suzan cooper - os seis signos da luz

499
http://groups.google.com/group/digitalsource

Upload: deckster

Post on 06-Jun-2015

642 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Quando Will Stanton acorda na manhã de seu aniversário, descobre possuir um dom inacreditável... Ele é imortal e o último dos Anciãos - homens e mulheres da magia que estão fadados a proteger o mundo contra as forças do mal, as Trevas.Ao mesmo tempo, apavorado e confuso, Will é mergulhado em uma busca para encontrar os Seis Signos da magia que fortalecerão os poderes da Luz - os círculos de ferro, bronze, madeira, água, fogo e pedra - criados e escondidos pelos Anciãos séculos atrás.Mas as Trevas enviaram o Cavaleiro, montado em seu garanhão negro, para caçar o jovem Ancião. Will deve encontrar os seis grandes Signos antes que as Trevas possam se rebelar, pois uma batalha épica entre o bem e o mal se aproxima.

TRANSCRIPT

Page 1: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

 

http://

groups.google.com/group/digitalsource

Page 2: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

The Dark is Rising Copyright © 1973 by Susan Cooper Copyright

renewed © 2001 by Susan Cooper Published by arragement with

Margareth K. McElderry Books, an imprint of Simon & Schuster Children's

Books Publishing Division Copyright © 2007 by Novo Século Editora Ltda.

Direção Geral: Nilda Campos Vasconcelos Supervisão Editorial:

Silvia Segóvia Imagem da capa: Fox Entertainment Group, Inc.

Composição da capa: Reínaldo Feurhuber Tradução: Lilian

Palhares Preparação de texto: Rodrigo Petronio Editoração Eletrônica:

Fama Editora Revisão: Salete Milanesi Brentan Dados Internacionais de

Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP,

Brasil)

Cooper, Susan, 1935- .

Os seis signos da luz : rebelião das trevas / Susan Cooper ;

[tradução Lilian Palhares]. — Osasco, SP : Novo Século Editora, 2007.

Titulo original: The dark is rising.

1. Ficção (Literatura norte-americana) 2. Literatura juvenil I. Título.

07-9557

CDD-028.5 

índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura juvenil

028.5 2007 

Page 3: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Para Jonathan

INDÍCE

PARTE 1:

A Descoberta 

Véspera do solstício de inverno  

Solstício de inverno  

O descobridor dos signos  

O Andarilho na Velha Estrada.......

PARTE 2:  

O Aprendizado  

Véspera de Natal 

O livro da magia 

Traição

Dia de Natal

PARTE 3:  

A Provação  

A chegada do frio 

O falcão nas Trevas 

O rei do fogo e da água 

A caçada arrasadora 

Unindo os Signos 

VÉSPERA DO SOLSTÍCIO DE

INVERNO

— Demais! — gritou James batendo a porta atrás de

Page 4: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

si.

— O quê? — perguntou Will.

— Tem garotas demais nesta família, é isso. Demais

mesmo. — James ficou parado furioso no alto da escada

como uma pequena locomotiva enlouquecida, depois foi

batendo os pés até o banco da janela e se demorou olhando

atentamente o jardim. Will deixou seu livro de lado e puxou

as pernas para dar-lhe espaço.

— Eu consegui ouvir todos os gritos — disse ele, com

o queixo nos joelhos.

— Não foi nada — disse James. — Só a idiota da

Bárbara de novo. Mandando. Pegue isso, não toque

naquilo. E Mary se juntando a ela, tagarelando,

tagarelando, tagarelando. Você pode até pensar que essa

casa é grande o bastante, mas sempre tem gente.

Ambos olharam pela janela. A neve se estendia fina e

apologética sobre o mundo. Aquela área ampla e cinzenta

costumava ser o gramado, com as árvores espalhadas do

pomar adiante ainda verdejantes; os quadrados brancos

eram os telhados da garagem, do antigo celeiro, do viveiro

dos coelhos e do galinheiro. Mais atrás, havia apenas os

campos planos da fazenda dos Dawson, vagamente

listrados de branco. O vasto céu estava escuro, cheio de

neve que se recusava a cair. Não havia outra cor em lugar

nenhum.

— Quatro dias para o Natal — disse Will. — Eu

queria que nevasse direito.

— E seu aniversário é amanhã.

Page 5: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Hum. — Ele também ia dizer isso, mas soaria

muito mais como um lembrete. E o presente que mais

desejava em seu aniversário era uma coisa que ninguém

poderia lhe dar: a neve, linda, profunda, como um

cobertor, e isso nunca acontecia. Pelo menos, neste ano,

caía aquele chuvisco acinzentado; melhor do que nada.

Lembrando-se de uma obrigação, perguntou:

— Eu ainda não alimentei os coelhos. Quer me

acompanhar?

Com botas e bem agasalhados, caminharam

ruidosamente pela cozinha espaçosa. Uma orquestra

sinfônica completa avolumava-se do rádio; Gwen, a irmã

mais velha dos garotos, cortava cebolas e cantava, e a mãe,

debruçada sobre o forno, com o rosto avermelhado, estava

bastante sorridente.

— Os coelhos! — gritou ela, quando os avistou. — E

mais alguns fenos da fazenda.

— Estamos indo! — gritou Will. Repentinamente, o

rádio emitiu um chiado horrível de estática, logo que o

menino passou pela mesa. Isso o fez pular.

A sra. Stanton gritou: — Abaixe essa coisa!

Do lado de fora, tudo se encontrava subitamente

muito quieto. Will despejou um balde de grânulos do

depósito no celeiro cheirando a fazenda. Na realidade não

era um celeiro propriamente dito, mas uma construção

enorme e baixa, coberta de telhas, que já tinha sido um

estábulo. Andaram pela fina camada de neve até a fileira

de gaiolas pesadas de madeira, deixando pegadas escuras

Page 6: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

no solo muito gelado.

Ao abrir as portinholas para encher as caixas de

ração, Will parou, franzindo a testa. Normalmente, os

coelhos estariam amontoados calmamente nos cantos;

somente os mais famintos se aproximariam mexendo o

nariz para comer. Hoje, pareciam agitados e inquietos,

ronronando de um lado para o outro, batendo-se contra as

paredes de madeira; um ou dois até saltaram para trás

quando as portinholas foram abertas. O menino se

aproximou de Chelsea, seu coelho favorito, e o pegou como

de costume para afagá-lo carinhosamente atrás das

orelhas, mas o animal lutou para escapar e se encolheu

num dos cantos, os olhos rosados direcionados fixamente

para o alto, inexpressivos, mas aterrorizados.

— Ei! — disse Will, incomodado. — Ei, James, olhe

isto. O que há com ele? Com todos eles?

— Pra mim, estão todos bem.

— Bem, mas não para mim. Eles estão todos

saltitantes. Mesmo Chelsea. Ei, venha cã coelhinho. — Mas

não adiantou.

— Engraçado — disse James com pouco interesse,

observando. — Ouso dizer que suas mãos cheiram mal.

Você deve ter tocado em alguma coisa de que eles não

gostam. Igual aos cachorros e sementes de anis, mas ao

contrário.

— Não toquei em nada. Na verdade, tinha acabado

de lavar as mãos quando vi você.

— Aí está então — disse James imediatamente. —

Page 7: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Esse é o problema. Eles nunca cheiraram você limpo antes.

Provavelmente todos estão morrendo de susto.

— Ha! Ha! Ha! Que engraçado! — Will atacou, e eles

se engalfinharam sorrindo, enquanto o balde vazio caía

chacoalhando-se no chão duro. Mas quando Will voltou a

olhar atentamente para as gaiolas, os animais continuavam

a se mover distraidamente e também sem comer, olhando

fixamente para ele com aquele estranho olhar, arregalado

e assustado.

— Acho que pode ser a presença de alguma raposa

por aí de novo — disse James. — Lembre-me de contar à

mamãe.

Nenhuma raposa poderia se aproximar dos coelhos

em seu sólido viveiro, mas as galinhas eram mais

vulneráveis; uns poucos dias antes do período de venda, no

inverno passado, uma matilha de raposas invadiu um dos

galinheiros e conseguiu levar seis aves boas e gordas. A

sra. Stanton, que dependia do dinheiro das galinhas todo

ano para ajudar a pagar os onze presentes de Natal, ficou

tão furiosa que permaneceu de guarda depois disso, no

celeiro frio, por duas noites seguidas, mas os vilões não

voltaram. Will pensava que se fosse uma raposa, ele

tentaria esclarecer o fato também; sua mãe podia até ser

casada com um joalheiro, mas com a geração de

fazendeiros de Buckinghamshire em seus antepassados, ela

não brincava em serviço quando seus velhos instintos eram

despertados.

Puxando o carrinho de mão, uma geringonça feita em

Page 8: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

casa com uma barra unindo as hastes, ele e James

retomaram a caminhada descendo a curva coberta de mato

ao longo da rua, em direção à fazenda dos Dawson.

Rapidamente deixaram para trás o cemitério da igreja, com

seus teixos, grandes e escuros, inclinados sobre o muro

desmantelado; vagarosamente passaram pelo Bosque das

Gralhas, na esquina da Church Lane. O alto matagal de

castanheira-da-índia, rouco com o grito das gralhas e cheio

de telhados sujos pela desordem de seus ninhos

esparramados, era um de seus lugares conhecidos.

— Ouça as gralhas! Alguma coisa as perturbou. — O

coro irregular e áspero era ensurdecedor, e quando Will

olhou para o topo das árvores, viu o céu escurecido com o

vôo em círculo dos pássaros. Eles batiam as asas e

moviam-se lentamente de um lado para o outro; não havia

alvoroço de movimentos repentinos, somente aquele

amontoado barulhento de gralhas em ziguezague.

— Uma coruja?

— Elas não estão caçando nada. Venha, Will, logo já

vai anoitecer.

— É por isso que é tão estranho ver as gralhas em

tão grande alvoroço. Todas elas deveriam estar

empoleiradas agora. — Will virou a cabeça relutantemente

para baixo, mas em seguida saltou e agarrou o braço de

seu irmão; tinha percebido um movimento numa travessa

escura que conduzia para longe da rua onde se

encontravam, Church Lane: corria entre o Bosque das

Gralhas e o cemitério até a pequenina igreja local, e

Page 9: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

continuava pelo rio Tâmisa.

— Ei! O que foi?

— Tem alguém ali. Ou tinha. Olhando para nós.

James suspirou.

— E daí? Era apenas alguém fazendo uma

caminhada.

— Não, não estava. — Will forçou a vista

nervosamente, espiando a pequena rua lateral. — Era um

homem com olhar estranho, todo encurvado, e quando viu

que eu observava escondeu-se atrás de uma árvore.

Ligeiro, como um besouro.

James empurrou o carrinho e seguiu rápido pela rua,

obrigando Will a se apressar para acompanhá-lo.

— Era apenas um andarilho, então. Não sei, parece

que todos estão ficando doidos, hoje. Barb, os coelhos, as

gralhas e agora você como um nervosinho tagarela. Qual

é? Vamos pegar logo esse feno. Eu quero meu chã.

O carrinho sacudia pelos buracos congelados do

quintal dos Dawson, o melhor pedaço de chão cercado por

construções dos três lados que cheiravam ao conhecido

aroma de fazenda. O estrume do estábulo deve ter sido

removido naquele dia; o velho George, o pecuário sem

dentes, estava empilhando estéreo pelo quintal. Ele ergueu

a mão para cumprimentá-los. Nada escapava ao Velho

George; podia ver um falcão cair a quase dois quilômetros

de distância. Em seguida, o sr. Dawson surgiu de um

celeiro.

— Ah! — disse o fazendeiro. — Feno para a fazenda

Page 10: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

dos Stanton? — Ele costumava brincar com a mãe dos

meninos, por causa dos coelhos e das galinhas.

James respondeu: — Sim, por favor.

— Já está vindo — informou o sr. Dawson. O velho

George desapareceu dentro do celeiro. — Passem bem.

Diga à mãe de vocês que eu buscarei dez aves amanhã. E

quatro coelhos... Não olhe assim, jovem Will. Se não for um

Natal feliz para eles, será para o pessoal, tão logo que eu

tenha os animais em mãos. — Olhou para céu, e Will

percebeu algo de estranho na expressão de seu rosto

moreno e enrugado. Em direção ao alto, nas nuvens

carregadas que pairavam nas regiões mais baixas, duas

gralhas pretas batiam suas asas lentamente em um círculo

amplo sobre a fazenda.

— As gralhas estão fazendo uma barulheira terrível

hoje — disse James. — Will viu um andarilho no bosque.

O sr. Dawson fitou Will com atenção. — Qual era a

aparência dele?

— A de um homenzinho velho. Ele se escondeu

rápido.

— Então o Andarilho está por aí — disse o fazendeiro

baixinho para si mesmo. — Ah! Ele só podia estar.

— Tempo bastante desagradável para ficar zanzando

por aí — acrescentou James alegremente. E balançou a

cabeça rumo ao céu setentrional sobre o telhado da casa

da fazenda; as nuvens pareciam cada vez mais escuras,

amontoando-se chuvosas e sinistras com um tom

amarelado. O vento soprava mais forte também, agitando

Page 11: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

seus cabelos; e ouvia-se um farfalhar distante do topo das

árvores.

— Mais neve chegando — disse o sr. Dawson.

— Que dia horrível — falou Will de repente, surpreso

com sua própria veemência; além do mais, ele desejava a

neve. Mas de alguma maneira, algo perturbador estava

sendo engendrado dentro dele. — É muito sinistro, de certa

forma.

— Será uma noite ruim — acrescentou o sr. Dawson.

— Lá está Velho George com o feno — falou James. —

Vamos lá, Will.

— Vá você — disse o fazendeiro. — Eu quero que Will

pegue algo para sua mãe lá na casa. — Disse isso mas

permaneceu imóvel, enquanto James se afastava com o

carrinho em direção ao celeiro; o sr. Dawson ficou ali com

as mãos enfiadas dentro dos bolsos de sua jaqueta velha,

olhando para o céu escurecido.

— O Andarilho está por aí — disse novamente. —

Esta será uma noite ruim, e amanhã será além de nossa

imaginação. — Fitava Will, e o menino fixava-se cada vez

mais alarmado naquele rosto envelhecido; os olhos negros

e brilhantes estavam cercados de rugas por terem décadas

a fio observado o sol, a chuva e o vento. Ele nunca tinha

percebido como os olhos do fazendeiro Dawson eram

estranhos, em sua cor azulada.

— Seu aniversário está chegando — acrescentou o

fazendeiro.

— Hum, hum — confirmou Will.

Page 12: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Eu tenho algo pra você — disse, olhando

rapidamente ao redor do quintal e retirando uma mão do

bolso; nela, Will viu o que parecia ser um tipo de

ornamento, feito de metal negro, um círculo achatado

dividido por duas linhas cruzadas. Curiosamente tocou o

objeto com os dedos. Tinha quase o tamanho da palma da

mão, e era bem pesado; forjado rusticamente em ferro,

imaginava ele, embora sem qualquer ponta ou borda

afiada. O ferro era frio ao contato da mão.

— O que é isto? — perguntou.

— Por enquanto — começou o sr. Dawson —, chame-

o apenas de algo para se guardar. Para manter com você

sempre, o tempo todo. Coloque-o no bolso, agora. E mais

tarde, passe o seu cinto nele e use-o como uma fivela extra.

Will enfiou o círculo de ferro no bolso.

— Muito obrigado — agradeceu bastante trêmulo. O

sr. Dawson normalmente era um homem animador, mas

não estava ajudando especialmente a melhorar em nada

aquele dia.

O fazendeiro olhou para o menino com a mesma

atenção, de forma enervante, e Will chegou a sentir os

cabelos se arrepiarem atrás de seu pescoço; depois,

esboçou um meio sorriso, não divertido, mas revelando

certa ansiedade.

— Guarde-o em segurança, Will. E quanto menos

falar sobre isso, melhor. Você precisará dele logo que a

neve chegar. — E começou a se apressar. — Venha agora,

a sra. Dawson tem um pote de frutas secas e cristalizadas

Page 13: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

que ela preparou para sua mãe.

Dirigiram-se para a casa da fazenda. A mulher do

fazendeiro não estava lá, mas Maggie Barnes os aguardava

na porta de entrada. A leiteira da fazenda, de face rosada e

redonda, sempre fazia Will lembrar-se de uma maçã. Sorria

para ambos, segurando um pote branco de louça amarrado

com uma fita vermelha.

— Obrigado, Maggie — disse o fazendeiro Dawson.

— A patroa disse que o senhor ia querer isto pronto

para o jovem Will levar — disse Maggie. — Ela desceu ao

vilarejo para ver o vigário por alguma razão. Então, como

anda o seu irmão já crescido, Will?

Ela sempre perguntava isso, toda vez que o via; era

sobre seu irmão mais velho, Max. Uma brincadeira

constante da família Stanton dizia que Maggie Barnes dos

Dawson, sentia alguma coisa por Max.

— Bem, obrigado — respondeu Will de maneira

cortês. — Ele deixou o cabelo crescer, tá parecendo uma

garota.

Maggie deu um gritinho de alegria.

— Pare com isso! — disse contendo o riso e acenando

em despedida. Somente no último instante, Will percebeu o

olhar da moça elevar-se acima de sua cabeça. Enquanto se

virava, longe de sua vista, pensou ter visto um breve

movimento no portão do pátio da fazenda, como se alguém

estivesse se esquivando rapidamente da visão de outra

pessoa. Mas quando olhou, ninguém estava lá.

Com o grande pote de frutas secas espremido entre

Page 14: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

dois fardos de feno, Will e James empurraram o carrinho

para fora do pátio. O fazendeiro permaneceu na entrada

logo atrás deles; Will podia sentir os seus olhos,

observando, lutou ansiosamente as crescentes e

ameaçadoras nuvens, e quase indesejavelmente deslizou

uma mão para dentro de seu bolso a fim de tocar o

estranho círculo de ferro com os dedos. — Depois que a

neve chegar. —Tinha-se a impressão de que o céu estava

prestes a cair sobre eles. Ele pensava: O que estaria

acontecendo?

Um dos cachorros da fazenda surgiu ainda amarrado,

abanando o rabo; em seguida, parou abruptamente alguns

metros ao longe, olhando-os.

— Ei, Corredor! — chamou Will.

O rabo do cachorro parou, e ele começou a rosnar,

mostrando os dentes.

— James! — disse Will.

— Ele não vai machucar você. Qual é o problema? —

Em seguida, continuaram em direção a rua.

— Não se trata disso. Alguma coisa está errada, só

isso. Alguma coisa terrível. O Corredor, Chelsea, os

animais, estão todos com medo de mim. — Até ele

começava a ficar realmente assustado naquele momento.

O barulho das gralhas estava cada vez mais alto,

mesmo com a luz do dia começando a se extinguir. Era

possível avistar os pássaros negros amontoando-se sobre o

topo das árvores, mais agitados do que antes, batendo as

asas e virando-se de um lado para o outro. E Will estava

Page 15: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

certo; havia um estranho no caminho, de pé ao lado do

cemitério.

Era um maltrapilho, caminhando sem firmeza, mais

parecido com uma trouxa de roupas velhas do que com um

homem; e ao avistá-lo, os garotos diminuíram o passo e

ambos se aproximaram instintivamente do carrinho. O

homem virou o rosto com os cabelos desgrenhados para

olhá-los.

Então, de repente, em um borrão terrível,

inimaginável, um ruído rouco e agudo surgiu

apressadamente vindo do céu, e duas gralhas enormes

mergulharam sobre o homem fazendo-o cambalear para

trás aos gritos. Ele levantava as mãos para proteger o

rosto, mas os pássaros batiam suas grandes asas em um

rodopio negro e brutal, e partiram logo em seguida,

subindo velozmente para o céu, depois de passar pelos

garotos.

Will e James estavam imóveis, atônitos, pressionados

contra os fardos de feno.

O estranho se agachou contra o portão.

— Caaaaaaak... Caaaaaak... — soava o barulho agudo

do bando frenético sobre o bosque; então, três outras

formas escuras em um rodopio recomeçaram a atacar

depois das duas primeiras, investindo incontrolavelmente

contra o homem e depois partindo. Naquele momento, o

estranho gritou de terror e saiu aos tropeções em direção à

rua, erguendo ainda os braços para proteger a cabeça e o

rosto. Os garotos ouviam a respiração ofegante causada

Page 16: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

pelo medo enquanto o homem passava por eles correndo e

subia a estrada depois do portão da fazenda dos Dawson,

rumo ao vilarejo. Os meninos ainda avistaram nele cabelos

grisalhos, cheios e oleosos, embaixo de um velho chapéu

sujo, um casaco marrom rasgado, amarrado com uma

corda, e alguma outra peça de roupa que se agitava por

debaixo do traje; as botas eram velhas; uma, sem solado,

obrigava o homem a puxar estranhamente a perna para o

lado, fazendo-o quase saltitar enquanto corria. Mas não

conseguiram ver o seu rosto.

O redemoinho de aves bem acima de suas cabeças

estava diminuindo, formando círculos de pequenos vôos, e

as gralhas começaram a pousar uma por uma no topo das

árvores. Ainda se comunicavam ruidosamente entre si em

um longo e embaralhado crocito, mas a loucura e a

violência já haviam sido abrandadas. Atordoado, movendo

a cabeça pela primeira vez, Will sentiu sua face roçar em

alguma coisa, e ao colocar a mão no ombro encontrou uma

pena longa e escura. Enfiou-a dentro do bolso da jaqueta,

num movimento lento, como alguém semi-acordado.

Juntos, voltaram a empurrar o carrinho abastecido

estrada abaixo em direção a casa, e os crocitos atrás deles

esmoreceram em um sinistro murmúrio, como o Tâmisa

cheio na primavera.

Finalmente, James disse:

— Gralhas não fazem esse tipo de coisa. Elas não

atacam pessoas. E não descem tão baixo quando não há

muito espaço. Simplesmente não fazem isso.

Page 17: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Não — aquiesceu Will. Ainda se movia como se

estivesse em um devaneio, parcialmente consciente de

alguma coisa, exceto pela vaga curiosidade despertada em

sua mente. Em meio a toda barulheira e alvoroço,

repentinamente o garoto teve um estranho pressentimento,

mais forte do que todos os que já tivera: sabia que alguém

estava tentando lhe dizer alguma coisa, algo que não

compreendia, pois não conseguia entender a linguagem.

Não eram propriamente palavras; era antes um tipo de

grito silencioso. E ele era incapaz de assimilar a

mensagem, não sabia como fazê-lo.

— É como um rádio que não está sintonizado na

estação certa — disse ele alto.

— O quê? — perguntou James, que de fato não o

estava ouvindo. — Que coisa — continuou. — Acho que o

mendigo estava tentado pegar uma gralha. E elas ficaram

enlouquecidas. Aposto com você que ele irá xeretar as

galinhas e os coelhos. Mas o fato de ele não ter uma arma

é estranho. É melhor falar pra nossa mãe deixar os

cachorros no celeiro esta noite.

Aos poucos, Will percebeu, com espanto, que todo o

choque em relação ao ataque selvagem e enlouquecedor já

estava se dissipando na mente de James como água, e que

em questão de minutos até mesmo o ocorrido já teria sido

esquecido.

Alguma coisa apagou perfeitamente todo o

acontecido da memória de James; algo que não queria que

isso fosse relatado. Alguma coisa que sabia que isso

Page 18: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

impediria Will também de relatar o fato.

— Aqui, pegue as frutas secas da mamãe — disse

James. — Vamos logo antes de congelarmos. O vento está

mesmo aumentando, ainda bem que nos apressamos para

voltar.

— Sim — concordou Will. Ele sentia frio, mas não era

por causa da ventania que aumentava. Seus dedos se

fecharam em torno do círculo de ferro guardado no bolso e

ele o segurou apertado. Naquele momento, o ferro parecia

quente.

* * * 

O mundo acinzentado foi tomado pela escuridão até o

momento em que chegaram à cozinha. Do lado de fora da

janela, a pequena e desgastada caminhonete do pai dos

meninos situava-se sob uma luz rupestre amarelada. A

cozinha estava ainda mais barulhenta e quente do que

antes. Gwen colocava a mesa, quando passou

pacientemente por um trio encurvado onde a sra. Stanton

olhava para algumas peças mecânicas, pequenas e

desconhecidas, juntamente com os gêmeos, Robin e Paul; e

com a forma rechonchuda de Mary vigiando o rádio

naquele momento, só se ouvia música pop em alto volume.

Quando Will se aproximou, o aparelho emitiu novamente

um som agudo, de modo que todos começaram a fazer

caretas e retrucar.

— Desligue essa coisa! — gritou a sra. Stanton

desesperadamente da pia. Mas embora Mary, emburrada,

tivesse desligado a interferência e a música, o volume do

Page 19: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

barulho havia diminuído muito pouco. De certa maneira,

nunca di-havia diminuído quando mais da metade da

família estava em casa. Vozes e risos enchiam a enorme

cozinha pavimentada de pedra enquanto todos se sentavam

em volta da mesa simples de madeira; os dois collies

escoceses, Raq e Ci, cochilavam na outra extremidade

perto do fogo. Will ficou longe deles; não poderia suportar

se seus próprios cães rosnassem para ele. Por isso, sentou-

se calmamente à mesa do chá — mesa do chá se a sra.

Stanton a preparasse antes das cinco; do jantar se ficasse

pronta mais tarde, mas sempre com a mesma abundância

de iguarias — e manteve sua boca e prato cheios de

salsicha para evitar falar. Não que alguém fosse

provavelmente sentir falta de sua conversa no alvoroço

alegre da família Stanton, especialmente quando se era o

membro mais novo.

Acenando para ele da outra extremidade da mesa,

sua mãe chamou.

— O que poderíamos ter para o chá de amanhã, Will?

Ele respondeu indistintamente.

— Fígado e bacon, por favor. James resmungou em

voz alta.

— Fique calado — retrucou Bárbara, a irmã mais

velha de dezesseis anos. — É aniversário dele, ele pode

escolher.

— Mas fígado — disse James.

— Bem feito pra você — disse Robin. — Em seu

último aniversário, se me lembro bem, todos nós tivemos

Page 20: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

que comer aquela revoltante couve-flor gratinada.

— Fui eu quem fez — falou Gwen, — e não estava

revoltante.

— Sem querer ofender — acrescentou Robin

rapidamente. — Eu não suporto couve-flor. De qualquer

maneira, você me entendeu.

— Entendi sim. Eu só não sei se James também.

Robin, com sua voz ampla e profunda, era o mais

musculoso dos gêmeos e não era alguém para se

menosprezar.

James disse apressadamente: — Tudo bem, tudo

bem.

— Uma dobradinha amanhã, Will — disse o sr.

Stanton da cabeceira da mesa. — Nós deveríamos realizar

algum tipo especial de cerimônia. Um ritual tribal. — E

sorriu para o filho mais novo; seu rosto redondo e

enrugado, bastante rechonchudo, revelava imenso carinho.

Mary resmungou: — Em meu aniversário de onze

anos, levei uma surra e ainda me mandaram pra cama.

— Deus do céu — respondeu a mãe da menina. — Vê

se pode você se lembrar disso. E que maneira de descrever

a data. Para deixar claro, você ganhou uma boa palmada

nas nádegas e bem merecida também, até onde me lembro.

— Era meu aniversário — replicou Mary, sacudindo

seu rabo de cavalo. — E eu nunca me esqueci.

— Dê tempo ao tempo — acrescentou Robin

animadamente. — Três anos é muito pouco.

— E você era muito imatura aos onze anos — disse a

Page 21: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

sra. Stanton, pensando sobre o assunto.

— Hah! — resmungou Mary. — E imagino que Will

não seja?

Por um momento, todos olharam para Will. Ele

piscou alarmado sob o olhar das faces contemplativas, e

virou-se de cara feia para o prato de modo que não

deixasse visível nada de si mesmo, exceto uma fina mexa

de cabelos castanhos. Era muito perturbador ser

observado por tantas pessoas de uma só vez. Sentia como

se estivesse sendo atacado. E ficou repentinamente

convencido de que poderia, de algum modo, ser perigoso

ter tantas pessoas pensando a seu respeito, todas ao

mesmo tempo. Como se alguém nada amigável pudesse

ouvir...

― Will — disse Gwen, lentamente — é mesmo um

velho de onze anos.

― Eterno, quase — acrescentou Robin. Ambos

soaram solenes e distantes, como se estivessem discutindo

algo demasiado estranho.

― Sosseguem, agora — disse Paul inesperadamente.

Ele era o irmão mais tranqüilo dos gêmeos, e o gênio da

família, talvez o único: ele tocava flauta e zelava pelos

irmãos menores. — Alguém virá para o chá amanhã, Will?

― Não. Angus Macdonald foi passar o Natal na

Escócia, e Mike está passando uns dias com sua avó em

Southall. Mas não me importo.

De repente, percebeu-se uma agitação na porta dos

fundos e uma rajada de ar frio; era o som de batidas de pés

Page 22: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

e o ruído alto de causar calafrios. Max enfiou a cabeça no

vão da passagem; seus cabelos longos estavam molhados e

brilhantes.

— Desculpe o atraso, mãe. Tive que andar desde a

Câmara dos Comuns. Uau, vocês deveriam ver lá fora; é

como uma nevasca. — Contemplou a fileira de rostos

inexpressivos, e sorriu. — Vocês não sabiam que está

nevando?

Esquecendo-se de tudo por um momento, Will deu

um alegre grito e correu com James até a porta.

— Neve de verdade? Muita?

— Eu diria — começou Max, respingando-lhes gotas

de água enquanto desenrolava seu cachecol. Era o irmão

mais velho, sem contar Stephen que servia a Marinha há

anos e raramente vinha para casa. — Veja. — Abriu a porta

com um estalo, e o vento assoviou pelo vão novamente;

Will viu um nevoeiro branco cintilante do lado de fora, com

espessos flocos de neve; nenhuma árvore ou arbusto estava

visível, nada além do rodamoinho de neve. Um coro de

protestos veio da cozinha: — Feche essa porta!

— Lá está a sua cerimônia, Will — disse seu pai. —

Bem a tempo.

* * *

Bem mais tarde, quando foi se deitar, Will abriu as

cortinas do quarto e pressionou o nariz contra a vidraça

gelada; ficou ali observando a neve cair ainda mais espessa

do que antes. Cinco ou dez centímetros já cobriam o

parapeito da janela, e ele quase podia perceber o nível

Page 23: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

subindo enquanto o vento investia contra a casa. Era

possível ouvir o vento, também, ganindo ao redor do

telhado sobre o quarto e em todas as chaminés. Will

dormia em um sótão de telhado inclinado no topo da velha

casa; passara a ocupar o lugar há alguns meses, quando

Stephen, que sempre dormira ali, voltou para o navio

depois de uma licença. Antes disso, Will costumava dividir

outro quarto com James — assim como todos da família

faziam.

— Mas meu sótão deve ser ocupado — dissera o

irmão mais velho, sabendo como Will amava o lugar.

Agora, em uma estante instalada em um dos cantos

do quarto, havia um retrato do tenente Stephen Stanton,

da Marinha Real, parecendo, sobretudo, desconfortável no

uniforme, e ao lado uma caixa talhada de madeira com um

dragão esculpido na tampa, repleta de cartas que ele

enviara para Will, de algum lugar distante e inimaginável

de qualquer parte do mundo. Ambos tinham criado um tipo

de santuário particular.

A neve surrava a janela, emitindo um som

semelhante ao de dedos arranhando a vidraça. Outra vez,

Will ouviu o vento gemendo no telhado, mais alto do que

antes; aquilo estava se tornando uma verdadeira

tempestade. Pensou então no mendigo, e perguntou-se

onde o homem conseguira abrigo. — O Andarilho está por

aí... esta noite será num... — Ele segurou sua jaqueta e

pegou o estranho objeto de ferro, passando os dedos pelo

círculo, para cima e para baixo da cruz interna que o

Page 24: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

quartejava. A superfície de ferro era irregular, mas embora

não mostrasse qualquer sinal de ter sido polida, era

completamente lisa; lisa de uma maneira que o fazia se

lembrar de certo lugar no áspero piso de pedra da cozinha,

onde toda a aspereza havia sido desgastada por gerações

de pés passando pelo canto da porta. Era um tipo estranho

de ferro: escuro, absolutamente negro, sem nenhum brilho

e sem qualquer mancha causada por descoloração ou

ferrugem. E mais uma vez agora se tornava frio ao toque;

tão frio nesse momento que Will se assustou ao perceber

os dedos dormentes. Às pressas, soltou o objeto. Em

seguida, puxou o cinto de suas calças, penduradas

desajeitadamente Sobre o espaldar de uma cadeira, e como

o sr. Dawson lhe dissera para fazer, pegou o círculo e o

enfiou no cinto como uma fivela extra. Recolocou-o na

calça e a jogou sobre a cadeira. O vento continuava

cantando na armação da janela.

Foi então que, sem avisar, o medo surgiu.

A primeira onda de medo o atingiu enquanto cruzava

o aposento para chegar à cama, fazendo-o parar quieto no

meio do quarto; o uivo do vento lá fora tampava seus

ouvidos. A neve açoitava a janela. Will ficou

repentinamente frio como um cadáver, porém com o corpo

todo formigando. Estava tão assustado que não conseguia

mover um dedo sequer. Num lampejo da memória,

relembrou novamente o céu cada vez mais baixo sobre o

matagal, escuro como as gralhas, os enormes pássaros

negros voando em círculo acima de sua cabeça. Depois

Page 25: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

dessa lembrança, viu apenas o rosto aterrorizado do

mendigo e ouviu o grito do homem enquanto fugia. Por um

momento houve apenas uma escuridão terrível em sua

mente, uma sensação de estar olhando para dentro de um

enorme fosso negro. Em seguida, o uivo mais alto do vento

desvaneceu, e ele se sentiu liberto.

O menino continuou tremendo, olhando

incontrolavelmente pelo quarto. Nada estava errado. Tudo

estava igual. A perturbação, dizia para si mesmo, surgiu

por causa da lembrança. Estaria tudo certo se pudesse ao

menos parar de pensar e fosse dormir. Ele puxou seu

pijama, subiu na cama, e deitou-se olhando para a

clarabóia instalada no telhado inclinado, que estava

coberta de neve.

Apagou o pequeno abajur ao lado da cama, e a noite

envolveu todo o quarto. Não havia qualquer indício de luz,

mesmo quando seus olhos se acostumaram à escuridão.

Era hora de dormir. Vamos lá, durma. Mas embora se

virasse para o lado, puxasse os cobertores até o queixo e

ficasse numa posição relaxada, contemplando o

estimulante fato de que seria seu aniversário logo que

acordasse, nada acontecia. E isso não era bom. Algo estava

errado.

Will rolou na cama ansiosamente. Nunca havia

sentido algo daquele tipo. E ficava muito pior a cada

minuto. Era como se um peso enorme estivesse

comprimindo sua mente, ameaçando, tentando assumir o

controle, transformando-o em algo que não queria ser. É

Page 26: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

isso, pensava: fazendo-me ser outra pessoa. Mas isso era

uma estupidez. Quem desejaria isso? E transformar-me em

quê? Naquele momento, alguma coisa rangeu do lado de

fora da porta entreaberta, fazendo-o saltar. Então, voltou a

ranger novamente, e ele sabia o que era: certa tábua que

freqüentemente rangia sozinha durante a noite, com um

som tão familiar que normalmente ele nunca percebia.

Contra a própria vontade, continuou deitado, ouvindo. Um

tipo diferente de rangido surgiu de um local mais distante,

no outro sótão, e ele estremeceu novamente, quase num

solavanco, de modo que o cobertor roçou o seu queixo.

Você está apenas assustado, dizia para si mesmo, fica aí

recordando o que ocorreu nessa tarde, mas na realidade

não há muito do que se lembrar. Tentava pensar no

andarilho como uma pessoa insignificante, um homem

comum vestido com um casaco sujo e botas surradas; mas

contrária a tudo o que ele podia visualizar, mais uma vez

surgiu em sua mente a imagem do brutal mergulho das

gralhas no ar. "O Andarilho está por aí..." Então, ouviu-se

outro barulho estranho de rangido, que naquele momento

vinha do teto, logo acima de sua cabeça, e o vento uivou

repentinamente alto, a ponto de obrigar Will a se sentar

em disparada na cama e, em pânico, tentar alcançar o

abajur.

O quarto foi agradavelmente iluminado, e o menino

se deitou novamente envergonhado, sentindo-se um idiota.

Assustar-se com o escuro, pensava: que horror. Como um

bebezinho. Stephen nunca teria medo do escuro, aqui em

Page 27: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

cima. Olhe bem, há a estante, a mesa, as duas cadeiras e o

assento da janela; olhe, há as seis caravelas pequenas do

móbile pendurado no teto e suas sombras passeando pela

parede. Tudo está normal. Vá dormir.

Apagou a luz novamente, e instantaneamente tudo

ficou pior do que antes. O medo saltou sobre ele pela

terceira vez como um grande animal que estivera

aguardando para atacar de repente. Will permaneceu

aterrorizado, tremendo, sentindo o próprio tremor, embora

continuasse incapaz de se mover. Para ele, só podia estar

ficando louco. Do lado de fora, o vento gemia, parava,

erguia-se em um repentino uivo; e de novo o barulho, um

baque ou rangido abafado contra a clarabóia no teto de seu

quarto. Em seguida, em um momento terrível de fúria, o

horror o envolveu como um pesadelo que se tornara real;

ouviu-se um estrondo deplorável, com o uivo do vento de

repente ainda mais alto e próximo, e uma grande rajada de

frio; a sensação de pavor irrompeu contra ele com tanta

força que o fez se jogar na cama curvando-se de medo.

Will gritou de susto. E só percebeu que gritara

depois, pois estava tão profundamente amedrontado que

fora incapaz de ouvir a própria voz. Por um momento

horrível, negro como o breu, permaneceu quase

consciente, perdido em algum lugar do mundo, em um

espaço escuro. E então, passos rápidos vindos da escada

foram ouvidos do outro lado da porta, depois uma voz o

chamou demonstrando preocupação, e uma luz

reconfortante inundou o quarto trazendo-o de volta à vida

Page 28: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

mais uma vez. Era a voz de Paul.

— Will? O que foi? Está tudo bem com você?

Lentamente, Will abriu os olhos. Percebeu que

estava encurvado no formato de uma bola, com os joelhos

apertados contra o queixo. Depois, viu Paul de pé ao seu

lado, piscando ansiosamente por trás de seus óculos de

aros escuros. O menino aquiesceu, sem encontrar voz para

falar. Paul virou a cabeça, e Will seguiu o olhar do rapaz

para ver que a clarabóia no telhado estava aberta, ainda

balançando com a força de sua queda; havia um quadrado

negro de noite vazia no telhado, e através dele podia-se

perceber o vento trazendo o frio glacial do solstício de

inverno. Sobre o carpete, a clarabóia havia depositado uma

pilha de neve. Paul espiou a borda da estrutura da

clarabóia.

— O fecho está quebrado; imagino que a neve

estivesse pesada demais para que pudesse suportar. E já

devia estar muito velha de qualquer maneira, o metal

estava todo enferrujado. Eu pegarei algum arame e o

consertarei amanhã.. Isto acordou você? Senhor! Que susto

terrível. Se eu tivesse sido acordado desse jeito, você teria

me encontrado em algum lugar debaixo da cama.

Will olhou para o irmão em gratidão calada, e tentou

dar um sorriso sem graça. Cada palavra na voz profunda e

tranqüilizadora de Paul o trazia de volta à realidade. Ele se

sentou na cama e puxou as cobertas de volta.

― Nosso pai deve ter algum arame que sirva no

outro sótão — disse Paul. — Mas vamos tirar essa neve

Page 29: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

daqui antes que derreta. Olhe, tem mais neve caindo.

Aposto que não há muitas casas onde se pode observar a

neve caindo sobre o carpete.

Ele estava certo; flocos de neve caíam rodopiando

através do espaço negro no teto, espalhando-se para todo

lado. Juntos, os irmãos reuniram o que podiam numa

revista antiga, fazendo o formato de uma bola de neve.

Enquanto Will corria até o andar de baixo para jogá-la na

banheira, Paul passava o arame na clarabóia prendendo-a

em seu fecho.

— Prontinho — disse rapidamente e, embora não

olhasse para Will, por um momento ambos se

compreenderam muito bem. — Digo uma coisa pra você,

está um gelo aqui em cima... Por que não desce para o

nosso quarto e dorme em minha cama? Eu acordarei você

quando me levantar mais tarde... ou eu posso dormir aqui

se você puder sobreviver aos roncos do Robin. Tudo bem?

— Tudo bem — respondeu Will rapidamente. —

Obrigado.

Pegou suas roupas, com o cinto e seu novo

ornamento, depositando-os sobre o braço; depois parou na

porta enquanto saíam, olhando para trás. Não havia nada

para se ver agora, exceto a escura mancha úmida sobre o

carpete onde estivera a pilha de neve. Mas o menino sentia

mais frio do que o ar podia lhe fazer sentir, e enjôo, o

sentimento vazio de medo ainda permanecia em seu peito.

Se não houvesse nada errado além do medo do escuro, por

nada no mundo teria ido se refugiar no quarto de Paul.

Page 30: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Mas da maneira como estavam as coisas, sabia que não

poderia ficar sozinho no quarto onde deveria ficar. Pois

enquanto limpavam aquela pilha de neve, Will havia visto

algo que passara despercebido para Paul. Era impossível,

em uma ruidosa tempestade de neve, que alguma coisa

Vivente tivesse causado aquele baque surdo inconfundível

no vidro, que havia ouvido logo antes da clarabóia

despencar. Mas enterrado na pilha de neve, encontrou uma

pena da asa negra de uma gralha.

Ouviu a voz do fazendeiro mais uma vez: — Esta será

uma noite ruim, e amanhã será além de nossa imaginação.

SOLSTÍCIO DE INVERNO

Ele foi acordado com uma música que o chamava,

alegre e insistente; era uma música delicada, tocada por

instrumentos igualmente delicados que não podia

identificar, acompanhada por uma frase semelhante à

reverberação de um sino que repicasse através dela em um

reluzente fio de prazer. Nessa música havia um

encantamento profundo, comparado a todos os sonhos e

imaginações que o fazem acordar sorrindo em pura

felicidade ao seu ressoar. No momento em que despertava,

o som começou a desvanecer, chamando-lhe a atenção

enquanto desaparecia, e quando abriu os olhos, a música já

se fora. O menino tinha apenas a lembrança daquela frase

reverberante que ainda ecoava em sua cabeça, mas

desapareceu tão rápido que ele se sentou abruptamente na

Page 31: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

cama esticando os braços no ar, como se pudesse trazê-la

de volta.

O quarto estava muito calmo, e não se ouvia mais o

som de música; mesmo assim Will sabia que não havia sido

apenas um sonho.

Ainda estava no quarto dos gêmeos e podia ouvir a

respiração de Robin, lenta e profunda, da outra cama. A luz

fria brilhava pela extremidade das cortinas, mas não se

ouvia o barulho de ninguém se mexendo em outro lugar;

era muito cedo ainda. Will vestiu suas roupas amarrotadas

do dia anterior e saiu logo do quarto. Cruzou o patamar da

escada até a janela central para olhar lá embaixo.

No primeiro momento de claridade, pôde ver todo

um mundo estranhamente familiar, brilhando de tão

branco; os telhados das construções externas amontoavam-

se em torres quadradas de neve, além delas, todos os

campos e cercas vivas estavam enterrados e submersos em

uma enorme e plana extensão, absolutamente brancos até

o fim do horizonte. Will respirou de forma longa e feliz,

regozijando-se silenciosamente. Então, bem vagamente,

voltou a ouvir a música, a mesma frase. Moveu-se em vão

procurando pelo som no ar, como se pudesse avistá-lo em

algum lugar, como se fosse uma luz bruxuleante.

— Onde está você?

A música se foi novamente. E quando tornou a olhar

pela janela, percebeu que seu próprio mundo havia partido

junto com ela. Aquela perspectiva fazia tudo mudar. A neve

estava ali como estivera alguns momentos antes, mas não

Page 32: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

amontoada, agora encontrava-se sobre os telhados,

seguindo plana sobre campos e gramados. Não havia mais

telhados, não havia mais campos. Havia apenas árvores.

Will estava olhando uma grande floresta branca: uma

floresta de árvores enormes, resistentes como torres e

antigas como as rochas. Elas estavam descobertas de

folhas, revestidas apenas pela profunda quantidade de

neve que se depositava intocável por todos os ramos, desde

os menores gravetos. Estavam em todos os lugares. E

começaram a cair perto da casa; ele observava os ramos

mais altos da árvore mais próxima, e poderia esticar o

braço e sacudi-los se ousasse abrir a janela. Todas as

árvores ao redor se alongavam até o plano horizonte do

vale. A única discrepância naquele mundo branco de

galhos encontrava-se logo ao sul, onde o Tâmisa corria; ele

podia ver a curva do rio marcada como uma única onda

silenciosa naquele oceano branco de florestas, e tinha-se a

impressão de que o rio era mais largo do que deveria ser.

Will olhava e olhava atentamente, e quando por fim

se mexeu, percebeu que estava apertando o círculo liso de

ferro em seu cinto. O ferro estava quente sob seu toque.

Voltou para o quarto.

— Robin! — disse ele alto. — Acorde! — Mas Robin

respirava lenta e ritmicamente como antes, e nem se

mexeu.

Ele correu para o próximo quarto, o pequeno e

familiar aposento que costumava dividir com James.

Balançou o irmão bruscamente pelo ombro. Mas quando

Page 33: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

parou, James continuou imóvel, profundamente

adormecido.

Will saiu novamente para a escada, tomou bastante

fôlego, e gritou com todas as suas forças: — Acordem

todos! Acordem todos, pessoal!

Não esperava receber alguma resposta, e ela

realmente não veio.

Tudo permaneceu em completo silêncio, tão

profundo e eterno como o cobertor de neve; a casa e todos

nela mantinham-se num sono que não podia ser

interrompido.

Will foi para o andar de baixo para vestir suas botas

e a velha jaqueta de couro de cabra que já pertencera,

antes dele, a dois ou três de seus irmãos. Depois, saiu pela

porta dos fundos, fechando-a atrás de si sem fazer barulho,

e ficou ali contemplando através do vapor branco de sua

respiração.

O estranho mundo branco permanecia tomado pelo

silêncio. Nem os pássaros cantavam. O jardim já não

existia, nessa terra arborizada. Nem se via mais as

construções externas nem as antigas paredes

desmoronadas. Havia apenas uma estreita clareira ao

redor da casa agora, elevada com infindáveis montes de

neve causados pelo vento, antes que as árvores

começassem a surgir em um estreito caminho conduzindo

adiante. Vagarosamente, Will partiu descendo pelo túnel

branco da trilha, pisando alto para manter a neve longe de

suas botas. Tão logo ele se afastou da casa, sentiu-se muito

Page 34: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

sozinho, mas obrigou-se a continuar sem olhar para trás,

pois sabia que quando olhasse, descobriria que a casa não

estava mais ali.

O menino aceitava tudo o que vinha à sua mente,

sem pensar ou questionar, como se estivesse sendo

conduzido através de um sonho. Mas bem lá no fundo,

sabia que não estava sonhando. Tinha convicção de estar

acordado, no dia do solstício de inverno que o estava

aguardando acordar desde o dia de seu nascimento e, de

alguma forma, ele sabia disto há séculos. Amanhã será

além de nossa imaginação... Will saiu da trilha na estrada

em arco branco, pavimentada lisamente com neve e

ladeada em todos os lugares por grandes árvores. E

olhando acima entre os galhos, viu uma única gralha negra

bater as asas, voando alto no céu da manhã.

Virando à direita, subiu a estrada estreita que no seu

tempo chamava-se Trilha do Vale do Caçador. Era o

caminho que ele e James tinham tomado para chegar à

fazenda dos Dawson, a mesma estrada que havia pisado

quase todos os dias de sua vida, mas que estava diferente

agora. Nesse momento, nada mais era do que uma

passagem através da floresta, com grandes árvores

cobertas de neve cercando-a por todos os lados. Will

movia-se com os olhos brilhantes e atentos através do

silêncio, até que repentinamente ouviu um ruído indistinto

à sua frente.

Preferiu ficar quieto. O som foi ouvido novamente,

abafado através das árvores: uma leve batida rítmica,

Page 35: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

dissonante, como um martelo golpeando um metal. O ruído

surgia em estalos curtos e irregulares, como se alguém

estivesse martelando pregos. Enquanto continuava

ouvindo, o mundo à sua volta parecia brilhar um pouco

mais; os bosques pareciam menos densos, a neve cintilava,

e quando olhou para cima, a faixa de céu sobre a Trilha do

Vale do Caçador tinha uma cor azul clara. Percebeu que o

Sol havia se levantado finalmente fora do sinistro

aglomerado de nuvens escuras.

O menino caminhou com dificuldade em direção ao

som do martelo, e logo chegou a uma clareira. Não havia

mais o vilarejo do Vale do Caçador, apenas isto. Todos os

seus sentidos se abriam para a vida, sob uma chuva de

sons, vistas e odores inesperados. Ele avistou duas ou três

construções baixas de pedra cobertas espessamente com

neve, uma fumaça azulada de madeira subindo e sentiu o

cheiro disto ainda e, ao mesmo tempo, o aroma voluptuoso

de pães recentemente assados que lhe dava água na boca.

Viu que a construção mais próxima das três tinha três

muros, e estava aberta para a trilha, com um fogo

amarelado queimando em seu interior como um sol cativo.

Enormes chuvas de faísca eram espalhadas de uma bigorna

onde se encontrava um homem martelando. Ao lado da

bigorna podia-se avistar um cavalo preto bem alto, um

animal bonito e reluzente; Will nunca havia visto um cavalo

tão esplendidamente escuro em sua cor, sem qualquer

mancha branca em nenhum lugar.

O cavalo ergueu a cabeça e olhou-o diretamente e,

Page 36: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

passando a pata no chão, relinchou baixo. A voz do ferreiro

retumbou em protesto e outra figura surgiu das sombras

atrás do cavalo. A respiração de Will ficou cada vez mais

rápida ao avistá-lo, e sentiu um aperto em sua garganta.

Mas não sabia o motivo.

O homem era alto, e trajava um manto preto que caía

como uma veste; seu cabelo, que se estendia abaixo do

pescoço, brilhava num tom curiosamente avermelhado.

Bateu levemente no pescoço do cavalo, murmurando em

seu ouvido; depois deu a impressão de ter percebido a

causa da inquietação do animal e, virando, ao avistar Will,

deixou os braços caírem abruptamente ao longo do corpo.

Deu um passo à frente, permaneceu ali, aguardando.

A claridade fugiu da neve e do céu, e a manhã se

escureceu um pouco, como se uma camada de nuvens

longínquas cobrisse o sol.

Will atravessou a estrada pela neve, suas mãos

estavam enfiadas no fundo dos bolsos. Não olhava para a

figura alta de casaco que o encarava. Era vez disto, fixou

firmemente outro homem curvado sobre a bigorna,

percebendo que o conhecia; era um dos homens da fazenda

dos Dawson. John Smith, o filho do Velho George.

— Bom dia, John — cumprimentou.

O homem de ombros largos, portando um avental de

couro, o olhou de relance. Franziu a testa brevemente, mas

depois cumprimentou com a cabeça em boas-vindas.

— Ei, Will. Você levantou cedo.

— É meu aniversário — respondeu o menino.

Page 37: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Um aniversário de solstício de inverno —

acrescentou o estranho de casaco. — Venturoso, de fato. E

você fará onze anos completos. — Era uma afirmação e não

uma pergunta. Agora, Will precisava olhar. Os olhos azuis

brilhantes passaram pelos cabelos castanho-avermelhados,

e o homem falava com uma curiosa pronúncia que não era

a do sudeste.

— Isso mesmo — confirmou Will.

Uma mulher apareceu de um dos chalés mais

próximos dali, carregando uma cesta com pequenos pães

em seu interior, e com eles o aroma de recém-saídos do

forno que havia inebriado o menino antes. Ele sentiu o

cheiro, seu estômago o fez se lembrar de que ainda não

havia tomado o café-da-manhã. O homem de cabelos

vermelhos pegou um pão, dividindo-o em duas partes e

entregou uma metade para o menino.

— Aqui. Você está com fome. Quebre o jejum matinal

de seu aniversário comigo, jovem Will. — E mordeu a outra

metade, no que Will pôde ouvir o som das cascas do pão se

esfarelando de forma convidativa. Estendeu a mão, mas,

enquanto isso, o ferreiro tirou uma ferradura do fogo e

bateu rapidamente no objeto sobre o casco do cavalo

colocado firmemente entre seus joelhos. Sentiu-se um

cheiro de queimado, destruindo o aroma do pão assado; em

seguida, a ferradura já voltava ao fogo e o ferreiro olhava

minuciosamente o casco do animal. O cavalo negro

permaneceu imóvel e paciente, mas Will deu um passo

atrás, deixando os braços caírem.

Page 38: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Não, obrigado — disse ele.

O homem deu de ombros, mordendo vorazmente o

pão; a mulher, com a face oculta pela borda do xale, saiu

novamente com sua cesta. John Smith retirou a ferradura

do fogo mais uma vez e a levou até um balde de água

fazendo-a chiar e cobrir-se de fumaça.

— Vamos lá, vamos lá — disse o cavaleiro

irritadamente, erguendo a cabeça. — O dia está passando.

Quanto tempo mais vai demorar?

— Não apresse seu ferro — disse o ferreiro.

Entretanto, naquele momento ele já estava martelando a

ferradura com batidas certeiras e rápidas. — Terminei! —

informou, finalmente, aparando o casco do animal com

uma faca.

O homem de cabelos avermelhados fez o cavalo

marchar ao redor, numa circunferência apertada, e depois

montou em sua sela, rápido como um gato veloz.

Erguendo-se acima de todos, com as vestes negras

flutuando pelos flancos de seu cavalo negro; parecia uma

estátua esculpida da noite. Mas os olhos azuis olhavam

atenta e imperiosamente para Will.

— Suba, garoto. Eu levarei você aonde deseja ir.

Cavalgar é a única maneira, em neve tão densa quanto

esta.

— Não, obrigado — respondeu Will. — Eu saí para

procurar o Andarilho. — Ele ouvia suas próprias palavras

com assombro. Então é assim, pensava ele.

— Mas agora é o Cavaleiro que está por aí — disse o

Page 39: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

homem; e em um movimento ligeiro, virou a cabeça de seu

cavalo, curvou-se na sela e agarrou fortemente o menino.

Will puxou bruscamente o braço para o lado, mas teria

continuado preso se o ferreiro, de pé no muro aberto da

ferraria, não tivesse saltado adiante e o arrastado para fora

de alcance. Para um homem tão largo, ele se moveu com

impressionante rapidez.

O garanhão escuro empinou, e o cavaleiro em sua

capa foi quase arremessado da sela. Gritou furioso,

restabelecendo-se em seguida; ao sentar-se, olhava para

baixo em uma gélida contemplação, algo que parecia ser

mais terrível do que ódio. — Isto foi uma tolice, meu caro

ferreiro — disse calmamente. — Nós não esqueceremos. —

Em seguida, girou o garanhão e cavalgou na mesma

direção de onde Will havia chegado; os cascos de seu

enorme cavalo faziam apenas um abafado sussurro na

neve.

John Smith cuspiu, ironicamente, e começou a

guardar suas ferramentas.

— Obrigado — disse Will. — Eu espero que... — fez

uma pausa.

— Eles não podem me fazer mal — disse o ferreiro. —

Eu descendo de outra raça. E neste tempo, eu pertenço à

estrada, assim como meu oficio pertence a todos os que

usam a estrada. O poder deles não pode causar mal algum

na estrada através do Vale do Caçador. Lembre-se disso,

para si mesmo.

O estado de sonho oscilou, e o menino sentiu que

Page 40: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

seus pensamentos começavam a vacilar.

— John — ele chamou. — Sei que preciso encontrar o

Andarilho, mas não sei a razão. Você poderia me dizer?

O ferreiro se virou e pela primeira vez olhou-o

diretamente, com uma espécie de compaixão em seu rosto

envelhecido.

— Ah, não, jovem Will. Você simplesmente acabou de

acordar? Você deve aprender por si mesmo. E, além disso,

este é seu primeiro dia.

― Primeiro dia? — perguntou Will.

― Coma — disse o ferreiro. — Não há perigo nisso,

agora que não compartilhará do pão com o Cavaleiro. Viu

como você percebeu rápido o perigo disso? Assim como

sabia que haveria grande perigo em cavalgar cora ele. Siga

seus instintos durante o dia, garoto, siga apenas os seus

instintos,, Ele gritou em direção à casa — Martha!

A mulher saiu novamente com a cesta. Naquele

momento, retirou seu xale e sorriu para o menino que

vislumbrou olhos azuis como os do Cavaleiro, mas de uma

luz mais suave. Agradecido, ele mastigou o pão quente e

crocante, partido naquela mesma hora e com recheio de

mel. Em seguida, além da clareira, ouviu-se um novo som

de passos abafados na estrada, e ele se virou

temerosamente ao redor.

Uma égua branca, sem cavaleiro ou arreio, trotava

para dentro da clareira na direção deles: uma imagem

inversa do garanhão negro do Cavaleiro, alto e esplêndido

e sem quaisquer marcas. Uma fraca luz dourada, contra a

Page 41: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

neve ofuscante, cintilante enquanto o Sol ressurgia das

nuvens, surgia em sua alvura e em sua longa crina que caía

sobre o pescoço arqueado. O animal parou ao lado de Will,

curvou o nariz subitamente e tocou o ombro do menino

como um cumprimento, depois balançou a enorme cabeça

branca, exalando uma nuvem esfumaçante de respiração

no ar frio. Will estendeu o braço e colocou uma mão

reverente no pescoço do animal.

— Você chegou em boa hora — disse John Smith. —

O fogo está bem quente.

Voltou para dentro da ferraria e encheu uma ou duas

vezes o fole, de modo que o fogo emitiu um grande estalo.

Em seguida, desenganchou uma ferradura de uma parede

escondida pelas sombras mais adiante e colocou-a no calor.

Page 42: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Olhe bem — disse, estudando o rosto de Will. —

Você nunca viu um eqüino como este antes. Mas não será a

última vez.

— Ela é linda — completou Will, e mais uma vez, a

égua roçou gentilmente seu pescoço.

— Suba — redargüiu o ferreiro.

O menino riu. Seria obviamente impossível; sua

cabeça mal alcançava os ombros do animal, e mesmo se

houvesse um estribo, estaria muito longe do alcance de

seus pés.

— Não estou brincando — disse o ferreiro, e de fato

não parecia o tipo de homem que sorri freqüentemente,

sem falar de fazer brincadeiras. — É um privilégio seu.

Segure na crina que pode alcançar e você verá.

Para fazer a vontade dele, Will estendeu o braço e

passou os dedos das duas mãos nos longos fios da crina do

animal, bem na altura do pescoço. No mesmo instante,

ficou atordoado; sua cabeça zumbia como uma fiação, e por

trás do som, ouviu com bastante clareza, mas muito

distante, aquela frase tocada como um sino que ele ouvira

antes de sair naquela manhã. Gritou. Seus braços se

moviam de forma brusca e estranha; o mundo girava; e a

música desapareceu. Sua mente ainda tentava recobrá-la

desesperadamente quando percebeu que se encontrava

mais perto dos galhos das árvores, cobertos pela neve, do

que jamais estivera antes, sentado bem alto às largas

costas da égua branca. Olhou para baixo, para o ferreiro, e

sorriu alto de prazer.

Page 43: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Depois que estiver ferrada — disse o ferreiro, —

ela o levará, se pedir.

Subitamente, Will se restabeleceu do torpor,

pensando. Depois alguma coisa conduziu seu olhar através

dos arcos das árvores em direção ao céu, e ele viu duas

gralhas negras batendo as asas preguiçosamente, lá no

alto.

— Não — disse. — Eu acho que preciso ir sozinho. —

E tocou no pescoço da égua, girou suas pernas para um

lado, escorregou para o chão, preparando-se para um

impacto. Mas, percebeu que havia caído suavemente em

terra, com os dedos dos pés na neve. — Obrigado, John.

Muito obrigado. Adeus.

O ferreiro acenou rapidamente com a cabeça, depois

passou a se ocupar do animal, e Will saiu caminhando com

certo desapontamento; esperava uma palavra de despedida

pelo menos. Chegando às árvores, olhou para trás. John

Smith tinha prendido um dos pés da égua entre seus

joelhos, e estendia suas mãos enluvadas para pegar suas

pinças, E o que Will viu em seguida o fez esquecer-se de

qualquer palavra ou despedida. O ferreiro não removeu

nenhuma ferradura velha, ou aparou o casco; aquele

animal nunca havia sido ferrado antes. E a ferradura que

estava sendo preparada para ela, como a fileira das três

outras que podia vislumbrar cintilando sobre o muro mais

afastado da Ferraria, não era uma ferradura, mas algo com

outra forma, uma forma que ele conhecia muito bem.

Todas as quatro ferraduras da égua branca eram réplicas

Page 44: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

do círculo quartejado pela cruz que ele usava em seu cinto.

* * *

Will se afastou estrada abaixo, sob o estreito céu

azul. Colocou a mão dentro de sua jaqueta para tocar o

círculo em seu cinto, e o ferro estava frio como o gelo. Ele

começava a conhecer o significado do objeto, naquele

momento. Não havia qualquer sinal do Cavaleiro, nem era

possível ver a trilha deixada pelas pegadas do cavalo

negro. Por isso, o menino não pensava em encontros

malévolos. Podia apenas sentir que alguma coisa o

conduzia cada vez mais forte em direção ao lugar onde, em

seu próprio tempo, ficava a fazenda dos Dawson.

Encontrou o estreito caminho lateral e fez a curva

para descê-lo. A trilha seguia por um longo trecho,

serpenteando cm curvas suaves. Esta parte da floresta

parecia abrigar um grande matagal; o topo dos galhos das

árvores pequenas e arbustos mostravam a quantidade de

neve acumulada sobre elas, como chifres brancos dos

cervos em suas cabeças. Em seguida, na próxima curva,

Will avistou uma cabana quadrada baixa, com paredes

rudimentarmente revestidas de argila e um telhado alto

com um chapéu de neve; era como uma torta espessa de

gelo. Na entrada, parado irresoluto com uma mão sobre a

porta desconjuntada, encontrava-se o velho mendigo

desgrenhado do dia anterior, com os mesmos longos

cabelos grisalhos, as mesmas roupas e o mesmo o rosto

Page 45: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

enrugado e astucioso.

Will se aproximou do velho homem e falou da mesma

maneira como ouvira o fazendeiro Dawson falar, no dia

anterior:

— Então o Andarilho está por aí.

— Somente o único — respondeu o velho. — Eu

apenas. E que relação isso tem com você? — Fungou,

olhando de soslaio para Will e esfregando o nariz na manga

da roupa engordurada.

— Eu quero que me conte algumas coisas —

respondeu Will, mais audacioso do que se sentia

propriamente. — Eu quero saber por que ontem você

esteve andando por aí. Por que estava observando? Por que

as gralhas atacaram você? Eu quero saber — acrescentou

em uma franca urgência repentina — o que quer dizer ser

o Andarilho?

Ao mencionar as gralhas, o velho recuou para dentro

da cabana, seus olhos piscavam nervosamente para o topo

das árvores; mas, neste instante, olhava para Will com uma

desconfiança mais forte do que antes.

— Você não pode ser ele! — disse o homem.

— Não posso ser o quê?

— Você não pode ser... você deveria saber de tudo

isso. Especialmente sobre aqueles pássaros infernais.

Tentando me enganar, hein? Tentando enganar um pobre

velho. Você está com o Cavaleiro, não está? Você é o

garoto dele, não é, hein? Ê claro que não — retrucou Will.

— Eu não sei o que você quer dizer. — E olhou para a

Page 46: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

cabana deplorável; o caminho terminara ali, mas mal havia

uma clareira apropriada. As árvores se estendiam

próximas, ao redor deles, escondendo boa parte do sol. De

repente, falou desolado:

― Onde está a fazenda?

― Não tem fazenda nenhuma — respondeu o velho

andarilho impacientemente. — Não ainda. Você deveria

saber.

Fungou novamente de forma brusca e

murmurou algo para si mesmo; então seus olhos se

estreitaram e ele se aproximou de Will, fitando

atentamente o rosto do menino e deixando escapar um

cheiro repugnante de suor velho e de pele, sem asseio. —

Mas você poderia sê-lo, você poderia se estivesse

carregando o primeiro sinal que o Ancião entregou para

você. Você o tem aí com você, tem? Mostre. Mostre o sinal

para o velho Andarilho.

Tentando se afastar com dificuldade, em sinal de

repulSA, Will tateou os botões de sua jaqueta. Sabia que

sinal seria esse. Mas enquanto empurrava o couro de cabra

para o lado a fim de mostrar o círculo colocado em seu

cinto, sua mão deslizou pelo ferro liso e o sentiu

queimando, ardente como o gelo; ao mesmo tempo, viu o

velho saltar para trás, encolhendo-se de medo, fitando, não

ele, mas o que havia atrás dele, sobre seus ombros. Will

olhou ao redor e avistou o Cavaleiro ocultado pelo manto,

assentado sobre seu cavalo negro como a noite.

― Bem encontrado — disse o Cavaleiro, calmamente.

Page 47: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

O velho gritou como um coelho amedrontado e virando-se

correu, esbarrando nos montes de neves em direção as

arvores. Will permaneceu onde estava, olhando para o

Cavaleiro; seu coração batia tão violentamente que ficou

difícil respirar.

— Não foi prudente sair da estrada, Will Stanton —

disse o homem no manto; seus olhos resplandeciam como

estrelas azuis. O cavalo negro avançou um pouco, e um

pouco mais; Will se encolheu contra a lateral da cabana

esfarrapada, fitando aqueles olhos, e então, com grande

esforço, enfiou o braço entorpecido em sua jaqueta de

modo que o círculo em seu cinto ficasse visível. Segurou o

cinto de lado; a frieza do signo era tão intensa que podia

sentir a força do objeto, como a radiação de um calor

profundo e em chamas. O Cavaleiro parou, e seus olhos

piscaram.

— Então você já tem um deles. — Mexeu os ombros

de forma estranha, e o cavalo sacudiu a cabeça; ambos

pareciam ganhar força e ficar cada vez mais altos. — Um

não o ajudará, não sozinho, não ainda — acrescentou o

Cavaleiro, crescendo, crescendo, eminente contra o mundo

branco, enquanto seu garanhão relinchava

triunfantemente, empinando os seus pés dianteiros e

açoitando o ar. Diante disso, Will podia apenas pressionar

seu próprio corpo contra a parede, inutilmente. Cavalo e

cavaleiro se ergueram sobre ele como uma nuvem negra,

tapando sua visão tanto da neve quanto do Sol.

E então, ele vagamente ouviu novos sons, e a forma

Page 48: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

negra pareceu abaixar as patas levantadas, atormentado

pelo esplendor de uma luz áurea, brilhante com a força-

padrão dos círculos fulgurantes das estrelas e do Sol. Will

piscava, e de repente viu que se tratava da égua branca da

ferraria, erguendo por sua vez as patas dianteiras sobre

ele. Agarrou desesperadamente a crina esvoaçante, e

assim como antes, encontrou-se montado num solavanco

sobre o dorso do animal. Curvou-se sobre o pescoço da

égua, agarrando-se em prol da própria vida. A grande égua

branca emitiu um relincho alto e saltou para a trilha

através das árvores, passando pelas nuvens negras sem

forma que permaneciam imóveis na clareira como fumaça,

cruzando tudo em um crescente galope, até que chegaram

por fim à estrada, à Trilha do Vale, a estrada através do

Vale do Caçador.

O movimento da grande égua ficou cada vez mais

lento, mantendo o trote vigoroso, e Will ouvia as batidas do

próprio coração em seus ouvidos, enquanto o mundo

passava voando em um borrão branco. Então, ao mesmo

tempo, as sombras os cercaram, e o Sol escureceu. O vento

irrompia pelo colarinho, mangas e botas do menino,

agitando seus cabelos. Nuvens imensas se aproximavam

rapidamente do norte, fechando-se ao redor deles, enormes

nuvens escuras de tormenta; o céu reverberava e rugia. A

única fresta de névoa branca ainda se encontrava ali, com

um leve indício de azul atrás de si, mas já estava se

fechando, fechando. A égua branca saltou em sua direção,

desesperadamente. Sobre os ombros, Will pôde ver que

Page 49: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

investia contra eles uma forma mais escura do que as

nuvens gigantes: o Cavaleiro, erguendo-se, imenso, os

olhos como dois pontos terríveis de fogo branco-azulado.

