suzy, led zeppelin e eu
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Glasgow, 1972. O Led Zeppelin vai tocar na cidade e o jovem Martin Millar conta os segundos para o maior show da história, ao mesmo tempo em que sofre de amor por Suzy, a garota inalcançável. Um relato nostálgico, engraçado, comovente e absolutamente rock’n’roll.TRANSCRIPT
SUZY,
EUMARTIN MILLAR
“Merece juntar-se ao restrito panteão dos grandes romances de rock.”[ The Times ]
Led Zeppelin
&
SUZY,
EU
Led Zeppelin
&
Título original: Suzy, Led Zeppelin, and Me
Copyright © 2008, Martin Millar
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Editor: Marcelo Viegas
Capa, Projeto Gráfico e Diagramação: Guilherme Theodoro
Tradução: Leonardo B. Scriptore
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ID-26
SUZY,
EUMARTIN MILLAR
Led Zeppelin
&
martin millar
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capítulo 1
No dia 4 de dezembro de 1972, o Led Zeppelin veio tocar em Glasgow. Se você
não mora na Grã Bretanha, você pode não saber onde fica Glasgow. É uma ci-
dade grande na costa oeste da Escócia. A Escócia é logo ao norte da Inglaterra.
Não vou te incomodar mais com geografia. Eu sei que você tem déficit de
atenção. Eu também tenho. Eu não consigo assistir ao mesmo programa na TV
por mais de alguns segundos sem mudar de canal. Não consigo mais aguentar
filmes longos. Eu nunca vou ao cinema por medo de ficar entediado. Quando
estou lendo um livro, preciso que os capítulos sejam breves.
Nenhuma parte deste livro será maior que algumas centenas de palavras. Mes-
mo com déficit de atenção, você conseguirá lê-lo facilmente, um pouco de cada vez.
Em sua maior parte, o livro se refere a eventos paralelos ao show do Led Zeppelin,
muitos anos atrás. Eu me lembro bem dos acontecimentos principais, mas a minha
memória para detalhes pode ser fraca. Isso frequentemente me causa problemas.
Eu nunca me lembro quem as pessoas são se as encontrei apenas algumas vezes,
ou quando é o aniversário de alguém, ou a data que eu tenho que fazer alguma
coisa. Então andei perguntando a alguns velhos amigos sobre o show, descobrindo
coisas que talvez eu tenha esquecido. Por exemplo, estava chovendo na noite da
apresentação? Glasgow é uma cidade até que bem chuvosa e poderia muito bem
estar chovendo, mas eu não consigo me lembrar. E onde as garotas da minha escola
compraram seus casacos afegãos1? Eu acho que soube isso em algum momento. Eu
ainda consigo me lembrar de como cortar um par de jeans até os joelhos e costurar
um triângulo de pano brilhante para dar um visual “extra-boca-de-sino”.
Meu amigo Greg estava lá, e a Cherry, e o Zed, e também a Suzy, que foi na-
morada do Zed por algum tempo. Greg era apaixonado pela Suzy, e eu também,
ou era o que me parecia naquela época. Eu tinha quinze anos e era facilmente
confundido por sentimentos. Eu estava me sentindo emocionado durante todo
o outono e o inverno. Emocionado com a Suzy e com o Led Zeppelin.
Estou vendo que este capítulo tem apenas 387 palavras. Curto o bastante até
para o seu déficit de atenção. Não tem discussão.
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capítulo 2
A maior parte deste livro é o registro de conversas que tive com minha amiga
Manx. Mesmo quando eu não me importei em escrever parecendo uma conver-
sa, ou pondo aspas no texto, é muito provavelmente algo sobre o qual eu estava
conversando com a Manx.
O título deste romance poderia facilmente ser Conversas Com Minha Amiga
Manx. Teria sido um bom nome para um livro. Perspicaz e preciso. Mas eu re-
jeitei porque queria Led Zeppelin no título. Afinal de contas, isso é basicamente
do que se trata este livro, eu indo ver o Led Zeppelin quando estava na escola e
contando para a minha amiga Manx muito tempo depois.
Eu gosto muito da Manx. Ela está sempre pronta para ouvir as minhas his-
tórias do Led Zeppelin. Eu falo com ela todo dia, geralmente pelo telefone, e
nós trocamos e-mails também. Às vezes nós nos encontramos, mas desde que
Manx teve seu bebê ela encontra dificuldades em marcar alguma coisa. Apesar
da alta qualidade das minhas histórias sobre o Led Zeppelin, Manx está fre-
quentemente deprimida. Ela está deprimida desde que teve o bebê. Eu pretendo
animá-la. É minha missão na vida.
“Então”, diz Manx. “Você estava lá naquele dia em 1972 quando o Led Zeppe-
lin veio para Glasgow?”
“Certamente, Manx. E eu vou te contar tudo sobre isso. Eu vou te contar do
jeito que o Platão conta a seus leitores sobre Sócrates em O Banquete, um livro
muito interessante, relatando toda sorte de coisas pela pessoa de Apolodoro, o
qual ouviu tudo de Aristodemo.”
“Fascinante. Mas não se empolga. Suas histórias da Grécia Antiga foram ano
passado. Este ano é Led Zeppelin.”
Sócrates, que viveu mais ou menos em 400 AC, ainda faz umas aparições
ocasionais no mundo moderno. Alguns anos atrás ele apareceu em um filme, As
Aventuras de Bill e Ted. Eu gostei. Eu gostava do Bill e do Ted. Eles teriam amado
o show do Led Zeppelin.
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capítulo 3
Uma jovem amiga da Manx celebrou recentemente seu vigésimo primeiro ani-
versário. Nós assistimos a ela e suas amigas saírem para se divertir.
“Queria ter vinte e um”, disse Manx.
“Eu também”, concordei.
Isso me fez pensar no que eu fiz no meu aniversário de vinte e um anos. Eu
não me lembro. Deu branco. O que eu fiz? Deve ter rolado alguma festa.
Eu tinha quinze anos quando vi o Led Zeppelin. Disso eu me lembro bem.
Eu saí de casa quando tinha dezessete. Eu me lembro disso. Mas, apenas quatro
anos depois e tudo ficou nebuloso.
Tenho agora pouco mais de quarenta. Jovem demais, espero, para demência senil.
Talvez eu não me lembre de coisas das quais não quero me lembrar. Talvez meu vigé-
simo primeiro aniversário tenha sido um fiasco. Talvez ninguém tenha vindo.
Raramente gosto de aniversários. Eu me recordo claramente de uma certa
depressão nos meus dezesseis anos, quando senti que estava ficando velho.
Um ano antes disso, quando o Led Zeppelin estava vindo para a cidade, tudo
era novo e empolgante, e a infelicidade irritante causada pela minha paixão por
Suzy ainda não me acarretava sérios problemas.
Um amigo em Glasgow diz que não se lembra muito do show. Ele não se lembra
se estava chovendo naquela noite, mas se lembra que estava muito frio do lado de
fora. Quando saímos do auditório dava para ver as nuvens de vapor saindo do cor-
po das pessoas. Depois da euforia de testemunhar o Led Zeppelin tocando no palco
a poucos metros de nós, todos estávamos encharcados de suor e o calor dos nossos
corpos emanava vapor que se dissipava no ar gelado da noite.
Tarde da noite, às vezes, procuro na internet por nomes de pessoas que eu
conhecia quando estava na escola, mesmo que existam poucas chances de eu
querer falar com essas pessoas de novo. Não sei direito por que eu faço isso. Pro-
vavelmente é um sintoma da minha insatisfação com a vida. Eu estou sempre
insatisfeito com alguma coisa. Sempre estive. A única vez que eu me lembro de
estar completamente satisfeito foi quando o Led Zeppelin subiu no palco e co-
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meçou a tocar. Eles tocaram por duas horas. Duas horas de completa satisfação.
Não há discussão sobre isso.
Muitos anos se passaram, e agora estou morando em Londres, ganhando
a vida como escritor. Progredi o suficiente para ser juiz de competições literá-
rias. Mas eu falo mais disso depois. Agora eu devo contar para você sobre meus
amigos da escola, Greg e Suzy, e talvez da Cherry, apesar da Cherry não contar
muito. E eu também vou falar mais sobre o namorado da Suzy, Zed, que era, eis
um ponto crucial, um ano mais velho do que nós. Greg e eu gostávamos do Zed.
Nós o admirávamos, apesar de ser irritante o fato de ele namorar a Suzy, por
quem nós dois estávamos apaixonados.
