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JOÃO BATISTA ALVES DE OLIVEIRA O Idoso Coloca a Morte em Cena: Reflexões Sobre a Prática Médica Sob a Perspectiva da Reumanização da Morte nos Cuidados Paliativos MESTRADO EM GERONTOLOGIA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2006

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  • JOO BATISTA ALVES DE OLIVEIRA

    O Idoso Coloca a Morte em Cena: Reflexes Sobre a Prtica Mdica Sob a Perspectiva da Reumanizao da Morte nos Cuidados Paliativos

    MESTRADO EM GERONTOLOGIA

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO 2006

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  • JOO BATISTA ALVES DE OLIVEIRA

    O Idoso Coloca a Morte em Cena: Reflexes Sobre a Prtica Mdica Sob a Perspectiva da Reumanizao da Morte nos Cuidados Paliativos

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo como exigncia parcial para a obteno do ttulo de mestre em Gerontologia, sob orientao da Profa Dra. Ruth Gelehrter da Costa Lopes.

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO 2006

  • BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________

    ____________________________________________

    ____________________________________________

  • Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao por processos fotocopiadores ou eletrnicos.

    Assinatura: _____________________________________

    Local: _________________________ Data: _________________

  • DEDICATRIA

    Este trabalho dedicado a todo aquele que, na fase final da vida

    sente a necessidade de um mdico fazendo-se prximo. Homens e

    mulheres que sabem que sua morte no ser impedida, mas estaro

    reconfortados porque se sentiro acompanhados.

    E tambm o dedico a todo mdico que se faz prximo quele na

    fase final da vida. O mdico que no evita a morte, mas retoma a

    essncia da medicina o cuidar.

  • AGRADECIMENTOS

    dra Ruth Gelehrter da Costa Lopes, pelos ensinamentos no Programa de

    Gerontologia e cumplicidade na elaborao da dissertao.

    Ao dr Leo Pessini (Padre Leo), por fazer parte da Banca de Qualificao,

    contribuindo assim para que a dissertao se pautasse na retomada dos

    caminhos humanos e ticos da medicina, num sentido maior para o cuidado

    humanitrio da vida.

    dra Silvana Ttora, por fazer parte da Banca de Qualificao, revivendo

    seu passado na escola mdica, trazendo dissertao um olhar ntimo sobre

    o fazer-se prximo e o cuidar.

    Manoela, secretria do Programa de Gerontologia, pelo carisma, pela

    simplicidade e acolhida.

    Aos que sempre estiveram e estaro no corao, e que por longos caminhos

    me acompanharam e, mais que isso, se esforaram por mim.

    CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Profissionais de Ensino

    Superior) pelo apoio financeiro.

  • RESUMO

    Esta dissertao traz uma reviso bibliogrfica sobre a morte, porm no

    puramente compilao de citaes, mas, sobretudo, nova leitura humanizada do

    tema, em tom mitolgico, filosfico e potico.

    Mais que texto acadmico, pretende ser reflexivo e contribuinte para a

    humanizao da morte, fato to desfeito desde h sculos, e por vezes

    puramente tcnico e mecanicista na atualidade.

    Reafirma no somente a finitude humana como nossa caracterstica mais

    constitutiva, mas tambm a importncia do mdico humanizar seu atendimento,

    tendo como base a filosofia dos Cuidados Paliativos, especialmente na velhice,

    que pode ser a fase em que os pacientes em processo de morte mais necessitem

    do cuidar.

    No visa criar regras, rtulos, estipular condutas, mas uma conscientizao da

    importncia do mdico fazer-se prximo, buscando a reumanizao da morte.

    Palavras chave: Morte; Cuidados Paliativos; Humanizao; Idoso.

  • ABSTRACT

    This dissertation brings a bibliographical review about death, but it is not a

    mere compilation of facts, but above all it hands a new humanistic version

    regarding this theme, by means of mythological, philosophical and poetical

    approach.

    Much more than an academic text, it intends to be thoughtful and contribute

    towards the humanization of death, which has been left aside for centuries and

    many times, nowadays, dealt with so mechanical and technically.

    It not only restates the finite human thing like our most constituent

    characteristic, but also the importance doctors should pay towards humanizing

    the treatment, having based on the Palliative Care philosophy, especially at old

    age for it is the phase in which patients in dying process i.e. facing death most

    demand care.

    It does not claim the creation of rules, labels, nor stipulates conduct, but creates

    some awareness of the importance to doctors becoming closer to patients,

    making it possible the re-humanization of death.

    Key words: Death; Palliative Care; Humanization; Old age.

  • SUMRIO

    APRESENTAO .............................................................................................................. 9

    OBJETIVO ......................................................................................................................... 16

    HIPTESE ......................................................................................................................... 17

    METODOLOGIA .............................................................................................................. 18

    A MORTE INTERDITA DO SCULO XX ..................................................................... 20

    MITOLOGIA, FILOSOFIA E MORTE ............................................................................ 27

    POESIA E MORTE ........................................................................................................... 33

    O CDIGO DE TICA MDICA PENSADO NO CONTEXTO DOS CUIDADOS PALIATIVOS ...................................................................................... 43

    LONGEVIDADE A VELHICE E A MORTE NO MUNDO MODERNO .................... 52

    CUIDADOS PALIATIVOS A RETOMADA DA ESSNCIA DA MEDICINA .......... 65 A mitologia simbolizando os cuidados paliativos ...................................................... 67 O surgimento dos cuidados paliativos ........................................................................ 68 A Organizao Mundial da Sade (OMS) e os cuidados paliativos .......................... 71 Cuidados paliativos a nova realidade mdica ......................................................... 73 A implantao dos cuidados paliativos e a interdisciplinaridade ............................... 76 A velhice e os cuidados paliativos ............................................................................. 78 A morte como evento final dos cuidados paliativos .................................................. 79

    FAZER-SE PRXIMO A REUMANIZAO DA MORTE PELO MDICO QUE OFERECE CUIDADOS PALIATIVOS AO IDOSO ............................................... 85

    CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 101

    ANEXOS ......................................................................................................................... 106

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................. 134

    OBRAS CONSULTADAS .............................................................................................. 139

    FILMES ........................................................................................................................... 143

  • 9

    APRESENTAO

    Escolher dissertar sobre a morte, na forma da abordagem realizada, foi

    conseqncia de uma situao de vida pessoal e profissional que acabou por guiar-

    me pelo cuidar.

    O Programa de Gerontologia da Pontifcia Universidade Catlica de So

    Paulo (PUC-SP) favoreceu grandemente esse processo, quer seja pela caracterstica

    do curso, quanto por seu corpo docente, que se pauta em uma abordagem global e

    interdisciplinar.

    Em relao s disciplinas, encontrei nos professores, cada um em sua

    particularidade, caractersticas de humildade, maternidade, simplicidade,

    congregao, alegria e cordialidade, que foram o incentivo para prosseguir e me

    firmar em meus propsitos para a dissertao.

    Os contedos favoreceram consolidar conceitos, crenas, rever pensamentos e

    conhecer novos olhares sobre os aspectos emocionais, a importncia da inter-relao,

    de como compartilhar conhecimento prazeroso, em como delimitar o trabalho e

    optar pelo melhor mtodo, a refletir sobre a necessidade de entender educao como

    algo mais amplo que uma transmisso de conhecimentos. Educao como um compartilhar

    que passa pelo direito de cidadania e do respeito humano, alm de permitir refletir

    sobre a diferena dos momentos sociais na aceitao ou negao da morte.

    No posso deixar de considerar a importncia do mestrado. Sendo a PUC-SP

    um frutfero meio de produo cientfica, a insero de um curso de Ps-Graduao

    stricto sensu em Gerontologia uma contribuio importante velhice do pas, j

    que a finalidade da universidade no to-somente conceder titulao para

    profissionais, mas contribuir para aes sociais significativas.

    Tambm no posso deixar de considerar o Portal do Envelhecimento, um

    destacado meio de informao on-line, em franco desenvolvimento, do qual tive a

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 10

    oportunidade de fazer parte. A contribuio do profissional e do academicismo

    compartilhar informaes, adaptando-as ao meio de divulgao e ao pblico-alvo, de

    forma que no se torne um discurso tcnico incompreensvel ao leigo, ou que

    menospreze suas capacidades.

    O estudo, o aprimoramento, a vida acadmica s tm sentido se houver uma

    extenso para alm do conhecimento prprio, e na PUC-SP, no Programa de

    Gerontologia, tive a oportunidade disso participar.

    Permito-me fazer um retrospecto pessoal para que possa ser estabelecido

    vnculo entre acontecimentos pessoais e profissionais e a escolha do tema e sua

    forma de abordagem.

    De incio devo dizer que ser mdico talvez seja algo codificado em um dos 44

    cromossomos somticos, pois acho que no poderia ter outra profisso. nossos

    impulsos vocacionais tm razes em lugares obscuros da alma. (ALVES, 2003, p. 34)

    No entanto, para isso se concretizar tive que passar por um longo e tortuoso

    caminho, s conseguido pelo companheirismo e esforo de muitos, inclusive

    percorrendo terras distantes, poca em que a morte ameaou aproximar-se. Creio, no

    entanto, que no foi algo puramente biolgico, mas manifestao de Fora Superior

    para mostrar-me que medicina arte, Deus existe, e cuidar um fundamento humano

    a ser cumprido pelo mdico.

    Por todo um contexto de vida pessoal e por acreditar na vida escolhi dissertar

    sobre a morte, momento nico da vida da pessoa, quando mais precisa de companhia

    e mais se v isolada, e a medicina mais se afasta. Realidade que, no entanto, vem se

    modificando.

    A morte sempre foi e ser vista como mistrio para o qual se procura

    explicaes, isso no somente no final da vida, mas em todo o seu decorrer.