Relâmpagos e trovões cortavam o céu, e a égua saltou

rumo ao estrondo das nuvens enquanto a última fresta se

fechava.

E ali permaneceram seguros. O céu estava azul sobre

eles e diante deles; o Sol resplandecia, aquecendo a pele

do menino que acabava de perceber que tinham deixado

seu Vale do Tâmisa para trás. Agora, eles se encontravam

entre as encostas inclinadas das colinas de Chiltern,

cobertas por grandes árvores como faias, carvalhos e

freixos. E estendendo-se como fileiras pela neve,

encontravam-se as cercas vivas que eram as marcas de

antigos campos — muito antigos — segundo o que Will

sempre soube; mais antigo do que qualquer coisa neste

mundo, exceto as próprias colinas e as árvores. Então, em

um morro embranquecido, avistou uma marca diferente. A

forma estava talhada pela neve e encoberta no calcário

embaixo do solo; teria sido difícil descobri-la se não fosse

familiar. Mas Will a conhecia. A marca era um círculo,

quartejado por uma cruz.

Então, suas mãos soltaram abruptamente a crina

espessa a que se agarrara firmemente, e a égua branca

emitiu um longo relincho esganiçado que soou alto em seus

ouvidos para então em seguida esmorecer estranhamente

com algo longínquo. Will estava caindo, caindo; porém, não

sentiu nenhum choque com a queda; só percebia que se

Page 50: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

encontrava com o rosto na neve. Levantou-se cambaleando,

sacudindo-se. A égua branca já não estava mais ali. O céu

estava claro, e os raios do Sol aqueciam seu pescoço. Ficou

de pé sobre um monte de neve, com um bosque denso de

árvores altas cobrindo toda uma extensão ainda bem mais

adiante, e dois pássaros pretos moviam-se lentamente de

um lado para o outro sobre as árvores.

Diante dele, levando a lugar nenhum, encontravam-

se sozinhos e altaneiros, sobre a encosta embranquecida,

dois portais enormes talhados em madeira.

O DESCOBRIDOR DOS SIGNOS

Will colocou suas mãos frias nos bolsos, e ficou

olhando os painéis talhados das duas portas fechadas que

se erguiam diante dele. Não lhe diziam nada. E não

conseguia encontrar qualquer significado no ziguezague de

símbolos repetidos várias vezes, variações intermináveis,

sobre cada painel. Nunca havia visto uma madeira como

aquela, trincada e fendida, porém polida pelos anos, de

modo que quase não se poderia dizer se era madeira,

exceto por uma curvatura aqui e ali, onde alguém não foi

suficientemente capaz de evitar os vestígios dos nós. Não

fosse por isso, Will teria achado que as portas eram uma

pedra.

Os olhos do menino passearam pelo contorno

enquanto observava, e ele pôde ver que tudo ao redor era

uma agitação de coisas, um movimento como o tremor do

Page 51: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ar sobre uma fogueira ou sobre uma estrada pavimentada

aquecida pelo sol do verão. Porém, não havia diferença de

calor para explicar o que se via ali.

Não havia maçaneta nas portas. Will esticou os

braços à sua frente, deixando a palma de cada mão

encostada sobre as portas, e empurrou. Enquanto se

abriam sob suas mãos, o menino pensava ter ouvido a frase

do sino surgir rapidamente — como uma música

novamente; mas logo parou, na fresta enevoada entre a

memória e a imaginação. Atravessou a entrada e sem um

murmúrio sequer de som, as duas portas enormes se

fecharam atrás dele; e a luz, o dia e o mundo mudaram de

tal modo que o menino se esqueceu totalmente do que

haviam sido.

Encontrava-se agora em um Grande Salão. Não havia

luz do Sol ali. De fato, não havia sequer janelas nas

imponentes paredes de pedra, somente uma série de

fendas bem finas. Entre elas, de ambos os lados, via-se

pendurada uma série de tapeçarias tão estranhas e belas

que podiam cintilar à meia-luz. Will deslumbrou-se com os

animais brilhantes, as flores e os pássaros que foram

tecidos ou bordados ali em ricas cores, como vidro colorido

pela luz do Sol.

Certas imagens lhe saltavam à mente; viu um

unicórnio prateado, um campo de rosas vermelhas, um

reluzente sol dourado. Acima de sua cabeça, a viga

abobadada do telhado mais alto arqueava na sombra;

outras sombras ocultavam o fim do aposento. Prosseguiu

Page 52: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

como num sonho, seus pés não faziam barulho sobre os

tapetes de couro de cabra que cobriam o chão de pedra, e

continuou olhando adiante. Tudo ao mesmo tempo faiscava

e o fogo crepitava na escuridão, iluminando uma enorme

lareira situada na parede mais distante; o menino viu

portas, cadeiras de encosto alto e uma pesada mesa

talhada. Nos dois lados da lareira, podia-se avistar a

silhueta de duas pessoas de pé aguardando por ele: uma

velha dama com uma bengala e um homem bem alto.

— Bem-vindo, Will — saudou a velha dama; sua voz

era suave e gentil, porém vibrava pelo salão abobadado

como o som agudo de um sino. Ela estendeu uma mão fina

na direção dele, e a luz do fogo brilhou em um enorme anel

que se projetava como um mármore em cima de seu dedo.

Era muito pequena, frágil como um pássaro e, embora

estivesse ereta e alerta, ao olhar para a mulher, Will tinha

a impressão de que a idade dela era incalculável.

Não podia ver-lhe o rosto. Ficou parado onde estava

e, inconscientemente, sua mão moveu-se discretamente

para o cinto. Depois, a silhueta mais alta do outro lado da

lareira se moveu, curvou-se e acendeu um longo círio no

fogo e, indo em seguida até a mesa, começou a colocá-lo

em um círculo de velas compridas que estavam ali. A luz da

chama amarela esfumaçante passeava pelo rosto dele. Will

pôde perceber a cabeça de ossatura forte com olhos

profundos e nariz arqueado, como o bico de um falcão;

volumosos cabelos brancos e ouriçados emergiam da

fronte altiva, deixando aparentes as sobrancelhas cheias e

Page 53: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

o queixo sobressalente. E embora não soubesse o motivo,

enquanto olhava para as linhas misteriosas e severas

daquele rosto, o mundo que ele havia habitado desde que

nascera pareceu rodopiar, romper e atingir novamente

padrões que não eram os mesmos de antes.

Endireitando-se, o homem alto olhou-o através do

círculo de velas reluzentes sobre a mesa, dentro de uma

moldura semelhante à do aro de um pneu furado. Sorriu

discretamente; a boca sombria inclinava-se nos cantos, e

um repentino leque de linhas franzia cada lado de seus

olhos profundos. Ele apagou o círio queimado com um

sopro ligeiro.

— Venha, Will Stanton — disse, e a voz profunda

também parecia saltar na memória do menino. — Venha e

aprenda. E traga essa vela com você.

Confuso, Will olhou ao redor. Perto de sua mão

direita, encontrou um suporte de ferro forjado escuro, da

mesma altura dele, erguendo-se em três pontos; dois

desses pontos tinham no topo uma estrela de cinco pontas

de ferro e o terceiro, um castiçal com uma fina vela branca.

Levantou a vela, pesada o suficiente para necessitar das

duas mãos, e atravessou o salão até os dois vultos que o

esperavam na outra extremidade. Piscando com a luz, viu

quando se aproximou deles que o círculo de velas sobre a

mesa não era uma círculo completo afinal; um orifício de

encaixe encontrava-se vazio. Debruçou-se sobre a mesa,

segurando os lados lisos inflexíveis da vela, e acendeu-a

com a chama das outras ali dispostas, fixando-lhe

Page 54: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

cuidadosamente no orifício vazio. Fez o mesmo com o

restante. Eram velas muito estranhas, irregulares em

largura, mas frias e rígidas como o mármore branco; elas

queimavam com uma longa chama brilhante e sem fumaça

e exalavam um perfume ligeiramente impregnante, como

os pinheiros.

Foi somente quando se voltou para se colocar de pé

que Will percebeu os dois braços de ferro cruzados dentro

do anel do castiçal. Aqui mais uma vez, como todo lugar,

havia um signo: a cruz dentro do círculo, a esfera

quartejada. Era possível ver agora outros encaixes para

velas na moldura: duas ao longo de cada braço da cruz, e

uma no ponto central onde eles se encontravam. Mas estes

ainda estavam vazios.

A velha dama relaxou, e sentou-se na cadeira de

encosto alto ao lado da lareira.

— Muito bem — disse confortavelmente, com aquela

mesma voz musical. — Obrigada, Will.

Sorriu, sua face pregueada como uma teia de rugas;

e Will sorriu incondicionalmente de volta. Não sabia por

que estava repentinamente tão feliz; e parecia tão natural

para ser questionado. Ele se sentou em um banco que

estivera ali claramente aguardando por ele, em frente ao

fogo, entre as duas cadeiras.

— As portas — disse ele —, as grandes portas pelas

quais passei, como podem elas permanecer ali por si

mesmas?

— As portas? — perguntou a dama.

Page 55: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Alguma coisa em sua voz fez Will se voltar para trás,

sobre os ombros, para a parede na outra extremidade de

onde acabara de vir: a parede com as duas portas altas, e o

orifício do qual ele havia tirado a vela. Olhou; havia algo

errado. As grandes portas de madeira tinham

desaparecido. A parede acinzentada se estendia em

branco, suas maciças pedras quadradas estavam quase

descaracterizadas, exceto por um escudo dourado redondo,

solitário, pendurado bem no alto, cintilando opacamente na

luz do fogo.

O homem alto riu suavemente.

— Nada é o que parece, garoto. Espere nada e não

tema nada, aqui ou em qualquer outro lugar. Eis a sua

primeira lição. E eis seu primeiro exercício... Então, nós

temos diante de nós Will Stanton; diga-nos, o que tem

acontecido com ele nestes últimos dois dias.

Will olhou as chamas insistentes, quentes e bem-

vindas em seu rosto naquele ambiente gelado. Foi

necessário grande esforço para levar sua mente de volta ao

momento quando ele e James saíram de casa em direção à

fazenda dos Dawson para buscar feno — feno! — na tarde

de ontem. Ele pensou, desconcertado, sobre tudo o que

ocorrera entre aquele momento e o presente. Depois de um

tempo:

— O signo. O círculo com a cruz. Ontem o sr. Dawson

deu-me o signo. Depois, o Andarilho me perseguiu, ou

tentou, e depois disso eles, seja lá quem for e se são eles,

tentaram me pegar. — Engoliu seco, sentindo frio ao se

Page 56: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

lembrar do medo que vivera à noite. — Para pegar o signo.

Eles o querem, só se trata disto. É por isso que hoje é

dessa maneira, mesmo assim é muito mais complicado,

pois agora não é agora, é outro tempo, eu não sei quando.

Tudo é como um sonho, mas real... Eles ainda o procuram.

Eu não sei quem são, exceto o Cavaleiro e o Andarilho. Eu

não conheço vocês também, só sei que são contra eles.

Vocês, o sr. Dawson e John Wayland Smith.

Parou.

— Continue — disse a voz profunda.

— Wayland? — continuou Will, perplexo. — É um

nome estranho. Não faz parte do nome de John. O que me

fez dizer isto?

— As mentes guardam mais do que sabem — disse o

homem alto. — Particularmente a sua. E o que mais tem a

dizer?

— Eu não sei — respondeu Will. Ele olhava para

baixo e deslizava um dedo pela borda de seu banco que

havia sido talhado em suaves ondas regulares, como um

mar tranqüilo. — Bem, sim, eu tenho. Duas coisas. Uma é

sobre algo engraçado com relação ao Andarilho. Eu não

acho que ele seja um deles, já que tremeu de medo do

Cavaleiro quando o viu, e fugiu.

— E a outra coisa? — perguntou o homem.

Em algum lugar nas sombras do Grande Salão soou

um relógio, com uma nota grave como um sino abafado:

uma única nota, de meia hora.

— O Cavaleiro — acrescentou Will. — Quando o

Page 57: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Cavaleiro viu o signo, disse: "Então você já tem um deles".

Ele não sabia que eu o tinha. Mas ele me perseguiu. Veio

atrás de mim. Por quê?

— Sim — disse a velha dama. Ela o olhava de

maneira bastante triste. — Ele estava perseguindo você.

Temo que a suposição de sua mente esteja correta, Will.

Não é o signo que eles querem acima de tudo. É você.

O homem alto se levantou, passou por trás de Will, e

colocou uma mão sobre o encosto da cadeira da velha

dama e a outra no bolso do paletó escuro de gola alta que

vestia.

— Olhe para mim, Will — pediu ele. A luz do anel

ardente das velas sobre a mesa brilhava em seus cabelos

brancos; depois os olhos indistinguíveis e taciturnos

tornaram-se ainda mais sombrios, como um poço de

escuridão em seu rosto magro. — Meu nome é Merriman

Lyon — disse. ― Receba meus cumprimentos, Will Stanton.

Estivemos esperando por você há muito tempo.

— Eu conheço você — disse Will. — Quero dizer...

você parece... eu senti que... não conheço você?

― Em certo sentido — respondeu Merriman. — Você

e eu somos, podemos dizer, semelhantes. Nós nascemos

com o mesmo dom, e pelo mesmo importante propósito. E

você, Will, está aqui neste momento, para começar a

compreendei qual é este propósito. Mas, primeiro, deverá

ser ensinado a respeito de seu dom.

Tudo parecia se mover para muito longe, e muito

rápido. — Eu não entendo — disse Will, observando

Page 58: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

alarmado o rosto forte e determinado. — Eu não tenho dom

nenhum, de verdade, eu não tenho. Quero dizer, eu não

lenho nada de especial. — Olhava de um para o outro, as

silhuetas alternadamente iluminadas e ocultadas pela

dança das chamas das velas e do fogo, e começou a sentir

o medo crescer, um sentimento de estar caindo numa

armadilha. E disse: — Apenas as coisas que têm acontecido

comigo, só isso.

— Tente recordar, e lembre-se de alguma destas

coisas — pediu a velha dama. — Hoje é seu aniversário. Dia

de solstício de inverno, seu décimo primeiro dia de solstício

de inverno. Pense sobre ontem, sua décima véspera de

solstício de inverno, antes de ver o signo. Não houve algo

de especial, então? Nada novo?

Will pensava. — Os animais tinham medo de mim —

informou relutantemente. — E os pássaros talvez. Mas não

parecia significar alguma coisa naquele momento.

— E se você tivesse um rádio ou uma televisão ligada

em sua casa? — perguntou Merriman. — Por acaso, os

aparelhos agiam de modo estranho quando passava perto

deles?

Will o olhava atentamente. — O rádio realmente

ficava fazendo uns ruídos. Como você sabe disso? Eu

achava que era uma coisa magnética ou outra coisa.

Merriman sorriu. — De certo modo. De certo modo.

— E então ficou sério novamente. — Ouça agora. O dom do

que falo é um poder que mostrarei a você. É o poder dos

Anciãos , que são tão antigos quanto esta terra e até

Page 59: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

mesmo mais antigos do que ela. Você nasceu para herdá-lo,

Will, quando chegasse ao final de seu décimo ano. Na noite

que antecedeu o seu aniversário, o dom começou a

despertar e agora, no dia do seu aniversário, já está livre,

desabrochou, completamente desenvolvido. Mas ainda está

confuso e não canalizado, pois você não tem o controle

apropriado disto, ainda. Deve ser treinado para lidar com

ele, até que possa tomar sua devida forma e cumprir a

busca pela qual você está aqui. Não fique tão nervoso,

garoto. Levante-se. Eu lhe mostrarei o que seu dom pode

fazer.

O garoto se levantou, e a velha dama lhe sorriu de

modo incentivador. E Will perguntou-lhe de repente: —

Quem é você?

— A dama — começou Merriman.

A dama é muito velha — disse ela em sua clara voz

juvenil — e tinha em seu tempo muitos, muitos nomes.

Talvez fosse melhor por agora, Will, que você pensasse em

mim apenas como a velha dama.

— Sim, senhora — aceitou Will, e ao som da voz dela,

a felicidade dele transbordava novamente, o crescente

alarme se desfez, e o menino ficou ereto e ansioso, olhando

as sombras atrás da cadeira para onde Merriman tinha

retrocedido alguns passos. Ele podia enxergar o brilho dos

cabelos brancos do vulto alto, nada mais.

A voz profunda de Merriman surgiu das sombras: —

Fique parado. Olhe o que quiser ver, mas não muito, não se

concentre em nada. Deixe sua mente divagar, finja que

Page 60: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

está entediado na escola.

Ele riu, e ficou ali, relaxado, inclinando sua cabeça

para trás. Sem preocupação, olhou de soslaio, tentando

distinguir entre as vigas negras cruzadas em forma de cruz

no Alto do telhado e os contornos escuros de suas sombras.

Merriman disse com naturalidade: — Estou

colocando uma imagem em sua mente. Diga-me o que vê.

A imagem se formou na mente do menino tão natural

mente como se tivesse decidido pintar uma paisagem

imaginaria e estivesse tentando visualizá-la antes de

colocar no papel. E então falou, descrevendo os detalhes

como se lhe apareciam.

— Vejo uma encosta verdejante, acima do mar, como

um tipo de penhasco moderadamente inclinado. O céu é

muito azul, e o fundo do mar possui uma tonalidade de azul

ainda mais escura. Bem mais adiante, bem mais abaixo, lá

onde o mar se encontra com a terra, há uma faixa de areia,

uma areia dourada agradavelmente reluzente. E na terra,

desde o verdejante promontório, estão as colinas, colinas

enevoadas; não se pode avistá-las daqui, exceto pelo canto

de seu olho. Elas são um tipo de roxo suave, e suas

extremidades se dissolvem em uma névoa azulada, do

mesmo modo que as cores numa pintura se dissolvem em

outra cor se molharmos o quadro. E... — o menino saiu de

seu estado semiconsciente de visão e olhou fixamente para

Merriman, observando com atenção as sombras com um

interesse inquisitivo. — É uma imagem triste. Você sente

falta de lá, você sente falta de casa, seja ela onde for. Onde

Page 61: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

é?

— Basta — completou Merriman apressadamente,

mas ele parecia satisfeito. — Você foi bem. Agora, é sua

vez. Dê-me uma imagem, Will. Apenas escolha alguma cena

comum, qualquer coisa, e pense com o que ela se parece,

como se estivesse olhando para ela.

Will pensou na primeira imagem que lhe surgiu na

cabeça. Era a mesma imagem, percebia agora, com a qual

estivera se preocupando no fundo de seus pensamentos

durante todo esse tempo: a imagem das duas grandes

portas, isoladas sobre a encosta coberta de neve, com

todas as suas gravuras intricadas, e o estranho borrão em

suas extremidades.

Merriman disse ao mesmo tempo: — As portas não.

Nada tão perto. Algum lugar de sua vida antes do inverno

chegar.

Por um segundo, Will o fitou, desconcertado; em

seguida, engoliu seco, fechou os olhos e pensou na

joalheria que seu pai dirigia na pequena cidade de Eton.

Merriman lentamente retomou a palavra: — A

maçaneta da porta é um tipo de alavanca, como uma barra

redonda, para ser empurrada para baixo, talvez dez graus

de abertura. Uma pequena campainha toca enquanto a

porta se move. Você desce alguns centímetros para tocar o

chão, e o solavanco da descida é surpreendente sem ser

perigoso. Há vitrines de vidro em todas as paredes ao

redor, e embaixo do balcão de vidro... é claro, só pode ser a

loja do seu pai. Com lindas coisas em seu interior. Um

Page 62: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

relógio do avô, muito antigo, no canto do fundo, com uma

face pintada e um tique profundo e lento. Um colar azul-

turquesa exibido na vitrine central com um conjunto de

serpentes de prata: trabalho Zuni, penso eu, muito distante

de casa. Um pingente de esmeralda como uma grande

fenda verde. Um pequeno modelo encantador de um

castelo medieval dos Cruzados, em ouro... talvez num

saleiro... do qual você deve ter gostado muito, acho, desde

que era um garotinho. E aquele homem atrás do balcão,

baixo, satisfeito e gentil, deve ser o seu pai, Roger Stanton.

É interessante vê-lo tão claramente afinal, sem nenhum

impedimento... Está usando óculos de relojoeiro, e observa

um anel: um antigo anel de ouro com nove pedras

minúsculas fixadas em três filas, três de diamante no

centro, três rubis de cada lado, e uma curiosa escrita

rúnica as cercando... acredito que devo olhá-las mais perto

futuramente.

― Você viu até o anel! — disse o garoto, fascinado. —

É ― O anel da minha mãe. Papai o estava examinando na

última vez que estive na loja. Ela achava que uma das

pedras havia le perdido, mas ele disse que se tratava de

uma ilusão de ótica... Mas, você faz isso?

― Faço o quê? — Havia uma leveza sinistra na voz

profunda.

― Bem, aquilo. Colocar uma imagem na minha

mente. E então vê aquele que eu tenho comigo. Telepatia,

não é assim que se chama? É fantástico. — Mas um mal-

estar começava a surgir em sua mente.

Page 63: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Muito bem — disse Merriman com impaciência. —

Eu lhe mostrarei de outra maneira. Há um círculo de velas

ali ao seu lado, sobre a mesa, Will Stanton. Agora... você

conhece qualquer maneira possível de apagar alguma

daquelas chamas, além de soprar, respingar água, abafar

ou colocar a mão sobre elas?

— Não.

— Não. E não há. Mas vou contar uma coisa. Você,

por causa de quem você é, pode fazer isso simplesmente

desejando que aconteça. Pois para o dom que possui, esta

é uma tarefa das mais simples, na realidade. Se em sua

mente você escolher urna destas chamas e pensar nela

sem mesmo olhá-la e dizer-lhe para se apagar, então a

chama se apagará. E isso é algo possível a qualquer garoto

normal?

— Não — disse Will de forma triste.

— Faça — ordenou Merriman. — Agora.

Houve um momento de silêncio no salão, pesado

como veludo. Will podia sentir que os dois o observavam.

Pensava desesperadamente: Apagarei a vela, pensarei na

chama, mas não será uma daquelas; será algo maior,

alguma coisa que não poderia ser apagada exceto por uma

mágica fantástica e impossível, que mesmo Merriman não

conhece... Olhou ao redor, para a luz e as sombras

dançando lado a lado na rica tapeçaria sobre as paredes de

pedra, e pensou com afinco, em uma concentração furiosa,

na imagem da lenha de fogo queimando na enorme lareira

atrás de si. Sentia o calor da madeira na parte de trás de

Page 64: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

seu pescoço; pensava no centro alaranjado cintilante da

grande pilha de lenha e nas línguas de fogo amareladas e

crepitantes. Apague-se, fogo, ordenava em sua mente,

sentindo-se seguro e livre dos riscos do poder, pois é claro

que nenhum fogo tão grande quanto aquele poderia

possivelmente se apagar sem uma verdadeira razão. Pare

de queimar, fogo. Apague-se.

E o fogo se apagou.

De repente, o quarto ficou frio e mais escuro. O anel

das chamas das velas sobre a mesa continuou queimando,

na pequena e fria reserva de sua própria luz. Will virou-se,

fitando consternado a lareira; não havia sequer vestígio de

fumaça, ou água, ou qualquer coisa com a qual o fogo

poderia ter se extinguido. Mas estava bem extinto, frio e

negro, sem qualquer faísca. O menino se moveu naquela

direção, vagarosamente. Merriman e a velha dama não

diziam uma palavra, e não se mexiam. Will se curvou e

tocou as lenhas enegrecidas na lareira; estavam frias como

pedras, porém incrustadas com a camada de cinzas novas

que caíram dentre os dedos em um pó esbranquiçado.

Levantou-se, esfregando as mãos lentamente para cima e

para baixo em sua calça, depois olhou impotente para

Merriman. Os olhos profundos do homem queimavam como

as chamas escuras da vela, mas havia compaixão neles. Em

seguida, Will olhou nervosamente para a velha dama;

percebeu um tipo de ternura em sua face também, e ela

disse gentilmente: — Está um pouco frio, Will.

Por um período infinito de tempo que não durou mais

Page 65: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

do que um formigamento de nervos, Will sentiu uma

centelha gritante de pânico, a lembrança do medo que

tivera no pesadelo noturno durante a tempestade de neve;

mas, em seguida, acabou e, na paz de seu

desaparecimento, sentiu que de alguma maneira estava

mais forte, maior, mais relaxado. Sabia que de algum modo

havia aceitado o poder, seja lá o que fosse, a que estava

resistindo, e sabia o que deveria fazer. Tomando fôlego,

mexeu os ombros e se posicionou firme e ereto onde estava

no Grande Salão. Sorriu para a velha dama; depois passou

a olhar o nada, concentrando-se na imagem do fogo. Volte,

fogo, dizia ele em sua mente. Queime novamente. E logo a

luz estava dançando sobre a tapeçaria das paredes mais

uma vez; e a sensação do calor das chamas voltava a ser

sentida atrás de seu pescoço, e o fogo queimava.

— Obrigada — disse a velha dama — Muito bem! —

Merriman concluiu com suavidade, e Will sabia que ele não

falava apenas da extinção e do reacendimento do fogo.

— Trata-se de um fardo — disse Merriman. — Não se

engane quanto a isso. Todo grande dom, poder ou talento é

um fardo, e este mais do que qualquer outro. Você com

freqüência desejará se livrar dele. Mas não há nada que se

possa fazer. Se nascer com o dom, então deve servi-lo, e

nada neste mundo ou fora dele pode ficar no caminho

deste serviço, pois foi para isso que nasceu e esta é a Lei.

E é assim mesmo, jovem Will; você faz apenas uma leve

idéia do dom que está em seu interior, pois até as

primeiras experiências do aprendizado acabarem, você

Page 66: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

correrá grande perigo. E quanto menos souber do sentido

de seu poder, melhor será para protegê-lo, como aconteceu

nestes últimos dez anos.

Ele olhava fixamente para o fogo durante um

momento, com o cenho franzido.

— Devo contar-lhe apenas isto: você é um dos

Anciãos, o primeiro que nasceu em quinhentos anos, e o

último. E como todos eles, está destinado por natureza a

devotar-se ao longo conflito existente entre a Luz e as

Trevas. Seu nascimento, Will, completou o círculo que

estava se desenvolvendo durante quatrocentos anos nas

partes mais antigas desta terra: o círculo dos Anciãos.

Agora que descobriu o seu poder, sua tarefa é tornar esse

círculo indestrutível. É sua busca encontrar e guardar os

seis grandes Signos da Luz, produzidos durante séculos

pelos Anciãos, para serem reunidos em poder somente

quando o círculo estiver completo. O primeiro signo já se

encontra em seu cinto, mas para encontrar os restantes

não será fácil. Você é o Descobridor dos Signos, Will

Stanton. Este é o seu destino, sua primeira busca. Se puder

realizar isto, poderá trazer à vida uma das três grandes

forças que os Anciãos deverão instigar, em breve, para

vencer os poderes das Trevas que estão se estendendo

agora constante e furtivamente por todo este mundo.

O ritmo de sua voz, que se elevava e decrescia em

um padrão crescentemente formal, mudara subitamente

para um tipo de clamor de guerra cantado, um chamado —

pensou Will, com um calafrio percorrendo sua pele — para

Page 67: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

coisas além do Grande Salão e além do tempo do chamado.

— Pois as Trevas, as Trevas estão se rebelando. O

Andarilho está por aí, o Cavaleiro está cavalgando; eles

acordaram, as Trevas estão se rebelando. E o último do

Círculo já chegou para reivindicar o seu, e os círculos

devem ser reunidos agora. A égua branca deve encontrar o

Caçador , e o rio deve tomar o vale; deve haver fogo na

montanha, fogo sob a pedra, fogo sobre o mar. Fogo para

queimar as Trevas para sempre, pois as Trevas, as Trevas

estão se rebelando!

Ele permaneceu ali, alto como uma árvore no

aposento assombreado, sua voz profunda soava como um

eco, e Will não conseguia tirar os olhos dele. As Trevas

estão se rebelando. Era exatamente daquela maneira que

ele se sentira na noite passada. Era o que ele começava a

sentir agora novamente, uma consciência sombria do mal

formigando na ponta de seus dedos e pela sua espinha;

mas pela própria vida, ele não poderia pronunciar uma só

palavra. Merriman dizia, em um tom de canção que soava

estranho em vista de sua silhueta enorme, como se fosse

uma criança recitando:

Quando as Trevas se rebelarem, seis devem

fazê-la recuar, 

Três do círculo, três da trilha;

Madeira, bronze, ferro, água, fogo e pedra;

Cinco retornarão, e um deve sozinho

continuar.

Então saiu das sombras, passou pela velha dama,

Page 68: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

assentada serena e com olhos brilhantes em sua cadeira de

encosto alto; com uma das mãos, Merriman retirou uma

das espessas velas brancas do anel em chamas, e com a

outra conduziu Will em direção às altas paredes laterais.

— Olhe bem, em cada momento, Will — disse ele. —

Os Anciãos mostrarão algo de si mesmos, e lembrarão a

sua parte mais profunda. Por um momento, olhe cada um.

— E com o menino ao seu lado, ele atravessou o salão a

passos largos, segurando a vela no alto para cada

tapeçaria da parede. A todo o momento, como se fosse

ordenado, uma imagem viva reluzia por um instante de

cada motivo bordado, tão viva e profunda quanto uma

imagem iluminada pelo Sol através de uma janela. E o

garoto viu.

Ele viu uma árvore de maio branca em floração,

crescendo do telhado de sapê de uma casa. Viu quatro

pedras acinzentadas enormes sobre o verde promontório

acima do mar. Viu o crânio branco sem olhos de um cavalo,

com um único chifre espesso, porém quebrado, na fronte

óssea, e fitas vermelhas cingindo as longas mandíbulas. Ele

viu relâmpagos atingindo uma enorme faia e, depois do

lampejo, vislumbrou um grande fogo queimando uma

encosta sem vegetação sob o céu escuro.

Viu ainda o rosto de um garoto, apenas um pouco

mais velho que ele, observando curiosamente o seu: um

rosto sombrio embaixo dos cabelos escuros raiados de luz;

seus olhos eram estranhos como os de um gato, as pupilas

claras nas bordas, mas quase amareladas em seu interior.

Page 69: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Viu também um rio vasto transbordante e ao lado um

homem velho cheio de rugas curvado sobre um enorme

cavalo. Enquanto Merriman o conduzia inexoravelmente de

uma imagem a outra, avistou, num lampejo de terror, a

imagem mais iluminada de todas: um homem mascarado

com uma face humana, a cabeça de um veado, os olhos de

uma coruja, os ouvidos de um lobo e o corpo de um cavalo.

A figura saltou, puxando alguma lembrança perdida no

fundo de sua mente.

— Lembre-se deles — disse Merriman. — Eles serão

poder.

Will aquiesceu, ficando tenso logo depois. De

repente, ouviu ruídos que ficavam cada vez mais altos do

lado de fora do salão e soube com um choque de certeza

terrível o motivo que o levara a sentir aquele desconforto

um pouco antes. Enquanto a velha dama permanecia

imóvel em sua cadeira, e ele e Merriman ficavam

novamente do lado da lareira, o Grande Salão foi envolvido

repentinamente com uma mistura horrenda de

lamentações, murmúrios e gemidos estridentes, como o de

vozes enjauladas em um zoológico malévolo. Era o som

mais puramente grotesco que ele já ouvira.

O cabelo se eriçou na parte de trás do pescoço do

menino, e então, subitamente, veio o silêncio. Uma lenha

caiu, estalando, no fogo. Will ouvia a pressão sangüínea em

suas veias. E invadindo o silêncio, um novo som surgiu de

algum outro lugar do lado de fora, além das paredes mais

afastadas: de desconsolo, de ganidos suplicantes de um cão

Page 70: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

abandonado, gritos de pânico por socorro e afabilidade.

Era exatamente como faziam Raq e Ci, seus cães, quando

eram filhotinhos, latindo por conforto na escuridão; Will se

sentiu amolecer em compaixão, e virou-se instintivamente

na direção do som.

— Ai, onde é isto? Pobre coitadinho.

Enquanto ele olhava para as paredes de pedra vazias

ao longe, viu uma porta tomar forma no lugar. Não era

uma porta como aquelas enormes desaparecidas pelas

quais ele havia entrado, mas bem menores; uma porta

estranha, pequena, apertada, que parecia destoar

totalmente do lugar. Mas ele sabia que poderia abri-la para

ajudar o suplicante animal. O cão ganiu novamente

revelando uma penúria ainda pior; mais alto, ainda mais

suplicante, em um desesperado uivo. Will se virou

impulsivamente para correr até a porta; mas foi paralisado

no meio do passo pela voz de Merriman, suave, mas fria

como uma pedra no inverno.

— Espere. Se você visse a forma desse pobre e triste

cão, ficaria grandemente surpreso. E seria a última coisa

que veria em sua vida.

Incrédulo, Will parou e aguardou. O ganido cessou

novamente, em um último e longo uivo. E o silêncio voltou

por um momento. Então, subitamente, ouviu a voz de sua

mãe atrás da porta.

— Will? Wiiiiill... Venha, ajude-me, Will! — Sua voz

era inconfundível e cheia de uma emoção desconhecida:

havia nela um tom de pânico quase controlado que o

Page 71: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

aterrorizava. E soou novamente. — Will? Preciso de você...

Onde você está, Will? Ai, por favor, Will, venha e ajude-me.

— E então uma pausa infeliz, como um soluço.

Ele não conseguia suportar. Deu um impulso e

correu em direção à porta. A voz de Merriman ecoou atrás

dele como um açoite.

— Pare!

— Mas eu devo ir, não consegue ouvi-la? — gritou o

menino irritadamente. — Eles pegaram a minha mãe: eu

tenho que ajudar.

— Não abra essa porta! — Havia um indício de

desespero na voz profunda que falava com Will, através do

instinto, de que em último caso Merriman seria incapaz de

detê-lo.

— Não é sua mãe, Will — a velha dama disse

claramente.

— Por favor, Will! — a voz de sua mãe implorava.

— Estou indo! — alcançou a pesada tranca da porta,

mas com a pressa cambaleou, batendo-se contra o enorme

castiçal de modo que seu braço foi luxado de um lado.

Sentindo uma repentina dor no antebraço, gritou e caiu ao

chão encarando a parte interna do pulso onde o signo do

círculo quartejado foi marcado agonizantemente como uma

mancha vermelha em sua pele. Mais uma vez, o símbolo do

ferro em seu cinto o atingiu com seu intenso toque gelado;

a pele queimou desta vez com a temperatura do frio

extremo, em um furioso alerta resplandecente contra a

presença do mal — a presença que Will havia sentido, mas

Page 72: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

esquecido. Merriman e a velha dama ainda não se mexiam.

O menino se levantou pisando em falso e continuou

ouvindo, enquanto do lado de fora da porta a voz de choro

de sua mãe tornou-se furiosa e ameaçadora, para, em

seguida, suavizar-se novamente, persuasiva e bajuladora; e

então, finalmente, cessou desaparecendo em um soluço

que o dilacerava, embora sua mente e razão lhe dissessem

que não era real.

E a porta desapareceu com ela, desmanchando como

a névoa, até que a parede de pedra acinzentada ficasse

sólida e intacta como antes. Do lado de fora, o terrível coro

inumano de gemidos e lamentações recomeçaram.

A velha dama ficou de pé e atravessou o salão; seu

longo vestido verde farfalhava suavemente a cada passo.

Ela segurou o antebraço machucado do menino em suas

mãos e colocou a palma fria de sua mão direita sobre ele,

deixando-o logo depois. A dor no braço desapareceu, e

onde houvera a mancha vermelha de queimado que tinha

visto encontrava-se agora uma pele lustrosa e sem pêlos,

pois também havia sido curada. Mas o formato da cicatriz

era bem nítido, e ele sabia que o carregaria até os últimos

dias de sua vida.

Era como uma marca. Os ruídos do pesadelo além

das paredes cresciam e diminuíam em ondas irregulares.

Sinto muito — disse Will lamentando-se. - Estamos

cercados, como pode ver — disse Merriman, avançando

para se juntar a eles. — Eles esperam obter controle sobre

você enquanto ainda não desenvolveu todo o seu poder. E

Page 73: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

isso é apenas o início do perigo, Will. Por todo este solstício

de inverno, o poder deles se tornará cada vez mais forte, e

a Velha Magia só será capaz de mantê-los à distância na

véspera do Natal. Porém, mesmo depois do Natal, o poder

continuará crescendo, sem perder sua força máxima até o

Décimo Segundo Dia. A Décima Segunda Noite já foi certa

vez o Dia do Natal e, antes disso, há muito tempo, era o

principal festival de inverno de nosso tempo antigo.

— O que acontecerá? — perguntou Will.

— Devemos pensar apenas naquilo que devemos

fazer — disse a velha dama. — E a primeira é libertá-lo do

círculo do poder sombrio que ainda paira ao redor deste

salão.

Merriman disse, ouvindo atentamente: — Fique

alerta. Contra tudo. Eles falharam com uma emoção; mas

tentarão enganá-lo com alguma outra da próxima vez.

— Mas não tema — disse ela. — Lembre-se disso,

Will. Com freqüência você sentirá medo. No entanto, nunca

se deixe intimidar. Os poderes das Trevas podem realizar

muitas coisas, mas não podem destruir. Eles não podem

matar os que pertencem à Luz. A não ser que obtenham

uma dominação final sobre toda a Terra. E é tarefa dos

Anciãos, sua tarefa e nossa, impedir isto. Então, não deixe

que eles lhe coloquem medo e desespero.

Ela continuou dizendo mais coisas, mas sua voz foi

abafada como uma rocha submersa em ondas da maré alta,

quando o horrível coro que lamentava e chorava do lado de

fora das paredes soou mais alto, rápido e irritadiço, em

Page 74: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

uma cacofonia de gritos estridentes e risos sobrenaturais,

gritos de terror e gargalhadas de alegria, uivos e rugidos.

Enquanto Will ouvia, sua pele se arrepiava e transpirava

cada vez mais.

Como num sonho, ouviu a voz grave de Merriman

ecoar através do barulho terrível chamando por ele. Ele

não teria se movido se a velha dama não lhe tivesse

tomado as mãos, conduzindo-o pelo aposento, de volta à

mesa e à lareira, a única cavidade de luz naquele salão

escuro. Merriman falava próximo ao seu ouvido, rápido e

insistente.

— Sustente o círculo, o círculo da luz. Fique de

costas para a mesa, e segure nossas mãos. É uma união

que eles não podem romper.

Will permaneceu ali, com os braços bem estendidos,

enquanto fora de vista, ao seu lado, cada um deles

segurava uma de suas mãos. A luz do fogo na lareira

apagou, e ele ficou consciente de que logo atrás as chamas

do círculo de velas sobre a mesa ficaram mais altas,

gigantescas, tão altas que, ao virar sua cabeça, pode vê-las

se elevando bem acima de si, em um pilar branco de luz.

Não havia calor nesta enorme árvore de chamas, e embora

irradiasse com grande brilho, não lançava qualquer luz

além da mesa. Will não podia ver o restante do salão, nem

as paredes nem as pinturas nem qualquer porta. Ele não

enxergava nada além da escuridão, um vasto vazio negro

de uma terrível noite eminente.

Eram as Trevas, rebelando-se, rebelando-se para

Page 75: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

tragar Will Stanton antes que ele pudesse se fortalecer o

suficiente para lhes causar dano. À luz das velas estranhas,

Will segurava firmemente os dedos frágeis da velha dama e

o pulso como madeira vigorosa de Merriman. O grito das

Trevas crescia atingindo seu auge de forma intolerável, era

um ganido triunfante; e Will soube sem olhar que diante

dele, na escuridão, o grande garanhão negro tinha

empinado suas patas dianteiras como havia feito do lado de

fora da cabana ao bosque, com o Cavaleiro aguardando

para o abater, caso os cascos recém-ferrados não fizessem

o trabalho. E nenhuma égua branca naquele momento

poderia surgir do céu para socorrê-lo.

Ele ouviu o grito de Merriman.

— A árvore de chamas, Will! Ataque com as chamas!

Como você ordenou ao fogo, ordene à chama, e ataque!

Em desesperada obediência, Will encheu toda a sua

mente com a imagem do grande círculo de altas, altas

chamas atrás de si, crescendo como uma árvore branca e,

enquanto fazia isso, sentia a mente de seus dois

companheiros fazendo o mesmo; sabia que os três juntos

poderiam realizar mais do que ele jamais imaginou. Sentiu

certa pressão de cada mão que o segurava, e concentrou-

se na coluna de luz, sacudindo-a como se fosse um chicote

gigante. Acima de sua cabeça, surgiu um vasto clarão de

luz branca, enquanto as altas chamas se erguiam para a

frente e para baixo em um parafuso de luzes, e logo se

ouviu um tremendo grito da escuridão mais além, quando

algo — o Cavaleiro, o garanhão negro, ambos — apostatou,

Page 76: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

abandonou, prosternou, eternamente prosternou.

E no vazio da escuridão diante deles, enquanto ele

ainda piscava os olhos ofuscados, encontravam-se as duas

grandes portas de madeira pelas quais o menino havia

entrado no salão.

No silêncio repentino, Will ouviu a si mesmo gritando

triunfante. Então, saltou à frente, ficando livre das mãos

que lhe seguravam, para correr até as portas. Ambos,

Merriman e a velha dama gritaram em alerta, mas era

tarde demais. Will quebrara o círculo, ele estava sozinho.

Tão logo percebeu isso, o menino se sentiu atordoado e

pasmo, segurando a cabeça, enquanto um som estranho

começava a grunhir em seus ouvidos. Forçando suas

pernas a se moverem, ele deu um impulso até as portas,

inclinou-se contra elas e as golpeou debilmente com os

punhos. Elas não se moveram. O som sinistro em sua

cabeça aumentou. Ele viu Merriman movendo-se até ele,

caminhando com grande esforço, inclinando-se para a

frente como se estivesse lutando contra o vento forte.

— Que tolice — dizia Merriman ofegante. — Que

tolice, Will. — Agarrou as portas e as golpeou, empurrando

para a frente com a força de seus dois braços de modo que

as veias laterais em sua fronte apareceram sob a pele como

um arame espesso; e enquanto fazia isto, ergueu a cabeça

e bradou uma longa frase de ordenança que Will não

compreendia. Mas as portas não se moveram, e o menino

sentiu a fraqueza lhe abater, como se fosse um boneco de

neve derretendo ao Sol.

Page 77: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

O que o despertou, logo quando estava começando a

mergulhar em um tipo de transe, foi algo que nunca seria

capaz de descrever, ou mesmo de lembrar-se muito bem.

Era como o fim da dor, como a mudança do desacordo para

a harmonia, como o alívio para os ânimos que se pode

sentir repentinamente no meio de um dia chuvoso e

monótono, algo incalculável até que se perceba que o Sol

começara a brilhar. Essa música silenciosa que entrou na

mente de Will e tomou seu espírito veio, ele soube

imediatamente, da velha dama. Sem palavras, ela lhe

falava. Falava para ambos — e para as Trevas. Ele olhou

para trás deslumbrado; ela parecia maior, mais alta, mais

ereta do que antes, uma figura sem precedentes. E via-se

uma nuvem dourada ao redor de sua silhueta, um brilho

que não se originava da luz das velas.

Will piscava, mas não podia enxergar claramente; era

como se um véu os separasse. Então, ouviu a voz profunda

de Merriman, mais suave do que já havia escutado, porém

distorcida por alguma repentina e forte tristeza.

— Senhora — disse Merriman deploravelmente. —

Cuide-se, cuide-se.

Não houve resposta, no entanto Will tinha a sensação

de uma benção. Então passou, e a forma alta e cintilante

que era, e também não era, a velha dama, moveu-se

lentamente adiante na escuridão em direção às portas, e

por um Instante Will ouviu novamente a frase recorrente

da música que ele nunca assimilava em sua memória, e as

portas lentamente se abriram. Do lado de fora, havia uma

Page 78: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

luz acinzentada, o silêncio, e o ar estava frio.

Atrás dele, a luz do círculo de velas se esvaecera, e

havia apenas a escuridão. Uma escuridão vazia e

perturbadora, de modo que ele soube que o salão já não

estava lá. E, repentinamente, percebeu que a luminosa

silhueta dourada diante dele estava desaparecendo

também, sumindo, como Fumaça que se ergue cada vez

mais espessa, até que não possa ser mais vista. Por um

momento, viu-se um lampejo do brilho na cor rosa do

enorme anel que a velha dama portava em sua mão, e

então essa imagem também diminuiu, e a sua luminosa

presença desapareceu deixando apenas o nula. Will sentia

uma desesperada dor de perda, como se lodo o mundo

tivesse sido tragado pelas Trevas, e por isso gritou.

Uma mão tocou seu ombro. Merriman estava ao seu

Indo. Eles passaram pelas portas. Lentamente, os grandes

portais talhados de madeira se fecharam atrás deles,

dando o tempo suficiente para que Will pudesse ver

claramente que se tratavam na realidade dos mesmos

portais estranhos que se lhe abriram, na inexplorada

encosta bronca da Colina de Chiltern. E, no momento em

que se fecharam, as portas também já não estavam mais lá.

Não via nada: somente a luz acinzentada da neve que

refletia o céu chuvoso. Encontrava-se de volta no mundo de

florestas suprimidas pela neve, onde caminhara naquela

manhã.

Ansiosamente, virou-se para Merriman:

— Onde ela está? O que aconteceu?

Page 79: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Foi demais para ela. A tensão era grande demais,

mesmo para ela. Nunca, eu nunca vi algo assim antes. Sua

voz era grave e amarga; ele olhava irritado para o nada.

— Eles a pegaram? — Will não sabia que palavras

poderia usar por causa do medo.

— Não! — disse Merriman. A palavra em resposta

veio tão rápida e com tanto desprezo que poderia ter sido

uma risada. — A Dama está além dos poderes deles. Além

de qualquer poder. Você não fará uma pergunta dessa

quando tiver aprendido um pouco. Ela partiu por um

tempo, só isso. Foi a abertura das portas, diante de tudo o

que as desejava fechadas. Embora as Trevas não pudessem

destruí-la, elas teriam drenado suas forças, deixando-a

como uma casca. Ela deve se recuperar, em um lugar

distante, sozinha, e isto é ruim para nós caso precisemos

dela. Como precisaremos. Como o mundo sempre

precisará. — E olhou para Will sem afeição; de repente,

parecia distante, quase ameaçador, como um inimigo; ele

acenou com uma mão impacientemente. — Feche o casaco,

garoto, antes que se congele.

Will se atrapalhou com os botões de sua pesada

jaqueta; Merriman, ele via, estava agasalhado com um

longo e surrado casaco azul de colarinho alto.

— Foi minha culpa, não é? — perguntou, infeliz. — Se

eu não tivesse corrido, quando avistei as portas, se eu

tivesse continuado segurando suas mãos e não tivesse

quebrado o círculo...

Merriman respondeu rispidamente.

Page 80: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Sim — depois, cedeu um pouco. — Mas isso é o

que eles fazem, Will, não você. Eles influenciaram você,

aproveitando de sua impaciência e esperança. Eles gostam

de distorcer a boa emoção para realizar o mal.

Will permaneceu de ombros caídos, com as mãos nos

bolsos, olhando para o chão. No fundo de sua mente, um

canto surgiu em forma de zombaria em sua cabeça: você

perdeu a Dama, você perdeu a Dama. A tristeza comprimia

sua garganta; ele engoliu seco; não conseguia falar. Uma

brisa soprou através das árvores, levando cristais de neve

ao seu rosto.

— Will — chamou Merriman. — Eu estava zangado,

perdoe-me. Rompendo o círculo dos Três ou não, os fatos

seriam os mesmos. As portas são nossos portões para o

Tempo, e você saberá mais sobre a utilização deles muito

em breve. Mas, naquele momento, você não poderia tê-las

aberto, nem eu, e talvez ninguém do círculo. Pois a força

que estava pressionada contra elas era todo o poder do

solstício de inverno das Trevas, que ninguém, além da

Dama, poderia vencer sozinho; e mesmo ela somente o fez

pagando um alto preço. Anime-se; no devido tempo, ela

retornará.

Merriman puxou o colarinho alto de seu casaco, que

se tornou um capuz, e cobriu a cabeça. Com os cabelos

brancos escondidos, era uma figura sombria, alta e

inescrutável.

— Venha — disse conduzindo o menino pela neve

profunda, entre grandes faias e carvalhos carregados de

Page 81: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

folhas. Depois de certa distância, pararam numa clareira.

— Você sabe onde está? — perguntou Merriman.

Will olhou ao redor, para os bancos de neve

aplainados, e para as árvores altaneiras.

— É claro que não sei — respondeu. — Como

saberia?

— Porém antes de se completarem três quartos do

inverno — disse Merriman — você virá de mansinho neste 

pequeno vale isolado para olhar as lágrimas brancas que se

amontoam em todos os lugares entre as árvores. E depois,

na primavera, você retornará para ver os narcisos. Todos

os dias, por uma semana, a julgar pelo último ano. Will o

olhava boquiaberto.

— Você quer dizer o Solar? — perguntou. — O

terreno do Solar?

Em seu próprio século, o solar do Vale do Caçador

era a principal casa do vilarejo. A casa propriamente dita

não podia ser vista da estrada, mas seu terreno ficava ao

longo da Trilha do Vale em frente à casa dos Stanton, e

estendia-se ao longo do caminho em todas as direções,

rodeada alternadamente por grades altas de ferro e muros

de tijolos antigos. Era propriedade da srta. Greythorne,

como foi de sua família durante séculos, mas Will não a

conhecia direito; raramente a via ou a seu Solar, do qual

ele se lembrava vagamente como uma massa de tijolos

altos em forma de coruchéu e chaminés no estilo Tudor. As

flores de que Merriman falara foram um marco especial

naquele ano. Pois até onde conseguia se lembrar, ele havia

Page 82: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

passado pelas grades do Solar no final do inverno para

ficar naquela mágica clareira e olhar as lágrimas brancas

que afugentavam o inverno, e posteriormente o

crescimento dos narcisos dourados na primavera. Não

sabia quem havia plantado aquelas flores e nunca vira

alguém visitando o local. Nem mesmo tinha certeza se

alguma outra pessoa sabia da existência delas. A imagem

das flores irradiava alegria em sua mente.

Mas o surgimento de certas questões logo a

rechaçou.

— Merriman? Você quer dizer que esta clareira está

aqui há centenas de anos, antes de eu a ter visto pela

primeira vez? E o Grande Salão, é um Solar antes do Solar,

há centenas de anos? E a floresta ao nosso redor, que eu

atravessei quando vi o ferreiro e o Cavaleiro... que se

estende por todo lugar, tudo isso pertence...

Merriman olhou para o menino e riu, uma risada

alegre, repentinamente sem o peso que pairava sobre

eles — Deixe-me mostrar mais uma coisa — acrescentou,

conduzindo Will pelas árvores, para longe da clareira, até

que terminava a seqüência de troncos e montes de neve. E

diante dele, Will pôde ver não a trilha estreita daquela

manhã que esperava avistar, serpenteando o caminho

através da interminável floresta de antiga multidão de

árvores, mas o sentido familiar do século 21 da Trilha do

Vale do Caçador e, além dele, uma trilha curta para a

estrada, um vislumbre de sua própria casa. As grades do

Solar encontravam-se diante deles, mas de alguma maneira

Page 83: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

reduzidas pela neve profunda; Merriman passou a perna

rígida sobre elas e Will moveu-se furtivamente pelo vão

que costumava usar; logo ambos já se encontravam na

estrada coberta pela neve.

Merriman recolocou seu capuz novamente, e ergueu

sua cabeça grisalha como se desejasse sentir o cheiro do ar

deste novo século.

— Percebe, Will — disse-lhe —, nós do Círculo temos

liberdade dentro do tempo. As portas são uma passagem

por ele, para qualquer direção que desejarmos tomar. Pois

todos os tempos coexistem, e o futuro pode algumas vezes

afetar o passado, mesmo se o passado for uma estrada que

conduz ao futuro... Mas os homens não podem

compreender isto. Nem você compreenderá por enquanto.

Nós podemos viajar pelos anos por outros meios também;

um deles foi usado nesta manhã para trazê-lo de volta

através de cinco séculos ou mais. Lá é onde você estava, no

tempo das Florestas Reais que se estendiam sobre toda a

parte sudeste desta terra desde Southampton Water até

aqui no vale do Tâmisa.

Apontou da estrada até o horizonte plano, e Will se

lembrou de como havia enxergado o Tâmisa duas vezes

naquela manhã: a primeira vez nos campos de sua família,

a segunda escondido entre as árvores. Reparava na

intensidade da recordação no rosto de Merriman.

— Há quinhentos anos — continuou Merriman — os

reis da Inglaterra escolheram deliberadamente preservar

estas florestas, destruindo vilarejos inteiros e vilas em seu

Page 84: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

interior; assim os animais selvagens, os cervos, os javalis e

mesmos os lobos poderiam se reproduzir por lá para a

caça. Mas as florestas não são lugares negociáveis, e os

reis estavam, sem saber disto, estabelecendo um refúgio

também para os poderes das Trevas que, de outra forma,

poderiam ter sido rechaçados para as montanhas e outros

lugares remotos do norte... Então, lá é onde você esteve

até agora, Will. Na floresta de Anderida, como costumavam

chamá-la. Num passado bem distante. Você esteve por lá

no início do dia, quando andava pela floresta, na neve; e na

encosta vazia de Chiltern; e também quando passou pela

primeira vez pelos portais... eles simbolizavam sua

primeira caminhada, seu aniversário como um dos Anciãos.

E lá, naquela época, foi onde deixamos a Dama. Eu

gostaria de saber onde e quando a veremos novamente.

Mas certamente ela voltará, quando puder. — Deu de

ombros, como se desejasse se livrar do peso novamente. —

E agora você pode ir para casa, pois já se encontra em seu

próprio mundo.

— E você está nele também — disse Will. Merriman

sorriu.

— Mais uma vez. Com uma mistura de sensações.

— Para onde você vai?

— Tratarei de alguns assuntos por aí. Eu tenho um

lugar nesta época atual, assim como você. Vá para casa

agora, Will. O próximo estágio nessa busca depende do

Andarilho, e ele encontrará você. E quando o círculo dele

estiver em seu cinto, ao lado do primeiro, eu voltarei.

Page 85: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Mas — Will de repente desejava agarrar-se a ele,

implorar-lhe para que não partisse. Sua casa não parecia

mais uma fortaleza inacessível como sempre havia sido.

— Você ficará bem — disse Merriman gentilmente. —

Viva cada coisa ao seu tempo. Lembre-se de que o poder

lhe protege. Não faça nada que possa lhe causar problemas

e você ficará bem. Logo deveremos nos encontrar, eu

prometo.

— Tudo bem, então — aquiesceu Will sem convicção.

Uma estranha rajada de vento os cercou naquela

manhã tranqüila, e os flocos de neve respingaram das

árvores na beira da estrada. Merriman apertou seu casaco

ao redor do corpo, a barra de sua vestimenta roçava a

neve; deu um olhar cortante para o menino, um misto de

advertência e encorajamento; depois puxou o capuz sobre

o rosto e saiu descendo a estrada sem dizer uma palavra.

Logo desapareceu pela curva ao lado do Bosque das

Gralhas, a caminho da Fazenda dos Dawson.

O garoto tomou bastante fôlego e correu para casa.

O caminho estava silencioso na neve profunda e na manhã

cinzenta; nenhum pássaro se movia ou pipilava; em todos

os lugares, nada se mexia. A casa também se encontrava

totalmente silenciosa. Desvencilhou-se de algumas roupas

e subiu as escadas silenciosas. Ao alcançar o patamar,

ficou mirando o lado de fora da casa, os telhados brancos e

os campos. Nem mesmo uma grande floresta se estendia

pela terra agora. A neve estava muito profunda, mas

uniforme sobre os campos aplainados do vale, por todo o

Page 86: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

caminho até a curvatura do Tâmisa.

— Tá bom, tá bom — dizia James, sonolento, de seu

quarto.

Por trás da porta ao lado, Robin deu um tipo de

rosnado indefinível e murmurou.

— Só um minuto, estou indo.

Gwen e Margaret saíram tropeçando para fora do

quarto que compartilhavam, vestindo ainda as suas

camisolas e esfregando os olhos.

— Não há necessidade de berrar — disse Bárbara de

forma reprovadora para Will.

— Berrar? — Olhava atentamente para a irmã.

— Acordem todos vocês! — ela repetiu num grito

zombeteiro. — Quero dizer, é feriado, pelo amor de Deus.

— Mas eu... — falou Will.

— Não tem problema — disse Gwen. — Você pode

perdoá-lo por querer nos acordar hoje de manhã. Afinal,

tem um bom motivo para isso. — Então, avançou alguns

passos e deu um beijo rápido na cabeça do menino.

— Feliz aniversário, Will — acrescentou.

O ANDARILHO NA VELHA

ESTRADA 

— Dizem que vem mais neve por aí — a mulher

rechonchuda com a bolsa de crochê sugeriu ao motorista

do ônibus.

Ele, que era caribenho, aquiesceu com a cabeça e

Page 87: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

lançou um olhar para toda a vista ao redor.

— Tempo mais louco — exclamou. — Mais um

inverno desses, eu volto para Porto de Espanha.

— Anime-se, meu bem — falou a mulher

rechonchuda. — Você não verá mais neve como esta. Há

sessenta e seis anos, eu vivo no Vale do Tâmisa e nunca vi

desse tanto, não antes do Natal. Nunca.

— Mil novecentos e quarenta e sete — disse o

homem sentado ao lado dela, um homem magro com um

longo nariz pontudo. — Aquele sim foi um ano de neve. Dou

minha palavra que foi. Montes mais altos que a sua cabeça,

por toda a Trilha do Vale do Caçador e da Vereda do

Pântano até a Câmara dos Comuns. Não se pôde sequer

cruzar a Câmara por duas semanas. Precisaram recolher a

neve. Ah, aquele foi um ano de neve.

— Mas não antes do Natal — disse a mulher

rechonchuda.

— Não, foi em janeiro. — Aquiesceu o homem

pesarosamente. — Não antes do Natal, não...

Eles poderiam ter continuado assim por todo o

caminho até Maidenhead, e talvez o fizeram, mas Will

subitamente percebeu que seu ponto de ônibus estava se

aproximando, e logo desceria naquele indistinto mundo

branco lá fora. Ficou de pé em um salto, agarrando suas

caixas e sacolas. O motorista lhe apertou a campainha.

— Compras de Natal — observou.

— Ahã. Três... quatro... cinco... — Will espremeu os

pacotes contra o peito e segurou firme no corrimão do

Page 88: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ônibus que sacolejava pelo caminho. — Eu terminei as

compras agora — disse. —já era tempo.

— E eu queria ter terminado — disse o motorista. —

A véspera do Natal já é amanhã. Minha nossa, isso é um

problema para mim, eu preciso de um clima quente para

acordar.

O ônibus parou, e ele ajudou Will a se firmar

enquanto descia.

— Feliz Natal, rapaz — disse o condutor. Conheciam-

se das idas e vindas de Will da escola.

— Feliz Natal — disse Will. Em um impulso, gritou,

enquanto o ônibus partia: — Você terá um clima quente no

dia do Natal!

O motorista abriu um largo sorriso branco.

— Você vai arrumar isso? — gritou ele de volta.

Talvez eu possa, pensava Will enquanto andava

pela estrada principal em direção à Trilha do Vale do

Caçador. Talvez eu possa. A neve era profunda até mesmo

sobre as calçadas; poucas pessoas saíram de casa para

pisar sobre ela nos últimos dois dias. Para Will aqueles

foram dias de paz, apesar das recordações sobre o que

acontecera antes. Havia passado um aniversário bem

alegre, com uma festa de família tão agitada que ao cair na

cama adormeceu pensando pouquíssimo sobre as Trevas.

Depois disso, experimentou um dia de briga de bola de

neve e tobogãs improvisados com seus irmãos, nos campos

inclinados atrás da casa. Dias cinzentos, com mais neve

pairando sobre suas cabeças, mas inexplicavelmente sem

Page 89: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

cair. Dias de silêncio; dificilmente um carro descia por

aquele caminho, exceto a caminhonete do leiteiro e do

padeiro. E as gralhas estavam quietas, somente uma ou

duas voavam lentamente de um Lado para o outro sobre o

bosque.

Will achava que os animais já não tinham mais medo

dele. Na verdade, eles pareciam mais afeiçoados a ele do

que antes. Somente Raq, o mais velho dos collies, que

gostava de se sentar com o queixo descansando sobre os

joelhos do menino, afastava-se bruscamente de perto dele

algumas vezes sem nenhum motivo aparente, como se

impulsionado por um choque elétrico. Depois, o cão saía

inquieto rondando o lugar por alguns minutos, para então

voltar, olhar curiosamente para o rosto do menino, e

ajeitar-se confortavelmente como antes. Will não sabia o

que fazer sobre isto. Tinha consciência de que Merriman

saberia, mas Merriman estava fora de seu alcance.

O círculo cruzado em seu cinto permanecia quente

ao toque desde que havia chegado em casa há duas

manhãs. Deslizou a mão sob o casaco, naquele momento,

enquanto andava, para conferir, mas o círculo estava frio;

achava que isso acontecia simplesmente porque estava ao

ar livre, onde tudo estava frio. Passou a maior parte da

tarde comprando os presentes de Natal em Slough, a maior

das cidades próximas; tratava-se de um ritual anual, no dia

precedente à véspera de Natal, pois nesse dia era certo

que teria ganhado dinheiro como presente de aniversário

de vários tios e tias para gastar. Este, no entanto, foi o

Page 90: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

primeiro ano que ele fez compras sozinho. E estava

gostando disso; era possível considerar melhor as coisas

por si mesmo. O presente mais importante de todos para

Stephen — um livro sobre o Tâmisa — foi comprado há

bastante tempo e postado para Kingston, na Jamaica, onde

seu barco estava ancorado num lugar conhecido como a

Caribbean Station. Will achava que isso soava mais como

um trem e decidiu que deveria perguntar ao seu amigo

motorista do ônibus como Kingston era; ainda que o

condutor tivesse vindo de Trinidad, talvez pudesse

expressar sua sensação sobre as outras ilhas.

Sentiu novamente seus ânimos se abaterem um

pouco como ocorrera nos últimos dois dias, pois, neste ano,

pela primeira vez que podia se lembrar, não houve

presente de aniversário de Stephen. Mas ele se

desvencilhou daquela frustração pela centésima vez, com o

argumento de que os correios devem tê-lo extraviado, ou o

navio de repente zarpou em alguma missão urgente entre

as verdejantes ilhas. Stephen sempre se lembrava e deve

ter se lembrado desta vez, se algo não o impediu.

Possivelmente, ele não poderia ter esquecido.

À sua frente, o Sol já estava se pondo, visível pela

primeira vez desde a manhã de seu aniversário. Ardia,

enorme, como uma laranja de ouro, através das frestas nas

nuvens, e tudo ao redor, o mundo de neve prateada

cintilava com os pequenos raios dourados de luz. Depois

das acinzentadas ruas de neves derretidas da cidade, tudo

ficava bonito de novo. Will se arrastou ao longo do

Page 91: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

caminho, passando pelos muros do jardim, pelas árvores e

então pelo topo de uma pequena trilha sem pavimentação,

quase uma estrada, conhecida como o Beco do Vagabundo,

que se afastava da rua principal e finalmente se curvava

para se ligar à Trilha do Vale do Caçador, perto da casa

dos Stanton. As crianças a usavam como um atalho, em

algumas circunstâncias. Will a olhava naquele momento e

viu que ninguém usou aquele caminho desde que a neve

começara a cair; mais abaixo, a trilha permanecia intacta,

lisa, branca e convidativa, marcada apenas pela figura de

pegadas dos pássaros. Um território inexplorado. Will

achou isso irresistível.

Então, virou-se para o Beco do Vagabundo e seus

passos rangiam com prazer através da clara e suave

camada de neve, de modo que uma quantidade dela se

agarrava , como uma franja às calças enfiadas em suas

botas. Perdeu a visão do Sol em um determinado momento,

bloqueado por um bosque que se encontrava entre a

pequena trilha e algumas casas beirando o topo da Trilha

do Vale do Caçador.

Enquanto pisava duro sobre a neve, apertou seus

embrulhos no peito, contando-os novamente: a faca de

Robin;  couro de camurça para Paul, para limpar sua

flauta; o diário para Mary; os sais de banho para Gwennie;

as canetas pilot superespeciais Max. Todos os outros

presentes já haviam sido comprados e embalados. Natal é

uma festa complicada quando se tem oito irmãos.

Não demorou, o caminho pelo beco se tornou menos

Page 92: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

divertido do que esperava. Os tornozelos de Will doíam

devido à força empreendida para andar chutando a neve do

caminho. Os embrulhos eram inoportunos para carregar. O

brilho dourado-avermelhado do Sol já se extinguira em um

Céu nublado. Sentia fome e frio.

Àrvores surgiam altas à sua direita, principalmente

olmos e algumas faias. Do outro lado da trilha havia um

extenso terreno baldio, transformado pela neve de

bagunçada coleção de erva daninha e mato em uma

paisagem de brancas encostas íngremes e depressões

abrigadas do Sol. Tudo ao redor dele, depositado e

espalhado sobre a trilha coberta de neve, os gravetos e os

pequenos ramos, foi derrubado das árvores pelo peso da

neve. Logo adiante, Will viu um ramo caído pelo caminho e

olhou apreensivo para cima, perguntando-se quantos

outros galhos mortos dos grandes olmos estavam

aguardando pelo vento ou pelo peso da neve para

despencar no chão. Uma boa época para recolher madeira

para a lareira, pensava, e subitamente teve uma imagem

tentadora do fogo crepitante que ardia na lareira do

Grande Salão: o fogo que havia mudado seu mundo, ao se

extinguir pelas palavras de sua ordem e ao voltar

obedientemente a arder para a vida novamente.

Page 93: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Enquanto se arrastava ao longo da neve fria, uma

repentina e alegre idéia surgiu em sua mente sob o

pensamento daquele fogo e parou, sorrindo para si mesmo.

Você vai arrumar isto? Bem, não, amigo, eu provavelmente

não posso providenciar um dia quente de Natal, mas eu

posso aquecer as coisas por aqui, agora. Olhou confiante

para o galho seco diante dele e, com um simples comando

do dom que sabia possuir em si mesmo, disse de forma

suave e travessa: — Queime!

E lá sobre a neve, o galho caído da árvore envolveu-

se em chamas. Cada centímetro, da espessa base

apodrecida ao menor graveto, ardia sob uma língua de fogo

amarelada. Ouviu-se um som sibilante e um longo raio de

luz brilhante se ergueu do fogo como um pilar. Nenhuma

fumaça era emitida das partes queimadas e as chamas

eram constantes; alguns gravetos que deveriam ter

incendiado e crepitado rapidamente e então virado cinza

persistiam em queimar, como se alimentados por outro

combustível em seu interior. Ficando ali, sozinho, Will se

sentiu repentinamente pequeno e assustado; não se tratava

de um fogo comum, que poderia ser controlado por meios

comuns. Não agia de maneira nenhuma do mesmo modo

como o fogo da lareira. E o menino não sabia como agir em

relação a isso. Em pânico, concentrou-se sobre as chamas

novamente e ordenou que apagassem, mas a madeira

continuou queimando, constantemente como antes. Ele

sabia que havia agido de maneira tola, inapropriada, e

talvez perigosa. Olhando pelo pilar que tremulava luz, pôde

Page 94: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ver lã no alto, no céu cinzento, quatro gralhas batendo

suas asas lentamente em um círculo.

Ai, Merriman, pensava descontente, onde você está?

Então, soltou um grito sufocado, quando por trás alguém o

agarrava bloqueando o chute de seus pés em um

amontoado de neve, e trazendo seus braços pelos pulsos

para as costas. Os pacotes se espalharam pela neve.

Gritava sentindo dor em seus braços. A pressão sobre o

punho do menino relaxou, como se o agressor estivesse

relutante em causar- lhe realmente algum mal; mas Will

continuava ainda firmemente preso.

― Apague o fogo! — disse uma voz rouca em seus

ouvidos, urgentemente.

― Eu não consigo! — disse Will. — Sinceramente, eu

tentei, mas não consigo.

O homem praguejou e murmurou de forma estranha,

e instantaneamente Will soube quem ele era. O terror que

sentia se dissipou como se tivesse ficado livre de um peso.