Eu não estava no vigésimo primeiro aniversário da Suzy, mas tenho certeza
que foi uma celebração fabulosa. Ela era o tipo de pessoa que sempre comemo-
rava seu aniversário com celebrações fabulosas.
capítulo 4
“Então”, diz Manx. “Me conta da garota por quem você era apaixonado. Você
ficou fazendo papel de bobo o tempo todo com ela?”
“Acho que não. Eu escondia bem minhas emoções. Qualquer outra atitude
teria sido fatal. Você sabe como as crianças são malvadas umas com as outras.”
Suzy estava na mesma sala que eu na escola, mas como eu tinha quinze e
ela tinha dezesseis era inútil me apaixonar por ela. Meninas de dezesseis não
saem com meninos de quinze. Sem dúvida você já passou por isso na vida. Se
você é homem, irá lembrar de olhar com desejo, e nenhuma esperança, para
uma garota na escola que só era mais velha que você, mas que tinha tanta
probabilidade de estar na capa da Vogue quanto você tinha de sair com ela. E se
você é mulher, deduzo que se lembrará de algum garoto que olhava para você
de uma forma estranha, e que, apesar de você não se importar muito com ele,
você preferiria ter morrido do que ter sido vista saindo com ele.
“Assim é a vida nessa idade”, diz Manx.
Faço que sim com a cabeça.
Agora que eu tenho mais de quarenta anos ninguém se recusaria a sair co-
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migo baseando-se somente no fato de eu ser um ano mais novo.
Uma mulher poderia ter muitas outras razões, tipo o meu histórico bem fra-
co nos relacionamentos, por exemplo, mas a idade não tem nada a ver com isso.
Ainda me sinto levemente humilhado de ter sido considerado inferior pelas
meninas da minha própria classe por ser imaturo. Elas estavam certas. Compa-
rado a elas, eu era mesmo.
capítulo 5
Eu nunca fui muito feliz na escola. Não sei ao certo o motivo. Olhando para
trás, não parece que nada especialmente ruim estava acontecendo. Mas quan-
do você tem doze ou treze, não se dar bem com os professores já é motivo sufi-
ciente para você ficar triste.
Eu não tinha muitos amigos além do Greg. Não gostávamos de esportes,
não assistíamos muito à TV e não parecíamos ter muito assunto com as outras
pessoas da nossa sala. Nossos cabelos e nossas roupas de hippie faziam de mim
e Greg motivos de piada em todo lugar. Eu nunca tive uma namorada. Até os
treze anos, mais ou menos, eu não sabia que meninos tinham namoradas. Eu
fiquei chocado quando vi alguns garotos que eu conhecia andando com meni-
nas. Acho que eu perdi esse estágio de desenvolvimento.
“Acha que a gente devia arrumar umas namoradas?”, disse para o Greg,
tentando não soar muito sério.
“Aham”, disse Greg.
Não conseguíamos pensar em muito mais a dizer sobre o assunto. Nenhum de
nós sabia como conseguir uma namorada. Nós estávamos na rua, na escuridão das
primeiras horas do dia, entregando jornais, e continuamos a subir a rua em silêncio.
“Com quem você ia querer sair?”, perguntou Greg finalmente, dobrando uma
cópia do Scotsman antes de empurrá-la numa caixa de correspondência.
Dei de ombros, dando a entender que não tinha pensado o suficiente no
assunto para tomar uma decisão. Não era verdade. Eu já sabia que se fosse
para eu ter uma namorada, a candidata número um seria a Suzy. Ela não
morava longe de mim, era só subir a ladeira. Frequentemente encontrava
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Suzy enquanto íamos para a escola e nós estávamos nas mesmas salas em
várias matérias.
Eu não gostava de mencionar o nome dela para o Greg para ele não rir de
mim por ser ambicioso demais. Afinal de contas, Suzy era nove meses mais
velha do que eu e aos treze já dava para notar. Eu era infantil, ainda brincava.
A Suzy tinha subitamente virado uma jovem mulher, com cosméticos, roupas
novas, atitudes novas e, visivelmente, uma nova silhueta.
“A Suzy é legal”, disse Greg, me pegando de surpresa. Era perturbador ele já
tê-la percebido.
“Você acha?”
“Claro”, disse Greg. “Ela é uma potranca.”
Na nossa escola em Glasgow, esse era o nosso jeito de expressar aprovação.
Era certamente bem explícito.
Nós não deixamos um jornal na casa da Suzy, mas depois disso, sempre fitá-
vamos melancolicamente a janela do quarto dela ao passar.
Mais ou menos um mês depois, perguntei para o Zed o que ele achava da
Suzy. Ele deu de ombros, dando a entender que não tinha nem pensado nela.
Olhando em retrospectiva, isso foi bem traiçoeiro, já que ele acabou saindo com
ela e me causando bastante sofrimento, mas, na real, Zed não tinha razão ne-
nhuma para dividir seus pensamentos comigo. Ele estava um ano à minha fren-
te na escola. Isso contava muito.
Não vou falar muito sobre a escola. Afinal, você foi para a escola. Você sabe
como é. Mas talvez você não saiba como é estar na escola quando o Led Zeppe-
lin está vindo tocar na sua cidade, como em Glasgow, em 1972.
Capítulo 6
Greg e eu ficamos deprimidos quando o Zed começou a sair com a Suzy. De vez em
quando, nas noites escuras, nas esquinas sem nada para fazer, a gente reclamava.
“Legal pro Zed”, a gente dizia. “A Suzy não se importa de sair com ele. Ele
tem um ano a mais.”
“Se a gente tivesse um ano a mais, ela sairia com a gente”.
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Na realidade, não era só a idade do Zed que o credenciava a tão desejada
posição de namorado da Suzy. Zed estava entre as pessoas mais descoladas da
nossa escola. No começo dos anos setenta, ele chegava na sala de aula com
um casaco afegão, às vezes usando uns colares de bolinhas. Os professores re-
clamavam do tamanho de seu cabelo e ele olhava fazendo cara de paisagem
através de seu par de óculos azuis estilo John Lennon.
Zed era legal demais para ser meu amigo. Os outros amigos dele nem sequer
falavam comigo. Eu parecia não estar à altura deles. Mas o Zed não se preocu-
pava com essas coisas. A gente era quase vizinho e se a gente se encontrasse a
caminho da escola ele era sempre amigável.
Gostávamos do mesmo tipo de música. Nenhum dos dois tinha a menor
dúvida de que o Led Zeppelin era a melhor banda do mundo. Não somente o
Led Zeppelin era a melhor banda que existia, mas também a melhor banda que
poderia existir. Se em algum lugar do universo existisse uma forma ideal platô-
nica de uma banda, uma banda perfeita da qual todas as outras seriam apenas
um pálido reflexo, essa banda era o Led Zeppelin.
Não havia discussão sobre isso em 1972 e eu não vou discutir sobre isso
agora. O Led Zeppelin foi a melhor banda e é isso.
Se o Greg e eu não éramos legais o suficiente para sermos potenciais namo-
rados, nós pelo menos podíamos visitar a Suzy como amigos, beber chá, ouvir
discos e conversar. Às vezes a Suzy falava de suas ambições.
“Eu decidi estudar e virar médica.”
Greg e eu ficamos impressionados.
“Não tem que estudar um tempão?”
Suzy fez que sim com a cabeça. Como uma garota ambiciosa, ela não se
importava com a perspectiva de um longo período de estudo.
“Eu quero que o Zed vá para a universidade também”, continuou. “Mas ele
vive dizendo que quer ir para a Índia.”
Era uma coisa popular de se fazer naquela época, mas estava claro que Suzy
não aprovava. Parecia uma ideia empolgante, mas eu fiquei quieto para não
bater de frente com ela.
A Suzy, ah, ela era bonita com seus colares de contas e seu casaco afegão, que
era marrom claro e com bordados verdes, com pele branca nas beiradas. Ela tinha
uma bolsa feita de retalhos de couro e botas plataforma feitas de brim. Ela tinha
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uma feição felina e cabelo loiro comprido, muito claro. Eu costumava sentar atrás
de Suzy na sala de aula e só olhava para o cabelo dela. Greg também. A gente não
tinha definido ainda a diferença entre amor e tesão, o que era compreensível. A
gente só tinha quinze anos. Muita gente nunca define essa diferença.
Greg era um bom músico e pensava em montar uma banda, mas parecia
algo difícil de se fazer. Em 1972, todo mundo achava que você devia começar
a tocar muito jovem e ser um músico altamente capacitado antes de entrar
numa banda. Isso mudou em 1976, quando o punk rock decidiu que não ser um
bom músico era uma coisa boa. Um dia as pessoas colocavam a mão pela pri-
meira vez numa guitarra, no dia seguinte estavam em cima do palco com uma
banda. Um sistema muito melhor.
