcante em sua fundamentao terica, est o estmulo espontaneidade e

    criatividade. Nos anos de 1920 e 1930, em que a educao escolar dos Estados

    Unidos realizava transformaes importantes atravs do jogo livre com crianas,

    Spolin desenvolve uma experincia como aluna de Neva L. Boyd, especialista em

    jogos recreativos. Em sua nota de agradecimentos publicada no livro Improvisao

    Teatral, Spolin deixa explcita a influncia que recebeu de Stanislavski e de Boyd.

    Sobre esta ltima, a professora Koudela (1980, p.40) esclarece que:

    23

  • Neva Boyd, especialista em jogos recreativos, lecionou na universidade de Northwestern (1927). Em Handbook of Recreational Games, defende a relao entre jogo e educao social da criana. Ressalta a importncia de danas folclricas e dramatizaes, alertando sempre para o valor intrnseco que elas possuem para a educao. Compilou jogos tradicionais de vrias culturas (Folk Games and Maravia e Folk Games of Denmark, ambos publicados por H. T. Fitz Simons Co.

    Mais tarde, Spolin desenvolve experincia teatral com meninos e meninas,

    durante mais de dez anos, em Hollywood, no Young Actors Company. A esta

    experincia, a autora atribui sua primeira abordagem direta com o ensino do teatro

    numa perspectiva no verbal, dando nfase s possibilidades corporais do aluno.

    Sua obstinao pela pesquisa em Improvisao como mtodo de ensino de teatro

    recebe influncias de Paul Sills, seu filho, de tal forma que, em seus

    agradecimentos, cita-o como o fundador do primeiro teatro improvisacional dos

    Estados Unidos, denominado Compass (1956-1958).

    O teatro no meio escolar tomou grandes propores nas dcadas de 1950 e

    1960 nos Estados Unidos e Europa. Mesmo com diferentes formas de abordagens,

    as novas concepes da poca tinham em comum a idia de prtica teatral por meio

    de jogos. (COURTNEY, 2001, p.44). As inmeras formas de abordagens teatrais

    atravs de jogos possuam diferentes concepes filosficas e diferentes objetivos a

    serem alcanados no meio escolar. Um exemplo, ainda utilizado em nossos dias, a

    utilizao de jogos dramticos como mtodo de ensino para contedos curriculares

    como literatura, lnguas, entre outros.

    Esta forma instrumental de conceber o teatro na educao, fundamentada

    no desenvolvimento de habilidades e comportamentos desejveis, insere-se numa

    perspectiva de arte-educao denominada Contextualismo.4 Essa nomenclatura foi

    4 Contextualismo enfatiza as conseqncias instrumentais da arte no trabalho educacional, baseado na dinmica interativa entre objetivos, mtodos e contedos nas necessidades dos estudantes ou da sociedade. [...] um programa educacional - tanto em seu significado quanto em suas finalidades s pode ser adequadamente determinado aps se conhecer o contexto no qual ele funcional. Nesse

    24

  • concebida pelo professor da Standford University, Califrnia, Elliot Eisner. Entre os

    defensores do Contextualismo, h os que propem que qualquer projeto em arte-

    educao5 deve levar em conta as necessidades sociais em que vive o educando,

    tendo por objetivo viabilizar a reflexo sobre o contexto socioambiental em que se

    encontra envolvido. Tal forma de conceber o teatro na educao passou a ser

    questionada na segunda metade do sculo XX. Alguns arte-educadores entendiam

    que o contextualismo no considerava a especificidade da arte, mas a colocava a

    servio de objetivos extrateatrais.

    Como alternativa ao Contextualismo, surge outra abordagem em arte-

    educao, o Essencialismo.6 Este defende que a importncia da arte na educao

    est na especificidade de sua linguagem. Isto , a arte possui valor em si prpria e

    seu objetivo principal vivenci-la. Assim, os arte-educadores entendem que a

    presena da arte na formao do educando contribuiria com outros elementos e

    formas de apreender a realidade. A experincia esttica tem papel relevante na

    educao medida que um fator singular de conhecimento e comunicao com o

    mundo que nos cerca. Para a concepo essencialista, o papel do professor no

    mais consiste em ocupar um lugar passivo, apenas como observador do

    desenvolvimento espontneo do aluno. Suas prticas devem ser planejadas para

    que o processo de aprendizagem acontea. Tambm essa perspectiva considera

    contexto, ambas as caractersticas, quer sejam dos estudantes quer sejam da maioria da sociedade, devem ser consideradas. (EISNER, 1972, p.2 ).

    5 O conceito de arte-educao est associado ao movimento de organizao de professores de arte surgido na dcada de 80. (Parmetros Curriculares Nacionais: Arte, 1998, p.28).

    6 O Essencialismo enfatiza tipos de contribuio para a educao e para a experincia humana, os quais somente a arte pode oferecer, ou seja, so prprios e nicos da arte. Vale dizer: o que a arte tem a contribuir para a educao do homem est, precisamente, naquilo que outras reas de estudo no podem proporcionar. [...] qualquer programa de ensino da arte que venha us-la como instrumento para alcanar outras finalidades que no aquelas nicas e prprias arte estar diluindo a experincia artstica e, nesse sentido, retirando do educando aquilo que a arte tem a oferecer. (EISNER, 1972, p.7).

    25

  • fundamental que o aluno tenha acesso histria da arte e saiba fazer leitura da obra

    artstica.

    Sabemos que na complexidade da prtica torna-se difcil estabelecer uma

    clara diferenciao entre Essencialismo e Contextualismo. Embora alguns

    educadores inclinem-se mais por uma ou outra perspectiva, ambas acabam, muitas

    vezes, tendo presena simultnea no processo de ensino aprendizagem em teatro.

    Dentro das diferentes perspectivas em arte-educao, a metodologia de Spolin

    aproxima-se da perspectiva Essencialista. A autora defende a idia de que o teatro,

    no mbito da educao, deve ser desenvolvido atravs da conveno teatral. Para

    tanto, sugere que o jogo dramtico infantil deva se transformar em comportamento

    comunicvel de palco. Assim, supera a concepo de Teatro-Educao, que

    defende os jogos dramticos apenas como possibilidade de livre-expresso ou,

    apenas, como vivncia subjetiva do aluno. (PUPO, 1986, p.7).