― Andarilho — disse ele —, deixe-me em paz. Você

não deve me segurar desse jeito.

A pressão se intensificou novamente: — Ah, não, não

você, garoto. Eu conheço seus truques. Você é aquele, tudo

bem, eu sei agora, você é um Ancião, mas eu não confio na

sua espécie tanto quanto não confio nas Trevas. Você

acabou de despertar, sim, e não pode fazer nada a ninguém

a menos que possa vê-lo com seus olhos. Então, você não

me verá, disso eu sei.

Will replicou.

Page 95: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Eu não quero fazer nada a você. Realmente

existem pessoas dignas de confiança, você sabe.

— Pouquíssimas — disse o Andarilho amargamente.

— Eu poderia fechar meus olhos, se me soltasse.

— Ora! — reagiu o velho. Will então falou:

— Você carrega o segundo Signo. Entregue-o para

mim. — Ambos ficaram em silêncio. O menino sentia as

mãos do homem desvencilharem-se de seus braços, mas

permanecia no mesmo lugar e não se virou. — Eu já tenho

o primeiro Signo, Andarilho — continuou. — Você sabe que

eu tenho. Olhe, eu estou desabotoando a minha jaqueta e

vou afastá-la, e você poderá ver o primeiro círculo em meu

cinto.

Afastou a jaqueta e sem mover a cabeça tinha

consciência da forma corcunda do Andarilho passando para

o seu lado. O fôlego do homem sibilava por entre seus

dentes em um longo suspiro enquanto ele olhava, e logo

virou-se para Will sem cautela. Na luz amarelada do galho

continuamente em chamas, o menino viu o rosto contorcido

por emoções conflitantes: esperança, medo, alívio ligados

firmemente pela angustiante incerteza.

Quando o homem falou, sua linguagem era simplória

e deficiente como a de uma pequena e triste criança.

— É tão pesado — disse melancolicamente. — Eu o

tenho carregado por tanto tempo. E eu já nem me lembro

por quê. Sempre amedrontado, sempre tendo que fugir. Se

pelo menos eu pudesse me livrar disto, se pelo menos eu

pudesse descansar. Ah, se pelo menos acabasse. Mas não

Page 96: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ouso dar isto à pessoa errada, não ouso. As coisas que

aconteceriam comigo se eu fizesse isso seriam terríveis, e

não podem ser colocadas em palavras. Os Anciãos podem

ser cruéis, cruéis... Acho que você é a pessoa certa, garoto,

e tenho procurando por você há muito tempo... hã muito

tempo... para entregar o Signo. Mas como eu posso ter

certeza? Como eu posso ter certeza de que você não é um

truque das Trevas?

O homem viveu amedrontado por tanto tempo,

pensava Will, que havia se esquecido de como parar de

sentir medo. Que horror, ficar tão absolutamente sozinho.

Ele não sabe como confiar em mim; faz tanto tempo que

confiou em alguém, que se esqueceu como...

— Olhe — disse gentilmente. — Você deve saber que

eu não faço parte das Trevas. Pense. Você viu o Cavaleiro

tentando me abater.

Mas o velho balançava a cabeça lamentavelmente, e

Will se lembrou de como ele se alarmara gritando na

clareira no momento em que o Cavaleiro apareceu.

― Bem, se isso não ajuda — disse o menino. — O

fogo não diz nada pra você?

― O fogo, quase — respondeu o Andarilho. Olhou

para as chamas, esperançoso; em seguida, seu rosto se

contorceu alarmado. — Mas o fogo, o fogo os trará, garoto,

você sabe disso. As gralhas já estão dando a direção. E

como eu saberei se você acende o fogo porque é um Ancião

que acabou de despertar fazendo brincadeirinhas, ou

porque está fazendo um sinal para trazê-los até mim? —

Page 97: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Gemia para si mesmo em agonia, e apertou os braços em

volta de seu ombro. O homem era uma coisa deplorável,

pensava Will com compaixão. Mas, de alguma maneira, ele

precisava ser convencido.

Will olhou para cima. Havia mais gralhas circulando

preguiçosamente, e podia ouvi-las chamando asperamente

umas pelas outras. Teria o velho razão, seriam os pássaros

pretos mensageiros das Trevas? — Andarilho, por tudo o

que é mais sagrado — dizia impaciente —, você deve

confiar em mim. Se não confiar em alguém apenas uma vez

e por tempo suficiente para lhe entregar o Signo, terá que

carregá-lo para sempre. É o que deseja?

O velho mendigo gemeu e murmurou, olhando para o

menino com seus pequenos olhos ensandecidos; parecia

preso em séculos de desconfiança como uma mosca em

uma teia. Mas a mosca ainda tinha asas que podiam

romper a teia, dando-lhe forças para se agitar, apenas uma

vez... Levado por alguma parte desconhecida de sua

mente, sem saber bem o que estava fazendo, Will segurou

o círculo de ferro em seu cinto, endireitou-se o mais ereto

e alto possível, apontou o objeto para o Andarilho e o

chamou:

O último dos Anciãos chegou, Andarilho, e é chegada

a hora. O momento de entregar o Signo é agora, agora ou

nunca. Pense somente que nenhuma outra oportunidade

surgirá. Agora, Andarilho. A menos que você carregue isto

para sempre; obedeça aos Anciãos agora. Agora.

Foi como se aquelas palavras liberassem uma mola.

Page 98: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Em um instante, todo o medo e desconfiança no rosto velho

e contorcido relaxaram em uma obediência infantil. Com

um sorriso quase de uma ansiedade tola, o Andarilho se

atrapalhava com a alça larga de couro que portava na

diagonal de seu peito, retirando um círculo quartejado

idêntico àquele que Will carregava em seu cinto, mas

resplandecendo com o brilho opaco nos tons marrom-

dourado do bronze; colocou o objeto nas mãos de Will e

soltou uma gargalhada alta e curta de estupefata

satisfação.

O galho flamejante sobre a neve diante deles

incendiou-se de repente ainda mais brilhante e depois

apagou. Permaneceu caído assim como estava quando Will

chegou ao beco: cinza, sem qualquer indício de queima,

frio, como se nenhuma parte dele tivesse sido tocada por

uma centelha de chama. Apertando o círculo de bronze,

Will olhava para a rígida casca da madeira, deitada ali

sobre a neve intacta. Agora que seu fogo se extinguira, o

dia parecia subitamente muito mais escuro, cheio de

sombras, e ele percebeu com um choque o quão pouco da

tarde ainda restava. Já estava tarde. Deveria partir. Mas

uma voz ecoou nitidamente das sombras adiante: — Olá,

Will Stanton.

O Andarilho gritou aterrorizado, emitindo um som

agudo e feio. Will enfiou o círculo de bronze rapidamente

em seu bolso e adiantou-se, rígido. Depois, quase se sentou

aliviado sobre a neve quando viu que o recém-chegado era

apenas Maggie Barnes, a leiteira da fazendo dos Dawson.

Page 99: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Nada de sinistro sobre Maggie, a admiradora de Max, com

bochechas como maçã. Sua silhueta rechonchuda estava

toda escondida pelo casaco, botas e cachecol; ela

carregava uma cesta tampada e dirigia-se para a rua

principal. Ela sorriu para Will e depois olhou

acusadoramente para o Andarilho.

— Por que — disse ela, com seu sotaque de

Buckinghamshire — estaria este velho mendigo andando

por aí nestes últimos quinze dias? O dono da fazenda disse

que Queria vê-lo pelas costas, velho. Ele estava

importunando você, jovem Will? Aposto que estava. — Ela

observava o Andarilho, que se encolheu de repente em sua

capa suja, semelhante a um casaco.

― Ah, não — disse Will. — Eu só tinha acabado de

saltar do ônibus de Slough e topei com ele. Realmente

topei. E dei- XEI CAIR todas as minhas compras de Natal —

acrescentou asperamente, inclinando-se para recolher os

embrulhos e pacotes que ainda permaneciam espalhados

pela neve.

O Andarilho fungou, encolhendo-se ainda mais

dentro de sua capa, e tentou atravessar para o outro lado

de Maggie, em direção ao alto da trilha. Mas quando ficou

à mesma altura dela, parou abruptamente, fazendo um

movimento brusco para trás como se tivesse batido contra

uma barreira invisível. Ele abriu a boca, mas não emitiu

som nenhum. Will endireitou-se lentamente, observando,

com os braços cheios de embrulhos. Uma sensação terrível

de apreensão começou a surgir dentro dele, como a

Page 100: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

triagem de uma brisa gelada.

Maggie Barnes disse amavelmente: — Faz tempo que

o último ônibus de Slough passou, jovem Will. Na

realidade, estou indo pegar o próximo. Você sempre leva

meia hora para caminhar os cinco minutos de caminhada

do ponto do ônibus, Will Stanton?

― Não acho que seja assunto seu saber quanto

tempo eu levo para fazer alguma coisa — respondeu Will.

Observava o Andarilho paralisado, e algumas imagens

muito confusas rodopiavam em sua cabeça.

― Modos, modos — disse Maggie. — Para um

garotinho tão bem-educado como você, também. — Os

olhos dela brilhavam muito, fitando atentamente Will de

seu cachecol enrolado na cabeça.

— Bem, adeus, Maggie — disse Will. — Tenho que ir

pra casa. O chá já deve estar pronto.

— O problema com mendigos sujos e desagradáveis,

como este aqui com o qual você acabou de se encontrar,

mas que não o está incomodando — prosseguiu Maggie

Barnes com suavidade, sem se mover —, o problema com

eles é: eles roubam coisas. E este aí roubou uma coisa, dias

atrás, da fazenda, jovem Will, uma coisa que me pertencia.

Um ornamento. Um tipo grande de ornamento de cor

marrom-dourada com o formato de um círculo que eu

usava em uma corrente em volta do pescoço. Quero isso de

volta. Agora. — As últimas palavras soaram ameaçadoras e,

depois, a moça retomou a suavidade, como se sua voz

gentil nunca tivesse sofrido alteração. — Eu quero de volta,

Page 101: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

quero sim. E eu realmente acho que ele pode ter enfiado

isso no seu bolso quando não estava olhando, quando

esbarrou nele, caso ele tivesse me visto chegar, como

poderia ter feito muito bem sob a luz dessa pequena e

divertida fogueira aqui. O que você acha disso tudo, jovem

Will Stanton, hein?

Will engoliu seco. Seus cabelos se arrepiavam na

parte de trás do pescoço enquanto a ouvia. E ela

continuava ali, fitando com o mesmo olhar de sempre, com

as bochechas rosadas, como uma garota de fazenda sem

complicações que manuseava a máquina de ordenha dos

Dawson e criava os bezerros menores; e além do mais, a

mente de onde surgiam aquelas palavras podia ser nada

menos do que a mente das Trevas. Teriam eles roubado

Maggie? Ou Maggie sempre foi uma deles? Se fosse assim,

o que mais ela poderia fazer?

Ele permaneceu encarando a moça, uma mão

apertando seus embrulhos e a outra deslizando

cautelosamente por seu bolso. O Signo do Bronze estava

frio, frio ao toque. Ele convocou todo o poder que achava

que pudesse encontrar para afastá-la e, mesmo assim, ela

ainda continuava lá, sorrindo-lhe friamente. Will ordenava

que ela partisse era nome de todos os poderes que podia

lembrar sendo usados por Merriman: da Dama, do Círculo,

dos Signos. Mas sabia que não tinha as palavras certas

para dizer. E Maggie riu alto .avançando deliberadamente,

encarando-o; e Will percebeu que não conseguia mover um

músculo sequer.

Page 102: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Foi pego, paralisado assim como o Andarilho; fixo,

imóvel numa posição que não conseguia mudar nem

mesmo um centímetro. O menino olhava furiosamente para

Maggie Barnes, agasalhada pelo cachecol vermelho e

casaco preto modesto, enquanto a moça calmamente

deslizava a mão pelo bolso do casaco do menino e retirava

o Signo de Bronze. Depois, ela ficou de frente para o rosto

dele, e então rapidamente desabotoou-lhe o casaco e

ligeiramente arrancou o cinto de suas calças, para em

seguida alinhar o círculo de bronze próximo ao de ferro.

— Segure as calças, Will Stanton — disse ela

zombeteiramente. — Ah, meu Deus, agora você não pode,

ou pode... mas então você realmente não usa o cinto para

segurar as calças, usa? Você o coloca para guardar esta

pequena... decoração... a salvo. — Will percebeu que a

moça segurava os dois Signos tão levemente quanto

possível, e estremeceu quando ela precisou tocá-los com

mais firmeza; o frio que deles emanava deveria certamente

estar queimando até seus ossos.

Ele observava em total desespero. Não havia nada

que pudesse fazer. Todo o seu esforço e busca estavam

chegando ao fim antes mesmo de ter começado de maneira

apropriada, e não havia nada que pudesse fazer. Desejava

tanto gritar de raiva quanto chorar. E então, lá no fundo,

alguma coisa causou um alvoroço em sua mente. Algum

detalhe de sua memória que surgia, mas ainda não

conseguia assimilar o que era. Lembrou-se apenas no

momento em que Maggie Barnes estendeu o cinto diante

Page 103: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

dele com o primeiro e o segundo círculos alinhados, ferro

opaco e reluzente bronze lado a lado. Fitando avidamente

os dois objetos, Maggie irrompeu em um gorgolejo de

gargalhada desdenhosa que soava ainda mais malévolo

pela boca de sua face rosada. E Will se lembrou:

.... quando o círculo dele estiver em seu cinto,

ao lado do primeiro, eu voltarei...

Naquele momento, as labaredas do fogo ressurgiram

no galho do olmo caído, o qual Will havia rapidamente

acendido antes, e as chamas crepitavam de lugar nenhum

em um círculo de luz branca queimando por todos os lados

de Maggie Barnes — um círculo de luz mais alto que sua

cabeça. Ela se agachou subitamente na neve, encolhendo-

se, boquiaberta de medo. O cinto com os dois Signos

alinhados caiu de sua mão frouxa.

E lá estava Merriman. Alto em seu longo casaco

preto, com a face escondida nas sombras de seu capuz; lá

estava ele na margem da rua, um pouco distante do círculo

flamejante e da garota agachada.

— Leve-a desta estrada — disse ele com a voz nítida

e alta, e o círculo ardente de luz moveu-se lentamente para

um lado, forçando a garota Maggie a mover-se

cambaleando com ele, até que pairou sobre o solo firme

próximo à estrada. Em seguida, com um abrupto estalo,

desapareceu; e Will notou no lugar uma grande barreira de

luz reluzindo dos dois lados do caminho, margeando o

lugar com o fogo flamejante, estendendo-se em uma longa

distância em ambas as direções — mais longa do que a

Page 104: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

própria extensão da trilha que Will conhecia como Beco do

Vagabundo. Continuou olhando, um pouco assustado.

Longe da claridade, podia ver Maggie Barnes rastejando

deploravelmente na neve, com os braços protegendo seus

olhos da luz. Mas ele, Merriman e o Andarilho se

encontravam em um interminável túnel de chamas frias e

brancas.

Will se curvou para recolher o cinto e, num tipo de

retribuição pelo alívio, apertou os dois Signos em suas

mãos, ferro na mão esquerda, bronze na direita. Merriman

aproximou-se do seu lado, ergueu o braço direito de modo

que o casaco balançou como a asa de um pássaro enorme e

apontou um dedo longo para a moça. Gritou um nome

comprido e estranho, que Will nunca havia ouvido antes e

não pôde guardar em sua mente, e Maggie gemeu alto.

Merriman bradou, com desprezo cortante em sua

voz:

Volte e diga-lhes que os Signos estão fora de alcance.

E Be você permanecer ilesa, não tente novamente fazer a

sua vontade enquanto estiver em um de nossos Caminhos.

Pois as antigas estradas estão acordadas e seus poderes

ressurgiram novamente. Neste momento, elas não terão

misericórdia nem remorso. — Falou o estranho nome mais

uma vez, e as chamas margeando a estrada subiram ainda

mais alto, e a garota gritou alto e esganiçado como se

estivesse sentindo imensa dor. Então, ela partiu se

arrastando pelos campos cobertos de neve, como um

animal pequeno e encurvado.

Page 105: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Merriman olhou para Will. — Lembre-se de duas

coisas que salvaram você — disse-lhe, a luz cintilando

agora sobre seu nariz bicudo e olhos profundos sob o

capuz, protegidos da luz. — Primeiro, eu conhecia o nome

verdadeiro dela. A única maneira para desarmar uma das

criaturas das Trevas é chamando-a pelo seu nome

verdadeiro: nomes que elas mantêm em grande segredo. E,

assim como o nome, havia a estrada. Você sabe o nome

desta trilha?

— Beco do Vagabundo — respondeu Will

automaticamente.

— Este não é o verdadeiro nome — retrucou

Merriman com desagrado.

— Bem, não. Minha mãe nunca o usou, e nós não

devíamos usá-lo. É feio, disse ela. Mas nenhuma outra

pessoa que eu conheço já a chamou de outra coisa. Eu me

sentiria um idiota se a chamasse de Velha Estrada. — Will

parou de repente, ouvindo e provando o nome

apropriadamente pela primeira vez em sua vida. E retomou

lentamente: — Se eu a chamasse por seu nome verdadeiro,

Trilha da Velha Estrada...

— Você se sentiria um idiota — disse Merriman

desalentado. — Mas o nome que o fez se sentir um idiota

ajudou a salvar sua vida. Trilha da Velha Estrada. Sim. E

não foi nomeada Velha Estrada por algum distante senhor.

O nome simplesmente nos diz o que a estrada é, como os

nomes das ruas e lugares de terras antigas fazem com

muita freqüência, se os homens ao menos lhes dessem

Page 106: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

mais atenção. Foi sorte você se encontrar justamente em

uma das Estradas Velhas, pisadas pelos Anciãos por três

mil anos, quando você fazia suas brincadeirinhas com o

fogo, Will Stanton. Se você estivesse em qualquer outro

lugar, em seu estado despreparado quanto ao seu poder,

você teria se colocado numa situação tão vulnerável que as

Trevas presentes nestas terras teriam sido conduzidas até

você. Assim como a garota-feiticeira foi conduzida pelos

pássaros. Olhe atentamente para esta estrada agora,

garoto, e não a chame por nomes comuns novamente.

Will engoliu seco e fitou a estrada com suas margens

em chamas se estendendo em distância como algum nobre

caminho do Sol e, num impulso repentino, fez-lhe uma

pequena e desajeitada reverência, curvando-se desde a

cintura, da maneira como seus braços cheios de pacotes o

deixavam. As chamas aumentaram novamente, e se

inclinavam para dentro, quase como se o estivessem

reverenciando em resposta. Depois se apagaram.

— Muito bem — disse Merriman, com surpresa e um

toque de divertimento.

Will falou então: — Eu nunca, nunca novamente farei

qualquer coisa com o... o poder, a menos que haja uma

razão. Eu prometo. Pela Dama e o mundo antigo. Mas... —

ele NÃO conseguia resistir — Merriman, foi o fogo que

acendi que trouxe o Andarilho até mim, não foi? E o

Andarilho tinha o Sinal.

— O Andarilho estava esperando por você, garoto

estúpido — disse Merriman irritado. — Eu disse que ele o

Page 107: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

encontraria e você não se lembrou. Lembre-se agora.

Nesta nossa magia, cada palavra, por menor que seja, tem

um peso e um significado. Cada palavra que eu digo, ou

que Algum outro Ancião possa dizer. O Andarilho? Ele

estava aguardando pelo seu nascimento e pelo momento

em que ficasse sozinho com ele para lhe entregar o Signo,

e isto ocorreu por mais tempo do que possa imaginar. Você

agiu bem, eu diria, foi um problema convencê-lo a entregar

o Signo quando chegou a hora. Pobre alma. Ele traiu os

Anciãos certa vez, há muito tempo, e esta foi sua sentença.

— A voz dele suavizou um pouco. — Foi uma era difícil para

ele, carregar o segundo Signo. Ele tem mais uma parte em

nosso trabalho, antes que possa descansar, caso prefira

isso. Mas não é para agora.

Ambos viram a figura imóvel do Andarilho, que

continuava paralisado em seus movimentos do lado da

estrada, como Maggie Barnes o havia deixado.

— Esta é uma posição terrivelmente desconfortável

— disse Will.

— Ele não sente nada — disse Merriman. — Nem

mesmo um músculo ficará dolorido. Os Anciãos e o povo

das Trevas têm alguns pequenos poderes em comum, e um

deles é este de prender um homem fora do Tempo, pela

duração que for necessária. Ou no caso das Trevas pela

duração que eles acharem divertida.

Ele apontou um dedo para a silhueta sem forma e

imóvel e falou algumas suaves e rápidas palavras que Will

não ouviu, e o Andarilho relaxou de volta à vida como uma

Page 108: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

figura em um filme que teve uma pausa e recomeçou

novamente. Observando com os olhos esbugalhados, olhou

para Merriman, abriu a boca e emitiu um curioso e seco

som sem palavras.

— Vá — disse Merriman. O velho partiu encolhido,

apertando a roupa ao redor do corpo, atrapalhado em uma

quase corrida, subindo a passagem estreita. Observando-o

partir, Will piscou, depois fixou com mais atenção e

esfregou os olhos, pois o Andarilho parecia estar

desaparecendo, dissipando-se cada vez mais, de modo que

era possível ver as árvores através de seu corpo. Então, de

uma só vez, desapareceu, como uma estrela ocultada pelas

nuvens.

Merriman acrescentou: — Meu dever, não o dele. Ele

merece paz por enquanto, eu acho, em outro lugar. Este é

o poder das Estradas Velhas, Will. Você teria usado este

segredo para escapar da garota feiticeira, tão facilmente,

se soubesse como. Mas ainda vai aprender isso, e os nomes

corretos e muitas outras coisas logo, logo.

Will perguntou com curiosidade: — Qual é o seu

nome correto?

Os olhos negros brilharam-lhe para de dentro do

capuz.

— Merriman Lyon. Eu disse quando nos conhecemos.

— Mas eu acho que se este fosse seu nome

verdadeiro, como um Ancião, você não teria me contado —

replicou Will. — De forma alguma, não tão alto.

— Você já está aprendendo — disse Merriman com

Page 109: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

alegria. — Venha, está ficando escuro.

Partiram juntos descendo o caminho. Segurando

firmemente suas sacolas e caixas, Will andava apressado

ao lado da figura vestida com um manto, que insistia em

andar a passos largos. Conversaram pouco, mas a mão de

Merriman estava sempre atenta para pegá-lo caso

tropeçasse em algum buraco ou depressão. Enquanto

saíam, na curva afastada da trilha de maior largura da

Trilha do Vale do Caçador, Will avistou seu irmão Max

vindo rapidamente na direção deles.

— Olhe, é o Max!

— Sim — disse Merriman. Max chamou, acenando

alegremente, e então se aproximou.

— Eu já estava indo encontrá-lo do ponto de ônibus

— Nossa mãe já estava quase enlouquecendo porque seu

bebezinho estava atrasado.

— Ah, pelo amor de Deus — disse Will. — Por que

você está vindo por este caminho? — acenou Max na

direção do Beco do Vagabundo.

— Nós estávamos apenas... — começou Will, e

enquanto virava sua cabeça para incluir Merriman em seu

comentário, parou tão abruptamente que chegou a morder

a língua.

Merriman havia partido, sem deixar qualquer tipo de

vestígio na neve onde se encontrava alguns momentos

antes. E quando Will olhou o caminho que tinham

atravessado pela Trilha do Vale do Caçador e para o topo

da curva abaixo da trilha menor, conseguiu ver apenas

Page 110: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

uma trilha de pegadas — as suas próprias.

O menino pensou ter ouvido uma música cristalina e

distante, em algum lugar no ar, mas mesmo enquanto

erguia sua cabeça para escutar, também já não estava mais

lá.

Page 111: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

 

VÉSPERA DE NATAL 

Véspera de Natal. Era o dia em que as alegrias do

Natal realmente pegavam fogo na família Stanton. Pistas,

promessas e esperanças de coisas especiais, que surgiram

subitamente e iluminaram as semanas anteriores, agora de

repente floresciam em uma expectativa alegre e constante.

A casa estava cheia de maravilhosos cheiros de coisas

assadas que exalavam da cozinha, em um canto onde Gwen

poderia ser encontrada dando os toques finais ao glacê do

bolo de Natal. Sua mãe havia feito o bolo há três semanas e

o pudim de Natal, três meses antes disto. Imutáveis, as

músicas natalinas conhecidas permeavam a casa sempre

que alguém ligava o rádio. A televisão nunca era ligada; e

havia se tornado, naquela época, algo irrelevante. Para

Will, o dia conferia a si mesmo um enfoque natural desde

cedo. Logo depois do café-da-manhã — um assunto ainda

mais que o normal — seria dado andamento ao duplo ritual

da lenha Yule e da árvore de Natal.

O sr. Stanton estava terminando sua última torrada.

Will e James ficavam um de cada lado dele à mesa do café,

sem parar quietos. O pai pegou uma casquinha esquecida

em uma das mãos enquanto folheava as páginas de esporte

Page 112: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

do jornal. Will também era fervorosamente interessado na

sorte do Clube de Futebol Chelsea, mas não na manhã da

véspera do Natal.

— O senhor gostaria de mais torrada, papai? — disse

ele em voz alta.

— Hum — murmurou o sr. Stanton.

— Ah! — disse James. — Quer mais chá, papai?

O sr. Stanton olhou para cima, girou o rosto redondo

de olhar terno de um lado para o outro e sorriu. Colocou o

papel sob a mesa, terminou a xícara de chá e enfiou o

pedaço de torrada na boca.

— Vamos lá, então — disse ele indistintamente,

tomando cada filho por uma orelha. Eles uivaram

alegremente e correram para pegar as botas, jaquetas e

lenços.

Logo estavam descendo a estrada com o carrinho de

mão: Will, James, o sr. Stanton e o alto Max, mais alto que

seu pai, mais alto que qualquer outra pessoa, deixando

sobressair de um velho e vergonhoso boné seu longo

cabelo preto em uma franja um tanto engraçada. O que

Maggie Barnes pensaria disto, perguntou-se Will

alegremente, quando a moça surgisse, maliciosamente

como sempre, perto da cortina da cozinha para flagrar os

olhos de Max; e então, no mesmo instante, ele se lembrou

de Maggie Barnes e pensou com pressa, alarmado: O

fazendeiro Dawson é um dos Anciãos, ele deve ser avisado

sobre ela — e estava desesperado por não ter pensado

nisto antes.

Page 113: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Eles pararam no quintal dos Dawson; o Velho George

Smith veio saudá-los com seu enorme sorriso. A ida havia

sido mais fácil pela estrada naquela manhã, desde que a

retirada de parte da neve foi executada, mas, para todos os

lados, ela ainda permanecia constantemente imóvel em um

gelo cinzento, desprovida de vento.

— Arrumei uma árvore para abater! — informou

Velho George alegremente. — Reta como um mastro, igual

à do dono da fazenda. As duas são árvores Reais, eu

reconheço uma.

— Reais como de onde vêm — disse o sr. Dawson,

tirando seu casaco apertado enquanto saía. Ele quis dizer

exatamente isso, sabia Will: todo ano, um número de

árvores de Natal era vendido da plantação da Coroa ao

redor do Castelo de Windsor e várias delas eram

transportadas no caminhão da fazenda dos Dawson para o

vilarejo.

— Bom dia, Frank — disse o sr. Stanton.

— Dia, Roger — disse o fazendeiro Dawson, e sorriu

para os garotos. — Ei, rapazes! Dêem a volta com o

carrinho. — Seus olhos passaram impessoais sobre Will,

sem nada mais do que um lampejo de percepção, mas o

garoto deixou sua jaqueta aberta de propósito, de forma

que ficasse claro que naquele momento havia dois Signos

do círculo cruzado em seu cinto, não apenas um.

— Bom vê-los tão vivazes — disse o sr. Dawson para

todos, enquanto eles colocavam o carrinho atrás do celeiro;

sua mão descansou brevemente no ombro de Will com uma

Page 114: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

discreta pressão, dizendo-lhe que o fazendeiro Dawson

fazia uma boa idéia do que estava acontecendo nos últimos

dias. Ele pensou em Maggie Barnes e buscou

insistentemente palavras que pudessem mascarar o aviso.

— Onde está a sua namorada, Max?— disse-lhe,

cuidadosamente alto e claro.

— Namorada? — Max perguntou indignado. O rapaz

estava profundamente envolvido com uma estudante de

sua Escola de Arte de Londres que usava os cabelos loiros

em uma trança, e de quem chegava uma enorme

quantidade de cartas em envelopes azuis pelo correio

todos os dias, o que o deixava totalmente desinteressado

pelas garotas locais.

— Ora, ora, ora — disse Will, esforçando-se. — Você

sabe.

Felizmente, James era fã desse tipo de coisa e se

juntou a ele com entusiasmo.

— Maggie-maggie-maggie — cantava jocoso. — Oh,

Maggie. A doce ordenhadora e Maxie, o grande artista,

oooh-oooh... — Max socou o irmão na costela e caiu numa

risada fungando.

— A jovem Maggie precisou nos deixar — disse o sr.

Dawson friamente. — Doença na família. Precisavam dela

em casa. A moça fez as malas e partiu cedo pela manhã.

Desculpe desapontá-lo, Max.

— Não estou desapontado — o menino retrucou,

ficando vermelho. — Isso é coisa desse estúpido...

— Oooooh-oooooh — cantava James, dançando ao

Page 115: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

redor, fora do alcance dos braços cumpridos de Max. —

Oooh, pobre Maxie, perdeu sua Maggie.

Will não disse nada. Estava satisfeito com o que

ouvira.

O enorme pinheiro, com seus galhos amarrados para

baixo pelas faixas de corda branca de pêlos, foi

transportado para dentro do carrinho de mão, junto da

velha raiz torcida de uma faia que o fazendeiro Dawson

tinha cortado mais cedo naquele ano, partido ao meio e

separado para fazer lenha de Yule, para si mesmo e para os

Stanton. Tinha que ser a raiz de uma árvore, não um galho,

sabia Will, embora ninguém jamais tivesse explicado o

motivo. Em casa, naquela noite, eles depositariam a lenha

no fogo, na enorme lareira de tijolos da sala de estar, e ela

iria queimar lentamente até a madrugada, quando todos

iriam para a cama. Em algum lugar estocado, encontrava-

se um pedaço da lenha de Yule do ano anterior, guardado

para ser usado como cavaco para acender o fogo para seu

sucessor.

— Aqui — disse Velho George, aparecendo de

repente do lado de Will enquanto eles empurravam o

carrinho para fora da porteira. — Vocês precisam ter

alguns destes aqui.

— Ele acrescentou um enorme ramo de azevinho,

cheio de frutinhas.

— Muita gentileza sua, George — agradeceu o sr.

Stanton.

— Mas nós temos desta árvore de azevinho na frente

Page 116: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

da porta de casa. Se souber de alguém que não tenha...

— Não, não, pode levar. — O velho acenou

negativamente com o dedo. — Não tem nem metade de

tanta frutinha nesse seu arbusto. Este é o azevinho

especial. — Ele deitou o ramo cuidadosamente no carrinho,

depois partiu rapidamente um broto e o enfiou na última

casa de botão do casaco de Will. — E uma boa proteção

contra as Trevas — a velha voz disse baixinho nos ouvidos

do menino —, se pregada sobre a janela e sobre a porta. —

Então, o sorriso de gengivas rosadas dividiu seu rosto

moreno e enrugado em um grasnido de gargalhada antiga

e o Ancião voltava a ser o Velho George novamente,

acenando-lhes. — Feliz Natal!

— Feliz Natal, George!

Enquanto eles carregaram a árvore cerimonialmente

à frente da casa, os gêmeos a fixaram com tábuas cruzadas

e chave de fenda, fornecendo assim uma base de apoio. Na

outra extremidade do aposento, Mary e Bárbara estavam

sentadas sobre um monte de papéis coloridos, cortando-os

em faixas vermelhas, amarelas, azuis e verdes, para depois

colá-las em círculos interligados pelas correntes de papel.

— Vocês deveriam ter feito isso ontem — disse Will.

— Elas precisam de tempo para secar.

— Você deveria ter feito isto ontem — respondeu

Mary ressentida, jogando para trás seus cabelos longos. —

Isto deveria ser trabalho do mais novo.

— Eu cortei um monte de faixas dias atrás — disse

Will. — Nós as usamos há algumas horas.

Page 117: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Eu sim as cortei, todas iguais.

— Além disso — disse Bárbara tranqüilamente —, ele

estava fazendo compras de Natal ontem. Então é melhor

você se calar, Mary, ou ele pode decidir tomar seu

presente de volta.

Mary murmurou, mas cedeu, e Will não muito

entusiasmado colou algumas correntes de papel.

Entretanto, mantinha um olho sobre a porta de entrada e,

quando viu seu pai e James aparecerem com seus braços

cheios de velhas caixas de papelão, saiu furtivamente atrás

deles. Nada o impediria de decorar a árvore de Natal.

De dentro das caixas surgiam todos os enfeites

conhecidos que transformariam a vida da família em uma

festa por doze noites e dias: a figura de cabelos dourados

para o topo da árvore; as faixas de luzinhas coloridas.

Depois havia as três frágeis bolas de vidro de Natal,

cuidadosamente guardadas durante anos. Meias esferas

espiraladas como conchas marinhas vermelhas e verde-

douradas; elegantes lanças de vidro e teias de aranha

feitas de gotas e fios de vidro cintilante e todos eles seriam

gentilmente pendurados e ligados sobre os ramos escuros

da árvore, para reluzir no ambiente.

Havia outros tesouros. Pequenas estrelas douradas e

círculos de palha trançada, luzes e sinos de papel prateado

plissado. Em seguida, uma miscelânea de enfeites feitos

por diversas crianças Stanton, variando desde a rena do

limpador de cachimbo de Will até uma linda cruz

filigranada que Max havia fabricado de fio de cobre em seu

Page 118: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

primeiro ano na escola de artes. E havia as faixas natalinas

para serem pregadas em algum espaço livre, e só então a

caixa estaria vazia.

Mas não tão vazia assim. Passando seus dedos

cautelosamente pelo amontoado de papel de embalagem

esfarelado, Will encontrou em um recipiente de papelão

aproximadamente tão alto quanto ele uma caixa plana

pequena, não tão mais larga que sua mão. E que

chacoalhava.

— O que é isto? — disse ele curiosamente, tentando

abrir a tampa.

— Bons céus — disse a sra. Stanton de sua poltrona

situada no centro da sala. — Deixe-me ver isso um instante,

querido. Seria... sim, é sim! Estava na caixa grande? Eu

pensei que a tinha perdido há alguns anos. Olhe só pra

isso, Roger. Veja o que seu filho mais novo encontrou. É a

caixa de letras do Frank Dawson.

Ela pressionou o fecho sobre a tampa da caixa, de

modo que ela oscilou e Will pôde ver em seu interior uma

quantidade de pequenas peças talhadas e ornamentadas,

feitas com alguma madeira clara que o garoto não

conseguia identificar. A sra. Stanton segurou uma para

cima: um S curvado, com a cabeça lindamente detalhada e

o corpo escamoso de uma serpente, rodopiando em uma

linha quase imperceptível. Então outra: um M arqueado,

com picos semelhantes às agulhas gêmeas de uma catedral

surreal. Os entalhes eram tão delicados que seria

impossível ver onde elas se juntavam à linha que as

Page 119: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

prendia.

O sr. Stanton desceu as escadas e colocou

cuidadosamente um dedo dentro caixa. — Ora, ora — disse.

— Muito esperto, velho Will.

— Eu nunca vi isso antes — disse o menino.

— Bem, na realidade já viu sim — disse sua mãe. —

Mas hã tanto tempo que você não se lembraria. Elas

desapareceram anos e anos atrás. Engraçado estarem no

fundo daquela caixa durante todo esse tempo.

— O que são?

— Enfeites de árvore de Natal, é claro — concluiu

Mary, espiando sobre os ombros de sua mãe.

— O fazendeiro Dawson as fez para nós — explicava

a sra. Stanton.

— Elas foram impecavelmente talhadas, como pode

ver. E são exatamente tão antigas quanto esta família... em

nosso primeiro dia de Natal nesta casa, Frank fez um R

para. Roger — disse recolhendo a letra da caixa — e um A

para mim.

O sr. Stanton retirou duas letras que estavam

penduradas juntas na mesma linha. — Robin e Paul. Este

par chegou um pouco mais tarde do que o normal. Nós não

esperávamos que fossem gêmeos... Realmente, Frank foi

muito amável. Fico pensando se ele tem tempo para essas

coisas agora.

A sra. Stanton ainda girava as pequenos espirais de

madeira em seu queixo, com dedos fortes. — M para Max,

outro M para Mary... Frank ficou muito zangado conosco

Page 120: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

por termos repetido, eu me lembro... Ah, Roger, — ela

chamou com a voz subitamente mais branda. — Olhe esta

aqui.

Will ficou ao lado de seu pai. Era uma letra T, talhada

com uma pequena e belíssima árvore que se estendia em

dois galhos largos.

— T? — perguntou. — Mas ninguém aqui começa

com T.

— Era Tom — respondeu sua mãe. — Eu não sei

realmente por que eu nunca falei para vocês, os mais

novos, sobre Tom. Já faz tanto tempo... Tom foi seu

irmãozinho que faleceu. Ele tinha alguma coisa errada nos

pulmões, uma doença que alguns bebês novos adquirem, e

viveu somente por três anos. Frank já tinha a inicial

talhada para ele, pois foi nosso primeiro bebê e já tínhamos

os dois nomes escolhidos: Tom se fosse um menino e Tess

se fosse uma menina.

A voz dela soava levemente abafada, e Will de

repente se arrependeu de encontrar as letras. Bateu nos

ombros de sua mãe, constrangido. — Não faz mal, mamãe

— disse ele.

— Ah, meu menino gentil — disse a sra. Stanton

rapidamente. — Não estou triste, querido. Foi há muito

tempo. Tom já seria um homem agora, mais velho do que

Stephen. Além disso — ela lançou um olhar engraçado pela

sala, amontoada de gente e caixas —, nove filhos seriam

demais para qualquer mulher.

— Você pode dizer isso de novo — disse o sr.

Page 121: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Stanton.

— Isso resultou de ter ancestrais fazendeiros, mamãe

— disse Paul. — Eles acreditavam em famílias grandes.

Muita mão-de-obra grátis.

— Falando em mão-de-obra grátis — disse seu pai —,

por onde andam James e Max?

— Pegando as outras caixas.

— Bom Deus. Quanta iniciativa!

— Espírito de Natal — disse Robin da escada portátil.

— "Alegrai-vos, povos crentes", e tudo o mais. Por

que alguém não coloca uma música?

Bárbara, sentada ao lado de sua mãe, pegou a

pequena letra talhada T da mão dela e a colocou junto com

uma fileira que havia feito sobre o carpete de cada inicial

pela ordem. — Tom, Steve, Max, Gwen, Robin e Paul, eu,

Mary, James — disse ela. — Mas onde está o W de Will?

— A letra do Will estava junto com as demais. Dentro

da caixa.

— Não era um W na realidade, se você se lembrar —

disse o sr. Stanton. — Era um tipo de desenho. Ouso dizer

que Frank ficou cansado de fazer iniciais àquela altura. —

Disse sorrindo para Will.

— Mas não está aqui — continuou Bárbara. Ela

segurou a caixa de cabeça para baixo e balançou. Depois,

olhou para o irmão mais novo como o rosto sério. — Will —

disse — você não existe.

Mas Will estava sentindo um crescente desconforto

que parecia surgir de alguma parte muito profunda de sua

Page 122: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

mente.

— O senhor disse que era um desenho, não um W—

disse como quem não quer nada. — Que tipo de desenho,

pai?

— Uma mandala, se me recordo — respondeu o sr.

Stanton.

— Uma o quê?

Seu pai riu baixinho. — Não dê atenção a isso. Eu

estava apenas dando um exemplo. Eu não imagino Frank

chamando o desenho disso. Uma mandala é um tipo de

símbolo muito antigo que data da época da adoração do Sol

e esse tipo de coisa... qualquer desenho feito de um círculo

com linhas radiantes externas e internas. Seu pequeno

enfeite de Natal era um modelo básico... exibia um círculo

com uma estrela em seu interior, ou uma cruz. Acho que

era uma cruz.

— Eu não consigo imaginar por que não o

encontramos na caixa com o resto — disse a sra. Stanton.

Mas Will conseguia. Se havia poder em conhecer o

nome próprio das pessoas das Trevas, talvez as Trevas, por

sua vez, executassem a magia sobre os outros usando

algum Signo que era símbolo de um nome, como uma

inicial talhada... Talvez alguém tenha retirado o seu

símbolo para tentar obter poder sobre ele daquela

maneira. E talvez, na realidade, tenha sido este o motivo

que levou o fazendeiro Dawson a lhe talhar, não uma

inicial, mas um símbolo que ninguém das Trevas poderia

usar. De qualquer maneira, eles o roubaram, para tentar...

Page 123: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Um pouco depois, Will esgueirou-se da decoração da

árvore em direção ao andar superior, fixou um ramo sobre

a porta e cada janela de seu quarto. Então inseriu um

pedaço de ramo dentro do fecho recentemente consertado

da clarabóia também. Depois, fez o mesmo nas janelas do

quarto de James que seria compartilhado por ambos os

meninos na véspera de Natal, voltando em seguida para o

andar de baixo e fixando com cuidado um pequeno ramo

sobre as portas da frente e dos fundos da casa. E teria feito

o mesmo em todas as janelas, se Gwen não tivesse passado

pela sala e percebido o que ele estava fazendo.

— Oh, Will — disse ela. — Não em todo lugar.

Coloque isso pela cornija da lareira ou em algum outro

lugar, para que fique controlável. Quero dizer, de outra

forma, pisaremos nas frutinhas do azevinho toda vez que

alguém abrir ou mexer nas cortinas.

Um atitude tipicamente feminina, pensava Will

revoltado; mas ele não estava inclinado a chamar atenção

para o azevinho fazendo algum tipo de protesto. De

qualquer maneira, refletia enquanto colocava a planta

artisticamente sobre a cornija da lareira, até ali teria

proteção, a única entrada na casa de que ele havia se

esquecido. Tendo deixado seus dias de Papai Noel para

trás, ele não havia pensado nas chaminés.

A casa encontrava-se reluzente, com cores e a

animação. A véspera de Natal já estava quase consumada.

Mas por último, chegou a hora dos cânticos natalinos.

Depois do chá naquele dia, quando as luzes de Natal

Page 124: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

foram ligadas, e quando o último farfalhar de embrulhos de

presentes chegou ao fim, o sr. Stanton alongou-se em sua

poltrona surrada de couro, pegou seu cachimbo e sorriu

suntuosamente para todos.

— Bem — disse —, quem fará a jornada neste ano?

— Eu — disse James.

— Eu — falou Will.

— Bárbara e eu — respondeu Mary.

— Paul, é claro — acrescentou Will. O estojo da

flauta do irmão já estava separado na mesa da cozinha.

— Eu não sei se eu deveria — disse Robin.

— Sim, você deve sim — falou Paul. — Nada fica bom

sem um barítono.

— Ah, tudo bem então — disse o gêmeo com

relutância. Essa breve interação era repetida anualmente

há três anos. Por sua compleição larga e raciocínio lógico,

e sendo um excelente jogador, Robin sentia que não era

adequado se mostrar ansioso por qualquer atividade tão

feminina quanto as cantigas natalinas. Na realidade, ele se

dedicava genuinamente à música, como o restante da

família, e tinha uma voz grave bastante agradável.

— Ocupada demais — disse Gwen. — Desculpem-me.

— O que ela quer dizer — acrescentou Mary a certa

distância — é que precisa lavar seus cabelos caso Johnnie

Penn possa passar por aqui.

— O que quer dizer com possa? — disse Max da

poltrona do lado de seu pai.

Gwen olhou-o feio. — Bem — interpelou —, e o que

Page 125: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

acha de você ir cantar?

— Ainda mais ocupado do que você — respondeu

Max preguiçosamente. — Desculpe.

— E o que ele quer dizer é — disse Mary, agora

rondando a porta — que precisa se sentar em seu quarto e

escrever outra carta enorme para seu passarinho verde de

Southampton.

Max arrancou um de seus chinelos para atirar, mas

ela já tinha saído.

— Passarinho? — perguntou seu pai. — Qual seria a

próxima palavra?

— Nossa, pai! — James o interpelou com horror. — O

senhor realmente vive na Idade da Pedra. Garotas são

chamadas de passarinho verde desde o início dos tempos.

Quase tanto inteligência quanto passarinho também, se

quiser saber.

— Alguns pássaros de verdade são muito inteligentes

— disse Will de forma reflexiva. — Você não acha? — Mas o

episódio das gralhas foi tão efetivamente apagado da

mente de James que ele nem percebeu; as palavras não

surtiram efeito.

— Fora todos vocês — disse a sra. Stanton. — Botas,

casacos quentes, e voltem lã pelas oito e meia.

— Oito e meia? — disse Robin. — E se cantarmos três

canções natalinas para a srta. Bell, e se a srta. Greythorne

convidar a todos para um ponche?

— Bem, nove e meia e já bem atrasados — disse ela.

Page 126: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

* * * 

Estava muito escuro na hora em que saíram; o céu

não ficava claro, nem a Lua ou mesmo uma única estrela

brilhavam na noite. A lamparina que Robin carregava em

uma vara lançava um círculo de luz cintilante sobre a neve,

mas cada um carregava uma vela em um dos bolsos do

casaco. Quando chegassem ao Solar, a idosa srta.

Greythorne insistiria para que entrassem e ficassem em

seu enorme salão de entrada revestido de pedra, com todas

as luzes acesas. Daí cada um seguraria a vela enquanto

cantassem.

O ar estava gelado, e a respiração do grupo exalava

uma fumaça branca e densa. Aqui e ali caíam esparsos

flocos de neve do céu, e Will pensava nas predições da

mulher rechonchuda do ônibus. Bárbara e Mary

conversavam afastadas do grupo, tão confortavelmente

como se estivessem sentadas em casa, mas por trás da

conversa, os passos de todo o grupo soavam frios e rígidos

sobre o caminho de neve. Will sentia-se feliz, aconchegado

pelos pensamentos do Natal e o prazer dos cânticos

natalinos; prosseguia caminhando em um estado sonhador

bastante satisfeito, segurando a grande caixa de

arrecadação que levavam para ajudar a menor, a mais

antiga e famosa igreja Saxônia do Vale do Caçador, que

rapidamente se deteriorava. Bem adiante situava-se a

fazenda dos Dawson, com um enorme ramo de muitos

azevinhos frutíferos pendurados sobre as portas do fundo.

Page 127: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

E logo as canções natalinas começaram.

Saíram pela cidade cantando: "Nowell " para o

pároco; "God Rest Ye Merry, Gentlemen ", para o alegre sr.

Hutton, o enorme homem de negócios que vivia na nova

casa de estilo Tudor no final do vilarejo, e que sempre

olhava como se estivesse muito alegre mesmo; "Once in

Royal David's City", para o sr. Pettigrew, o viúvo da agente

do correio, que tingira os cabelos com folhas de chá e

mantinha um cãozinho coxo que parecia um novelo de lã

cinza. Eles ainda cantaram "Adeste Fideles " em latim, e

"Les Anges dans nos Campagnes " em francês para a

pequenina srta. Bell, a professora aposentada do vilarejo,

que havia ensinado todos eles a ler e escrever, adicionar e

subtrair, falar e pensar, antes que fossem para escolas de

outros lugares. A pequenina srta. Bell disse roucamente: —

Lindo, lindo — e colocou algumas moedas das quais eles

sabiam que ela não tinha condições financeiras para se

desfazer em favor da caixa de arrecadação, e ofereceu a

cada um deles um abraço e seus votos: — Feliz Natal! Feliz

Natal! — e assim eles partiram para a próxima casa da

lista.

Faltavam mais quatro ou cinco casas, uma delas era

o lar da taciturna sra. Homiman, que "trabalhava" para a

mãe deles uma vez por semana, e que nascera e fora criada

no leste de Londres até que uma bomba explodisse sua

casa hã trinta anos. Ela sempre dava para cada um seis

pêni de prata, e mais uma vez lhes deu, ignorando

calmamente a troca de moedas. — Não seria Natal sem os

Page 128: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

seis pêni — disse a sra. Homiman. — Eu separei um bom

estoque delas antes de aterrissarmos, com todos os

decimais. Assim as terei em todo Natal do jeito que eu

costumava fazer, meus queridos, e calculo que meu

estoque me abastecerá até que eu vá para a cova e vocês

estejam cantando para alguma outra pessoa nesta porta.

Feliz Natal! E então era a vez do Solar, a última parada

antes de casa.

Aqui vamos nós brindando, entre folhas tão

verdejantes Tão formosos, vamos nós errantes Eles sempre

começavam com a antiga Wassail para a srta. Greythorne,

e naquele ano, os trechos sobre as folhas verdes, para Will,

eram menos apropriadas do que o normal. E continuaram a

entoar o cântico mas, na última estrofe, Will e James

elevaram muito a voz num contraponto, que não

costumavam fazer para o término da música, pois desta vez

eles precisaram de muito fôlego:

Bom senhor e boa senhora,

Enquanto estão sentados no calor da chama 

Rogamos que pensem em nós,

pobres crianças que vagam pela lama...

Robin puxou o longo metal do sino, cujo tinido

profundo sempre causava em Will a sensação de um

alarme sombrio e, enquanto eles entoavam os últimos

versos, a enorme porta se abriu e lã se encontrava o

mordomo da srta. Greythorne, com o fraque que ele

sempre vestia nas vésperas de Natal. Não se tratava de um

exímio mordomo; o seu nome era Bates, um homem alto,

Page 129: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

magro e moroso que freqüentemente podia ser visto na

horta ajudando um jardineiro mais velho, perto do portão

dos fundos do Solar, ou discutindo sobre suas artrites com

a sra. Pettigrew no Correio.

Venha sobre vós o amor e alegria

E saúde também 

O mordomo sorriu e lhes acenou educadamente,

mantendo a porta aberta; então, Will engoliu a última nota

alta da canção, pois o mordomo não era Bates, era

Merriman.

Os cânticos natalinos chegaram ao fim e todos

relaxaram, caminhando com dificuldade pela neve.

— Encantador — disse Merriman com voz grave,

examinando-os de forma impessoal. E o tom imperioso da

srta. Greythorne surgiu atrás dele.

— Traga-os para dentro! Traga-os para dentro! Não

os deixe esperando na porta da casa!

Ela estava ali, na enorme entrada do salão, na

mesma cadeira de encosto alto que eles viam em todas as

vésperas de Natal. Estava impossibilitada de andar hã

anos, desde um acidente ocorrido quando era ainda bem

jovem — seu cavalo havia caído e rolado sobre ela, contava

o vilarejo — mas ela decididamente se recusava ser vista

em uma cadeira de rodas. Tinha o rosto magro e olhos

brilhantes e seus cabelos grisalhos estavam sempre

levantados no topo de sua cabeça como um tipo de nó: era

uma figura totalmente misteriosa no Vale do Caçador.

— Como está sua mãe? — perguntou a srta.

Page 130: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Greythorne para Paul. — E seu pai?

— Muito bem, obrigado, srta. Greythorne.

— Passando um bom Natal?

— Esplêndido, obrigado. Espero que a senhorita

também. — Paul, que sentia pena da srta. Greythorne,

sempre se metia em encrenca por ser entusiasticamente

cordial; ele tentava assegurar que seus olhos não

passeariam pelo alto salão enquanto falava. Pois embora a

governanta-cozinheira e a criada estivessem sorrindo no

fundo do aposento e, é claro, houvesse o mordomo que

abrira a porta, de outra maneira não havia quaisquer

indícios de outros visitantes, árvores, enfeites ou outro

sinal das festas de Natal naquela casa, exceto por um ramo

gigantesco de azevinho fixado sobre a cornija da lareira.

— Uma época estranha — disse a srta. Greythorne,

olhando para Paul pensativamente. — Tão cheia de uma

quantidade enorme de coisas, como aquela odiosa

garotinha disse no poema. — Ela se virou repentinamente

para Will. — E você anda muito ocupado neste ano, hein,

jovem rapaz?

— Certamente — disse Will com franqueza, pego de

surpresa.

— Luz para suas velas — disse Merriman em tom

baixo e respeitoso, aproximando uma caixa com enormes

palitos de fósforo. Apressadamente, todos eles puxaram as

velas de seus bolsos. O mordomo acendeu um fósforo e

moveu-se cuidadosamente entre o grupo. A luz tornava

suas sobrancelhas em uma cerca viva e fantástica de pêlos,

Page 131: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

e as linhas do nariz até a boca em ravinas profundas e

sombrias. Will olhou pensativamente para o fraque dele,

cortado na altura do quadril, e com um tipo de babado no

pescoço em vez de uma gravata branca. Sentia certa

dificuldade em pensar em Merriman como um mordomo.

Alguém no fundo do salão apagou as luzes, deixando

o enorme aposento iluminado apenas pelas chamas

bruxuleantes na mão de cada membro do grupo. Ouviu-se

uma leve batida de pé; depois começaram a entoar a doce

cantiga de Natal Lullay lullay, thou little tiny child... —

terminando com a última estrofe sem as vozes, apenas com

o instrumento tocado por Paul. O som claro e áspero da

flauta envolveu o ar como barras de luz e encheu Will com

um estranho saudosismo, a sensação de alguma coisa

esperando, algo que não conseguia compreender. Depois,

para variar, eles cantaram God Rest Ye Merry, Gentlemen;

em seguida, The Holly and the Ivy. E então voltaram a

entoar Good King Wenceslas, que sempre foi um grand

finale para a srta. Greythorne e sempre fazia Will sentir

pena de Paul, pois certa vez o rapaz comentou que esse

hino não se adequava ao tipo de música dele e que

provavelmente deveria ter sido composto por alguém que

odiava flauta.

Mas era divertido ser o pajem, tentando combinar

com exatidão a sua voz com a de James, de modo que

quando cantassem juntos soasse uma só voz.

Senhor, a léguas daqui, ele faz sua morada ...

e Will pensava: estamos realmente cantando bem

Page 132: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

desta vez, eu juraria que James não estaria cantando se...

no sopé da montanha ...

se sua boca não estivesse de fato se mexendo...

Bem diante da floresta isolada

... e olhou para a penumbra enquanto cantava, e viu,

com um espanto tão brutal quanto se alguém o tivesse

golpeado no estômago, que de fato a boca de James não

estava se mexendo, nem qualquer outra parte de James,

nem Robin ou Mary ou qualquer um dos Stanton. Eles

estavam imóveis, todos presos no Tempo como havia ficado

o Andarilho na Velha Estrada quando a garota das Trevas

lançou o encantamento sobre ele. E as chamas de suas

velas não bruxuleavam mais, mas cada uma queimava na

mesma coluna de ar, estranha e inconsumível, branca e

luminosa que se erguera do galho que Will havia queimado

no outro dia. Os dedos de Paul não mais se moviam pela

flauta; também estava imóvel, segurando o instrumento em

sua boca. Porém, a melodia, muito semelhante, ainda mais

suave do que a tocada pela flauta, prosseguia ecoando,

assim como Will continuava cantando contra a sua

vontade, terminando a estrofe...

... perto da fonte de Santa Agnes ...

E bem quando ele começava a se perguntar, ao longo

da melodia doce e singular que lhe acompanhava e que

parecia surgir do ar, bem como a próxima estrofe foi

cantada — exceto se esperassem que um garoto tenor

cantasse como o bom rei Wenceslau, em sua partitura —

uma voz linda e grave envolveu o aposento com as palavras

Page 133: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

conhecidas; uma voz ampla e profunda que Will nunca

havia ouvido numa canção, mas já a reconhecia.

... Traze carne e traze o vinho;

a lenha do pinheiro, traze pra cá;

Tu e eu o veremos cear

Quando os trouxermos de lá 

A cabeça do menino rodava um pouco, o aposento

parecia crescer e se encolher de novo, mas a música

continuava e os pilares de luz permaneciam sobre as

chamas das velas, e, quando a próxima estrofe começou,

Merriman aproximou-se naturalmente, tomou sua mão e

eles andaram adiante cantando juntos:

Partiram rei e pajem partiram juntos no indômito

vento de audazes lamentos no tempo que mordaz

vem Ambos desceram a enorme entrada do salão, para

longe da presença dos Stanton ainda imóveis, da srta.

Greythorne em sua cadeira, da governanta-cozinheira e da

criada, vivos, mas suspensos da vida. Will sentia como se

caminhasse no ar, sem tocar o chão, pelo salão escuro; não

havia luz adiante deles agora, mas somente o brilho que

reluzia atrás. E entraram na escuridão...

Senhor, a noite agora mais escura está 

E o vento forte aumenta mais;

Não sei como, meu coração desfalecendo está, 

Já não posso mais....

Will ouviu sua voz tremer, pois as palavras eram as

palavras certas para o que havia em sua mente.

Marque meus passos, meu bom pajem;

Page 134: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Ande tu sobre eles corajoso como convém...

Merriman cantava, e de repente mais coisas se

encontravam diante de Will do que somente a escuridão.

Adiante dele erguiam-se os grandes portais, as

enormes portas talhadas que ele havia visto na encosta

coberta de neve de Chiltern, e Merriman ergueu seu braço

esquerdo e apontou para eles os cinco dedos abertos e

retos. Lentamente as portas se abriram e a elusiva música

cristalina dos Anciãos surgiu rapidamente em ondas para

se juntar ao acompanhamento da cantiga de Natal, e logo

desapareceu novamente. Will prosseguiu juntamente com

Merriman rumo à luz, em uma época diferente e em um

Natal diferente, cantando como se pudesse derramar toda

a música no mundo mediante aquelas notas — e cantava

tão confiante que o maestro do coro da escola, que era

muito exigente quanto às cabeças erguidas e maxilares

bem movidos, ficaria mudo de estupefato orgulho.

Page 135: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

O LIVRO DA MAGIA 

Eles se encontravam em um aposento claro agora,

um aposento diferente de tudo o que Will já havia visto. O

teto era alto, pintado com imagens de árvores, bosques e

montanhas; as paredes continham painéis feitos de

madeira dourada reluzente, iluminados aqui e ali por

estranhos globos brancos cintilantes. E o ambiente estava

repleto de música, a mesma canção natalina que haviam

iniciado era agora entoada por muitas vozes, em uma

junção de pessoas vestidas como se tivessem sido extraídas

da cena fantástica de um livro de história. As mulheres,

com os ombros despidos, usavam vestidos longos com saias

elaboradamente rodadas e esvoaçantes; os homens vestiam

fraques não como o de Merriman, de casaca cortada na

forma retangular, longas calças retas, babados brancos ou

gravatas de seda preta. De fato, agora que Will se

aproximava novamente para olhar Merriman, percebia que

as roupas que ele usava nunca haviam sido na realidade as

de um mordomo, mas pertenciam completamente a outro

século, seja lá qual fosse.

Uma senhora em um vestido branco avançava em sua

direção para cumprimentá-lo; enquanto ela se movia, as

pessoas ao redor se afastavam respeitosamente para dar-

lhe passagem e, quando a canção natalina chegou ao fim,

ela exclamou: — Lindíssimo! Lindíssimo! Aproxime-se,

aproxime-se! — Seu timbre era exatamente o mesmo da

voz da srta. Greythorne ao serem recebidos na porta do

Page 136: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Solar um pouco mais cedo e, quando Will olhou para sua

face, viu que de certa maneira era a srta. Greythorne

também. Eram os mesmos olhos e rosto magro, as mesmas

maneiras imperiosas, porém amigáveis, só que a srta.

Greythorne era muito mais jovem e bonita, como uma flor

que se abriu, mas que não havia ainda sido maltratada pelo

Sol, ventania e dias.

— Venha, Will — disse ela, sorrindo e tomando-lhe as

mãos. O menino a seguiu tranqüilamente; estava muito

claro que aquela senhora o conhecia e todos ao redor,

homens e mulheres, jovens e velhos, sorridentes e

descontraídos, também. A maior parte da multidão

iluminada estava deixando o aposento naquele momento e

partindo na direção de um cheiro delicioso de comida que

claramente significava a ceia oferecida em algum outro

lugar da casa. Mas um grupo de poucos permaneceu no

local.

— Estávamos esperando por você — disse a srta.

Greythorne e o conduziu até os fundos do salão onde o fogo

crepitava quente e convidativo, numa decorada lareira. Ela

olhava para Merriman também, incluindo-lhe em suas

palavras. — Estamos todos prontos, não existem quaisquer

obstáculos.

— Estão certos disto? — A voz de Merriman soou

rápida e grave como uma batida de martelo, e Will olhou-o

com curiosidade. Mas o rosto de nariz de falcão estava tão

misterioso como sempre.

— Definitivamente certos — disse a senhora. E

Page 137: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

depois, de repente, ajoelhou-se ao lado de Will; o seu

vestido ondulava ao seu redor como uma grande rosa

branca; ela ficou na mesma altura dos olhos dele agora e

segurou-lhe ambas as mãos, observando e falando suave e

insistentemente. — Trata-se do terceiro Signo, Will. O

Signo da Madeira. Algumas vezes, nós o chamamos de o

Signo do Aprendizado. Chegou a hora de refazer este

Signo. Will, em todos os séculos, desde o princípio, a cada

cem anos, o Signo da Madeira deve ser renovado, pois este

é o único dentre os seis que não pode manter sua natureza

imutável. A cada cem anos nós temos que o refazer, do

mesmo modo como fomos ensinados. E agora esta será a

última vez, pois quando o seu século voltar, você o levará

para todo o sempre, para a junção, e por isso não haverá

mais necessidade de renovação.

Ela se ergueu, dizendo claramente.

— Estamos felizes em vê-lo Will Stanton, o

Descobridor dos Signos. Muito, muito felizes. — Então,

ouviram um rumor de vozes, baixo e alto, suave e

profundo, todas em consentimento e aprovação; era como

um muro, pensava Will, do qual é possível aprender e

receber apoio. De maneira muito intensa, ele pôde sentir a

força da amizade que emanava desse pequeno grupo de

pessoas vestidas de modo diferente e elegante e,

perguntava-se se todos eles eram Anciãos. Olhando para

Merriman ao seu lado, sorriu com alegria, e Merriman

retribuiu o sorriso com um olhar relaxadamente mais

prazeroso que Will já havia visto naquele rosto severo e

Page 138: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

principalmente lúgubre.

— Já está quase na hora — disse a srta. Greythorne.

— Um pequeno refresco para os recém-chegados

primeiro, talvez — disse um homem ao lado deles: um

homem pequeno, quase da mesma altura de Will. Ele

estendeu uma taça. Will a pegou olhando para cima e

percebeu que fitava um rosto magro e vivaz, quase

triangular, bastante enrugado, mas não velho, com olhos

brilhantes como estrelas que o fitavam atentamente e de

alguma maneira dentro dele. Era um rosto perturbador,

com muitas coisas a ocultar. Mas o homem moveu-se para

longe dele, para oferecer uma taça a Merriman, deixando o

menino apenas com a visão das costas vestidas com

impecável veludo verde.

— Meu senhor — disse ele com reverência enquanto

erguia a bebida, curvando-se. Merriman o olhou com uma

curva divertida nos lábios, sem dizer nada, mas continuava

olhando zombeteiramente e esperando. Antes que Will

tivesse a chance de começar a refletir sobre o

cumprimento, o homenzinho piscou e parecia ter

subitamente recuperado o bom humor, como alguém

sonhando que desperta abruptamente. Rompeu numa

gargalhada.

— Ah, não — disse gaguejando. — Pare. Eu tenho

mantido este hábito há anos, afinal. — Merriman riu com

afeição, depois ergueu a taça para ele e bebeu; já que não

conseguia decifrar aquela estranha troca, Will bebeu

também e ficou estupefato com a bebida irreconhecível

Page 139: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

que, além de saborosa, era como um esplendor de luz, a

explosão da música, alguma coisa forte e maravilhosa que

envolvia todos os seus sentidos ao mesmo tempo.

— O que é isto?

O homenzinho virou-se e riu; seu rosto erguia todas

as rugas de expressão. — Metheglin costuma ser o nome

mais parecido — disse recolhendo a taça vazia. Soprou

dentro dela e falou inesperadamente: — Os olhos de um

Ancião podem ver — estendendo a taça. Olhando dentro da

base, Will de repente sentiu que podia ver um grupo de

pessoas em vestes marrons fazendo aquilo que acabara de

beber. Mirou o homem no casaco verde que o fitava de

perto, com uma expressão perturbadora que era quase

uma mistura de inveja e satisfação. Depois, o homem riu e

levou a taça rapidamente; a srta. Greythorne chamava por

ele para que se aproximasse dela; os globos brancos para

iluminação do aposento emitiam uma luz mais fraca e as

vozes se acalmaram. Will pensava que ainda podia ouvir

música de algum lugar na casa, mas não tinha certeza.

A srta. Greythorne permaneceu perto do fogo. Por

um momento, ela baixou a cabeça, observou Will e depois

Merriman. Em seguida, virou-se para as paredes. Ficou

observando atentamente por um longo tempo. Os painéis, a

lareira e o console eram uma peça única, toda talhada da

mesma madeira dourada: muito plana, sem qualquer curva

ou arabescos, apenas algumas rosas simples de quatro

pétalas dispostas aqui e ali. Colocou a mão em uma dessas

pequenas rosas talhadas no topo do canto esquerdo da

Page 140: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

lareira, pressionando seu centro. Ouviu-se um estalido, e

embaixo da rosa, no nível de seu quadril, apareceu uma

abertura escura e quadrada no painel. Will não viu nenhum

painel se movendo; a abertura simplesmente apareceu ali

de maneira repentina. Então a srta. Greythorne pegou um

objeto no formato de um pequeno círculo. Era a mesma

imagem dos que ele já tinha em seu cinto, e logo percebeu

que sua mão, como antes, havia se movido de livre e

espontânea vontade e os segurava protetoramente. O

aposento ficou em total silêncio. Do lado de fora das

portas, Will podia certamente ouvir uma música agora, mas

não conseguia identificar a natureza daquele som.

O círculo do Signo era muito fino e escuro, e um dos

braços cruzados em seu interior se quebrou enquanto

observava. A srta. Greythorne o estendeu para Merriman, e

mais um pouco caiu como poeira. Will podia ver agora que

era de madeira, endurecida e extenuada, mas

apresentando ainda alguns veios.

— Tem apenas cem anos? — perguntou ele.

— Em cada cem anos, a renovação — disse ela.

— Sim — Will rebateu impulsivamente, no aposento

em silêncio. — Mas madeira dura muito mais do que isso.

Eu vi no Museu de Londres. Partes de velhas embarcações

que eles retiraram do Tâmisa. Pré-históricos. Com milhares

de anos.

— Quercus Britannicus — disse Merriman, severa e

abruptamente, parecendo um professor zangado. —

Carvalho. As canoas às quais se refere foram feitas de

Page 141: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

carvalho. E mais ao sul, as pilhas de carvalho sobre as

quais a atual Catedral de Winchester foi fundada foram

cortadas há novecentos anos e continuam tão firmes hoje

como eram naquela época. É verdade, carvalhos duram

muito tempo, Will Stanton, e chegará o dia em que a raiz

de um carvalho desempenhará um importante papel em

sua jovem vida. Mas o carvalho não é uma madeira

apropriada para o Signo. Nossa madeira é uma de que as

Trevas não gostam. Sorveira-brava, Will; essa é a nossa

árvore. O freixo da montanha. A sorveira tem certas

qualidades que não são encontradas em nenhuma outra

madeira, e de que precisamos. Mas também há pressões

sobre o Signo que a sorveira não poderia suportar como

um carvalho, ou o ferro, ou o bronze. Por isso, o Signo deve

renascer — ele o estendeu, entre um dedo longo e um

polegar profundamente curvado e escuro — a cada cem

anos.

Will aquiesceu sem dizer nada, percebendo que

estava muito consciente da presença das pessoas no

aposento. Era como se todos eles se concentrassem com

afinco em um único propósito, tornando sua concentração

até mesmo audível. Parecia que haviam se multiplicado,

num número sem fim, uma vasta multidão que se estendia

além da casa e além daquele século ou qualquer outro.