Hoje em dia qualquer pessoa pode entrar numa banda, mesmo sem saber
tocar coisa alguma, contanto que saiba mexer num sampler, ou num compu-
tador, e isso é um sistema melhor ainda. Era uma ideia chata que os jovens
tinham que ser músicos especialistas antes de poder subir num palco e se livrar
de suas angústias e frustrações através da música. Qualquer pessoa deveria
poder fazer isso.
Então, o Zed pensava em entrar numa banda, mas achava que ia acabar es-
tudando Letras na universidade e talvez arrumar um trabalho em algum lugar
depois disso. Eu não tinha ambições. Eu nunca tive ambições.
Capítulo 7
Essa é a história de como eu vi a Manx pela primeira vez. Em 1985, treze anos
depois do show do Led Zeppelin, eu estava sentado num ônibus, no semáforo,
quando uma jovem com um chapéu de Nefertiti atravessou a rua.
Foi no ônibus 159 na Rua Brixton. Brixton fica no sul de Londres e o 159 é o
meu ônibus favorito. Naquela época, como agora, os ônibus da rota 159 eram
os velhos routemasters2 de dois andares, com a porta aberta na parte de trás. Os
routemasters são ônibus confortáveis à moda antiga. Os primeiros foram fabri-
cados em 1935. Você pode entrar e sair deles nos semáforos. Eles ainda têm um
cobrador e têm uma forma arredondada legal. Muitas pessoas preferem esses
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ônibus, mas eles estão saindo de linha, dando lugar aos ônibus conduzidos por
um homem só, que são feios e quadrados.
Os ônibus operados por um homem só podem deixar você entrar e sair se
você estiver em uma cadeira de rodas. Então, eu acho que eles devem ser uma
coisa boa, na verdade. Mas eu vou sentir saudades dos ônibus antigos quando
eles sumirem completamente.
O ônibus 159 é muito útil. Ele vai de Streatham, desce a ladeira para Brixton
e Kennington, sobre o rio para Praça Trafalgar e daí até a Rua Oxford. Costuma-
va ir até a Rua Baker antes de eles encurtarem a rota. A Rua Baker é aquela do
Sherlock Holmes.
Quando a jovem passou, não pude evitar de ficar impressionado. Seu chapéu
era uma peça extravagante que exigia confiança para se usar. Ele se erguia a trinta
centímetros da cabeça dela como um grande frasco preto de remédios, uma versão
angulada e sem aba de uma cartola, mas mais bonita. Era uma cópia do chapéu
usado pela Rainha Nefertiti no Antigo Egito e era algo muito incomum para qual-
quer pessoa usar em 1985, mesmo em Brixton, onde o vestuário era bem relaxado.
Ela tinha pele marrom clara e era o que eu tinha aprendido a chamar de mes-
tiça. Eu digo ‘aprendi a chamar’ porque quando eu estava crescendo em Glasgow
eu teria chamado qualquer um que tivesse um pai ou mãe negro e um pai ou
mãe branco de ‘meia-casta’3. É o que qualquer um em Glasgow no começo dos
anos setenta teria dito, sem nunca pensar que outra pessoa poderia se ofender.
Ninguém lá tinha ouvido falar do termo ‘mestiço’. Pensando na frase ‘meia-casta’
agora, parece estranho. ‘Meia-o-quê’? O que é que casta tem a ver com isso?
A garota com chapéu de Nefertiti deslizou pela rua como se fosse a coisa
mais natural do mundo estar caminhando pela Rua Brixton com seu chapéu
excêntrico e seu longo robe, que podia muito bem ser uma cópia do robe que a
Rainha Nefertiti usou 3300 anos atrás no Egito.
Eu estava impressionado. Ainda estou. Eu pensei na jovem por um longo
tempo depois e sempre pensei se a gente ia se conhecer. Teria sido uma grande
surpresa para mim naquela época se me dissessem que um dia eu seria jurado
de uma competição literária com ela.
Eu fui um jurado impressionantemente ruim nessa competição. Eu me en-
vergonho de pensar na minha inutilidade como juiz. Ninguém mais me chama-
ria para ser jurado em competição literária alguma.
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suzy, led zeppelin & eu
Capítulo 8
Zed, Suzy, Greg e eu morávamos todos perto uns dos outros em Bishopbriggs,
um conjunto de casas geminadas na beirada norte de Glasgow. Cherry morava
perto também, mas como ela era um ano mais nova, a gente não a via muito na
escola. Estava bom assim para mim e para o Greg. Cherry tinha o cabelo ruivo,
sardas, óculos e, pior de tudo, ainda usava o blazer da escola, mesmo quando já
não era mais obrigatório. Cherry era o que depois seria denominado “nerd”. Se
o Greg e eu a víssemos enquanto andávamos para a escola, nós acelerávamos
para ela não nos alcançar, mesmo quando ela gritava para a gente esperar.
Greg e eu sabíamos que não éramos garotos muito descolados. A gente era bem
zoado na escola. Não tínhamos a menor vontade de fazer nossa situação piorar
andando com a Cherry. Ela era o tipo de pessoa que sempre fazia a lição de casa
e era adorada pelos professores. O fato de a Suzy ser amiga dela irritava a gente.
“Por que”, refletia Greg, “a Suzy gosta dela?”
“Os pais delas se conhecem. E eles são vizinhos.”
Greg puxava as pontas do cabelo, fazendo um cálculo mental sobre seu
comprimento. Nós dois tínhamos cabelos compridos. Eu estava sempre en-
trando em enrascadas na escola por causa disso. O Greg também. Há poucos
anos em Glasgow nenhum homem teria cabelo comprido e os professores ainda
achavam incômodo que seus alunos aparecessem na escola com os cabelos
passando dos ombros.
Não eram só os professores que protestavam contra isso. Muitos cidadãos de
Glasgow achavam difícil de engolir. 1967, a Era dos Hippies, não impressionou
muito por aqui e, em 1972, Greg e eu éramos rotineiramente atormentados na
rua por causa do cabelo.
O cabelo do Zed era especialmente legal. Era encaracolado e fazia ele pare-
cer um pouco o Marc Bolan.
“Não é à toa que a Suzy sai com ele”, Greg e eu costumávamos dizer, pensan-
do nas injustiças da vida. “Ele parece o Marc Bolan.”
Marc Bolan era o vocalista do T. Rex. A gente não gostava de T. Rex porque
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eles eram pop demais, o que, para uma banda, era o crime definitivo. Lá atrás,
nos dias do rock progressivo, a gente levava isso muito a sério. O Led Zeppelin
nunca lançava singles porque singles eram pop demais e a gente entendia isso
completamente. Mas nós não podíamos negar o poder que Marc Bolan tinha
sobre as mulheres.
O Zed era assim. Ele era o nosso Marc Bolan local. Ele amava o Led Zeppelin
com uma paixão feroz.
Capítulo 9
A Cherry era uma menina irritante. O cabelo vermelho, as sardas e os óculos de
aro de plástico preto já eram ruins o suficiente, mas ela era extremamente es-
perta e isso enchia o saco. Apesar de estar um ano abaixo de mim e do Greg ela
sabia mais das coisas da escola do que a gente. Quando a gente estava perdido
em álgebra ou cálculo, a Cherry sabia resolver mesmo que a classe dela não
tivesse chegado ainda naquele estágio. Ela lia as coisas em seu próprio tempo
e ia decifrando as coisas antes de os professores explicarem. Apesar de isso ser
algo útil quando eu e o Greg precisávamos de ajuda com a lição de casa, não era
algo que podíamos perdoar facilmente.
A gente se via no caminho de volta da escola. Invariavelmente ela andava
sozinha para casa.
“Como faz essa equação?”, a gente perguntava. Ou “como você descobre as
coisas sobre o Egito?”
Estávamos sempre fazendo trabalhos sobre o Egito antigo. Nossos professo-
res eram obcecados com o lugar.
A Cherry nos dizia como resolver a equação ou como encontrar informações
sobre o Egito e a gente rabiscava umas anotações e saía andando rápido e a dei-
xava para trás. Se ela tentasse acompanhar, a gente falava para ela ir embora e
parar de encher nosso saco.
“Que babaca”, o Greg dizia, enquanto ela ainda estava perto o suficiente para ouvir.
“Ela adora saber todas essas respostas. É porque ela tá sempre puxando o
saco dos professores.”