    Cada indivduo personificar a morte conforme suas vivncias, crenas e

    vnculos pessoais, mas sempre a partir da observao da ocorrncia em outro, e

    talvez seja isso que de forma oculta assusta a certeza inequvoca de que chegar a

    si prprio, como chegou ao outro. A a funo do medo como protetor, que evita

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 11

    discutir o assunto, permitindo apenas resignaes frente morte alheia, pois no

    podemos faz-lo a partir da ocorrncia prpria; mas em cada ocorrncia no outro,

    parte de ns, pelos laos emocionais, morre junto.

    Na evoluo dos milnios, a interpretao ou aceitao da morte sofreram

    inmeras transformaes quanto ao seu impacto sobre as sociedades, sendo quase

    sempre norteada pelo cunho religioso, pois a cincia, frente a ela, se mostra

    impotente.

    Ainda que seja a nica certeza inequvoca da existncia humana, medida

    que parte de um processo biolgico, o homem no a v como uma realidade, pois

    seria uma verdade esmagadora e limitante demais para quem a considera um acidente

    de percurso. Poucas so as excees, como os budistas, que no a vem assim, mas

    parte integrante da vida.

    encontrar assim na finitude do tempo, ou seja, na prpria morte,

    recurso da vida, exige entregar-se sem reserva ao espanto que ela

    suscita e aceitar permanecer constantemente sob seu domnio.

    Deixar ao nada que a morte o governo da vida no implica,

    todavia, nem herosmo niilista nem lamentao nostlgica, mas

    uma realidade, a configurao, na tragicomdia de uma vida que

    no recua diante da morte, mas ao contrrio, aceita incluir em sua

    conta o luto e a alegria, o riso e as lgrimas.

    (DASTUR, 2002, p. 7)

    A morte uma intrusa, ainda mais avassaladora se ocorrer precocemente, sem

    avisos: cruel, quando arrebata crianas e jovens; destruidora de vnculos,

    provocadora de exlio em relao aos que se ama; poderosa demais frente ao

    desamparo humano.

    Vivemos numa sociedade predominantemente oriunda do cristianismo, e

    podemos tomar um dos seus smbolos Cristo crucificado na anlise da

    representao da morte.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 12

    com o cristianismo que aparece a idia de um Deus triunfado

    sobre a morte, e com ele tambm que ressaltado o trgico da

    condio humana, sob a forma da morte na cruz de um Cristo

    abandonado por um Deus que silencia.

    (DASTUR, 2002, p. 24)

    Sob a tica das diferentes fases do desenvolvimento humano, a morte

    interpretada de formas diversas. Na infncia, a partir da experimentao da ausncia

    materna, a criana vive a sensao de desamparo: perodo de onipotncia, com a

    presena materna e de fragilidade, na ausncia e nos questionamentos sobre seu real

    poder de evitar a morte.

    sabemos que fazem parte do desenvolvimento infantil o

    pensamento mgico e a onipotncia. Fica, portanto, a grande

    questo: se os outros morrem, ser que morrerei tambm? A

    criana produz a histria da humanidade. Ela se representa como

    heri que durante o dia vence a sua fragilidade, e noite tem os

    seus pesadelos, os monstros, os drages e os fantasmas que

    ameaam. A morte representa o desconhecido e o mal.

    (KOVCS, 2002, p. 4)

    Na adolescncia a morte definitivamente no tem lugar, pois a fase das

    possibilidades, do realizar, do ser poderoso. Quando atinge outro adolescente

    porque esse foi falho em algo que propiciou a ocorrncia.

    Na vida adulta ainda h parte desse poder do adolescente, acrescido a um

    medo natural que impele a morte para longe. Sua conscincia existe, mas jamais se

    pleiteia sua aceitao.

    Mais tarde, no decorrer da vida adulta, esse cenrio vai gradativamente se

    modificando, fase em que j podem ser analisados os prs e os contras da prpria

    existncia.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 13

    quando se chega ao topo da montanha e se admira a paisagem

    volta, a descida parece obrigatria. A subida remeteu a um

    esforo, o mesmo ocorrendo com a descida. Ela representa a

    segunda metade da vida, potencialmente to criativa quanto a

    primeira, s que com um outro ngulo. Temos toda a experincia

    do nascimento, da infncia, da adolescncia e da primeira fase do

    adulto. Ao fazer um balano dessa experincia, uma grande

    transformao interna se processa em ns e a morte no se

    configura mais como algo que acontece somente aos outros, mas

    que pode acontecer conosco tambm.

    (KOVCS, 2002, p. 7)

    Profissionais da rea de sade no podem se omitir em explorar o tema em

    todas as suas concepes, entendimentos e variantes, pois pode caber-lhes ser o

    companheiro de muitos, determinantemente em sua caminhada final. Tempo de

    sofrimento, no s fsico como emocional. Ocasio de compartilhar sentimentos

    sobre a vida e invariavelmente sobre a morte; isso s podero fazer se tiverem em si

    mesmos claras concepes e medos afugentados sobre a morte, para que no se

    comportem como as crianas que tm pesadelos e vem monstros, drages e

    fantasmas. Momento que certamente ir requerer sutileza e amparo, o que

    conseguiro se reconhecerem sua prpria vulnerabilidade.

    Talvez em cada enfrentamento, cada discusso, como a aqui proposta, se

    transformem de amedrontados para impetuosos e poderosos, como se tivessem

    passando da fase de entendimento da criana para a do adolescente. Quem sabe,

    chegaro ao topo da montanha mais tranqilos, em paz consigo mesmos diante do

    prprio fim. Sendo, ento, companheiros de amparo dos que enfrentam a morte, no

    num acontecimento rpido e sem avisos, mas sobretudo daqueles que a

    experimentam com prolongados sofrimentos fsicos diante de doenas que

    machucam o corpo e a alma. Se no puderem ser fiis escudeiros do indivduo, o

    caminho desse ser acrescido de mais dor, representada pelo desamparo, falsidade,

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 14

    aplicao de palavras de consolo que jamais cumpriro essa finalidade, mas, ao

    contrrio, mostraro que sobra piedade, que mais pode machucar do que ajudar.

    Com a evoluo da medicina e da tecnologia a ela agregada, a discusso da

    morte no mais algo acessrio, mas de importncia tcnica. Diante da eutansia,

    distansia, suicdio assistido, no h como no abordar o tema. No possvel

    ignor-lo. H que se aprofundar em todos os seus aspectos, e integrar mltiplos

    profissionais anlise, no esquecendo de obrigatoriamente incluir o paciente e os

    familiares como parte essencial do processo.

    Profissionalmente, vrias vezes tive a morte se interpondo na minha relao

    com o paciente, quando em muitas delas foi a vencedora, principalmente quando,

    acadmico de medicina, na vivncia no ambulatrio de oncologia. Nesse tempo

    observei o comportamento humano, do outro e o meu prprio, em relao a esse

    fenmeno to inquietante ao ser humano. poca em que acompanhei muitos

    pacientes e familiares em desespero, dor, raiva, aceitao, luto e em tantas outras

    nuances.

    poca na qual mais percebi a necessidade de no fugir do tema. S nele

    adentrando poderia compartilhar, caminhar junto com o outro em momento to

    nico. Perodo em que a conduta humanitria deve ser aliada tcnica; misto de

    cincia, solidariedade e intimidade para o paciente ser cuidado em seu momento de

    morte, quando ento poder re-significar muito de si e de sua vida.

    No discorrerei sobre as inmeras variantes ligadas morte, pois cada tema

    agregado daria uma nova dissertao, e ainda esbarraria em questes bioticas no

    bem definidas. A finalidade ser trazer para perto aquilo que assim j est, mas que

    teimamos em distanciar.

    Discutindo o tema, chegando ao topo da montanha, diante da morte, seria

    fcil pensar:

    beira do abismo, nada haveria a temer, porque no teramos

    que mergulhar nele, mas simplesmente planar, curiosos em ver

    aonde nos levar o derradeiro vo.

    (REZENDE, 2000, p. 14)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes

    sobre a prtica mdica sob a perspectiva da reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 15

    Enfocarei o componente humanitrio e potico, pretendendo ser um culto

    vida, buscando entender, no entanto, que a vida e a morte so um par indivisvel e

    inquietante para a alma humana a questo da origem das coisas , certamente,

    uma fonte de inquietao para nosso entendimento, mas a de seu fim constitui o

    tormento de todo o nosso ser. (DASTUR, 2002, p. 54)

    Por certo no chegarei a definies estticas, a modelos ideais de

    comportamento, at porque esse no o objetivo, nem mesmo uma possibilidade.

    Mas que ao fim tenha refletido o suficiente. Profissionais sensibilizados pelo

    conhecimento do lado humanitrio transformam-se em compartilhadores de apoio ao

    outro diante de sua morte, principalmente considerando o idoso fragilizado pelas

    contingncias da vida, e por certo no muito diferente em seu processo ltimo.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 16

    OBJETIVO

    Este trabalho tem como objetivo trazer para discusso o fato de o

    idoso colocar a morte em cena, e mostrar que precisamos refletir

    sobre a prtica mdica na perspectiva da reumanizao da morte

    nos Cuidados Paliativos oferecidos ao idoso.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 17

    HIPTESE

    O reconhecimento de que o idoso coloca a morte em cena fator

    essencial para se refletir sobre prticas mdicas, to necessrias

    para que a reumanizao da morte seja parte integrante dos

    Cuidados Paliativos, levando recuperao do valor da vida, da

    morte e do cuidar.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 18

    METODOLOGIA

    O procedimento para a elaborao da dissertao foi a pesquisa bibliogrfica,

    e o mtodo escolhido o fenomenolgico.

    A bibliografia nacional me permitiu uma anlise de nossa realidade, pois a forma

    de abordar o tema da morte modifica-se segundo padres culturais de diferentes pases.