    Embora a metodologia de Spolin esteja inserida dentro da perspectiva

    Essencialista, e, em seu livro Improvisao para o Teatro nos captulos especficos

    que apresentam os jogos teatrais, possa se evidenciar que o ensino da linguagem

    teatral est sempre presente como medida objetiva, priorizando a dimenso esttica

    em detrimento das necessidades socioculturais ou psicolgicas dos alunos,

    possvel constatar, sobretudo no captulo Teoria e Fundamentao do livro de

    Spolin, a preocupao em construir uma prtica pedaggica que se mostre como

    alternativa aos problemas que a arte, a educao e a sociedade como um todo,

    naquele contexto, vinham se defrontando. A autora aborda itens como criatividade,

    autoritarismo, espontaneidade, liberdade pessoal, intuio, entre outros. Contudo,

    nas dcadas de 1960 e 1970, a ateno a esses valores no estava restrita apenas

    26

  • ao mbito da discusso pedaggica, mas fazia parte de discusses mais amplas,

    como restituio de valores humanos alienados por fatores sociopolticos.

    A complexidade das transformaes socioculturais do ps-guerra e mais

    especificamente dos vulcnicos anos de 1960 influenciaram as formulaes do

    trabalho de Spolin. Podemos observar isso quando percebemos que Spolin trata em

    seu livro questes como o autoritarismo. Um dos elementos chaves para se pensar

    a revoluo de costumes das dcadas de 1950 e 1960.

    Por isso, para compreender as bases do pensamento de Spolin,

    interessante tambm observar como sua metodologia emerge em um momento

    histrico de transformaes que redefiniro o campo da cultura. O impacto das

    transformaes dos perodos das dcadas de 1950 e 1960, na Europa e Estados

    Unidos devem-se aos movimentos de apoio aos processos de liberao nacional do

    Terceiro Mundo, movimentos pacifistas contra a guerra do Vietn, movimento hippie,

    protestos estudantis (cabe destacar o fenmeno do maio de 68)7, entre outras

    significativas lutas polticas. Junto a esses movimentos, novos fenmenos artsticos

    culturais surgiram contestando o sistema poltico norte-americano. O conflito do

    Vietn foi um grande impulsionador de discusses dos temas como a violncia, o

    militarismo norte americano, o colonialismo e o racismo. O contexto teatral no

    ficava margem desse processo. Como afirma o historiador De Marinis, os

    principais pontos de convergncia de grupos artsticos expoentes do perodo

    incluam temas que abordavam essas questes, mesmo que indiretamente e de

    7 Maio de 1968: Movimento poltico e cultural que teve a Europa como impulsionador e o artista e filsofo Guy Debord como uma das figuras principais. (JEPP, 1999). Este movimento se estendeu a vrios pases como Estados Unidos, Mxico e Japo. Entre Maio e Junho de1968 ocorreram grandes manifestaes estudantis que, alm de lutar pela democratizao das universidades tambm contestavam o modo de vida da sociedade capitalista. A juventude criticava a violncia, o consumismo e o autoritarismo presente em todos os aspectos da vida cotidiana. Propunham a criao de uma sociedade sem opresso, na qual o ser humano pudesse viver livre.

    27

  • forma no realista. Ele aponta como caractersticas que marcaram de forma geral os

    movimentos artsticos da poca:

    O impulso para a experimentao de novos modos de produo cultural e artstica, bem como tendncia a autonomia com relao s instituies artsticas do sistema vigente e uma prtica esttica concebida como prtica social generalizada acessvel a todas as pessoas excludas at aquele momento. (DE MARINIS, 1988, p.281/282).

    Nos Estados Unidos, surgiram diferentes formas teatrais em oposio ao

    sistema de mercado representado pelo show business. O teatro de vanguarda norte-

    americano estava constitudo de grupos como o Open Theatre, o Living Theater e o

    Bread and Puppet. Grande parte dos grupos experimentais optou por sobreviver fora

    do mercado da arte e objetivavam transcender a institucionalizao dos museus e

    academias. Tais grupos davam nfase criao coletiva, experimentao,

    improvisao e transitoriedade do espetculo, como, por exemplo, o happening,

    para descobrir novas formas de comunicao com o pblico. Quando se refere s

    influncias culturais decisivas para maio de 68, De Marinis cita alguns nomes

    fundamentais que influenciaram aqueles anos, no que se refere luta pela

    organizao de uma nova maneira de conceber a cultura e praticar a arte. Nesta

    lista, entre outros, esto Debord8, Adorno, Lefbvre e Benjamin. Do universo do

    pensamento de esquerda que marcou as lutas e processos de renovao dos anos

    de 1960 Walter Benjamim cumpriu um papel destacado influenciando educadores,

    homens de teatro e intelectuais de esquerda com seu Programa para um teatro

    infantil proletrio, escrito em 1928, mas publicado na revista Alternative, justamente

    8 A Internacional Situacionista (IS) foi um movimento contestador surgido em 1957, cuja atuao foi marcante em todo o processo de luta poltica, ideolgica e cultural que culminou nos acontecimentos de 1968. O movimento, que teve em Guy Debord seu pensador mais influente, deixou como principal herana terica A Sociedade do Espetculo. A IS deixou de existir em 1972. (N. da T. de A Sociedade do Espetculo).

    28

  • em 1968. verdade que o referido programa est fundado nos referentes polticos

    marxistas. No entanto, longe de entender o teatro na educao como um lugar de

    militncia no sentido estritamente relacionado funo didtica do termo, Benjamin

    considera o teatro infantil um lugar correspondente aos aspectos como jogo,

    espontaneidade, improvisao e experincia coletiva. Ao falar das diferentes formas

    de expresso para a criana, como msica, dana e recitao, o autor destaca a

    improvisao no interior da prtica teatral:

    [...] em todas elas a improvisao permanece como central. Pois, em ltima instncia, a apresentao apenas a sntese improvisada de todas. A improvisao predomina; ela a constituio da qual emergem os sinais, os gestos sinalizadores. E encenao ou teatro deve, justamente por isso, ser a sntese desses gestos, pois se manifesta de maneira inesperada e apenas uma nica vez, mostrando-se portanto como o autntico espao do gesto infantil. (BENJAMIN, 1984, p.86).

    importante observar, ainda, que, mesmo tendo influncia do pensamento de

    esquerda caracterstico da poca, muitos grupos teatrais de vanguarda, como o

    Open Theatre, no compartilhavam a idia de desenvolver no pblico a conscincia

    de classe ou fazer uma revoluo socialista. Pensavam que as transformaes da

    sociedade e do teatro poderiam comear, sim, pelo teatro, mas no que se refere,

    sobretudo, revoluo esttica. A liberdade deveria partir do inconsciente e no da

    conscincia de classe marxista. Podemos observar essa concepo nas palavras do

    fundador do Open Theatre, Chaikin:

    A sofisticao de nossa poca, diz Chaikin em seus apontamentos, bloqueou boa parte de nossa resposta humana total. Os atores devem abrir-se novamente, tornar-se novamente ingnuos e inocentes, cultivar a atmosfera interior: o medo, por exemplo. (CHAIKIN apud CARLSON, 1997 p.407).