Ele não compreendeu completamente o que

aconteceu logo em seguida. Merriman puxou a mão

subitamente, quebrou o Signo de Madeira facilmente em

duas partes e o jogou no fogo, onde uma enorme e única

Page 142: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

lenha como a lenha Yule de sua casa encontrava-se

queimando pela metade. As chamas se ergueram. Então, a

srta. Greythorne se aproximou do homenzinho no casaco

de veludo verde, recebeu dele a botija de prata da qual

versava as bebidas e jogou o conteúdo da botija sobre o

fogo. Ouviu-se um grande assovio juntamente com a

fumaça e o fogo se apagou. Ela se inclinou em seu longo

vestido branco e colocou o braço na fumaça e nas cinzas

queimando sem chamas, recolhendo um pedaço queimado

da grande lenha. Parecia com um disco irregular.

Segurando o pedaço da madeira no alto, de modo

que todos pudessem ver, ela começou a retirar as partes

embranquecidas da peça como se estivesse descascando

uma laranja; seus dedos se moviam rapidamente, e as

bordas queimadas caíam enquanto a parte reduzida da

madeira era mantida: um círculo nítido e liso, contendo

uma cruz. Não havia qualquer irregularidade, como se

nunca tivesse t ido outra forma além daquela. E em

seguida, as alvas mãos da srta. Greythorne não

apresentavam um traço sequer de fuligem ou cinza.

— Will Stanton — ela disse, virando-se —, aqui está o

terceiro Signo. Eu não devo entregá-lo para você neste

século. Sua busca deve ser realizada em seu próprio

século. Mas a madeira é o Signo de Aprendizado, e quando

tiver completado todo o seu aprendizado em especial, você

o encontrará. Eu posso deixar em sua mente os

movimentos que serão necessários para descobri-lo. —

Fixou-o firmemente e depois se ergueu e deslizou o

Page 143: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

estranho círculo de madeira dentro da abertura escura no

painel. Com a outra mão, pressionou a rosa talhada no alto

da parede, e com a mesma rapidez, para não ser vista,

assim como antes, repentinamente, a abertura já não

estava mais lã. A parede de painéis de madeira encontrava-

se lisa e absoluta como se não tivesse passado por

qualquer mudança.

Will observou. Lembre-se de como foi feito, lembre-

se... Ela havia pressionado a sua mão na primeira rosa

talhada no topo do canto esquerdo. Mas agora havia três

rosas em um grupo naquele canto; qual delas seria?

Enquanto ele prestava mais atenção, viu com temeroso

espanto que agora toda a parede de painéis estava coberta

com quadrados de madeira talhada, cada um contendo

uma única rosa de quatro pétalas. Teriam se multiplicado

naquele momento, sob seus olhos? Ou estariam ali desde

sempre, invisíveis por causa da ilusão da luz? Balançou a

cabeça alarmado e olhou ao redor para Merriman. Mas já

era tarde. Ninguém estava próximo dele. A solenidade já

havia desaparecido no ar; as luzes estavam mais claras

novamente e todos conversavam animadamente. Merriman

murmurava alguma coisa para a srta. Greythorne,

curvando-se muito para falar ao seu ouvido. Will sentiu um

toque em seu braço e virou-se.

Era o homenzinho no casaco verde, acenando para

ele. Perto das portas na outra extremidade do aposento, o

grupo de músicos que havia acompanhado a canção

natalina começou a tocar novamente: o som suave de flauta

Page 144: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

doce e violinos e outro instrumento que parecia uma harpa.

Era outro cântico que tocavam naquele momento, e antigo,

muito mais antigo do que o próprio século daquele

aposento. Will queria ouvir, mas o homem do casaco verde

segurava seu braço e o conduzia insistentemente em

direção à porta lateral.

Will permaneceu firme, rebelde, e virou-se para

Merriman. A silhueta alta se levantou abruptamente, girou

ao redor procurando por ele. Mas, quando viu o que estava

acontecendo, Merriman relaxou, erguendo apenas uma das

mãos em consentimento. Will sentiu uma reafirmação

sendo colocada em sua mente: pode ir, está tudo bem. Eu

estarei junto.

O homenzinho pegou uma lamparina, olhou com

naturalidade sobre ele, depois rapidamente abriu a porta

lateral o suficiente para que ele e Will passassem. — Você

não confia em mim, não é? — perguntou com sua voz

aguda e descontrolada. — Bom, não confie em ninguém a

menos que seja necessário, garoto. Assim, você realizará

tudo o que está aqui para fazer.

— Parece que conheço as pessoas agora, em sua

maioria — disse Will. — Quero dizer, de alguma maneira,

identifico aqueles em quem posso confiar. Geralmente.

Mas você... — interrompeu sua fala.

— Sim? — disse o homenzinho.

Will continuou: — Você não se encaixa.

O homenzinho gritou dando uma gargalhada, seus

olhos desapareciam nas rugas de seu rosto; então ele

Page 145: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

parou abruptamente e ergueu a lamparina. No círculo da

luz bruxuleante, Will percebeu que o lugar parecia um

pequeno aposento desprovido de móveis, exceto por uma

poltrona, uma mesa, uma pequena escada móvel e uma

estante alta com a frente de vidro no centro voltada para

cada parede. Ouviu o som de um tique e viu, escondido nas

sombras, um enorme relógio de pêndulo situado em um

canto. Se o cômodo estivesse dedicado apenas à leitura,

como parecia, então mantinha um controlador do tempo

que avisava em alto som quando se lia por tempo demais.

Will recebeu a lamparina das mãos do homenzinho.

— Eu acho que deve haver outra por aqui... ah. — Logo

começou um som sibilante indefinível que Will havia

percebido uma ou duas vezes no aposento ao lado; em

seguida, ouviu-se o estalo de um palito de fósforo, outro

som alto "pop!" e uma luz surgiu na parede, queimando a

princípio com uma chama avermelhada e depois

expandindo-se em um círculo branco cintilante bem maior.

— Mantos — disse ele. — Algo ainda muito recente

em casas particulares e muitíssimo chique. A srta.

Greythorne está notavelmente chique pra este século.

Will não estava ouvindo. — Quem é você?

— Meu nome é Hawkin — respondeu o homem

animadamente. — Nada mais, apenas Hawkin.

— Bem, olhe aqui Hawkin — começou Will. Ele

estava tentando entender algo e isso o deixava bastante

ansioso. — Você parece saber o que está acontecendo.

Diga-me uma coisa, eu estou aqui no passado, num século

Page 146: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

que já aconteceu, que faz parte dos livros de história. Mas

o que aconteceria se eu fizesse algo para alterá-lo? Eu

poderia, eu conseguiria? Qualquer coisinha... que tornasse

alguma coisa diferente na história, como se realmente eu

estivesse lá?

— Mas você esteve — disse Hawkin e depois tocou no

cordão torcido para aumentar a chama na lamparina que

Will segurava.

Will perguntou impotente: — O quê?

— Você esteve-está neste século quando ocorreu. Se

alguém tivesse escrito uma história relatando a realização

da festa de hoje à noite, você, eu e meu senhor Merriman

estaríamos nela descritos. Ainda que improvável. Um

Ancião dificilmente deixa seu nome ser registrado em

algum lugar. Geralmente, pessoas como vocês, conseguem

afetar a história de uma maneira desconhecida a qualquer

homem.

Ele igualou a chama flamejante nas três velas sobre a

mesa colocada ao lado de uma das poltronas; o couro preto

da cadeira brilhou sob a luz amarelada.

Will continuou: — Mas eu não consigo... eu não vejo.

— Venha — disse Hawkin sem demora. — É claro que

não. É um mistério. Os Anciãos podem viajar no Tempo

conforme desejarem; você não está ligado a essas leis do

Universo como nós as conhecemos.

— Você não é um?— perguntou Will. — Eu pensei

que fosse.

Hawkin balançou a cabeça, sorrindo. — Não —

Page 147: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

respondeu. — Apenas um simples pecador. — Olhou para

baixo e deslizou sua mão sobre a manga verde de seu

casaco. — Mas o mais privilegiado de todos. Pois como

você, eu também não pertenço a este século, Will Stanton.

Fui trazido aqui somente para fazer certas coisas, e então

meu senhor Merriman me mandará de volta para o meu

tempo.

— Onde — soou a voz grave de Merriman depois do

clique suave da porta fechada — eles não possuem coisas

como o veludo, o motivo que o leva a sentir tanto prazer

neste bonito casaco. Preferível a um casaco afetado, dos

padrões atuais, devo-lhe dizer, Hawkin.

O homenzinho olhou para cima com um sorriso

ligeiro, sentindo a mão de Merriman afetuosamente

apoiada em seus ombros. — Hawkin é uma criança do

século treze, Will — disse ele. — Setecentos anos antes de

você nascer. Ele pertence àquela época. Por minha

intervenção, ele foi trazido para o dia atual e depois voltará

novamente. Como poucos homens comuns o fizeram.

Will passou a mão distraidamente pelos cabelos;

sentia como se estivesse tentando entender o horário de

uma via férrea.

Hawkin riu suavemente. — Eu falei, Ancião. É um

mistério.

— Merriman? — disse Will. — A que tempo você

pertence?

O rosto escuro e pontudo de Merriman o fitou sem

expressão, como uma imagem esculpida. — Você logo

Page 148: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

compreenderá — respondeu. — Nós três temos outro

propósito aqui além do Signo da Madeira. Eu pertenço a

lugar nenhum e a todos os lugares, Will. Eu sou o primeiro

dos Anciãos e estive em todas as eras. Eu existi e existo no

século de Hawkin. Lá, Hawkin é meu vassalo. Eu sou seu

senhor, e mais do que senhor, pois ele esteve comigo

durante toda a sua vida, criado como se fosse um filho,

desde que eu o peguei quando seus pais faleceram.

— Nenhum filho recebeu um cuidado melhor — disse

Hawkin, bastante rouco; ele olhou para os próprios pés e

puxou a jaqueta para baixo. Will então percebeu que

apesar de todas as rugas em seu rosto, Hawkin não era

muito mais velho do que seu irmão Stephen.

Merriman acrescentou: — Ele é o meu amigo que me

serve, e tenho profunda afeição por ele. E nele tenho

grande confiança. Tão grande que lhe dei um papel vital

para desempenhar nesta busca que devemos todos realizar

neste século, a busca para seu aprendizado, Will.

— Ah — disse Will debilmente.

Hawkin lhe sorriu; depois saltou adiante e o abraçou,

rompendo deliberadamente o mau humor. — Eu tenho que

agradecê-lo por ter nascido, Ancião — disse — e por ter me

dado a oportunidade de correr como um rato para outro

tempo que não é o meu.

Merriman relaxou, sorrindo. — Você percebeu, Will,

como ele gosta de acender as lamparinas a gás? No tempo

dele, usam velas esfumaçantes que exalam cheiro e que

não são velas na realidade, mas juncos colocados no sebo.

Page 149: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Lamparinas a gás? — Will olhava para o globo

branco fixado na parede. — É o que elas são?

— É claro. Não existe eletricidade ainda.

— Bem — disse Will na defensiva. — Eu nem sei que

ano seria este, afinal.

— Mil oitocentos e setenta e cinco Anno Domini —

respondeu Merriman. — Não é um ano ruim. Em Londres,

o sr. Disraeli está fazendo o possível para comprar a

Companhia do Canal de Suez. Mais da metade dos barcos

mercantes ingleses que irão atravessá-lo são barcos de

navegação. A Rainha Victoria está no trono inglês há trinta

e oito anos. Na América, o presidente tem o nome

esplendido de Ulysses S. Grant, e Nebraska é o mais novo

dos trinta e quatro estados da União. E num remoto solar

situado em Buckinghamshire, distinto e notório aos olhos

do público, somente por seu acervo referente à coleção

mais valiosa do mundo de livros sobre necromancia, uma

senhora chamada Mary Greythorne está realizando uma

festa de véspera de Natal, com cânticos natalinos e música

para seus amigos.

Will se moveu para perto da estante mais próxima.

Os livros estavam todos atados em couro, em sua maioria

de tonalidade marrom. Havia volumes novos com as

lombadas brilhando em folhas douradas e havia livros mais

espessos e pequenos, tão antigos que o couro estava gasto

chegando a apresentar a espessura de um rígido tecido.

Leu os títulos de alguns exemplares: Culto aos Demônios,

Liber Poenitalis, Descoberta da Bruxaria, Malleus

Page 150: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Maleficarum — e assim por diante em diversos idiomas

como o francês e o alemão, e outros dos quais ele não

conseguia reconhecer o alfabeto. Merriman acenou

desdenhoso com a mão para aqueles livros e para todas as

prateleiras ao redor.

— Vale uma pequena fortuna — disse —, mas não

para nós. Estes são os contos de pessoas pequenas, alguns

sonhadores e alguns homens loucos. Contos de bruxaria e

de coisas terríveis que os homens certa vez fizeram às

pobres e simples almas a quem chamavam de bruxas. A

maioria dentre elas eram seres humanos comuns,

inofensivos; um ou dois verdadeiramente estiveram lidando

com as Trevas... Nenhuma delas, é claro, tinha algo a ver

com os Anciãos; pois quase todo conto que os homens

relatam sobre magia e bruxas nasceu da ignorância, da

tolice e da enfermidade da mente, ou era uma maneira de

explicar coisas que eles não compreendiam. A única coisa

de que eles não sabem nada, a maioria deles, é sobre o que

somos. E isto está contido, Will, em um único livro neste

aposento. O restante é útil agora e depois como um

lembrete do que as Trevas podem realizar e os métodos

obscuros que podem usar algumas vezes. Mas há um livro

que é a razão pela qual você voltou a este século. Trata-se

do livro do qual você aprenderá sobre o seu lugar como um

Ancião e não há palavras para descrever o quanto isto é

precioso. O livro de coisas ocultas, da verdadeira magia.

Há muito tempo, quando a magia era o único conhecimento

escrito, nossas atividades eram chamadas simplesmente de

Page 151: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Conhecimento. Mas há muito que conhecer em seu tempo,

sobre todos os assuntos debaixo do Sol. Então, nós

empregamos uma palavra quase esquecida, assim como

nós Anciãos somos quase esquecidos. Nós a chamamos de

"Magia".

Atravessou o lugar em direção ao relógio, fazendo-

lhe um sinal. Will olhou para Hawkin e viu seu rosto magro

e confiante expressando certa apreensão. Eles seguiram.

Merriman ficou de frente para o grande relógio no canto,

que era mais alto que a cabeça dele uns sessenta

centímetros, pegou uma chave de seu bolso e abriu o

painel frontal. Will podia ver o pêndulo interno movendo-se

lenta e hipnoticamente de um lado... para o outro, de um

lado... para o outro.

— Hawkin — chamou Merriman. Sua voz era muito

gentil, até mesmo amável, no entanto uma ordem. O

homem no casaco verde, sem uma palavra, ajoelhou-se à

esquerda dele, ficando lã bem quieto. Disse em um

sussurro suplicante: — Meu senhor — mas Merriman não

lhe deu atenção. Antes colocou a mão esquerda sobre o

ombro de Hawkin e estendeu a mão direita dentro do

relógio. Muito cuidadosamente, deslizou seus dedos longos

por um lado, mantendo-os o mais estendidos possível para

não tocar no pêndulo, e com um giro rápido retirou um

livro pequeno de capa preta. Hawkin desabou; com a

garganta sufocada e com um terrível alívio, Will olhava-o

espantado. Mas Merriman o afastou dali. Ele fez Will

assentar-se em uma das cadeiras e colocou o livro em suas

Page 152: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

mãos. Não havia titulo na capa.

— Este é o livro mais antigo do mundo — disse

simplesmente. — E quando o tiver lido, deverá ser

destruído. Este é o Livro da Magia, escrito na Linguagem

Antiga. E não pode ser compreendido por ninguém, exceto

pelos Anciãos e, mesmo que um ser humano ou criatura

pudesse compreender qualquer encanto de poder que nele

possa conter, não poderia usar tais palavras de poder a

menos que fosse um Ancião. Por isso, não houve perigo no

fato de sua existência em todos estes anos. Porém não

seria bom manter uma coisa como esta depois da data

marcada para o seu fim, pois sempre estaria em perigo

com relação às Trevas, e a infinita engenhosidade das

Trevas ainda encontraria um meio de usá-la com as

próprias mãos. Neste aposento agora, no entanto, o livro

cumprirá seu propósito final, que é o de conceder a você, o

último dos Anciãos, o dom da magia... e depois disto deverá

ser destruído. Quando obtiver o conhecimento, Will

Stanton, não haverá mais necessidade de mantê-lo, pois

com você o círculo estará completo.

Will permaneceu bem quieto, observando as sombras

se moverem sobre o rosto severo e austero acima ele;

então sacudiu a cabeça como se quisesse acordar e abriu o

livro. E disse: — Mas não está em meu idioma! Você

disse...

Merriman riu. — Esta não é sua língua, Will. E

quando falamos um ao outro, você e eu não usamos o seu

idioma. Usamos a Linguagem Antiga. Nós nascemos com

Page 153: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ela em nossa língua. Você acha que está falando em que

idioma agora? Pois seu senso comum diz a você que a

língua materna é a única que compreende, mas se sua

família o ouvisse agora, eles ouviriam apenas uma

linguagem inarticulada. O mesmo ocorre com esse livro.

Hawkin já se colocara de pé, ainda que não houvesse

cor em seu rosto. Respirando irregularmente, recostou-se

na parede e Will o olhou com preocupação.

Mas Merriman o ignorou e prosseguiu: — No

momento em que alcançou seu poder em seu aniversário,

você pôde falar como um Ancião. E o fez, sem saber o que

estava fazendo. Foi por isso que o Cavaleiro o reconheceu;

quando se encontraram na estrada, você saudou John

Smith na Linguagem Antiga, e ele, no entanto, teve que

responder para você do mesmo modo e correr o risco de

ficar marcado como um Ancião, mesmo que o ofício de um

ferreiro não estivesse sob sujeição. Mas homens comuns

podem falá-la também, como Hawkin aqui, e outros nesta

casa que não fazem parte do Círculo. E do mesmo modo os

Senhores das Trevas, embora nunca sem o sotaque próprio

que os trai.

— Eu me lembro — disse Will lentamente. — O

Cavaleiro parecia ter um sotaque, um sotaque que eu não

conhecia.

Mas, é claro, eu pensei que ele estivesse falando

minha língua e que deveria ser alguém de alguma outra

região do país. Não é de surpreender que ele tenha vindo

atrás de mim logo depois.

Page 154: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Tão simples assim — disse Merriman. Olhou para

Hawkin pela primeira vez e colocou a mão em seu ombro,

mas o homenzinho não se mexeu. — Ouça agora, Will. Nós

deveremos deixá-lo até que tenha lido todo o livro. Não

será uma experiência semelhante como a de ler um livro

comum. Quando tiver terminado, eu voltarei. Onde quer

que eu esteja, eu sempre sei quando o livro é aberto e

quando é fechado. Leia-o agora. Você é um Ancião e por

isso deverá lê-lo apenas uma vez, ficando em você os

ensinamentos por todo o Tempo. Depois disso, nós

terminaremos com isto.

Will perguntou: — Está tudo bem com Hawkin? Ele

parece doente.

Merriman olhou para baixo, para a pequena figura

abatida, com a dor atravessada em seu rosto. — É demais

como pergunta — disse incompreensivelmente, levantando

Hawkin. — Mas o livro, Will. Leia-o. Ele aguarda você há

muitos anos.

Merriman saiu, apoiando Hawkin, na direção da

música e das vozes do aposento ao lado, e Will ficou

sozinho com o Livro de Magia.

TRAIÇÃO 

Depois disso, Will nunca foi capaz de contar quanto

tempo passou com o Livro da Magia. Reteve tanta coisa

daquelas páginas em seu interior e mudou tanto, que a

leitura pode ter levado um ano inteiro; porém sua mente

Page 155: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

foi tão absorvida que, quando ele chegou ao fim, tinha a

impressão de que acabara de começar. Realmente, não se

tratava de um livro como os outros. Havia títulos simples o

bastante para cada página: Sobre Voar; Sobre Desafios;

Sobre as Palavras de Poder; Sobre Resistência; Sobre o

Tempo Através dos Portais. Mas em vez de lhe apresentar

uma história ou instrução, o livro lhe proporcionava apenas

um trecho de um verso ou uma imagem viva, que de

alguma maneira o envolvia instantaneamente, seja lá como

fosse, naquela experiência.

Ele lia nada mais do que uma linha — Eu viajei como

uma águia — e logo se encontrava voando bem alto como

se batesse asas, aprendendo por intermédio das sensações;

sentindo o modo de pousar sobre o vento e de inclinar-se

pelas colunas elevadas do ar, de movimentar-se

impetuosamente e voar em grandes altitudes, de olhar as

colinas bem abaixo parecendo um pedaço de retalho

esverdeado, cobertos com árvores escuras, e rios que

as serpenteiam com suas águas cristalinas. Soube

enquanto voava que a águia era um dos únicos cinco

pássaros que podiam avistar as Trevas, e instantaneamente

conheceu a quarta ave, e alternadamente ele se tornou

cada uma delas...

Depois leu: ... você chegou ao lugar onde se encontra

a criatura mais antiga que vive neste mundo, e foi ela que

chegou aos lugares mais longínquos, a Águia de

Gwemabwy... e Will foi erguido sobre o penhasco de uma

rocha no topo do mundo, apoiado sem medo sobre um

Page 156: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

recife de granito reluzente; seu lado direito inclinava-se

sobre a coxa macia de penas douradas e sobre uma asa

dobrada, e sua mão estava ao lado das garras cruéis, duras

como aço, enquanto em seus ouvidos uma voz rouca

sussurrava as palavras que controlariam o vento e a

tempestade, o céu e o ar, as nuvens e a chuva, a neve e o

granizo — e tudo o que há no céu, exceto o Sol e a Lua, os

planetas e as estrelas.

Em seguida, viu-se voando novamente em um amplo

céu azul escuro, com as estrelas cintilando infinitas sobre

sua cabeça, e o feitio de cada estrela deixou de ser

conhecido por ele, tanto as iguais quanto as diferentes

formas e poderes atribuídos a elas pelos homens com o

passar dos anos. O Pastor passou, acenando com a cabeça,

acompanhado da brilhante estrela Arcturo em seus joelhos;

o Touro rugia, suportando o grande sol de Aldebarã e o

pequeno aglomerado estelar de Plêiades cantando em

pequenas vozes melódicas, como nunca havia ouvido antes.

Voando mais acima e adiante, através do espaço negro,

avistou as estrelas mortas, as estrelas esplendorosas, a

vida dispersa e escassa que povoava o vazio infinito mais

além. E quando terminou, conhecia cada estrela do céu,

tanto pelo nome como pelos pontos astronômicos

registrados, e principalmente como algo muito maior do

que tudo isso; e conhecia cada encantamento do Sol e da

Lua; e ainda conhecia o mistério de Urano e o desespero

de Mercúrio; depois de tudo, montou na calda de um

cometa.

Page 157: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Então, lá para baixo, longe dos céus, o Livro o guiou

com uma frase:

... o mar encolhido sob ele se move lentamente...

E para baixo ele mergulhou verticalmente, em

direção à superfície azul rasteira e encolhida, conforme ia

se aproximando cada vez mais, em uma seqüência de

ondas enormes fustigantes. Em seguida, ele se encontrou

no mar, lá embaixo no caos, pelas brumas esverdeadas, em

um espantoso e translúcido mundo de beleza, impiedade e

desolada sobrevivência. Cada criatura alimentava-se de

outra, nada estava totalmente a salvo. E o Livro lhe

ensinou os meios de sobrevivência contra a malevolência, e

os encantamentos do mar, do rio, dos córregos, dos lagos,

riachos e fiordes, e mostrou-lhe como as águas eram o

único elemento que podia, de certo modo, desafiar toda

magia; pois águas em movimento não tolerariam a magia

fosse ela do bem ou do mal, antes a varreria para longe

como se nunca tivesse sido feita.

Através de corais afiados e letais, o Livro o conduziu

nadando entre notáveis e agitadas algas marinha de

tonalidades verde, vermelha e roxa, entre peixes brilhantes

nas cores do arco-íris que emergiam de baixo até ele, com

olhos atentos, balançando uma barbatana ou calda. Will

passou pelos espinhos escuros dos inclementes ouriços-do-

mar, depois por criaturas macias tremulantes que não

pareciam plantas nem peixes; e finalmente subiu até as

areias brancas, respingando pela superfície rasa e dourada

até as árvores. Ao redor dele, uma densa quantidade de

Page 158: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

árvores se estendia como raízes até a água do mar, num

tipo de selva sem folhas, e num piscar de olhos, Will já se

encontrava fora daquele emaranhado e retornando

rapidamente para alguma página do Livro da Magia:

... Eu sou o fogo descontente e eu brinco com o

vento...

Via-se entre as árvores então; árvores da primavera

com a combinação esverdeada das novas folhas e um sol

claro que as manchava; as árvores de verão estavam cheias

de folhas, sussurrando em massa; os pinheiros escuros de

invernos que não temiam qualquer mestre não deixavam a

luz resplandecer em seus bosques. Aprendeu sobre a

natureza de todas as árvores, sobre as mágicas em especial

que se encontram nos carvalhos, nas faias e nos freixos.

Depois, havia uma estrofe sozinha na página do Livro:

Ele que vê assoviando, a árvore do bosque

silvestre,

E abibes circundando suas águas cintilantes,

Sonhos sobre Estranhos que ainda podem ser

Trevas aos nossos olhos.

Que fazer!

E na mente de Will, subindo no turbilhão de um

vento que o levava ao redor e por todo o Tempo, surgiu a

história dos Anciãos. Ele os viu desde o princípio quando a

magia era generalizada no mundo; a magia que era o poder

das rochas, do fogo, da água e dos seres viventes, de modo

que os primeiros homens viviam nela e com ela, como um

peixe vive na água. Ele viu os Anciãos, através das eras dos

Page 159: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

homens que trabalhavam com a pedra, com o bronze, com

o ferro, com um dos seis grandes Signos nascidos em cada

era. Ele viu um povo depois do outro atacando a ilha de seu

país, e trazendo toda vez a malevolência das Trevas com

eles; uma agitação após agitação de navios se apressando

inexoravelmente nas praias. Cada movimentação de

homens, alternadamente, tornou-se pacífica na medida em

que conheciam e amavam essa terra, de modo que  a Luz

passava a resplandecer novamente. Mas as Trevas sempre

estiveram por lá, inchando e diminuindo, ganhando um

novo Senhor das Trevas sempre que um homem escolhia

deliberadamente ser transformado em uma coisa mais

temível e poderosa que seus companheiros. Tais criaturas

não nasceram para cumprir seu destino, como os Anciãos,

mas optaram por ele. O menino viu o Cavaleiro Negro em

todas as épocas desde o princípio dos tempos.

Viu também uma época em que chegou a hora do

primeiro grande teste da Luz, e os Anciãos se consagraram

por três séculos em rechaçar as Trevas de suas terras, cora

a ajuda no final de seu maior líder, perdido no processo de

redenção, a menos que algum dia ele acorde e volte

novamente.

Uma encosta se ergueu daquele tempo, verdejante e

iluminada pelo Sol, diante dos olhos de Will, com o Signo

do círculo e da cruz cortada em sua relva verde, reluzindo

enorme e branca no calcário de Chiltern. Ao redor de um

braço alvo da cruz, usando ferramentas diferentes como

machados com longas lâminas para esmagá-la, viu um

Page 160: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

grupo de pessoas vestindo roupas verdes: homens

pequenos, ainda menores diante da largura do grande

Signo. Observou um deles rodopiar como num sonho para

fora do grupo em sua direção: um homem vestido numa

túnica verde, com um casaco pequeno na cor azul-escura, e

um capuz colocado sobre a cabeça. O homenzinho abriu,

amplamente os braços, segurando uma pequena espada de

lâminas de bronze em uma das mãos e um cálice cintilante

semelhante a um copo na outra; girou e desapareceu de

repente. Em seguida, atraído pela próxima página, Will

encontrou-se caminhando através de uma densa floresta,

sentindo a maciez de ervas verde-escuro perfumadas sob

seus pés; era um caminho que se alargava e calejava até se

tornar pedregoso, pedras onduladas bem polidas como o

calcário que o conduziu para fora da floresta até que se viu

caminhando por  uma cordilheira alta e ventosa sob um

céu cinzento, de onde pôde avistar o vale escuro quase

coberto pela névoa lá embaixo. E durante todo esse tempo

em que andava, embora ninguém lhe fizesse companhia,

firmemente era sua mente, em progressão, emergiam as

palavras secretas de poder para serem usadas nas Velhas

Estradas, e as sensações e sinais pelos quais ele saberia,

doravante, em qualquer lugar do mundo, onde corria a

Velha Estrada mais próxima dali, seja literalmente ou como

o fantasma de uma estrada...

E assim se sucedeu, até que Will percebeu que

chegava ao fim do Livro. Uma estrofe estava escrita diante

dele:

Page 161: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Eu despojei a samambaia.

Através de todos os segredos que espionei;

O Velho Math ap Mathonwy 

Não sabia mais do que eu.

Olhando para a capa, na última página, havia o

desenho de seis Signos de cruzes circuladas, todos

reunidos em um círculo. E era tudo.

* * * 

Fechou o Livro e ficou absorto em direção ao nada.

Sentia como se houvesse vivido por uns cem anos. Para

saber tanto assim agora e para ser capaz de realizar tantas

coisas; isto deveria animá-lo, mas melancolicamente tinha

a sensação de estar sobrecarregado ao pensar em tudo o

que já passou e tudo o que estava por vir.

Merriman entrou pela porta, sozinho, e ficou

observando-o. — Ah, sim — falou baixinho. — Como eu

disse, trata-se de uma responsabilidade, um fardo. Mas é

assim, Will. Nós somos os Anciãos, nascidos no círculo, e

nada pode mudar isso. — Recolheu o livro e tocou no

ombro do menino. — Venha.

Enquanto atravessava o aposento até o alto relógio

de pêndulo, Will o seguia observando-o retirar a chave do

bolso novamente e abrir o painel frontal. O pêndulo ainda

estava lá, longo e lento, num balanço como a batida do

coração. Mas naquele momento, Merriman não se

preocupou em evitar tocá-lo. Tocou-o com o Livro em sua

Page 162: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

mão, mas moveu-se com um estranho solavanco, como um

ator encenando um homem desajeitado; e quando

Merriman empurrou o Livro para dentro, uma das bordas

roçou o longo braço do pêndulo. Will teve apenas o lampejo

de um momento para ver a interrupção do balanço. Em

seguida, cambaleava para trás, cobrindo os olhos com as

mãos; o aposento foi preenchido com alguma coisa que ele

nunca pôde descrever — uma explosão silenciosa, um

estouro ofuscado de luz escura, um grande rugido de

energia que não poderia ser visto ou ouvido e mesmo assim

o fez sentir por um instante que o mundo inteiro havia

explodido. Quando tirou as mãos do rosto, piscando,

descobriu-se pressionado contra a lateral de uma poltrona,

há uns três metros de onde estava. Merriman encontrava-

se encostado contra a parede ao lado dele, com braços e

pernas estendidos. E o lugar onde o relógio havia sido

instalado, no canto do aposento, encontrava-se vazio. Não

havia qualquer dano, nem qualquer sinal de violência ou

explosão. Simplesmente, não havia nada.

— Era isto, percebe? — disse Merriman. — Esta era

uma proteção do Livro da Magia, desde que o nosso tempo

começou. Se o que o protegia era tão grandioso quando

tocado, ele e o Livro e o homem que o tocasse se tornariam

nada. Somente os Anciãos são imunes a esta destruição, e

como você pôde ver — esfregou o braço pesarosamente —,

mesmo nós, na ocasião, podemos ser feridos. A proteção

tomou várias formas, é claro... o relógio destinava-se

simplesmente a este século. Então, agora nós destruímos o

Page 163: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Livro, pelo mesmo propósito que através de todas essas

eras nós o preservamos. Como você deve ter aprendido,

esta é a única maneira adequada de se usar a magia.

Will falou trêmulo: — Onde está Hawkin?

— Ele não era necessário agora — respondeu

Merriman.

— Ele está bem? Pois parecia...

— Bastante bem. — Havia um tom estranho na voz de

Merriman, como o de tristeza, mas nenhuma de suas novas

habilidades poderia revelar ao menino a emoção colocada

naquelas palavras.

Depois disso, eles voltaram para a confraternização

do aposento ao lado, onde as canções natalinas que haviam

recomeçado quando saíram chegavam naquele momento

ao fim; e onde ninguém se comportava como se eles

estivessem ficado fora por mais de um momento, ou por

algum tempo real. Mas então, pensava Will, nós não

estamos no tempo real. Pelo menos, estamos no passado, e

mesmo assim parecemos capazes de nos delongar o quanto

desejarmos, mesmo agilizar ou tornar mais lento...

A multidão tinha aumentado, e mais pessoas ainda se

moviam para o salão de ceia. Will percebia agora que a

maioria delas era constituída de pessoas comuns, e que

somente o pequeno grupo que tinha permanecido antes no

salão era de Anciãos. É claro, pensava o menino: somente

eles poderiam testemunhar a renovação do Signo.

* * * 

Page 164: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Outras pessoas estavam lá, e ele já estava se virando

para estudá-las quando foi tomado pelo espanto e horror

de todas as suas reflexões. Seus olhos descobriram um

rosto bem no fundo do aposento, uma moça, que não o

olhava, mas estava entretida em uma conversa com alguém

despercebido. Enquanto observava, ela sacudiu a cabeça

em uma risada autocontrolada. Depois, inclinou-se para

ouvir novamente, logo sumiu de vista, quando outros

convidados bloquearam a visão do grupo. Mas já foi o

suficiente para Will ver que a moça sorridente era Maggie

Barnes, a Maggie da fazenda dos Dawson, do outro século.

Ela não era nem mesmo uma antevisão, como a vitoriana

srta. Greythorne era um tipo de eco recente da srta.

Greythorne que ele conhecia. Aquela era a Maggie que ele

tinha visto em seu próprio tempo.

Virou-se em consternação, mas tão logo encontrou os

olhos de Merriman, viu que o fato também era de seu

conhecimento. Não havia a expressão de surpresa no rosto

de nariz de falcão, somente o início de um tipo de

sofrimento.

— Sim — disse ele cansado. — A moça feiticeira está

aqui. E eu acho que você deve ficar ao meu lado, Will

Stanton, pelos próximos instantes, e observar comigo, pois

não me interesso muito em observar sozinho.

Admirado, Will se juntou a ele em um canto, sem

serem vistos. A moça Maggie ainda estava escondida na

multidão, em algum lugar. Eles esperaram; então, viram

Page 165: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Hawkin, em seu casaco verde garboso, passando pela

multidão para se aproximar da srta. Greythorne, e ficando

reverencialmente ao lado dela, da maneira pela qual um

homem se acostumara a se colocar à disposição para

ajudar. Merriman enrijeceu-se um pouco, e Will o olhou

atentamente; a expressão de dor se aprofundou no rosto

forte, como se Merriman estivesse prevendo uma grande

mágoa futura. Olhou novamente para Hawkin e viu seu

sorriso divertido por alguma coisa que a srta. Greythorne

teria dito; sem mostrar qualquer sinal de que algo o tivesse

afligido na biblioteca, o homenzinho tinha um brilho,

semelhante a uma pedra preciosa, que traria alegria a

qualquer tristeza. Will podia perceber por que ele se

tornou tão querido por Merriman.

Mas ao mesmo tempo, sentia uma terrível convicção

de um desastre iminente pairando no ar.

Ele perguntou roucamente: — Merriman! O que é?

Merriman olhou acima dos convidados na direção do

rosto pontudo e disse sem expressão: — É o perigo, Will,

que está por vir por intermédio de minhas ações. Um

grande perigo, para toda esta busca. Eu cometi o pior erro

que um Ancião poderia fazer, e o erro está prestes a cair

sobre a minha cabeça. Depositar mais confiança em um

mortal, além de suas forças para suportar, é algo que, há

séculos, todos nós aprendemos a não fazer, desde antes do

Livro da Magia se tornar minha responsabilidade. Porém,

num momento de tolice, eu cometi esse erro. E agora não

há nada que possamos fazer para corrigir, somente

Page 166: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

observar e aguardar os resultados.

— Trata-se de Hawkin, não é? Alguma coisa a ver

com o motivo que o fez trazê-lo aqui?

— O encantamento de proteção para o Livro — disse

Merriman dolorosamente — ocorreria em duas partes, Will.

Você viu a primeira, a proteção contra os homens... o

pêndulo os destruiria se tentassem tocá-lo, mas não

destruiria a mim ou qualquer outro Ancião. Mas eu

entrelacei outra parte dentro deste encantamento que

seria uma proteção contra as Trevas. Estabeleci que eu

poderia recolher o Livro atrás do pêndulo somente se eu

estivesse tocando em Hawkin com minha outra mão.

Sempre que o Livro foi retirado para o último Ancião que o

viu, em qualquer século, Hawkin tinha que ser trazido de

seu próprio tempo para participar.

Will perguntou: — Não teria sido mais seguro se um

Ancião fizesse parte do encantamento e não um ser

humano comum?

— Ah, não, todo o propósito era ter um ser humano

envolvido. Esta é uma batalha insensível na qual estamos,

Will, e nela devemos fazer algumas coisas insensíveis. Este

encantamento foi entrelaçado à minha volta como o

protetor do Livro. As Trevas não podem me destruir, pois

eu sou um Ancião, mas poderiam talvez com magia ter me

enganado para pegar o Livro. Caso isso acontecesse,

deveria haver um meio pelo qual outro Ancião pudesse me

deter antes que fosse tarde demais. Eles também não

poderiam me destruir, para me impedir de fazer a obra das

Page 167: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Trevas. Mas um homem pode ser destruído. Se ocorresse o

pior, e as Trevas me forçassem pela magia a entregar-lhes

o Livro, então antes que eu começasse, a Luz teria que

tirar a vida de Hawkin. Isto teria mantido o Livro a salvo

para sempre, pois neste caso, eu não poderia usar o

encantamento de liberação por tocá-lo enquanto retirasse o

Livro. E por isso, eu não seria capaz de apanhar o Livro.

Nem as Trevas, nem qualquer outra pessoa.

— Então ele arriscou a própria vida — disse Will

lentamente, observando os passos animados de Hawkin

enquanto ele atravessava o aposento até os músicos.

— Sim — disse Merriman. — Em nosso serviço, ele

estava seguro contra as Trevas, mas sua vida corria risco

de todo jeito. Ele concordou porque era meu vassalo e

sentia orgulho disso. Espero ter deixado claro que ele sabia

do risco que corria. Um risco duplo, pois ele também

poderia ter sido destruído hoje, por mim, se eu tivesse

acidentalmente tocado o pêndulo. Você viu o que

aconteceu quando no final eu o toquei. Você e eu, como

Anciãos, fomos meramente sacudidos; mas se Hawkin

estivesse lá, sob o meu toque, ele teria sido morto em um

único lampejo, destruído como o próprio Livro.

— Ele não deve ser apenas corajoso, como realmente

deve amá-lo muito, como se fosse seu filho — disse Will —

para fazer coisas como estas por você e pela Luz.

— Mas ainda assim, ele é apenas um ser humano —

disse Merriman, sua voz estava rouca e a expressão de dor

profunda em seu rosto. — E ama como um ser humano, 

Page 168: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

exigindo provas de amor em retribuição. Meu erro foi

ignorar o risco que poderia haver. E como resultado, neste

aposento nos próximos minutos, Hawkin me trairá e trairá

a Luz, moldando todo o curso de sua busca, jovem Will. Na

verdade, o choque, justo agora, de ter arriscado sua vida

por mim e pelo Livro da Magia, foi demais para a sua

lealdade. Talvez você tenha visto o rosto dele quando

segurei seu ombro e retirei o Livro de seu lugar perigoso.

Foi apenas naquele momento que Hawkin entendeu

completamente que eu estava preparado para deixá-lo

morrer. E agora que tem esse entendimento, nunca me

perdoará por não amá-lo... em seus termos... como ele me

amou, seu senhor. E ele se voltará contra nós — disse

Merriman apontando pelo aposento. — Veja como isso

começa.

A música tocou envolvente, e os convidados

começaram a formar pares para dançar. Um homem que

Will reconheceu como um Ancião aproximou-se da srta.

Greythorne, inclinou-se e ofereceu-lhe o braço; todos os

casais em volta se juntaram a eles em grupos de oito para

uma dança que o menino desconhecia. Ele avistou Hawkin

irresoluto, movendo a cabeça levemente conforme o

compasso da música; e viu uma moça em um vestido

vermelho aparecer ao lado dele. Era a feiticeira Maggie

Barnes.

Ela disse alguma coisa para Hawkin, rindo, e fez-lhe

uma pequena reverência. Hawkin sorriu educadamente,

em dúvida, e balançou a cabeça. O sorriso da moça se

Page 169: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ampliou; ela jogou os cabelos faceiramente e lhe falou

novamente, olhando em seus olhos.

— Ah — disse Will. — Se pudéssemos ouvir!

Merriman o olhou sombriamente por um momento, com o

rosto ausente e pensativo.

— Ah — continuou Will, sentindo-se tolo. — É claro.

— Levaria certo tempo, naturalmente, até que ele se

acostumasse a usar seus próprios dons. Olhou novamente

para Hawkin e a moça e desejou ouvi-los, e pôde ouvi-los.

— Realmente, senhora — dizia Hawkin —, não tenho

nenhuma intenção de parecer rude, mas eu não danço.

Maggie segurou-lhe as mãos. — Por que está fora de

seu século? Eles dançam aqui com as pernas, assim como

você fazia cinco séculos atrás. Venha.

Hawkin a fitava horrorizado enquanto ela o conduzia

até um grupo de casais. — Quem é você? — sussurrou ele.

— Você é uma Anciã?

— Nem por tudo no mundo — disse Maggie Barnes

na Linguagem Antiga, e Hawkin ficou pálido,

permanecendo em silêncio. Ela sorriu discretamente,

dizendo em seu idioma: — Uma única dança, ou as pessoas

vão perceber. É bem fácil. Olhe para o cavalheiro ao lado,

quando a música começar.

Hawkin, pálido e aflito, tropeçava durante a primeira

parte da dança; aos poucos, conseguiu aperfeiçoar os

passos. Merriman disse aos ouvidos de Will: — Ele foi

informado que nenhuma alma aqui presente o conheceria e

que sob pena de morte ele deveria falar na Linguagem

Page 170: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Antiga somente com você.

Então, a conversa recomeçou:

— Você parece bem, Hawkin, para um homem que

escapou da morte.

— Como você sabe dessas coisas, garota? Quem é

você?

— Eles teriam deixado você morrer, Hawkin. Como

pôde ser tão estúpido?

— Meu mestre me ama — afirmou Hawkin —, mas

havia fraqueza nessas palavras.

— Ele o usou, Hawkin. Você não é nada para ele.

Você deveria seguir mestres melhores, que se importassem

com sua vida. E que alongassem os seus dias pelos séculos

e não que o deixassem confinado em seu próprio tempo.

— Como a vida de um Ancião? — perguntou Hawkin,

a ansiedade nascendo em sua voz pela primeira vez. Will se

lembrou do tom de inveja quando Hawkin havia falado com

ele sobre os Anciãos; agora, era perceptível um indício de

ganância também.

— As Trevas e o Cavaleiro são mestres mais gentis do

que a Luz — afirmava Maggie Barnes com brandura em

seus ouvidos quando a primeira parte da dança acabou.

Hawkin permaneceu calado novamente, fitando a moça

com atenção, até que ela olhou ao redor e disse

claramente: — Acho que preciso de uma bebida gelada. —

E Hawkin partiu conduzindo-a para longe dali, de modo

que agora, com toda a atenção dele e a oportunidade de

lhe falar a sós, a feiticeira das Trevas teria um ouvinte bem

Page 171: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

disposto. Will sentia-se repentinamente com náuseas pela

abordagem traiçoeira e não os ouviu mais. Percebeu

Merriman ao seu lado, ainda olhando para o espaço.

— Então, assim será — disse Merriman. — Ele terá

uma doce imagem das Trevas para atraí-lo, como os

homens sempre têm e, além disso, ele se livrará de todas

as exigências da Luz, que são pesadas e sempre serão.

Enquanto isso, alimentará seu ressentimento pela maneira

como eu o fiz desistir de sua vida sem a promessa de

recompensa. Você pode ter certeza de que as Trevas não

dão sinais de exigências. Na verdade, seus senhores nunca

arriscam exigindo a morte, mas somente oferecem uma

vida sombria... Hawkin — disse baixinho, de forma lúgubre.

— Vassalo, como pode fazer o que está prestes a realizar?

De repente, Will sentiu medo, e Merriman percebeu.

— Chega disso — disse ele. — Já está claro como a história

acabará. Hawkin agora será como um informante, uma

passagem secreta obscura. E assim como as Trevas não

podiam tocá-lo quando ele era meu vassalo, agora que ele

se tornou o vassalo das Trevas não poderá ser destruído

pela Luz. Ele será os ouvidos das Trevas em nosso meio,

nesta casa que tem sido nossa fortaleza. — A sua voz era

fria, já aceitava o inevitável e a dor desaparecera. —

Mediante a forma como a feiticeira conseguiu entrar aqui,

ela não poderia realizar uma fagulha sequer de magia sem

ser destruída pela Luz. Mas agora, sempre que Hawkin as

chamar, as Trevas poderão nos atacar, aqui ou em outro

lugar. E o perigo só aumentará com os anos.

Page 172: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Levantou-se, deslizando os dedos pela gravata

branca; havia uma terrível dureza em seu perfil severo, e

por um momento o seu olhar fez o sangue de Will correr

denso e lento em suas veias. Era o rosto de um juiz,

implacável, condenador.

— E a sentença que Hawkin trouxe sobre si mesmo,

por seu ato — disse Merriman inexpressivo —, é algo

apavorante, que o fará muitas vezes desejar a própria

morte.

Will ficou atordoado, tomado pela pena e pelo

assombro. Não perguntou o que aconteceria com o

homenzinho de olhos brilhantes, que lhe havia sorrido,

auxiliado e sido seu amigo por tão pouco tempo; não queria

saber. A música da segunda parte da dança retinia prestes

a finalizar, e os pares fizeram um ao outro uma divertida

corte. Will continuava imóvel e infeliz. O olhar implacável

de Merriman suavizou-se, para depois voltar e examinar o

centro do aposento.

Will via apenas um vazio na multidão, com o grupo

de músicos atrás dela. Enquanto ficava ali, eles começaram

a cantar novamente Good King Wenceslas, a canção

natalina que entoavam quando entraram no aposento,

pelos Portais. Alegremente, todos se reuniram para cantar,

e então as próximas estrofes se iniciaram e a voz profunda

de Merriman soou pelo aposento; logo Will percebeu, num

lampejo, que as estrofes eram as suas.

Tomou fôlego e e ergueu a cabeça:

Senhor, a léguas daqui, ele faz sua morada no

Page 173: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

sopé da montanha...

E não houve um momento de despedidas, um

momento no qual ele viu o século 19 desaparecer, mas de

repente, sem consciência da mudança, enquanto cantava,

soube que o Tempo havia piscado, e outra voz jovem

cantava com ele; ambos de forma tão simultânea que

qualquer pessoa que pudesse ver os lábios se movendo

teria jurado que se tratava da voz de um único menino...

... perto da fonte de Santa Agnes....

.... Bem diante da floresta isolada ...

mas Will sabia que estava perto de James, Mary e

dos outros, e que ele e James cantavam juntos, e aquela

música acompanhando suas vozes era o som da flauta doce

de Paul. Continuou ali na entrada escura do salão, com as

mãos erguidas diante do peito, segurando a vela iluminada.

Logo percebeu que a vela não havia queimado um

milímetro a mais desde a última vez que a viu.

Eles terminaram de entoar a canção natalina.

A srta. Greythorne disse então: — Muito bom, muito

bom, de fato. Nada como Good King Wenceslas. Este

sempre foi o meu cântico favorito.

Will espiou através da chama de sua vela,

observando a silhueta imóvel na enorme cadeira talhada; a

voz dela soava mais velha, mais grave com os anos, assim

como seu rosto, mas por outro lado, ela era muito parecida

com sua avó... e se aquela srta. Greythorne mais jovem

teria sido sua avó? Ou sua bisavó?

A srta. Greythorne continuou: — Sabem, os constas

Page 174: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

natalinos do Vale do Caçador têm cantado Good King

Wenceslas nesta casa há mais tempo do que vocês ou

eu mesma poderíamos lembrar. Bom, agora, Paul, Robin e

todos vocês, o que acham de um pouco de ponche de

Natal? A pergunta era clássica, assim como a resposta.

— Bem — disse Robin com voz grave —, obrigado

srta. Greythorne. Talvez um pouquinho.

— Até mesmo o jovem Will, este ano — disse Paul. —

Ele tem onze anos agora, srta. Greythorne, a senhorita

sabia?

A governanta estava se aproximando com uma

bandeja, trazendo taças cintilantes e uma grande

poncheira com a bebida marrom-avermelhada, e quase

todos os olhos se voltaram para Merriman, que se

adiantava para servir as taças. Mas o olhar de Will estava

fixo na figura determinada, com olhos mais jovens sentada

na cadeira de encosto alto.

— Sim — disse a srta. Greythorne suavemente, quase

ausente em pensamento. — Eu me recordo. Foi aniversário

de Will Stanton. — Ela se virou para Merriman, que já se

aproximava, e segurou duas taças em suas mãos. — Um

feliz aniversário para você, Will Stanton, sétimo filho de um

sétimo filho — disse a srta. Greythorne. — E sucesso em

todas as suas buscas.

— Obrigado, senhora — disse Will, admirado. Então,

eles ergueram as taças solenemente em um brinde e

beberam, como os filhos dos Stanton sempre faziam no

Natal, no único dia do ano quando era permitido o vinho no

Page 175: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

jantar.

Merriman andava ao redor, e naquele momento

todos tinham suas taças cheias de ponche e bebiam com

satisfação. O ponche de Natal do Solar sempre foi

delicioso, embora ninguém nunca tenha descoberto o que

havia na bebida. Como os membros mais velhos da família,

os gêmeos foram conversar com a srta. Greythorne;

Bárbara, com Mary a tiracolo, foi direto até a srta.

Hampton, a governanta, e Annie, a criada, ambas eram

membros relutantes de um grupo de drama do vilarejo que

ela tentava animar. Merriman disse para James: — Você e

seu irmão mais novo cantam muito bem.

James sorriu. Embora rechonchudo, ele não era mais

alto que Will, e não era freqüente que um estranho o

agradasse reconhecendo-o como o irmão mais velho e

superior entre eles. — Nós cantamos no coral da escola —

disse ele.

— E executamos solos em festivais artísticos. Até

mesmo um em Londres, no ano passado. O regente gosta

muito de festivais artísticos.

— Eu não gosto — disse Will. — Todas aquelas mães

olhando.

— Bem, você era o primeiro de sua classe em

Londres — disse James. — Então, é claro que todas elas

odiavam você, vencendo seus queridinhos. Eu era apenas o

quinto da minha sala — disse ele em tom pragmático para

Merriman.

— Will tem a voz muito melhor do que a minha.

Page 176: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Ah! Pare com isso — retrucou Will.

— Sim, você tem. — James era um menino de mente

equilibrada; e genuinamente preferia a realidade aos

devaneios. — Até que paremos de cantar, de alguma

maneira. Nenhum de nós pode ser bom então.

Merriman disse com a mente ausente: — Na

realidade, você se tornará um tenor muito realizado. Quase

nível profissional. A voz de seu irmão será um barítono...

agradável, mas nada de especial.

— Suponho que poderia ser possível — disse James,

educado, mas incrédulo. — É claro, embora não há como

ter certeza, ainda.

Will retrucou beligerante: — Mas ele... — sentiu o

olhar sombrio de Merriman e parou. — Hum, aaah —

murmurava, e James olhou para ele com espanto.

A srta. Greythorne chamou Merriman pelo salão: —

Paul gostaria de ver a antiga coleção de flautas

transversais e flautas doces. Leve-o, sim?

Merriman inclinou a cabeça em uma pequena

reverência e disse, como quem não quer nada, para Will e

James:

— Gostariam de nos acompanhar?

— Não, obrigado — respondeu James de pronto. Seus

olhos estavam fixos na porta dos fundos, pela qual a

governanta entrava com outra bandeja. — Estou sentindo o

cheiro das tortas de carne da srta. Hampton.

Will respondeu, compreendendo: — Eu bem que

gostaria de ver.

Page 177: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Ele saiu com Merriman em direção à cadeira da srta.

Greythorne, onde Paul e Robin se encontravam tensos e

bastante constrangidos, um de cada lado, como guardiões.

— Vão todos vocês! — disse a srta. Greythorne

rapidamente. — Você irá também, Will? É claro que sim,

você é outro músico, já ia me esquecendo. Um ótimo

acervo de instrumentos e outras coisas por lá. Ficarei

surpresa se nunca os tiver visto antes.

Embalado por aquelas palavras, Will falou sem

pensar:

— Na biblioteca?

Os olhos atentos da srta. Greythorne brilharam para

ele. — A biblioteca? — replicou ela. — Você deve estar nos

confundindo com outra pessoa, Will. Não existe biblioteca

aqui. Havia uma pequena, certa vez, com alguns livros

muito valiosos, acredito eu, mas foram queimados há quase

um século. Aquela parte da casa foi atingida por um

relâmpago e, segundo dizem, causou muitos estragos.

— Minha nossa — disse Will um tanto confuso.

— Bem, mas isso não é conversa para o Natal —

acrescentou a srta. Greythorne acenando para que fossem.

Olhando-a de volta, enquanto ela se virava para Robin com

sorriso amplo e cordial, Will ficou se perguntando se as

duas srtas. Greythorne não eram uma só afinal.

Merriman o conduziu com Paul para a porta lateral, e

eles atravessaram uma estranha passagem pequena que

cheirava a mofo em direção a um aposento alto e claro que

Will não reconheceu de imediato. Somente quando avistou

Page 178: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

a lareira foi que percebeu onde estava. Lá estava a ampla

lareira e a imensa cornija com seus painéis quadrados e 

talhados com emblemas de rosas no estilo Tudor. Mas em

volta de todo o restante do aposento, os painéis haviam

sumido; as paredes estavam pintadas de branco e

decoradas alegremente aqui e ali por paisagens marinhas

pintadas nos tons pálidos de azul e verde. No lugar onde

Will se dirigiu certa vez para a pequena biblioteca já não

existia mais porta.

Então, Merriman abriu um armário alto com a frente

de vidro instalado na parede lateral.

— O pai da srta. Greythorne era um cavalheiro muito

musical — disse ele com sua voz de mordomo. — E com

dons artísticos também. Ele pintou todos aqueles desenhos

sobre as paredes do lado de lá. Nas índias Ocidentais,

acredito eu. Este aqui, no entanto... — ergueu um

instrumento pequeno e bonito como uma flauta doce,

produzido em marchetaria escura e prata — dizem que ele

na realidade não tocava, apenas gostava de ficar olhando

para ele.

Paul foi absorvido pela descrição, olhando,

examinando cada uma das flautas antigas enquanto

Merriman as tirava do armário. Ambos eram muito solenes

ao lidar com elas, colocando-as cuidadosamente de volta

antes de retirar um novo instrumento. Will se virou para

examinar os painéis ao redor da lareira, mas teve um

sobressalto quando ouviu Merriman silenciosamente

chamá-lo. Ao mesmo tempo, podia ouvir a voz sonora de

Page 179: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Merriman falando com Paul: era uma estranha

combinação.

— Rápido, agora! — disse a voz em sua mente. —

Você sabe onde procurar. Rápido, enquanto você tem

chance. Já é hora de pegar o Signo!

— Mas... — disse a mente de Will.

— Prossiga! — disse Merriman silenciosamente.

Will olhou de volta rapidamente sobre seus ombros.

A porta pela qual eles entraram ainda estava entreaberta,

mas seus ouvidos certamente o avisariam se alguém

estivesse vindo pela passagem entre aquele aposento e o

outro.

Ele se moveu furtivamente até a lareira, ergueu o

braço e colocou sua mão sobre o painel. Fechando os olhos

por um instante, apelou para todos os seus dons e o mundo

antigo do qual eles vieram. Qual painel havia sido? Qual

rosa talhada? Estava confuso com a ausência da parede de

painéis ao redor; a cornija parecia menor do que antes.

Estaria o Signo perdido, murado por tijolos em algum lugar

atrás daquela parede branca e plana? Pressionou cada rosa

que conseguia ver no topo do canto esquerdo da lareira,

mas nenhuma delas se moveu, nem mesmo a fração de um

centímetro. Então, no último instante, reparou, bem lá no

canto, uma rosa parcialmente enterrada no reboco,

projetando-se da parede que claramente havia sido

reparada assim como alterada nos últimos cem anos ou dez

minutos, pensou ele, desde que a viu.

Às pressas, Will alongou-se para alcançá-la e

Page 180: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

pressionou seu polegar o mais forte possível contra o

centro da flor talhada, como se fosse o botão de uma

campainha. E enquanto ele ouvia o suave clique, deparou-

se olhando para um buraco escuro no formato de um

quadrado na parede, exatamente na altura de seus olhos.

Ele estendeu a mão e tocou o círculo do Signo de Madeira

e, quando já suspirava aliviado, seus dedos se fechando em

volta da madeira lisa, ouviu Paul começando a tocar uma

das flautas antigas.

Foi uma tentativa para tocar: um lento arpejo

primeiro, depois um compasso rápido, porém hesitante e,

em seguida, muito suave e gentilmente, Paul começou a

tocar a melodia Greensleeves. E Will ficou transfixado, não

apenas pela adorável cadência da canção antiga, mas pelo

som do instrumento propriamente dito. Pois embora a

melodia fosse diferente, aquela era a sua música, seu

encantamento, o mesmo tom distante e estranho que ele

sempre ouvia, e então sempre perdia, naqueles momentos

de sua vida que eram os mais importantes. Qual era a

natureza daquela flauta que seu irmão estava tocando?

Faria parte dos Anciãos, pertenceria à magia deles, ou era

simplesmente algo muito comum feito por mãos humanas?

Retirou a mão do vão na parede, que se fechou

instantaneamente antes que ele pudesse pressionar a rosa

novamente e, enquanto deslizava o Signo da Madeira em

seu bolso, virou-se extasiado pela canção.

Mas, então, ficou paralisado.

Paul continuava tocando pelo quarto, ao lado do

Page 181: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

armário. Merriman estava de costas e com as mãos

descansando nas portas de vidro. Mas, naquele momento, o

aposento revelava a presença de duas outras figuras

também. Na porta de entrada pela qual eles passaram,

encontrava-se Maggie Barnes, olhando não para Will, mas

para Paul, com um olhar terrível de malevolência. E perto,

ao lado de Will, muito perto, no local onde a porta para a

antiga biblioteca estivera certa vez instalada, erguia-se o

Cavaleiro Negro. Estava na proximidade da largura dos

braços de Will, embora não se movesse, permanecendo

transfixado, como se a música o tivesse detido no meio de

um ataque. Seus olhos estavam fechados, os lábios

moviam-se silenciosamente; as mãos estendidas apontavam

sinistramente para Paul, enquanto a música suave e

sublime continuava tocando.

Will agiu bem em uma coisa, aproveitando o instinto

de seu novo aprendizado. Imediatamente, ele criou uma

parede de resistência em volta de Merriman, Paul e de si

mesmo, de modo que os dois adversários das Trevas

vacilaram para trás diante da força da barreira. Mas ao

mesmo tempo, ele gritou assustado: — Merriman! — E

quando a música foi interrompida, e ambos, Paul e

Merriman, viraram-se com horror imediato, ele soube o

que havia feito de errado. Ele não gritou como um Ancião

chamaria o outro, através da mente. Ele havia cometido um

erro muito grave ao gritar tão alto.

O Cavaleiro e Maggie Barnes desapareceram

imediatamente. Paul atravessava o aposento preocupado.

Page 182: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Mas o que está acontecendo, Will? Você se machucou?

Merriman disse rápido e discretamente atrás dele: —

Ele tropeçou, eu acho — e Will foi sagaz em fazer uma

careta de dor, curvando-se como se estivesse aflito,

segurando firme um dos braços.

Ouviu-se o som de passos correndo, e Robin

irrompeu pela passagem, com Bárbara logo atrás dele. — O

que foi? Nós ouvimos um grito horrível...

Ele olhou para Will e parou confuso. — Você está

bem, Will?

— Ui — disse Will. — Eu... ai... acabei de bater o

nervo do meu cotovelo. Desculpem-me, é que doeu.

— Parecia que alguém estava prestes a matá-lo —

repreendeu Bárbara.

Envergonhado, Will se refugiou na indelicadeza. Seus

dedos se encresparam pelo bolso em busca do terceiro

Signo para saber se estava a salvo. — Bem, desculpe-me

por desapontá-la — disse ele petulante — mas realmente

eu estou bem. Eu apenas dei uma pancada em mim mesmo

e gritei, é isso. Sinto muito se você ficou assustada. Eu não

vejo o porquê desse alvoroço todo.

Robin olhava-o. — Espere que venha correndo em

seu socorro da próxima vez — disse rispidamente.

— Fica brincando de o Menino e o Lobo pra ver —

disse Bárbara.

— Eu acho — disse Merriman gentilmente, fechando

o armário e girando a chave — que deveríamos todos sair e

oferecer à srta. Greythorne mais uma canção natalina. — E

Page 183: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

esquecendo-se totalmente que ele era nada mais do que

um mordomo, todos eles saíram obedientemente para fora

do aposento atrás dele.

Page 184: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Will o chamou, em apropriado silêncio desta vez: —

Mas eu preciso falar com você! O Cavaleiro estava aqui! E

a garota!

Merriman respondeu em sua mente: — Eu seu. Mais

tarde. Eles sempre têm meios para ouvir este tipo de

conversa, lembre-se disto. — E continuou andando,

deixando Will tremendo de exasperação e alarme.

Na porta de entrada, Paul parou segurando

firmemente o irmão pelo ombro e o virou para olhá-lo de

frente. — Você está realmente bem?

— Sinceramente. Desculpe-me por causa do barulho.

Aquele flauta soava magnífica.

— Uma coisa fantástica. — Paul o soltou, virando-se

para olhar desejosamente para o armário. — Verdade. Eu

nunca ouvi nada como o som daquela flauta. E, é claro,

nunca toquei uma assim também. Você não faz idéia, Will,

eu não tenho como descrever, tremendamente antiga, e

ainda em condições de uso; poderia ser quase nova. E o

timbre dela... — Havia certa dor em sua voz e em seu

rosto, e alguma coisa dentro de Will reagia a este respeito

com uma compaixão antiga e profunda. Ele

repentinamente soube que um Ancião estaria fadado a

sentir sempre aquele mesmo desejo inominável e informe

por alguma coisa além de seu alcance, como uma parte

infinita da vida.

— Eu daria qualquer coisa — dizia Paul — para ter

uma flauta como aquela um dia.

— Quase qualquer coisa — corrigiu Will gentilmente.

Page 185: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Paul olhou-o espantado, e o Ancião dentro dele percebeu

subitamente atrasado que esta talvez não fosse a resposta

de um garotinho; então sorriu e mostrou a língua de forma

travessa para Paul, e saiu pulando pela passagem, de volta

às relações normais do mundo normal.

Eles cantaram The First Nowell para encerrar a

cantata natalina e se despediram; o grupo se encontrava

do lado de fora novamente, pisando na neve e sentindo o ar

gelado; olhavam o sorriso impassível e educado de

Merriman atrás das portas do Solar. Will parou nos largos

degraus de pedra e observou as estrelas. As nuvens haviam

se dissipado finalmente, e, naquele momento, as estrelas

reluziam como fagulhas de fogo branco no buraco negro do

céu noturno, em todas as estranhas formas que foram um

mistério complicado para ele em toda a sua vida, mas que

finalmente tinham um significado agora.

— Veja como as plêiades estão brilhantes hoje à noite

— disse baixinho.

Mary o olhou estarrecida e disse — As o quê?

Então, Will passou a prestar atenção nos céus

escuros e faiscantes e em seu pequeno mundo, amarelo e

de tochas acesas, em que os cantores de Natal da família

Stanton percorriam até seu lar. Caminhou entre eles em

silêncio, como se estivesse em um sonho. Seus irmãos

achavam que estivesse cansado, mas estava flutuando

maravilhado. Ele tinha os três Signos de Poder agora. E

tinha, também, o conhecimento para usar o Dom da Magia:

uma vida longa de descoberta e sabedoria, oferecida a ele

Page 186: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

em um momento suspenso no tempo. Não se tratava mais

do antigo Will Stanton de alguns dias atrás. Sabia que,

agora e sempre, habitaria numa escala de tempo diferente

daquela vivida por todos que conhecia e amava... Mas

conseguiu parar de pensar nessas coisas, mesmo naquelas

duas figuras invasoras e ameaçadoras das Trevas. Pois era

Natal, uma época que sempre foi mágica, para ele e para

todos no mundo. Esta era uma festa esplendorosa e

reluzente e, enquanto seu encanto estivesse sobre o

mundo, o círculo encantado de sua família e lar estariam

protegidos contra qualquer invasão externa.

No interior da casa, a árvore cintilava e brilhava, a

música de Natal pairava no ar junto com os aromas

picantes da cozinha. E na ampla lareira da sala de estar, a

grande lenha de Yule retorcida bruxuleava e flamejava

enquanto queimava suavemente. Will deitou-se de costas

no tapete da lareira, olhando para a fumaça subindo pela

chaminé, e ficou repentinamente sonolento. James e Mary

também estavam tentando não bocejar, e mesmo Robin já

parecia ter pálpebras pesadas.

— Ponche demais — disse James, enquanto seu irmão

se estendia pelo espaço desocupado da poltrona.

— Cai fora! — disse Robin amavelmente.

— Quem quer torta de carne? — perguntou a sra.

Stanton, carregando uma enorme bandeja trazendo

canecas com chocolate quente.

— James já comeu seis — disse Mary de forma

afetada mostrando desaprovação. — No Solar.

Page 187: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Agora são oito — disse James, com uma torta em

cada mão. — Ora!

— Você vai engordar — disse Robin.

— Melhor do que já ser gordo — respondeu James,

com a boca cheia, olhando para Mary, cuja forma

rechonchuda recentemente se tornara sua preocupação

mais desalentadora. Mary ficou boquiaberta, depois a

fechou, avançando sobre ele e fazendo um som de rosnado.

— Ei, ei, ei — disse Will sepulcralmente do chão. —

Boas criancinhas nunca brigam no Natal. — E visto que

Mary se encontrava irresistivelmente perto dele, ele a

agarrou pelo calcanhar. Ela caiu sobre ele, uivando

alegremente.

— Cuidado com o fogo — disse a sra. Stanton, por

força do hábito adquirido pelos anos.

— Ei — disse Will, quando sua irmã o socou no

estômago, rolando para longe de seu alcance. Mary parou

e ficou olhando para ele com curiosidade. — Por que raios

você tem tantas fivelas em seu cinto? — questionou ela.

Will puxou seu pulôver apressadamente para baixo,

escondendo o cinto, mas era tarde demais: todos já tinham

visto. Mary estendeu o braço e puxou o pulôver para cima

novamente.

Page 188: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Que coisas engraçadas. O que são?

— Apenas um ornamento — disse Will bruscamente.

— Eu as fiz num trabalho em metal da escola.

— Eu nunca vi você lá — disse James.

— Você nunca olhou então.

Mary cutucou com um dedo o primeiro circulo no

cinto de Will e puxou a mão de volta com um gritinho. —

Isso me queimou! — gritou.

— Muito provável — disse a mãe deles. — Will e seu

cinto, ambos estão perto do fogo. E logo vocês dois estarão

lá dentro se continuarem rolando desse jeito. Venham

agora, é hora da bebida de véspera de Natal, da torta de

carne de véspera de Natal... e de irem para a cama na

véspera de Natal.

Will ficou de pé rapidamente, agradecido. — Eu

pegarei meus presentes enquanto o chocolate esfria um

pouco.

— Eu também. — Mary o seguiu. Nas escadas ela

disse:

— Aquelas coisas de fivela são bonitas. Você faria

uma para mim para um broche no próximo semestre?

— Acho que sim — disse Will, e sorriu para si mesmo.

A curiosidade de Mary nunca foi algo para se preocupar:

sempre levava ao mesmo lugar.

Saíram ruidosamente para os respectivos quartos e

desceram carregados de pacotes que deveriam ser

acrescentados ã crescente pilha já embaixo da árvore. Will

estivera tentando com esforço não olhar para aquela

Page 189: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

montanha mágica de presentes desde que haviam chegado

da cantata natalina, mas era arduamente difícil,

especialmente desde que ele pôde ver uma caixa

gigantesca etiquetada com um nome que claramente

começava com W. Quem mais começaria com W, afinal...?