    A importncia de se utilizar o mtodo fenomenolgico reside nesse deixar os

    fatos da experincia humana falarem por si mesmos, permitindo assim a existncia

    de tantas verdades e suposies quantas forem possveis, segundo as interpretaes

    individuais, fruto das experincias vividas.

    Este mtodo dedica-se anlise da percepo, quando ento nenhuma

    verdade absoluta e para o qual o comportamento humano se constri a partir do

    mundo em que se vive. Busca recuperar o olhar humano acima do cientificista, que

    reduz a vida a processos fsico-qumicos.

    O mtodo fenomenolgico considera a objetividade dos seres, constituindo-se,

    para esses, os fatos vividos como verdade plena, em dado momento da vida, ainda

    que a experincia de outros possa falar o contrrio.

    A opo foi abordar o tema da morte pela fenomenologia, pois sendo algo

    que transcende a compreenso humana, somente resgatando as experincias de vida

    em relao morte que no a prpria possvel argumentar.

    O mtodo fenomenolgico no se prope a chegar verdade absoluta, nem a

    regras e concluses taxativas. Esta dissertao procurou considerar a subjetividade do

    autor e sua vivncia profissional como mdico, quando por vezes se defronta com a

    morte, requerendo posturas diversas frente ao paciente, familiares e equipe

    profissional, voltando-se ao pensamento de recuperar a viso mundana das coisas.

    Esta dissertao buscou a percepo da inter-relao vida-morte, que se

    estende muito alm da relao sujeito-objeto ou materialismo-individualismo, mas se

    molda compreenso da experincia humana.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes

    sobre a prtica mdica sob a perspectiva da reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 19

    quem no compreende um olhar, tampouco

    compreender uma longa explicao

    (MARIO QUINTANA)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes

    sobre a prtica mdica sob a perspectiva da reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 20

    A MORTE INTERDITA DO SCULO XX

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 21

    todas as culturas personificam a morte

    de forma diferente e elaboram

    variadas magias contra

    a sua intromisso

    (KOVCS, 2002, p.29)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 22

    E

    studando a morte durante os sculos, percebem-se grandes mudanas.

    Chega-se ao modelo de interdita do sculo XX, aquela medicalizada, que

    passa a ser vista como um fracasso, devendo, portanto, ser escondida

    para que represente que nada mudou.

    Historicamente, os hospitais, representados pelas Santas Casas de

    Misericrdia, eram os locais nos quais se encontravam os doentes que no tinham

    condies para se tratar em casa; as pessoas iam para se recuperar ou para morrer,

    conforme a vontade de Deus, com um mnimo de dignidade humana e conforto.

    (MARTIN, 2004, p.33)

    Porm, essa estrutura foi modificando-se ao longo do tempo. Houve

    desenvolvimento tcnico, passando, principalmente nas ltimas dcadas, a se ter

    como objetivo o atendimento curativo. Interessa o binmio doena-cura, fazendo

    surgir, ento, a fragmentao do paciente, visto como rgos e sistemas, uma

    especializao e ultimamente superespecializao da medicina, que perde pouco a

    pouco sua aura de sacerdcio e se transforma gradativamente em negcio.

    (MARTIN, 2004, p. 35). O modelo atual vive um momento empresarial. O poder

    aquisitivo do paciente determina quais os tipos de servios que pode utilizar.

    No pensamento empresarial, no qual o foco doena e cura, os Cuidados

    Paliativos se tornam problema, pois no tm como meta a medicina curativa, e

    necessitam de mais investimentos. Do ponto de vista financeiro no traro lucros,

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 23

    pois so pacientes com morte iminente, realidade bastante importante no paciente

    idoso e pacientes crnicos.

    os idosos e os doentes crnicos tendem a ser marginalizados

    precisamente porque o investimento em cur-los no tem sentido, e

    o tratamento paliativo est muito baixo na lista de prioridades do

    hospital, que abraa como prioritrios o paradigma tecnocientfico

    e a medicina curativa.

    (MARTIN, 2004, p. 46)

    O modelo de predomnio atual o tcnico-cientfico; se preocupa com a

    doena e no com o seu portador. No predomina o benigno-cientfico, em que h o

    interesse concomitante com a doena e o ser humano que a apresenta.

    A aceitao da morte modificou-se nos milnios, passando de natural a

    interdita na atualidade, ainda mais quando se tem deixado de considerar o aspecto

    espiritual dos envolvidos, principalmente pacientes e familiares. A morte atual no

    a natural e romntica, mas a que permite a distansia, a mistansia.

    h no muito tempo se nascia graas a Deus e se morria por

    vontade de Deus. O incio e o fim da vida humana escapavam

    completamente do controle humano. Hoje, com os conhecimentos

    adquiridos e instrumental tecnolgico disposio pode-se

    perfeitamente escolher o dia para se nascer e tambm fixar a hora

    da morte.

    (PESSINI, 1990, p. 23)

    Aquela interdita, no pertencendo ao Sagrado, mas tecnologia, tomou o

    hospital como o local para onde se vai para morrer, pois permite a ocorrncia

    controlada, escondida, sob auxlio de profissionais Fim tcnico, como suscita a

    medicina tecnolgica: o fim exemplarmente descrito, com hora precisa,

    institucionalizado, biocntrico e tecnocntrico, rouba a dignidade humana. Sendo o

    foco a cura, por vezes trata-se a dor, porm esquece-se de cuidar do sofrimento.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 24

    O modelo comercial e o padro social a ser mantido tornaram os hospitais,

    fonte de status se antes freqentar um hospital era sinal de pobreza (local de

    concentrao de indigentes), hoje os hospitais e clnicas so indicadores de

    desenvolvimento econmico e social, lugares que as pessoas tm obrigao quase

    moral de freqentar. (PESSINI, 2004, p. 19)

    Pensando na estrutura de formao das escolas mdicas atuais, o paciente

    pode passar a ser o foco de ateno por necessidades outras que no a sua dor e seu

    sofrimento; em formao que desconsidera valores humanitrios e se pauta na

    tecnolatria, pode ser transformado em um objeto de aprendizado. As relaes

    estabelecidas tornam-se impessoais e mecnicas: o funcionamento da instituio

    hospitalar, regida por normas e procedimentos estritos, reitera a pouca

    possibilidade de dilogo entre os diversos atores sociais envolvidos no processo de

    morrer, bem como da expresso de suas emoes. No modelo moderno, a assistncia

    em sade impessoal, mecnica e assptica. (MENEZES, 2004, p. 33)

    Na reflexo sobre o novo modelo de formao mdica que necessita do

    componente humanitrio, deve ser recordado o texto de Rubem Alves O mdico

    procura do ser humano e reconhecidas relaes de afeto entre si e os outros que o

    cercam. Isso faz circular a vida, perdendo ento a sua imagem de feiticeiro, de

    cavaleiro solitrio que vai sozinho lutar contra a morte. Torna-se, segundo o autor,

    ... uma unidade biopsicolgica mvel, portadora de conhecimentos especializados,

    e que vende servios. Um mdico que perdeu sua aura, sua presena mgica,

    consultado no por ser amado e conhecido, mas por constar num catlogo do

    convnio. (ALVES, 2003, p. 20)

    Em Cuidados Paliativos se busca ver refletida no espelho a antiga imagem do

    mdico que irradiava vida, tambm feiticeiro, e que em suas relaes fazia a vida

    circular, o cavaleiro solitrio que lutava contra a morte, heri com o corpo coberto de

    cicatrizes, mas a alma inteira. Voltar imagem do mdico de antigamente seria a

    possibilidade de ser o cuidador na fase final de vida, convicto de seus valores

    pessoais e dos do ser humano de quem cuida.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 25

    No se conhece mais o tempo da morte, no so reconhecidos seus sinais, o

    indivduo no tem mais intuio. Ela no pertence ao Sagrado, mas transformada em

    momentos isolados. Nesse molde acaba por no se saber o momento em que

    verdadeiramente ocorre: quando efetivamente o indivduo deixou de respirar ou

    passou a um estado vegetativo sustentado por mquinas.

    O moribundo j no preside o rito cerimonial, que nem mesmo existe. A

    ritualidade do passado desconhecida na atualidade. O paciente normalmente morre

    em uma unidade de terapia intensiva, conectado a tubos, sedado. A vida

    representada unicamente por bips e grficos, at que um deles se transforma em um

    traado isoeltrico em tela de monitor.

    Os parentes, amigos, vizinhos e principalmente as crianas no fazem parte

    da cena na justificativa de ocultar (ou achando que isso conseguem) a verdade ao

    moribundo. Procura-se, tambm, poupar da morte a sociedade, promovendo seu

    afastamento, tentando manter falsas aparncias.

    Insuportvel aos olhos. Portanto, passa a ser solitria, mecnica e dolorosa,

    restrita a um leito hospitalar. No possvel mais ver o fim do outro. Cria-se a falsa

    idia de que o tecnicismo aplaca todos os males. Morte despersonalizada.

    Habitualmente as expresses dizem somente o paciente do leito trs, o paciente

    com edema agudo de pulmo, o paciente da sala de emergncia. Precedida de

    distansia, pois impera a medicalizao da vida, a morte isolada e em abandono. Os

    familiares e amigos talvez no consigam conviver com o indivduo e os momentos

    finais. Ainda uma utopia o morienterapeuta preconizado por Rubem Alves, que

    poderia ser qualquer um que assistisse o indivduo em morte iminente.

    o morienterapeuta... (moriens que est morrendo e therapeueim

    cuidar, servir, curar) ..., entra em cena quando as esperanas se

    foram. A despedida certa. Ele ou ela tm de estar em paz com a

    vida e a morte, tm de saber que a morte parte da vida: precisa

    ser cuidada. Por isso, o morienterapeuta ter de ser um ser

    tranqilo, em paz com o fim, com o fim dos outros de quem ele

    cuida, em paz com seu prprio fim, quando outros cuidaro dele.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 26

    Dele no se esperam nem milagres nem recursos hericos para

    obrigar o dbil corao a bater por mais um dia. Dele se esperam

    apenas os cuidados com o corpo preciso que a despedida seja

    mansa e sem dor. E os cuidados com a alma: ele no tem medo de

    falar sobre a morte. (ALVES, 2003, p. 55)

    Com todos os seus atributos negativos, a morte problema social. Portanto,

    precisa ser escondida, e institucionaliz-la foi a forma encontrada. O hospital o

    local que preenche as caractersticas tcnicas. Ainda que seja, em muitos casos, de

    maior sofrimento para o indivduo, quando se pratica a distansia. Mesmo assim

    preconiza-se como o ideal. O controle do fim foi transferido para as mos dos

    mdicos.