    29

  • De Marinis (1988, p.278), afirma que as caractersticas que marcaram os

    movimentos da poca, como os questionamentos do modo de produo teatral

    dominante, estavam acompanhadas de uma caracterstica comum fundamental: um

    repdio a representao entendida como reproduo fictcia simulao ilusria do

    produto do espetculo como mercadoria no circuito capitalista de mercadorias. Mas

    necessrio considerar que, mesmo tendo em comum o repdio ao sistema

    capitalista como um dos impulsionadores do movimento, os grupos teatrais

    produziam segundo estticas diferentes. Alguns grupos defendiam a idia de colocar

    o teatro a servio de uma ao poltica direta, combatente, objetivando uma

    formao politizada da opinio pblica, como, por exemplo, o Teatro Campesino.9

    Outros propunham a idia de que o teatro devia considerar as especificidades de

    sua linguagem e preservar sua autonomia. Nesse caso, a dimenso revolucionria

    do teatro estaria na sensibilizao esttico-ideolgica de seus participantes e do

    pblico. Esse era o caso do Open Theatre (1963-1973), grupo que utilizava

    sistematicamente a improvisao teatral para a composio dramtica e cnica.10

    A concepo teatral dos grupos de vanguarda da dcada de 1970 trazia o

    desejo de restituir e restaurar no homem sua integridade, identidade, liberdade,

    enfim, a arte teatral trazia o ideal de transformao e restituio de valores humanos

    que, naquele momento, estavam aviltados por fatores sociopolticols. Muito embora,

    o ideal de transformao poltica e cultural, para alguns grupos, no estivesse

    9 O Teatro Campesino teve como fundador Luis Miguel Valdez. Criado em 1965, tinha como finalidade: Incitar o pblico para luta poltica. Ilustrar pontos especficos de problemas sociais. Satirizar a oposio. Mostrar ou sugerir uma soluo. Expressar o que sentiam as pessoas. (VALDEZ, 1971, p.6 apud De MARINIS, 1988, p.165).

    10 Segundo De Marinis (1988, p.153), Em seus dez anos de existncia esse grupo foi o mais reconhecido nos Estados Unidos como teatro de investigao mais rigoroso, preocupado pelas questes da tcnica atoral e do mtodo de encenao e das relaes com uma nova escritura cnica, antinaturalista e no psicolgica.

    30

  • centrado na denncia, protesto e militncia, estes se apresentaram na histria como

    alternativa que afrontava radicalmente os fenmenos da alienao humana.

    Embora a proposta de Spolin tenha se solidificado fundamentalmente no

    mbito da educao, j nas dcadas de 1960 e 1970, muitas companhias teatrais

    utilizaram, sobretudo, a dimenso improvisacional de sua metodologia para

    construo e pesquisa de espetculos. Essas companhias tinham na metodologia de

    Spolin uma alternativa aos processos de atuaes cnicas tradicionais.

    O historiador Carlson (1997), ao descrever este movimento de renovao

    teatral, afirma que Spolin oferece como metodologia para o Open Theatre a

    improvisao, o que reafirma o forte vnculo de Spolin com as prticas teatrais de

    vanguarda dos anos de 1960. Influenciada pelas idias de liberdade, expresso e

    autenticidade da prtica teatral, a autora constri seu mtodo Improvisacional,

    vinculado educao. Mas o que significava a improvisao teatral naquele

    contexto? Para responder questo, penso ser necessrio estender um breve olhar

    sobre a histria da Improvisao no processo de ensino e aprendizagem em teatro.

    1.1 AS DIMENSES POLTICAS E PEDAGGICAS DA IMPROVISAO NO

    TEATRO

    Sabemos que, em alguns pontos da histria do teatro, a improvisao deixa

    marcas mais significativas que em outros. Um exemplo disso est em nossas

    referncias sobre a Comedia dellArte e no teatro de vanguarda das dcadas de

    1960 e 1970. J no contexto do teatro moderno, a improvisao parece no ter tanto

    31

  • reconhecimento. No teatro moderno, a improvisao era utilizada, sobretudo, como

    instrumento para treinamento do ator, ficando fora da apresentao para o pblico,

    isto , do espetculo.

    Muito embora a linguagem teatral tenha como especificidade o uso do corpo

    do ator em tempo real, sabemos que nem todas as experincias desta arte, ao longo

    da histria, exploravam as inmeras possibilidades corporais. verdade que j no

    final do sculo XIX, artistas e intelectuais de diferentes artes entendiam a

    emergncia de construir uma arte de representar calcada nas possibilidades

    expressivas do corpo humano. A descoberta do corpo no estava vinculada apenas

    ao teatro, mas ela compartilhava as idias predominantes da poca, espalhadas,

    principalmente, por diferentes pases da Europa, dos Estados Unidos e Unio

    Sovitica, como a Educao Fsica, que, em 1880, institucionalizou-se na Inglaterra

    e nos Estados Unidos. A bailarina Isadora Duncan, em 1902, danava com seus ps

    e braos nus e, em 1914, o bailarino russo Nijinsky, considerado o primeiro bailarino

    moderno do sexo masculino, fundou sua prpria companhia em Londres.