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suzy, led zeppelin & eu
Tirando a Suzy, que nem gostava tanto dela assim, o único amigo da Cherry
era o Phil. O Phil morava perto e era universalmente desprezado porque estava
acima do peso e ia para uma escola para adolescentes superdotados. Mesmo
que eu e o Greg soubéssemos como era ser zoado e que deveríamos ter mais
noção, nós éramos malvados com o Phil. A gente não conseguia resistir. Os pais
dele eram um pouco mais ricos do que o resto dos residentes do bairro e o Phil
sempre parecia estar usando roupas que eram ao mesmo tempo caras e infan-
tis demais para a idade dele. Além disso, ele era gordo, o que parecia ser um
crime considerável por si só.
Se a gente encontrasse o Phil na rua, a gente ria dele. Phil ignorava a gente.
Eventualmente, ele ia visitar a Cherry.
“Olha lá o namorado da Cherry”, Greg dizia, e a gente ria pensando no na-
moro dos dois.
Phil raramente saía de casa durante a noite, então a Cherry nunca tinha nin-
guém para fazer companhia. Eu e o Greg ficávamos no parque ou então íamos
até as lojas comprar cigarro, e talvez encontrar o Zed, que às vezes tinha alguma
bebida alcoólica e dividia com a gente. A gente não estava nem aí para a Cherry.
“Você não pode esperar ter amigos se você usa óculos daqueles”, dizia o
Greg, e eu concordava. Eu tinha que usar óculos também, mas eu quase nunca
usava. A vida já era difícil o suficiente sem o agravante de usar óculos.
Cherry mantinha um diário, outra coisa ruim. Às vezes ela era vista sozinha na
escola escrevendo algo. Só uma pessoa que realmente não tinha uma vida faria isso.
Cherry fazia aulas de violino. Ela tinha um diário. Ela nem sabia o que era
Led Zeppelin. Que babaca.
Capítulo 10
O Led Zeppelin foi de longe a banda de rock mais bem-sucedida de seu tempo.
Eles dominaram o mundo de 1969 até 1976 e lançaram uma série de álbuns
que venderam números gigantescos. Eles não saíram do auge até a chegada do
punk rock. Quando o furor do punk desapareceu, eles voltaram à estima do pú-
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blico até que fosse bem normal ouvir músicos do rock contemporâneo citá-los
como uma das maiores influências. Eles terminaram em 1979 quando John Bo-
nham morreu. Ele era o baterista e morreu engasgado no próprio vômito depois
de uma sessão pesada de bebedeira. Depois disso eles não quiseram continuar.
Manx não está tão impressionada com nada disso.
“Quem liga hoje em dia?”
“Bom, eu não sei se alguém liga, Manx. Mas se ninguém liga, e daí? Eu ainda
posso escrever sobre isso.”
Manx dá de ombros. Ela está alimentando o Malachi, então não consegue
dar toda atenção à conversa.
Quando eu originalmente me preparei para escrever sobre o Led Zeppelin,
presumi que o nome deles ainda ressoaria forte para a maioria dos leitores. Eu
percebi que quando o Otto, o motorista de ônibus dos Simpsons, estava prestes
a se afogar em um episódio apenas alguns anos atrás, suas últimas palavras
foram “O Zeppelin é o maior!” Mas talvez a Manx estivesse certa. Talvez a banda
não fosse mais tão popular. O rock em si já não prevalece tanto quanto costu-
mava. O techno e a dance music são populares há muito tempo e uma geração
inteira cresceu divorciada do mito do Led Zeppelin não só pela época, mas tam-
bém pelo gênero. Deve ter um monte de gente para quem Led Zeppelin é nada
mais que um nome em um passado distante.
Malachi para de mamar.
“Bom neném”, diz Manx, e balança o bebê de um lado pro outro um pouqui-
nho. Malachi arrota com prazer.
“Você vai continuar falando como o Led Zeppelin era demais?”, pergunta
Manx.
“Na verdade, não. Isso ia ser entediante. Já passei há muito tempo da fase de
tentar convencer as pessoas sobre política, religião, ou os grandes mistérios do
universo, então eu não vou tentar persuadir ninguém sobre os méritos de uma
banda de rock. Não me importa se as pessoas acham que eles eram bons ou
não. Elas só têm que reconhecer como a gente achava que eles eram na época,
e isso quer dizer: tão grandes quanto uma banda pode ser.”
Nós não os colocávamos no mesmo patamar dos homens mortais. Eles esta-
vam mais para os Deuses de Valhalla, que vieram para tocar o terror na Terra.
Eles eram tão importantes para a minha vida que eu comprei dois álbuns de-
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les antes de a minha família ter uma vitrola. Eu costumava andar no pátio da
escola carregando os discos embaixo do braço. Eu não era o único a fazer isso.
“Então”, disse Manx. “Eles foram a maior influência na sua vida?”
Eu penso sobre isso.
“Bom, provavelmente não. Os Sex Pistols tiveram mais influência. O punk
rock era muito libertador e os Sex Pistols foram uma grande banda. Mas eles
não foram tão bons quanto o Led Zeppelin, e de qualquer maneira, quando os
Sex Pistols chegaram eu não tinha mais quinze anos, não era virgem, não mora-
va mais com meus pais. Eu não era tão dependente da música para me resgatar
da minha própria vida. Depois que eu mudei para Londres, se a vida estava dura
eu podia ir para um bar e tomar uma. Na escola, se as coisas estavam ruins, eu
só tinha o Led Zeppelin.”
O Led Zeppelin era importante demais para tocar em Glasgow. Eu não pude
acreditar quando o show foi anunciado. Eu peguei minha cópia do Led Zeppelin
II, estudei o poderoso dirigível que voava atravessando o encarte dobrável e
considerava se seria possível mesmo.
Capítulo 11
Manx não está feliz desde que teve o bebê.
Estou falando com ela no telefone. Ela está me contando sobre seu novo cos-
mético, Estee Lauder Uncircle, que é um tratamento para olheiras. Ultimamente
ela está com uma aparência bem cansada.
“Eu tenho que me livrar dessas olheiras antes de experimentar meu Mas-
quisuperbe All Over Face Glow da Lancôme. Não adianta nada ter o rosto todo
brilhante se eu tenho sombras enormes embaixo dos olhos.”
Dá para ver o que ela quer dizer. A Manx gosta de maquiagem. Ela não gosta
de parecer cansada. Quando ela está empurrando o bebê por aí no carrinho, ela
quer estar glamourosa, e se isso não for possível, pelo menos saudável.
Falamos sobre maquiagem por um tempo, até Manx mudar de assunto e me
perguntar sobre meu livro do Led Zeppelin.
“É uma biografia?”
martin millar
23
“Não, é um romance. Mas inclui um monte de coisas verdadeiras. Tipo a garota
por quem eu era apaixonado na escola, essas coisas. Ela era loira e o pai dela era
gerente de um escritório de seguros. Ela costumava usar batom Mary Quant. Mary
Quant ainda era um nome grande dos cosméticos no começo dos anos setenta.”
Manx se distrai com barulhos do bebê. Quando eu a conheci, Manx tinha
um trabalho temporário em um teatro no centro de Londres. Naquela época ela
me disse que era lésbica e que tinha uma namorada fixa. Depois de um tempo,
terminou com a namorada, declarou-se bissexual e saiu por aí por um tempo.
Nós ficamos íntimos, mas o relacionamento foi morrendo, como todos os meus
relacionamentos. Ainda bem que ficamos amigos. A gente é mais amigo agora
do que a gente jamais foi quando saía.
Depois que a gente terminou, Manx teve mais alguns casos com caras antes
de decidir que gostava mais de mulher. Um ano ou dois depois disso ela ficou
amiga de um cara que era gay. Eles começaram a morar juntos e tiveram um
bebê. Então, ele decidiu que era mesmo gay e a deixou por um cara que conhe-
ceu no supermercado. Tudo isso teria me surpreendido algum dia, mas agora eu
já estou bem acostumado.
Manx surgiu com um bebê e um caso sério de depressão. Ela está se provan-
do bem resistente à animação.
Eu descrevo meu livro do Led Zeppelin.
“Eu vou ter que mudar alguns nomes, claro.”
Manx pergunta se vai estar nele e eu digo que sim, provavelmente.
“Não mencione que eu usei cocaína até o terceiro mês de gravidez.”
Eu prometo não mencionar. Eu achava que tinha sido um bom esforço ter
largado nos últimos seis meses. Ou os últimos quatro meses e meio, já que o
bebê nasceu um pouco prematuro.
“Como que tá esse negócio de ser juiz na competição literária?”