    De um modelo frio, assptico e higienizado, o desafio criar conscincia

    sobre a importncia de haver mudana para o morrer humanizado. No meramente o

    trmino de fase biolgica, mas fenmeno de dimenses emocionais das mais

    importantes para o moribundo, familiares e cuidadores.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 27

    MITOLOGIA, FILOSOFIA E MORTE

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 28

    h, efetivamente, uma certa identidade entre

    a morte e a Filosofia, j que ambas

    tm como resultado destacar a

    alma do corpo.

    (DASTUR, 2002, p. 33)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 29

    H

    muitos sculos os homens comearam a filosofar por que as verdades

    que julgavam conhecer no cotidiano, por meio dos mitos, no mais

    respondiam a suas incertezas, e as dvidas se avolumavam diante de

    todos os temas complexos da vida.

    Dentre os vrios temas a serem compreendidos, o homem deparou-se com o

    da morte, evento inexorvel ao final da existncia. Como pode acabar um ser que

    vive, relaciona-se, constri? A limitao do entendimento humano frente existncia

    podada precisava (e ainda precisa) de explicaes para esse acontecimento: s os

    homens so mortais, pois s eles so capazes de referir a sua prpria morte e de

    fazer existir assim a morte (DASTUR, 2002, p. 77)

    Considerando milnios passados, antes do surgimento da Filosofia, forma

    palpvel de abordar o tema da finitude foi a mitologia. O homem pde voltar ao seu

    interior buscando respostas, btalvez no para a morte, mas para a vida, por certo j

    intuindo que os fenmenos no so isolados.

    Talvez a mitologia tenha sido uma defesa: a morte o objeto de espanto e

    no pode ser enfrentada, a no ser na medida em que se v relativizada e aparenta

    ter domnio apenas sobre uma parte de nosso ser. (DASTUR, 2002, p. 6)

    O papel dos mitos, com todo o seu mltiplo simbolismo, sempre foi

    fundamental para a constituio de padres culturais, para o desenvolvimento

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 30

    individual ou coletivo, a partir do suavizar do sofrimento diante das questes que

    envolvem os aspectos tidos como sobrenaturais, sobre os quais s podemos supor.

    Mesmo ainda no encontradas solues para as dvidas e inquietaes geradas pelos

    problemas existenciais, o mito, com sua riqueza simblica, importante.

    o mito... quando no facilita a percepo do que era inconsciente,

    pelo menos envolve o sujeito em outros parmetros do

    comportamento, possibilitando uma reformulao das aes numa

    perspectiva de uma postura mais saudvel de viver, ou apenas

    amenizando o sofrimento.

    (FRAGOSO, 2005)

    Ainda que por muito tempo os mitos tenham sido a fonte de explicao para

    acontecimentos da vida, os homens passaram a ter necessidade de obter outras

    explicaes mais lgicas, partindo no das divindades, mas das coisas terrenas.

    Surgem, ento, os primeiros filsofos. Porm, o nascimento da Filosofia no findou o

    pensamento mitolgico.

    Enquanto o mito se pauta nas divindades, no sobrenatural, no fabuloso, a

    Filosofia volta-se para a anlise que engloba a totalidade do tempo, quando passa a

    discutir temporalidade e finitude.

    No entanto, antes de considerar o pensamento filosfico, vamos retomar a

    mitologia e conhecer belas histrias e explicaes para a vida e a morte. Simbolismo

    bastante importante diante de um tema o qual s podemos imaginar ou interpretar a

    partir da ocorrncia em outros vivemos sempre a morte como a morte do outro.

    Os outros morrem e eu ainda no. A minha morte eu penso amanh. Ns nos

    esquivamos da possibilidade de singularizao da morte. (KOVCS, 2002, p. 147)

    Na atualidade podem ser recordados os mitos, porm seu valor e sua tradio

    perderam-se diante do mundo capitalista, realista demais, esquecido do sentido de si

    prprio: um dos problemas hoje em dia que no estamos familiarizados com a

    literatura do esprito. Estamos interessados nas notcias e nos problemas prticos do

    momento. (GUIMARES, 2005)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 31

    Nessa realidade com tendncias mecanicistas, imediatistas, desconhecendo

    valores humanitrios, todos os temas que sempre formaram a base da existncia

    humana perderam-se gradativamente, no necessitando de explicaes figurativas

    para compreender ou justificar o incompreensvel da nossa condio de humanos. Os

    mitos, que buscavam as verdades, tornaram-se desnecessrios num mundo que no se

    pauta pelos valores espirituais.

    Na mitologia grega, Tnatos era a prpria personalizao da morte, filho de

    Nix (noite), irmo gmeo de Hipnos (sono).

    O mito que determina a origem da morte diz:

    uma mulher tinha dois filhos gmeos. Alguns dizem que eram

    irmo e irm que desmaiaram. Possivelmente s estavam

    dormindo. Sua me os deixou de madrugada, e quando retornou

    noite eles ainda estavam deitados l. Ela notou pegadas como a

    deles e imaginou que eles tinham voltado vida, e brincado

    durante a sua ausncia. Certa vez ela chegou, inesperadamente, e

    encontrou-os discutindo dentro da cabana. Um deles dizia:

    melhor estar morto. O outro dizia: melhor estar vivo. Quando

    viraram, pararam de falar, e desde ento as pessoas morrem de

    tempos em tempos, portanto sempre h vivos e mortos. Se ela

    tivesse permanecido escondida e permitido que eles encerrassem

    sua discusso, um teria vencido o outro, e da no haveria vida ou

    no haveria morte.

    (KOVCS, 2002, p. 1)

    Se o homem busca justificativa para a morte do adulto e velho, fcil

    imaginar que tambm buscar para a morte da criana.

    A mitologia explica a ocorrncia nessa faixa etria pelo mito Eros e Morte.

    Diz o mito:

    era uma tarde quente e abafada, e Eros, cansado de brincar e

    derrubado pelo calor, abrigou-se numa caverna fresca e escura.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 32

    Era a caverna da prpria morte. Eros, querendo apenas descansar,

    jogou-se displicentemente ao cho, to descuidadamente que todas

    as suas flechas caram. Quando ele acordou percebeu que elas

    tinham se misturado com as flechas da morte, que estavam

    espalhadas no solo da caverna. Eram to parecidas que Eros no

    conseguiu distingui-las. No entanto, ele sabia quantas flechas tinha

    consigo e ajuntou a quantia certa. Naturalmente, Eros levou

    algumas flechas que pertenciam morte e deixou algumas das

    suas. E assim que vemos, freqentemente, os coraes dos velhos

    e dos moribundos atingidos pelas flechas do amor, e s vezes os

    coraes dos jovens capturados pela morte.

    (Meltzer, 1984 in KOVCS, 2002, p. 153)

    Ainda que se saiba do carter puramente imaginrio, no h como no pensar

    que poderiam ser verdadeiros esses mitos. Uma interpretao humanizada diante da

    morte, que representa nossa impossibilidade no continuar a ser.

    Mitologia e Filosofia fazem parte de nossa vida. Tornam-se mais

    encantadoras se poetizadas, e ento considerarmos em Cuidados Paliativos que

    Mitologia, Filosofia, Poesia e Morte fazem parte da vida.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 33

    POESIA E MORTE

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 34

    acho que para recuperar um pouco da sabedoria

    de viver, seria preciso que nos tornssemos discpulos

    e no inimigos da morte, mas, para isso, seria

    preciso abrir espao em nossas vidas para ouvir

    a sua voz. Seria preciso que voltssemos

    a ler os poetas.

    (ALVES, 2003, p. 76)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 35

    S

    egundo Thomas Mann, se no existisse a morte haveria bem poucos

    poetas sobre a Terra. Eles falam da ntima relao da morte com a vida.

    a criao do poeta nada mais do que essa imagem humana que

    a natureza nos oferece para nos curar aps termos lanado um

    olhar sobre o abismo.

    (DASTUR, 2002, p. 26)

    Porm, como escreve Rubem Alves, no basta saber ler para ler poesia.

    Ler poesia uma arte. Exige que o leitor se coloque numa posio especial da

    alma...

    Os poetas falam do medo da morte, como o faz Vincius de Moraes em seu

    texto A morte

    A morte vem de longe

    do fundo dos cus

    vem para os meus olhos

    vir para os teus

    desce das estrelas

    trnsfugas de Deus

    chega impressentida

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 36

    nunca esperada

    ela que na vida

    a grande esperada!

    do amor fratricida

    dos homens, ai dos homens

    que matam a morte

    com medo da vida

    Ou de falam como a ocorrncia da morte atordoa, pensando na prpria, como

    em Mrio Quintana

    esta vida uma estranha hospedaria

    de onde se parte quase sempre s tontas,

    pois nunca as nossas malas esto prontas,

    e a nossa conta nunca est em dia.