    Para os grandes encenadores de teatro, como Stanislavski e Copeau, a

    improvisao no foi elemento de interferncia nos espetculos, mas muitos

    registros mostram que os mesmos incluam a improvisao no processo de

    formao dos atores. (ZAJAVA, 1997, p.33/34). Porm, importante ressaltar que

    no advento do Naturalismo comea a surgir a idia de improvisao como elemento

    que diz respeito a autonomia criativa do ator e, tambm, como possibilidade de

    criao de um texto dramtico. Zavaja, discpulo do diretor e pedagogo Vajtangov,

    afirma que, em 1912, Gorki escreve a Stanislavski, sugerindo ao mesmo a idia de

    que os atores poderiam improvisar o texto e montar um espetculo improvisado. Tal

    32

  • idia vem acompanhada de reflexes sobre o lugar da criatividade e da

    subjetividade na prtica do aluno-ator.

    A maioria das pessoas no elabora representaes subjetivas; quando quer conferir uma forma clara e precisa ao que experimentou pe em obra formas j feitas, utiliza palavras de outros, imagens e representaes de outros, se submete s opinies reconhecidas e constitui o que lhe pessoal como algo estranho. [...]. A tarefa que se estabelece a cada um de encontrar seu eu, encontrar sua atitude subjetiva para a vida para seus congneres, para um fato concreto e materializar esta atitude sob formas e palavras pessoais. (GORKI apud ZAJAVA, 1997, p.30).

    Gorki sugeriu exerccios de improvisao que interessaram a Stanislavski e

    que ambos experimentaram no Studio do Teatro de Arte de Moscou (TAM), mas a

    improvisao acabou no sendo muito desenvolvida nas atividades deste Studio,

    pois a valorizao dos textos literrios e o foco da interpretao dos atores ainda

    eram o elemento de maior ateno no teatro. (ZAJAVA, 1997, p.34).

    Outra reflexo sobre o princpio pedaggico da improvisao teatral vem de

    Charles Dullin, ator e diretor, aluno de Jacques Copeau e integrante do Vieux

    Colombier. Para Dullin (1997, p.50), a improvisao teatral era um instrumento que

    estimulava a expresso sensorial dos alunos e, conseqentemente, suas memrias

    e sentimentos. Este considerava importante para a preparao do ator os aspectos

    subjetivos e as experincias pessoais.

    A improvisao obriga o aluno a descobrir seus prprios meios de expresso. Alguns exerccios muito simples de improvisao vo abrir os olhos deste aluno sobre uma das leis fundamentais de nossa arte, cuja ignorncia est na base de todas estas torpezas; sentir antes de tentar expressar mirar e ver antes de descrever o que avisto, escutar e ouvir antes de responder a um interlocutor.

    A partir do exposto acima, observamos que a improvisao, alm de se

    oferecer como tcnica atorial, era entendida como instrumento pedaggico, que

    33

  • favorecia o desenvolvimento da personalidade do aluno. Mas, de maneira geral,

    mesmo quando objetivava fortalecer o processo criativo do ator, no teatro moderno,

    a improvisao estava mais voltada para o aprimoramento da tcnica teatral. J nos

    movimentos artsticos das dcadas de 1960 e 1970, em que a improvisao passou

    a ser um fenmeno extrateatral, ou seja, mais que um treinamento, a improvisao

    simbolizava liberao e protesto esttico, poltico e cultural. Para aqueles grupos, a

    improvisao teatral consistia, sobretudo, em um princpio tico e ideolgico.

    Diferentes grupos trabalhavam com nfase na tcnica atorial antinaturalista.

    Como grande parte dos grupos da poca, este grupo se opunha construo dos

    personagens como entidade coerente, fixa, como modelos inalterveis da natureza

    humana, a partir do mtodo Naturalista, modelo teatral dominante nos teatros

    comerciais dos Estados Unidos. Para o movimento teatral de vanguarda, superar o

    mtodo de Stanislavski representava uma tentativa de resistir noo tradicional e

    hegemnica do fenmeno teatral, muito embora, no comeo do sculo, diferentes

    pesquisas teatrais tenham surgido, contrapondo-se ao mtodo Naturalista,

    dominante nos palcos comerciais de Nova York e Hollywood.

    No mtodo Naturalista, a preparao do aluno-ator era centrada no

    treinamento da voz, para expressar o texto que se caracterizava pelo grande

    repertrio clssico, e na interpretao fundamentada apenas na emoo do ator. O

    teatro de renovao americano valorizava o corpo em detrimento da palavra e a

    coletividade como lugar onde a dimenso individual podia ser reconhecida. Assim,

    como matriz, a funo da improvisao teatral era funcionar como instrumento da

    tcnica atoral, com objetivo de enfatizar a expresso corporal, o que,

    conseqentemente, libertaria o ator das amarras do texto dramtico. A prtica de

    34

  • apresentaes a partir de fragmentos escolhidos das improvisaes recorrente no

    Open Theatre.

    Nesse ambiente, o uso da improvisao teatral tornou-se uma tcnica

    poderosa considerada como veculo de protesto e contestao. Cabe dizer, que isso

    tambm era uma resistncia ao teatro centralizado no texto literrio, pois, alm de

    conter um potencial para a experimentao, por contar com a ao direta no aqui e

    agora, estimulava a participao ativa da platia para que participantes leigos e

    atores pudessem explorar as diferentes dimenses humanas, at ento

    desconsideradas, como suas contradies, seus conflitos e seus desejos. Essa

    concepo estava ligada idia de liberdade, expresso e harmonia. Juntos, esses

    aspectos eram considerados essenciais para formar o homem em sua totalidade.

    Jameson (2001, p.75), em seu livro A cultura do dinheiro, ao se referir s

    prticas teatrais deste perodo, afirma que:

    [...] esse foi um perodo apaixonadamente poltico, e que as inovaes artsticas, e em particular as inovaes teatrais, mesmo daqueles encenadores e diretores mais estetizantes e menos conscientes politicamente, eram sempre ancoradas na convico firme de que a produo teatral era tambm um tipo de prxis, e que mudanas no teatro por mnimas que fossem, eram contribuies a uma mudana genrica da prpria vida, do mundo e da sociedade da qual o teatro era tanto uma parte quanto um reflexo.