Forçou-se a ignorar e resolutamente empilhou seus

próprios pacotes em um espaço ao lado da árvore.

— Você está olhando, James! — gritou Mary, atrás

dele.

— Não estou — disse James. Depois confirmou,

porque era véspera de Natal. — Bem, sim. Eu acho que

sim. Desculpe-me. — E Mary ficou tão espantada que

colocou todos os seus embrulhos em silêncio, incapaz de

pensar em algo para dizer.

Na noite de Natal, Will sempre dormia com James. As

camas iguais ainda estavam no quarto de James desde a

época que precedia a mudança de Will para o sótão de

Stephen. A única diferença agora era que seu irmão havia

mantido a antiga cama de Will empilhada com almofadas

de arte abstrata, referindo-se a isto como "minha chaise

longue". Ambos sentiam que havia alguma coisa sobre

vésperas de Natal que exigia companhia; alguém precisava

de outro para sussurrar, durante os momentos de sonho

caloroso e lindo entre o pendurar a meia vazia na

extremidade da cama e cair no agradável esquecimento

que floresceria para uma maravilhosa manhã de Natal.

Enquanto James respingava água no banheiro, Will

tirou seu cinto, afivelou o terceiro Signo e o colocou

Page 190: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

debaixo de seu travesseiro. Parecia prudente, mesmo

sabendo, sem dúvida, que nada ou ninguém o perturbaria

ou a seu lar durante a noite. Naquela noite, talvez, pela

última vez, ele era um menino comum novamente.

Partes de música e o suave rumor de vozes eram

ouvidos do andar de baixo. Em um ritual solene, Will e

James enrolaram suas meias de Natal sobre a ponteira da

cama: meias marrons preciosas, mas desprovidas de

beleza, feitas de uma material grosso e macio, e que foram

usadas por sua mãe há um tempo distante inimaginável e

deformadas agora pelos anos de serviços como sacola de

Natal. Quando ficavam cheias, era impossível se manter

por causa do peso; então, na manhã seguinte, seriam

descobertas acomodadas magnificamente aos pés da cama.

— Aposto que eu sei o que a mamãe e o papai vão

dar pra você — disse James baixinho. — Aposto que é...

Page 191: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Não ouse — sussurrou Will, e seu irmão tentou

conter o riso afundando-se sob os cobertores.

— Boa noite, Will.

— Boa noite. Feliz Natal.

— Feliz Natal.

E aconteceu como sempre, quando ele se deitou

alegremente como um caracol em seu aconchegante

invólucro, prometeu a si mesmo que permaneceria

acordado, até, até....

... até que acordasse, no quarto mal iluminado pela

manhã, com a luz tênue surgindo furtivamente ao redor do

quadrado escuro da janela fechada pela cortina, e visse e

ouvisse nada além de um espaço encantado cheio de

expectativa, pois todos os seus sentidos se concentravam

na forte sensação, sobre e ao redor de seus pés cobertos,

de estranhos estalidos, cantos e formas que não estavam

ali quando caiu adormecido. E já era dia de Natal.

DÍA DE NATAL 

Quando Will se ajoelhou ao lado da árvore de Natal e

rasgou o papel colorido que embrulhava a gigante caixa

etiquetada com o nome "Will", a primeira coisa que

descobriu foi que não se tratava de uma caixa, mas de um

caixote de madeira. Enquanto isso, um coro natalino soava

distante e alegre do rádio na cozinha; tratava-se da meia

de Natal, antes do encontro para o café-da-manhã da

família, quando cada membro abria apenas um de seus

Page 192: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

"presentes da árvore". O restante da reluzente pilha

permaneceria lá até o jantar, torturando de alegria.

Will, sendo o mais jovem, foi o primeiro. Ele foi

direto até a caixa, em parte porque parecia tão

impressionantemente larga e em parte porque suspeitava

que tivesse sido enviada por Stephen. Logo descobriu que

alguém havia retirado os pregos da tampa de madeira, de

modo que ele pudesse abri-la com facilidade.

— Robin retirou os pregos, e Barb e eu colocamos o

papel por cima — disse Mary sobre seu ombro, toda

impaciente. — Mas não olhamos dentro dela. Abre logo,

Will, abre logo.

Ele retirou a tampa. — Está cheia de folhas secas! Ou

juncos, ou outra coisa.

— Folhas de palmeira — disse seu pai, olhando. —

Para embalar, eu suponho. Cuidado com os dedos, elas

podem ter as bordas afiadas.

Will jogou fora um punhado das folhagens

sussurrantes, até que a primeira forma rígida de algo

começou a aparecer. Tinha um estranho formato. Tinha um

aspecto encurvado, fino, marrom, liso como um galho e

parecia ser feito de um tipo duro de papel machê. Era um

chifre, parecido e diferente ao mesmo tempo de um chifre

de cervo. Will parou de repente. Um sentimento forte e

totalmente inesperado o envolveu assim que tocou o

objeto. Não era um sentimento que já havia sentido na

presença de seus familiares antes; era uma mistura de

excitação, segurança e alegria que o envolvia sempre que

Page 193: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

se encontrava com um dos Anciãos.

Viu um envelope saindo do caixote ao lado do chifre

e o abriu. Aquele papel continha o exato cabeçalho do

navio de Stephen:

Querido Will, Feliz aniversário. Feliz Natal. Eu

sempre jurei não conciliar os dois, não foi? E agora,

estou fazendo isso. Eu não sei se você

compreenderá; especialmente depois que ver o

presente. Mas talvez sim. Você sempre foi um

pouco diferente de todos os outros. Não estou

dizendo idiota! Apenas diferente.

Foi assim, eu estava na parte velha de Kingston certo

dia, durante o carnaval. Carnaval nestas ilhas é uma época

muito especial de grande diversão, com ecos repercutindo

por um longo, longo caminho. Bem, eu me misturei no meio

de uma folia, com pessoas rindo e bandas fazendo o som de

aço tilintando, e dançarinos vestidos com fantasias muito

loucas, e então eu conheci um homem velho.

Era um homem velho, bastante impressionante, com

a pele muito escura e cabelos muito brancos, e ele parecia

que tinha surgido do nada; daí, ele me levou pelo braço e

tirou-me da agitação. Eu nunca o tinha visto antes em

minha vida, de qualquer maneira. Tenho certeza disto. Mas

ele olhava para mim e dizia: "Você é Stephen Stanton, da

Marinha de Sua Majestade. Tenho algo pra você. Não para

você mesmo, mas para seu irmão mais novo, o sétimo filho.

Você enviará para ele como um presente, por seu

Page 194: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

aniversário deste ano e pelo Natal, as duas datas

conciliadas em uma. Será um presente seu, irmão dele, e

ele saberá o que fazer com isso no devido tempo, embora

você não saiba".

Foi tudo tão inesperado que eu fiquei desnorteado.

Tudo o que eu pude dizer foi: "Mas quem é você? Como me

conhece?" e o velho somente me olhou novamente com um

olhar sombrio e intenso que parecia me atravessar por

inteiro, e disse: "Eu conheceria você de qualquer maneira.

Você é irmão de Will Stanton. Há um olhar que nós Anciãos

temos. Nossas famílias têm algo disto também".

E foi isso que aconteceu, Will. Ele não disse nenhuma

outra palavra. Estas últimas não fazem qualquer sentido,

eu sei, mas foi o que ele disse. Depois, ele apenas se moveu

para dentro da folia de carnaval e partiu novamente; e

quando voltou estava carregando... vestindo, na realidade,

a coisa que você encontrará nesta caixa.

Então, estou aqui enviando isto pra você. Do jeito

que me pediram. Parece loucura, e eu consigo imaginar um

monte de coisas de que você gostaria mais. Mas aí está.

Havia algo de extraordinário sobre aquele velho, e eu

simplesmente tive que fazer o que ele me solicitou.

Espero que goste de seu presente maluco,

companheiro. Pensarei em você, nas duas datas.

Com. amor, Stephen 

Lentamente Will dobrou a carta e a colocou de volta

no envelope. "Um olhar que nós Anciãos temos..." Então o

círculo se estende ao redor de todo o mundo. Mas é claro

Page 195: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

que sim; não teria razão de ser de outra forma. Ele estava

feliz por Stephen participar daquele arranjo; estava certo,

de alguma maneira.

— Ah, anda logo, Will! — pedia Mary com

curiosidade, agitando seu penhoar. — Abra, abra!

Will subitamente percebeu que sua tradicional e

preocupada família permanecia aguardando,

pacientemente imóvel, esperando por cinco minutos

enquanto ele lia a carta. Utilizando a tampa do caixote

como uma bandeja, começou a retirar apressadamente

mais e mais folhas de palmeira até que finalmente o objeto

ficasse visível. Ao retirá-lo, admirou-se quando sentiu o

peso, e todos prenderam a respiração.

Era uma cabeça gigante de carnaval, brilhante e

grotesca. As cores eram claras e grosseiras, as feições

audaciosamente feitas e facilmente reconhecíveis, tudo

feito da mesma substância lisa, luminosa de um papel

machê ou um tipo de madeira sem veios. E não era a

cabeça de um homem. Will nunca havia visto nada como

aquilo antes. A cabeça de onde surgiam os chifres tinha o

formato da cabeça de um veado, mas as orelhas ao lado

dos chifres eram de cachorro ou lobo. E a face era a face

de um humano, mas com os olhos rodeados por penas de

um pássaro. Tinha um nariz reto e forte de um humano, a

boca firme de um humano, disposta em um leve sorriso.

Não havia puramente muito mais de um ser humano

naquela coisa. O queixo era barbado, mas a barba tinha tal

formato que poderia facilmente ser tanto do queixo de um

Page 196: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

bode ou cervo como de um homem. A face poderia ser vista

como assustadora. Quando todos ofegaram, o som que

Mary deixou escapar e apressadamente abafou foi algo

mais parecido com um grito. Mas Will sentia que o efeito

do objeto dependia de quem estivesse olhando pra ele. A

aparência não significava nada. Não era feio nem bonito,

nem assustador nem divertido.

Era uma coisa feita para provocar profundas reações

da mente. Era mesmo uma coisa de Anciãos.

— Meu Deus! — disse seu pai.

— É um tipo engraçado de presente — disse James.

Sua mãe não disse nada.

Mary não disse nada, mas afastou-se um pouco.

— Lembra alguém que eu conheço — disse Robin,

rindo. Paul não disse nada.

Gwen não disse nada.

Max falou baixinho: — Olha aqueles olhos!

Bárbara disse: — Mas para que serve isso?

Will deslizou os dedos pela face estranha e grande.

Demorou apenas um instante para encontrar o que estava

procurando: estava quase imperceptível, a menos que

alguém estivesse esperando encontrá-lo, esculpido na

fronte, entre os chifres. A impressão de um círculo,

quartejado pela cruz.

Então disse: — É uma cabeça de carnaval das índias

Ocidentais. É antiga. É especial. Stephen a encontrou na

Jamaica.

James estava ao seu lado agora, olhando o interior da

Page 197: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

cabeça.

— Há um tipo de armação de arame que fica sobre os

ombros. E uma fenda onde a boca está um pouquinho

aberta. Eu acho que você olha através disto. Vamos lá,

Will, tente colocá-la.

Ergueu-a sobre a cabeça para passá-la sobre os

ombros de Will que se afastou, como se alguma parte de

sua mente lhe desse um silencioso aviso.

— Não agora — disse ele. — Outra pessoa deve abrir

seu presente.

E logo Mary esqueceu a cabeça e sua reação a ela,

no feliz instante em que descobriu que era sua vez. Ela

mergulhou na pilha de presentes perto da árvore, e as

alegres descobertas recomeçaram.

Um presente cada; eles estavam quase terminando, e

já estava quase na hora do café-da-manhã, quando soou

uma batida na porta. A sra. Stanton que estava prestes a

alcançar seu pacote, deixou o braço cair e olhou para cima

inexpressivamente.

— Quem poderia ser uma hora dessas?

Todos fitaram um ao outro, e então para a porta,

como se ela pudesse falar. Estava tudo errado, como o

compasso de uma música mudando no meio da melodia.

Ninguém nunca os visitava naquela hora no dia do Natal,

não estava no esquema.

— Será que... — disse o sr. Stanton, com uma leve

suspeita despertando em sua voz; ele enfiou os pés com

mais firmeza em seus chinelos, levantou e foi abrir a porta

Page 198: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

da frente.

Eles ouviram a porta se abrir. As costas dele

preenchiam o espaço e os impedia de ver o visitante, mas a

voz se ergueu em óbvio contentamento. — Meu prezado

amigo, como é bom ver você... entre, entre... — E quando

ele se virou em direção à sala de estar, estava segurando

uma pequena embalagem em uma das mãos que não tinha

sido vista antes, definitivamente um produto que chegava

com aquela figura alta que agora surgia na soleira da

porta, seguindo seu pai. O sr. Stanton estava radiante e

feliz, ocupado com as apresentações: — Alice, querida, este

é o sr. Mitothin... tão gentil, fazer todo esse caminho no

Natal só para entregar... não deveria ter tomado...

Mitothin, meu filho Max, minha filha Gwen.... James,

Bárbara...

Will ouvia sem atenção aquela cordialidade de

adultos; somente quando ouviu a voz do estranho que o

olhou atentamente. Havia algo familiar naquela voz grave e

levemente nasalada que revelava certo sotaque, ao repetir

cuidadosamente os nomes.

— Como tem passado, sra. Stanton.... Meus

cumprimentos da estação, Max, Gwen...

Então, Will viu o perfil do rosto, os cabelos

castanhos-avermelhados um tanto longos, e ficou imóvel.

Era o Cavaleiro. Esse tal de sr. Mitothin, o amigo de seu

pai de sabe Deus onde, era o Cavaleiro Negro de algum

lugar fora do Tempo.

Will agarrou a coisa mais próxima de sua mão, um

Page 199: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

casaco jovial que tinha sido um presente da Jamaica

enviado por Stephen para sua irmã Bárbara, e o colocou

rapidamente sobre a cabeça de carnaval para ocultá-la.

Quando se virou novamente, o Cavaleiro erguia a cabeça

para olhar com mais detalhes pela sala e o viu. Fixou Will

em um aberto desafio triunfante, revelando um pequeno

sorriso em seus lábios. O sr. Stanton fez um sinal,

acenando com a mão.

— Will, venha cá um minuto... meu filho mais novo,

sr... Instantaneamente, Will se tornou um Ancião

furioso, tão furioso que não parou para pensar sobre o que

deveria fazer. Ele podia sentir cada centímetro de si

mesmo, como se tivesse aumentado de tamanho, ficando

três vezes maior. Estendeu a mão direita com os dedos

esticados em direção à sua família, e os viu presos no

tempo, paralisados de todos os movimentos. Como peças

de cera, eles ficaram rígidos e imóveis pela sala.

— Como ousa vir aqui? — gritou ele para o Cavaleiro.

Os dois ficaram se encarando pela sala, as únicas

coisas móveis e viventes no lugar: nenhum humano se

mexia, os ponteiros do relógio sobre a cornija da lareira

não se movia, e mesmo as chamas bruxuleantes do fogo

não consumiam as lenhas que queimavam.

— Como ousa? No Natal, na manhã de Natal! Saia

daqui! — Era a primeira vez em sua vida que ele sentia

tanta raiva, e isso não era nada agradável, mas ele se

sentia indignado com a ousadia das Trevas de interromper

o ritual mais precioso de sua família.

Page 200: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

O Cavaleiro disse suavemente: — Contenha-se. — Na

Linguagem Antiga, seu sotaque era muito mais acentuado.

Ele sorria para Will sem qualquer nuance de mudança em

seus frios olhos azuis. — Eu posso cruzar a sua soleira e

passar por seu azevinho, já que fui convidado. Se pai, de

boa-fé, convidou-me a entrar pela porta. E ele é o senhor

desta casa, e não há nada que você possa fazer sobre isso.

— Sim, há sim — disse Will. Olhando fixamente para

o sorriso confiante do Cavaleiro, concentrou todos os seus

poderes em um esforço para ler a sua mente, descobrir o

que ele pretendia fazer ali. Mas acabou se deparando com

muro negro de hostilidade, intransponível. O menino

achava que isso não deveria ser possível e ficou chocado.

Procurou irado em sua memória palavras de destruição

com as quais, em último caso, mas somente em último caso

mesmo, um Ancião poderia quebrar o poder das Trevas. E

o Cavaleiro Negro riu.

— Ah, não, Will Stanton — disse ele tranqüilamente.

— Isso não funcionará. Você não pode usar armas desse

tipo aqui, a menos que você deseje lançar toda a sua

família fora do Tempo. — Ele olhou sarcástico para Mary,

que permanecia imóvel perto dele, boquiaberta, presa fora

da vida, no meio de uma frase que dizia ao seu pai.

— Isto seria uma pena — disse o Cavaleiro. Então,

voltou a olhar para Will, e o sorriso desapareceu de seu

rosto como se o tivesse lançado fora, e seus olhos se

estreitaram. — Seu jovem tolo, você acha que por causa de

todos os seus Dons da Magia pode me controlar? Coloque-

Page 201: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

se no seu lugar. Você não é um dos mestres ainda. Você

pode fazer muitas coisas tão bem quanto pode inventar,

mas os altos poderes não são para seu senhorio ainda. E eu

também não.

— Você tem medo dos meus mestres — disse Will de

repente, sem saber muito bem o que queria dizer, mas

sabendo que era uma verdade.

O rosto pálido do Cavaleiro enrubesceu. E ele falou

baixinho: — As Trevas estão se rebelando, Ancião, e desta

vez nós não deixaremos que alguma coisa atrapalhe o

nosso caminho. Chegou a nossa hora de nos rebelarmos, e

os próximos doze meses verão finalmente o nosso

estabelecimento. Diga aos seus mestres. Diga-lhes que

nada poderá nos deter. Diga-lhes que todos os Artefatos de

Poder que eles esperam possuir, nós os tiraremos deles, o

graal, a harpa e os Signos. Nós quebraremos o seu Círculo

antes mesmo que possa ser reunido. E nada poderá deter

as Trevas de se rebelarem.

As últimas palavras soaram penetrantes em um grito

alto de triunfo, e Will estremeceu. O Cavaleiro olhou-o,

seus olhos pálidos cintilavam; então, desdenhosamente, ele

estendeu suas mãos em direção aos Stanton, e ao mesmo

tempo eles voltaram à vida, e a animação do Natal também

voltou; e não havia nada que Will pudesse fazer.

— ... pertence essa caixa? — continuava Mary.

— Mitothin, este é o nosso Will. — O sr. Stanton

colocou a mão sobre os ombros de Will.

Will cumprimentou friamente: — Como tem passado?

Page 202: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Os cumprimentos da estação para você, Will —

disse o Cavaleiro.

— Desejo-lhe o mesmo que me desejar — disse Will.

— Muito lógico — disse o Cavaleiro.

— Muito pomposo, se quiser saber minha opinião —

disse Mary, sacudindo a cabeça. — Ele é assim, algumas

vezes. Papai, a quem pertence essa caixa, que ele trouxe?

— Sr. Mitothin, não "ele" — corrigiu seu pai,

automaticamente.

— Para sua mãe, uma surpresa — disse o Cavaleiro.

— Algo que não estava pronto ontem à noite para que seu

pai pudesse trazer para casa.

— Do senhor?

— Do papai, eu presumo — disse a sra. Stanton,

sorrindo para seu marido. Ela seu virou para o Cavaleiro.

— Gostaria de tomar o café-da-manhã conosco, sr.

Mitothin?

— Ele não pode — disse Will. —- Will!

— Ele vê que estou com pressa — disse o Cavaleiro

educadamente. — Não, eu lhe agradeço, sra. Stanton, mas

estou indo passar o dia com uns amigos e não posso

cancelar.

Mary perguntou: — Onde o senhor está indo?

— Ao norte daqui... que cabelos longos você tem,

Mary. Muito bonitos.

— Obrigada — ela disse satisfeita, agitando os longos

cabelos para trás de seus ombros. O Cavaleiro estendeu a

mão e removeu delicadamente alguns fios soltos na manga

Page 203: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

de sua roupa. — Permita-me — disse cordialmente.

— Ela está sempre os exibindo — disse James

calmamente. Mary colocou a língua para fora.

O Cavaleiro olhou novamente a sala. — Esta é uma

árvore magnífica. É do local?

— É uma árvore Real— disse James. — Do Great

Park.

— Venha e veja! — Mary agarrou a mão do Cavaleiro

e o puxou pela sala. Will mordeu os lábios e

deliberadamente limpou todos os pensamentos sobre a

cabeça de carnaval de sua mente concentrando-se

fervorosamente sobre o que ele comeria no café-da-manhã.

Estava certo de que o Cavaleiro poderia ler muito bem a

sua mente, mas talvez não aqueles pensamentos

enterrados lá no fundo dela.

Mas não havia perigo. Embora o enorme caixote

vazio e sua pilha de embrulhos exóticos estivessem ao lado

dele, o Cavaleiro, rodeado pelos Stanton, apenas olhava

obedientemente e admiravelmente para os enfeites da

árvore. Parecia, em particular, envolvido com as

minúsculas iniciais talhadas da caixa do fazendeiro

Dawson.

— Lindo — ele disse, de forma ausente, girando a

peça gêmea do M de Mary, que estava de cabeça para

baixo, conforme Will havia notado.

Então, ele se voltou para o sr. e sra. Stanton. — Eu

realmente preciso ir, e vocês devem tomar seu café-da-

manhã. Para mim, Will parece bastante faminto. — Havia

Page 204: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

um lampejo de malícia enquanto eles se entreolhavam, e

Will soube que agira certo ao limitar a visão das Trevas.

— Estou imensamente grato a você, Mitothin — disse

o sr. Stanton.

— Sem problemas, você estava bem no meu caminho.

Cumprimentos da estação para todos vocês. — Com uma

salva de despedidas, ele se foi, atravessando o caminho a

passos largos. Will lamentou que sua mãe houvesse

fechado a porta antes que tivesse a chance de ouvir o

motor de um carro ligado. Ele não achava que o Cavaleiro

chegara ali de carro.

— Bem, minha querida — disse o sr. Stanton, dando

um beijo em sua esposa e entregando-lhe o embrulho. —

Aqui está o seu primeiro presente da árvore. Feliz Natal!

— Oh — exclamou a mãe, quando abriu a

embalagem. — Oh, Roger!

Will se espremeu entre seus alvoroçados irmãos para

dar uma olhadinha. Acomodado em veludo branco, em uma

caixa marcada com o nome da loja de seu pai, encontrava-

se o anel antigo de sua mãe: o anel que ele tinha visto o sr.

Stanton examinar para conferir as pedras perdidas hã

algumas semanas; o anel que Merriman viu na imagem que

ele extraíra da mente de Will. Mas, cercando o objeto,

havia outra coisa: uma pulseira produzida como uma

ampliação do anel, exatamente igual. Uma faixa de ouro,

fixada com três diamantes no centro, três rubis de cada

lado, e gravada com um modelo estranho de círculos,

linhas e curvas ao redor dela. Will examinou a jóia,

Page 205: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

desejando saber por que o Cavaleiro quisera ter aquele

objeto nas mãos. Pois, seguramente, isso deveria estar por

trás de sua visita naquela manhã; nenhum Senhor das

Trevas precisava entrar em qualquer casa somente para

ver o que havia dentro dela.

— Foi o senhor que fez, pai? — perguntou Max. —

Um trabalho adorável.

— Obrigado — agradeceu seu pai.

— Quem era aquele homem que o trouxe? —

perguntou Gwen com curiosidade. — Ele trabalha com o

senhor? Que nome engraçado.

— Ah, ele é um negociante — disse o sr. Stanton. —

Precisamente, de diamantes. Um camarada estranho, mas

muito agradável. Eu o conheço já há alguns anos, eu acho.

Nós compramos muitas pedras de certas pessoas, inclusive

estas. — Ele tocou suavemente na pulseira. — Eu precisei

sair mais cedo ontem enquanto o jovem Jeffrey estava

ainda fixando um dos desenhos... e aconteceu que Mitothin

estava na loja e se ofereceu para deixá-lo aqui para poupar-

me de voltar. Como ele disse, passaria por aqui nesta

manhã de qualquer maneira. Ainda assim, foi muita

gentileza, ele não precisava se oferecer.

— Muito amável — disse sua esposa. — Mas você é

mais amável. E achei linda.

— Estou com fome — disse James. — Quando iremos

comer?

Somente depois que os ovos e bacon, torradas e

chás, geléias e mel acabaram, e os destroços dos primeiros

Page 206: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

prementes abertos liberaram o caminho, Will foi perceber

que a carta de Stephen não se encontrava em lugar

nenhum. Procurou pela sala de estar, verificou nos

pertences de cada um, engatinhou no chão ao redor da

árvore e da pilha de presentes ainda sem abrir, mas não

estava lá. Poderia, é claro, ter sido jogada fora sem

perceber, por engano como papel de embrulho; tais coisas

às vezes já aconteceram nos tumultuados dias de Natal de

sua casa.

Mas Will achava que sabia o que havia acontecido

com a carta. E ele se perguntava se, afinal, havia sido a

oportunidade de examinar o anel de sua mãe que trouxera

o Cavaleiro Negro à sua casa, ou a busca por alguma outra

coisa.

* * * 

Pouco depois, eles perceberam que a neve estava

caindo novamente. Suave mas inexoravelmente, os flocos

caíam trêmulos ao chão, sem titubear. As pegadas do sr.

Mitothin, do lado de fora, no caminho da porta até o carro,

foram logo encobertas como se nunca tivessem estado ali.

Os cães, Raq e Ci, que pediram para sair antes que a neve

começasse, voltaram humildes arranhando a porta dos

fundos.

— Sempre gostei do Natal todo branco — disse Max,

olhando morosamente para fora —, mas isso é ridículo.

— Extraordinário — disse seu pai, olhando sobre os

Page 207: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ombros. — Eu nunca a vi dessa forma no Natal, em toda a

minha vida. Se mais neve cair ainda hoje, realmente haverá

problemas no transporte por todo o sul da Inglaterra.

— Era nisso que eu estava pensando — disse Max. —

Eu deveria ir para Southampton depois de amanhã para

ficar com Deb.

— Oh, ai, ai — exclamou James, abraçando o tórax.

Max olhou-o.

— Feliz Natal, Max — disse James.

Paul chegou ruidosamente na sala de estar calçado

com botas e abotoando seu sobretudo. — Com ou sem

neve, estou saindo para tocar o sino. Eles tocarão os sinos

da torre e não esperarão ninguém. Algum de vocês, seus

pagãos, cogitam ir à igreja nesta manhã?

— Os rouxinóis irão — disse Max, olhando para Will e

James, que dentre eles constituíam um terço do coro da

igreja. — Isso já conta pra você, não acha?

— Se você fosse apresentar seu ato da temporada —

disse Gwen, passando adiante — mas com algumas tarefas

úteis como descascar as batatas... Então talvez a mamãe

possa ir. Ela realmente gosta de ir, quando pode.

O pequeno grupo discreto que finalmente saiu na

neve cada vez mais espessa consistia de Paul, James, Will,

a sra. Stanton e Mary, que estava, conforme James havia

dito indelicadamente, mas falando a verdade,

provavelmente mais interessada em evitar as tarefas

domésticas do que em fazer sua devocional. Eles se

arrastaram ao longo da estrada, os flocos de neve agora

Page 208: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

caíam rigorosamente e começavam a queimar suas

bochechas. Paul saiu na frente para se juntar aos outros

sineiros, e logo as notas acrobáticas dos seis sinos antigos

e sonoramente agradáveis que pendiam na pequena torre

quadrada começaram a soar pelo mundo cinzento e

rodopiante ao redor deles, trazendo a alegria de volta ao

Natal. Os ânimos de Will ressurgiram um pouco com as

badaladas, mas não muito: a presença intensa e persistente

da neve o incomodava. Ele não conseguia afastar a terrível

suspeita de que caía como uma precursora de alguma

outra coisa, como uma mensageira das Trevas. Ele enfiou

as mãos dentro dos bolsos de sua jaqueta de couro de

cabra, e a ponta dos dedos de uma mão circulavam pela

pena da gralha, esquecida ali desde a noite terrível da

véspera do solstício de inverno, antes do seu aniversário.

Na rua coberta de neve, quatro ou cinco carros

encontravam-se estacionados do lado de fora da igreja.

Geralmente, as manhãs de Natal contavam com mais

veículos, mas poucos habitantes que foram vistos

caminhando ao ar livre haviam optado por desbravar

aquele nevoeiro branco. Will observava os flocos brancos e

espessos que se acomodavam determinados e indissolúveis

sobre a manga de sua jaqueta; estava muito frio. Mesmo

dentro da pequena igreja, os flocos de neve continuavam a

cair obstinadamente e demoravam muito para derreter. Ele

seguiu James e um punhado de outros coristas até o

estreito corredor do vestiário, onde puseram com

dificuldade a sobrepeliz. Então, os sinos se fundiram ao

Page 209: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

início do culto, para indicar a procissão dos garotos pelo

corredor até a galeria no fundo da pequena nave da igreja.

De lá, era possível ver todas as pessoas, e estava evidente

que a igreja de St. James the Less não estava lotada

naquele Natal, mas quase cheia.

A liturgia da Oração Matutina, como acontecia nesta

Igreja da Inglaterra, pela Autoridade do Parlamento, no

segundo ano do reinado do Rei Eduardo VI, foi iniciada

nobremente segundo os arranjos natalinos, sendo

conduzida pelo teatral reverendo que, por meio de sua voz

de baixo-barítono, a entoou sem qualquer

constrangimento.

— Oh! Vós, Friúme e Frio, bendizei ao Senhor,

louvai-O, exaltai-O para sempre — cantava Will, refletindo

que o sr. Beaumont havia mostrado certa ironia ao

escolher aquele cântico.

— Oh! Vós, Gelo e Neve, bendizei ao Senhor, louvai-

O, exaltai-O para sempre.

De repente, Will notou que estava tremendo, mas não

por causa das palavras, nem por qualquer sensação de frio.

Sua cabeça girava; segurou firme na beirada da galeria por

um momento. A música parecia se tornar, por um breve

momento, horrendamente dissonante, irritante aos

ouvidos. Então, ela sumiu novamente e continuou como

antes, deixando Will trêmulo e com calafrios.

— Oh! Vós, Luz e Trevas — cantava James, olhando

para ele... você está bem? Sente-se... exaltai-O para

sempre.

Page 210: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Mas Will balançava a cabeça impacientemente e,

durante o restante do culto, manteve o vigor, cantou,

sentou-se, ou ajoelhou-se, e convenceu a si mesmo que não

acontecera nada de errado, apenas uma vaga sensação de

torpor, trazida pelo que seus irmãos mais velhos gostavam

de chamar de "excesso de animação". E então a estranha

impressão de iniqüidade e desarmonia voltou.

Aconteceu só mais uma vez, bem no final do culto. O

sr. Beaumont estava clamando a oração de São

Crisóstomo: "... Tu que prometeste, que quando dois ou

três estivessem reunidos era teu nome, Tu os

atenderias...". O ruído irrompeu repentinamente na mente

de Will, um uivo horrível e agudo no lugar das cadências

conhecidas. Ele já tinha ouvido aquilo antes. Era o som das

Trevas assediando, que ele ouvira do lado de fora do Salão

do Solar onde estivera com Merriman e a Dama, em algum

século desconhecido. Mas numa igreja? Perguntava-se

Will, o corista anglicano, incrédulo: você com certeza está

sentido isso dentro da igreja? E respondeu Will, o Ancião,

tristemente: qualquer igreja de qualquer região está

vulnerável aos ataques deles, pois lugares como estes são

os locais onde os homens se dedicam aos assuntos da Luz e

das Trevas. Ele arqueou a cabeça entre os ombros a ponto

de ser tocado pelo próprio nariz, e então tudo passou

novamente, e a voz do reverendo soava solitária, como

antes.

Will olhou rapidamente à sua volta, mas estava claro

que nenhuma outra pessoa mais havia notado alguma coisa

Page 211: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

errada. Pelo desdobramento de seu suplício, ele segurou

firme os três Signos em seu cinto, mas não sentia calor

nem frio sob seus dedos. Para o poder de alerta dos Signos,

uma igreja seria um tipo de terra de ninguém; já que

nenhum mal poderia de fato entrar em suas paredes, por

isso, nenhum aviso contra o mal seria necessário. Porém,

se o mal estivesse rondando do lado de fora...

O culto acabou naquele momento e todos cantavam

alto "Oh Vinde Fiéis" desejando feliz Natal, enquanto o

coral descia da galeria e subia até o altar. Então, a bênção

do sr. Beaumont se estendeu sobre as cabeças da

congregação: "... que o amor de Deus e a comunhão do

Espírito Santo...". Mas as palavras não puderam trazer paz

ao coração de Will, pois ele sabia que alguma coisa estava

errada, alguma coisa surgindo iminente das Trevas,

alguma coisa esperando, lá fora, e quando chegasse o

momento, ele teria que encarar isto sozinho, sem estar

fortalecido.

Observava todos caminhando sorridentes para fora

da igreja, sorrindo e acenando uns para os outros enquanto

recolhiam suas sombrinhas e subiam a gola do casaco para

se proteger da neve caindo com um rodamoinho. Ele avisou

o jovial sr. Hutton, o regente aposentado, girando a chave

do carro, abraçando a pequenina srta. Bell, a antiga

professora, e oferecendo-lhe calorosamente uma carona

para casa; e atrás dela a jovial sra. Hutton, uma mulher

enorme num casaco peludo, fazendo o mesmo com a

franzina sra. Pettigrew, a agente do correio. Diversas

Page 212: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

crianças do vilarejo deixaram suas mães adornadas com

chapéu para correr em disparada para fora a fim de fazer

bolas de neve, ansiosas pelo peru de Natal. A lúgubre sra.

Horniman parou aturdida perto da sra. Stanton e Mary,

mostrando-se ocupada em prever algum destino fatal. Will

viu Mary, tentando não rir, recorrer à sra. Dawson e sua

filha casada que deixava o filho de cinco anos de idade

pavoneando alegremente com suas brilhantes botas novas

de vaqueiro.

Os componentes do coral, já preparados e

agasalhados, começavam a sair também com gritos de

"Feliz Natal" e "Vejo o senhor no Domingo, reverendo!"

para o sr. Beaumont, que realizaria somente aquele culto

hoje e o restante em suas outras paróquias. O regente,

falando de música com Paul, sorria e acenava vagamente.

A igreja começava a ficar vazia, enquanto Will aguardava

seu irmão. Sentia um arrepio no pescoço, como a

eletricidade que cai fortemente opressiva no ar antes de

uma enorme tempestade. Conseguia sentir isso em todos

os lugares; o ar dentro da igreja estava carregado dessa

energia. O regente, ainda conversando distraidamente,

estendeu a mão e desligou as luzes dentro do templo,

deixando o ambiente escuro, cinzento e frio, com a luz

brilhando através do reflexo propiciado pelos espectadores

da neve situados ã porta. Will, avistando algumas pessoas

se moverem naquela direção, para longe da escuridão,

percebeu que a igreja não estava totalmente vazia. Lá

embaixo, perto da pequena fonte do século 12, avistou o

Page 213: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

fazendeiro Dawson, o Velho George, o filho do Velho

George e John, o ferreiro, com sua esposa silenciosa. Os

Anciãos do Círculo estavam esperando por ele, para apoiá-

lo contra seja lá o que estivesse escondido lá fora. Will se

sentiu fraco por um momento enquanto o alívio era

derramado sobre ele em uma maravilhosa onda de calor.

— Tudo pronto, Will? — perguntou o regente

cordialmente, vestindo seu sobretudo. Ele continuou, ainda

preocupado, falando com Paul. — É claro, eu realmente

concordo que o concerto duplo é um dos melhores. Eu só

gostaria que ele gravasse a suíte desacompanhada de

Bach. Eu o ouvi tocá-la certa vez numa igreja em

Edimburgo, no Festival... maravilhoso.

Paul, com os olhos mais atentos, disse: — Há algo

errado, Will?

— Não — respondeu ele. — Isto é... não. — Estava

tentando pensar desesperadamente em alguma maneira de

levar os dois para fora do templo antes de se aproximar

sozinho da porta.

Mas antes, antes mesmo que qualquer coisa pudesse

acontecer, aconteceu. Pela porta da igreja ele podia sentir

os Anciãos se moverem lentamente em um grupo fechado,

apoiando uns aos outros. Podia sentir uma força muito

resistente naquele momento, muito próxima, por todos os

lados; o ar estava denso; fora do templo, havia destruição e

caos, o coração das Trevas, e ele não conseguia pensar era

nada que pudesse fazer para remediar isto. Então, quando

o regente e Paul se viraram para caminhar pela nave, ele

Page 214: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

viu ambos ficarem imóveis no mesmo instante, e suas

cabeças se ergueram como a cabeça de um cervo em sinal

de alerta. Era tarde demais; a voz das Trevas era tão alta

que mesmos os humanos puderam perceber seu poder.

Paul cambaleou, como se alguém o tivesse

empurrado no peito, e segurou-se num banco procurando

apoio. — O que foi isto? — perguntou ele roucamente. —

Reverendo? Que raios foi isto?

O sr. Beaumont virou-se muito pálido. Havia um

brilho de suor em sua testa; a igreja estava muito fria

novamente. — Nada de mais, eu acho, talvez — disse ele.

— Deus me perdoe. — E ele saiu tropeçando perto da

porta, como um homem lutando através das ondas do mar,

e, inclinando-se levemente, fez um rápido sinal da cruz.

Gaguejava. — Proteja-nos, seus humildes servos, de todos

os ataques de nossos inimigos; pois certamente confiamos

em sua proteção e não temeremos o poder de quaisquer

adversários...

O fazendeiro Dawson falou muito calmamente, mas

com intensidade, ao grupo do lado da porta: — Não,

Reverendo.

O pastor parecia não ouvi-lo. Seus olhos estavam

arregalados, fitando a neve; ele permaneceu transfixado e

tremia como um homem febril; o suor escorria por seu

rosto. Ele conseguiu erguer parcialmente um braço e

apontou para trás de si: — .... a sacristia... — dizia sem

fôlego. — ... o livro, sobre a mesa... exorcismo...

— Pobre e corajoso amigo — disse John Smith na

Page 215: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Linguagem Antiga.

— Esta batalha não é para ele lutar. Provavelmente

ele acha que sim, é claro, estando em sua igreja.

Page 216: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Calma, Reverendo — disse a esposa do ferreiro no

idioma que ele podia entender; a sua voz era suave e

gentil, com o forte sotaque da região. O pastor olhou-a

como um animal assustado, mas naquele instante todo seu

domínio da fala e movimento lhe foram arrancados.

Frank Dawson disse: — Venha aqui, Will.

Lutando contra a barreira das Trevas, Will avançou

lentamente; tocou os ombros de Paul quando passou por

ele, olhando dentro dos olhos confusos da face tão

perturbada e impotente como a do pastor. E disse

suavemente: — Não se preocupe. Logo tudo ficará bem.

Cada um dos Anciãos o tocou calmamente quando se

aproximou do grupo, como se estivessem se unindo a ele; e

o fazendeiro Dawson o segurou pelo ombro, dizendo: —

Nós devemos fazer algo para proteger esses dois, Will, ou

suas mentes irão sofrer sérios danos. Eles não podem

suportar a pressão, as Trevas os enlouquecerão. Você tem

o poder que o resto de nós não tem.

Foi a primeira intimação de que ele poderia fazer

alguma coisa que os outros Anciãos não poderiam, mas não

havia tempo para perguntas; com o Dom da Magia, ele

fechou a mente de seu irmão e do pastor colocando uma

barreira que nenhum poder de qualquer tipo poderia

romper. Tratava-se de um perigoso empreendimento, já

que o realizador era o único que poderia remover a

barreira, e, se alguma coisa lhe acontecesse, os dois

protegidos ficariam como vegetais, incapazes de se

comunicar para sempre. Mas tinham que correr o risco;

Page 217: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

não havia mais nada que pudessem fazer. Os olhos deles se

fecharam suavemente como se caíssem em um sono

profundo e permaneceram bem quietos. Depois de uns

momentos, seus olhos se abriram novamente, mas estavam

tranqüilos e vazios, inconscientes.

— Tudo bem — disse o fazendeiro Dawson. — Agora.

Page 218: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Os Anciãos se posicionaram na porta da entrada do

templo, de braços dados. Ninguém falava uma só palavra.

Ruídos enlouquecidos e turbulências eram ouvidos do lado

de fora; a luz escureceu, o vento uivava e gemia, a neve

chicoteava e rodopiava em suas faces como raspas de gelo

branco. E, repentinamente, as gralhas se amontoaram na

neve, centenas delas, uma onda negra de malevolência

grasnando e crocitando roucamente; algumas voando,

mergulhavam sobre o pórtico em um ataque assustador, e

então, levantando vôo, afastavam-se para longe. Elas não

conseguiam se aproximar o suficiente para arranhar ou

rasgar; era como se uma parede invisível as fizesse cair em

retrocesso a milímetros de distância de seu alvo.

Mas isso durou somente até quando a força dos

Anciãos pôde impedir. Em um temporal furioso branco e

negro, as Trevas atacavam, surrando suas mentes e seus

corpos, e acima de tudo se dirigindo ao Descobridor dos

Signos, Will. E o menino soube que se estivesse sozinho na

luta de sua mente, mesmo com todos os dons de proteção,

teria sofrido um colapso. Era a força do Círculo dos

Anciãos que o mantinha ágil agora.

Mas pela segunda vez em sua vida, o Círculo não

podia fazer nada mais do que manter o poder das Trevas

afastado. Mesmo juntos, os Anciãos não podiam rechaçá-lo.

E a Dama não se encontrava com eles, para propiciar um

tipo grandioso de socorro. Will percebia mais uma vez,

impotente, que para ser um Ancião deveria ser muito velho

antes do tempo apropriado, pois o medo que ele começava

Page 219: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

a sentir naquele momento era pior do que o terror às cegas

vivenciado em sua cama no sótão, e pior do que o medo

que lhe fora infligido pelas Trevas no Grande Salão. Desta

vez, era um medo adulto, propiciado por experiências,

imaginação e zelo pelos outros, e isso era o pior de tudo.

No momento em que descobriu isto, percebeu também que

ele, Will, era o único que poderia vencer seus próprios

medos, e com isso o Círculo seria fortalecido e as Trevas

rechaçadas. Quem é você? Perguntava ele para si mesmo e

respondia: você é o Descobridor dos Signos que possui três

de todos os Signos, metade dos círculos dos Artefatos de

Poder. Use-os.

Havia suor em sua testa agora como havia na fronte

do pastor que, naquele momento, juntamente com Paul

permaneciam em sorridente paz, obviamente, ignorantes

de tudo o que estava se passando. Will podia ver a tensão

nos rostos de seus companheiros, sobretudo na face do

fazendeiro Dawson. Lentamente, ele moveu sua mão para o

interior do círculo visando aproximar as mãos de cada um

deles; a mão esquerda de John Smith ficara bem próxima

da mão direita do fazendeiro Dawson. E quando eles

estavam perto o suficiente, Will juntou as mãos de seus

companheiros, isolando-se. Por um momento de pânico, ele

as segurou firmemente de novo, como se estivesse

apertando um nó. Então ele saiu, ficando sozinho.

Desprotegido agora pelo Círculo, embora defendido

por trás, ele vacilava sob o impacto dos maus desejos que

vinham de fora da igreja. Então, movendo-se

Page 220: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

propositalmente, desapertou o cinto com seus três

preciosos fardos e o colocou firmemente sobre o braço;

retirou de seu bolso a pena da gralha e a entrelaçou no

centro do Signo: o círculo quartejado de bronze. Em

seguida, pegou o cinto com ambas as mãos, segurando-o

diante de si, e moveu-se lentamente ao redor até que ficou

sozinho no vestíbulo da igreja, enfrentando os uivos e

gritos das gralhas negras e geladas adiante. Will nunca se

sentira tão sozinho antes. Ele não fez nada, não pensou em

nada, só ficou ali, deixando que os Signos agissem por si

mesmos.

E, de repente, o silêncio.

Os pássaros agitados partiram. O vento não uivava

mais. O zumbido louco e horrível que enchia o ar e a mente

desapareceu completamente. Cada músculo e cada nervo

do corpo dele relaxaram quando a tensão esvaeceu. Do

lado de fora, a neve caía calmamente, mas os flocos eram

menores agora. Os Anciãos olhavam um para o outro e

riam.

— O círculo completo fará o verdadeiro trabalho —

disse Velho George —, mas a metade de um círculo pode

fazer muito, hein, jovem Will?

Will fitava os Signos em sua mão e balançava a

cabeça, admirado.

O Fazendeiro Dawson disse suavemente: — Em todos

os meus dias, desde o desaparecimento do graal, esta é a

primeira vez que presenciei algo além da mente de um dos

grandes, o rechaçar das Trevas. As coisas, desta vez,

Page 221: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

agiram sozinhas, por toda nossa disposição. Nós temos os

Artefatos de Poder novamente. Já fazia tempo, muito

tempo.

Will ainda olhava os Signos, como se eles

segurassem seus olhos por algum propósito. — Espere —

disse de forma abstrata. — Não se mexam. Fiquem assim

por um momento.

Todos pararam, assustados. O ferreiro perguntou: —

Hã algum problema?

— Olhem para os Signos — disse Will. — Há algo

acontecendo com eles. Eles estão... estão radiantes.

Virou-se lentamente, ainda segurando o cinto com os

três Signos como antes, até que seu corpo estivesse

bloqueando a luz cinzenta que surgia da porta e suas mãos

estivessem na penumbra da igreja; então, os Signos

brilharam cada vez mais, cada um deles irradiando uma

estranha luz interna.

Os Anciãos olharam atentamente.

— Seria o poder de rechaçar as Trevas? — indagou a

esposa de John Smith em sua fala alegre e suave. — Seria

alguma coisa neles que estivera adormecida e começa a

despertar neste momento?

Will tentava em vão sentir o que os Signos estavam

lhe dizendo. — Eu acho que é uma mensagem, que

significa algo. Mas não consigo entender.

A luz propagou-se pelos três Signos e preencheu a

metade escura da pequena igreja como muito brilho; era

uma luz como um raio de sol, quente e forte.

Page 222: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Ansiosamente, ele estendeu um dedo para tocar o círculo

mais próximo, o Signo de Ferro, mas o objeto não estava

quente nem frio.

O fazendeiro Dawson falou de repente: — Olhe lá!

Seus braços estavam erguidos, apontando para cima

da nave, em direção ao altar. No instante em que se

viraram, avistaram o que ele tinha visto: outra luz,

resplandecendo da parede, do mesmo modo como ao lado

deles a luz resplandecia dos Signos. Brilhava como a

chama de uma grande tocha.

E Will compreendeu. E disse feliz: — Então este é o

motivo.

Andou na direção do segundo trecho resplandecente,

carregando o cinto e os Signos, de modo que as sombras

sobre os bancos e os fachos de luz do telhado se moviam

com ele enquanto caminhava. Quando as duas luzes se

aproximaram, parecia que haviam ficado ainda mais

esplendorosas. Devido à altura de Frank Dawson e à

pesada silhueta iminente atrás dele, Will parou no meio de

um raio de luz emitido da parede. Era como se uma fenda

estivesse deixando a luz passar de algum aposento

inimaginavelmente iluminado do outro lado. Ele viu que a

luz era irradiada de alguma coisa muito pequena, assim

como um de seus dedos estendidos ao lado.

Convicto, Will comunicou ao sr. Dawson: — Eu devo

retirá-lo rápido, você sabe, enquanto a luz ainda

resplandece de dentro dele. Se a luz deixar de brilhar, não

poderá ser encontrado. — E colocando o cinto com o Signo

Page 223: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

de Ferro, o Signo de Bronze e o Signo de Madeira nas

mãos de Frank Dawson, avançou em direção à parede com

fenda de luz e estendeu a mão dentro da pequena fonte de

raio de luz encantado.

O objeto cintilante saiu facilmente da parede de

estuque fendida, de onde se via a pederneira de Chiltern. O

objeto foi acomodado em sua palma: um círculo quartejado

por uma cruz. Não havia sido cortado naquele formato.

Mesmo com o resplendor do objeto, Will pôde ver a forma

circular e lisa dos lados que lhe diziam se tratar de uma

pedra natural, feita do calcário de Chiltern há quinze

milhões de anos.

— O Signo de Pedra — disse o fazendeiro Dawson. A

sua voz soava reverente e tranqüila e seus olhos eram

escuros e ilegíveis. — Nós encontramos o quarto Signo,

Will.

Juntos, voltaram para se reunir aos outros, portando

as reluzentes Coisas de Poder. Os três Anciãos observavam

em silêncio. Paul e o pastor agora se encontravam

sentados tranqüilos em um banco, como se dormissem. Will

continuou com seus companheiros e pegou o cinto,

colocando nele o Signo de Pedra para que permanecesse

junto dos outros três. Foi necessário cerrar os olhos para

impedir que a luz o cegasse. Então, quando o quarto Signo

já estava acomodado com os outros, toda a luz que

resplandeciam se dissipou. Eles ficaram escuros e imóveis,

como antes, e o Signo da Pedra revelou-se um objeto liso e

bonito, apresentando a superfície branco-acinzentada de

Page 224: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

uma pedra intacta.

A pena das gralhas negras ainda estava entrelaçada

no Signo de Bronze. Will a retirou. Ele não precisava dela

agora.

Quando a luz se dissipou de dentro dos Signos, Paul

e o pastor se mexeram. Abriram os olhos, admirados de ver

a si mesmos sentados em um banco quando hã alguns

instantes, conforme lhes parecia, estavam de pé. Paul se

reergueu de pronto instintivamente; sua cabeça girava,

cheia de perguntas. — Acabou! — disse o rapaz. Olhava

para Will, e uma expressão peculiar de confusão, surpresa

e admiração surgiu em seu rosto. Seus olhos passearam

pelo cinto nas mãos de Will. — O que aconteceu? — ele

perguntou.

O pastor se levantou, seu rosto liso e rechonchudo

enrugou-se pelo esforço de dar sentido ao incompreensível.

— Certamente acabou — disse, olhando lentamente ao

redor da igreja. — Qualquer que tenha sido a influência. O

Senhor seja louvado. — Ele também olhou para os Signos

no cinto de Will e olhou para cima novamente, sorrindo de

repente, um sorriso quase infantil de alívio e alegria. — Ela

fez seu trabalho, não fez? A Cruz. Não a da igreja, mas a

cruz cristã, todavia.

— Muito antigas, as cruzes deles são, pastor — disse

Velho George inesperadamente, firme e claro —, feitas

muito tempo antes do cristianismo. Muito antes de Cristo.

O pastor sorriu para ele. — Mas não antes de Deus —

disse ele com simplicidade.

Page 225: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Os Anciãos olharam-no. Não havia resposta que não

pudesse ofendê-lo, então ninguém tentou dar-lhe uma.

Exceto Will, depois de um momento.

— Não existe nada realmente antes e depois, existe?

— perguntou ele. — Tudo o que importa está além do

Tempo. E vem de lá e pode ir para lá.

O sr. Beaumont virou-se para ele surpreso. — Você

quer dizer a eternidade... é claro, meu garoto.

— Não exatamente — disse o Ancião que era Will. —

Eu quero dizer a parte de todos nós e de todas as coisas

que pensamos e cremos e que não tem nada a ver com o

ontem, o hoje ou o amanhã, pois pertence a um nível

diferente. O ontem ainda está lá, naquele nível. O amanhã

também está lá. E é possível visitar ambos. E todos os

deuses estão lá, e todas as coisas que eles sempre

apoiaram. E — ele acrescentou com tristeza — o oposto

também.

— Will — disse o pastor, mirando-o diretamente —,

eu não sei se você deveria ser exorcizado ou ordenado.

Você e eu precisaremos ter longas conversas, muito em

breve.

— Sim, precisaremos — disse Will igualmente.

Afivelou o cinto, pesado com seus preciosos fardos. E

pensava com afinco e rapidamente enquanto fazia isso, e a

principal imagem diante de sua mente não eram as

suposições teológicas distorcidas do sr. Beaumont, mas o

rosto de Paul. Will viu seu irmão olhando-o com um tipo de

temor distante que lhe impingia dor como uma chicotada.

Page 226: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Era mais do que ele poderia suportar. Os dois mundos de

Will não podiam ser tão próximos. Ele ergueu a cabeça,

reunindo todos os seus poderes, estendeu os dedos

alongados de suas mãos e apontou uma mão para cada um

deles.

— Vocês esquecerão — declarou ele suavemente na

Linguagem Antiga. — Esqueçam, esqueçam.

— ... certa vez numa igreja em Edimburgo, no

Festival... maravilhoso — dizia o pastor para Paul,

estendendo a mão para abotoar o casaco até em cima —

sarabanda da quinta suíte literalmente me levou às

lágrimas. Ele é o maior violoncelista de todo o mundo, sem

dúvida.

— Ah sim — concordou Paul. — Ah, sim. Ele é. — O

rapaz colocou seu casaco sobre os ombros. — A mamãe já

foi, Will? Ei, sr. Dawson, olá, feliz Natal! — Ele sorriu e

acenou para o restante, enquanto voltavam para o

vestíbulo da igreja e para os flocos de neve espalhados ao

redor.

— Feliz Natal, Paul, sr. Beaumont — cumprimentou o

fazendeiro Dawson com seriedade. — Bom culto,

reverendo, muito bom.

— Ah, o calor da época, Frank — disse o pastor. —

Uma estação maravilhosa também. Nada pode interferir

em nossos cultos natalinos, nem mesmo a neve.

Rindo e conversando, saíram pelo mundo branco ao

redor, onde a neve se amontoava sobre as lápides invisíveis

e os campos brancos estendendo-se até o Tâmisa

Page 227: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

congelado. Não havia qualquer som, nenhuma

perturbação, somente o murmúrio de vez em quando de

um carro passando na distante Rodovia Bath. O pastor

virou-se para o lado para encontrar sua motocicleta. O

restante deles partiu, em uma forte caminhada, para seus

respectivos lares.

Duas gralhas negras estavam empoleiradas sobre o

portão quando Will e Paul passaram por perto. Elas se

ergueram lentamente no ar, quase num pulo, em suas

formas escuras e deslocadas sobre a neve alva. Uma delas

passou perto dos pés de Will deixando algo cair ali e

emitindo um ruído rouco reprovativo enquanto passava.

Will recolheu: era uma lustrosa castanha do bosque das

gralhas, tão fresca como se tivesse amadurecido ontem.

Ele e James sempre recolhiam tais castanhas do bosque no

início do outono para o jogo de conker da escola, mas eles

nunca tinham visto uma como aquela.

— Olha só — disse Paul, divertido. — Você arranjou

um amigo que trouxe um presente extra de Natal.

— Uma oferta de paz, talvez — disse Frank Dawson

atrás dele, sem qualquer traço de expressão em seu

profundo sotaque de Buckinghamshire. — Mas por outro

lado, talvez não. Feliz Natal, rapazes. Aproveitem o jantar.

— Depois disso, os Anciãos partiram, subindo a estrada.

Will recolheu a castanha. — Bem, eu nunca — disse.

Fecharam o portão da igreja, derrubando um amontoado

de neve de suas barras de ferro. Na curva da esquina soou

o ruído do ronco da motocicleta quando o pastor tentou

Page 228: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

fazê-la funcionar. Então, hã alguns centímetros adiante,

sobre a neve pisoteada, a gralha saltou para o chão

novamente. O pássaro pisava irresolutamente para a frente

e para trás e observava Will.

— Caak — fez a gralha, emitindo um som muito

suave para uma gralha. — Caaack, caak, caak. — Então, o

pássaro avançou alguns passos até a cerca do cemitério da

igreja, pulou para o outro lado do cemitério e andou para

trás como antes. O convite não poderia ser mais óbvio. —

Caak — chamava a gralha novamente, mais alto.

Os ouvidos dos Anciãos sabiam que as aves não

falavam com a mesma precisão das palavras; em vez disso,

elas transmitiam emoções. Hã muitos tipos e níveis de

emoção, muitos tipos de expressão mesmo na linguagem

dos pássaros. Entretanto, embora Will pudesse notar que a

gralha estava obviamente lhe pedindo para segui-la e olhar

algo, não poderia dizer se a ave estava sendo usada pelas

Trevas ou não.

Parou, pensando sobre o que as gralhas tinham feito;

então tocou a minúscula castanha marrom em sua mão.

— Tudo bem, pássaro — disse ele. — Uma olhada

bem rápida.

Voltou pelo portão, e a ave, gralhando como uma

porta velha, andava estabanadamente à sua frente, subindo

o caminho da igreja perto dali. Paul observava, sorrindo.

Mas logo viu Will subitamente se enrijecer quando chegou

à curva; o menino desapareceu por um momento e

reapareceu.

Page 229: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Paul! Venha rápido! Tem um homem na neve.

Paul gritou pelo pastor, que começava a empurrar

sua moto estrada acima para tentar ligá-la de lá, e juntos

começaram a correr. Will estava curvado sobre uma figura

corcunda, estendida entre a parede da igreja e a torre; não

se viam movimentos e a neve já tinha coberto a roupa do

homem quase alguns centímetros com seus flocos frios e

leves. O sr. Beaumont moveu Will gentilmente para o lado

e ajoelhou-se, virando a cabeça do homem para tentar

sentir seu pulso.

— Ele está vivo, graças a Deus, mas está muito frio.

O pulso não está bom. Ele deve estar aqui há tempo

suficiente para que outros homens tivessem falecido numa

exposição desta. Olhem para a neve! Vamos levá-lo para

dentro.

— Dentro da igreja?

— Sim, é claro que sim.

— Vamos levá-lo para nossa casa — disse Paul

impulsivamente. — Fica logo ali, afinal. É quente e muito

melhor, pelo menos até a ambulância chegar ou até que

outra coisa venha ajudá-lo.

— Uma ótima idéia — disse o sr. Beaumont

calorosamente. — Sua boa mãe é uma samaritana, eu sei.

Pelo menos até que o dr. Armstrong possa ser chamado...

nós certamente não poderíamos deixar o pobre camarada

aqui. Acho que ele não tem nenhum osso quebrado.

Problemas do coração, provavelmente. — Ele colocou suas

pesadas luvas sob a cabeça do homem para protegê-lo da

Page 230: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

neve, e Will viu o seu rosto pela primeira vez.

Disse alarmado: — É o Andarilho! Eles se viraram

para ele: — Quem?

— Um velho mendigo que andava por aí... Paul, não

podemos levá-lo para nossa casa. Não seria melhor o

levarmos para o consultório do dr. Armstrong?

— Desse jeito? — Paul indicou o céu cada vez mais

escuro; a neve rodopiava ao redor deles, mais densa

novamente, e o vento soprava mais alto.

— Mas não podemos levá-lo conosco! Não o

Andarilho! Ele trará de volta... — Ele parou de repente, no

meio de um grito. — Ah — disse impotente —, é claro, você

não pode se lembrar, não é?

— Não se preocupe, Will, sua mãe não se importará...

pobre homem in extremis. — O sr. Beaumont estava

alvoroçado agora. Ele e Paul carregavam o Andarilho até o

portão, como uma pilha de roupas velhas. E ao

conseguirem finalmente dar partida na motocicleta, eles de

alguma maneira apoiaram sobre ela a silhueta inerte;

então, metade empurrando, metade dirigindo, o estranho e

pequeno grupo tomou o rumo da casa dos Stanton.

Will olhou para trás uma ou duas vezes, mas a gralha

já não se encontrava em nenhum lugar em que pudesse ser

vista.

* * * 

— Ora, ora — disse Max fastidiosamente, quando

Page 231: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

desceu para a sala de jantar. — Agora, realmente, nós

encontramos um velho sujo.

— Ele cheirava — disse Bárbara.

— Você é quem está dizendo. Nosso pai e eu demos

um banho nele. Meu Deus, você deveria tê-lo visto. Bem,

não, não deveria. Teria-lhe desanimado da ceia do Natal.

De qualquer maneira, ele é um bebê recém-nascido e limpo

agora. O papai até lavou os cabelos e a barba dele. E a

nossa mãe está queimando as suas roupas horríveis, logo

que teve certeza de que nada valia a pena nelas.

— Nada de muito perigoso nisso, eu acho — disse

Gwen, saindo da cozinha. — Preste atenção, tire o braço

daí, esta travessa está quente.

— Nós deveríamos trancar toda prataria — disse

James.

— Que prataria?— perguntou Mary secamente.

— Bem, as jóias da mamãe então. E os presentes de

Natal. Mendigos sempre roubam coisas.

— Esse aí não roubará nada por um bom tempo —

disse o sr. Stanton, sentado-se em seu lugar na cabeceira

da mesa com uma garrafa de vinho e um saca-rolhas. — Ele

está enfermo. E já adormeceu, roncando feito um camelo!

— O senhor já ouviu um camelo roncar? — perguntou

Mary.

— Sim — confirmou seu pai. — E já montei em um.

Viu só! Quando o médico chega, Max? Foi uma pena

interromper o jantar dele, pobre homem.

— Nós não interrompemos — disse Max. — O doutor

Page 232: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

estava fora fazendo um parto e sua família não sabia dizer

quando ele voltaria. A mulher estava esperando gêmeos.

— Ai, Senhor.

— Bem, o velho garoto deve estar bem se estiver

dormindo. Só precisa descansar, eu espero. Embora eu

deva dizer que ele parecia um tanto delirante, com toda

aquela conversa sinistra.

Gwen e Bárbara trouxeram mais travessas com

vegetais. Na cozinha, a mãe estava fazendo um barulho

impressionante ao chocar algum objeto com o forno.

— Que conversa sinistra? — indagou Will.

— Sei lá! — disse Robin. — Foi quando o levamos

para cima pela primeira vez. Parecia uma língua

desconhecida aos ouvidos humanos. Talvez ele seja de

Marte.

— Eu só queria que sim — disse Will. — Assim, nós

poderíamos mandá-lo de volta.

Mas um grito de aprovação saldou a entrada de sua

mãe que sorria portando o peru lustroso e por isso

ninguém o ouviu.

* * *

Eles ligaram o rádio da cozinha enquanto lavavam a

louça:

A neve pesada está caindo novamente sobre o sul e o

oeste da Inglaterra — informava a voz impessoal. —A

nevasca que tem prosseguido violentamente por doze

Page 233: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

horas no Mar do Norte está ainda imobilizando todo o

carregamento de navio para as costas do sudeste. As docas

londrinas fecharam esta manhã, devido à queda de energia

e às dificuldades com o transporte, causadas pela neve

intensa e temperaturas se aproximando de zero grau. A

massa de neve acumulada pelo vento que bloqueia as vias

expressas isolou vilarejos de muitas áreas remotas; e a

ferrovia britânica está lutando contra numerosas quedas

de energia e descarrilamentos causados pela neve. Um

porta-voz das autoridades responsáveis disse nesta manhã

que o público foi aconselhado a não viajar de trem, exceto

em caso de emergência.

Ouviu-se o som de papel farfalhando e a voz

continuou:

Não se espera que as tempestades inusitadas que

têm prosseguido violentas e intermitentes pelo sul da

Inglaterra nos últimos dias diminuam até o término do

feriado de Natal, conforme informado pelas autoridades

meteorológicas nesta manhã. A escassez de combustível se

agravou no sudeste, por isso está sendo solicitado aos

chefes de família que não usem qualquer forma de

aquecimento elétrico entre as nove horas da manhã e o

meio-dia, ou três e seis da tarde.

— Pobre e velho Max — disse Gwen. — Nada de

trens. Talvez ele possa viajar de carona.

— Ouça, ouça!

Um porta-voz da Associação Automobilística disse

hoje que as viagens por vias expressas no momento são

Page 234: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

extremamente desaconselháveis em todas as estradas,

exceto nas autopistas. Ele acrescentou que os motoristas

retidos em tempestades intensas de neve devem, se

possível, permanecer dentro de seus veículos até que a

neve pare de cair. O porta-voz ressaltou: a menos que o

condutor esteja realmente certo sobre sua localização e

saiba como chamar ajuda dentro de dez minutos, ele não

deverá em hipótese alguma sair de seu carro.

A voz continuou, mas entre exclamações e assovios

Will desligou o aparelho: já tinha ouvido o bastante. Estas

tempestades não podiam ser interrompidas pelos

Anciãos sem o poder do círculo completo dos Signos, e ao

enviar as tempestades, as Trevas esperavam impedi-lo de

completar O círculo. Estava preso numa cilada; as Trevas

estavam estendendo suas sombras não apenas sobre sua

busca, mas também sobre todo o mundo comum. Desde o

momento em que o Cavaleiro invadiu seu aconchegante

Natal naquela manhã, Will percebeu que os perigos

aumentaram, mas não havia previsto esta ameaça mais

abrangente. Durante dias, esteve atento demais quanto aos

seus próprios riscos para reparar naqueles do mundo

exterior. Entretanto, tantas pessoas estavam ameaçadas

agora pela neve e o frio: os mais jovens, os mais velhos, os

fracos, os enfermos... De uma coisa o menino tinha certeza,

o Andarilho não teria um médico nesta noite. Ainda bem

que não estava morrendo...

O Andarilho. Por que ele estava aqui? Tinha que

haver algum significado por trás disso. Talvez ele estivesse

Page 235: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

simplesmente rondando o lugar por razões pessoais e

tenha sido atingido pelo ataque das Trevas na igreja. Mas

se fosse isso, por que a gralha, um agente das Trevas,

chamou sua atenção para salvá-lo de congelar até a morte?

Quem era o Andarilho, afinal? Por que todos os poderes da

Magia não lhe diziam nada a respeito do velho homem?

Novamente, ouviam-se canções natalinas no rádio.

Will pensou com amargura: Feliz Natal, mundo.

Seu pai, passando por ali, bateu em suas costas. —

Anime-se, Will. Provavelmente vai parar esta noite, e você

estará brincando de tobogã amanhã. Venha, é hora de

abrir o restante dos presentes. Se fizermos Mary esperar

mais um pouco, ela vai explodir.

Will foi se juntar à sua animada e barulhenta família.

De volta à brilhante e aconchegante caverna do longo

aposento com o fogo e a árvore reluzente, o Natal seria

intocável por enquanto, como sempre havia sido. Além

disso, sua mãe, seu pai e Max economizaram juntos para

lhe dar uma nova bicicleta, com guidão de corrida e onze

marchas de velocidade.

* * *

Will nunca teve certeza se o que aconteceu naquela

noite foi um sonho.

Na parte mais escura da noite, nas horas mais frias

que são as primeiras do dia seguinte, ele acordou, e

Merriman estava lá. Ergueu-se ao lado da cama sob uma

Page 236: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

luz suave que parecia surgir de dentro de sua própria

silhueta; o rosto dele estava sombrio, inescrutável.

— Acorde, Will. Acorde. Há uma cerimônia da qual

precisamos participar.

Em um instante, Will estava de pé e viu que já estava

completamente vestido, com os Signos e seu cinto já

colocados ao redor de seu quadril. Foi com Merriman até a

janela. Estava empilhada com neve até a metade de sua

altura, e mesmo assim os flocos caíam calmamente. Ele

disse de repente, desolado: — Existe algo que eu possa

fazer para parar isto? Metade do país está congelando,

Merriman, pessoas morrerão.

Merriman sacudiu a cabeleira branca lenta e

pesadamente. — As Trevas têm seu poder mais forte de

todos se levantando entre agora e o Décimo Segundo Dia.

Isto é só uma preparação. É deles a força fria e o inverno

os alimenta. Eles pretendem quebrar o círculo para

sempre, antes que seja tarde demais para eles. Logo, todos

nós deveremos enfrentar um teste muito difícil. Mas nem

tudo se move conforme a vontade deles. Muita magia ainda

flui, porém sem ser usada, pelos Caminhos dos Anciãos. E

podemos ficar mais esperançosos em breve. Venha.

A janela diante deles se abriu, espalhando toda a

neve. Um caminho levemente iluminado como uma faixa

larga se estendia adiante, alongando-se no ar salpicado de

neve. Will podia ver através dele, ver o contorno dos

montes de neve nos telhados, cercas e árvores lá embaixo.

Porém, o caminho era real também. Em uma passada,

Page 237: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Merriman o alcançou pela janela e saiu em grande

velocidade, em um movimento estranho como um planador,

desaparecendo na noite. Will saltou depois dele, e o

estranho caminho o fez deslizar pela noite, sem a sensação

de velocidade ou frio. A noite ao redor dele era escura e

densa; nada deveria ser visto, exceto o brilho dos caminhos

etéreos dos Anciãos. E então, ao mesmo tempo, eles se

encontravam num tipo de bolha do Tempo, pairando,

inclinando-se no vento como Will havia aprendido de sua

águia do Livro da Magia.