    Ou de quais so as tarefas na vida at que chegue a morte, como ainda em

    Mrio Quintana

    sentir primeiro, procurar depois

    perdoar primeiro, julgar depois

    amar primeiro, endurecer depois

    esquecer primeiro, aprender depois

    libertar primeiro, ensinar depois

    alimentar primeiro, contar depois

    possuir primeiro, contemplar depois

    agir primeiro, julgar depois

    navegar primeiro, aportar depois

    viver primeiro, morrer depois

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes

    sobre a prtica mdica sob a perspectiva da reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 37

    Ou de como a proximidade da morte ilumina a vida

    a proximidade da morte ilumina a vida. Aqueles que

    contemplam a morte nos olhos vem melhor, porque ela tem

    o poder de apagar do cenrio tudo aquilo que no

    essencial. Os olhos dos vivos tocados pela morte so puros.

    Eles vem aquilo que o amor torna eterno.

    (ALVES, 2002, p. 8)

    Rubem Alves fala:

    ... no, no, a morte no algo que nos espera no fim.

    companheira silenciosa que fala com voz branda sem querer nos

    aterrorizar, dizendo sempre a verdade e nos convidando

    sabedoria de viver...(ALVES, 2003,p.67) (...) a branda fala da

    morte no nos aterroriza por nos falar da morte. Ela nos

    aterroriza por nos falar da vida. Na verdade, a morte nunca fala

    sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos

    fazendo com a prpria vida, as perdas, os sonhos que no

    sonhamos, os riscos que no corremos (por medo), os suicdios

    lentos que perpetramos.. (ALVES, 2003,p.69). (...) ! Embora a

    gente no saiba, a morte fala com a voz do poeta. Porque nele

    que as duas, a Vida e a Morte, encontram-se reconciliadas,

    conversam uma com a outra, e dessa conversa surge a Beleza.

    Agora, o que a Beleza no suporta o falatrio, a correria... Ela

    nos convida a contemplar a nossa prpria Verdade. E o que ela

    nos diz simplesmente isto: Veja a vida. No h tempo a perder.

    preciso viver agora! No se pode deixar o amor para depois:

    Carpe diem!... (ALVES, 2003,p.67) (ALVES, 2003,p.72) (...) a

    Morte tem o poder de colocar todas as coisas nos seus devidos

    lugares. Longe do seu olhar, somos prisioneiros do olhar dos

    outros, e camos numa armadilha de seus Desejos. Deixamos de

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 38

    ser o que somos, para ser o que eles desejam que sejamos. Diante

    da Morte, tudo se torna repentinamente puro. No h lugar para

    mentiras. E a gente se defronta ento com a Verdade, aquilo que

    realmente importa. Para ter acesso nossa Verdade, para ouvir de

    novo a voz do Desejo mais profundo, preciso tornar-se um

    discpulo da morte. Pois ela s nos d lies de Vida, se a

    acolhermos como amiga: A Morte nossa eterna companheira...

    (ALVES, 2003,p.74,75) (...) ela se encontra nossa esquerda, ao

    alcance do brao. Ela nos olha sempre, at o dia em que nos toca.

    Como possvel a algum se sentir importante, sabendo que a

    Morte o contempla? O que voc deve fazer, ao se sentir impaciente

    com alguma coisa, voltar-se para a sua esquerda e pedir que sua

    Morte o aconselhe... (...) sempre que voc sentir, como tantas

    vezes acontece, que tudo est indo de mal a pior e que voc se

    encontra a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua Morte e lhe

    pergunte se isso Verdade. Sua Morte lhe dir que voc est

    errado, que nada realmente importa, fora do seu toque... (...)

    houve um tempo em que nosso poder perante a morte era muito

    pequeno. E, por isso, os homens e as mulheres dedicavam-se a

    ouvir a sua voz e podiam tornar-se sbios na arte de viver. Hoje,

    nosso poder aumentou, a morte foi definida como inimiga a ser

    derrotada, fomos possudos pela fantasia onipotente de nos

    livrarmos de seu toque. Com isso, ns nos tornamos surdos s

    lies que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do

    perigo de que, quanto mais poderosos formos perante ela

    (inutilmente, porque s podemos adiar...), mais tolos nos tornamos

    na arte de viver. E, quando isso acontece, a Morte, que poderia ser

    conselheira sbia, transforma-se em inimiga que nos devora por

    detrs. Acho que, para recuperar um pouco da sabedoria de viver,

    seria preciso que nos tornssemos discpulos e no inimigos da

    Morte. Mas, para isso, seria preciso abrir espao em nossas vidas

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 39

    para ouvir a sua voz. Seria preciso que voltssemos a ler os

    poetas... (ALVES, 2003, p.75,76)

    Cortazar (1975), de forma esplendorosa, em seu texto A sade dos doentes,

    nos fala de como as pessoas podem necessitar do cuidar, especialmente na morte.

    No texto, houve um cuidar da me (personagem central) para que se evitasse

    sua dor pela morte do filho. Cuidar que efetivamente foi adequado, pois mesmo ao

    ter certeza da morte do filho ela manteve segredo desse seu conhecimento cuidado

    para aqueles que dela cuidaram.

    como vocs foram bons comigo disse mame. Este trabalho todo

    que vocs tiveram para que eu no sofresse [...] vocs tomaram

    conta de mim

    O texto a prova da necessidade da inter-relao humana, do afeto, das

    crenas, de valores humanitrios e do cuidar.

    Outro texto, cujo ttulo Ser que escapo dessa?, deixa expressa a

    necessidade de o paciente em processo de morte ter prximo seu mdico, para que

    lhe dedique sobretudo respeito como pessoa, por meio do compartilhar verdades, ao

    invs de ficar num fazde-contas; aquele que possa ter aprendido a arte de ajudar as

    pessoas a morrer, pois a morte de uma pessoa um evento nico , nunca houve e

    nunca haver outro igual. Tambm mostra que o alvio da dor essencial, porque

    ningum quer morrer com dor. Aquele que saiba que a vida humana tem a ver com

    a possibilidade de alegria! Quando a possibilidade de alegria se vai, a vida humana

    se foi tambm (ALVES, 2006).

    Ainda citando esse autor, em seu texto Sobre a morte e o morrer, a

    tecnolatria e a distansia so uma violncia ao princpio da reverncia pela vida,

    e nos lembra que, nesse caso, se os mdicos dessem ouvidos ao pedido que a vida

    est fazendo, eles a ouviriam dizer: Liberta-me (ALVES, 2006).

    O autor mostra ainda o descuido com o ser humano, ao relatar a histria de

    um jovem francs, submetido ao processo de distansia, que escreveu, com sua

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 40

    possibilidade de movimento de um s dedo: morri em 24 de setembro de 2000.

    Desde aquele dia, eu no vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu no sei...

    Finalmente, sabiamente ensina que a reverncia pela vida exige que

    sejamos sbios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir.

    Por fim, a leitura de um texto de Joan Neet George, para conhecer o contraste

    entre a morte natural e a artificialmente prolongada, em que o mdico normalmente

    est inserido.

    av, quando teu filho morreu febril ao teu lado

    em tua cama estreita

    sua respirao estertorosa

    te deixava inquieta

    e te despertou quando

    com um suspiro ele se apagou.

    Tu o acalentaste pela madrugada amarga

    e, de manh,

    trataste de vesti-lo, pente-lo,

    vertendo lgrimas caladas,

    at que enfim descansou,

    entre as ris do campo,

    a alma entregue inexplicavelmente a Deus. Amm.

    No entanto, av, quando meu filho morreu

    Deus seja louvado -, teve morte cruel.

    Um motor, ao lado

    de sua cama de lona, intil

    roncava, silvava, zumbia,

    enquanto ele entoava sua dor,

    em notas baixas e altas,

    em compasso lento

    que se esvaa por entre a nuvem das drogas.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 41

    Minhas lgrimas, redundantes,

    gotejavam devagar,

    como glucose ou sangue

    de um frasco.

    E, quando ele expirou,

    as lgrimas secaram

    e deuses de brancas roupagens

    viraram as costas.

    (SIEGEL,1989, p. 265)

    Ocorrida a morte, fica a saudade, uma coisa que fica andando pelo tempo

    passado procura dos pedaos de ns mesmos que se perderam (ALVES), e

    quando uma orao feita mantm-se a poesia presente, pois a orao a saudade

    transformada em poema(ALVES)

    Lendo todo esse contedo potico no h como deixar de pensar que, como

    cita Rubem Alves, os poetas deveriam voltar a ser lidos. Levando cada um a

    construir algo que contemplasse a vida em todas as suas formas, nuances, odores,

    vontades, desejos, sonhos, possibilidades, necessidades, dificuldades e, sobretudo,

    em nossas limitaes. Ento no nos negaramos a acreditar que a morte o limite

    final da existncia, e mais que isso, no s um marco finalizante, mas concretizador,

    pois como bem cita o autor, tudo o que se completa tem que terminar.

    Sem considerar esses aspectos, no poderia iniciar o trabalho sobre o tema da

    morte. Embasado no toque potico ser possvel reconhecer a vida como obra de arte

    e a morte como parte da vida, podendo ento dissertar sobre o tema sem conotao

    de culto morte, mas como poetas interiores, buscando conhecer no ntimo, no a

    explicao sobre o tido como sobrenatural, mas por que o ser humano se nega a tocar

    nesse ponto, que constitutivo da vida.

    Esta dissertao no se prope a cultuar a morte, mas ser convite a reconhecer

    os ensinamentos que ela nos traz:

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 42

    ... ela s diz duas coisas. Primeira, aponta-nos o crepsculo, a

    chama da vela, o rio, e nos diz Tempus fugiti o tempo passa e

    no h forma de segur-lo. E, logo a seguir, conclui: Carpe diem

    olha o dia como quem colhe um fruto delicioso, pois esse fruto a

    ddiva de Deus.

    (ALVES, 2003, p. 90)

    Resgatar o conhecimento potico elaborar temtica to inquietante:

    no h como adivinhar-lhe o sabor, pois a morte no se

    experimenta e, portanto, percebe-se atravs da poesia, do sonho,

    da fantasia, da perda, do medo, da dor, da angstia...