    Spolin compartilha com os grupos de vanguarda da dcada de 1960 a idia

    de improvisao como prtica teatral que legitima valores como liberdade,

    espontaneidade e transformao, entre outros. No contexto da dcada de 1960, a

    espontaneidade foi uma palavra bastante usada para a discusso do fenmeno

    teatral. Podemos lembrar alguns autores que, embora no tenham sido do mbito do

    Teatro-Educao, exerceram influncias na sua configurao. Um deles, o

    psicodramatista Jacob Levy Moreno, criador do teatro da espontaneidade, que, na

    35

  • primeira metade do sculo XX, migrou da Europa para os Estados Unidos, inventou

    um mtodo chamado Criaturgia, em oposio ao texto dramtico. Para ele, a vida

    cotidiana oferecia situaes que deveriam ser revividas no palco, dispensando o

    texto dramtico escrito a priori. Em seus preceitos, Moreno tece consideraes

    sobre o mtodo de Stanislavski, afirmando que este estaria a servio de uma

    cultura de conservas. Esse termo relacionava-se s crticas constantes aos

    processos da tecnologia e do consumo.

    O nosso mundo necessita de uma glorificao do ato criador, preciso elaborar uma filosofia do criador como um corretivo anti-mecnico de nossa poca. (MORENO apud CHACRA, 1983, p.47).

    No interior das improvisaes realizadas pelos grupos de vanguarda e de

    forma mais ampla, nas dcadas de 1960 e 1970, a espontaneidade esteve

    relacionada s esferas poltica, educacional e esttica. Improvisao teatral e

    espontaneidade relacionavam-se livre-expresso, liberdade, criatividade e

    autenticidade. Quando se refere a espontaneidade no seu sistema de jogos

    improvisacionais, Spolin (2001, p.4) afirma:

    Nessa espontaneidade, a liberdade pessoal liberada, e a pessoa como um todo fsica, intelectual e intuitivamente despertada. Isto causa estimulao suficiente para que o aluno transcenda a si mesmo - ele libertado para penetrar no ambiente, explorar, aventurar e enfrentar sem medo todos os perigos.

    Quando Koudela especifica as caractersticas dos jogos teatrais em Spolin,

    dedicando-se a fazer esclarecimentos sobre o gesto espontneo, a autora previne

    quanto s conseqncias do uso generalizado do termo espontaneidade e ao risco

    da compreenso desse conceito como falta de rigor para o trabalho teatral. Koudela

    afirma que o deixar livre no se equipara ao espontnea de Spolin, pois

    36

  • observa que, quando deixamos os alunos totalmente livres, imediatamente, surgem

    modelos de atuao estereotipados.

    Ao espontnea no equivale simplesmente a ao livre. O processo de deixar fazer na viso espontanesta de ensino ainda no define ao espontnea. [...]. Ao trabalhar com a associao de idias (estria) o jogo de improvisao permanece ainda no plano cerebral. A ao espontnea exige uma interao entre os nveis fsico, emocional e cerebral. (KOUDELA, 1990, p.51).

    Nesse caso, o processo espontneo em sua metodologia relaciona-se,

    sobretudo, ao gesto centrado no aqui-e-agora, construdo na interao com os

    demais participantes do jogo inerente improvisao teatral.

    Observa-se que, subjacente aos preceitos de Spolin, esto as idias de

    autenticidade e espontaneidade como possibilidade de recuperao e reintegrao

    do sujeito com sua produo humana criativa. Segundo a autora, essas

    potencialidades humanas esto oprimidas pelo autoritarismo que, em cada poca

    histrica, apresenta-se de forma diferente.

    Ao se referir ao autoritarismo, Spolin (2001, p.8) afirma que:

    [...] autoritarismo (que) tem mudado de rosto ao longo dos tempos, passando do rosto do pai ao rosto do professor e, atualmente, ao da estrutura social como um todo.

    Referindo-se aos preceitos de Spolin, sobre a perda de valores como

    criatividade, liberdade pessoal e espontaneidade, que so embotados pelas diversas

    faces do autoritarismo, Carlson (1987, p.407) comenta que:

    Na tentativa de aplacar esse juiz exterior, perdemos a capacidade de nos relacionar pessoal e organicamente com o mundo, distanciamo-nos tanto de nosso eu quanto de nossa arte. Para Spolin a improvisao teatral um meio de superar essa perda. J que a vida e o teatro esto sempre colocando crises e escolhas diante de ns, o segundo pode levar-nos a uma opo espontnea e natural, a uma constante recriao do eu em resposta ao mundo, o que Spolin chama de transformao. (grifo do autor).

    37

  • Para Spolin, combater o autoritarismo atravs da liberdade pessoal o

    primeiro passo para exercer a criatividade e a transformao. A criatividade,

    considerada base para a construo de um teatro autntico, seria tolhida pelo

    autoritarismo.

    O autoritarismo estende-se desde as instituies polticas, familiares e

    trabalhistas at as formas artsticas, surgidas a partir da presena massiva das

    tecnologias a servio da comunicao e do consumo, como publicidade comercial,

    hiperdifuso do cinema de Hollywood, consumo de alimentos enlatados e TV,

    representa uma ameaa liberdade do homem, pela imposio da automatizao

    que determina atitudes e idias. Spolin tambm observa, como fenmeno paralelo, a

    expanso autoritria do consumo e do autoritarismo no interior do prprio teatro,

    representada pela total hegemonia da figura do diretor ou do texto dramtico.

    Spolin no concebia o autoritarismo como fenmeno caracterstico da luta de

    classes. Esta no tinha o propsito de criar uma pedagogia que levasse o indivduo

    a identificar, no contexto sociopoltico existente, o motivo para a perda de valores

    como criatividade e liberdade pessoal.

    Apesar de Spolin no fazer em seus textos referncia explcita idia de

    alienao, possvel observar que, para a autora, as transformaes emergentes

    sob o efeito da tecnologia a servio do consumo e da guerra alienam o sujeito de

    sua humanidade, de sua dimenso sensvel, espontnea, criativa. Para a autora, a

    produo humana criativa que se encontrava separada, isto , alienada do indivduo,

    poderia recuperar sua integridade e totalidade atravs da arte em oposio ,

    alienao do homem ou do seu ser-prprio em relao a si mesmo s suas

    possibilidades humanas.

    38

  • Nas dcadas de 1960 e 1970, j estava instalada a discusso sobre a

    problemtica da tecnologia to polemizada atualmente. Mas a sociedade de ndole

    tcnoesttica ainda no teria adquirido as propores atuais. Considerando que a

    proposta de Spolin apresenta-se como uma tentativa de resistir noo tradicional e

    hegemnica do fenmeno teatral, percebe-se que tal proposta aproxima-se da busca

    de uma prtica relacionada a objetivos pedaggicos para se formular um elemento

    de resistncia aos modelos hegemnicos de sua poca.