“Muito mal”, eu admito. “Eu não li nenhum dos livros ainda. Na verdade, eu
ainda não abri a caixa com os livros. Ainda tá bem atrás da porta da frente. Tá
lá faz três semanas. Eu vou dar um jeito nisso logo, logo.”
O bebê começa a berrar e Manx tem que dar fim na conversa. Eu penso na
competição literária. Queria não ter me envolvido. Por que o British Council me
pediu para ser jurado na competição de Nova Ficção? Eu não li nenhum livro
publicado por ninguém nascido no século vinte desde que me fizeram ler na
24
suzy, led zeppelin & eu
escola, e eu nem prestava atenção. Eu estava ocupado demais pensando na
Suzy e no Led Zeppelin.
A Suzy era tão linda e tão atraente. Às vezes parecia, para mim e para o
Greg, que tínhamos sido especialmente abençoados de tê-la vivendo nas proxi-
midades. Mas em outros momentos parecia uma maldição. Eu ficava tão infeliz
enquanto a via andando pela rua e sabendo que eu tinha tão pouca chance de
causar qualquer impressão nela. Nessas horas, não havia nada a fazer senão
ouvir Led Zeppelin e esperar ficar mais velho, quando as coisas poderiam me-
lhorar, apesar de não estar convencido de que elas iriam.
Capítulo 12
Aqui está o repertório do Led Zeppelin no Green’s Playhouse.
“Rock And Roll”
“Over The Hills And Far Away”
“Black Dog”
“Misty Mountain Hop”
“Since I’ve Been Loving You”
“Dancing Days”
“Bron-Y-Aur Stomp”
“The Song Remains The Same”
“The Rain Song”
“Dazed And Confused” (Incluindo “The Crunge”)
“Stairway To Heaven”
“Whole Lotta Love” (Incluindo “Everybody Needs Somebody”, “Boogie Chil-
lun”, “Let’s Have A Party”, “Stuck On You”, “I Can’t Quit You”)
Primeiro bis:
“Heartbreaker”
Segundo bis:
martin millar
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“The Immigrant Song”
“Communication Breakdown”
Que repertório incrível. Um espancamento heavy metal, o capricho das melo-
dias celtas e um blues elétrico atormentado. Canções grandiosas, guitarras altas e
um monte de barulhos esquisitos. Eu amava guitarras altas e barulhos esquisitos.
“Sabe, Manx, se alguém tivesse dito para mim na escola ‘O Led Zeppelin é
horrível, você tem que escutar Elvis Presley ao invés disso’, eu teria tirado um
barato da cara dessa pessoa. Então eu nunca tentava dizer para ninguém que
o Led Zeppelin era melhor que a banda favorita da pessoa no momento. Não
dá para ficar ouvindo as músicas que seus pais gostavam. E enfim, eu gosta-
va de escutar músicas novas. Mas devo admitir que algumas vezes, quando
eu me pego numa situação assistindo algum grupinho indie arrastando umas
musiquinhas nada especiais no palco, eu ficaria muito satisfeito se um túnel do
tempo se abrisse e o poderoso Led Zeppelin marchasse para dentro do auditó-
rio. ‘É assim que tem que ser o som de uma porra de uma guitarra’, eu diria, e
desafiaria qualquer um a me contrariar.”
A aparição do Led Zeppelin em Glasgow no Green’s Playhouse foi o ponto
alto de toda a minha vida na Escócia.
“Você queria estar lá agora?”, pergunta Manx.
“O quê? Com quinze anos de idade, indo ver o Led Zeppelin no mesmo ano
que ‘Stairway to Heaven’ foi lançada? É claro que eu queria estar lá agora.”
“Eu mesma queria estar lá também”, diz Manx, batalhando com seu projeto
no computador e pensando em como pagar a conta de telefone.
Capítulo 13
O anúncio do show do Led Zeppelin me pegou de surpresa. A turnê começava
em Newcastle e a terceira e quarta datas estavam marcadas em Glasgow. Des-
confiado, analisei o cartaz. Não parecia real. Poderia ser um erro de impressão?
O Led Zeppelin nunca havia tocado aqui antes. Eles eram importantes demais
para vir para Glasgow.
26
suzy, led zeppelin & eu
O Green’s Playhouse era uma casa que as bandas visitavam regularmente – eu
já tinha visto outros shows lá, gigantes do rock progressivo como Hawkwind, Mott
the Hoople, Emerson, Lake & Palmer, e Captain Beefheart, mas o Led Zeppelin? Cla-
ro que não. Eles estavam ocupados em Valhalla. Era possível que eles descessem
para tocar em algumas datas nos Estados Unidos. Eu não conseguia imaginar nem
eles tocando em Londres. Mas Glasgow? Era difícil de acreditar.
A propaganda dizia que os ingressos seriam vendidos em todo o país às 9:00
da manhã da sexta-feira, dia 10 de novembro. Eu liguei para o Greg.
“Você acha que eles vêm mesmo?”
“Claro”, disse Greg. “Por que não?”
Eu não sabia explicar porque eu achava que eles não viriam. Afinal, estava
claro no jornal de música. Eu não queria admitir que eu me sentia tão insigni-
ficante no mundo que me parecia improvável que o Led Zeppelin achasse que
valia a pena tocar em qualquer cidade onde eu morasse.
Talvez eles não soubessem que eu estava em Glasgow. Se eu me mantivesse
indetectável, tudo poderia ficar bem. Eu iria ver o Led Zeppelin.
“Vai ser demais”, disse Greg. “A gente vai ver o Robert Plant e o Jimmy Page e
eles vão tocar ‘Stairway to Heaven’ e ‘Whole Lotta Love’ e tudo...”
“Vai ser sensacional.”
Transbordando de antecipação, Greg começou a cantar o riff de “Whole Lot-
ta Love” pelo telefone e eu cantei junto.
Começamos a ir em shows quando tínhamos doze anos de idade. O Green’s
Playhouse não tinha alvará para vender bebida alcoólica, o que era a nossa
sorte, já que em Glasgow era difícil entrar num lugar licenciado se você não
era maior de idade. Se o Green’s Playhouse tivesse um bar, eu não teria visto
nenhuma dessas bandas.
As pessoas costumavam persuadir seus irmãos mais velhos, amigos mais ve-
lhos, ou, em uma emergência, completos estranhos a comprar álcool para elas e
então bebiam em um ritmo desenfreado no caminho entre o ponto de ônibus e a
casa de shows. Eu achava que esse era o comportamento normal no país inteiro.
Ainda havia algumas semanas até começarem as vendas dos ingressos e a
partir daquele dia eu não me sentia inteiramente são. Eu me encontrava trê-
mulo, ou distraído, ou suando, ou apenas olhando para o nada. A escola, que
geralmente já era ruim, ficou pior. Não conseguia me concentrar nos meus tra-
martin millar
27
balhos. Eu estava ocupado demais me preocupando em não sofrer um acidente
na rua e não poder ir para a fila dos ingressos.
Já estava difícil demais lidar com o frenesi do Led Zeppelin. Quando a Suzy
apareceu na minha casa uma vez usando uma camisa de algodão cru trans-
parente dizendo que estava triste com o namorado Zed, parecia demais para
aguentar.
“Você vai passar a noite na fila para comprar o ingresso?”, ela perguntou, e
eu respondi que sim. Não tinha outro jeito de conseguir um.
“Eu também”, disse Suzy. “A gente fica na fila junto.”
Uma imagem vívida de Suzy se abrigando embaixo do meu casaco militar e
se esquentando na fila, entrou na minha cabeça e ficou lá por um bom tempo.
Greg já estava no meu quarto. Ele ofereceu a única cadeira do recinto para Suzy.
Eu gostava mais quando Suzy estava sentada porque, apesar de eu não admitir,
suspeitava que ela era um dedo mais alta do que eu. Eu já estava em desvantagem
pela diferença de idade e por não ser considerado um dos caras legais. Se ficasse
comprovado que eu era realmente mais baixo que a Suzy, não tinha nem por que
continuar a pensar nada. Ia ser o mesmo que andar com uma plaquinha pendura-
da no pescoço dizendo “Baixinho. Nunca vai ter uma namorada.”
Eu acendi um incenso, um hábito que eu e Greg pegamos do Zed. Ao ouvir
as reclamações de Suzy sobre o namorado, Greg e eu ficamos ansiosos. Nós
tínhamos razão de ficar. Na última vez que a gente foi para a casa da Suzy, ela
fez uma coisa que mais ou menos pegou nosso mundo e o virou de cabeça para
baixo. Saindo de casa pela porta da cozinha, depois de dar tchau para a mãe,
Suzy encheu um copo d’água, pegou uns comprimidos na bolsa e pôs um na
boca. Eram anticoncepcionais. Greg e eu ficamos embasbacados, tentando não
deixar transparecer. Nunca nos ocorreu que uma amiga nossa poderia estar
tomando anticoncepcionais, indícios fortes de que estava fazendo sexo.