    (REZENDE, 2000, p. 15)

    Textos poticos so produes daqueles que reconheceram a morte e diante

    dela no se acuaram, mas buscaram respostas. Que tambm isso seja conseguido no

    presente trabalho.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 43

    O CDIGO DE TICA MDICA PENSADO NO CONTEXTO DOS

    CUIDADOS PALIATIVOS

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes

    sobre a prtica mdica sob a perspectiva da reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 44

    ...nesse compromisso humanitrio, podemos sonhar com uma nova

    figura do mdico responsvel pela sade do mundo e solidrio

    na construo de uma tica mdica aberta biotica...

    (MARTIN, 2002, p.144)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 45

    R

    epensando a histria mdica constatam-se mudanas no modelo

    profissional. Essencialmente, a base da medicina foi o paternalismo

    benigno, no qual o profissional comporta-se como o detentor do

    conhecimento sobre o que melhor para o paciente, restando a este ser cumpridor de

    conselhos e determinaes.

    Posteriormente surgem paradigmas, como o tecnocientfico, comercial-

    empresarial e da benignidade humanitria. (MARTIN, 2002, p.44)

    No tecnocientfico, os valores da cincia e da tecnologia predominam, os

    praticantes da medicina tendem a favorecer o conceito de sade como ausncia de

    doena e sua tarefa primordial como sendo o combate a molstias e traumatismos.

    Nesse paradigma, a morte o grande inimigo, e todos os meios tcnicos e cientficos

    devem ser usados para afast-la e venc-la. (MARTIN, 2002, p. 44)

    No comercial-empresarial, a vida, a doena e a morte s interessam na

    medida em que geram lucro. (MARTIN, 2002, p. 45).

    No benigno-humanitrio, h uma mudana do foco do sujeito da

    benignidade (o mdico virtuoso) para o objeto dessa benignidade (o ser humano

    portador de direitos e dignidade fundamentais). (MARTIN, 2002, p. 56)

    Todos essas mudanas ocorridas na histria da medicina, com o surgimento

    de novos modelos de profissionais, sempre norteados pela evoluo tecnolgica,

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 46

    levaram o mdico a se preocupar mais com a doena do que com a sade a cura

    das patologias e o afastamento da morte se tornaram as grandes metas da medicina

    ocidental. (MARTIN, 2002, p. 57).

    As transformaes que ocorreram evidenciam questes bioticas. O contedo

    humano foi perdendo o foco da medicina; ao invs de o paciente ser personalizado,

    passou a ser despersonalizado.

    A longevidade permitida, aliada a mudanas externas comprometedoras da

    sade (fsica ou emocional), traz cena o idoso portador de vrias doenas,

    associadas muito comumente com grandes impactos decorrentes dos quadros

    demenciais, estado muitas vezes agravado por precrias condies socioeconmicas.

    Torna-se comum o processo de morte prolongada e sofrida, no raro decorrente de

    distansia, sofrimento destinado no s diretamente ao paciente, mas a seus

    familiares (esses no aspecto emocional), em um processo de luto antecipatrio que

    pode ser prolongado.

    No novo molde, dispondo a discutir sobre a morte na velhice, torna-se

    necessrio ser revisto o Cdigo de tica Mdica para ser discutida a ao do mdico

    em suas potencialidades, e principalmente os seus limites. nosso interesse

    apontar a linha divisria, tnue, que se situa entre a legalidade e a moralidade no

    exerccio mdico, voltado para os Cuidados Paliativos. (SILVA, 2004, p. 330)

    Artigo 2 o alvo de toda ateno do mdico a sade do ser humano, em

    benefcio do qual dever agir com o mximo zelo e o melhor de sua capacidade

    profissional.

    Qual seria o conceito de sade, quais os limites das interpretaes

    individuais?. O que significam o mximo do zelo e o melhor de sua capacidade

    profissional? Seria a prtica da distansia? Ou ento, o cuidar, o fazer-se prximo e o

    ser ouvinte no se aplicam a este artigo?

    Qual o limite de ter sade e de ser humano? A distansia, to freqente,

    representa a ao do mdico centrada na sade do ser humano?

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 47

    Artigo 5 o mdico deve aprimorar continuamente seus conhecimentos e

    usar o melhor do processo cientfico em benefcio do paciente.

    Afinal, o progresso cientfico tecnolgico utilizado como obstinao

    teraputica traz benefcio ao paciente em processo de morte?

    Estudar, entender e praticar Cuidados Paliativos no esto englobados nesse

    aprimoramento contnuo de conhecimentos?

    essencial refletir o que quer dizer em benefcio do paciente:

    se a vida biolgica o valor primordial, e o afastamento, o

    mximo possvel, da morte, a grande tarefa, ento o mdico no

    tem outra opo a no ser apelar para todos os conhecimentos e

    tcnicas a seu dispor at ser vencido pelo grande inimigo, a morte.

    Se, porm, se entender a morte como parte da vida e a sade como

    bem-estar multidimensional, agir em favor do paciente pode

    significar reconhecer que a pessoa tenha entrado j no processo

    irreversvel de morrer e que seu bem-estar ento consiste em partir

    para tratamentos paliativos que lhe permitam morrer com

    dignidade e em paz.

    (MARTIN, 2002, p. 121)

    Artigo 6 o mdico deve guardar absoluto respeito pela vida humana,

    atuando sempre em benefcio do paciente. Jamais utilizar seus conhecimentos para

    gerar sofrimento fsico ou moral, para o extermnio do ser humano ou para permitir

    e acobertar tentativa contra a sua dignidade e integridade.

    O que se entende por guardar absoluto respeito pela vida humana? Esse

    respeito garantido quando se pratica a distansia? Ou quando no se integra o

    paciente ao seu tratamento, dando-lhe chances de opes?

    Afastar o paciente do convvio dos seus, em momento mais humano e mais

    pessoal, que a morte, trazer-lhe benefcio? Sondas, cateteres, tubos, monitores,

    bips, justificam-se na morte iminente?

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 48

    O artigo diz jamais utilizar seu conhecimento para gerar sofrimento fsico

    ou moral. Isso pensado na ao paternalista do mdico ao decidir levar seu paciente

    em morte iminente para a Unidade de Terapia Intensiva? Quais valores de vida,

    respeito e profissionalismo deve-se ter?

    Artigo 21 direito do mdico indicar o procedimento adequado ao

    paciente, observadas as prticas reconhecidamente aceitas e respeitando as normas

    vigentes do pas.

    Qual o conceito de procedimento adequado ao paciente? O mdico tem o dom

    da escuta para saber o que adequado a cada paciente? O narcisismo mdico permite

    ao paciente decidir por si, sobre si?

    Artigo 46 vedado ao mdico efetuar qualquer procedimento mdico sem o

    esclarecimento e o consentimento prvios do paciente ou de seu responsvel legal,

    salvo em iminente perigo de vida.

    Na atualidade, que desconhece o modelo do mdico antigo, o novo

    profissional esclarece e pede consentimento ou estabelece o morrer em mquinas?

    Se o paciente incapacitado, quem pode responder por ele? Como aceitar a

    deciso de terceiros, se pode ser contrria a cdigos de tica, de moral, de

    humanidade? Quem garante ou quem tira o poder de deciso de um responsvel

    legal? O que podemos conhecer da relao desse com o paciente para ser aceita a

    deciso como prxima do ideal naquilo que significa o benefcio ao paciente?

    Artigo 53 vedado ao mdico desrespeitar o interesse e a integridade do

    paciente, ao exercer a profisso em qualquer instituio na qual o mesmo esteja

    recolhido independentemente da prpria vontade.

    O quadro clnico suficiente para decidirmos pela internao do paciente em

    processo de morte, ou deve ser primordial o entendimento de seus valores, do

    conceito de humanismo, de tica e moral?

    Artigo 56 vedado ao mdico desrespeitar o direito do paciente decidir

    livremente sobre a execuo de prticas diagnsticas ou teraputicas, salvo em caso

    de perigo iminente de vida.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 49

    O mdico concede ao paciente o direito de decidir livremente sobre si no

    momento de sua morte? O processo de morte iminente perigo iminente de vida?

    Artigo 59 vedado ao mdico deixar de informar ao paciente o

    diagnstico, o prognstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a

    comunicao direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, levando, nesse caso, a

    comunicao ser feita ao seu responsvel legal.

    O mdico est capacitado tcnica e humanitariamente para comunicar o

    prognstico de morte? A expor ao paciente os objetivos do tratamento centrado no

    no curar, mas no cuidar?

    No novo contexto, deve o mdico basear-se na DECLARAO DE

    VENEZA (1993) sobre o paciente terminal:

    1. o dever do mdico curar, quando isso for possvel, aliviar o

    sofrimento e agir na proteo dos melhores interesses do seu

    paciente;

    2. no fazer exceo a este princpio, mesmo no caso de doenas

    incurveis ou malformaes;

    3. este princpio no exclui a aplicao das seguintes regras:

    3.1 o mdico deve aliviar o sofrimento de um paciente com

    enfermidade terminal, atravs da no adoo ou suspenso de

    um tratamento com o consentimento do paciente ou da sua

    famlia imediata, caso esteja impossibilitado de expressar sua

    vontade. A no implantao ou a suspenso do tratamento no

    desobrigam o mdico de sua funo de assistir o paciente que

    est morrendo e de fornecer-lhe os medicamentos necessrios

    para minimizar o sofrimento nessa fase terminal;

    3.2 o mdico deve abster-se de utilizar medidas extraordinrias

    que no tragam benefcios para o paciente;

    3.3 o mdico pode, quando no for possvel reverter o processo

    final de cessao das funes vitais, aplicar meios artificiais,

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 50

    quando os mesmos forem necessrios para manter vivos rgos

    a serem utilizados para transplantes, desde que se proceda de

    acordo com as leis do pas, ou em virtude de um consentimento

    formal dado pela pessoa responsvel, com a certificao da

    morte ou da irreversibilidade da atividade vital constatada, por

    mdicos no relacionados com os transplantes ou com o

    paciente receptor do transplante, devendo os mdicos do

    doador serem totalmente independentes dos mdicos que

    tratam propriamente do receptor.