— Observe — disse Merriman, e seu casaco girou em

volta de Will como se tentasse protegê-lo.

Will viu no céu escuro, ou em sua própria mente, um

grupo de árvores grandes, sem folhas, erguendo-se sobre

uma cerca viva sem folhas, invernal, porém sem neve.

Ouviu uma música estranha e aguda, uma flauta

acompanhada pela batida curta, mas constante, de um

tambor, tocando continuamente a mesma canção

melancólica. E fora da escuridão profunda e no

fantasmagórico bosque pequeno de árvores, surgiu uma

procissão.

Era uma procissão de garotos, com roupas de alguma

época do passado: túnicas e calças rústicas; os cabelos

atingiam a altura dos ombros e usavam um capuz

semelhante a bolsas, num formato que nunca havia visto

antes. Eram mais velhos do que ele: tinham por volta dos

quinze anos, imaginava. E mantinham a mesma expressão

quase solene dos participantes de jogos de charada,

Page 238: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

misturando o sério propósito com uma borbulhante

sensação de diversão. Na frente, surgiam garotos com

varas e feixes de gravetos de vidoeiro; no fim,

encontravam-se os músicos das flautas e tambores. Entre

eles, seis garotos carregavam um tipo de plataforma feita

de junco e galhos entrelaçados, com um ramo de azevinho

em cada canto. Era como uma maca, pensava Will, exceto

pelo motivo de que eles a estavam segurando na altura dos

ombros. Pensou a princípio que se tratava apenas disso e

que estava vazia; então, percebeu que sustentava alguma

coisa. Uma coisa muito pequena. Em um colchão de folhas

de hera, no centro do ataúde entrelaçado, encontrava-se o

corpo de um pássaro minúsculo: um pássaro marrom,

empoeirado, com um bico perfeito. Era um uirapuru.

A voz de Merriman soou suavemente sobre sua

cabeça, fora da escuridão: — É a Caça ao Uirapuru,

realizada todo anos, desde que os homens podem se

lembrar, no solstício. Mas este é um ano especial, e nós

poderemos ver mais, se tudo correr bem. Tenha esperança

em seu coração, Will, de que poderemos ver mais.

E quando os garotos e sua música triste se moveram

pela imensidão de árvores que não parecia poderem

transpor, Will percebeu com a respiração entrecortada

que, em vez de um pequeno pássaro, via-se emergindo a

forma indistinta de uma silhueta diferente sobre o ataúde.

A mão de Merriman segurou firme o ombro do menino

como uma braçadeira de aço, embora o homem alto não

emitisse qualquer som. Deitado sobre a cama de junco

Page 239: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

entre os quatro azevinhos, agora não existia mais um

minúsculo pássaro, mas uma pequena e bem constituída

mulher, muito velha, delicada como um pássaro, vestida

em trajes cerimoniais azuis. As mãos estavam dobradas

sobre o peito e em um dedo cintilava um anel com uma

pedra enorme de tonalidade rosa. No mesmo instante, Will

avistou sua face e soube que era a Dama.

Gritou de dor: — Mas você disse que ela não estava

morta!

— E não está mais — disse Merriman.

Os garotos caminharam até a música; o ataúde com a

silhueta silenciosa deitada ali se aproximou e depois se

afastou, desaparecendo com a procissão em direção à

noite, e a canção triste da flauta e as batidas do tambor

diminuíram depois disso. Mas no auge do

desaparecimento, os garotos que tocavam pararam,

deixaram seus instrumentos e se viraram para olhar sem

expressão para Will.

Um deles disse: — Will Stanton, cuidado com a neve!

O segundo gritou: — A Dama retornará, mas as

Trevas estão se rebelando.

O terceiro, em uma rápida canção, entoou algo que

Will reconheceu logo que começou:

Quando as Trevas se rebelarem,

seis devem fazê-la recuar, 

Três do círculo, três da trilha;

Madeira, bronze, ferro, água, fogo e pedra;

Cinco retornarão, e um deve sozinho

Page 240: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

continuar.

Mas o garoto não parou, assim como Merriman havia

feito. Prosseguiu dizendo:

Ferro para o aniversário, bronze depois de

muito carregar;

Pedra sem a música; madeira das chamas, 

Água do degelo, fogo no círculo de velas;

Seis Signos formam o círculo, e o graal não

mais estará.

Então, um vento intenso surgiu do nada e, sob um

temporal de neve e escuridão, os garotos partiram,

rodopiando para longe. Will também se sentiu rodopiando

para trás, voltando através do Tempo, ao longo do

reluzente caminho dos Anciãos. A neve surrava seu rosto. A

noite estava em seus olhos, ardente. Longe da escuridão,

ele ouviu Merriman chamando por ele, com urgência, mas

com uma nova esperança e ressonância em sua voz

profunda: "O perigo se levanta com a neve, Will, cuidado

com a neve. Siga os Signos, cuidado com a neve...".

E Will se encontrou de volta em seu quarto, de volta

em sua cama, adormecendo com uma palavra sinistra

soando em sua cabeça, como o repicar mais intenso dos

sinos da igreja sobre os montes de neve. "Cuidado...

cuidado...”

Page 241: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

PARTE 3

A PROVAÇÃO 

A CHEGADA DO FRIO 

No dia seguinte, a neve continuou caindo durante o

dia inteiro. E no posterior também.

— Eu realmente queria que isto parasse — disse

Mary descontente, fitando a janela encoberta. — É horrível

a maneira como continua caindo sem parar, odeio neve.

— Não seja tola — disse James. — Trata-se apenas de

uma tempestade mais demorada. Não precisa ficar

histérica.

— É diferente. É sinistra.

— Bobagem. É só um monte de neve.

— Ninguém nunca viu tanta neve antes. Olha a altura

disso, seria impossível sair pelas portas dos fundos se não

tivéssemos limpando o lugar desde quando a neve começou

a cair. Estaríamos soterrados, isso sim. Parece que quer

nos comprimir, chegou até a quebrar a janela da cozinha,

você sabia disso?

Will perguntou asperamente: — O quê?

— A janelinha dos fundos, perto do aquecedor.

Gwennie desceu esta manhã e a cozinha estava fria como

gelo, com neve e cacos de vidro pra todo lado. A neve

pressionou a janela com seu peso.

Page 242: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

James suspirou alto. — Peso não empurra. A neve foi

se acumulando pelo vento naquele lado da casa, é só isso.

— Não me interessa o que você diz, é horrível. E

como se a neve estivesse tentando entrar. — A menina

parecia prestes a chorar.

— Vamos subir e ver se o Anda... o velho mendigo já

acordou — disse Will. Já era hora de fazer Mary parar

antes que estivesse perto da verdade. Quantas outras

pessoas no país estavam sendo tão atemorizadas desse

jeito pela neve? Ele pensava irritado nas Trevas e desejava

saber o que fazer.

O Andarilho havia dormido durante todo o dia

anterior, raramente se mexia, exceto quando murmurava

ocasionalmente algo sem significado, e uma ou duas vezes

emitiu um pequeno grito rouco. Will e Mary subiram para o

quarto dele, carregando uma bandeja com cereais,

torradas, leite e geléia.

— Bom-dia! — disse Will alto e claro assim que

entraram. — Gostaria de tomar o café-da-manhã?

O Andarilho abriu o canto de um olho e espiou quem

estava ali através de seu cabelo grisalho desgrenhado,

mais cheio e longo do que nunca agora que estava limpo.

Will estendeu a bandeja em sua direção.

— Fora! — falou o Andarilho com a voz rouca. Era

um ruído parecido com alguém cuspindo.

Mary disse: — Oro!

— Gostaria de outra coisa então? — perguntou Will.

— Ou apenas não está com fome?

Page 243: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Mel — respondeu o Andarilho.

— Mel?

— Mel e pão. Mel e pão. Mel e...

— Tudo bem — disse Will. Eles levaram a bandeja

embora.

— Ele sequer disse por favor — disse Mary. — Ele é

um velho antipático. Não vou chegar perto dele de novo.

— Faça como quiser — disse Will. Deixado sozinho,

ele encontrou o que sobrara de mel em um pote no fundo

de uma despensa, bastante cristalino nas bordas, e o

espalhou abundantemente sobre três fatias de pão. Depois,

levou os pães com um copo de leite para o Andarilho que

se sentara ávido na cama e devorava todos os alimentos.

Enquanto comia, o velho não era uma visão muito

agradável.

— Bom — ele disse. Tentou limpar o mel caído em

sua barba e lambeu a mão, dando uma espiada em Will. —

Nevando ainda? Está caindo ainda, não é?

— O que você estava fazendo na neve?

— Nada — disse o Andarilho de repente. — Não me

lembro. — Os olhos dele se estreitaram atentos, e fazendo

um gesto para sua fronte, disse em um resmungo

intransigente: — Bati minha cabeça.

— Não se lembra de onde o encontramos?

— Não.

— Lembra-se de mim?

Prontamente, ele balançou a cabeça. — Não.

Will falou suavemente de novo, desta vez na

Page 244: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Linguagem Antiga: — Lembra-se de mim?

O rosto barbudo do Andarilho não revelava qualquer

expressão. Will começou a pensar que talvez o homem

realmente tivesse perdido a memória. Inclinou-se sobre a

cama para recolher a bandeja com os pratos e copo vazio, e

o Andarilho deixou escapar um grito agudo e recuou para

longe do menino, escondendo-se do outro lado da cama. —

Não! — gritava ele. — Não! Vá embora! Leve-os daqui!

Com os olhos arregalados e aterrorizados, ele fitava

o menino com ódio. Por um momento Will ficou perplexo;

depois percebeu que seu pulôver havia se erguido

enquanto ele levantava os braços, e o Andarilho avistou os

quatro Signos em seu cinto.

— Leve-os daqui! — uivava o velho. — Eles queimam!

Tire-os daqui!

Era muita informação para alguém com perda de

memória, pensava Will. Ouviu passos de preocupação

subindo as escadas e saiu do quarto. Por que o Andarilho

estaria tão aterrorizado pelos Grandes Signos, visto que

ele carregou um deles por tanto tempo?

* * *

Seus pais estavam sérios. As novidades do rádio

ficavam piores a cada dia enquanto o frio envolvia o país e

uma restrição seguia outra. Em todos os recordes da

temperatura inglesa, nunca esteve tão frio; os rios que

nunca haviam congelado antes encontravam-se sólidos

Page 245: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

como o gelo, e todo porto em toda costa estava congelado

também. As pessoas só podiam esperar pelo fim da neve,

mas a neve persistia em cair.

Eles prosseguiam com a vida enclausurada e

desassossegada "como os homens das cavernas no

inverno", disse o sr. Stanton, indo para a cama a fim de

poupar o fogo e o combustível. O dia do Ano-novo veio e

passou, e quase não foi percebido. O Andarilho permanecia

deitado na cama irrequieto, murmurando e recusando-se a

comer qualquer outra coisa além de pão e leite, que

naquelas alturas era leite em pó dissolvido em água. A sra.

Stanton dizia gentilmente que o pobre velho estava

recuperando suas forças. Will ficava ao longe. E se

desesperava mais a cada dia enquanto o frio aumentava e a

neve caía, caía. Sentia que se não saísse de casa logo,

descobriria que as Trevas o enclausuraram para sempre.

Sua mãe lhe forneceu um álibi, no final. Seu estoque de

farinha, açúcar e leite enlatado tinha acabado.

— Eu sei que ninguém deveria sair de casa, exceto

em casos de emergência — disse ela, ansiosamente — mas

isto conta como uma. Nós precisamos de coisas para

comer.

Os garotos levaram duas horas para remover a neve

do caminho de seu próprio jardim até a estrada, onde um

tipo de túnel sem teto, na largura de um limpa-neve,

encontrava-se desobstruído. O sr. Stanton havia anunciado

que somente ele e Robin sairiam para o vilarejo, mas

durante as duas horas que se seguiram, Will, cavando e

Page 246: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

escavando, implorava pela permissão de acompanhá-los, e,

no final, a resistência de seu pai se enfraqueceu tanto, que

acabou concordando.

Vestiam lenços para proteger as orelhas, luvas

grossas e três pulôveres cada um sob o casaco. E levavam

uma tocha. Estava na metade da manhã, mas a neve

continuava caindo tão incessante quanto antes, e ninguém

sabia quando eles poderiam voltar para casa. Desde a

encosta íngreme no topo de uma estrada para o vilarejo,

alguns caminhos irregulares e minúsculos foram forçados e

removidos da neve até as lojas menores e principais casas

centrais; podiam ver pelas pegadas que alguém havia

trazido cavalos da fazenda dos Dawson para ajudar a

trinchar uma passagem até os chalés de pessoas como a

srta. Bell e a sra. Homiman, que nunca poderiam fazer isso

por si mesmas. Na loja do vilarejo, o minúsculo cãozinho da

sra. Pettigrew estava enrolado como um novelo cinzento e

trêmulo em um dos cantos, olhando mais murcho e infeliz

do que nunca; Fred, o filho gordo da sra. Pettigrew, que a

ajudava a conduzir a loja, havia torcido o pulso ao cair na

neve e por isso seu braço estava numa tipóia, e a sra.

Pettigrew estava muito nervosa. Ela agia de forma agitada

e confusa por causa de seu nervosismo, deixando cair

coisas, procurando açúcar e farinha nos lugares errados e

não os encontrando e, no final, se sentava repentinamente

numa cadeira, como uma marionete que se soltara de suas

cordas, e disparava a chorar.

— Ai — soluçava. — Desculpe-me, sr. Stanton, é essa

Page 247: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

neve terrível. Estou tão assustada, eu não sei... Tenho tido

esses sonhos que estamos isolados e ninguém sabe onde

estamos...

— Nós já estamos isolados — disse o filho dela, de

forma lúgubre. — Nenhum carro entrou no vilarejo durante

toda esta semana. E sem suprimentos, todos estão

partindo... não temos manteiga, nem mesmo leite em pó. A

farinha está acabando; só temos apenas mais cinco pacotes

além deste aqui.

— E ninguém tem qualquer combustível —

resmungou a sra. Pettigrew. — O pequeno bebê Randall

está doente com febre, e a pobre sra. Randall não tem um

pedaço de carvão, e sabe Deus quantos outros mais estão

em dificuldade.

A campainha da loja soou quando a porta se abriu, e,

automaticamente como um velho costume do vilarejo,

todos se viraram para ver quem estava entrando. Um

homem muito alto, em um volumoso sobretudo preto,

tirava seu chapéu de abas largas revelando os cabelos

brancos; então, olhos profundos e sombrios sobre um nariz

severo na forma de um gancho voltaram-se para eles.

— Boa-tarde — disse Merriman.

— Olá — disse Will, sorrindo. Seu mundo ficou

repentinamente mais claro.

— Tarde — disse a sra. Pettigrew e assoou forte o

nariz. Em seguida, disse com a voz abafada pelo lenço: —

Sr. Stanton, o senhor conhece o sr. Lyon? Ele está no

Solar.

Page 248: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Como tem passado? — disse o pai de Will.

— Mordomo da srta. Greythorne — acrescentou

Merriman, inclinando a cabeça respeitosamente. — Até

que o sr. Bates volte de férias. Isso quer dizer, quando a

neve parar de cair. No momento, é claro, eu não posso sair,

e Bates não pode chegar.

― Isso nunca vai parar — gemeu a srta. Pettigrew e

irrompeu em lágrimas novamente.

— Ai, mãe — disse o gordo Fred desgostoso.

Tenho algumas novidades para a senhora, sra.

Pettigrew — disse Merriman em alta e tranqüilizante voz.

Ouvimos um pronunciamento pela rádio local... nosso

telefone está mudo, é claro, como o seu... que combustível

e alimentos serão entregues nas terras do Solar, visto que

o lugar pode ser visivelmente encontrado do ar, nesta

neve. E a srta. Greythorne pergunta se todos no vilarejo

não gostaria de se mudar para o Solar, durante essa

emergência. Ficará lotado de gente, naturalmente, mas

quente. E reconfortante, talvez. O dr. Armstrong estará

lá... ele já está a caminho, creio eu.

— Isso é empreendedor — disse o sr. Stanton

pensativamente. — Quase feudal, como se diria.

Os olhos de Merriman se estreitaram levemente. —

Mas não com essa intenção.

— Ah, não. Eu percebo isso, sim.

As lágrimas da sra. Pettigrew cessaram. — Que idéia

adorável, sr. Lyon! Ah, meu Deus, seria um grande alívio

ficar com outras pessoas, especialmente à noite.

Page 249: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Eu sou outra pessoa — disse Fred.

— Sim, querido, mas...

Fred replicou de maneira insensata: — Eu vou pegar

uns cobertores. E embalar algumas coisas da loja.

— Isso seria prudente — disse Merriman. — O rádio

diz que a tempestade ficará muito pior nesta noite.

Portanto, tão logo todos possam ficar juntos, melhor.

— O senhor gostaria de ajuda a avisar as pessoas? -

perguntou Robin, já puxando sua gola para cima

novamente.

— Excelente. Isso seria excelente.

— Todos nós ajudaremos — confirmou o sr. Stanton.

Will havia se virado para olhar pela janela enquanto

comentava-se sobre a tempestade, mas a neve caindo do

céu firme e cinzento parecia como antes. As janelas

estavam tão embaçadas que era difícil enxergar além das

vidraças. Mas ele podia visualizar naquele momento

alguma coisa se movendo do lado de fora. Era alguém

caminhando pela Trilha do Vale do Caçador que havia se

transformado numa estrada coberta de neve tranchada. Foi

uma visão muito rápida, que durou somente enquanto a

figura atravessava o caminho dos Pettigrew, mas durou o

necessário para que ele reconhecesse o homem sentado

ereto sobre um enorme cavalo negro.

— O Cavaleiro passou por aqui! — disse ele

apressada e claramente na Linguagem Antiga.

A cabeça de Merriman girou rapidamente ao redor;

depois, ele se recompôs e ostentosamente recolocou o

Page 250: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

chapéu. — Eu ficaria muito grato por receber ajuda.

— O que você disse, Will? — Robin, distraído, olhava

para o irmão.

— Ah, nada. — Will foi até a porta, fazendo um

grande estardalhaço para abotoar o casaco. — Só acabei

de ver alguém.

— Mas você disse algo numa língua esquisita.

— É claro que não. Eu acabei de perguntar: "Quem é

aquele lá fora?" Mas não era ninguém de qualquer

maneira.

Robin ainda olhava atentamente para ele. — Você

parecia o velho mendigo, quando ele ficava balbuciando no

dia em que o colocamos na cama pela primeira vez... —

Mas ele não estava disposto a gastar tempo com

imprevistos; balançou sua cabeça realista e abandonou o

assunto. — Está bom então.

Merriman conseguiu andar bem atrás de Will,

enquanto deixavam os Pettigrew para avisar e espalhar a

notícia pelo restante do povo do vilarejo. E disse baixinho

na Linguagem Antiga: — Leve o Andarilho para o Solar, se

puder. Rápido. Ou ele o impedirá de sair. Mas você pode

ter problemas com o orgulho de seu pai.

Na hora em que os Stanton chegaram em casa,

depois de rodarem pelo vilarejo com muita dificuldade, Will

quase esqueceu do que Merriman dissera sobre seu pai.

Estava ocupado demais descobrindo uma maneira de como

poderiam levar o Andarilho para o Solar sem, na verdade,

ter que o carregar. E lembrou-se do assunto somente

Page 251: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

quando ouviu o sr. Stanton conversando na cozinha,

enquanto se despiam de seus casacos e entregavam os

novos suprimentos.

— ... bondade da senhorita aceitar todos em sua

casa. Naturalmente, eles possuem espaço e lareiras para

isso; e aquelas velhas paredes são tão espessas que podem

manter o frio mais longe do que as de qualquer um. Foi a

melhor coisa para as pessoas dos chalés, como a pobre

srta. Bell que não duraria muito nessa situação.... Nós

ainda, é claro, estamos todos bem por aqui. Protegidos.

Sem razão para partirmos e sobrecarregarmos o Solar.

— Ah, pai — disse Will impulsivamente —, o senhor

não acha que deveríamos ir também?

— Acho que não — respondeu seu pai, com a tênue

garantia de que Will já deveria saber que ele era mais

difícil de ceder do que qualquer fé.

— Mas o sr. Lyon disse que mais tarde ficaria muito

perigoso, já que a tempestade vai piorar.

— Eu acho que posso julgar o clima por mim mesmo,

Will, sem a ajuda do mordomo da srta. Greythorne — disse

o sr. Stanton amigavelmente.

— Uau! — disse Max com uma grosseria animada. —

Você é um velho esnobe horrível. Ouça só o que está

dizendo.

— Qual é, não é isso que eu quis dizer — disse seu

pai lançando um cachecol sobre ele. — É, sobretudo, o

contrário de esnobismo. Eu simplesmente não vejo uma

boa razão para sairmos em bando a fim de

Page 252: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

compartilharmos da generosidade da senhora do Solar.

Estamos perfeitamente bem aqui.

— Bem colocado — disse a sra. Stanton rapidamente.

— Agora, saiam da cozinha, todos vocês. Eu quero

fazer alguns pães.

A única esperança, decidiu Will, era o próprio

Andarilho. Ele saiu furtivamente e subiu para o minúsculo

quarto onde o Andarilho continuava na cama. — Eu quero

falar com você.

O velho virou a cabeça sobre o travesseiro. — Tudo

bem — disse dando a impressão de estar triste e comedido.

De repente, Will sentiu pena dele.

— Você está melhor? — perguntou o menino. —

Quero dizer, realmente está doente agora, ou apenas se

sente fraco?

— Não estou doente — respondeu o Andarilho

indiferente. — Não além do normal.

— Consegue andar?

— Você quer me jogar de volta na neve, não é?

— É claro que não — falou Will. — Mamãe nunca

deixaria você sair num tempo desses, nem eu; não que eu

tenha muito a opinar quanto a isso. Eu sou o mais novo

nesta família, você sabe disto.

— Você é um Ancião — disse o Andarilho, olhando

para ele com desgosto.

— Bem, isso é diferente.

— Não é diferente nada. Apenas significa que não há

motivos para conversar sobre você comigo como se fosse

Page 253: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

apenas o filhotinho de uma família. Eu conheço bem como

é isso.

Will acrescentou: — Você foi guardião de um dos

Grandes Signos... eu não vejo razão que o levaria a nos

odiar.

— Eu fiz o que me obrigaram fazer — replicou o

velho. — Você me achou... você me identificou... — As

sobrancelhas se enrugaram, como se ele estivesse

tentando se lembrar de alguma coisa de muito tempo atrás;

em seguida, voltou a ser vago novamente — ... me

obrigaram fazer.

― Bem, olhe, eu não quero obrigá-lo a fazer nada,

mas há uma coisa que todos nós temos que fazer. A neve

está I.....ando tanto, que todos no vilarejo estão indo viver

no Solar, como um tipo de albergue, pois lá será mais

seguro e quente. — Enquanto falava, Will sentia como se o

Andarilho já soubesse o que ele estava para dizer, mas era

impossível entrar na mente do velho; sempre que tentava,

sentia certa obstrução, como se batesse contra o

enchimento de um colchão.

— O médico estará lá também — acrescentou. — Se

você fizesse todos pensarem que precisa de cuidados

médicos, todos nós iríamos para o Solar.

— Quer dizer que de outra forma você não iria? —

disse o Andarilho olhando-o de soslaio com desconfiança.

— Meu pai não nos deixaria ir. Mas devemos partir, é

mais seguro...

— Eu não irei também — replicou o Andarilho e virou

Page 254: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

a cabeça para o lado. — Vá embora. Deixe-me assim.

Will disse suavemente, em tom de advertência, na

Linguagem Antiga: — As Trevas virão atrás de você.

Houve uma pausa. Então, muito lentamente, o

Andarilho virou a cabeça grisalha desgrenhada novamente,

e Will estremeceu horrorizado quando viu o rosto do

homem. Por apenas um momento, a história estava

evidente. Havia grande profundidade de dor e terror em

seus olhos, as rugas obtidas pelas más experiências faziam

um vinco nítido e terrível; em algum lugar, aquele homem

conheceu um medo e angústia tão terríveis que nada

poderia, realmente, sensibilizá-lo outra vez. Os olhos do

velho estavam arregalados pela primeira vez, bem abertos,

pelo conhecimento que tinha do horror procurando por

algo.

E o Andarilho disse inexpressivo: — As Trevas já

vieram atrás de mim.

Will respirou profundamente o ar. — Mas chegou

agora o círculo da Luz — disse ele. Retirou o cinto com os

Signos e o estendeu diante do Andarilho. O velho

estremeceu afastando-se, contraindo o rosto, gemendo

como um animal assustado; Will se sentia enojado, mas

nada podia ser feito. Aproximou os Signos do rosto velho e

enrugado até que, como se ele fosse um pedaço de arame

quebrado, o Andarilho perdeu o autocontrole. Gritava e

começava a babar e a se debater pedindo socorro. Will

correu para fora do quarto e chamou seu pai, e metade da

família veio correndo.

Page 255: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Eu acho que ele está tendo algum tipo de

convulsão. Terrível. Não deveríamos levá-lo para o dr.

Armstrong no Solar, pai?

O sr. Stanton respondeu incerto: — Talvez

pudéssemos trazer o médico até aqui.

— Mas ele ficará muito melhor lá — disse a sra.

Stanton, olhando para o Andarilho com preocupação. — O

velho, quero dizer. Com o doutor disponível para assisti-

lo... e terá mais conforto e comida. Realmente, isso é

alarmante, Roger. Eu não sei o que fazer por ele aqui.

O pai de Will cedeu. Deixaram o Andarilho ainda

esbravejando e se sacudindo, ficando Max perto dele para

evitar acidentes, e saíram para transformar o grande

tobogã da família em uma maca móvel. Só uma coisa afligia

a mente de Will: talvez tenha sido sua imaginação, mas no

momento em que o Andarilho perdeu o controle ao avistar

os Grandes Signos, enlouquecendo mais uma vez, tinha

pensado ter visto um lampejo de triunfo em seus olhos

bruxuleantes.

* * *

O céu mantinha-se cinzento e pesado, esperando o

momento para nevar, quando eles partiram para o Solar

levando o Andarilho. O sr. Stanton levou os gêmeos e Will

consigo. Sua esposa os observava partindo com um

nervosismo desconhecido. — Realmente, espero que isso

acabe. Você realmente acha que Will deveria ir?

Page 256: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

― Algumas vezes, é uma mão na roda ter alguém

mais leve nesta neve — disse seu pai, enquanto Will

gaguejava. — Ele ficará bem.

— Você não ficará por lá, não é?

— É claro que não. A única razão desta empreitada é

deixar o velho sob os cuidados do doutor. O que foi, Alice,

essa não se parece com você. Não há perigo, você sabe.

— Eu acho que não — disse a sra. Stanton.

Eles partiram, empurrando o tobogã com o Andarilho

afivelado no aparelho, tão enrolado em cobertores que era

impossível vê-lo: parecia uma grossa salsicha humana. Will

Foi o último a sair; Gwen entregou-lhe as tochas e uma

garrafa térmica. — Devo dizer que não sinto pena ao ver

sua descoberta partir — disse ela. — Ele me assusta. Mais

parecido com um animal do que um velho homem.

Parecia que havia passado muito tempo até que por

fim eles chegaram ao portão do Solar. A entrada havia sido

desobstruída e pisoteada por muitos pés, e duas

lamparinas estavam fixadas na grande porta, iluminando a

entrada da casa. A neve caía novamente, e o vento

começava a soprar gelado em suas faces. Antes que Robin

esticasse a mão para tocar a campainha, Merriman já abria

a porta. Olhou primeiro para Will, embora ninguém tenha

percebido o lampejo de urgência em seus olhos. — Bem-

vindos — completou.

— Boa-noite — cumprimentou Roger Stanton. — Não

ficaremos. Estamos bem em casa. Mas há um velho

camarada aqui que está doente e precisa do médico.

Page 257: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Depois de considerarmos todas as possibilidades, pareceu

melhor trazê-lo aqui; melhor do que fazer o dr. Armstrong

ficar andando de um lado para o outro. Então, esperamos

partir antes que a tempestade comece.

— Já está começando — disse Merriman, olhando

para fora. Sendo assim, abaixaram-se e ajudaram os

gêmeos a carregar a forma imóvel do Andarilho para

dentro da casa. Na soleira, a trouxa de cobertores sacudia

convulsivamente, e o Andarilho se fazia ouvir

abafadamente por seus gritos contidos: — Não! Não! Não!

— O médico, por favor — disse Merriman para uma

mulher que estava próxima dali, e ela correu apressada. O

salão enorme onde tinham realizado a cantata natalina,

normalmente vazio, estava cheio de pessoas agora, além de

quente e cheio de animação, de maneira irreconhecível.

O dr. Armstrong apareceu, acenando rapidamente ao

redor; era um homem pequeno e vigoroso com uma franja

de cabelos grisalhos, semelhante à de um monge, fazendo

um círculo em sua cabeça careca. Os Stanton, como todos

do Vale do Caçador, conheciam-no bem; o doutor curava

toda enfermidade da família já bem antes mesmo de Will

nascer. Ele olhou para o Andarilho, que naquele momento

se contorcia e gemia em protesto.

— O que é isso, hein?

— Choque, talvez? — disse Merriman.

— De fato, ele se comporta de forma muito estranha

— disse o sr. Stanton. — Ele foi encontrado inconsciente na

neve alguns dias atrás, e pesávamos que estivesse se

Page 258: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

recuperando, mas agora...

A enorme porta da frente bateu sozinha, calando o

vento emergente, e o Andarilho gritou.

— Hum — murmurou o médico e fez um sinal para

dois ajudantes jovens e robustos carregá-lo para algum

aposento. — Deixe-o comigo — disse ele animado. — Até

agora, temos uma perna quebrada e dois tornozelos

torcidos. Ele deve ter uma diversidade de coisas.

O doutor caminhou apressadamente atrás de seu

paciente. O pai de Will se virou para olhar pela janela e ver

que o tempo escurecia. — Minha esposa começará a se

preocupar — disse ele. — Nós devemos ir.

Merriman respondeu gentilmente: — Se o senhor

partir agora, acredito que sairá daqui, mas não chegará ao

seu lar. Provavelmente, durante um bom tempo.

— As Trevas estão se rebelando, percebe? — disse

Will. Seu pai o olhou com um meio sorriso: — Você anda

mui- to poético de uma hora para outra. Tudo bem,

esperaremos um pouco. Eu voltaria depois de uma pausa

de descanso, para dizer a verdade. É melhor dizer olá à

srta. Greythorne, enquanto isso. Onde ela está, Lyon?

Merriman, o mordomo reverente, abriu caminho pela

multidão. Era o ajuntamento mais estranho que Will havia

visto. De repente, metade do vilarejo estava vivendo com

muita intimidade numa minúscula colônia de camas,

bagagens e cobertores. As pessoas os chamavam de seus

pequenos ninhos espalhados pelo enorme salão: uma cama

ou um colchão enfiado num canto ou cercado por uma ou

Page 259: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

duas cadeiras. A srta. Bell acenou alegremente de um sofá.

Parecia um hotel bagunçado com todos acampando no

saguão. A srta. Greythorne encontrava-se sentada ereta e

firme em sua cadeira de rodas ao lado do fogo, lendo A

Fênix e o tapete mágico para um grupo de crianças em

absoluto silêncio. Como todos no aposento, ela parecia

diferentemente alegre e animada.

— Engraçado — disse Will, enquanto se aproximavam

pelo caminho —, as coisas estão absolutamente horríveis, e

mesmo assim as pessoas parecem muito mais felizes do

que o normal. Olhe para elas. Tão animadas.

— São ingleses — disse Merriman.

— Bem, certo — disse o pai de Will. — Esplêndidos

na adversidade, tediosos quando estão seguros. Nunca

contentes de fato. Somos um povo estranho. Você não é

inglês, é? — perguntou repentinamente para Merriman, e

Will ficou impressionado ao ouvir o tom levemente hostil

em sua voz.

— Um mestiço — disse Merriman insipidamente. — É

uma longa história. — Seus olhos profundos brilharam para

o sr. Stanton, e então a srta. Greythorne os avistou.

— Ah, aí estão vocês! Boa-noite, sr. Stanton,

meninos, como vão vocês? O que acham disto, hein? Não é

uma folia?

— Enquanto ela deixava o livro de lado, o círculo de

crianças se separou para saldar os recém-chegados, e os

gêmeos e seu pai foram absorvidos pela conversa.

Merriman disse baixinho para Will, na Linguagem

Page 260: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Antiga:

— Olhe dentro do fogo, pelo tempo que for

necessário para traçar a forma de cada Grande Signo com

sua mão direita. Olhe dentro do fogo. Faça-o seu amigo.

Não mova os olhos durante todo esse tempo.

Cheio de questionamentos, Will se aproximou do fogo

como se desejasse se aquecer e fez o que lhe pediram.

Olhando para as chamas da enorme lenha crepitando na

lareira, deslizou seus dedos gentilmente sobre o Signo de

Ferro, o Signo de Bronze, o Signo de Madeira e o Signo de

Pedra. E falava ao fogo, não como fizera hã algum tempo

quando desafiado a apagá-lo, mas como um Ancião depois

da Magia. Falava sobre o fogo vermelho no salão do rei, do

fogo azul que dançava sobre os pântanos, do fogo amarelo

resplandecente sobre o farol das colinas para o festival

Beltane e o Dia das Bruxas; do fogo indômito, do fogo

necessário e do fogo frio do mar; e falava do Sol e das

estrelas. As chamas se ergueram. Seus dedos estendidos

chegaram ao fim da jornada em volta do último Signo.

Depois olhou para cima. Ele olhou e viu...

.... ele viu, não os simpáticos membros do vilarejo

reunidos em um alto e moderno aposento de painéis,

iluminado pelas lâmpadas elétricas comuns, mas o Grande

Salão de pedra sombreado pelas velas, com suas tapeçarias

penduradas e teto alto abobadado que ele havia visto antes

em um mundo distante. Olhou para a lenha queimando que

mantinha o mesmo fogo, mas crepitando agora em uma

lareira diferente, e viu como antes, além do passado, as

Page 261: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

duas pesadas cadeiras talhadas, uma de cada lado da

lareira. Na cadeira à direita, sentava-se Merriman vestido

com uma capa, e na cadeira à esquerda, sentava-se uma

silhueta, a mesma que ele havia visto pela última vez, não

no dia anterior, deitada sobre um ataúde como se estivesse

morta. Inclinou-se rapidamente e ajoelhou-se aos pés da

velha dama.

— Senhora — disse.

Ela tocou-lhe os cabelos gentilmente: — Will.

— Desculpe-me por ter rompido o círculo aquela vez

— disse ele. — A senhora está bem agora?

— Tudo está bem — disse ela com sua voz clara e

suave. - E ficará, se conseguirmos vencer a última batalha

pelos Signos.

— O que devo fazer?

— Destrua o poder do frio. Pare a neve, o frio e o

gelo. Liberte nossa pátria do domínio das Trevas, com o

próximo do círculo, o Signo do Fogo.

Will a olhava impotente. — Mas eu não o tenho. E

não sei como...

— Você já tem um Signo de Fogo. O outro espera. Ao

conquistá-lo, você destruirá o frio. Mas antes disso, o nosso

círculo das chamas deve se completar, o que já é um eco

do Signo; e para fazer isso, você deve tirar o poder das

Trevas. — Ela apontou para o grande círculo forjado em

ferro dos encaixes da velas sobre a mesa, o círculo

quartejado por uma cruz. Enquanto erguia o braço, a luz

cintilou sobre o anel rosado em sua mão. O círculo mais

Page 262: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

afastado de velas estava completo, doze colunas brancas

queimando da mesma maneira como haviam feito quando

Will estivera no salão, da última vez. Mas os braços da cruz

ainda permaneciam vazios em seus encaixes; nove espaços

para serem preenchidos.

Will as olhava com tristeza. Esta parte de sua busca

o deixava desesperado. Nove grandes velas encantadas

que deveriam surgir de algum lugar. O poder que deveria

ser apreendido das Trevas. Um Signo que ele já tinha, sem

conhecê-lo. Outro que deveria ser encontrado sem saber

onde ou como procurar.

— Tenha coragem — a velha dama lhe dizia. Sua voz

soava cansada e distante; quando Will a viu, percebeu que

ela mesma parecia distante, como se fosse nada mais do

que uma sombra. Estendeu-lhe a mão preocupado, mas ela

afastou o braço. — Ainda não... Ainda há outro tipo de

trabalho a ser realizado, também... Você deve perceber

como as velas queimam, Will. — A voz dela esvaeceu e em

seguida se reergueu. — Elas lhe mostrarão.

Will olhava para as chamas brilhantes das velas; o

alto círculo de luz capturava seus olhos. Enquanto as

percebia, sentiu a estranha sensação de um solavanco,

como se todo o mundo tivesse estremecido. Inclinando a

cabeça para cima, viu...

.... viu, quando ergueu os olhos, que se encontrava

de volta ao Solar, na época da srta. Greythorne, no tempo

de Will Stanton, com as paredes em painéis e o murmúrio

de muitas vozes, e uma voz falava ao seu ouvido. Era o dr.

Page 263: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Armstrong.

— ... chamando por você — dizia ele. O sr. Stanton

estava de pé ao seu lado. O médico parou e olhou

estranhamente para Will. — Você está bem, jovem rapaz?

— Sim, sim, estou bem. Desculpe. O que foi que

disse?

— Eu estava dizendo que seu amigo mendigo está

chamando por você. "O sétimo filho", como ele liricamente

colocou, embora, como sabia disso, não podemos dizer.

— Sou eu então, não sou? — disse Will. — Eu não

sabia até dias atrás sobre um irmão que faleceu. Tom.

O olhar do dr. Armstrong ficou distante por um

momento.

― Tom — disse ele. — O primeiro bebê. Eu me

lembro. Há muito tempo. — E seu olhar voltou. — Sim,

você é. Assim como seu pai, se isso interessa.

Will girou a cabeça e viu o sorriso de seu pai. — Você

foi o sétimo filho, pai?

— Certamente — respondeu Roger Stanton, com seu

rosto redondo e rosado, recordando o fato. — Metade da

família foi assassinada na última guerra, mas éramos doze.

Você sabia disso, não? Uma tribo propriamente dita, isso

sim. Sua mãe amava isso, ser filha única. Ouso dizer que é

essa a razão que a levou a ter todos vocês. Horrorizando,

nesta era superpopulosa. Sim, você é o sétimo filho de um

sétimo filho... nós costumávamos brincar sobre isso quando

você era bebê. Mas não depois, para o caso de você ter

idéias sobre uma segunda visão, ou seja lá o que eles dizem

Page 264: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

sobre isso.

— Ah, ah — disse Will com certo esforço. — Você

descobriu o que está errado com o mendigo, dr.

Armstrong?

— Para falar a verdade, ele me confundiu bastante —

disse o médico. — Ele deveria tomar um sedativo nesse

estado de perturbação, mas tem a pressão sangüínea e a

pulsação menores que eu já vi em toda a minha vida, por

isso estou em dúvida... Não há nada fisicamente errado

com ele, até onde posso afirmar. Provavelmente, ele tem a

mente delirante, como tantos desses velhos andarilhos; não

que seja possível ver muitos deles hoje em dia, eles

praticamente desapareceram. De qualquer forma, o

homem continua gritando para vê-lo, Will, então, se puder

suportar isso, eu o levarei até lá por um momento. Ele é

bastante inofensivo.

O Andarilho fazia muito barulho. E parou quando viu

Will estreitando os olhos. Seu humor mudou nitidamente;

estava mais confiante agora, e o rosto triangular cheio de

rugas bem claro. Olhou sobre o ombro de Will para o

médico e o sr. Stanton. — Vão embora — disse.

— Hum — resmungou o dr. Armstrong, mas saiu

levando o pai de Will para perto da porta, dentro do

alcance da visão, mas muito longe para ouvi-los. No

pequeno aposento que servia como uma área para

enfermos, sua perna quebrada estava esticada sobre a

cama, mas ele parecia estar dormindo.

— Você não pode me manter aqui — sussurrou o

Page 265: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Andarilho. — O Cavaleiro virá me buscar.

— Você já esteve com muito medo do Cavaleiro certa

vez — disse Will. — Eu vi você. Já se esqueceu disso

também?

— Eu esqueço de tudo — disse o Andarilho com

desdém.

— Aquele medo se foi. Partiu quando o Signo me

deixou. Deixe-me ir, deixe-me voltar para o meu povo. —

Uma formalidade firme e curiosa parecia surgir em seu

discurso.

— Seu povo não se importou em deixá-lo morrer

sobre a neve — disse Will. — De qualquer maneira, não

estou mantendo você aqui. Só o trouxe para ver o médico e

ele precisa vê-lo novamente; não posso deixar você sair no

meio de uma tempestade.

— Então, o Cavaleiro chegará — disse o velho. Seus

olhos cintilavam e ele ergueu a voz novamente de modo

que gritava para todos no aposento. — O Cavaleiro

chegará! O Cavaleiro chegará!

Will o deixou quando seu pai e o médico vieram

rapidamente em direção à cama.

— Mas o que está acontecendo aqui? — perguntou o

sr. Stanton. O Andarilho, com o doutor inclinando-se sobre

ele, reclinou-se novamente e caiu murmurando

furiosamente mais uma vez.

— Só Deus sabe — disse Will. — Ele não falava coisa

com coisa. Eu acho que o dr. Armstrong está certo, ele está

um pouco pirado. — Will olhou em volta do quarto, mas

Page 266: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

não viu sinal de Merriman.

— O que aconteceu com o sr. Lyon?

— Está por aí — disse seu pai de forma vaga. —

Encontre os gêmeos, sim, Will? Irei ver se a tempestade já

passou um pouco para que possamos ir.

O garoto permaneceu no salão alvoroçado, enquanto

as pessoas entravam e saíam com cobertores e

travesseiros, copos de chá, sanduíches e pratos vazios indo

e voltando da cozinha. Sentia-se estranho, distante, como

se estivesse em suspenso no meio deste mundo

preocupante e não fizesse parte dele. Olhou para a grande

lareira e mesmo o crepitar das chamas não conseguiam

abafar o uivo do vento lá fora e as rajadas de neve gelada

contra a janela.

As chamas cresciam, mantendo o olhar de Will. De

algum lugar fora do tempo, Merriman dizia em sua mente:

— Cuidado. É verdade. O Cavaleiro virá buscá-lo. Este é o

motivo que nos fez trazê-lo aqui, para um lugar fortalecido

pelo Tempo. De outra maneira, o Cavaleiro teria ido à sua

casa, e tudo o que o acompanha também...

— Will! — soou a voz imperiosa de contralto da srta.

Greythorne. — Venha aqui! — E Will olhou novamente para

o tempo presente e foi até ela. Viu Robin ao lado de sua

cadeira e Paul se aproximando com uma caixa plana e

comprida, em um formato familiar, em suas mãos.

— Nós pensamos em promover um tipo de concerto

até que a neve pare de cair — disse a srta. Greythorne

rapidamente. — Todos fazendo um pouquinho. Todos que

Page 267: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

gostarem da idéia, é isso. Uma cailey, ou qualquer outra

coisa que os escoceses possam chamar isso.

Will via a felicidade brilhar nos olhos de seu irmão.

— E Paul irá tocar aquela flauta antiga de que tanto gosta.

— No momento oportuno — disse Paul. — E você

cantará.

— Tudo bem — Will olhava para Robin.

— Eu — começou Robin — liderarei os aplausos.

Haverá muitos deles... nosso vilarejo parece ser

extremamente talentoso. A srta. Bell recitará um poema, os

três garotos de Domey têm uma banda de música

folclórica... dois deles até chegaram a trazer seus violões.

O velho sr. Dewhurst fará um monólogo, mas tente detê-lo.

A filhinha de alguém quer dançar. Não há fim pra isso.

— Eu pensei, Will — disse a srta. Greythorne —, que

talvez você pudesse começar. Se começasse apenas

cantando algo de que goste, então pouco a pouco as

pessoas parariam para ouvir e logo haveria completo

silêncio... muito melhor do que me ver tocando um sino ou

outra coisa, ou falando, "todos nós teremos um concerto",

você não concorda?

— Acho que sim — disse Will, embora nada pudesse

estar mais distante de seus pensamentos naquele momento

do que a idéia de apresentar uma música tranqüila. Ele

pensou subitamente e em sua mente surgiu uma pequena

canção melancólica que o mestre de música da escola

havia transposto para a voz dele, no semestre anterior,

como um experimento. Sentindo-se bastante exibido, Will

Page 268: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

abriu a boca e começou a cantar:

Brancas sob a Lua, estendem-se as longas

estradas,

E a lua acima permanece alva;

Brancas sob a Lua, estendem-se as longas

estradas 

Que me afastam de minha amada, 

Tranqüilas, longe do temporal, as margens vão

permanecer 

Tranqüilas, tranqüilas em meio às sombras

constantes:

Na poeira enluarada, onde meus pés podes

ver 

Prosseguem, prosseguem pelo caminho

incessante.

A conversa ao redor foi diminuindo até cair o

silêncio, Ele percebeu os rostos virando-se em sua direção

e quase se perdeu numa nota quando reconheceu algumas

das pessoas que esperava ver, mas que não as havia

encontrado antes. Lá estavam elas agora, discretamente ao

fundo: o fazendeiro Dawson, o Velho George, John Smith e

sua esposa; os Anciãos prontos novamente para se juntar

ao círculo, se necessário. Perto dali, encontrava-se o

restante da família Dawson, e o pai de Will estava perto

deles:

O mundo dá voltas, assim dizem os viajantes,

Page 269: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Mas direto a rota encontrará,

Marche, marche, logo tudo acabará

O caminho o guiará atento.

De soslaio, ele viu, chocado, a figura do Andarilho

com o cobertor enrolado ao redor de seu corpo como se

fosse uma capa; o velho estava de pé na porta do quarto

dos enfermos, ouvindo. Por um instante, Will avistou o seu

rosto, e era impressionante. Todo logro e terror tinham

desaparecido de sua face triangular; havia apenas tristeza

e anseios impossíveis. Era possível perceber até mesmo um

brilho de lágrimas em seus olhos. Era o rosto de um

homem revelando algo imensamente precioso que havia

perdido.

Por um segundo, Will sentiu que mediante sua

música ele poderia atrair o Andarilho para a Luz. Fitava-o

enquanto cantava, fazendo de cada nota um apelo, e o

Andarilho continuou fraco e infeliz, olhando para o

passado:

Mas antes que o círculo corra para casa.

Muito, muito, há para remover;

Brancas sob a lua, estendem-se as longas

estradas 

Que me afastam de minha amada.

O aposento se acalmou dramaticamente enquanto ele

cantava; a voz soprano do garoto, que sempre parecia

pertencer a um estranho, subiu alta e distante pelo ar.

Naquele momento houve um pequeno silêncio, a única

Page 270: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

parte da apresentação que significava alguma coisa para

ele, e, depois disso, muitos aplausos. Will os ouviu por um

longo tempo. A srta. Greythorne chamou a todos: — Nós

tivemos uma idéia para passar o tempo, todos que se

sentirem dispostos poderiam fazer algo divertido. Algo

para afastar a tempestade. Quem gostaria de participar?

Ouviu-se um alegre cochichar, e Paul começou a

tocar a flauta antiga do Solar, de forma lenta e não muito

alto. A graça suave do som encheu o aposento, e Will ficou

mais confiante enquanto ouvia e pensava sobre a Luz. Mas

no instante seguinte, a música não pôde mais fortalecê-lo.

Não conseguia mais ouvi-la. Seus cabelos estavam

arrepiados, seus ossos doíam; sabia que alguma coisa,

alguém estava se aproximando, desejando o mal para o

Solar, para todos lá dentro e principalmente para ele.

O vento aumentou. E gemia guinchando na janela.

Ouviu-se uma tremenda batida na porta. O Andarilho

saltou; sua face estava contorcida novamente, tensa com a

espera. Paul tocava, sem precedentes. A pancada na porta

soou mais uma vez. De repente, Will percebeu que

ninguém entre eles podia ouvi-la. Embora o vento estivesse

prestes a ensurdecê-los, não se tratava de seus ouvidos,

nem saberiam o que estava acontecendo naquele instante.

O baque soou pela terceira vez, e ele soube que

provavelmente iria atender ao chamado. Caminhou sozinho

pelas pessoas desatentas até a porta, segurou o grande

círculo de ferro da maçaneta, murmurou algumas palavras,

em um fôlego só, na Linguagem Antiga, e escancarou a

Page 271: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

porta.

A neve chuviscava sobre ele, a chuva de granizo

cortava seu rosto, os ventos assoviavam pelo salão. Lá fora,

na escuridão, o grande cavalo negro erguia suas patas

acima da cabeça de Will, com os cascos se agitando no ar,

os olhos brancos desassossegados e os dentes à mostra,

espumando. E sobre ele cintilavam os olhos azuis do

Cavaleiro e o avermelhado luminoso de seus cabelos.

Contra a sua vontade, Will gritou, levantando um braço

instintivamente em autodefesa.

E o garanhão negro relinchou e correu para as

Trevas com o Cavaleiro; a porta se fechou, e não havia

mais nada nos ouvidos de Will, exceto a doce cadência da

flauta antiga que Paul continuava tocando. As pessoas se

sentaram esparramadas tranqüilamente como tinham feito

antes. Lentamente, Will abaixou o braço, ainda encurvado

defensivamente sobre sua cabeça, e, enquanto fazia isso,

percebeu algo de que havia esquecido completamente. Na

parte inferior do antebraço, que usara para enfrentar o

Cavaleiro Negro quando ele havia segurado seu braço,

encontrava-se a cicatriz queimada do Signo de Ferro. No

início de tudo, naquele outro Grande Salão, ele havia se

queimado no Signo quando as Trevas fizeram sua primeira

investida contra ele. Uma queimadura que tinha sido

curada pela Dama. Will esqueceu que foi ali. Você já tem

um signo do fogo.

Então era isso que ela queria dizer...

Um Signo de Fogo havia mantido as Trevas ao longe,

Page 272: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

rechaçando seu ataque mais forte, talvez. Will se reclinou

debilitado contra a parede e tentou respirar lentamente.

Mas enquanto observava a multidão tranqüila ouvindo a

música, avistou novamente a figura que jogara toda a sua

confiança no nada, e o instinto rápido da Magia lhe disse

que havia caído numa armadilha. Pensou que estivera

apenas enfrentando um desafio, e realmente estava. Mas

ao fazer isso, abriu a porta entre as Trevas e o Andarilho, e

assim, de alguma maneira, fortaleceu o velho mendigo a

ponto de fazê-lo ganhar o poder pelo qual tanto esperara.

Pois o Andarilho encontrava-se mais alto agora, seus

olhos estavam brilhantes, sua cabeça altiva e suas costas

eretas. Ele ergueu um braço bem alto e gritou forte e

claramente:

— Venha lobo, venha cão, venha gato, venha rato,

venha Held, venha Holda, eu os convido para entrar!

Venha Ura, venha Tann, venha Coll, venha Quert, venha

Morra, venha Mestre, eu os faço entrar!

As invocações continuaram, uma longa lista de

nomes, todos conhecidos de Will pelo Livro da Magia. No

salão da srta. Greythorne, ninguém podia ver ou ouvir;

tudo continuava como antes e, com o final da música de

Paul e o começo determinado e alto do monólogo do velho

sr. Oewhurst, todo olhar lançado na direção de Will parecia

não enxergá-lo ali. Ele se perguntava se seu pai, ainda

conversando com os Dawson, teria rapidamente percebido

que seu filho mais novo não estava sendo visto.

Mas logo, enquanto o soar das invocações do

Page 273: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Andarilho continuavam, ele parou de pensar sobre isso,

pois sob as suas sensações o salão começou a mudar

subitamente; o antigo salão da Dama começava a voltar em

sua consciência e passou a absorver cada vez mais a

aparência do salão do tempo presente. Amigos e família se

desvaneceram; somente o Andarilho permanecia nítido

como antes, de pé agora, no fundo do Grande Salão, longe

do fogo. E enquanto Will olhava para o grupo com o qual

seu pai estava, mesmo enquanto sumiam, ele pôde ver a

troca pela qual os Anciãos eram capazes de se mover

dentro e fora do Tempo. Viu uma forma de Frank Dawson

sair facilmente da primeira, deixando este outro eu como

parte do presente; a segunda forma ficou cada vez mais

nítida enquanto caminhava na direção dele e, depois disso,

o mesmo aconteceu com o Velho George, o jovem John e a

mulher de olhos azuis. Will sabia que aquela foi a sua

maneira de chegar até lá também.

Logo, os quatro se reuniram ao seu redor, no centro

do salão da Dama, cada um afrontando um dos quatros

cantos de um quadrado. E enquanto o Andarilho invocava

sua longa lista das Trevas, o próprio Salão começou a

mudar. Luzes estranhas e chamas bruxuleavam pelas

paredes, turvando a visão das janelas e maçanetas. Aqui e

ali, ao som de um nome em particular, o fogo azul se

lançava impetuosamente no ar e se apagava novamente.

Em cada uma das três paredes diante da lareira, três

grandes chamas sinistras cresciam rápidas e não se

apagavam depois disso, mas permaneciam dançando e se

Page 274: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

curvando em um brilho medonho, preenchendo o salão com

uma luz fria.

Diante da lareira, na grande cadeira talhada que ele

havia ocupado desde o princípio, Merriman permanecia

imóvel. Havia uma terrível força contida na forma como se

sentara; Will olhava para os ombros largos com mau

pressentimento, como se estivesse olhando para uma fenda

gigantesca que poderia a qualquer momento romper.

O Andarilho entoava ainda mais alto: — Venha, Bath,

venha, Truta, venha, Feriu, venha, Lota! Venha, Burgo,

venha, Calais, eu os faço entrar...

Merriman se levantou, era como um grande pilar

branco e negro. Seu manto o envolvia. Apenas seu rosto

impassível estava à vista, deixando a luz resplandecer nos

volumosos cabelos brancos. O Andarilho olhou-o e

titubeou. Em volta do salão, o fogo espesso e as chamas

das Trevas dançavam e murmuravam, nos tons de branco,

azul e preto, sem tonalidades dourada, avermelhada ou

quente neles. As nove chamas mais altas permaneciam

eretas como árvores ameaçadoras.

Mas o Andarilho parecia ter perdido a voz

novamente. Olhou mais uma vez para Merriman e

encolheu-se em seguida. E através do misto de anseio e

medo em seus olhos brilhantes, Will o reconheceu

subitamente.

— Hawkin — disse Merriman suavemente —, ainda

há tempo para voltar para casa.

Page 275: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

O FALCÃO DAS TREVAS 

O Andarilho respondeu num sussurro: — Não.

— Hawkin — continuou Merriman, gentilmente —,

todo homem tem uma última escolha depois da primeira,

uma chance de perdão. Não é tarde demais. Volte. Venha

para a Luz.

A voz era quase inaudível, um mero sussurro rouco:

— Não.

As chamas ainda se erguiam e, imponentes,

rodeavam o Grande Salão. Ninguém se movia.

— Hawkin — dizia Merriman, e não havia tom de

ordem em sua voz, porém apenas conforto e súplica. —

Hawkin, vassalo, abandone as Trevas. Tente se lembrar.

Certa vez, havia amor e confiança entre nós.

O Andarilho o fitava como um homem sentenciado, e

agora, no rosto pontudo e enrugado, Will podia enxergar

claramente os traços do homenzinho alegre que fora

Hawkin, trazido de seu próprio tempo para o resgate do

Livro da Magia, e lembrar do choque que o fez enfrentar a

morte e trair os Anciãos em prol das Trevas. Ele se

lembrava da dor que havia visto no olhar de Merriman

enquanto observavam o início daquela traição e da terrível

certeza que o fez contemplar o destino de Hawkin.

O Andarilho ainda olhava fixamente para Merriman,

mas seus olhos não enxergavam. Eles olhavam o passado,

enquanto o velho redescobria tudo o que havia esquecido,

ou retirado de sua mente. E disse lentamente, com um tom

Page 276: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

de reprovação:

— Você me fez arriscar minha própria vida por um

livro. Por um livro. Depois, porque olhei para mestres mais

gentis, você me enviou para o meu próprio tempo, mas não

como eu havia sido antes. Você me deu, então, o fardo de

carregar o Signo. — A sua voz se intensificava cada vez

mais pela dor e ressentimento enquanto se lembrava. — O

Signo de Bronze, através dos séculos. Você me

transformou de um homem para uma criatura sempre em

fuga, sempre a procura, sempre caçada. Você me impediu

de envelhecer decentemente em meu próprio tempo, como

todos os homens fazem, ficando velhos, cansados e enfim

mergulhando no sono da morte. Você me tirou o direito de

morrer. Você me colocou em meu próprio século com o

Signo, hã tanto tempo, e você me fez carregá-lo através de

seiscentos anos até a era atual.

Os olhos dele piscaram na direção de Will e

refletiram um lampejo de ódio. — Até que o último dos

Anciãos nascesse, para tirar o Signo de mim. Você, garoto,

tudo por você. Esta mudança no tempo, que tirou minha

vida boa como homem, tudo isso é por sua causa. Antes de

você nascer, e depois. Por causa de seu maldito dom da

Magia, perdi tudo o que eu amava.

— Deixe-me dizer uma coisa — gritou Merriman —,

você pode voltar para casa, Hawkin! Agora! É sua última

chance: você pode voltar para a Luz e ser como era antes.

— Sua silhueta ereta e orgulhosa se inclinou para a frente,

suplicante, e Will se condoeu por ele, pois sabia que, para

Page 277: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Merriman, foi seu julgamento equivocado que levara seu

servo Hawkin à traição e à vida de um deplorável

Andarilho, uma carapaça lamuriosa comprometida com as

Trevas.

Merriman disse roucamente: — Eu imploro, meu

filho...

— Não — disse o Andarilho. — Eu encontrei mestres

melhores do que você. — As nove chamas das Trevas

rodearam as paredes espalhando o frio e queimavam com a

luz azul, tremulando. Ele apertou ainda mais o cobertor

escuro que o envolvia e olhava furiosamente pelo salão.

Depois disso, gritou de maneira esganiçada e desafiadora:

— Mestres das Trevas, eu os faço entrar!

E as nove chamas se moveram das paredes,

aproximando-se do centro do aposento, ficando mais perto

de Will e dos quatro Anciãos. Will foi ofuscado pelo brilho

azul e branco e não avistava mais o Andarilho. Em algum

lugar atrás das grandes luzes, a voz aguda soou gritando

novamente, alta e ensandecia pela amargura. - Você

arriscou a minha vida pelo Livro! Você me obrigou a

carregar o Signo! Você deixou as Trevas me rondarem

através dos séculos, mas nunca me deixou morrer! Agora é

sua vez!

"Sua vez! Sua vez!" ecoava o grito pelas paredes. As

nove chamas moviam-se lentamente para mais perto, e os

Anciãos permaneceram no centro do pavimento

observando sua aproximação. Ao lado da lareira, Merriman

virou-se vagarosamente para o centro do aposento. Will viu

Page 278: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

que seu rosto estava impassível novamente; os olhos

profundos e vazios e as rugas perfeitamente delineadas; e

soube que ninguém veria qualquer emoção intensa auto-

reveladora naquele rosto por muito tempo. A oportunidade

do Andarilho de resgatar a mente e o coração de Hawkin

veio e foi rejeitada, e agora se foi para sempre.

Merriman ergueu ambos os braços e a capa caiu

como asas. A voz profunda soou no silêncio crepitante: —

Pare!

As nove chamas pararam e permaneceram imóveis.

— Em nome do Círculo dos Signos — disse

Merriman, com nitidez e firmeza —, ordeno que saia desta

casa.

A luz fria das Trevas que rodeava todas as paredes

atrás das grandes chamas bruxuleou e crepitou como o

grito. E além da escuridão, soou a voz do Cavaleiro Negro.

— Seu círculo não está completo e você não tem esse

poder — gritou ele com zombaria. — E seu vassalo nos

convocou para dentro desta casa, como fez antes e pode

fazê-lo novamente. Nosso vassalo, meu senhor. O falcão

está nas Trevas... Você não pode mais nos afugentar daqui.

Nem com chama, nem pela força, nem com o poder

reunido. Nós quebraremos seu Signo do Fogo antes que

possa ser libertado, e seu Círculo nunca se juntará. Antes,

será quebrado no frio, meu senhor, nas Trevas e no frio...

Will estremeceu. De fato, estava ficando mais frio no

Salão, muito frio. O ar era como uma corrente de água

gelada, vindo sobre eles de todos os lados. O fogo na

Page 279: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

grande lareira não emitia calor agora; qualquer calor era

sugado pelas chamas frias e azuis das Trevas ao redor. As

nove chamas tremularam novamente, enquanto as olhava,

o menino podia jurar que não se tratava de chamas, mas de

estalactites de gelo gigantes, azuis e brancas, como antes,

porém sólidas, ameaçadoras: grandes pilares prontos para

serem derrubados e esmagá-los sob seu peso e frio.

— ... frio — disse o Cavaleiro Negro suavemente das

sombras — ... frio...

Will olhava assustado para Merriman. Sabia que

cada um deles, cada Ancião no aposento, estava investindo

contra as Trevas com todo o poder que possuíam desde

que a voz do Cavaleiro soou pela primeira vez e sabia que

nenhum esforço empreendido surtiu qualquer efeito.

Merriman disse suavemente: — Hawkin os deixa

entrar, como ele fez em sua primeira traição, e não

podemos impedir isso. Durante certa vez, ele teve minha

confiança e isto lhe proporcionou este poder mesmo depois

que a confiança já não existia mais. Nossa única esperança

está no que era desde o princípio: Hawkin nada mais é do

que um homem... Quando os encantos do frio profundo são

criados, há pouco o que se pode fazer contra eles.

Ele continuou no tom de desaprovação enquanto o

círculo de fogo azul e branco tremulava e dançava; ele

mesmo parecia frio, com um olhar sombrio no rosto. —

Eles trouxeram o frio profundo — disse ele, em parte para

si mesmo.

O frio do vazio, do buraco negro.

Page 280: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

E o frio ficou ainda mais intenso, investindo contra o

corpo e a mente. Porém as chamas das Trevas pareciam ao

mesmo tempo diminuir, e Will percebeu que seu próprio

século estava novamente ressurgindo ao seu redor, e já se

encontravam de volta no solar da srta. Greythorne.

E lá também se sentia o frio.

Tudo estava mudando agora; o murmúrio de vozes

havia alterado de um alegre burburinho para um murmúrio

de ansiedade, e o alto aposento encontrava-se fracamente

iluminado por velas dispostas em castiçais, copos e pratos,

onde quer que houvesse espaço. Todas as lâmpadas

elétricas estavam apagadas, e os grandes radiadores de

metal que aqueciam a maior parte do salão não emitiam

calor.

Merriman correu intrigantemente para perto do

Cavaleiro Negro com a velocidade de alguém retornando

de um rápido serviço de rua; sua capa estava subitamente

diferente, havia mudado para o casaco que ele vestia mais

cedo naquele dia. Disse para a srta. Greythorne: — Não há

muito que podemos fazer aqui embaixo, senhora. A

fornalha já se extinguiu, é claro. Todas as linhas de energia

elétrica quase não funcionam mais. E também o telefone.

Eu peguei todos os cobertores e edredons da casa, e a srta.

Hampton está preparando uma enorme quantidade de sopa

e bebidas quentes.

A srta. Greythorne aquiesceu em aprovação. — Foi

bom termos mantido os antigos fornos a gás. Sabe Lyon,

eles queriam que eu os trocasse quando fizemos a

Page 281: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

instalação dos aquecedores centrais. Eu não faria isso. A

eletricidade, bem... sempre soube que a velha casa não

resistiria a ela.

— Estou providenciando o máximo de madeira

possível para manter o fogo aceso — disse Merriman, mas,

no mesmo instante, como numa zombaria, um som

sibilante e uma quantidade de fumaça surgiram da lareira

ampla, fazendo aqueles que estavam perto sair

rapidamente dali, engasgados e gaguejando. Através da

repentina nuvem de fumaça soprada, Will pôde avistar

Frank Dawson e Velho George esforçando-se para remover

alguma coisa do fogo.

Mas o fogo apagou.

— A neve está caindo na chaminé! — gritou o

fazendeiro Dawson, tossindo. — Precisaremos de baldes,

Merry, rápido. Isto aqui está uma bagunça.

— Eu pego — gritou Will e correu para a cozinha,

contente de ter a chance de se mover. Mas antes que

pudesse alcançar a porta através dos grupos encolhidos de

pessoas amedrontadas e geladas, uma figura se ergueu

diante dele bloqueando o caminho, e duas mãos seguraram

seus braços numa garra tão apertada que ele emitiu um

grito sufocado de dor. Os olhos brilhantes perscrutavam os

seus, cintilando com um triunfo selvagem, e o volume mais

alto da voz do Andarilho soou esganiçada em seus ouvidos.

— Ancião, Ancião, último dos Anciãos, você sabe o

que vai acontecer com você? O frio está entrando, e as

Trevas vão congelá-lo. Frio e rigor e todos vocês estão

Page 282: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

impotentes. Ninguém protegerá os pequenos Signos em

seu cinto.

— Solte-me! — contorcia-se Will com raiva, mas o

velho segurando seus pulsos era um fecho de loucura.

— E você sabe quem irá pegar esses Signozinhos,

Ancião? Eu irei. O pobre Andarilho, e os vestirei. Eles me

foram prometidos como uma recompensa pelos meus

serviços... nenhum senhor da Luz jamais me ofereceu uma

recompensa assim. Ou qualquer outro... eu serei o

Descobridor dos Signos, serei, e tudo o que foi seu, no

final, virá para mim...

Ele agarrou o cinto de Will, seu rosto estava

distorcido pelo triunfo, a boca salivava como espuma, e

Will gritou por socorro. Em um instante, John Smith estava

ao seu lado, com o dr. Armstrong logo atrás; o enorme

ferreiro prendeu as mãos do Andarilho pelas costas. O

velho praguejava e tremia, seus olhos resplandeciam o ódio

que sentia por Will e os homens precisaram se esforçar

para segurá-lo. Depois de um tempo, ele se encontrava

preso e inofensivo. E o dr. Armstrong afastou-se com um

suspiro exasperado.

— Este camarada deve ser a única coisa quente em

todo o país — comentou ele —, por causa de todas as vezes

em que ficou fora de si, com pulso ou sem pulso. Eu vou

colocá-lo para dormir por enquanto. Ele é um perigo para a

comunidade e para si mesmo.

Will pensou, esfregando o punho dolorido: "se você

soubesse o tipo de perigo que ele é...". Então,

Page 283: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

repentinamente, começou a perceber o que Merriman

queria dizer com: Nossa única esperança está no que era

desde o princípio: Hawkin nada mais é do que um homem...

— Mantenha-o lá, John, enquanto pego minha valise

— disse o médico e desapareceu. John Smith, com um

punho enorme segurando o ombro do Andarilho e o outro

os dois pulsos, piscou incentivadoramente para Will

olhando rapidamente para a cozinha; subitamente, Will se

lembrou do serviço que se dispusera a fazer e correu.

Quando voltou apressado com dois baldes vazios em cada

mão, havia uma nova comoção na lareira; um novo assovio

começava a soar e a fumaça se espalhava fazendo Frank

Dawson cambalear para trás.

— Inútil! — disse ele furiosamente. — Inútil! A gente

limpa a lareira por um momento, e mais neve é derramada

aqui embaixo. E o frio... — Ele parecia desesperado. —

Olhe para eles, Will.

O aposento estava no caos e na miséria: os

bebezinhos gemiam, os pais abraçavam seus filhos para

mantê-los aquecidos o suficiente para respirar. Will

esfregou as mãos geladas e tentava sentir os pés e o rosto

através da dormência causada pelo frio. O salão se tornava

cada vez mais gélido e, do mundo congelante lá fora, não

se ouvia sequer o barulho do vento. A sensação de estar

dentro de dois níveis do Tempo, de uma só vez, ainda

pairava em sua mente, embora tudo o que pudesse sentir

naquele momento em relação ao solar antigo era a

consciência das grandes velas geladas brilhando sinistras e

Page 284: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

persistentes ao redor dos três lados do salão. Elas eram

como fantasmas, quase invisíveis, desde quando ele se viu,

pela primeira vez, trazido de volta pelo frio de seu tempo

real; mas, como o frio se intensificava, as luzes ficavam

mais nítidas. Will as olhava atentamente. E sabia que, de

alguma maneira, elas personificavam o poder das Trevas

no auge de seu solstício de inverno; porém, ele também

sabia que as velas faziam parte de uma magia

independente aproveitada pelas Trevas, a qual, como

tantas outras coisas naquela longa batalha, poderia ser

rechaçada pela Luz, bastando apenas que a coisa certa

fosse feita no tempo certo. Como? Como?