E a gente no meu quarto. Suzy estava insatisfeita com o namorado Zed. Toman-
do anticoncepcionais. Eu tinha consciência da minha ignorância sobre o desejo se-
xual feminino. Eu achava que tomar pílula fazia as mulheres perderem o controle
de si mesmas, que elas tinham que trepar com alguém. E se ela tivesse um desejo
incontrolável de fazer sexo com alguém agora? Seria eu ou o Greg? Se eu tivesse
que olhar para o outro lado enquanto Suzy subia na cama com Greg bem embaixo
do meu pôster do Led Zeppelin eu não ia ficar muito feliz com isso.
28
suzy, led zeppelin & eu
“Eu conheci um cara na faculdade”, disse Suzy. “Ele me chamou para sair. O
que vocês acham que eu devo fazer?”
Eu capotei de volta à realidade. Suzy não ia trepar com a gente, afinal? Ela
não largaria o Zed por um de nós. Ela largaria por alguém da faculdade, alguém
mais velho e, sem dúvida, ainda mais descolado. Ela estava a ponto de escapar
para ainda mais longe do nosso alcance.
“Eu não confio em estudantes”, eu disse, em um esforço para trazê-la de volta.
“Nem eu”, concordou Greg. “Ele provavelmente tem outra namorada na uni-
versidade.”
“Eu vou ter quinze anos quando o Led Zeppelin chegar”, eu disse.
Eu estava satisfeito com aquilo. Como todas as pessoas de quatorze anos, eu
mal podia esperar para ficar mais velho.
O ar estava tomado pelo aroma de incenso. Depois de pegar o hábito com o
Zed, nunca o perdi. Eu ainda gosto da fragrância. Dá a sensação de ter ido para
a Índia ser precisar viajar.
Capítulo 14
Mais tarde, naquela noite, estava debaixo de um poste de luz pálida com
o Greg, fumando cigarros e falando sobre o Led Zeppelin... e dragões. Nas
nossas imaginações, Greg e eu éramos os mestres do Fantástico Exército de
Dragões de Gothar que resistia sozinho contra as Monstruosas Hordas de
Xotha. As Monstruosas Hordas de Xotha eram lideradas por Kuthimas, um
feiticeiro insano de enorme poder cuja única ambição era dominar o mundo.
Ele já dominava a maior parte dele. As únicas áreas que se mantinham livres
eram Glasgow e o reino escondido de Atlântida. Sem a nossa firme resistên-
cia, e também do Fantástico Exército de Dragões de Gothar, nosso planeta já
teria sido destruído. Nós passávamos muito tempo nesse mundo imaginário.
Era melhor que a escola.
Fitamos o céu escuro. Havia um vento gelado no ar. Exatamente o tipo de
vento gelado que precedia um ataque de Kuthimas e das forças dos orcs. Eles
tinham dragões também, maiores que os nossos, com fogo mais poderoso. So-
martin millar
29
mente o fato de eu e Greg sermos montadores de dragões tão habilidosos nos
dava chance de continuar ganhando as batalhas. Era sempre por um triz. Não
podíamos nunca baixar a guarda.
“Seria mais fácil se Atlântida emergisse da água”, disse Greg, e eu concordei.
Os sobreviventes submarinos de Atlântida eram nossos aliados, mas não havia
muitos deles e levava muito tempo para eles voarem até Glasgow.
Não era comum, mas Cherry apareceu. Ela estava andando para casa de-
pois de uma aula de violino, carregando o instrumento em um velho case preto.
Apesar de já ser tarde da noite, ela ainda estava usando o blazer da escola.
Ninguém mais, nem o moleque mais idiota no primeiro dia de aula, usaria o
uniforme quando não fosse necessário. Nós gememos alto, para ela ouvir.
“Posso brincar?”, ela perguntou.
Eu fiquei ultrajado que alguém pudesse pensar que eu estava brincando. Eu
tinha quatorze anos. Eu não brincava mais.
“Vai embora escrever no seu diário”, eu disse.
“Eu quero entrar pro exército de dragões”, pediu Cherry.
Greg e eu trocamos caretas de dor. Não tínhamos certeza de como Cherry
ficou sabendo do exército de dragões. Imaginamos que ela estava nos espio-
nando. Obviamente, a gente nunca tinha mencionado nossa imensa fantasia
de dragões para a Suzy, ou qualquer outra pessoa. Se a Cherry tornasse isso
público, seria extremamente prejudicial. As pessoas iam zoar.
“Sai fora”, disse Greg.
“Eu quero brincar também”, disse Cherry.
As luzes da rua refletiam em seus óculos.
“Vai embora sua sardenta bizarra estúpida”, eu disse para ela. “Não dá pra
ver que a gente tá ocupado?”
Cherry se virou de uma vez e saiu correndo. Fiquei satisfeito. Uma dura
menção de suas sardas era normalmente o suficiente para ela ir embora. Era
um assunto sensível.
Depois, naquela mesma noite, adicionamos Cherry à lista de inimigos que
faziam parte das Monstruosas Hordas de Xotha. Ela virou a filha bastarda de
Kuthimas, uma princesa maligna que liderava uma tropa de horríveis dragões
vermelhos. A gente acertou fogo nela e ela pereceu de uma forma bem desagra-
dável, esmagada embaixo de seu dragão.
30
suzy, led zeppelin & eu
A maioria dos nossos inimigos acabavam assim. O professor de educação físi-
ca estava sempre sendo queimado pelo fogo dos dragões e Bassy, um colega bem
grande que fazia bullying com a gente, encontrava um fim brutal regularmente.
Mais tarde ainda, fiquei preocupado com a possibilidade de Cherry contar
para Suzy sobre o Exército de Dragões. Eu tinha certeza que Suzy ia achar aqui-
lo bobo e infantil. A Suzy pode ser fabulosa, linda e atraente, mas não era bem
o tipo de pessoa que se imaginaria voando sobre Glasgow num dragão, lutando
contra as hordas dos orcs.
Capítulo 15
Era intrigante que Suzy tivesse cabelo loiro. Talvez ela tivesse descendência Vi-
king. Talvez os ancestrais dela tenham chegado num dracar4 para saquear o
território e decidiram ficar. O Led Zeppelin tinha uma música sobre isso, “The
Immigrant Song”, na qual os Vikings estavam a caminho para pilhar os vizinhos.
We come from the land of the ice and snow
from the midnight sun where the hot springs blow5
Alguns anos depois, também foi intrigante para mim que a mulher no cha-
péu de Nefertiti fosse loira. Seu cabelo não era naturalmente loiro, era tingido e
contrastava muito com sua pele escura. Eu gostava.
Em Glasgow, no começo dos anos setenta, ninguém pintava o cabelo. Não
tinha sido inventado ainda. Desejo sexual doloroso, no entanto, já havia sido
inventado e eu era uma vítima precoce.
Piorou quando Suzy confessou sua insatisfação com Zed. Sempre que eu en-
contrava Suzy a caminho da escola, ela dizia que Zed era um namorado inútil.
Ele estava sempre saindo com os amigos e deixando-a para trás ou então fican-
do bêbado e fazendo papel de idiota. Os pais dela começaram a desaprovar o
relacionamento. Eles nunca tinham gostado muito de Zed. Apesar de ele nunca
ter faltado com o respeito com eles, eles o achavam esquisito demais na apa-
rência e era certamente uma má influência para sua filha. Quando as histórias
martin millar
31
de seu mau comportamento na escola e em outros lugares começou a chegar
até eles, eles passaram a gostar menos ainda dele.
Suzy se encontrou na desconfortável posição de defender Zed contra seus
pais enquanto ela mesma estava irritada com ele. Ela estava confusa e infeliz
descrevendo a situação para mim.
Apesar de não ter ideia de que conselho dar para qualquer garota tendo pro-
blemas com o namorado, eu sabia instintivamente que seria bom ouvir. Ouvir por
longos períodos, se necessário. Eu não interrompia com meus próprios sonhos
ou problemas. Eu não menosprezava suas preocupações com um cordial “não se
preocupa, tudo vai ficar bem”. Eu só ouvia e percebia que pegava bem com a Suzy.
Foi uma lição valiosa para o futuro. Eu me tornei um grande ouvinte de pro-
blemas femininos. Eu tenho talento para isso. Mulheres deprimidas ou ansiosas
podem falar comigo por horas.