    A exposio dos artigos, dinmicos e mutveis, do Cdigo de tica Mdica

    vigente no pas, leva reflexo sobre os vrios questionamentos propostos e faz

    pensar na necessidade de sua adequao realidade moderna.

    essencial nova leitura, centrada no paliar, ou mais apropriadamente no

    cuidar nessa fase, a interpretao da sade, como bem-estar fsico, psicolgico,

    social e espiritual, permite ajustes na valorao que se atribui vida humana,

    trazendo a perspectiva da morte no como doena a curar, mas sim parte integrada

    da vida (SILVA, 2004, p. 332)

    Obriga a pensar questes bioticas, como distansia, beneficncia, no-

    maleficncia, autonomia e justia, lembrando: teremos que ter apenas o cuidado de

    no vermos na Biotica aquela que trar as respostas prontas, como fosse capaz de

    dar solues mgicas na rea de sua atuao. Ela trabalha com a legitimidade

    individualizada dos casos e obrigatoriamente nos remete a pensar com uma

    argumentao conceitual terica de aplicao prtica. (SILVA, 2004, p. 330)

    Convida a refletir com Rubem Alves em Sobre o direito de morrer: a vida

    humana, diferente da vida dos bichos e plantas, que se mede por sinais biolgicos e

    eltricos, se mede pela possibilidade de alegria que ela contm. Quando essa

    possibilidade no mais existe, tem uma pessoa o direito de exigir que sua vida

    biolgica no seja mantida por meios hericos, porque cada pessoa senhora de

    sua vida. H uma hora em que o corpo e a alma desejam partir. No se deve impedi-

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 51

    lo na sua deciso, por meio da fora. Ainda que seja a fora mdica. Fazer isso seria

    uma crueldade que no se pode admitir. (ALVES)

    Ajuda a reconhecer que, diante de uma medicina tecnicista, preciso aprender

    a adequar condutas ao verdadeiro benefcio ao paciente, ainda que isso signifique ser

    o poder mdico ferido pela aceitao da morte. No entanto, cuidada, que leva a ter

    significado como parceiro humano do paciente, e a achar significado para a prtica

    mdica que deveria ser humanizada em sua essncia. Quem sabe, ento, ajude a ser

    encontrado o significado para uma parte da individualidade.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

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  • 52

    LONGEVIDADE A VELHICE E A MORTE NO MUNDO MODERNO

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 53

    velhice e morte, so desse modo, banidas do discurso

    oficial, uma vez que velhos e mortos, por no mais se constiturem

    como fora de produo, passam a representar o subproduto

    do sistema: os primeiros por terem se tornado falveis, os segundos

    por radicalizarem essa condio. A morte, constituindo-se

    como smbolo do fracasso e portanto de vergonha.

    (PY e OLIVEIRA, 2004, p. 137)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 54

    N

    este captulo considerarei a morte relacionando-a longevidade. Vou me

    valer de produes de gerontlogos, pois necessidade atual a quebra de

    mitos, tabus e estigmas criados sobre a velhice.

    Comumente se associa morte velhice, e por isso a recusa em considerar-se

    idoso. Ou pior, a aceitao, por parte de muitos, de cerceamentos feitos pela

    sociedade moderna, como se as possibilidades de vivenciar o que quer que se deseja

    at que a morte chegue pudessem ser ceifadas depois de recebido o rtulo de

    velho. No entanto, a morte no exclusivista, no tem preferncia por raa, credo,

    idade, sexo ela abraa todos, sem regras, por motivos que no entendemos, e sobre

    os quais comeamos a filosofar. Como abraa todos, abraa tambm o velho.

    A tendncia do ser humano pensar na morte do outro, o que tambm

    acontece em relao ao envelhecimento o outro envelhece, eu no: velhice e

    morte no habitam o nosso inconsciente, onde mora o desejo e onde somos eternos.

    Na verdade, elas nos so estranhas. Ns as percebemos como coisas que acontecem

    aos outros. (PY, 2006, p. 9)

    Durante a vida ocorrem privaes e perdas sucessivas, e assim se ruma ao

    envelhecimento com o pensamento de que ali sofrer a maior perda a vida, pois:

    podemos dizer que envelhecemos embalados pelo desamparo

    sofrido desde que nascemos, traduzido na expresso de perdas

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 55

    sucessivas que acompanham a nossa existncia. A mais radical das

    perdas a perda da vida, a nossa morte

    (PY, 2006, p. 11)

    A sociedade moderna cultua fortemente a juventude, ao mesmo tempo em

    que tende a marginalizar a velhice, que passa a representar o fracasso, a privao, o

    insucesso, a limitao, a ausncia de futuro. Marginalizada a velhice, surge o medo

    de envelhecer.

    na velhice, confrontamos a chegada da morte, no seu estado

    concreto, o no-ser, a realidade da aproximao da ausncia do

    futuro. por isso que o medo da velhice est confundido com o

    medo da morte, que ainda mais se acentua pela ambincia

    sociocultural, forte estimuladora do medo da velhice e da morte,

    na nfase e no culto pretensa juventude eterna

    (PY, 2006, p. 12)

    Comearei com Mercadante: a autora fala da necessidade de contra-

    generalizao, ou seja, uma desconstruo da velhice genrica, apresentando

    vrios jeitos de envelhecer. (MERCADANTE, 2005, p. 34)

    A importncia de discutir a contra-generalizao em relao morte que h

    na sociedade vigente o conceito de que o envelhecimento to-somente a etapa que

    antecede a morte. Mas isso? Tambm questionado pela autora.

    Deve ser considerada a diversidade de velhices. Essa heterogeneidade leva s

    diferentes formas de viver e conseqentemente de morrer.

    No se pode pensar no idoso como um ser passivo espera da morte, pois

    isso o reduziria sua parte puramente biolgica, e como fala a autora: a velhice...

    alm de sua especificidade biolgica, localiza-se em uma histria e insere-se no

    sistema de relaes sociais.(MERCADANTE, 2005, p. 34)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 56

    Um idoso sem perspectiva de futuro torna-se realmente sem valor para a vida,

    pronto para a morte fsica, completando a morte j instituda de si como sujeito.

    Nesse cenrio, a sociedade estabelece a morte como perspectiva para o idoso,

    em seu contedo puramente fsico, o que a tem tornado fria, distante e

    principalmente institucionalizada.

    Monteiro d o entendimento que preciso parar de enxergar somente os

    atributos negativos na identidade do velho. Esse olhar bem forte na sociedade atual,

    pois como cita o autor, o modelo do corpo desgastado pelo tempo no condiz com

    uma sociedade munida de avanos tecnolgicos.(MONTEIRO, 2005, p. 69)

    Aqui poderia ser pensado que esse modelo de corpo desgastado afronta o

    sonho da imortalidade e leva ao pensamento da morte como fim.

    Considerando esse ponto de vista, ao invs de nos preocuparmos tanto com

    as tecnologias avanadas que mudam corpos que enganam a aparncia, preciso

    uma preocupao maior com o corpo-sujeito, o corpo vivido: sempre velhos corpos

    que atravessam o tempo. (MONTEIRO, 2005, p. 73)

    comum o pensamento associativo entre velhice e morte, porm o mesmo

    autor descreve que a velhice etapa, no fim, e deve ser frutfera, no se

    estipulando a passividade de esperar a morte chegar, pois viver a velhice com receio

    da morte no faz sentido. (MONTEIRO, 2005, p. 77)

    Durante muito tempo sonhou-se com a longevidade. Hoje, ela j prxima,

    sonha-se com a imortalidade. O medo da morte assombra, tornando-a distante,

    desacompanhada.

    A necessidade de domnio sobre sua finitude bem caracterizada pelo autor:

    costumo dizer que caso o humano fosse imortal logo inventaria um modo de

    morrer. Como no , inventa meios para acreditar na imortalidade. (MONTEIRO,

    2005, p. 77)

    Reafirma a mais intrnseca caracterstica, a finitude, dizendo: uma vez na

    vida s nos resta a possibilidade da morte. Morrer um processo natural, como

    viver. Ainda alerta: o sofrimento reside na resistncia. (MONTEIRO, 2005, p. 77)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 57

    Quanto mais se busca o distanciamento da morte, mais se sofre e talvez mais

    se deixe de dar sentido vida. Segundo o autor, viver, envelhecer e morrer so

    processos de conhecimento que nos permitem estar cada vez mais perto de ns

    mesmos [...] cabe a mim estar comigo, pois ningum morrer comigo.

    (MONTEIRO, 2005, p. 78)

    Ser velho no acreditar que seu tempo passou. Tampouco somente esperar a

    morte chegar. o tempo de ser e re-significar-se para que talvez ento a morte no

    seja representada como castigo por no se manter jovem.

    Lopes fala que a velhice no existe isoladamente, mas associada a uma

    cultura e a um momento histrico, caracterizando o velho como ser em constante

    processo de transformao.

    A autora d o claro entendimento de como a morte tormento na sociedade

    atual:se no mundo competitivo o xito implica a adeso a modelos calados no

    encantamento do narcisismo, administrar a proximidade da finitude propiciadora da

    reconstituio de registros primitivos se torna um tormento inafianvel.(LOPES,

    2005, p. 86)

    A sociedade moderna colocou o idoso na ante-sala da morte, lugar ocupado

    por quem deixou de procurar o significado em sua vida passada para almejar novas

    vivncias.

    Almeida mostra que quando indagamos qual o mundo que se abre para o

    indivduo que envelhece, o que observamos que nossa sociedade faz o acento

    recair somente sobre as perdas. (ALMEIDA, 2005, p. 105)

    A morte passa a ser recompensa para essa fase; perdidas as capacidades

    utilitrias sociedade, a morte evento a se esperar passivamente.