    A nfase na criao coletiva, na experimentao grupal; a improvisao

    teatral como recurso para a composio textual; a valorizao do corpo em oposio

    palavra instituda no texto dramtico tradicional. So algumas das caractersticas

    pertencentes s transformaes do teatro de vanguarda norte-americano. Tais

    caractersticas contriburam para conformar os procedimentos metodolgicos

    descritos no livro Improvisao para o Teatro. Alguns desses procedimentos sero

    analisados no prximo captulo.

    39

  • II CAPTULO

    2 O CONTEXTO DA PS-MODERNIDADE E OS PROCESSOS DE INDISTINO

    ESTTICA

    Muito embora o termo ps-modernismo, freqentemente, esteja associado a

    movimentos culturais produzidos por artistas, intelectuais e acadmicos, trato aqui

    de no restringi-lo apenas ao campo do estilo, mas, como j expus, de utiliz-lo

    como um conceito que se refere a mudanas mais amplas, como uma nova lgica

    cultural.

    Segundo Jameson (2000), necessrio entender que o conceito de ps-

    modernidade ou ps-modernismo deve ser lido como um momento histrico.

    Sobretudo porque j nos esquecemos de pensar historicamente o presente.

    Nesta proposio est circunscrita grande parte da problemtica que

    Jameson identifica como uma das categorias que representam o ps-modernismo. O

    autor transita por uma srie de derivados do termo, como ps-moderno ou ps-

    modernidade, sem se preocupar em manter sistematicamente um termo preciso.

    Como observa Jameson (2000, p.14):

    [...] o modo pelo qual, nesse perodo, inmeras anlises de tendncias, de natureza bastante diferente - previses econmicas, estudos de marketing, crticas de cultura...- se aglutinam todas para formar um novo gnero discursivo, a que podemos muito bem denominar de teoria do ps-modernismo.

    40

  • Ps-modernismo o termo que, para o autor, contempla uma srie de

    manifestaes da cultura contempornea, como os espaos urbanos, os vdeo, o

    teatro, as artes visuais, a literatura e o hapening. Ao tentar descortinar a estrutura

    subjacente das diferentes manifestaes culturais, o autor as situa no ps-

    modernismo, concebendo este como um perodo mais definido, como uma

    dominante cultural ou a lgica cultural do terceiro estgio do capitalismo - o que

    chama de capitalismo tardio - cuja ascenso estaria situada no perodo logo aps a

    Segunda Guerra Mundial.11

    Aps a Segunda Guerra Mundial, o impulso da industrializao e da

    tecnologia avanada exprimiu o dinamismo do sistema social capitalista tardio, de

    consumo ou multinacional. Essa transformao da cultura oferece instrumentos para

    detectar o ps-moderno, que se deu mediante: Uma dilatao incessante da esfera

    da mercadoria, uma aculturao do real historicamente original, num salto quntico

    que tem como conseqncia a estetizao da realidade. (JAMESON, 2000, p.14).

    Quando Jameson (2000) refere-se esfera da cultura no ps-modernismo,

    considera o termo cultura como algo que implica arte e manifestaes culturais de

    modo geral, tais como atividades de rotina, subsistncia e de lazer. A cultura

    concebida na ps-modernidade j no se restringe a uma esfera autnoma que

    representa os cnones estticos do modernismo, mas, sim, um componente do

    mecanismo do sistema capitalista. A cultura estaria ento conformada em uma nova

    situao: agora, totalmente imersa na lgica da mercadoria e da imagem. A partir

    dessas reflexes, Jameson aponta para a intensificao dos mecanismos de

    11 Analisando o estgio atual do capitalismo, Jameson (2000) segue a categorizao de Ernest Mandel, em Capitalismo Tardio e distingue trs pocas da expanso capitalista: capitalismo de mercado, caracterizado pelo incremento do capital industrial, sobretudo em mercados nacionais; capitalismo monopolista ou imperialista, em que os mercados tornaram-se mundiais, organizados em torno de naes-estado; e, finalmente, a fase ps-moderna do capitalismo multinacional, marcada pelo crescimento exponencial das corporaes internacionais e superao das fronteiras nacionais. Movimento este que, hoje, denominamos correntemente de globalizao.

    41

  • alienao a que nossas prticas sociais, artsticas, esto submetidas na ps-

    modernidade. Frente a esta realidade, na qual cultura e economia parecem se

    colapsar mutuamente, seria necessrio e urgente a leitura do perodo atual, que ele

    denomina ps-modernidade ou ps-modernismo, como fenmeno histrico, portanto

    transitrio. preciso pensar a contemporaneidade como um modelo scio-

    econmico que tem a cultura como sua lgica de sustentao, mas que no seria

    uma dilatao infinita do Capitalismo, seno uma situao histrica precisa que

    demanda uma leitura crtica.

    Embora Jameson assinale em sua obra algumas caractersticas do ps-

    modernismo, tambm mencionadas por outros autores, como uma certa confuso

    estilstica, a morte da hierarquia entre alta-cultura e cultura popular, a ausncia de

    profundidade da cultura e declnio da originalidade, este insiste que o perodo

    posterior modernidade, com o prefixo de ps, possui especificidades que vo

    alm da to aclamada perda da tradio ou da identidade. Quando examinamos as

    caractersticas do ps-modernismo, pontuadas por Jameson (2000, p.84),

    encontramos uma nfase no apagamento das fronteiras entre arte e vida cotidiana,

    na sobrecarga sensorial, no desaparecimento da fronteira entre o real e a imagem e,

    conseqentemente, a perda do sentido de histria.

    42

  • 2.1 O TEATRO COMO CERIMNIA SOCIAL DIFERIDA

    Para pensarmos o teatro como prtica social diante das caractersticas ps-

    modernas pontuadas por Jameson, podemos nos remeter anlise empregada pelo

    socilogo francs Jean Duvignaud (1966).