“Isso é porque você quer dormir com essas mulheres problemáticas”, diz
Manx, que se lembra que quando fomos para a cama pela primeira vez, tinha
passado a noite inteira do sábado me dizendo como estava infeliz com tudo.
Sustento que ela estava bem menos infeliz no dia seguinte, mas Manx diz que
as coisas estavam, no máximo, dez por cento melhores e que voltou ao que es-
tava antes na hora do almoço.
Enfim, isso tudo foi anos atrás. Agora Manx e eu somos apenas amigos então
ela sente a necessidade de criticar cada ação minha.
“Bom, tudo bem Manx, eu me aproveitei algumas vezes da depressão das
minhas amigas mulheres. Mas não acho isso tão ruim assim. Afinal de contas, é
melhor dormir com alguém que pelo menos está preparado para ouvir os seus
problemas durante horas e horas. Se eu me importo ou não, provavelmente não
importa para elas. Ainda pode ser considerado um bom serviço.”
Manx ri. Alguns anos atrás, ela não teria rido, mas sim me dado uma rigorosa
lição sobre a exploração das mulheres. Naqueles dias nós éramos mais sinceros
sobre as coisas nas quais acreditávamos, e nós gostávamos mais de nós mesmos.
Quando eu tinha quinze anos, ouvindo os problemas da Suzy, eu estava sen-
do dolorosamente sincero. Eu me importava com as perturbações dela. O Greg
também. Todo dia a gente sentava no quarto dele, ouvindo Led Zeppelin e con-
versando sobre a Suzy.
“Você acha que o Zed fica bêbado demais para transar?”, ponderou Greg.
32
suzy, led zeppelin & eu
Eu dei de ombros. Eu não sabia quanto você tinha que beber antes de não
conseguir mais transar.
“Queria que a Suzy dormisse comigo”, disse Greg. “Acho que é questão de
tempo. Ela tá tomando pílula. Ela deve estar pronta pro sexo. E se o Zed tá bêba-
do demais para fazer, quem melhor para substituir do que eu?”
Greg acendeu um incenso e pôs o Led Zeppelin IV na vitrola.
Hey, hey, mama, say the way you move, gonna make you sweat, gonna make you
groove.6
Nós cantamos o riff da guitarra, balançamos o cabelo e pensamos em como
conseguir fazer a Suzy suar e agitar. Do jeito que o Robert Plant cantava, parecia
muito fácil, mas nós dois sabíamos que não éramos Robert Plant.
Greg posicionou a capa vazia do disco cuidadosamente na prateleira, onde
não sofreria pisões ou derramamentos de chá. Ele era sempre muito cuidadoso
com seus discos. Eu nunca fui. Minha coleção de discos era uma zona. Ultima-
mente está pior. Meus CDs estão jogados em todo lugar e muitas das caixinhas
estão quebradas porque eu pisei. Nunca fui o tipo de pessoa que cuida bem de
seus discos, ou que cataloga sua coleção de música com carinho. Afinal, são só
discos de plástico. Se você danifica um, pode sempre comprar outro. Danem-se
todos eles, é o que eu tenho a dizer.
Eu sempre desconfiei que pessoas que se importavam demais com os discos,
os catálogos e os formatos o tempo todo não se importavam muito com a música.
Greg olhou entre as cortinas para as nuvens escuras acima. Pensou que es-
távamos prestes a ser atacados por Kuthimas, o Destruidor, e suas Monstruosas
Hordas de Dragões. Parecia possível. Ultimamente ele estava muito quieto. Sus-
peitamos de que ele estava reunindo suas forças.
“A gente devia mandar uma mensagem para a Atlântida”, disse Greg. “Para
ter certeza de que eles estão prontos.”
O cabelo do Greg era alguns centímetros mais comprido que o meu. Ele era
cinco centímetros mais alto que eu. Tinha roupas um pouco melhores que as
minhas e era um pouco mais bonito. Ele era mais confiante e se dava melhor
com as pessoas. Eu estava ciente de tudo isso, mas estava tudo bem, porque ele
não estava tão à minha frente em nenhum desses departamentos a ponto de
martin millar
33
impossibilitar nossa amizade. Mas, olhando pela janela, olhando para os céus,
esperando um possível ataque das Monstruosas Hordas de Xotha, me ocorreu
pela primeira vez que se Suzy desse um pé na bunda do Zed e começasse a pro-
curar outro namorado, era mais provável que ela escolhesse o Greg.
Capítulo 16
Nefertiti foi rainha do Egito em 1353 A.C. Ela foi a esposa do Faraó Aquenáton,
que chocou o clero ao reformar radicalmente a religião. Além de ser uma proe-
minente figura política, era famosa pela beleza. Duas de suas filhas também se
tornaram rainhas do Egito.
A famosa escultura de Nefertiti foi encontrada em Tele el-Amarna e agora
reside no museu egípcio em Berlim. Eu tenho uma miniatura dela em cima da
minha lareira. É uma bela escultura.
Toda vez que eu olhava para a minha miniatura de Nefertiti, me lembrava
da mulher que eu vi usando aquele chapéu na Rua Brixton. Eu pensava se ia
conhecê-la algum dia. Eu esperava que sim. Ela devia ser uma pessoa interes-
sante, usando um chapéu daqueles e tendo o cabelo tingido tão claro.
Eu finalmente a encontrei numa festa. Eu não sabia de quem era a festa, eu
só tinha ido com alguns amigos. Havia um pedaço de chão todo detonado na
parte de trás da casa que poderia ter sido um jardim caso houvesse grama ou
flores. As pessoas que moravam lá arrumaram uns tijolos e acenderam uma
fogueira. Fumaça e fagulhas voavam pelo ar, engasgando qualquer um que se
aventurasse muito perto.
Ali em pé, apenas longe o suficiente para evitar a fumaça, estava a mu-
lher do chapéu de Nefertiti, ainda de chapéu. Queria falar com ela, mas não
conseguia pensar no que dizer, a não ser elogiar seu ótimo acessório. Isso ia
ter que funcionar.
“Que chapéu fabuloso. É o melhor chapéu do mundo e você tá igualzinha à
Nefertiti. Acho que você ouve isso o tempo inteiro.”
“Não”, ela respondeu. “Algumas pessoas nunca ouviram falar de Nefertiti e eu acho
que a maioria das pessoas fica com muita vergonha de elogiar, de qualquer maneira.”
34
suzy, led zeppelin & eu
Ela ficou feliz com o elogio. Eu ofereci uma cerveja que eu estava carregan-
do numa sacola plástica do Tesco e nós tivemos uma conversa interessante so-
bre o Egito antigo. Foi a única vez na minha vida que eu fiquei grato por nossos
professores nos terem dado tantos trabalhos.
Ela me disse que seu nome era Manx. Logo depois, dois dos amigos dela vie-
ram e disseram que era hora de ir.
“Tenho que pegar um avião de manhã”, ela disse. “Eu vou para a Tailândia.
Eu volto em um ano, mais ou menos.”
Demorou até eu falar com ela de novo, mas eu estava feliz de ter me apre-
sentado.
Capítulo 17
Há várias razões por trás da atual depressão de Manx, uma delas é o fato de que
Manx sempre foi depressiva.
“Eu era muito depressiva na escola”, ela me disse uma vez quando eu estava
descrevendo um incidente dos meus dias na escola, e eu escutei educadamente.
Hoje em dia tem outras coisas que a deixam mal. Ela fica triste porque o re-
lacionamento com o pai de seu filho não deu certo. Ela fica triste porque é difícil
criar um filho sozinha. Ela nunca tem dinheiro o suficiente e nunca dorme o su-
ficiente. Manx nunca foi do tipo de pessoa que gosta de acordar antes do meio
dia, mas ultimamente ela tem levantado ao nascer do sol, tentando progredir
nos estudos antes de Malachi acordar e exigir alimento.
Sua vida social diminuiu muito. A maioria dos seus amigos não consegue
esperar até ela achar uma babá. Eles não querem esperar até semana que vem
para sair. Eles querem sair agora.
“Eles não me visitam mais. E eu sei o motivo. É porque sou uma chata com
um bebê. Eles estão indo pro cinema ou transando com alguém que eles acaba-
ram de conhecer numa balada ou fazendo sites dos negócios deles e tudo que
eu faço é comprar fraldas. Dá pra ser mais chato que isso? Se eu fosse um dos
meus amigos, eu não ia me visitar também. Eu sou um tédio.”