    A autora ainda mostra o importante crescimento da populao idosa, em parte

    decorrente de melhorias no mbito da assistncia sade. Porm, tambm alerta que

    se procura viver mais, com qualidade. E questiona: de que vale aumentar a esperana

    de vida se esta vida a mais for marcada pela dependncia e incapacidade, se for

    uma vida comprada em retalhos?. (ALMEIDA, 2005, p. 106)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 58

    Souza descreve o modelo moderno do morrer o processo em mquinas, em

    que a confirmao da morte dada no por uma condio orgnica, mas em traado

    isoeltrico na tela do monitor.

    Normalmente se espera do mdico um milagre, como se pudesse impedir a

    morte de se aproximar. Distintas pessoas, sem olhar crtico e humano, se apropriam

    desse poder milagroso (como se pudessem!) e travam uma batalha, por vezes

    infindvel e normalmente desumana, transformando o paciente em meros dados

    laboratoriais, imagenolgicos ou traados ecogrficos. O autor comenta:

    a perda da autonomia nos deixa a merc das mquinas sob o

    mote de sobreviver a qualquer custo e sabiamente completa: as

    mquinas podem ser, sem dvida, muito teis, mas no podemos

    nos esquecer quem somos, que vivemos, que amamos, que

    envelhecemos, que adoecemos e que morremos. (SOUZA, 2005,

    p. 212)

    Crte destaca a busca da imortalidade: a biotecnologia tambm busca a

    imortalidade. A humanidade sempre almejou a imortalidade. a fantasia final, uma

    fantasia que tambm est em curso em todas as tecnologias modernas. (CRTE,

    2005, p. 254)

    A autora se reporta a Baudillard e ao filme O homem bicentenrio para

    ratificar: o que d status ao que humano: sua finitude. Apesar de todos os

    avanos biotecnolgicos que podero perpetuar o homem, o que d sentido ao ser

    humano a iminente e certa mortalidade. (CRTE, 2005, p. 255)

    Maldonado fala que a morte no problema, mas mistrio mais que

    uma simples dimenso da existncia. A nica possibilidade de conhecimento que

    resta aquela da morte do outro. (MALDONADO, 2003, p. 19)

    Achei no texto vnculo direto com o contedo desta dissertao quando o

    autor escreve:

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 59

    ... as grandes religies, as filosofias, as vises de mundo

    propem modos os mais diversos para captar a realidade da morte

    e para colocar a prpria vida em relao com a morte. Coloca-se

    aqui a importncia do smbolo que, ocultando e revelando, ao

    mesmo tempo, recoloca a morte na dimenso psicolgica: l onde

    a morte assumida como pulso, h inevitavelmente o smbolo de

    revel-la. (MALDONADO, 2003, p. 24)

    Pond utiliza-se da metfora mdica do paciente de Rosenzweig para dizer

    que a felicidade est associada a um ativismo biolgico, ou seja juventude. Mas um

    dia essa mesma natureza biolgica nos conduzir ao processo ltimo e necessrio da

    fisiologia: a morte, e sua crnica anunciada: o envelhecimento.

    Transcreverei o texto original por concordar com o autor: por isso,

    mdicoRosenzweig reconhece que, ao devolver a sade razo, devolve o paciente

    conscincia da morte. (POND, 2003, p. 32)

    o relato do prprio autor:

    ns nos batemos contra o medo de viver, contra o desejo de pisar

    fora da corrente; agora podemos descobrir que a doena da razo

    era puramente uma tentativa de fugir da vida. O homem,

    congelado como uma pedra, na torrencial corrente da vida v

    como aquele famoso Prncipe Hindu, a morte esperando por ele.

    Ento, ele sai da vida. Se viver significa morrer, ele prefere

    morrer. Ele escolhe a morte na vida.

    Escapa da inevitabilidade da morte adentrando a paralisia da

    morte artificial.

    Libertamo-nos de sua paralisia, mas somos incapazes de impedir

    sua morte; nenhum mdico pode fazer isso; ns o ensinamos a

    viver; entretanto, cada passo que ele d leva-o mais perto da

    morte.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 60

    No h remdio para a morte, nem mesmo a sade. U m homem

    saudvel tem a fora para continuar em direo ao tmulo. O

    homem doente invoca a morte e deixa-se levar por um medo

    mortal.[...] a sade est em paz com a morte.

    Ela sabe que quando o Aterrorizante Ceifador vier, ele retirar sua

    mscara de pedra e tomar a chama faiscante das mos ansiosas,

    amedrontadas e desapontadas do Irmo Vida; ele sabe que a

    despedaar contra o solo, extinguindo-a [...] Sabe que ser aceito

    nos braos abertos da morte. Os lbios eloqentes da vida so

    silenciosos e Aquele eternamente silencioso falar:

    Voc me conhece? Sou seu irmo. (POND, 2003, p. 32)

    Nota-se total identificao com comportamentos do cotidiano.

    Endo afirma que o modelo atual determina:

    a partir de uma certa idade voc tem que esperar a morte, voc

    no tem mais nada a fazer no meio social, voc espera a morte da

    melhor maneira que puder, e no s uma sugesto, vamos dizer

    assim, h uma certa insistncia nisso. (ENDO, 2002, p. 63)

    essa a imposio social: olha, voc j aproveitou o que tinha que

    aproveitar, agora trate de morrer. Obriga o velho carregar culpa por existir. E se

    veja beira do caminho esperando a morte chegar, vista como punio ao estorvo

    que ser velho.

    Revendo os textos constata-se que a velhice compreendida como sinnimo

    de morte como se no atingisse jovens e crianas!

    A morte passa a ser vista como punio ao ser velho, paradoxal dentro de

    uma sociedade que busca incessantemente a longevidade e a imortalidade.

    Esse modelo que estimula a longevidade e marginaliza o idoso gera

    pensamento ambguo: para que viver? e por que desistir de viver?

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 61

    a velhice, senhora hbil em vulnerar-nos a sade e fragilizar-nos

    as capacidades, provoca-nos a, pelo menos, dois modos de

    reflexo. Um deles o desmerecimento da existncia humana:

    Para que viver muito se vou envelhecer, adoecer e morrer? Outro

    a impulso para a descoberta de novas possibilidades, no fluxo

    constante do vir a ser: Para que sair de cena se posso, sempre,

    transformar meu personagem?

    (PY, 2006, p. 13)

    Caber a cada um, baseado em possibilidades emocionais, escolher a melhor

    atitude.

    Como citado em alguns textos, o ser humano tomado pela fantasia da

    imortalidade. Mas se fosse mortal, por certo daria um jeito de morrer. Aps

    conseguir a longevidade, a sociedade deseja a morte dos mesmos.

    Ttora traz a discusso da tica da vida e do envelhecimento e fala que na

    velhice o tempo se esvai e a morte se torna mais prxima. Por isso o no querer

    envelhecer. Como se o tempo pudesse ser estancado e no houvesse morte em outras

    fases da vida..

    Refora que a sociedade moderna desencadeia averso velhice. Velho

    sempre o outro, fase das carncias e das perdas em uma cultura que valoriza os

    excessos de prazeres e o culto da felicidade como ausncia de sofrimento, doena e

    dor, ser velho privao. Porm, no se trata mais de situar a velhice enquanto

    um estado de carncia ou perda, mas sim como um modo de vida singular

    (TTORA, 2006, p. 36)

    A autora sabiamente mostra, no tocante morte, que querer uma vida sem

    doena, dor e morte o mesmo que dizer no prpria vida, acrescentando: a

    velhice... deixa de ser uma fase cronolgica e passa a constituir-se em uma atitude

    para fazer a vida saciar-se a cada momento como se fora o derradeiro dia. Viver o

    infinito da vida no finito de cada instante. (TTORA, 2006, p. 45)

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 62

    Ouso utilizar uma fala da autora para exprimir sentimento em relao

    morte; acontecimento do qual os humanos no podem se abster de experimentar.

    Sendo assim, cabe viver com as maravilhas da vida e apesar das dores.

    atribuir vida o estatuto de acontecimento, maneira dos

    esticos, significa que a nica escolha possvel viver, com todas

    as maravilhas e dores deste mundo. Ora, no se trata, com isso, de

    um mero conformismo, ou falta de liberdade, mas sim de sermos

    dignos do que nos acontece. (TTORA, 2006, p. 34)

    Reportar-me-ei literatura, na palavra de Saramago, no livro As

    intermitncias da morte. O autor, de forma espetacular, diz que, alcanada a

    imortalidade, o homem buscaria incessantemente e a todo custo a morte.

    No contexto da morte ter suspendido suas atividades:

    antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me

    encontrei diante das pessoas que haviam falecido, nunca imaginei

    que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer.

    Porque cada um de ns tem sua prpria morte, transportando-a

    consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu

    pertence-lhe... Cada qual com sua morte. Assim . Ento as mortes

    so muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e

    existiro. (SARAMAGO, 2005, p. 73)

    A morte ocorre diariamente. O incmodo aparece quando passa a ser notada.

    Morrer natural, assim como natural querer esquivar-se da morte, na iluso

    de ser possvel.

    Em seu romance, Saramago descreveu que a morte s se torna alarmante

    quando se multiplica; porm, sabiamente demonstra como tambm ser alarmante a

    sua ausncia. O ritmo de viver seria rompido e isso traria transtornos, mesmo para

    aqueles que sempre desejaram o fim da morte para que ela no se tornasse seu fim.

    O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da

    reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos

  • 63

    A sutileza do autor mostra como a morte fica magoada com a

    incompreenso dos homens sobre si.

    ... ela tambm tem seus sentimentos. Magoada porque os seres

    humanos tanto a detestam, a morte resolve mostrar como, no

    fundo, eles so uns ingratos. (SARAMAGO, 2005)

    Ainda mostra que o silncio da mo