O dr. Armstrong já retornava ao quarto dos enfermos

com sua valise preta. Talvez pudesse haver, afinal, um

meio de deter as Trevas antes que o frio pudesse atingir o

ponto de destruição. Um homem, sem querer, oferecendo

ajuda a outro: este poderia ser o pequeno evento para

revirar toda a força sobrenatural das Trevas... Will

esperou, tomado repentinamente pela tensão da

empolgação. O médico se moveu na direção do Andarilho,

que ainda praguejava incoerentemente sob a firmeza do

pulso de John Smith, e então deslizou uma agulha

habilidosamente no braço do velho errante antes que ele

soubesse o que estava sendo feito com ele. — Pronto —

disse ele tranquilizadoramente. — Isso o ajudará. Durma

bem.

Instintivamente, Will avançou alguns passos, caso

precisassem de ajuda, e viu que assim como ele, Merriman,

Page 285: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

o fazendeiro Dawson e o Velho George estavam se

aproximando também. O médico e o paciente encontravam-

se fechados pelo círculo dos Anciãos, todos ao redor,

protegendo contra possíveis interferências.

O Andarilho avistou Will e rosnou como um cachorro,

revelando seus dentes quebrados e amarelados. —

Congelar, você vai congelar — disse cuspindo nele — e os

Signos serão meus, sem dúvida alguma... — Mas logo

titubeou e piscou, sua voz ficava mais baixa conforme o

medicamento espalhava a sonolência pelo corpo dele, e

mesmo quando a desconfiança começou a aparecer em

seus olhos, suas pálpebras se fecharam. Cada um dos

Anciãos avançou um ou dois passos, apertando o círculo. O

velho piscou novamente, mostrando a parte branca de seus

olhos horríveis num instante repentino e então ficou

inconsciente.

E com a mente do Andarilho fechada, os meios

utilizados pelas Trevas para entrar na casa foram fechados

também.

Instantaneamente, foi perceptível a diferença no

aposento pelo relaxamento das tensões. O frio não era mais

tão intenso, a infelicidade e o assombro ao redor deles

começaram a se dissipar como uma névoa. O dr. Armstrong

se ergueu, com uma pergunta e uma expressão confusa no

olhar; os olhos dele se arregalaram quando percebeu o

círculo de rostos determinados ao redor. E começou a

perguntar indignado: — O que...?

Mas o restante das palavras dele não foi escutado

Page 286: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

por Will, pois, ao mesmo tempo, Merriman os chamava da

multidão, com urgência, silenciosamente, num discurso da

mente que nenhum homem poderia ouvir. — As velas! As

velas do inverno! Pegue-as, antes que desapareçam!

Os quatro Anciãos se dispersaram rapidamente pelo

salão, onde os estranhos cilindros azuis e brancos ainda

queimavam fantasmagoricamente pelas três paredes,

queimando com suas chamas frias e mortais. Voltando a

atenção diretamente para as velas, eles as seguraram,

duas em cada mão; Will, sendo o menor, subiu rapidamente

em uma cadeira para alcançar a última. Era fria, pesada e

lisa ao toque, como gelo que não derreteu. No momento

que a tocou, ficou atordoado, sua cabeça começou a girar...

.... e logo ele se encontrava novamente no Grande

Salão dos tempos antigos como os outros quatro e, ao lado

da lareira, a Dama estava sentada em sua cadeira de

encosto alto, acompanhada da esposa do ferreiro sentada

aos seus pés, olhando através dos límpidos olhos azuis.

Estava claro o que deveria ser feito. Tomando as

velas das Trevas, eles avançaram em direção aos encaixes

do grande anel de ferro, semelhante a uma mandala,

acomodado sobre a mesa maciça, e cada um deles encaixou

as velas nos nove soquetes que permaneciam vazios na

peça central da cruz. Cada vela mudou subitamente

enquanto era colocada em seu devido lugar, a chama

crescia mais espessa e alta, assumindo a tonalidade

dourada e branca no lugar do frio e ameaçador azul. Will,

com sua única vela, foi o último. Ele estendeu o braço para

Page 287: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

encaixá-la no último soquete, situado bem no centro do

desenho e, enquanto fazia isso, as chamas das velas se

ergueram em um triunfante círculo de fogo.

A voz frágil da velha dama soou: — Aí está o poder

apreendido das Trevas, Will Stanton. Pela mágica fria, eles

invocaram as velas do inverno para a destruição. Mas,

agora que as apreendemos para um propósito melhor, as

velas se fortalecerão e serão capazes de levá-lo ao Signo do

Fogo. Veja.

Retrocederam alguns passos, observando, e a última

vela central que Will colocara no lugar começou a crescer.

Quando sua chama se estendeu acima das outras, ela

assumiu uma tonalidade nova: amarela, laranja e vermelha;

como continuava a crescer, alterou sua forma

transformando-se numa estranha flor sobre uma estranha

haste. Um botão curvado, cheio de pétalas que

resplandecia ali; cada pétala possuía um tom diferente das

cores das chamas; lenta e graciosamente, cada pétala

abriu e caiu, flutuando e desmanchando-se no ar. E

finalmente, no topo da longa haste curvada da planta de

chama avermelhada, um reluzente broto foi deixado,

ondulando suavemente por um momento, e numa explosão

rápida e silenciosa se abriu: os cinco lados desabrocharam

ao mesmo tempo como pétalas rijas. Em seu interior, havia

um círculo vermelho dourado na forma que todos

conheciam.

A Dama ordenou: — Pegue-o, Will.

Will, admirado, deu dois passos em direção à mesa, e

Page 288: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

o elegante pedúnculo se curvou para ele; enquanto o

menino estendia a mão, o círculo dourado se depositou

sobre ela. Instantaneamente, uma onda de poder invisível o

atingiu, um eco daquilo que ele havia sentido no momento

da destruição do Livro da Magia... e enquanto cambaleava

e se equilibrava novamente, percebeu que a mesa se

encontrava vazia. Num piscar de olhos, tudo o que estava

sobre ela havia desaparecido: a flor estranha, as nove velas

resplandecentes e o Signo na forma de um encaixe de ferro

que continha todas elas. Sumiram. Tudo desapareceu:

tudo, exceto o Signo do Fogo.

Estava na palma de sua mão, quente ao toque, uma

das coisas mais belas que ele já tinha visto. Ouro de várias

e diferentes tonalidades foi batido com grande habilidade

artesanal para gerar a forma do círculo cruzado; em todos

os lados, foram colocadas minúsculas gemas de rubis,

esmeraldas, safiras e diamantes, num desenho estranho e

rúnico que parecia estranhamente familiar aos olhos de

Will. O objeto cintilava e reluzia em sua mão como todos os

tipos de fogo que já existiram. Olhando de perto, viu

algumas palavras escritas com letras bem pequenas ao

redor da extremidade mais afastada:

LIHT MEC HEHT GEWYRCAN 

E disse Merriman suavemente: — A Luz ordenou que

eu Tosse criado. Exceto por um, eles tinham todos os

demais Signos agora. Com júbilo, Will estendeu os braços,

agitando-os alegremente no ar, segurando o Signo no alto

para que todos pudessem vê-lo, e o círculo de ouro

Page 289: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

trabalhado capturou o brilho de todas as luzes do salão,

bruxuleando como se fossem feito de chamas.

De algum lugar externo, ouviu-se um estrondoso

rugido revelando um longo gemido de raiva em seu

interior. O som retumbava, rosnava e surgia como um

estrondo novamente...

... e quando soou em seus ouvidos, Will estava de

volta ao salão da srta. Greythorne, com todos ao redor

dele; todos os rostos conhecidos do vilarejo virados para o

telhado em sinal de indagação e para o resmungo que

rugia no céu adiante.

— Um trovão? — perguntou alguém, intrigado.

Luzes azuis bruxuleavam em todas as janelas, e o

trovão soava tão próximo aos ouvidos que todos

estremeceram. Novamente surgiram os relâmpagos, e

novamente o trovão rugiu. Em algum lugar, uma criança

começou a chorar alto e estridente. Mas enquanto todo o

aposento lotado aguardava pelo próximo estrondo, não se

ouviu mais nada. Nenhum relâmpago, nenhum trovão,

nada mais do que um murmúrio longínquo. No lugar,

depois de um silêncio curto de respiração entrecortada,

preenchido apenas pelo sussurro das cinzas na lareira,

ouviu-se o som leve de uma batida na porta do lado de fora,

intensificando sutilmente e pouco a pouco até se tornar um

inconfundível staccato contra as janelas, portas e telhados.

A mesma voz anônima gritou de alegria: — Chuva!

E as vozes irromperam ao redor animadas, e as faces

sombrias brilharam; várias pessoas correram para olhar

Page 290: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

pela janela, fazendo um sinal de alegria para os outros. Um

velho que Will nunca se lembrou de ter visto em sua vida

virou-se para ele com um sorriso desdentado e disse: — A

chuva derreterá a neve, de uma vez por todas!

Robin surgiu dentre a multidão. — Ah, aqui está

você. Estou ficando maluco, ou este aposento de repente

parece quente?

— Está mais quente — disse Will, tirando o pulôver.

Embaixo dele, o Signo de Fogo encontrava-se em seu cinto,

seguro com os outros.

— Engraçado, ficou tão horrivelmente frio por um

tempo. Eu acho que eles conseguiram ligar o aquecedor

central novamente...

— Vamos ver a chuva! — Dois garotos apressados

correram até a porta principal. Mas, enquanto eles ainda

mexiam na maçaneta, uma série de batidas, rápidas e

audíveis, soou do lado de fora; e lá na escada, quando a

porta foi aberta, com os cabelos alisados na cabeça pela

chuva suave que caía, encontrava-se Max.

Ele estava sem fôlego e era possível perceber que

tentava respirar urgentemente para conseguir falar. — A

srta. Greythorne está? Meu pai?

Will sentiu uma mão em seu ombro e viu Merriman

ao seu lado. Subitamente soube pela preocupação nos seus

olhos que de alguma maneira tratava-se do atual ataque

das Trevas. Max o avistou e se aproximou; a chuva escorria

por seu rosto e ele se sacudia como um cachorro.

— Chame nosso pai, Will — disse ele. — E o médico,

Page 291: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

se ele puder vir. A mamãe sofreu um acidente, ela caiu da

escada. Ainda está inconsciente, e achamos que ela

quebrou uma perna.

O sr. Stanton já tinha ouvido e correu até o quarto do

médico.

Will olhava tristemente para Max. Ele chamou por

Merriman em silêncio, atemorizado: — Eles fizeram isto?

Fizeram?

A Dama disse...

— É possível — disse a voz em sua mente. — Eles não

podem ferir você, verdade, e eles não podem destruir os

homens. Mas podem incentivar os próprios instintos

humanos a fazer-lhes mal. Ou fazer soar um estrondo

inesperado de trovão, quando alguém estiver no topo de

uma escada... Will não ouviu mais do que isso. Já se

encontrava do lado de fora da porta com seu pai, seus

irmãos e o dr. Armstrong, seguindo Max até seu lar.

O REI DO FOGO E DA ÁGUA .

James ainda olhava pálido e angustiado, mesmo

depois que o médico chegou e examinou a sra. Stanton na

sala de Estar. Ele ficou ao lado de seus irmãos que estavam

mais perto dali, justamente Paul e Will, e os levou para

longe do Restante, de modo que não os ouvissem. E disse,

infeliz:

Mary desapareceu.

— Desapareceu?

Page 292: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— De verdade. Eu disse para ela não ir. Eu não

pensei que ela iria, eu pensei que ela ficaria com muito

medo. — E A preocupação levou o estóico James à beira

das lágrimas.

— Mas foi pra onde? — perguntou Paul asperamente.

— Para o Solar. Foi depois que Max partiu para

chamar vocês. Gwennie e Barb estavam na sala de estar

com nossa mãe; Mary e eu na cozinha tomando chã, e ela

ficou toda aborrecida e disse que Max já tinha saído há

muito tempo e nós deveríamos sair e verificar se alguma

coisa tinha acontecido com ele. Eu lhe disse para não ser

tão idiota, pois e claro que não iríamos, mas aí, a Gwen me

chamou para ajudá-la a acender o fogo, e, quando eu

voltei, Mary já tinha saído levando seu casaco e botas. —

Ele choramingou:

― Eu não consegui ver qualquer sinal para onde ela

pudesse ter ido; lá fora... a chuva acabara de começar e

não restava mais qualquer pegada. Eu já estava saindo

atrás dela sem dizer nada, pois as garotas tinham muito

com o que se preocupar, mas então vocês chegaram, e eu

pensei que ela estaria com vocês. Só que não estava. Ai,

meu Deus — disse James, aflito. — Ela é uma completa

idiota.

— Não se preocupe — disse Paul — Ela não pode ter

ido muito longe. Vá e espere por um bom momento para

explicar isso ao nosso pai e diga-lhe que eu saí para

procurá-la. Levarei Will, nós ainda estamos vestidos com

nossas roupas quentes.

Page 293: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Bom — disse Will, que tentava rapidamente pensar

nos argumentos para poder ir junto.

Quando se encontravam sob a chuva novamente, a

neve já começara a derreter branca e cinzenta sob seus

pés. Paul perguntou: — Não acha que está na hora de me

contar o que tudo isso significa?

— O quê? — perguntou Will, estarrecido.

— No que você está envolvido? — disse Paul. Seus

olhos azuis claros olhavam severamente através de seus

pesados óculos.

— Nada.

— Veja bem, se Mary partiu, isso pode ter algo a ver

com isto, e você precisa dar uma explicação.

— Ai, Deus! — exclamou Will. Ele olhava para a

determinação ameaçadora de Paul e perguntava-se como

explicaria para seu irmão mais velho que um menino de

onze anos não era de fato um menino de onze anos, mas

uma criatura sutilmente diferente da espécie humana,

lutando para sobreviver... Não se explica, é claro.

Ele disse: — Trata-se disto, eu acho — perscrutando

cautelosamente o irmão, afastou a jaqueta e pulôver de seu

cinto e mostrou os Signos para Paul. — Eles são

antiguidades. Umas fivelas que o sr. Dawson me deu de

aniversário, mas elas devem ser muito valiosas, pois dois

ou três malucos já apareceram e tentaram pegá-las. Um

homem me perseguiu na Trilha do Vale do Caçador, certa

vez... e aquele mendigo estava metido com eles de alguma

forma. Foi por isso que eu não quis trazê-lo para casa, no

Page 294: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

dia era que o encontramos na neve.

Ele pensava como tudo aquilo tinha soado

improvável.

Hum — disse Paul. — E aquele camarada no Solar, o

novo mordomo? Lyon, não é? Ele está metido com esses

palhaços?

— Ah, não — disse Will rapidamente. — Ele é meu

amigo.

Paul olhou-o por um momento, sem expressão. Will

pensava sobre o dia no porão, quando seu irmão se

mostrou tão compreensivo no começo, e na forma como ele

havia tocado a flauta antiga e soube que se havia alguém

entre seus irmãos a quem poderia fazer confidencias, este

era Paul. Mas isto estava fora de questão.

E Paul disse: — Obviamente você não me contou nem

metade da história, mas isso eu verei mais tarde. Presumo

que para você esses caçadores de antigüidades possam ter

levado Mary como um tipo de refém?

Eles chegaram ao fim da entrada da casa. A chuva

caía sobre eles, pesada mas não tão desagradável, e

começava a derreter os bancos de neve, escorrendo das

árvores, transformando as estradas em um riacho que se

move rapidamente. Eles olhavam para cima e para baixo,

em vão.

Will disse: — Eles devem ter. Quero dizer, ela deve

ter ido direto para o Solar, mas então por que não a vemos

no caminho de casa?

— Nós iremos por ali de qualquer maneira, para

Page 295: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

verificar. — Paul inclinou sua cabeça subitamente e fitou o

céu. — Essa chuva! É ridículo! Assim, de repente, acaba

toda aquela neve... e está tão mais quente também. Não faz

sentido. — Ele saiu correndo respingando a água do riacho

que era a Trilha do Vale do Caçador e olhou para Will com

um meio sorriso de perplexidade. — Muitas coisas não

estão fazendo sentido para mim agora.

— Ah — disse Will. — Hum. Não. — Ele saiu

correndo, fazendo barulho com o respingo da água, para

abafar seu remorso, e procurava através da chuva por

algum sinal da irmã. O barulho ao redor deles era

impressionante agora: um ruído oceânico de espuma

borbulhante, de ondas se quebrando na praia, enquanto o

vento fazia a chuva ser desviada ritmicamente pelas

árvores. Um ruído mais antigo, como se eles estivessem na

extremidade de um oceano enorme que precede os

homens. No alto da estrada por onde corriam, eles olhavam

e gritavam obstinadamente de ansiedade; tudo o que eles

viram se tornou várias vezes estranho, enquanto a chuva

talhava a neve em novos caminhos e outeirinhos. Mas

quando chegaram à uma curva, Will soube muito bem onde

estavam.

Ele viu Paul se esconder defensivamente sob um

braço levantado, ouviu o som rouco e áspero de um

grasnado abruptamente alto que logo sumiu e avistou,

mesmo através dos pingos da chuva, uma onda de penas

negras enquanto um bando de gralhas mergulhava do céu

sobre suas cabeças.

Page 296: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Paul se ergueu lentamente, olhando. — Que raios...?

— Saia desse lado da estrada — avisou Will,

empurrando o irmão firmemente para o lado. — As gralhas

ficam loucas de vez em quando. Já vi isso antes.

Outro mergulho e os pássaros atacaram Paul pelas

costas, empurrando-o para a frente, enquanto o primeiro

grupo descia rasante novamente para forçar Will contra

um banco de neve ao longo da margem do bosque coberto

de neve. Mais uma vez, elas investiram contra eles, e

outras vezes seguidas. Will se perguntava, esquivando-se,

se seu irmão tinha percebido que eles estavam sendo

arrebanhados como ovelhas, levados para onde as gralhas

queriam que fossem. Mas, mesmo enquanto se indagava,

ele já sabia que era tarde demais. A chuva densa e cinzenta

os separou completamente, e ele não tinha idéia de onde

Paul poderia estar.

Will gritou em pânico: — Paul? Paul? ― entretanto,

quando o Ancião dentro dele assumiu o controle,

acalmando o medo, ele parou de gritar. Aquele não era um

problema para seres humanos comuns, mesmo os de sua

própria família, e deveria sentir-se feliz por estar sozinho.

Ele sabia agora que Mary deveria estar retida e mantida

pelas Trevas. Se pelo menos ele tivesse a chance de tê-la

de volta. Assim, prosseguiu sob a chuva incessante,

olhando sobre si mesmo. A claridade estava se extinguindo

rapidamente. Will desabotoou o cinto e o afivelou em volta

de seu pulso; depois proferiu uma palavra na Linguagem

Antiga e ergueu os braços, e dos Signos surgiu um

Page 297: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

caminho de luz reluzente e constante como a de uma

tocha, que resplandecia sobre as águas agitadas e

marrons, onde a estrada começava a se tornar um rio mais

profundo e com correnteza.

Ele se lembrou do que Merriman tinha avisado, hã

bastante tempo: que o auge mais perigoso do poder das

Trevas se daria na Décima Segunda Noite. Teria chegado

esse dia? Will já não sabia mais em que dia estava e passou

um por um em sua mente. A água lavava a borda de sua

bota enquanto ficou ali pensando; ele saltou rapidamente

para trás, para o banco de neve na extremidade do bosque,

e uma onda marrom na estrada-rio arrancou um enorme

pedaço da parede de neve acumulada sobre a qual ele

estava. Sob a luz dos Signos, Will percebia que naquele

momento outros montes de neve suja e gelo flutuavam na

água; enquanto boiavam passando por ali, gradualmente

arrancavam os blocos de neves acumulados de cada lado

pelo limpa-neve e carregavam para longe as partes

desvencilhadas como um iceberg miniatura.

Além disso, havia outras coisas na água, como um

balde boiando e um tufo de objetos que parecia um saco de

feno. O volume de água devia ter aumentado o suficiente

para arrastar coisas dos jardins das pessoas... talvez coisas

de sua família estivessem por ali. Como podia aumentar

assim tão rápido? Como em resposta, a chuva o açoitou nas

costas, fazendo mais neve se quebrar embaixo de seus pés;

lembrou que o chão onde pisava deveria estar congelado,

enrijecido pelo frio intenso que tinha paralisado a terra

Page 298: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

antes de a chuva começar a cair. Em lugar nenhum, aquela

chuva seria capaz de se infiltrar no solo. O degelo da terra

demoraria muito mais do que o derretimento da neve — e,

nesse ínterim, a água da neve não tinha para onde ir,

nenhuma alternativa, a não ser correr pela superfície

congelada do campo, procurando um rio para se juntar. As

enchentes serão terríveis, pensava Will, pior do que havia

vivido antes. Pior do que o próprio frio...

Mas uma voz o interrompeu, um grito através das

águas velozes e do barulho da chuva. Ele cambaleou sobre

a pilha de neve derretida para olhar através da neblina. O

grito soou novamente. — Will! Por aqui!

— Paul? — Will gritou esperançoso, mas soube que

não se tratava da voz de Paul.

— Aqui! Por aqui!

O som do grito surgia do rio na estrada, na

escuridão. Will ergueu os Signos que reluziram sobre a

água agitada, revelando o que ele achou primeiro ser

nuvens de vapor. Em seguida, percebeu que o vapor

encaracolado era o sopro de uma respiração: a expiração

profunda de um cavalo gigante, com as quatro patas

dentro da água, enquanto ondas pequenas e bravias

espumavam em seus joelhos. Will avistou a cabeça larga, a

longa crina na cor castanha grudada no pescoço do animal

e o reconheceu como Castor ou Pollux, um dos dois

grandes cavalos da raça shire da fazenda dos Dawson.

A luz dos Signos iluminou mais ao alto e o menino

pôde avistar o Velho George, agasalhado em uma capa

Page 299: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

impermeabilizada, montado nas costas do cavalo

gigantesco.

― Por aqui, Will. Pelas águas, antes que a correnteza

aumente demais. Temos um trabalho a fazer. Venha!

Ele nunca ouvira o som exigente de Velho George

antes; este era o Ancião, não o amável e velho ajudante da

fazenda. Inclinado contra o pescoço do cavalo, o homem o

instigou para mais perto através das águas. — Aproxime-

se, chegue perto, Pollux. — E o grande Pollux bufou a

nuvem de vapor através de suas largas narinas e deu

passos firmes adiante, de modo que Will fosse capaz de

cambalear pelo rio da estrada e agarrar suas pernas longas

como árvores. A água atingia quase a altura das coxas

dele, mas estava tão molhado por causa da chuva que isso

não fazia muita diferença. Não havia sela sobre o grande

cavalo, apenas um cobertor ensopado; no entanto, com

uma força impressionante, Velho George inclinou-se para

baixo e puxou a mão do menino que, com muito esforço,

conseguiu subir. A luz dos Signos afivelados em seu pulso

não fraquejou enquanto se virou e se contorceu, antes

permaneceu direcionada firmemente para o caminho que

deveria tomar.

Will escorregava e deslizava sobre as costas largas

do cavalo, grandes demais para que colocasse uma perna

de cada lado. George o puxou para a frente, onde

conseguiria se sentar melhor, acomodado sobre o enorme

pescoço curvado. — Os ombros de Polly já suportaram

pesos maiores que o seu — gritou o homem no ouvido de

Page 300: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Will. Em seguida, eles balançavam para a frente enquanto

o cavalo cavalgava novamente, espalhando água pelo

crescente riacho, para longe das gralhas do bosque, para

longe da casa dos Stanton.

— Aonde estamos indo? — gritou Will, olhando

temerosamente para a escuridão; não conseguia enxergar

nada, somente o rodamoinho de água sob a luz dos Signos.

— Nós vamos incitar a Caçada — soou a voz falha em

seus ouvidos.

— A Caçada? Que Caçada? George, eu preciso

encontrar Mary, eles estão com a Mary, em algum lugar. E

eu perdi o Paul de vista.

— Nós precisamos incitar a Caçada — enfatizou a voz

firme atrás dele. — Eu vi Paul, ele está seguro e a caminho

de casa agora. Quanto a Mary, você a encontrará na

ocasião oportuna. É hora do Caçador, Will; a égua branca

deve encontrar o Caçador, e você deve levá-la até lá. Esta é

a ordem das coisas, você se esqueceu disto. O rio está se

aproximando do vale, e a égua branca deve encontrar o

Caçador. E, então, veremos o que veremos. Temos um

trabalho para realizar, Will.

A chuva os açoitava, e em algum lugar distante soou

o estrondo de um trovão na noite que se aproximava,

enquanto o enorme Pollux, o cavalo da raça shire, corria

pacientemente respingando a água através do crescente

rio marrom que havia sido a Trilha do Vale do Caçador.

Era impossível dizer onde estavam. O vento

aumentava, e Will podia ouvir os sons das árvores

Page 301: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

balançando acima da pisada firme das patas de Pollux.

Poucas luzes eram vistas no vilarejo; provavelmente, a

energia elétrica continuava cortada, talvez acidentalmente

ou pela atuação das Trevas. De qualquer maneira, a

maioria das pessoas daquela parte do vilarejo ainda estava

no Solar.

— Onde está Merriman? — gritou Will através do

ruído alto da chuva.

— No Solar — George gritou em seus ouvidos. —

Com o fazendeiro. Sitiados.

— Você quer dizer que eles estão presos? — A voz de

Will soava aguda, pelo temor.

Velho George respondeu, sussurrando, quase

inaudível: — Eles estão de guarda, de modo que possamos

trabalhar.

E a correnteza os mantém ocupados também. Olhe

para baixo, garoto.

No revolver das águas, a luz dos Signos revelava

improváveis objetos boiando por lá: uma cesta de vime,

várias caixas de papelão se desintegrando, uma vela

vermelha, emaranhados de fitas. De repente, Will

reconheceu uma das fitas, uma com motivo xadrez roxo e

amarelo, semelhante à que Mary cuidadosamente retirou

de um embrulho e enrolou para guardar no dia do Natal.

Ela era muito boa em estocar coisas, como um esquilo, e

aquela fita tinha ido para o estoque da menina.

— Aquelas coisas são da minha casa, George!

— Tem correnteza por ali também — avisou o velho.

Page 302: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— A terra está baixa. Mesmo assim, não tem perigo, fique

calmo. É apenas água e lama.

Will sabia que o homem estava certo, mas novamente

ele gostaria de ver por si mesmo. Certamente, as águas

continuariam apressadas, movendo móveis, tapetes,

arrastando livros e tudo que pudesse ser movido. Estes

objetos boiando devem ter sido arrastados antes que

alguém percebesse que a água estava na realidade

carregando as coisas...

Pollux tropeçou pela primeira vez, e Will se agarrou

à crina molhada; por um momento, ele quase escorregou,

mas conseguiu se restabelecer sem problemas. George

deixou escapar um suspiro de alívio, e o grande cavalo

resfolegou e bufou. O menino podia avistar poucas e fracas

luzes que surgiam das casas maiores nos terrenos altos, no

final do vilarejo; isto significava que eles estavam se

aproximando da Câmara dos Comuns. E aquilo ainda era a

Câmara e não um lago.

Alguma coisa estava mudando. Will piscou. A água

parecia muito distante, mais difícil de ver. Então, ele

percebeu que a luz dos Signos em seu pulso estava

enfraquecendo, esvaecendo para o nada; em pouco tempo,

eles se encontravam na escuridão. Tão logo todas as luzes

se extinguiram, Velho George falou suavemente: — Ôah,

Polly. — O grande cavalo shire parou, ficando ali sentindo

as águas ondulando-se por suas pernas.

George informou: — Devo deixá-lo aqui, Will.

— Ah — disse ele, sentindo-se abandonado.

Page 303: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Tenho uma única instrução — disse Velho George.

— Leve a égua branca até o Caçador. Isto acontecerá

se não tiver problema. E existem dois pequenos conselhos

para que se mantenha longe deles. O primeiro: você

encontrará luz suficiente que lhe permitirá enxergar, se

contar até cem depois que eu partir. O segundo: lembre-se

do que já sabe, águas correntes são livre da Magia. — Ele

deu um tapinha reconfortante no ombro do menino. —

Coloque os Signos ao redor dos quadris novamente — disse

ele — e desça.

Ao descer do animal, o menino percebeu ainda mais

o couro molhado; descer era mais difícil do que montar o

cavalo e Pollux era tão alto que Will esparramou água

quando tocou o chão, pesado como um tijolo caindo.

Porém, não sentia frio, embora a chuva continuasse caindo

sobre ele; as gotas, no entanto, eram mais suaves e, de

certa maneira, um tanto curiosas, pareciam protegê-lo de

se sentir gelado.

Velho George falou novamente: — Irei preparar a

Caçada — e sem mais palavras de despedida, posicionou

Pollux para cavalgar pelas águas na direção da Câmara e

partiu.

Will escalou com as mãos o banco de neve

acumulado do lado do rio que se formara na estrada,

procurou um lugar para ficar sem cair e começou a contar

até cem. Antes que chegasse a setenta, começou a

entender o que o Velho George queria dizer. Pouco a

pouco, o mundo escuro adquiriu uma luz tênue em si

Page 304: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

mesmo. Ele conseguia enxergar tudo em volta: a água

veloz, a neve amontoada, as árvores abatidas; tudo em uma

luz tênue acinzentada como o alvorecer. E enquanto ele

olhava ao redor, confuso, alguma coisa flutuando passou no

riacho veloz, trazendo-lhe tanto assombro que quase caiu

na água.

Ele viu os chifres primeiro, virando-se

preguiçosamente de um lado para o outro, como se a

grande cabeça estivesse aquiescendo para si mesma.

Então, as cores vivas apareceram azuis, amarelas e

vermelhas, do mesmo jeito como as tinha visto na manhã

de Natal. Não conseguia ver os detalhes da face estranha:

os olhos como os de um pássaro, as orelhas empinadas de

um lobo. Mas tratava-se sem dúvida da cabeça de carnaval,

do presente inexplicável que o velho jamaicano havia

entregado para Stephen para que lhe fosse enviado — seu

bem mais precioso no mundo.

Will deixou escapar um ruído como um soluço e

inclinou-se desesperadamente para a frente, para agarrar o

objeto antes que a água o carregasse para fora de seu

alcance; mas escorregou quando pulou e, assim que

recuperou o equilíbrio, a grotesca cabeça já estava boiando

longe de sua vista. Will começou a correr ao longo do

banco de neve; era uma coisa dos Anciãos, de Stephen, e o

havia perdido; ele precisava a todo custo recuperá-la. Mas

a lembrança o segurou no meio da passada e ele parou. —

A segunda coisa - Velho George avisara: — lembre-se que

águas correntes são livres da Magia. — A cabeça estava em

Page 305: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

movimento na água, algo evidente demais. Assim, pelo

tempo que permanecesse por ali, ninguém poderá danificá-

la ou usá-la para fins errados.

Relutantemente, Will tirou isso da cabeça. A enorme

Câmara dos Comuns se estendia diante dele, iluminada por

si mesma com uma luz tênue e estranha. Nada se movia.

Mesmo o gado que normalmente pastava por lá durante o

ano, surgindo de alto abaixo de vários lugares nos dias

enevoados, como fantasmas sólidos, encontrava-se agora

protegido nas fazendas, retirado da neve. Will continuou

andando cautelosamente. Então, o ruído de águas que há

tempos soava em seus ouvidos começou a mudar, ficando

mais alto e, diante dele, a enxurrada que enchia a Trilha do

Vale do Caçador curvou-se para o lado para se juntar ao

minúsculo riacho local que havia aumentado tornando-se

um rio espumoso que corria pela Câmara e adiante. A

estrada que se tornara um rio fluía desobstruída, sólida e

reluzente; Will achava que o Velho George tivesse partido

por aquele caminho. Ele teria gostado de tomar o rumo

daquela estrada também, mas pressentiu que deveria

permanecer com o rio; por meio do super-sentido dos

Anciãos, ele sabia que aquelas águas lhe mostrariam como

levar a égua branca até o Caçador.

Mas quem era o Caçador e onde estava a égua

branca? Will avançou cautelosamente ao longo do banco de

neve cheio de destroços que margeava o novo riacho que

aumentara de tamanho. Salgueiros enfileiravam-se ao

longo das águas, atarracados e decepados. Então,

Page 306: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

repentinamente, fora da fileira escura das árvores do outro

lado do riacho, uma forma branca saltou. Surgiu uma luz

prateada, na escuridão que não estava tão escura, e,

jorrando a neve molhada, a grande égua branca da Luz se

erguia diante de Will; a respiração do animal nublava ao

redor as gotas de chuva. Era alta como uma árvore e sua

crina se agitava de forma indomável com o vento.

Will a tocou, gentilmente. — Vai me carregar? —

perguntou ele, na Linguagem Antiga. — Como já fez antes?

O vento o açoitava enquanto ele falava, e luminosos

relâmpagos cortavam o céu de uma extremidade a outra,

mais próximos do que antes. A égua branca estremeceu,

sacudindo a cabeça para cima. Mas relaxou novamente,

quase no mesmo instante, e Will também sentiu

instintivamente que a tempestade que se formava não era

obra das Trevas. Era esperado. Fazia parte do que deveria

acontecer.

A Luz, estava se rebelando, antes que as Trevas

pudessem se rebelar.

Ele se assegurou de que os Signos estivessem firmes

em seu cinto e, em seguida, assim como antes, estendeu

seus dedos ao vento, alcançando a longa e espessa crina

branca. No mesmo instante, sua cabeça girou atordoada, e

ouviu bem claro, embora distante, a mesma música como

um sino que o tentava, a mesma frase que tocava seu

coração, até que um grande solavanco fez o mundo girar e

a música desapareceu; Will já se encontrava sentado sobre

a égua branca, alto entre os salgueiros.

Page 307: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Agora, os relâmpagos reluziam pelo céu estrondoso.

Os músculos das costas magníficas da égua ficaram tensos

e Will se agarrou à longa crina enquanto o animal

cavalgava pela Câmara, para longe dos outeirinhos e

barrancos de neve; seus cascos esfolavam a superfície para

fazer jorrar as lascas de gelo. Através da velocidade do

vento, pensava Will enquanto se segurava firme no pescoço

arqueado da égua, ele podia ouvir um grito estranho e alto,

como o som de gansos em migração voando nas alturas. O

som parecia arquear ao lado dele e continuar adiante,

extinguindo-se fora de alcance.

A égua branca saltou alto; Will se segurou ainda mais

enquanto eles saltavam sobre as sebes, estradas, muros,

tudo o que surgisse na neve derretida. Em seguida, um

novo ruído soou mais alto que o vento ou trovão em seus

ouvidos, e o menino avistou um espelho de águas agitadas

e cintilantes adiante e soube que haviam chegado ao

Tâmisa.

O rio estava mais largo do que antes. Por mais de

uma semana, suas águas tinham sido canalizadas e

estreitadas pelas paredes de gelo da neve que se

projetavam pelo caminho; mas, naquele momento, ele

havia sido libertado e espumava e rugia com enormes

pedaços de neve e gelo rolando por ele como icebergs. Não

era um rio, era a fúria das águas sibilando e uivando.

Aquilo não era racional. Enquanto olhava, Will foi

atemorizado pelo Tâmisa como nunca havia sido; era tão

violento quanto algo vindo das Trevas, fora de seu

Page 308: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

conhecimento ou controle. Porém, ele sabia que não se

tratava de algo das Trevas, mas algo além da Luz e das

Trevas, uma das coisas antigas, do início do Tempo. As

coisas antigas: fogo, água, pedra... madeira e depois, do

início dos homens, bronze e ferro. O rio estava livre, e seu

curso prosseguia segundo sua própria vontade. — O rio

deve tomar o vale... — havia dito Merriman.

A égua branca parou irresoluta às margens das

águas bravias e frias e em seguida irrompeu adiante e

saltou. Somente quando se ergueram do rio agitado foi que

Will avistou a ilha, uma ilha onde ninguém havia ido antes

naquela volumosa enxurrada, dividida por canais estranhos

e reluzentes. Pensou, enquanto o animal se sacudia na

terra novamente entre as pouquíssimas árvores escuras:

era de fato um morro, um pedaço de terra arrancado pela

água. De repente, ele soube claramente que se depararia

com um grande perigo naquele lugar. Tratava-se do lugar

de sua provação, a ilha que não era uma ilha. Mais uma

vez, ele olhou para o céu e em silêncio e desesperadamente

clamou por Merriman, mas Merriman não apareceu, e

nenhuma palavra ou sinal da parte dele surgiu na mente de

Will.

A tempestade não tinha começado ainda e o vento

diminuíra um pouco; o barulho do rio soava mais alto do

que todos os outros. A égua branca curvou seu longo

pescoço e Will desceu com dificuldade.

Através da neve amontoada, algumas vezes dura

como gelo e outras vezes macia o suficiente para afundá-lo,

Page 309: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ele partiu para explorar sua estranha ilha. O menino

achava que o morro tinha forma circular, mas seu formato

era como um ovo e seu ponto mais alto ficava naquela

extremidade onde se encontrava a égua branca. Algumas

árvores cresciam em volta do sopé; além delas havia uma

encosta aberta, coberta pela neve, e acima desta alguns

arbustos desbastados dominados por uma única faia antiga

sulcada pelo tempo. Afastado da neve, aos pés de uma

árvore enorme, e principalmente surpreendente, quatro

riachos desciam pela colina da ilha, dividindo-a em quatro

quartos. A égua branca continuava imóvel. Trovões rugiam

pelo céu bruxuleante. Depois, Will subiu até a velha faia e

ficou observando a espuma mais próxima debaixo de um

enorme bloco de neve. Então, o canto começou.

Era sem palavras e soava no vento: um resmungo

fraco e agudo com compassos ou melodia indefinida. Vinha

de muito longe e não era agradável de ouvir. Mas o som o

manteve transfixado, arrancando seus pensamentos da

direção que tomava, tirando sua atenção de tudo, menos da

contemplação daquilo que poderia estar próximo de

acontecer. Will sentia crescer raízes em seus pés, como as

árvores acima dele. Enquanto ouvia o canto, avistou o

graveto de um ramo baixo da faia, perto de sua cabeça que

parecia, sem qualquer razão, totalmente fascinada a ponto

de ser incapaz de fazer qualquer coisa além de olhar para

aquele pedacinho de árvore, como se contivesse o mundo

inteiro. Ele o fitou por muito tempo e seus olhos se moviam

repetida e gradualmente pelo minúsculo graveto, o que o

Page 310: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

fazia sentir como se vários meses tivessem passado,

enquanto o canto estranho e alto continuava a soar desde o

início dos céus. Então, repentinamente, parou, e ele foi

deixado, atordoado, quase tocando com seu nariz o graveto

tão comum de uma faia.

Deste modo, ele soube que as Trevas tinham seus

próprios meios para colocar um Ancião fora do Tempo por

algum momento, caso precisassem de algum momento

para concluir sua própria magia. Pois diante dele, perto do

tronco da enorme faia, encontrava-se um homem que

parecia ser Hawkin, embora na idade do Andarilho. Will

sentia que olhava para dois homens em um. Hawkin ainda

estava vestido com seu casaco verde de veludo que ainda

mantinha a aparência de novo, com o toque de uma renda

no pescoço. Mas a figura dentro do casaco não era mais

hábil e ágil; era menor, encurvada e encolhida pela idade.

E o rosto estava enrugado e envelhecido sob os longos e

cacheados cabelos grisalhos; os séculos que açoitaram

Hawkin deixaram apenas seus olhos cintilantes e atentos

inalterados. E aqueles olhos fitavam Will agora com fria

hostilidade, através do monte de neve.

— Sua irmã está aqui — disse Hawkin.

Will não pôde se conter e olhou rapidamente ao

redor da ilha. Mas estava vazia como antes.

Ele disse friamente: — Ela não está aqui. Você não

vai me convencer com truques tolos como este.

Os olhos de Hawkin se estreitaram e ele sibilou: —

Você é arrogante. Você não vê tudo o que deve ser

Page 311: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

conhecido no mundo com seu dom, Ancião, nem seus

mestres. Sua irmã Mary está aqui, neste lugar, embora não

tenha permissão para vê-la. Trata-se de um encontro

apenas para a barganha que meu senhor, o Cavaleiro, fará.

Sua irmã pelos Signos. Você não tem muita escolha.

Pessoas como vocês são boas em arriscar a vida dos

outros... — a boca velha e cheia de amargura curvara-se

com desdém — mas eu não acho que Will Stanton

apreciaria a visão da morte de sua irmã.

Will respondeu: — Eu não a vejo. Eu ainda não

acredito que ela esteja aqui.

Olhando-o, Hawkin disse ao ar vazio: — Mestre?

De repente, o canto sem palavras começou a soar

novamente, levando Will de volta à lenta contemplação que

era quente e relaxante como o sol de verão, mas ao mesmo

tempo horrível no controle sutil de sua mente. E o fazia

mudar enquanto ouvia a canção; fazia-o esquecer a tensão

de lutar pela Luz e o submergia, nesta hora, na observação

do modo como as sombras e o vazio desenhavam alguns

traços sobre o caminho de neve perto de seus pés. Ele

continuou leve e relaxado, olhando de um ponto de gelo

branco aqui para um buraco escuro ali, e o canto ressoava

em seus ouvidos como o vento através de tinidos em uma

casa desmoronada.

E novamente parou, e não se ouvia mais nada, e Will

viu com espanto, como um frio repentino, que ele olhava

não para o desenho de meras sombras sobre a neve, mas

para linhas e curvas do rosto de sua irmã Mary. Lã estava

Page 312: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ela sobre a neve, vestida com as mesmas roupas que a viu

pela última vez: viva e ilesa, mas olhando-o lividamente

sem qualquer sinal de que o reconhecia ou sabia onde

estava. De fato, Will pensava com tristeza, ele também não

sabia seu paradeiro, pois embora lhe fosse mostrada a

aparência da menina, era improvável que Mary estivesse

ali deitada sobre a neve. Moveu-se para tocá-la e, conforme

já esperava, ela desapareceu completamente, restando

apenas as sombras pairando na neve como antes.

— Você pode ver — disse Hawkin, imóvel ao lado da

faia. — Existem coisas que as Trevas podem fazer, muitas

coisas, sobre as quais você e seus mestres não têm nenhum

controle.

— Isto é bem óbvio — disse Will. — De outra forma,

não haveria uma coisa como as Trevas, haveria? Antes nós

apenas lhe diríamos para ir embora.

Hawkin sorriu e disse baixinho: — Mas elas nunca

irão embora. Antes que isto aconteça, elas quebrarão toda

resistência até virar nada. E as Trevas sempre virão, meu

caro amigo, e sempre vencerão. Como pode ver, nós temos

sua irmã. Agora, dê-me os Signos.

— Dá-los a você? — disse Will com desprezo. — Para

um verme que se arrastou para o outro lado? Nunca!

Ele viu os punhos do homenzinho se fecharem

brevemente na bainha do casaco verde de veludo. Mas era

o velho, o velho Hawkin que não seria abatido; ele tinha

controle sobre si mesmo agora que não era mais o errante

Andarilho, mas parte das Trevas. Havia apenas um leve

Page 313: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

lampejo de fúria na voz. — Garoto, você tratará sim com o

mensageiro das Trevas. Senão, poderá atrair sobre si

mesmo mais do que desejará ver.

O céu reluziu e rugiu, iluminando tenuemente a

crescente água escura ao redor, a árvore enorme situada

no ponto mais alto da minúscula ilha e a figura encurvada

vestida com o casaco verde ao lado de seu tronco. Will

replicou:

— Você é criatura das Trevas. Você optou pela

traição. Você não é nada. Eu não tratarei nada com você.

O rosto de Hawkin se contorcia enquanto ele fitava

venenosamente o menino; em seguida, olhou na direção da

escuridão, para a Câmara dos Comuns ali vazia e gritou:

— Mestre! — Depois novamente, com um grito de

raiva desta vez: — Mestre!

Will permaneceu tranqüilo, aguardando. Enquanto

isso, avistou a égua branca da Luz, na margem da ilha,

quase invisível na neve. Ela ergueu a cabeça e cheirou o

ar, resfolegando suavemente; depois olhou na direção de

Will como se estivesse se comunicando e, em seguida, deu

meia-volta na direção de onde vieram e galopou para

longe.

Em segundos, alguma coisa aconteceu. Nada se

ouvia; o silêncio era rompido somente pela correnteza do

rio e o resmungo da iminente tempestade. O que surgiu

veio totalmente silencioso. Era enorme, uma coluna de

névoa negra como um tornado, um rodamoinho em incrível

velocidade emergindo entre a terra e o céu. Em ambas as

Page 314: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

extremidades, parecia largo e sólido, mas o centro tremia,

crescia alongado e depois aumentava sua espessura

novamente; ele se agitava de um lado para o outro

conforme a coisa se aproximava em um tipo de dança

macabra. Aquele espectro negro era um buraco no mundo,

uma peça do vazio eterno das Trevas que era visível. Ao

chegar mais perto da ilha, curvando-se e ziguezagueando,

Will não conseguiu evitar e retrocedeu alguns passos; cada

parte de seu corpo gritava silenciosamente em profundo

alarme.

O pilar negro balançava diante dele, cobrindo toda a

ilha. A névoa girando silenciosa não se alterava, mas se

dividia, e dentro dela encontrava-se o Cavaleiro Negro. Ele

permaneceu na névoa agitando os braços e meneando a

cabeça, depois sorriu para Will: um sorriso frio, infeliz,

acompanhado das sinistras sobrancelhas franzidas em sua

face. Ele se vestia novamente de preto, mas as roupas

eram inesperadamente modernas — um pesado casaco

preto de couro de jumento e calças pretas rústicas de brim.

Sem qualquer indício no sorriso gelado, ele se moveu

um pouco para o lado e, saindo de dentro da névoa escura

como serpente da coluna, surgia seu cavalo, a grande besta

negra de olhos ferozes. Montada sobre ele estava Mary.

— Olá, Will — disse Mary alegremente. Will olhou

para a menina. — Olá.

— Suponho que esteja procurando por mim — disse

Mary. — Espero que ninguém tenha ficado preocupado. Eu

apenas saí para cavalgar um pouco, apenas por um ou dois

Page 315: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

minutos. Quero dizer, quando fui procurar Max, encontrei

o sr. Mitothin e achei que o papai havia pedido para ele me

procurar; bem, obviamente estaria tudo bem. E foi tão bom

sair para cavalgar. É um cavalo incrível... e faz um dia tão

agradável agora...

O trovão retumbou atrás da massa de nuvem negra

acinzentada. Will se mexeu com tristeza. O Cavaleiro,

olhando-o atentamente, disse em voz alta: — Aqui estão

algumas pedras de açúcar para o cavalo, Mary. Eu acho

que ele merece, não acha? — E estendeu as mãos, vazias.

— Ah, obrigada — disse Mary ansiosamente. Ela se

inclinou sobre o pescoço do animal e pegou a açúcar

imaginário das mãos do Cavaleiro. Em seguida, estendeu

as pedrinhas ao lado da boca do garanhão, e o animal

lambeu rapidamente sua palma. Mary sorriu radiante. —

Isso mesmo — disse ela. — Isso não é bom?

O Cavaleiro Negro ainda perscrutava o menino; seu

sorriso se estendia mais um pouco. Ele abriu a palma da

mão zombando de Mary, e Will avistou uma caixinha

branca, feita de um vidro translúcido de gelo, com

símbolos rúnicos gravados na tampa.

— Aqui eu a tenho, Ancião — disse o Cavaleiro, sua

voz nasal e acentuada soava suavemente triunfante. —

Dominada pelas marcas do Encantamento Antigo de Lir,

que foi escrito há muito tempo em certo anel e depois

perdido. Você deveria ter olhado o anel de sua mãe mais de

perto... você e aquele artesão simplório do seu pai e Lyon,

seu mestre tão relapso. Relapso... sob este encantamento,

Page 316: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

eu tenho sua irmã presa por magia totêmica, e você mesmo

preso nela também, impotente para socorrê-la. Veja!

Ele moveu rapidamente a caixinha aberta, e Will viu

em seu interior uma peça de madeira delicadamente

esculpida, enrolada com uma frágil linha de ouro.

Consternado, ele se lembrou do único ornamento que

estivera faltando da coleção talhada pelo fazendeiro

Dawson e presenteada por ele à família Stanton lembrou-se

também do cabelo dourado que o sr. Mitothin, o visitante

de seu pai, tinha por casual delicadeza retirado da manga

da roupa de Mary.

— Um signo de nascimento e um cabelo são totens

excelentes — disse o Cavaleiro. — Nos dias antigos,

quando éramos menos sofisticados, era possível, é claro,

trabalhar a magia mesmo por meio do chão que os pés de

um homem haviam pisado.

— Ou por onde sua sombra tivesse passado —

acrescentou Will.

— Mas as Trevas não perseguem as sombras — disse

o Cavaleiro suavemente.

 — E um Ancião não tem signo de nascimento —

disse Will.

Ele viu um lampejo de incerteza sobre o rosto

determinado. O Cavaleiro fechou a caixinha branca e a

guardou em seu bolso. — Bobagem — declarou lacônico.

Will olhou pensativo para ele e disse: — Os mestres

da Luz não fazem nada sem um motivo, Cavaleiro. Embora

o motivo não seja revelado durante anos e anos. Hã onze

Page 317: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

anos, o fazendeiro Dawson da Luz esculpiu certo signo

para mim, no meu nascimento... e se ele tivesse feito o

signo com a letra do meu nome, como era a tradição, então

talvez você pudesse usá-lo para me prender em seu seus

poderes. Mas ele o fez no Signo da Luz, um círculo cortado

por uma cruz. E como você sabe muito bem, as Trevas não

podem usar nada naquele formato para seu próprio

benefício. É proibido.

Ele olhava para o Cavaleiro e continuou dizendo: —

Eu acho que você está blefando comigo novamente, sr.

Mitothin. Sr. Mitothin, Cavaleiro Negro do cavalo negro.

O Cavaleiro o olhou com ódio. — Porém, você

continua impotente — afirmou. — Pois eu tenho sua irmã. E

não há nada que possa fazer para salvá-la, exceto

entregando-me os Signos. — A maldade brilhava de novo

em seus olhos. — Seu grande e nobre Livro lhe ensinou

que eu não posso ferir aqueles que têm o sangue de um

Ancião... mas olhe para ela. Ela fará qualquer coisa que eu

sugerir. Mesmo pular neste volumoso Tâmisa. Existem

partes do ofício que pessoas como você negligenciam,

sabe? É tão simples persuadir as pessoas a certas situações

nas quais elas mesmos se acidentam. Como sua mãe, por

exemplo, tão estabanada.

Ele sorriu novamente para Will que o olhou de volta,

com ódio; em seguida, o menino fitou a face semi-acordada

e feliz de Mary e se condoeu por ela se encontrar

naquela posição. Ele pensava: e tudo porque ela é minha

irmã. Tudo por minha causa.

Page 318: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Mas uma voz silenciosa ecoou em sua mente: — Não

por sua causa. Por causa da Luz. Por causa de tudo o que

deve acontecer, para impedir que as Trevas se rebelem. —

E, numa onda de alegria, Will soube que não estava mais

sozinho, e visto que o Cavaleiro estava ali, Merriman

estaria perto novamente, livre para ajudá-lo se fosse

necessário.

O Cavaleiro estendeu a mão. — Chegou a hora para a

barganha, Will Stanton. Dê-me os Signos.

Will tomou o fôlego mais profundo de sua vida e o

expirou lentamente, para dizer: — Não.

Assombro era uma emoção que o Cavaleiro Negro

tinha esquecido há muito tempo. Os olhos azuis

penetrantes fitavam Will em total incredulidade. — Mas

você sabe o que eu farei?

— Sim — respondeu Will. — Eu sei. Mas não lhe

darei os Signos.

Por um longo momento, o Cavaleiro olhou-o, agora

longe do enorme pilar negro de névoa no qual havia

permanecido; a incredulidade e a raiva em sua face foram

misturadas com um tipo de respeito maligno. Então, ele se

virou para o cavalo negro e para Mary e clamou algumas

palavras em uma linguagem que Will poderia imaginar,

pelo frio infligido aos seus ossos, e que deveria ser o

discurso de encantamento das Trevas, raramente usado em

voz alta. O cavalo sacudiu a cabeça, revelando dentes

brancos, e correu adiante, com a feliz e descuidada Mary

agarrada à sua crina e gorgolejando numa gargalhada. O

Page 319: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

animal cavalgou até o banco de neve que margeava o rio e

parou.

Will segurou firmemente os Signos em seu cinto,

agoniado pelo risco que estava assumindo, e com todas as

possibilidades invocou o poder da Luz para que viesse

socorrê-lo.

O cavalo negro relinchou, emitindo um som agudo, e

se ergueu no ar sobre o Tâmisa. Na metade de sua subida,

ele  se contorceu estranhamente, empinando no ar, e Mary

grilou aterrorizada, agarrando-se loucamente no pescoço

do animal. Mas logo perdeu o equilíbrio e caiu. Will pensou

que iria desmaiar quando a viu rodopiando no ar: o risco

que assumira acabaria em desastre; mas, em vez de cair no

rio, ela tombou na neve molhada e macia às suas margens.

O Cavaleiro Negro praguejou brutalmente, bufando. Ele

nunca a alcançou. Antes que chegasse a dar meio passo,

um enorme raio de um relâmpago surgiu na tempestade

que se amontoava agora quase no alto, e um estrondo

gigantesco de um trovão se fez ouvir além do raio e do

estrondo, um grande risco luminoso cortou a ilha na

direção de Mary, alcançando a menina de modo que em um

instante ela não se encontrava mais lá: havia sido levada

para longe, em segurança: Will dificilmente conseguiu

perceber a forma esbelta de Merriman, vestido com capa e

capuz sobre a égua branca da Luz, e os cabelos louros de

Mary voando onde ele a havia mantido era segurança. Em

seguida, a tempestade começou, e todo o mundo girou

flamejante em volta de sua cabeça.

Page 320: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

A terra balançou. E, por um instante, Will avistou o

Castelo de Windsor delineado em tom escuro contra o céu

limpo. Relâmpagos cegavam seus olhos, os trovões

retumbavam em sua cabeça. Então, através do canto em

seus atordoados ouvidos, escutou um rangido e um estalo

bem próximo dali. O menino se virou. Atrás dele, a enorme

faia estava habilidosamente partida ao meio, queimando

em chamas imensas, e ele percebeu com espanto que a

impetuosa corrente dos quatro riachos da ilha diminuía

cada vez mais, minguando até não haver mais nada. Olhou

temeroso para a coluna negra das Trevas, mas ela já não se

encontrava em lugar nenhum onde pudesse ser vista na

terrível tempestade, e tudo o mais de estranho que estava

acontecendo levou o pensamento em relação às Trevas

para bem longe da mente de Will.

Page 321: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Pois não foi somente as árvores que se partiram e

racharam. A própria ilha estava mudando, despedaçando-

se e afundando no rio. Will olhava sem fala, mantendo-se

agora sobre a borda de uma terra coberta por um monte de

neve deixada pelos riachos desaparecidos, enquanto, à sua

volta, a neve e a terra deslizavam e se embolavam no

revolto Tâmisa. Acima dele, avistou a coisa mais estranha

de todas. Algo estava emergindo da ilha, enquanto a terra

e a neve se desmanchavam. Logo apareceu, do que havia

sido o pico mais alto da ilha, o formato rústico da cabeça

de um cervo, chifres que se erguiam alto. Era dourada,

reluzindo mesmo sob uma luz tênue. Outras partes ficaram

visíveis; Will podia ver todo o cervo agora, uma imagem

dourada e bonita, saltitante. Então, surgiu um curioso

pedestal curvado sobre o qual o objeto ficou, como se para

saltar para longe; depois, atrás dele, uma forma horizontal

muito longa, tão comprida quanto a ilha, ergueu-se no

outro lado em outra altura, um ponto dourado reluzente,

erguido desta vez por um tipo de rolo. De repente, Will

compreendeu que estava olhando para um barco. O

pedestal era sua proa, e o cervo sua carranca.

Estarrecido, o menino avançou naquela direção, e

imperceptivelmente o rio se deslocou, até que não restava

mais nada da ilha além do enorme barco em um último

círculo de terra, com um último monte de neve ao redor.

Will ficou observando. Nunca tinha visto um barco como

aquele. As madeiras das quais foi construído sobrepunham-

se umas às outras como as pranchas de uma cerca,

Page 322: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

pesadas e largas; parecia feito de carvalho. Mas não se via

o mastro. No lugar, encontravam-se espaços para as

diversas fileiras de remadores, por todo o comprimento da

embarcação. No centro havia um tipo de cabine que fazia o

barco quase parecer com a Arca de Noé. Não se tratava de

uma estrutura concluída; as laterais pareciam ter sido

removidas, deixando as vigas dos cantos e o teto como um

dossel. E dentro, embaixo do dossel, encontrava-se um rei

deitado.

Will recuou ao avistá-lo. A figura masculina estava

muito quieta, com uma espada e um escudo depositados ao

lado, e mantinha um tesouro empilhado ao redor em

volumosas quantidades reluzentes. O homem não portava

uma coroa. Em vez disso, um elmo enorme com gravações

cobria a cabeça e a maior parte de seu rosto, encrespado

por uma pesada imagem de prata formada pelo longo

focinho de um animal que Will imaginava ser um javali

selvagem. Mas, mesmo sem a coroa, era evidente que se

tratava do corpo de um rei. Nenhum homem inferior

poderia merecer as louças de prata e sacos de jóias, o

grande escudo de bronze e ferro, a ornamentada bainha, os

chifres de beber reluzentes como ouro e as pilhas de

adornos. Num impulso Will se ajoelhou na neve e abaixou a

cabeça em reverência. Quando olhou para cima

novamente, recompondo-se, avistou sobre a amurada do

barco algo que não tinha percebido antes.

O rei segurava alguma coisa em suas mãos, mantidas

tranqüilamente cruzadas sobre seu peito. Era outro

Page 323: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ornamento, pequeno e cintilante. Assim que Will viu o

objeto de mais perto, ficou imóvel como uma pedra,

apoiando-se firmemente na extremidade mais alta do

barco. O ornamento encontrado nas mãos imóveis do rei

tinha o formato de um círculo quartejado por uma cruz,

produzido em vidro iridescente, gravado com serpentes,

enguias e peixes, ondas e nuvens e coisas do mar. E

chamavam silenciosamente por Will. Sem dúvida era o

Signo da Água: o último dos Seis Grandes Signos.

Will cambaleou para o lado do grande barco e

aproximou-se do rei. Precisava saber onde colocava os pés,

ou esmagaria os delicados trabalhos de couro gravados, as

vestes entrelaçadas e as jóias de ouro esmaltadas,

cloasonadas e filigranada. Por um momento, ele continuou

olhando para baixo, para a face pálida parcialmente

ocultada pelo elmo, e então estendeu a mão

reverencialmente para retirar o Signo. Mas ele teria que

tocar a mão do rei falecido, e ela estava mais fria do que

qualquer pedra. Will estremeceu e recuou, hesitante.

A voz de Merriman soou suave e próxima: — Não hã

necessidade de temê-lo.

Will engoliu seco. — Mas... ele está morto.

— Ele ficou aqui em seu solo sepulcral por mil e

quinhentos anos, esperando. Em qualquer outra noite do

ano, ele não estaria aqui, mas seria pó. Sim, Will, a

aparência dele é a da morte. O resto dele já se foi além do

Tempo, desde então.

— Mas ê errado tomar o tributo dos mortos.

Page 324: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— É o Signo. Se não fosse o Signo, e destinado a

você, o Descobridor dos Signos, ele não estaria aqui para

dá-lo a você. Pegue-o.

Assim, Will inclinou-se pelo ataúde e pegou o Signo

da Água das mãos frias, quase apertadas, do morto, e, de

algum lugar distante, um murmúrio da música que lhe era

familiar sussurrou em seus ouvidos e logo desapareceu. O

menino voltou-se para a lateral do barco. Lá, ao lado,

estava Merriman, sentado sobre a égua branca; ele vestia

uma capa azul escura, com seu cabelo branco revolto

descoberto; as cavidades de seu rosto magro estavam

sombrias pela tensão, mas o regozijo brilhava em seus

olhos.

— Muito bem, Will — disse ele.

Will fitava o Signo em suas mãos. O resplendor do

objeto era causado pela iridiscência de uma madrepérola,

de todos os arco-íris; a luz dançava sobre o objeto

enquanto ele dançava sobre a água. — É lindo — disse o

menino. Bastante relutante, ele afrouxou a extremidade do

cinto e deslizou o Signo da Água para guardá-lo, para que

permanecesse próximo ao reluzente Signo de Fogo.

― Este é um dos mais antigos — informou Merriman.

— E o mais poderoso. Agora que o tem, eles perderam o

poder sobre Mary para sempre... o encantamento se foi.

Venha, nos precisamos partir.

A preocupação se acentuava na voz dele; ele havia

visto Will se agarrar bruscamente em uma viga quando o

barco enorme, de repente e inesperadamente, deu um

Page 325: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

solavanco para um lado. A embarcação endireitou,

balançou um pouco, em seguida apontou na direção

oposta. Will viu, cambaleando para o lado, que o volume

das águas do Tâmisa tinha aumentado ainda mais

enquanto não estivera observando. A água batia ao redor

do barco e quase o fazia flutuar. O rei morto agora não

descansaria mais por muito tempo na terra que havia sido

certa vez uma ilha.

A égua empinou em sua direção, resfolegando uma

saudação, e, da mesma maneira como acontecia no

momento encantado em que ouvia aquela música

atordoante, Will foi erguido sobre o cavalo branco da Luz e

colocado à frente de Merriman. O barco inclinou e oscilou,

flutuando totalmente agora, e o cavalo branco saiu

rapidamente de seu caminho, permanecendo próximo dali,

observando; a espuma da água do rio rodeava suas pernas

robustas.

Rangendo e chacoalhando, o enorme barco deslizou

pelo volumoso Tâmisa. A embarcação era muito larga para

ser vencida; seu peso a mantinha firme mesmo sobre a

água revolta, pois já tinha encontrado o equilíbrio. Então, o

misterioso rei continuaria na dignidade imutável, entre

suas armas e reluzentes tributos; e Will teria o último

lampejo da face pálida como uma máscara, enquanto o

grande barco se afastava correnteza abaixo.

Will disse sobre os ombros: — Quem era ele?

Percebia-se um profundo respeito no rosto de

Merriman enquanto ele olhava o barco se afastando. — Um

Page 326: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

rei inglês, da Era das Trevas. Eu acho que não usaremos

seu nome.

A Era das Trevas, um tempo sombrio para o mundo,

recebeu corretamente este nome quando os Cavaleiros

Negros cavalgavam sem obstáculo por nossa terra.

Somente os Anciãos e alguns poucos homens, nobres e

corajosos como este, mantiveram viva a Luz.

— E ele foi sepultado em um barco, como os Vikings.

— Will observava o brilho da luz do cervo dourado da

proa.

— Ele tinha uma parte Viking — disse Merriman. —

Havia três grandes barcos de sepultamento perto dessa

sua região do Tâmisa, no passado. Um foi escavado no

último século perto de Taplow e destruído no processo.

Outro era este barco da Luz, destinado a nunca ser

encontrado pelos homens. E o último era o maior dos

barcos, do maior rei de todos, e este eles nunca

encontraram e talvez nunca encontrem. Ele permanece em

paz. — Merriman se interrompeu abruptamente e, com um

movimento de sua mão, a égua branca se virou pronta para

saltar para longe do rio em direção ao sul.

Porém Will ainda se esforçava para observar o longo

barco, e alguma coisa de sua tensão parecia afetar tanto o

cavalo quanto o mestre. Eles pararam. Naquele momento,

um facho extraordinário de luz azul surgiu velozmente do

leste; não vinha do céu tempestuoso, mas de algum lugar

atrás da Câmara. E acertou o barco. Silenciosamente,

impetuosas chamas irromperam pelo rio volumoso e por

Page 327: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

suas margens brancas e íngremes, e da proa até a popa do

barco do rei via-se delineado o fogo ardente. Will cedeu a

um choro sem palavras pelo choque, e a égua branca

mexeu-se perturbada, passando a pata na neve.

Atrás de Will, a voz profunda e forte de Merriman

dizia:

— Eles descontam o rancor que sentem, pois sabem

que é tarde demais. É muito fácil, agora e novamente,

predizer o que as Trevas farão.

Will disse: — Mas o rei e todas aquelas coisas

lindas...

— Se o Cavaleiro parasse para pensar, Will, ele

saberia que seu ímpeto de maldade fez nada mais do que

criar um fim apropriado e digno para aquele grandioso

barco. Quando o pai de seu rei faleceu, ele foi colocado em

uma embarcação da mesma maneira, com seus pertences

mais esplêndidos ao redor, mas a nau não foi enterrada.

Não era assim que se fazia. Os homens do rei lançavam

fogo sobre o barco e o enviava queimando sozinho pelo

mar, uma pira extraordinária velejando. E isso, olhe, é o

que nosso rei do Último Signo está fazendo agora:

velejando no fogo e na água para seu longo descanso,

descendo o maior rio da Inglaterra, em direção ao mar.

— E que descanse em paz — disse Will suavemente,

deixando de olhar finalmente para as chamas ardentes.

Mas por um bom tempo depois disso, onde quer que

estivessem, ainda avistavam o resplendor do barco em

chamas iluminando uma parte do céu escuro e

Page 328: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

tempestuoso.

A CAÇADA ARRASADORA 

— Venha — disse Merriman —, não podemos perder

mais tempo! — A égua branca deu meia-volta tomando o

caminho do rio e empinou no ar, roçando a espuma da

água, para em seguida cruzar o Tâmisa para o lado onde

Buckinghamshire terminava e Berkshire começava. Saltou

numa velocidade desesperadora e ainda assim Merriman

continuou a instigá-la. Will sabia o motivo. Ele percebeu

num vislumbre através da movimentação da capa azul de

Merriman a grande coluna do tornado das Trevas, porém

maior do que antes, fazendo uma ponte entre o céu e a

terra um rodamoinho silencioso no brilho do barco em

chamas. E os seguia, movendo-se muito rápido.

O vento soprava fortemente do leste e o açoitava; a

capa movia-se ao redor de Will pela ação da ventania,

cercando-os como se ele e Merriman estivessem isolados

em uma grande tenda azul.

— Ele está em seu auge — gritou Merriman em seu

ouvido o mais alto possível, mas ainda quase inaudível em

vista do crescente uivo do vento. — Você tem os Seis

Signos, mas eles ainda não foram unidos uns com os

outros. Se as Trevas o pegarem agora, eles terão tudo de

que precisam para erguer seu poder. Neste momento eles

farão todo esforço para conseguir.

Page 329: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

E continuaram galopando, passaram por casas, lojas

e por pessoas inconscientes da presença deles, lutando

contra a enxurrada; passaram por telhados, chaminés,

cercas vivas; cruzaram campos, árvores, mas nunca longe

do solo. A grande coluna negra os perseguia, na velocidade

do vento, e nela e através dela cavalgava o Cavaleiro

Negro montando seu cavalo de mandíbulas como fogo,

instigando-o com a espora atrás deles, e com os Senhores

das Trevas cavalgando ao seu ombro como uma nuvem

escura em rodamoinho.

A égua branca se ergueu novamente, e Will olhou

para baixo. Havia árvores por toda parte abaixo agora;

havia carvalhos e faias isolados e grandiosos nos campos

abertos, e bosques densos se dividiam pelos caminhos

longos e retos. Certamente eles galopavam em um

daqueles caminhos agora, depois dos pinheiros pesados de

neve, e saindo novamente pela terra descampada...

Relâmpagos cortavam o céu a esquerda de Will,

arremessando-se de nuvens enormes, e, em seu clarão, Will

pôde ver a massa escura do Castelo de Windsor surgindo

alto e próximo. Ele pensava: se aquele for o castelo,

devemos estar no Great Park.