Fico surpreso com isso. Eu achava que ter um filho enchia a mãe de quí-
martin millar
35
micas felizes que duravam um ano ou dois, mesmo nas circunstâncias difí-
ceis. Manx diz que se essas químicas felizes existiram em seu corpo, foram
embora rapidinho.
“E foi uma química muito fraquinha, de qualquer maneira. Nada compará-
vel com os efeitos das substâncias de alteração de consciência que eu usava.
Que, obviamente, eu não posso mais usar porque eu tô amamentando. Hoje em
dia eu não tomo nem aspirina e isso é irritante, porque não dormir direito tá me
dando uma dor de cabeça filha da puta.”
Eu não quero passar a impressão de que Manx não ama seu bebê. Ela ama.
É só a vida dela que ela odeia.
Manx me diz que ela especificamente detesta ficar velha.
“Minha vida tá acabada. Eu nunca vou ver outra banda ou dançar numa bala-
da. E eu nunca vou poder viajar pra Tailândia e pra Índia e pra Austrália de novo.”
Manx também sofre do comum problema de se punir por sua própria de-
pressão. Ela se sente culpada por isso.
“O fato de não conseguir mais viajar ou ver shows não devia me deprimir
tanto. Eu devo ser uma pessoa superficial demais.”
Eu tento acalmar Manx dizendo que ela não é superficial. Ela não se acalma.
“Eu tô gorda e sem a menor condição. Minha aparência tá terrível. Mesmo se
eu quisesse sair, eu não poderia. Qual é a razão de sair por aí se eu tô desse jeito?”
Eu me preocupo. Eu vejo que Manx está caindo pelo precipício e precisa de
ajuda. Logo depois de ter o bebê, Manx se matriculou num curso de animação
digital numa faculdade local. Ela vai lá duas vezes por semana e traz projetos
para fazer em casa no computador. Eu achava que isso era uma grande ideia, e
ainda acho, mas tem trazido muito estresse a Manx.
“Por que eu fui inventar de aprender animação? Ou qualquer coisa? Eu fui
tão idiota.”
“Você queria que a sua vida fosse indo em frente de uma maneira positiva
e intensa.”
Manx diz que se ela disse uma coisa dessas alguma vez na vida, ela devia
estar sofrendo de alguma ilusão pós-natal.
“Acho que o problema é que você não usa mais o chapéu de Nefertiti”, digo a ela.
Ela me olha como se eu fosse um maluco.
“O chapéu de Nefertiti? Eu não uso aquilo há anos. Como que eu vou usar?
36
suzy, led zeppelin & eu
Você espera que eu empurre um carrinho de bebê por aí com um chapéu de Ne-
fertiti? Nas minhas condições? Com esta aparência? As pessoas iam me zoar.”
Manx está irredutível, então deixo passar, mas não esqueço. Estou convenci-
do de que ela se sentiria melhor com tudo se ela usasse seu chapéu de Nefertiti
de novo. Deve ser uma coisa alegre de se fazer.
Fiz um bule de chá para nós. Malachi, o bebê, está dormindo no sofá, muito
fofinho. Manx olha para a caixa de livros que eu trouxe para a sala.
“Você não vai abrir?”
“Não consigo encarar ainda. Queria não ter aceito julgar essa competição.”
“Fala que você mudou de ideia.”
“Não posso. Já gastei o cheque.”
Manx dá uma olhada no meu espelho. Ela está satisfeita com o resultado do
Masquisuperbe All Over Face Glow. Satisfeita o suficiente para comprar um batom
e um blush da Benefit, para brilhar um pouco mais.
Eu elogio.
“É um brilho maravilhoso.”
“Não vai durar. Eu tô acabada. Amanhã o brilho vai ter desaparecido para
sempre.”
Capítulo 18
“Conta mais do Led Zeppelin e da Suzy”, diz Manx, e então eu conto.
O Led Zeppelin IV foi lançado lá pelo fim de 1971 e a banda passou o ano se-
guinte em turnê. Eu tinha lido sobre o progresso ao redor do globo nos jornais
de música. Em 1972 eles já tinham tocado nos Estados Unidos, Canadá, Japão,
Austrália e Nova Zelândia.
Eu sentei e fiquei sonhando com o Led Zeppelin deixando Valhalla em seu
zepelim cósmico e aterrissando no Japão para pisar no palco como os majes-
tosos guerreiros que eram. Era fácil naqueles dias sonhar com coisas assim.
Então, quando os dirigíveis começarem a sair voando de Valhalla, como eles
fazem mais tarde neste livro, é porque, como um adolescente, era desse jeito
que eu pensava na música.
martin millar
37
No começo dos anos setenta, as bandas frequentemente cantavam sobre
guerreiros cósmicos. O Led Zeppelin nunca foi muito do imaginário do espaço,
pendendo mais para o mundo dos elfos e dragões do Tolkien, permeado por um
monte de blues de homem branco. Muitas das letras eram sobre passar dificul-
dades com mulheres.
Essas eram as coisas com as quais eu me identificava. Eu passava meu tem-
po fingindo ser um mestre dos dragões, mas, se um dia eu tivesse um relaciona-
mento com uma mulher, eu já esperava problemas.
O Led Zeppelin nunca foi do tipo de banda que toca músicas de protesto. E
ainda acredito muito que isso seja uma coisa a favor deles.
Quanto ao Zed, seu fanatismo pelo Led Zeppelin era tão intenso quanto a re-
lação entre um garoto e sua banda poderia ser. Suas paredes estavam cobertas
de pôsteres e ele sabia citar páginas e páginas de letras. Ele tinha fitas das ses-
sões de rádio que incluíam músicas que só seriam gravadas vinte anos depois.
Ele tinha um disco pirateado de um show no Japão e comprou o mesmo colete
bordado que o Robert Plant estava usando numa foto na NME7. Às vezes parecia
que quando o Zed terminasse a escola, ele ia entrar na banda, sendo incluído
num processo natural.
Eu vi o Zed pela primeira vez quando ele tinha treze anos. Eu tinha onze. Ele
chegou na minha porta quando meus pais tinham saído e foi dormir na minha
cama até ficar sóbrio o suficiente para andar o curto percurso até sua casa.
Quando eu disse isso para o Greg, ele ficou com inveja, inveja de eu ter feito um
favor para um cara tão descolado quanto o Zed.
Zed tinha um pingente em um colar que era uma colherzinha minúscula.
Ele dizia que era uma colher de coca, uma coisa dos Estados Unidos que a gente
tinha ouvido falar. Duvido muito que houvesse cocaína em Glasgow naquela
época, e se havia, certamente não havia chegado na nossa escola, mas ter uma
colher de coca era outro ponto importante sobre Zed. Fazia parecer que ele ti-
nha experiência de vida. O tipo de cara que podia chegar no Led Zeppelin e falar
sobre coisas interessantes para eles.
Eu sei que eles não se interessariam pelo meu exército de dragões. Se eu um
dia os conhecesse, manteria isso em segredo.
AtEnÇãoEsta é apenas uma prévia.
A versão final deste livro possui 176 páginas.
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No dia 4 de dezembro de 1972, o Led Zeppelin veio tocar em Glasgow. Se você não mora na Grã Bretanha, você pode não saber onde fica Glasgow. É uma cidade grande na costa oeste
da Escócia. A Escócia é logo ao norte da Inglaterra.
Não vou te incomodar mais com geografia. Eu sei que você tem déficit de atenção. Eu também tenho. Eu não consigo assistir ao mesmo pro-grama na TV por mais de alguns segundos sem mudar de canal. Não consigo mais aguentar filmes longos. Eu nunca vou ao cinema por medo de ficar entediado. Quando estou lendo um livro, preciso que os capítulos sejam breves.
Nenhuma parte deste livro será maior que algumas centenas de pala-vras. Mesmo com déficit de atenção, você conseguirá lê-lo facilmente, um pouco de cada vez.
Em sua maior parte, o livro se refere a eventos paralelos ao show do Led Zeppelin, muitos anos atrás. Eu me lembro bem dos aconteci-mentos principais, mas a minha memória para detalhes pode ser fra-ca. Isso frequentemente me causa problemas. [...] Então andei per-guntando a alguns velhos amigos sobre o show, descobrindo coisas que talvez eu tenha esquecido.
Meu amigo Greg estava lá, e a Cherry, e o Zed, e também a Suzy, que foi namorada do Zed por algum tempo. Greg era apaixonado pela Suzy, e eu também, ou era o que me parecia naquela época. Eu tinha quinze anos e era facilmente confundido por sentimentos. Eu estava me sentindo emocionado durante todo o outono e o inverno. Emocio-nado com a Suzy e com o Led Zeppelin.”
SUZY, EULed Zeppelin&
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