    Dentro de uma anlise sociolgica do fenmeno teatral, encontramos em

    Duvignaud (1966) uma abordagem que nos ajuda a pensar o lugar dessa arte no

    contexto da ps-modernidade. Para o socilogo, o fenmeno teatral possui a

    especificidade de se realizar a partir de criaes mltiplas que envolvem diferentes

    artistas, como o dramaturgo, o diretor e o ator, e a participao do pblico, na

    delimitao do espao teatral. A essas especificidades, o autor d o nome de

    "cerimnia teatral".

    Duvignaud (1966) descreve as representaes inerentes ao convvio social e

    coletivo, para empreender uma anlise da arte teatral e afirm-la enquanto

    fenmeno esttico. Este afirma que a diferena entre situao dramtica e situao

    social no se encontra na oposio superficial entre existncia imaginria e real,

    mas, sim no fato de no teatro a ao ser vista sob a forma fictcia de um espetculo

    que est construdo a partir de critrios estticos. Por isso, para o autor, a cerimnia

    social do teatro diferida, suspendida. Podemos pensar no teatro como prtica

    artstica singular em oposio ao igualamento descrito por Jameson entre arte e vida

    cotidiana. O teatro experincia diferida, porque no a rplica da realidade, no

    a representao tecnicamente consumada como real mas contm em si valor

    expressivo e experincia subjetiva.

    43

  • Podemos pensar que a arte teatral acontece ao vivo e em tempo real,

    utilizando-se essencialmente do corpo como matria prima, representando um locus

    possvel de encontro, de "cerimnia social". Esses atributos, muitas vezes,

    conferem-lhe o status de um fazer singular e artesanal, numa poca de massificao

    dos aparatos tecnoestticos.

    Tambm possvel lembrar que o teatro impe ao espectador uma

    participao direta, uma vivncia fsica, um confronto com uma espacialidade

    concreta, que transcende o espao imaginrio de quem l um texto dramtico.

    Vejamos, ento, como a idia do fim da distino entre imagem e realidade

    evocada por Jameson est orientada pelo pensamento de Guy Debord (1997), autor,

    alis, freqentemente, referenciado na literatura de Jameson.

    2.2 A SOCIEDADE ESPETACULAR E SUA INCESSANTE RENOVAO

    TECNOLGICA

    O binmio tecno-esttica empregado por Debord uma das facetas do

    conceito Sociedade do Espetculo. O autor chama de espetacular a forma como a

    sociedade contempornea organiza-se, isto , com a evoluo do sistema

    econmico capitalista, que tem como alicerce a produo de mercadoria associada

    tecnologia avanada, todo e qualquer momento da vida transformou-se em

    representao. Um dos cinco aspectos principais do estgio atual da sociedade a

    incessante renovao tecnolgica. (DEBORD, 1997, p.175). Para o autor, estamos

    44

  • num estgio de alienao e submisso tirania das mdias a tal ponto, que a juno

    mdiamercadoria faz do espetculo:

    [...] uma nova cosmogonia que dispe do verossmil para impor a representao de um mundo de ndole tecno-esttica. Determinando o permitido e desestimando o possvel, a sociedade espetacular regula a circulao social do corpo e das idias. (idem, p.175).

    Com o refinamento das tecnologias de comunicao de massa, temos uma

    espetacularizao, em nosso dia-a-dia, dos diferentes momentos da realidade.

    Exemplos so as descries estetizadas das notcias jornalsticas e, at mesmo, da

    guerra. Ainda, mais especificamente no Brasil, temos a espetacularizao da misria

    e da violncia urbana apresentada como um Reality Show. Ao mesmo tempo, essa

    espetacularizao de tudo que nos cerca se d sem um fio narrativo, mas pela

    fragmentao e hiper-estimulao das imagens. Ou seja, a linguagem ou narrativa

    que se relaciona e se identifica com a experincia humana na atualidade a

    imagem. Mas no se trata apenas da quantidade de imagens disponveis ou da

    invaso da mass media em nossas vidas. Trata-se, sobretudo, de transformar

    nossos conflitos, dores, misria e at nossas utopias de mudana social, em fico,

    em representao, em um empilhamento de imagens, de tal forma, que na

    contemporaneidade as relaes sociais so mediadas pelas imagens. Estas

    preenchem todos os lugares, a todo o momento (parecem onipresentes), alcanando

    todos os territrios e as diferentes culturas.12

    12 Nessa abordagem, Debord distingue trs formas de manifestao do espetculo: primeiro, o espetacular concentrado, que concerne ao capital burocrtico, cuja mercadoria controlada justamente o trabalho; segundo, o espetacular difuso, que diz respeito abundncia das mercadorias e sua difuso. importante ressaltar o adendo que Debord fez trinta anos depois da publicao de seu livro, em seus Comentrios sobre a Sociedade do Espetculo: "Da juno das duas formas de poder espetacular, se impe uma terceira: o espetacular integrado que se manifesta tanto no modelo concentrado como no difuso". (DEBORD, 1997, p.172/173).

    45

  • Gostaria de citar aqui uma conceituao ou categorizao de dispositivos

    espetaculares, que, correntemente, denominamos mass media ou cultura

    miditica. Para entender melhor a noo de imagem como elemento chave da

    cultura de massas, interessante observar que o conceito de cultura de massas

    surgiu com o advento da sociedade industrial, na qual se mesclavam o artesanal e o

    industrial. Da, o surgimento das culturas urbanas, dos meios de reproduo

    tecnolgicos (fotografia, jornais, rdio e televiso) e a produo industrial em massa.

    A semioticista Santaella (2003, p.79) desenvolve anlise do conceito:

    A cultura de massas originou-se no jornal com seus coadjuvantes, o telgrafo e a fotografia. Acentuou-se com o surgimento do cinema, uma mdia feita para recepo coletiva. Mas foi s com a TV que se solidificou a idia do homem de massa junto com a idia de mass media.

    A cultura das mdias ou miditica distingue-se da cultura de massas

    devido proliferao de novas tecnologias que no possuem uma narrativa

    coerente, sendo, sobretudo, tecnologias segmentadas, individualizadas, de

    especializaes, oferecendo uma pseudo-opo de escolha: vdeo, CD, walkman,

    selees pessoais na TV a cabo, entre outros. Santaella considera como sinnimo

    de cultura das mdias, a cultura do disponvel, a cultura do acesso.

    A cultura do disponvel intensifica-se a partir da dcada de 1990. A

    multiplicidade das mdias comea a se misturar com a revoluo da informao e da

    comunicao cada vez mais invasora, a qual chamamos de era digital. A mais

    importante transformao oferecida pela cultura digital ter tornado disponvel toda

    e qualquer produo artstica: um texto teatral clssico, uma pintura renascentista,

    um Funk-Rap:

    No cerne dessa revoluo est toda possibilidade aberta pelo computador de converter toda informao - texto, som, imagem,

    46

  • vdeo - em uma mesma linguagem universal. Atravs da digitalizao e da compresso de dados que ela permite, todas as mdias podem ser traduzidas, manipuladas, armazenadas, distribudas digitalmente produzindo o fenmeno que vem sendo chamado de convergncia das mdias. (SANTAELA, 2003, p.60).

    Da juno da informtica com as telecomunicaes, resulta uma exploso nas

    redes de transmisso, acesso e troca de informaes, que, hoje, conectam todo o

    globo na constituio de novas formas de socializao e de cultura, que vm sendo

    chamada de cultura digital ou cibercultura.

    As opes de escolhas ou de interatividade proclamadas pelos meios de

    comunicao, como os programas televisivos, apontam para a oportunidade de

    decidir sobre o filme ou o documentrio que o telespectador quer assistir,

    oferecendo, ainda, a possibilidade deste escolher atravs de e-mail, ou fax, o fim de

    uma histria ou o destino de pessoas que participam de alguns programas

    televisivos. Isso revela uma pseudo-interatividade. A pseudo-interatividade

    oferecida pela tecnologia no proporciona espao para o debate de idias, e,

    dificilmente, considera o que cada indivduo pensa, seus conflitos e suas

    contradies. Interatividade implica em transformao e possibilidade de mudana.

    O universo apresentado pelos meios de comunicao de massa, atravs da hiper

    fragmentao de imagens, no oferece possibilidade de transformao dos

    problemas sociais explorados, porque no possvel historicizar ou contextualizar a

    multiplicidade de imagens desconectadas que nos so apresentadas.

    Em sua crtica sociedade do espetculo, Debord (1997, p.188), afirma que:

    No plano das tcnicas, a imagem construda e escolhida por outra pessoa se tornou a principal ligao do indivduo com o mundo que, antes ele olhava por si mesmo, de cada lugar onde pudesse ir. A partir de ento, evidente que a imagem ser a sustentao de tudo, pois dentro de uma imagem possvel justapor sem contradio qualquer coisa.

    47

  • Esse tipo de fenmeno teria como conseqncia a dificuldade de

    compreenso dos processos culturais e a perda de autonomia diante de realidade

    cultural. O que nos faz pensar no afastamento ou alienao do sujeito de sua

    experincia individual, subjetiva, com o mundo que o cerca.

    Essa situao do palpvel pela imagem tambm a substituio da vida

    como experincia pela mercadoria, de tal forma que viver seria menos importante

    que consumir. Finalmente, cabe dizer que o termo imagem est diretamente

    relacionado com mercadoria.

    Portanto, essa espetacularizao da vida apresenta problemas fundamentais

    para os sujeitos. Um deles impossibilitar a reflexo mais profunda sobre os

    mecanismos responsveis pelos diferentes fenmenos apresentados pelas mdias,

    de tal forma que a imagem ocupe o espao da prpria vida. Podemos perceber as

    vertiginosas transformaes na vida contempornea a partir da renovao constante

    dos novos dispositivos espetaculares.

    Um aspecto a ser observado que a extenso da produo de imagens na

    sociedade contempornea traz como conseqncia a alterao das experincias

    sensoriais, de nossa percepo sensvel. Paul Virlio (1993) observa que, na maioria

    das experincias atuais, a relao direta com os fenmenos substituda por uma

    observao, em que o observador no tem contato direto com a realidade

    observada. A experincia sensvel foi deixando seu lugar a um tipo de experincia

    lumnica, na qual a retina substitui a presena corporal.13 Assim homem e mdia

    aprofundam uma relao que ter interferncia direta nos mecanismos de percepo

    e nas dinmicas culturais. Para Virlio, este novo lugar a tela da televiso e/ou o

    13 SOUZA, Maria Aparecida de ; GOMEZ, Mximo Jos. In: El Lugar del Teatro en una Sociedade de ndole Tecno-esttica. CONGRESSO INTERNACIONAL DE TEATRO IBEROAMERICANO Y ARGENTINO, XII. 2003. Buenos Aires. Anais .: Universidade do Estado de Santa Catarina, 2003, p.13.

    48

  • espao virtual das redes telemticas de computadores, que esto se transformando

    num espao pblico. Se, antes, o espao pblico, o convvio coletivo de cerimnias

    sociais era a praa ou a esquina, onde os homens encontravam-se para dialogar,

    para se manifestar publicamente, para lutar ou para festejar, hoje, visvel que o

    espao de cerimnia social a imagem que se torna pblica. (VIRILIO, 1993).

    A imagem como uma caracterstica geral da cultura de consumo cria nova

    forma de linguagem. Ao mesmo tempo, esta linguagem contribui para uma relao

    superficial com os valores de criatividade e expresso. Vivemos a sociedade tecno-

    esttica de forma totalizadora, massificadora, pois todos experimentamos os

    mesmos lugares totais, os mesmos sons totais, as mesmas imagens totais, ou seja,

    vivemos um imperativo esttico.

    Dessa forma, as transformaes culturais da sociedade ps-moderna,

    desenvolvidas pelo avano tecnolgico generalizado, alteram a maneira de nos

    relacionarmos com o mundo a nossa volta e, conseqentemente, modificam nossa

    maneira de nos relacionarmos com o fazer artstico.

    Um dos aspectos importantes da arte como linguagem fazer mediao

    entre o universo particular, interno e singular de um indivduo ou de um grupo e um

    objeto externo. Esse objeto externo estaria impregnado da histria desse indivduo

    ou grupo, ou seja, impregnado de escolhas, conhecimentos, expectativas,

    contradies e emoes. Acontece que, na cultura da imagem, apagam-se os traos

    das caractersticas humanas da produo artstica. Fica cada vez mais difcil

    contextualizar uma obra de arte, pois, tambm, no mais conhecemos o tempo e o

    lugar de sua criao.

    Diferente da fico oferecida pelos multimdias, o teatro