Além disso, começava a sentir que não estavam mais

sozinhos. Já, por duas vezes, ouvira aquele grito estranho e

alto no céu, mas agora havia mais. Seres de sua espécie se

encontravam por ali, em algum lugar, no Parque todo

arborizado. E ele sentia ainda que a massa cinzenta do céu

não estava mais vazia e sem vida, mas povoada por

Page 330: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

criaturas, nem das Trevas nem da Luz, movendo-se de um

lado para o outro, ajuntando-se e separando-se, detentores

de grande poder... A égua branca trotava sobre a neve

novamente; os cascos pisavam sobre montes de neve, neve

derretida e gelo, de maneira mais deliberada do que antes.

Ao mesmo tempo, Will percebeu que ela não mais

respondia aos comandos de Merriman, mas seguia um

profundo impulso próprio.

Page 331: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Relâmpagos iluminavam ao redor deles novamente, e

o céu rugia. Merriman disse em seus ouvidos: — Você

conhece o Carvalho de Heme?

— Sim, é claro — respondeu Will. Ele conhecia a

lenda local desde sua infância. — É onde estamos? O

grande carvalho no Grande Parque onde...

Ele engoliu seco. Como ele não pensou nisso? Por

que a Magia lhe ensinara tudo menos isto? Ele prosseguiu,

lentamente — onde se espera que Heme, o Caçador,

cavalgue na véspera da Décima Segunda Noite? — Então,

ele virou-se temerosamente para Merriman: — Heme?

— Irei preparar a Caçada — havia dito Velho George.

E Merriman confirmou: — É claro, hoje à noite, a Caçada

começa. E visto que você desempenhou bem sua parte,

hoje à noite, pela primeira vez em mais de mil anos, a

Caçada terá uma presa.

A égua branca diminuiu o passo, cheirando o ar. Os

ventos pareciam partir o céu ao meio; a lua crescente

navegava alta através das nuvens e desaparecia

novamente. Os relâmpagos dançavam em seis lugares ao

mesmo tempo, as nuvens rugiam e troavam. O pilar negro

das Trevas surgiu movendo-se rapidamente na direção

deles, depois parou, rodopiando e pairando entre o céu e a

terra.

Merriman disse: — Uma Velha Estrada cerca o

Grande Parque, o caminho através do Vale do Caçador.

Eles levarão certo tempo para encontrar os rastros depois

disto.

Page 332: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Will se esforçava para ver adiante através da

escuridão. Na luz intermitente, conseguia identificar a

forma de um solitário carvalho estendendo os galhos

enormes de seu tronco extraordinariamente pequeno.

Diferente da maioria das árvores à vista, ele carregava a

maior quantidade de neve remanescente, e avistava-se uma

sombra ao lado de seu tronco, do tamanho de um homem.

A égua branca avistou a sombra ao mesmo tempo.

Ela resfolegou e bateu as patas no chão.

Will disse para si mesmo, bem baixinho: — A égua

branca deve encontrar o Caçador...

Merriman tocou seu ombro e com desembaraço

deslizaram rapidamente para o solo. A égua inclinou a

cabeça, e Will colocou a mão sobre o pescoço firme e

lustroso do animal. - Vá, minha amiga — disse Merriman, e

a égua saiu trotando ansiosamente na direção do enorme e

solitário carvalho e da misteriosa sombra imóvel sob a

árvore frondosa. A criatura a quem pertencia aquela

sombra possuía imenso poder e Will estremeceu ao senti-

lo. A Lua recuou para trás das nuvens e por um tempo não

houve luz; na penumbra, eles não viam nada se mexer

embaixo da árvore. Subitamente, um som surgiu na

escuridão: o resmungo de saudação da égua branca.

Como se sobrepondo a uma melodia, um gemido

profundo soou das árvores ao lado deles; quando Will se

virou ao redor, a Lua surgiu clara novamente, e ele pôde

ver a enorme silhueta de Pollux, o cavalo shire da fazenda

dos Dawson, com Velho George montado sobre suas costas.

Page 333: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Sua irmã já está em casa, garoto — disse Velho George.

Ela se perdeu, entende, adormeceu em um velho

celeiro e leve um sonho tão curioso que ela já está

esquecendo...

Will aquiesceu com gratidão e sorriu; entretanto,

olhava para a curiosa forma arredondada, escondida sob o

que a embrulhava, que George segurava diante dele. — O

que é isso? — Seu pescoço formigava só de se aproximar

daquilo, seja lá o que fosse.

Velho George não respondeu e se inclinou para baixo

na direção de Merriman. — Está tudo bem?

Tudo vai bem — disse Merriman. Ele estremeceu e

jogou sua capa ao redor do corpo. — Entregue-o para o

garoto.

Olhava atento para o menino com olhos profundos e

inescrutáveis, e Will, indagando-se, foi até a carroça e se

prontificou diante dos joelhos de George, olhando para

cima. Com um sorriso rápido e melancólico que parecia

mascarar uma grande tensão, o velho abaixou-lhe o fardo

misterioso. Era quase tão largo quanto o próprio garoto,

embora não tão pesado; estava embrulhado num saco.

Quando colocou suas mãos sobre o embrulho, soube

instantaneamente o que era. Não podia ser, pensava

incrédulo; qual seria o objetivo?

Um trovão retumbou novamente, ao redor.

Atrás dele, a voz de Merriman soou profunda nas

sombras: — Mas é claro que é. A água o trouxe em

segurança. Então, os Anciãos o retiraram das águas no

Page 334: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

tempo apropriado.

— E agora — disse Velho George, sentado altaneiro

sobre o paciente Pollux — você deve levá-lo ao Caçador,

jovem Ancião.

Will engoliu seco, nervoso. Um Ancião não tinha

nada a temer no mundo, nada. Porém havia algo tão

estranho e bárbaro em relação àquela figura embaixo do

gigantesco carvalho, algo que fazia alguém se sentir

desnecessário, insignificante, pequeno...

Ele se endireitou. Desnecessário era a palavra

errada, em todo caso: ele tinha uma tarefa a cumprir.

Erguendo seu fardo como uma coisa normal, ele retirou o

que lhe cobria, e a cabeça sinistra de carnaval que era

metade homem metade animal emergiu tão suave e alegre

como se tivesse acabado de chegar de sua ilha distante. Os

chifres continuavam firmes e imponentes; Will percebeu

que eles tinham o mesmo formato dos chifres do cervo

dourado, a carranca do navio do rei morto. Segurando a

máscara diante de si, ele andou firmemente na direção da

sombra do imenso carvalho. Nas imediações da árvore, ele

parou. E podia ter um vislumbre da cor branca da égua,

movendo-se gentilmente em reconhecimento, e podia ver

que ela já tinha um cavaleiro. Mas era tudo o que avistava.

A figura sobre o animal se curvou na direção de Will.

Ele não via o rosto, apenas sentiu a máscara ser retirada

de suas mãos, que em seguida caíram ao lado do corpo

como se tivessem sido liberadas de um grande peso,

embora a cabeça, desde o começo, parecesse tão leve. Ele

Page 335: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

recuou. De repente, a Lua surgiu navegando de trás de

uma nuvem, e por um momento seus olhos foram

ofuscados quando olhou diretamente para a luz fria e

branca; logo passou, e a égua branca se moveu para longe

das sombras, mas a iluminação tênue do céu alterou o

perfil da figura montada sobre seu dorso. Naquele

momento, o cavaleiro apresentava uma cabeça maior que a

cabeça de um homem e possuía os chifres de um cervo. A

égua branca, carregando aquele cervo-homem monstruoso,

movia-se inexoravelmente na direção de Will.

Ele ficou imóvel, esperando, até que o grande animal

se aproximasse; o focinho tocou gentilmente seu ombro,

somente uma vez, e pela última também. A figura do

Caçador se ergueu diante dele. A luz da Lua brilhava agora

clara sobre sua cabeça, e Will descobriu a si mesmo fitando

os olhos estranhos e fulvos, na tonalidade amarelo-

dourado, insondáveis como os olhos de um pássaro

gigante. Fitando os olhos do Caçador, ouviu do céu aquele

estranho grito começar novamente e, com dificuldade para

se lembrar de um encantamento, atraiu seu olhar para o

lado para poder ver adequadamente a cabeça, a enorme

máscara com chifres que acabara de entregar ao Caçador

para que a colocasse.

Mas a cabeça era real.

Os olhos dourados piscaram: um piscar de olhos

proposital dos cílios fortes de uma coruja; o rosto do

homem que os portava estava totalmente voltado para Will,

e a boca esculpida sobre a barba macia se separou em um

Page 336: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

rápido sorriso. Aquela boca perturbava o menino; não era a

boca de um Ancião. Ela podia sorrir como um amigo, mas

havia outras expressões ao redor também. Onde no rosto

de Merriman continham marcas de tristeza e raiva, no do

Caçador dizia respeito à crueldade e a um impulso

impiedoso de vingança. De fato, ele era metade animal. Os

chifres negros de Heme se curvaram para cima diante de

Will; a luz da Lua cintilou sobre a textura aveludada, e o

Caçador gargalhou suavemente. Olhava para baixo, para

Will, com os olhos amarelados na face que não era mais

uma máscara, mas algo vivo, e, com a voz semelhante de

um sino tenor, disse: — Os Signos, Ancião, mostre-me os

Signos.

Sem tirar os olhos da figura altaneira, Will se

atrapalhou com a fivela e ergueu os seis círculos no alto

sob a luz do luar. O Caçador os examinou com o olhar e

curvou a cabeça. Quando a ergueu de novo, lentamente,

sua voz suave era quase um canto, quase uma entoação de

palavras que Will já havia ouvido antes.

Quando as Trevas se rebelarem,

seis devem fazê-la recuar, 

Três do círculo, três da trilha;

Madeira, bronze, ferro, água, fogo e pedra;

Cinco retornarão, e um deve sozinho

continuar.

Ferro para o aniversário, bronze depois de

muito carregar;

Page 337: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Pedra sem a música; madeira das chamas 

Água do degelo, fogo no círculo de velas;

Seis Signos formam o círculo, e. o graal não

mais estará.

Mas ele também não parou nos versos que Will

esperava; antes prosseguiu.

A harpa de ouro, o fogo na montanha deverá

encontrar

Tocada para despertar o mais velho dos

velhos,

Aquele que dorme em paz 

Perdido embaixo do mar, o poder da Feiticeira

verde jaz

A prata na árvore, a luz no final, todos devem

achar.

Page 338: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Os olhos amarelados fitaram o menino novamente,

mas não o via agora; eles se tornaram frios, abstratos, um

fogo gelado surgindo em seu olhar e trazendo as

expressões cruéis de volta ao seu rosto. No entanto Will

enxergava a crueldade agora como a violência inevitável da

natureza. Não se tratava de maldade o fato de que a Luz e

os servos da Luz sempre perseguiriam as Trevas, mas isto

era a natureza das coisas.

Heme, o Caçador, deu meia-volta com a grande égua

branca, indo para longe de Will e do solitário carvalho, até

que sua silhueta medonha fosse vista sob a Lua e as nuvens

de tempestade silenciosas e baixas. Ele ergueu a cabeça e

com uma trompa clamou ao céu o que deveria ser o sinal

emitido pelo organizador da caçada para chamar os cães

perseguidores. O som para atiçar os cães parecia aumentar

cada vez mais, preencher o céu e surgir de milhares de

gargantas ao mesmo tempo.

E Will viu que era isso mesmo, pois de vários lugares

do Parque, atrás de toda sombra ou árvore e de toda

nuvem, saltando pelo chão e no ar, surgiu um infindável

número de cães de caça, alardeando, balançando os sinos

como os cães farejadores fazem quando estão começando a

rastrear. Eram animais enormes e brancos, como

fantasmas sob a meia-luz, saltando, esbarrando-se e

correndo juntos; eles sequer atentavam para a presença

dos Anciãos ou qualquer outra coisa além de Heme em sua

égua branca. Suas orelhas eram vermelhas; seus olhos

eram vermelhos; eram criaturas horríveis. Will recuou

Page 339: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

involuntariamente logo que passaram por ele, quando um

cão imenso e prateado atravessou o caminho a passos

largos para olhá-lo de relance com uma curiosidade tão

casual como se o menino fosse um galho caído. Os olhos

vermelhos na cabeça toda branca eram como chamas, e as

orelhas vermelhas ficavam bem esticadas para cima em um

afã terrível, de modo que Will não tentou imaginar o que

seria caçado por cães como aqueles.

Page 340: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Ao redor de Heme e da égua branca, eles latiam e

chacoalhavam o guizo, como um mar de espuma manchada

de vermelho. Em seguida e ao mesmo tempo o homem de

chifres enrijeceu e seus chifres enormes apontavam o

caminho como fazem os cães de caça. Então ele reuniu

seus cães perseguidores com um toque de recolhimento, o

menée, um som que envia uma matilha atrás de sangue.

Um turbilhão de latidos insistentes se ergueu dos cães

brancos enfurecidos, ressoando por todo o céu e, no

mesmo momento, toda a força da tempestade irrompeu

impetuosamente. Nuvens se separaram troando pelos

relâmpagos resplandecentes que recortavam o céu

enquanto Heme e a égua branca saltavam exultantemente

na arena celeste, com seus cães perseguidores de olhos

avermelhados despejando-se no ar tempestuoso atrás deles

como uma imensa enxurrada branca.

Mas um silêncio terrível e repentino surgiu

sufocante, apagando da mente todo o som da tempestade.

No momento de última oportunidade desesperada,

rompendo a barreira que as mantinham afastadas, as

Trevas se manifestaram para Will. Isolando o céu e a terra,

o tenebroso pilar em espiral caiu sobre ele, terrível em seu

furioso rodamoinho de energia e totalmente silencioso.

Não havia tempo para temer. Will estava sozinho. E a

imensa coluna diante dele se apressava para engolfá-lo

com toda a força monstruosa das Trevas reunida em sua

névoa desfigurada e, em seu centro, o imenso garanhão

espumava erguendo as patas dianteiras com o Cavaleiro

Page 341: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Negro em seu dorso: seus olhos eram dois pontos

brilhantes de fogo azul. Will invocava em vão todo o

encantamento de defesa ao seu comando e sabia que suas

mãos eram incapazes de se mover até os Signos para irem

em seu socorro. Ficou onde estava, desesperado, e fechou

os olhos.

Mas no silêncio abafado do mundo que o envolvia,

surgiu um som muito discretamente, o mesmo relincho alto

e distante que se ouvia do mais alto céu, como a travessia

de muitos gansos migradores em uma noite de outono, e

que ele havia ouvido três vezes naquele dia. Quanto mais

próximo, mais alto ficava, e ele abriu os olhos. E viu uma

cena como nunca havia visto antes e que não voltaria a ver.

Metade do céu estava denso e tenebroso por causa da ira

silenciosa das Trevas e seu tornado de poder; mas, naquele

momento, cavalgando naquela direção, vindo do oeste com

a velocidade das pedras quando caem, emergia Heme e a

Caçada Indômita. No auge de seus poderes agora, em um

estrondoso clamor, eles surgiam rugindo da grande nuvem

negra e tempestuosa, cruzando os riscos cortantes dos

raios e nuvens roxas-acinzentadas, cavalgando sob a

tempestade. O homem de chifres e olhos amarelados

cavalgava rindo aterrorizantemente, gritando o Fora! que

incitava ainda mais os cães perseguidores à caça, e sua

égua reluzente se lançava adiante de modo que sua crina e

cauda voavam também.

E ao redor deles e numa imensidão atrás deles, como

um rio largo e branco que verte a Matilha do Alarido, os

Page 342: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Perseguidores, os Cães da Perdição, com seus olhos

vermelhos queimando com milhares de chamas ardentes. O

céu ficara claro com a presença deles que preenchiam o

horizonte ocidental, e ainda continuavam chegando,

infindáveis. Ao som que emitiam como um sino, milhares

de uivos, a magnificência das Trevas recuou e se esquivou

parecendo tremer. Will avistou o Cavaleiro Negro mais

uma vez, no alto da névoa escura: o seu rosto estava

contorcido pela fúria, temor e maldade implacável e, por

trás disso, a consciência da derrota. Ele instigou seu cavalo

com a espora de maneira tão violenta que seu garanhão

negro ao trotar quase tombou. Enquanto puxava as rédeas,

o Cavaleiro parecia perseguir alguma coisa

impacientemente de sua sela, um objeto pequeno e escuro

que caía lânguido e frouxo no chão, permanecendo lá como

um manto descartado.

Então a tempestade e a impiedosa Caçada Indômita

investiram contra o Cavaleiro. Ele cavalgou para o alto em

seu refúgio negro, em rodamoinho. O fantástico tornado

das Trevas se curvou e se contorceu, sacudindo-se como

uma serpente em agonia, até que finalmente um guincho

ecoou nos céus e a coluna tempestuosa começou a se

afastar numa velocidade furiosa para o norte, fugindo

sobre o Parque, a Câmara e o Vale do Caçador; mas atrás

deles partiu Heme e a Caçada bradando a plenos pulmões,

uma imensa crista branca no rompante da tempestade.

Os uivos dos cães perseguidores esvaeciam com a

distância, desaparecendo o último dos sons da caçada e,

Page 343: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

sobre o Carvalho de Heme, a lua crescente prateada foi

deixada flutuando no céu manchado com pequenas nuvens

remanescentes.

Will respirou profundamente e olhou ao redor.

Merriman continuava exatamente como o tinha visto, altivo

e esbelto, vestindo um capuz, como uma estátua escura

sem feições aparentes. Velho George havia recuado para as

árvores junto com Pollux, pois nenhum animal comum

poderia presenciar a Caçada tão de perto e sobreviver.

Will perguntou: — Acabou?

— Mais ou menos — respondeu Merriman, ocultado

pelo capuz. — As Trevas foram... — Ele não ousava usar

aquelas palavras. — As Trevas foram vencidas, finalmente,

neste enfrentamento. Nada pode desafiar a Caçada

Indômita. E Heme e seus cães perseguidores caçam sua

presa até o fim, até os confins da Terra. Portanto, os

Senhores das Trevas devem se esconder agora, nos confins

da Terra, aguardando pela próxima oportunidade. Mas, da

próxima vez, nós estaremos muito mais fortes, pela

totalidade do círculo, dos Seis Signos e do Dom da Magia.

Nós fomos fortalecidos por ter completado sua busca, Will

Stanton, e estamos mais próximos de obter a última vitória,

no definitivo final. — Ele retirou o capuz, os cabelos

brancos e revoltos cintilavam na luz do luar e, por um

momento, os olhos assombreados fixaram os de Will

comunicando orgulho, o que fez o rosto do menino se

aquecer de regozijo. Merriman olhou através do gramado

coberto de neve do Grande Parque.

Page 344: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Somente resta unir os Signos — disse ele. — Mas,

antes disso, uma... pequena... coisa.

Curiosamente, sua voz falhou. Will seguiu, confuso,

quando ele caminhou a passos largos aproximando-se do

Carvalho de Heme. Então, enxergou sobre a neve, antes da

sombra da árvore, o manto amassado que o Cavaleiro

Negro deixara cair quando se virava para fugir. Merriman

se abaixou, depois se ajoelhou ao lado da veste na neve.

Ainda se perguntando, Will espiou mais de perto e

percebeu chocado que o monte escuro não se tratava de

um manto, mas de um homem. A figura estava com o rosto

para cima, torcido em um ângulo terrível. Era o Andarilho,

era Hawkin.

Merriman falou com a voz profunda e sem expressão:

— Aqueles que cavalgam alto com os Senhores das Trevas

devem esperar pela queda. E homens não caem facilmente

de alturas como estas. Acho que a coluna dele está

quebrada.

Ocorreu a Will, olhando para o rosto imóvel, que

desta vez Merriman havia esquecido que Hawkin não era

mais um homem comum. Não, comum talvez não fosse a

palavra certa para um homem que tinha sido usado tanto

pela Luz como pelas Trevas e enviado diversas vezes

através do Tempo para se tornar finalmente o Andarilho

abatido pela vida errante, através de seiscentos anos. Mas

um homem, todavia, e mortal. O rosto pálido tremia, e os

olhos se abriram. A dor estava refletida neles e também a

sombra de uma dor diferente relembrada.

Page 345: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Ele me jogou — disse Hawkin. Merriman olhava-o,

mas não dizia nada.

— Sim — sussurrou Hawkin amargurado. — Você

sabia que isto aconteceria. — Ofegou com dor quando

tentou mover a cabeça e o pânico se refletiu em seus olhos.

— Somente a minha cabeça... eu sinto a minha cabeça, por

causa da dor. Mas meus braços, minhas pernas, eles

estão... não...

Percebia-se um terrível e desolado desespero na face

enrugada naquele momento. Hawkin olhava para

Merriman. — Estou perdido — dizia ele. — Eu sei. Você

fará que eu continue a viver, com o pior sofrimento de

todos agora. O último direito de um homem é morrer. Você

impediu isso durante todo esse tempo e obrigou-me a viver

através dos séculos quando eu freqüentemente desejava a

morte. E tudo por uma traição na qual caí porque eu não

tinha a sagacidade de um Ancião... — O pesar e o anseio

em sua voz eram intoleráveis; Will virou o rosto para longe.

Mas Merriman replicou: — Você era Hawkin, meu

filho de criação e vassalo, que traiu seu senhor e a Luz.

Depois, tornou-se o Andarilho, para andar sobre a terra

pelo tempo que a Luz exigisse. E assim você viveu, de fato.

Mas nós não o mantivemos desde então, meu amigo. Uma

vez que a tarefa do Andarilho foi cumprida, você estaria

livre e poderia ter descansado para sempre. Em vez disso,

você escolheu ouvir as promessas das Trevas e traiu a Luz

pela segunda vez... eu lhe dei a oportunidade para

escolher, Hawkin, e eu não a retirei. E não posso. Ela ainda

Page 346: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

lhe pertence. Nenhum poder das Trevas ou da Luz pode

tornar um homem mais do que um homem, uma vez que

qualquer papel sobrenatural que ele deva desempenhar

terá um determinado fim. E nenhum poder das Trevas ou

da Luz pode tirar seus direitos como homem, também. Se o

Cavaleiro Negro lhe disse isso, ele mentiu.

A face contorcida o fitava agoniado quase

acreditando.

— Eu posso ter meu descanso? Pode haver um fim, se

eu escolher?

— Todas as suas escolhas foram propriamente suas

— disse Merriman com tristeza.

Hawkin aquiesceu com a cabeça; um espasmo de dor

lampejou por seu rosto e desapareceu. Mas aqueles olhos

que se voltavam para Merriman e Will estavam brilhantes,

eram os mesmos olhos alegres do começo, do pequeno e

vaidoso homem vestido num casaco verde de veludo. Seu

olhar voltou-se para Will. E Hawkin disse suavemente; —

Use bem o dom, Ancião.

Em seguida, ele contemplou Merriman, um olhar

particularmente insondável, e falou de forma quase

inaudível: — Mestre... — Então a luz desapareceu dos olhos

brilhantes e já não havia ninguém mais ali.

UNINDO OS SIGNOS 

Na ferraria de teto baixo, Will se encontrava de

costas para a entrada olhando o fogo. As chamas

Page 347: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

apresentavam a coloração laranja-avermelhada mescladas

com um forte branco-amarelado quando John Smith

pressionava o fole; o calor fazia Will se sentir à vontade

pela primeira vez naquele dia. Não era tão ruim assim o

fato de um Ancião ficar molhado como um peixe em um rio

gelado, mas, naquele momento, ele estava contente de

sentir o calor em seus ossos novamente. E o fogo

revigorava seus ânimos, enquanto iluminava todo o

aposento.

Porém a luz não atingia apropriadamente todo o

aposento, pois nada do que Will podia ver parecia sólido.

Havia certo tremor no ar. Somente o fogo dava a

impressão de ser real, o resto poderia ser apenas uma

miragem.

Ele percebeu que Merriman lhe observava com um

meio sorriso.

— É a sensação daquele mundo parcial novamente —

disse Will, perplexo. — A mesma sensação daquele dia no

Solar quando estávamos em dois Tempos diferentes no

mesmo instante.

— É. A mesma. E estamos novamente.

— Mas estamos no tempo do ferreiro — disse Will.

— Nós passamos pelos Portais.

Sim, eles passaram; ele, Merriman, Velho George e n

enorme cavalo Pollux. Do lado de fora da Câmara dos

Comuns, escura e molhada, quando a Caçada Indômita

rechaçou as Trevas pelos céus, eles atravessaram os

Portais entrando no tempo de seiscentos anos antes, do

Page 348: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

qual Hawkin havia surgido e no qual Will havia caminhado

na tranqüila manhã enevoada de seu aniversário. Eles

trouxeram Hawkin de volta ao seu século pela última vez,

acomodado sobre o dorso de Pollux; quando Iodos eles

cruzaram os Portais, Velho George afastou-se com o

cavalo, carregando o corpo de Hawkin na direção da

Igreja. E Will soube que no seu próprio tempo, em algum

lugar do cemitério do vilarejo, coberto por outros sepulcros

mais recentes ou por uma pedra desgastada quase ilegível

em seus dizeres, estaria o túmulo de um homem chamado

Hawkin, que morrera há muitos anos, no século 13, e

descansava em paz naquele lugar desde então.

Merriman o levou para a frente da ferraria, onde

contemplaram a trilha estreita e pedregosa através do Vale

do Caçador, a Velha Estrada. — Ouça — disse ele.

Will olhava para a trilha acidentada, as árvores

frondosas do outro lado, a faixa fria acinzentada do céu

quase amanhecendo. — Eu posso ouvir o rio! — falou ele,

confuso.

— Ah — disse Merriman.

— Mas o rio está a quilômetros daqui, do outro lado

da Câmara.

Merriman inclinou a cabeça para o som impetuoso e

agitado das águas. Era o som de um rio cheio, mas não

transbordando, um rio correndo depois de muita chuva. —

O que estamos ouvindo — falou ele — não é o Tâmisa, mas

o som do século 21. Perceba, Will, os Signos devem ser

unidos por John Wayland Smith nesta ferraria, neste

Page 349: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

tempo, pois não vai demorar para que esta ferraria seja

destruída. Porém os Signos não podiam ser reunidos até o

fim de sua busca, que foi cumprida dentro de seu tempo.

Assim, a união deve ser realizada era uma bolha do Tempo

entre as duas épocas, as quais os olhos e ouvidos de um

Ancião podem perceber. Não é um rio de verdade que

ouvimos. É a água correndo no seu tempo pela Trilha do

Vale do Caçador, devido ao derretimento da neve.

Will pensava na neve e em sua família sitiada pela

enxurrada e repentinamente voltara a ser o garotinho que

desejava muito voltar para casa. Os olhos escuros de

Merriman o contemplaram solidariamente. — Não vai

demorar — disse ele.

O som de marteladas ecoou atrás deles e eles se

viraram. John Smith terminava de encher os foles de seu

aro branco e vermelho; estava trabalhando na bigorna,

enquanto as longas pinças esperavam prontas diante do

brilho do fogo. O ferreiro não utilizava seu costumeiro

martelo pesado, mas outro que parecia ridiculamente

pequeno em seu punho largo: era uma ferramenta delicada

que se assemelhava mais àquelas que tinham visto seu pai

usar na joalheria. Mas, o objeto sobre o qual trabalhava se

mostrou de longe mais delicado ainda que ferraduras: uma

corrente dourada, ligada em toda a sua extensão, na qual

os Seis Signos seriam pendurados. Os elos se encontravam

em uma fileira ao lado da mão de John.

Ele olhou para cima, seu rosto estava corado pelo

calor do fogo. — Estou quase terminando.

Page 350: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Muito bem. — Merriman os deixou e caminhou até

a estrada, permanecendo lá sozinho, alto e imponente em

seu longo casaco azul. Não usava o capuz, desse modo seu

cabelo branco cintilava como a neve. Mas não havia neve

naquele lugar e, embora Will pudesse ainda ouvir o som de

água corrente, não havia água também...

Então a mudança começou. Merriman parecia não

ter se movido. Continuava de costas para eles, com as

mãos de cada lado do corpo, muito quieto, sem fazer o

menor movimento. Mas tudo ao seu redor, o mundo,

começou a se mover. O ar tremeu e estremeceu, o

contorno das árvores, a terra e o céu tremularam, ficaram

borrados, e todas as coisas visíveis davam a impressão de

girar e de se misturar. Will ficou olhando para este mundo

hesitante, sentindo-se um pouco atordoado, e pouco a

pouco começou a ouvir, sobrepondo-se ao som do rio de

águas correntes invisível, o murmúrio de muitas vozes.

Como um lugar visto através de bruma crepitante de calor,

o mundo trêmulo começava a se recompor na perspectiva

de coisas visíveis, e ele contemplou uma grande multidão

indistinguível enchendo a estrada e os espaços entre todas

as árvores e toda a clareira diante da ferraria. Elas não

pareciam reais, nem muito firmes; tinham uma

característica fantasmagórica como se pudessem

desaparecer logo que tocadas. Elas sorriam e

cumprimentavam Merriman de onde ele estava. O rosto

dele já não olhava mais para Will. Agrupando-se ao seu

redor, as pessoas dirigiam o olhar, ansiosas, para a

Page 351: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

ferraria, assim como espectadores prestes a assistir uma

peça; mas, até aquele momento, ninguém parecia reparar

em Will ou no ferreiro.

Havia uma variedade infinita de rostos: alegres,

sisudos, velhos, jovens, brancos como papel, negros como

tinta, e toda tonalidade e nuanças de rosa e marrom,

vagamente reconhecível ou totalmente estranha. Will

achava que reconhecia alguns rostos da festa promovida

no Solar da srta. (Greythorne, a festa realizada em um

Natal do século 19 que levou Hawkin ao desastre e ele ao

Livro da Magia — e então ele soube: todas aquelas

pessoas, essa multidão inumerável que Merriman tinha de

alguma maneira invocado, eram Anciãos, de toda a Terra,

de toda parte do mundo, e ali estavam eles, para

testemunhar a união dos Signos. Will estava aterrorizado,

louco para entrar em um buraco e escapar dos olhares

deste novo e grandioso mundo encantado.

Ele pensava: este é o meu povo. Esta é a minha

família, da mesma forma como minha família de verdade.

Os Anciãos. Cada um de nós está ligado para cumprir um

propósito grandioso no mundo. Então ele percebeu um

alvoroço na multidão, emergindo como uma agitação ao

longo da estrada, e algumas pessoas começaram a se

mexer e mover como se fossem em direção a algo. Depois

ouviu a música: o som sereno e monótono, quase cômico

em sua simplicidade, de pífaros e tambores, que havia

ouvido em seu sonho que poderia não ter sido um sonho.

Will ficou tenso, com os punhos cerrados, esperando, e

Page 352: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Merriman moveu-se ao redor e atravessou o caminho a

passos largos para ficar ao seu lado, enquanto uma

pequena procissão de pessoas da multidão vinha naquela

direção, do mesmo modo como tinha sido antes.

Através do aglomerado de gente, e curiosamente

mais consistentes do que os outros, emergia uma pequena

procissão de garotos, vestidos com túnicas e calças fuso

rústicas, os cabelos nos ombros e gorros estranhos. De

novo, aqueles que estavam na frente carregavam varas e

feixes de gravetos de vidoeiro, enquanto aqueles que se

posicionavam atrás tocavam sua única, repetitiva e

melancólica música, em flautas e tambores. Novamente,

entre esses dois grupos surgiram seis garotos carregando

sobre os ombros um ataúde entrelaçado de galhos e junco

com um ramo de azevinho em cada canto.

Merriman disse, de forma bem reservada: —

Primeiro, no Dia de São Estevão, o dia depois do Natal.

Então, na Décima Segunda Noite. Duas vezes ao ano, se for

um ano especial, promove-se a Caça ao Uirapuru .

Mas agora Will conseguia enxergar claramente o

ataúde mesmo já no início, desta vez, não havia um

uirapuru. Em vez disso, aquela outra forma delicada

permanecia deitada ali, a velha senhora, com vestes azuis e

um enorme anel de rosa em uma mão. Os garotos

marchavam rumo à ferraria onde gentilmente colocaram o

ataúde sobre o chão. Merriman se inclinou sobre ele

estendendo a mão, e a Dama abriu os olhos e sorriu. Ele a

ajudou a se levantar e estando ela de pé virou-se para Will,

Page 353: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

tomou-lhe as mãos nas suas e disse: — Muito bem, Will

Stanton — e através da multidão de Anciãos aglomerando-

se na trilha, um murmúrio de aprovação foi ouvido

semelhante ao vento cantando nas árvores.

A Dama virou-se para ficar diante da ferraria onde

John estava esperando e disse: — Em carvalho e em ferro,

sejam os Signos unificados.

— Venha, Will — chamou John Smith. Juntos eles

foram até a bigorna. Will se desfez do cinto que carregara

os Signos durante toda a sua jornada. — Em carvalho e em

ferro? — sussurrou ele.

― Ferro para a bigorna — disse o ferreiro

calmamente.

― Carvalho para a base. Esta grande base da

madeira da bigorna sempre é feita de carvalho, da raiz de

um carvalho, n parte mais forte da árvore. Eu não ouvi

alguém contar a você sobre a natureza da madeira algum

tempo atrás? ― seus olhos azuis piscaram para Will, e

então voltou a se concentrar no trabalho. Ele pegou um por

um dos Signos e os juntou com os círculos de ouro. No

centro, colocou os Signos do Fogo e da Água; ao lado de

cada um destes os Signos do Ferro e do Bronze e, ao lado

desses, os Signos da Madeira e da Pedra. Em cada

extremidade, ele prendeu uma extensão da resistente

corrente de ouro. Em seguida, trabalhou rápido e

delicadamente, enquanto Will observava. Do lado de fora, a

grande multidão de Anciãos permanecia em silêncio como

grama crescendo. Por trás da batida do martelo do ferreiro

Page 354: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

e dos silvos ocasionais dos foles, nenhum som era ouvido

de qualquer lugar a não ser o som das águas correntes do

rio-estrada invisível, há séculos dali - do futuro e tão ao

alcance.

— Está feito — disse John finalmente.

Cerimonialmente, ele estendeu para Will a brilhante

corrente de ligação dos Signos, e o menino perdeu o fôlego

ao contemplar tamanha beleza. Repentinamente, ao

segurar os Signos, o menino foi acometido por uma

sensação impetuosa e estranha como um choque elétrico:

uma reafirmação forte e arrogante de poder. Will se via

confuso: o perigo passou, as Trevas fugiram, então qual o

propósito disto? Em seguida, caminhou até a Dama, ainda

se perguntando, colocou os Signos nas mãos dela e

ajoelhou-se diante da senhora.

Ela declarou: — Mas isto é para o futuro, Will, não

percebe? É para isso que os Signos existem. Eles são a

segunda das quatro Coisas de Poder que estiveram

adormecidas em todos estes séculos e são grande parte da

nossa força. Cada um dos Artefatos de Poder foi feito era

um momento diferente no Tempo por um artesão da Luz,

para aguardar o dia quando seriam necessários. Há um

cálice dourado, conhecido como graal; há o Círculo dos

Signos; há a espada de cristal e a harpa de ouro. O graal,

como os Signos, foi encontrado e está seguro. Os outros

dois devem ser encontrados, outra busca para outro tempo.

Mas uma vez que acrescentarmos aqueles a estes, e as

Trevas se levantarem para seu ataque final e o mais

Page 355: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

terrível contra o mundo, teremos esperança e convicção de

que poderemos vencê-los.

Ela ergueu a cabeça, olhando sobre a incontável

multidão fantasmagórica de Anciãos. — Quando as Trevas

se rebelarem — disse ela, sem expressão, e as vozes a

complementaram em um rumor sinistro e baixo — seis

devem fazê-la recuar.

Ela olhou novamente para Will, as rugas ao redor dos

olhos envelhecidos se curvavam em afeto. — Descobridor

dos Signos — disse ela —, pelo nascimento e pelo

aniversário você conheceu a si mesmo, e o círculo dos

Anciãos se completou, para agora e para sempre. E pelo

seu bom uso do Dom da Magia, você cumpriu uma grande

busca e provou ser mais forte do que a provação. Até que

nos encontremos de novo, e certamente nos

encontraremos, nós nos lembraremos de você com orgulho.

A multidão imensurável murmurou novamente, uma

resposta diferente e calorosa; e com a pequena e delicada

mão do grande anel rosa reluzente, a Dama se inclinou e

colocou a corrente da união dos Signos ao redor do

pescoço de Will. Em seguida o beijou levemente sobre a

fronte, como um roçar gentil da asa de um pássaro, e disse:

— Adeus, Will Stanton.

O murmúrio de vozes aumentou e o mundo girou em

volta do menino em uma onda de chamas e árvores e,

emergindo de tudo isso, soou bem alta a música cujas

frases eram entoadas como o sino, mais alegre do que

nunca. Ela repicava e vibrava em sua cabeça, envolvendo

Page 356: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

todo o seu ser com tanto regozijo que ele fechou os olhos e

deixou-se fluir na beleza da canção. Will soube em uma

fração de segundo que se tratava da essência e do espírito

da Luz. Mas, em seguida, pouco a pouco começou a

diminuir, ficando cada vez mais distante, um leve ressoar e

um pouco melancólica, como sempre havia sido, sumindo,

sumindo, correndo o risco do som das águas correntes

tomarem seu lugar. Will gritou de tristeza e abriu os olhos.

Viu-se ajoelhado sobre a fria neve batida, sob a luz

cinzenta do amanhecer, em um lugar que ele não

reconhecia quando o comparava à Trilha do Vale do

Caçador. Árvores desfolhadas apareciam da neve derretida

do outro lado da estrada. Através do Caminho onde se

encontrava, na estrada que já foi certa vez pavimentada, as

águas corriam furiosamente pelas calhas emitindo o som

de um riacho, ou mesmo de um rio... A estrada estava

vazia; ninguém estava ali visivelmente entre as árvores.

Will poderia ter chorado pela sensação de perda; toda

aquela calorosa multidão de amigos, o brilho, a luz, a

celebração e a Dama: tudo se foi, todos partiram, deixando-

o sozinho.

Colocou a mão no pescoço. Os Signos ainda estavam

lá. Atrás dele, a voz de Merriman soou profunda: — Hora

de ir para casa, Will.

— Ah — disse ele com tristeza, sem se virar. — Estou

feliz que ainda esteja aqui.

— Você já deu a impressão de estar mais contente —

disse Merriman sarcasticamente. — Contenha seu êxtase,

Page 357: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

eu lhe peço.

Sentando sobre os calcanhares, Will olhava-o sobre

os ombros. Merriman o fitava seriamente com seus olhos

escuros semelhantes aos da coruja, e repentinamente as

emoções que foram contidas em um nó apertado e

insuportável se romperam e partiram, e o menino caiu

numa gargalhada. A boca de Merriman se mexeu

levemente. Ele estendeu a mão, e Will se colocou de pé

com esforço, ainda gaguejando.

— É que... — começou ele a falar e parou, não muito

certo se estava rindo ou chorando.

— Isso foi... uma alteração — disse Merriman com

gentileza. — Consegue andar agora?

— É claro que posso andar — respondeu ele,

indignado. Olhava ao redor. Onde a ferraria deveria estar,

havia uma construção de tijolos demolida, como uma

garagem, e em volta dela era possível reconhecer os traços

da estrutura fria e dos canteiros de vegetais na neve

derretida. Rapidamente voltou-se para cima e viu o

contorno de uma casa conhecida. — É o Solar! — disse ele.

— A entrada dos fundos — informou Merriman. —

Perto do vilarejo. Usada principalmente pelos

negociantes... e mordomos. — E sorriu para Will.

— É realmente aqui onde a ferraria costumava ficar?

— Nas plantas antigas da casa, chamava-se o Portão

do Ferreiro — disse Merriman. — Os historiadores que

escrevem sobre Buckinghamshire a respeito do Vale do

Caçador gostam muito de especular sobre essa

Page 358: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

perspectiva. Eles sempre erraram.

Will olhou através das árvores para as altas chaminés

em estilo Tudor do Solar e seus telhados inclinados. — A

srta. Greythorne está lá?

― Sim, ela está lá agora. Mas você não a viu na

multidão?

― Na multidão? — Will tomou conhecimento de que

sua boca estava tolamente aberta e a fechou. Imagens

conflitantes se misturavam em sua cabeça. — Você quer

dizer que ela é uma dos Anciãos?

Merriman ergueu uma sobrancelha. — Venha agora,

Will, seus sentidos já lhe disseram isso há muito tempo.

― Bem... sim, eles disseram. Mas eu nunca soube

muito bem qual srta. Greythorne era a que pertencia ao

nosso povo, aquela de hoje ou a da festa de Natal. Bem,

sim, sim. Eu suponho que eu saiba isso também. — Fixava

Merriman hesitantemente. — Trata-se da mesma pessoa,

não é?

— Assim está melhor — respondeu Merriman. — E a

srta. Greythorne me deu, enquanto você e Wayland Smith

estavam absortos em seu serviço, dois presentes para a

Décima Segunda Noite. Um é para seu irmão, Paul, e o

outro para você. — Então, mostrou dois embrulhos

pequenos e sem forma embalados no que parecia ser seda;

em seguida, os colocou novamente embaixo de sua capa. —

O presente de Paul é algo comum, penso eu. Mais ou

menos. O seu é algo para ser usado somente no futuro, em

algum momento quando seu julgamento lhe disser que irá

Page 359: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

precisar dele.

— Décima Segunda Noite — disse Will. — Será hoje?

Ele olhava para o céu cinzento do início da manhã.

— Merriman, como você conseguiu que minha família

parasse de se perguntar onde eu estava? Minha mãe está

realmente bem?

— É claro que ela está — respondeu Merriman. — E

você passou a noite no Solar, adormecido... Venha agora,

estas questões são coisas muito pequenas. Eu sei todas as

perguntas. E você terá todas as respostas, quando estiver

finalmente em casa, e de qualquer maneira você já as sabe.

— Voltou a cabeça para baixo na direção de Will, os olhos

escuros e profundos o fitaram persuasivos como um

basilisco. — Venha, Ancião — disse ele suavemente —,

lembre-se. Você não é mais um garotinho.

— Não — confirmou Will. — Eu sei.

Merriman acrescentou: — Mas, algumas vezes, você

sentirá como seria muito mais agradável se você fosse.

— Algumas vezes — repetiu Will. E sorriu. — Mas

não sempre. — Eles se viraram e atravessaram a passos

largos a pequena margem do riacho da estrada para

caminharem juntos até a casa dos Stanton ao longo da

Trilha do Vale do Caçador.

* * *

O dia ficava cada vez mais claro e a luz começava a

se difundir no horizonte do céu diante deles, onde o Sol

Page 360: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

logo despontaria. Uma névoa bem tênue ainda pairava

sobre a neve dos dois lados da estrada, circulando pelas

árvores desfolhadas e pequenos riachos. Era uma manhã

cheia de promessas, com um céu limpo de tonalidade azul

clara, o tipo de céu que o Vale do Caçador não via há

muitos dias. Eles caminhavam como velhos amigos

caminham, sem muita conversa, compartilhando o tipo de

silêncio que não é de fato um silêncio quando visto como

um tipo de comunicação calada. Seus passos marcavam a

estrada molhada, emitindo o único ruído do vilarejo, exceto

pelo som de um pássaro preto e, de algum outro lugar

adiante, o som de alguém removendo algo com uma pá. De

um lado da estrada, as árvores surgiam eminentes, escuras

e sem folhagens, e Will percebeu que elas estavam na

curva que passava pelo Bosque das Gralhas. Ele olhou para

cima. Nenhum som se ouvia das arvores ou dos ninhos

desordenados instalados lá no alto nos galhos cobertos

pela neblina.

— As gralhas estão muito quietas — disse ele.

Merriman falou: — Elas não estão lá.

— Não estão lá? Por que não? Onde elas estão?

Merriman sorriu, um pequeno sorriso desalentador.

— Quando a Matilha do Alarido está caçando através do

céu, nenhum animal ou pássaro pode ficar visível a eles

para não ser tomado violentamente pelo terror. Todos

através deste reino, ao longo do trajeto de Heme e da

Caçada, serão Incapazes de encontrar qualquer criatura

deixada solta na noite passada. Isso era bem conhecido nos

Page 361: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

dias antigos. Os camponeses de todo lugar costumavam

trancar seus animais na véspera da Décima Segunda Noite,

no caso da Caçada passar por ali.

— Mas o que acontece? Eles são mortos? — Will

achava que apesar de tudo o que as gralhas tinham feito

pelas Trevas, ele não queria pensar no extermínio de todas

elas.

— Ah, não — disse Merriman. — Espalhadas. Levadas

por bem ou por mal pelo céu até que o cão perseguidor

mais próximo opte por liberá-las. Os Cães da Perdição não

são uma espécie que mata seres viventes ou come carne...

As gralhas voltarão um dia. Uma por uma, sujas, cansadas,

com pena de si mesmas. Pássaros mais prudentes que não

lidam com as Trevas devem ter se escondido na noite

passada, embaixo de galhos ou no beirai das casas, fora de

vista. Aqueles que agiram assim estão por aqui ilesos. Mas

demorará um pouco para nossas amigas, as gralhas, se

recuperem. Eu acho que você não terá problemas com elas

novamente, Will, embora eu nunca confiaria em uma se eu

fosse você.

— Olhe — disse Will indicando adiante. — Lá estão

dois em quem se pode confiar. — O orgulho soava firme em

sua voz, enquanto subindo a estrada na direção deles,

surgiam correndo e saltando os dois cães dos Stanton, Raq

e Ci. Eles saltaram para ele, latindo e gemendo de

contentamento, lambendo suas mãos numa saudação tão

calorosa como se ele tivesse fora por um mês. Will parou

para falar com eles e foi cercado por rabos acenando,

Page 362: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

cabeças ofegantes e pés enormes molhados. — Saiam

daqui, seus bobos — dizia ele alegremente.

Merriman falou muito baixinho: — Quietos agora. —

Instantaneamente, os cães se acalmaram e ficaram em

silêncio, somente seus rabos abanavam entusiasticamente;

ambos se viraram para Merriman e o olharam por um

momento e em seguida trotavam amigavelmente em

silêncio ao lado de Will. Então, a entrada da garagem dos

Stanton apareceu adiante, e, o ruído de pás ficou mais alto

ao virar a esquina, eles encontraram Paul e o sr. Stanton,

agasalhados contra o frio, limpando a neve, as folhas e os

gravetos do bueiro.

— Ora, ora — disse o sr. Stanton, apoiando-se em sua

pá.

— Olá, pai — disse Will animado e correu para

abraçá-lo. Merriman cumprimentou: — Bom-dia.

— Velho George disse que você viria bem de manhã

— disse o sr. Stanton —, mas eu não achei que ele queria

dizer tão cedo. No entanto, você conseguiu acordá-lo?

— Eu acordei sozinho — disse Will. — Sim, eu virei

uma folha nova para o Ano-novo. O que estão fazendo?

— Virando as folhas velhas — disse Paul. — Ha, ha,

ha.

— Estamos mesmo. O degelo aconteceu tão

repentinamente que o solo ainda estava congelado e nada

conseguia drenar a neve derretida. E agora que os bueiros

estão começando a degelar também, a enxurrada trouxe de

tudo misturado com o lixo arrastado pelo caminho. Como

Page 363: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

isto. — Ele ergueu uma trouxa pingando.

Will disse: — Eu vou pegar outra pá e ajudar.

— Não gostaria de tomar o café-da-manhã primeiro?

perguntou Paul.

— Mary está preparando algo para nós, acredite se

quiser.Tem um monte de "folha virada" por aqui, enquanto

o ano ainda é novo.

Will percebeu que se passara muito tempo desde que

comera pela última vez e sentiu-se faminto. — Humm —

murmurou ele.

— Vamos entrar e tomar o café ou um copo de chá ou

outra coisa — disse o sr. Stanton para Merriman. — É uma

caminhada gelada do Solar até aqui, nesta hora da manhã.

Eu sou realmente grato a você por trazê-lo para casa, sem

mencionar o fato de ter cuidado dele à noite.

Merriman balançou a cabeça, sorrindo, e puxou o

colarinho do que Will viu sutilmente transformado de um

casaco em um pesado sobretudo do século 21. — Obrigado.

Mas eu preciso voltar.

― Will! — soou uma voz esganiçada e Mary veio

correndo pela entrada dos carros. Will foi ao seu encontro;

a menina escorregou até ele e o socou no estômago. — Foi

divertido lá no Solar? Você dormiu num dossel?

— Não exatamente — disse Will. — Você está bem?

— Bem, é claro. Eu fiz um super passeio no cavalo do

Velho George, era um daqueles enormes do sr. Dawson, os

cavalos de apresentação. Ele me pegou na Trilha do Vale

do Caçador, logo depois que eu saí. Parece que foi há anos

Page 364: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

isso c não na noite passada. — Ela olhava para Will

bastante encabulada. — Suponho que eu não deveria ter

ido atrás de Max daquele jeito, mas tudo estava

acontecendo tão rápido c eu fiquei preocupada de a mamãe

não conseguir ajuda.

— Ela está mesmo bem?

— O doutor disse que ela ficará bem. Foi apenas uma

torção e não uma perna quebrada. Ela realmente se

surpreendeu, por isso deverá ficar de repouso durante uma

ou duas semanas. Mas está tão animada quanto pode ficar,

você vai ver.

Will olhou por cima da entrada dos carros. Paul,

Merriman e seu pai conversavam e riam. Ele pensou que

talvez seu pai tivesse decidido que Lyon, o mordomo, era

um bom camarada afinal e não simplesmente um ajudante

senhorial.

Mary acrescentou: — Sinto muito por você ter se

perdido no bosque. É tudo culpa minha. Você e Paul

deviam estar logo atrás de mim. Ainda bem que Velho

George descobriu por fim onde todos estavam. Pobre Paul,

preocupado por estarmos perdidos, em vez de apenas

comigo. — Ela riu nervosa, tentando parecer penitente,

sem muito esforço.

— Will! — Paul se afastou do grupo, correndo em sua

direção. — Olhe isto! A srta. Greythorne chama isto de

empréstimo permanente, que Deus a abençoe, olhe! — O

rosto dele estava corado de alegria. E estendia o embrulho

que Merriman estava carregando, agora aberto, e Will viu

Page 365: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

a velha flauta do Solar.

Sentindo o rosto irromper num longo e lento sorriso,

olhou para Merriman. O olhar de Merriman cruzou com o

dele seriamente e o mordomo lhe entregou o segundo

pacote. — Este, a Senhora do Solar mandou para você.

Will abriu-o. Dentro havia uma pequena trompa de

caça, brilhando e afinada pelo tempo. Olhou brevemente

Merriman e para baixo novamente.

Mary saltitava ao redor, rindo. — Vamos lá, Will,

sopre-o. Você poderia fazer barulho por todo o caminho até

chegar a Windsor. Vamos lá!

— Mais tarde — disse ele. — Eu preciso aprender

como. Poderia agradecê-la por mim? — pediu ele a

Merriman.

Merriman aquiesceu com a cabeça. — Agora preciso

ir — disse ele.

Roger Stanton falou: — Não tenho palavras para

expressar nossa gratidão por sua ajuda. Por tudo, durante

esse tempo maluco, as crianças... você realmente foi

tremendamente... — ele perdeu as palavras, mas estendeu

o braço e sacudiu a mão de Merriman para cima e para

baixo com tanto entusiasmo que Will pensou que ele nunca

Iria parar.

O rosto intensamente marcado suavizou-se;

Merriman olhava contente e um pouco surpreso. Sorriu e

aquiesceu, mas não disse nada. Paul deu-lhe um aperto de

mãos e Mary também. Depois, as mãos de Will foram

tomadas por uma garra potente, e havia uma pressão

Page 366: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

rápida no cumprimento e um breve olhar intencional,

escuro e profundo. Merriman disse: — Au revoir, Will.

Acenou-lhes e partiu descendo a Trilha. Will moveu-

se lentamente atrás dele. Mary disse, saltando ao seu lado:

— Você ouviu os gansos selvagens na noite passada?

— Gansos? — perguntou Will bruscamente. Ele não

estava escutando de fato. — Gansos? Em toda aquela

tempestade?

— Que tempestade? — disse Mary e continuou

falando antes que ele pudesse até piscar. — Gansos

selvagens, devia haver uns milhares deles. Migrando, eu

acho. Nós não os vimos... só ouvíamos aquele ruído

suntuoso; primeiro, um monte de crocitos daquelas gralhas

idiotas do bosque e depois um longo, longo ruído de alarido

no céu, muito alto mesmo. Foi emocionante.

— Sim — disse Will. — Sim, deve ter sido.

— Eu não acredito que você estava mais do que semi-

acordado — disse Mary desgostosa e saiu saltitando até o

fim da entrada da garagem. Depois ela parou

repentinamente e ficou muito quieta. — Meu Deus! Will!

Olhe!

Ela estava prestando atenção em alguma coisa atrás

de uma árvore, ocultada pelos montes de neve

remanescentes. Will se aproximou para olhar e viu a

grande  cabeça de carnaval com os olhos de uma coruja, a

face de um homem e os chifres de um cervo deitada no

mato molhado. Sequer uma palavra saía de sua garganta. A

cabeça estava viçosa, reluzente e seca, como sempre foi e

Page 367: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

sempre seria. Parecia o perfil de Heme, o Caçador, que ele

havia visto no céu e ao mesmo tempo não tão parecida

assim.

Ele ainda olhava sem dizer nada.

— Bem, eu nunca pensei... — disse Mary radiante. —

Não foi sorte que isso foi se emperrar ali? A mamãe ficará

contente. Ela acordou quando a enxurrada surgiu

carregando tudo de repente. Você não estava lá, é claro; a

água veio sobre todo o chão e um monte de coisas foi

arrastado da sala de estar antes mesmo que

percebêssemos. Aquela cabeça foi uma delas... a mamãe

ficou chateada porque sabia que você ficaria. Bom, olha

para isso, estranho que...

Ela espiou a cabeça de perto, ainda tagarelando

alegremente, mas Will não estava mais escutando. A

cabeça encontrava-se bem próxima do muro do jardim,

ainda soterrada, mas começando a romper os montes de

neve dos dois lados. E sobre um monte na outra

extremidade, cobrindo a borda do gramado da rua e

mantendo a água corrente na calha, havia uma quantidade

de marcas. Eram marcas de cascos, feitas por um cavalo

parando, fazendo meia-volta e saltando sobre a neve. Mas

nenhuma delas tinha o formato de uma ferradura. Eram

círculos quartejados por uma cruz: as pegadas das

ferraduras especiais que John Wayland Smith, certa vez no

começo, colocou na égua branca da Luz.

Will olhou para as pegadas e para a cabeça de

carnaval, e engoliu seco. Deu alguns passos até o fim da

Page 368: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

entrada, observando a Trilha do Vale do Caçador; ele podia

ver as costas de Merriman, enquanto a silhueta alta e

vestida de preto partia a passos largos. Seus cabelos se

arrepiaram e seu pulso ficou calmo, pois detrás dele ouviu-

se um som mais agradável do que parecia possível no ar

gelado daquela manhã cinzenta. Era o tom suave, lindo e

desejoso da velha flauta do Solar; Paul, irresistivelmente,

deve ter preparado o instrumento e começado a tocá-lo.

Ele estava tocando Greensleeves mais uma vez. A cadência

inquietante e encantada fluía pelo ar calmo da manhã; Will

avistou Merriman erguer a cabeça branca enquanto ouvia

a música, embora ele não tivesse interrompido os passos.

Enquanto olhava a estrada calma abaixo, com a

música soando em seus ouvidos, Will percebeu que, bem

adiante de Merriman, as árvores, a névoa e o trecho da

estrada pareciam abalados, trêmulos, de uma maneira que

ele conhecia muito bem. E então, pouco a pouco, do outro

lado, contemplou os grandes Portais tomando forma. E lá

eles ficaram, como os tinha visto na colina descampada e

no Solar: os portais altos e talhados que conduziam para

fora do Tempo, permanecendo sozinhos e verticais na

Velha Estrada que era conhecida como Trilha do Vale do

Caçador. Muito lentamente eles começaram a se abrir. Em

algum lugar atrás de Will, a música Greensleeves foi

interrompida por uma risada e algumas palavras abafadas

de Paul, mas não houve interrupção na música que soava

na mente de Will, pois agora ela tinha mudado para aquela

frase envolvente como um sino que sempre surgia na

Page 369: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

abertura dos Portais ou em grandes mudanças que

poderiam alterar a vida dos Anciãos. Will cerrou os punhos

enquanto ouvia, sentindo-se atraído pelo som doce e

atraente que simulava o espaço entre o acordar e sonhar, o

ontem e o amanhã, a lembrança e a imaginação. A melodia

fluía agradavelmente em sua mente; depois gradualmente

foi se tornando distante, sumindo, assim como a alta

silhueta de Merriman na Velha Estrada, agasalhado

novamente, agora pela capa azul, e atravessando os Portais

abertos. Atrás dele, as enormes placas de carvalho

talhadas se moviam lentamente ao mesmo tempo, até que

se fecharam no mais completo silêncio. Então, enquanto o

último eco da música encantada se extinguia, os portais

desapareceram.

E num grande esplendor de luz branca-amarelada, o

Sol se ergueu sobre o Vale do Caçador e sobre o vale do

Tâmisa.

Aqui termina Os Seis Signos da Luz. O próximo livro

da série "Rebelião das Trevas" é A Feiticeira Verde.

DESCUBRA PARTE DO QUE IRA ACONTECER NO

PRÓXIMO E FASCINANTE CAPÍTULO DA

SÉRIE "REBELIÃO DAS TREVAS”

A FEITICEIRA VERDE

CAPÍTULO I

Somente um jornal relatou a história com detalhes,

sob o titulo "Tesouros roubados do Museu":

Diversas obras de arte celta foram roubadas do

Page 370: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Museu Britânico ontem; uma delas vale mais de £ 50.000.

A polícia diz que o roubo aparentemente é o resultado de

um intricado e até agora intrigante plano. Nenhum alarme

contra ladrões foi acionado, as vitrines envolvidas não

sofreram qualquer dano e não há sinais de um possível

arrombamento.

Os objetos desaparecidos incluem um cálice de ouro,

três broches de pedras preciosas e uma fivela de bronze. O

cálice, conhecido como o Graal de Trewissick, foi adquirido

pelo museu exatamente no verão passado, após sua

dramática descoberta em uma gruta de Cornish por três

crianças. E tem sido estimado em £ 50.000, mas um porta-

voz do museu disse na noite passada que seu valor real é

"inestimável", devido às inscrições excepcionais

encontradas em suas laterais, as quais os pesquisadores

até agora não foram capazes de decifrar.

O porta-voz ainda acrescentou que o museu faz um

apelo aos assaltantes para que não danifiquem o cálice em

hipótese alguma e estaria oferecendo uma recompensa

substancial por sua devolução. "O graal é uma peça

extraordinária, de evidência histórica sem precedentes em

todo o campo dos estudos célticos", disse o porta-voz, "e

sua importância para os pesquisadores excede de longe

seu valor intrínseco". Lorde Clare, que é membro da

administração do Museu Britânico, disse na noite passada

que o cálice...

— Oh! Diga algo surpreendente desse jornal, Barney

— disse Simon irritadamente. — Você já o leu umas

Page 371: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

cinqüenta vezes e de todo jeito não ajudou nada.

— Nunca se sabe — disse o irmão mais jovem,

dobrando o jornal e enfiando-o dentro do bolso. — Pode

haver uma pista oculta.

— Nada está oculto — falou Jane com tristeza. —

Tudo é muito óbvio. — Eles se encontravam desanimados

sobre o lustroso piso da galeria do museu, diante de uma

vitrine central mais alta que as idênticas estruturas de

vidro ao redor. Estava vazia, exceto por um pedestal negro

de madeira no qual, claramente, alguma coisa foi certa vez

exibida. Uma placa quadrada de prata impecável sobre a

madeira revelava gravadas as palavras: Cálice de ouro de

um artesão celta desconhecido. Data estimada: séc. 6.

Encontrado em Trewissick, sul da Cornualha, e entregue

por Simon, Jane e Bamabas Drew.

— Todo aquele trabalho que tivemos, chegando lá

primeiro — lamentava Simon. — E agora eles

simplesmente vêm aqui e o levam. Sabe, eu sempre achei

que pudessem fazer isso.

Barney disse: — A pior parte é não ser capaz de dizer

às pessoas quem fez isso.

— Nós poderíamos tentar — disse Jane.

Simon olhou-a com a cabeça inclinada para um lado.

— Por favor, senhor, nós podemos lhe dizer quem levou o

graal e em plena luz do dia sem quebrar nenhuma tranca.

Foram os Poderes das Trevas.

— Sai fora, Sonny — disse Barney. — E leve seus

contos de Fada com você.

Page 372: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— Eu suponho que esteja certo — falou Jane. Ela

puxava distraidamente o rabo-de-cavalo. — Mas se foram

os mesmos, alguém ao menos deve tê-los visto. Aquele

horrível sr. Hastings...

— Sem chance. Hastings muda, o tio Merry disse.

Não se lembra? Ele não usaria o mesmo nome ou o mesmo

rosto. Ele pode ser pessoas diferentes, em momentos

diferentes.

Eu me pergunto se o tio-avô Merry sabe — disse

Barney — sobre isso. — Ele olhava para a caixa de vidro e

para o pequeno e solitário pedestal preto em seu interior.

Duas senhoras idosas de chapéu surgiram ao seu

lado. Uma usava um modelo flowerpot amarelo e a outra

um em formato piramidal de flores cor-de-rosa. — Este é o

lugar de onde eles o afanaram, conforme a atendente disse

— uma disse para a outra. — Imagine só! As outras caixas

estavam por aqui.

― Tss-tss-tss-tss — resmungou a outra senhora com

prazer e elas se foram. Absorto, Barney as observou partir,

os passos ressoando pela galeria. Elas pararam em uma

vitrine sobre a qual uma figura de pernas longas estava

curvada. Barney se enrijeceu. E espiou aquela pessoa.

— Precisamos fazer alguma coisa — disse Simon.

— Temos que fazer — enfatizou Jane. — Mas por

onde começamos?

A figura alta se endireitou para deixar as senhoras de

chapéu se aproximarem do vidro. Ele inclinou a cabeça

gentilmente e uma massa de cabelos brancos revoltos

Page 373: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

refletiu a luz.

Simon disse: — Eu não vejo como o tio-avô Merry

poderia saber... quero dizer, ele nem mesmo está na Grã-

Bretanha, não é? Tirando aquele ano de férias de Oxford.

Sa... batico.

— Sabático — corrigiu Jane. — Em Antenas. E sequer

mandou um cartão de Natal.

Barney segurou o fôlego. Do outro lado da galeria,

quando as senhoras amantes do crime se afastaram, o

homem alto de cabelos brancos virou-se em direção à

janela; seu nariz bicudo e seu perfil de olhos profundos

eram inconfundíveis. Barney deixou escapar um grito: —

Gumerry!

Simon e Jane o seguiram pisando em seu rastro,

enquanto o menino escorregava pelo chão.

— Tio Merry!

— Bom-dia — disse o homem alto amavelmente.

— Mas a mamãe disse que o senhor estava na

Grécia!

— Eu voltei.

— O senhor sabia que alguém iria roubar o graal? —

perguntou Jane.

O tio da menina arqueou uma sobrancelha de pêlos

brancos, mas não disse nada.

Barney simplesmente falou: — O que vamos fazer?

— Recuperá-lo — disse tio Merry.

— Eu suponho que tenham sido eles. — disse Simon

discreto. — O outro lado? As Trevas?

Page 374: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— É claro.

— Por que eles levaram as outras coisas, os broches

e outros objetos?

— Para dar a impressão de certo — disse Jane.

Tio Merry aquiesceu. — Foi eficiente o bastante. Eles

pegaram as peças mais valiosas. A polícia pensa que eles

estavam simplesmente atrás de ouro. — Ele olhava para

baixo, para a vitrine vazia; então seu olhar se moveu

rapidamente, e cada um dos três se sentiu impelido a fitar

imóveis dentro dos olhos escuros e profundos, com a luz

que refletia semelhante a um fogo frio que nunca se apaga.

— Mas eu sei que eles só queriam o graal — disse o

tio Merry — para ajudá-los a conseguir alguma outra coisa.

Eu sei o que intentavam fazer e sei que eles devem a todo

custo ser impedidos. E tenho muito medo de que vocês

três, ........ os descobridores, sejam necessários mais uma

vez para ajudar... bem mais breve do que eu esperava.

― Seremos? — disse Jane lentamente.

― Legal — disse Simon, Barney falou: — Por que eles

deveriam levar o graal agora? Será que isto significa que

eles acharam o manuscrito perdido, aquele que explica a

cifra escrita dos lados do graal?

― Não — disse tio Merry. — Não ainda.

― Então por quê?

— Eu não posso explicar, Barney. — Ele enfiou as

mãos nos bolsos e encurvou os ombros magros. — Este

assunto envolve Trewissick, e isso envolve aquele

manuscrito. Mas trata-se de algo muito maior também,

Page 375: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

algo que não posso explicar. Só posso pedir que confiem

em mim, como sempre confiaram antes, em outra parte da

longa batalha entre a Luz e as Trevas. E que ajudem, se

vocês estiverem certos de que desejam ajudar sem talvez

nunca compreender totalmente o que estão prestes a fazer.

Barney respondeu calmamente, afastando o topete

colorido de seus olhos: — Tudo bem.

— É claro que queremos ajudar — disse Simon

ansioso.

Jane não disse nada. O tio da menina colocou um

dedo embaixo de seu queixo, inclinando a cabeça dela para

cima e dirigindo-lhe o olhar. — Jane — disse ele

gentilmente —, não hã absolutamente uma razão para

envolver um de vocês nisto se não estiverem contentes em

participar.

Jane olhava para o rosto fortemente marcado,

pensando o quanto ele se parecia com uma daquelas

estátuas rígidas que eles cruzaram no caminho pelo

museu. — Você sabe que eu não estou com medo — disse

ela. — Bem, quero dizer, estou um pouco, mas animada. Só

me preocupo se poderá haver algum perigo em relação ao

Barney... eu acho... quero dizer, ele vai gritar comigo, mas

é o mais jovem entre nos e não deveríamos...

O rosto de Barney estava escarlate. — Jane!

— Não é bom gritar — disse ela espirituosa. — Se

alguma coisa acontecesse a você, nós seríamos os

responsáveis. Simon e eu.

— As Trevas não tocarão em nenhum de vocês —

Page 376: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

disse o tio Merry calmamente. — Haverá proteção. Não se

preocupem. Prometo uma coisa: nada que possa acontecer

a Barney lhe causará algum mal.

Sorriam um para o outro.

— Eu não sou um bebê! — Barney bateu o pé furioso.

— Pare com isso — disse Simon. — Ninguém disse

que você é.

E o tio Merry perguntou — Quando serão as férias da

Páscoa, Barney?

Houve uma pequena pausa.

— No dia quinze, eu acho — respondeu Barney ainda

ranzinza.

— É isso mesmo — confirmou Jane. — As férias de

Simon começam um pouco antes disso, mas nós sempre

coincidimos pelo menos uma semana.

— Está muito longe — falou tio Merry.

— Tarde demais? — Eles olhavam para ele ansiosos.

— Não, acho que não... Hã alguma coisa que possa

impedir os três de passarem aquela semana comigo em

Trewissick?

— Não! —- Nada!

— Não exatamente. Eu iria para um tipo de

conferência ecológica, mas posso sair disso... — a voz de

Simon falhou, enquanto ele pensava sobre o pequeno

vilarejo de Cornish onde encontraram o graal. Seja lá qual

fosse a aventura que se seguisse, ela tinha começado lá,

bem no fundo de uma gruta nos penhascos, sobre o mar e

sob a pedra. E no âmago das coisas agora, como sempre

Page 377: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

foi, sempre haveria o tio Merry, Professor Merriman Lyon,

a figura mais misteriosa da vida deles, que de maneira

incompreensível estava envolvido com a longa luta pelo

controle do mundo entre a Luz e as Trevas.

— Eu falarei com seus pais — disse o tio-avô.

— Por que Trewissick de novo? — perguntou Jane. —

Os ladrões levarão o graal para lá?

— Eu acredito que seja possível.

— Só uma semana — disse Barney, olhando

pensativamente para a vitrine vazia diante dele. — Não é

muito para uma busca. Será mesmo suficiente?

— Não é muito tempo — disse tio Merry. — Mas terá

que dar.

* * *

Will arrancou delicadamente a haste da grama e

sentou-se sobre uma pedra perto do portão frontal,

mordiscando-a de forma desanimadora. O sol de abril

reluzia sobre as novas folhas verdes dos limoeiros; um

sabiá, de algum lugar, entoava seu canto feliz e auto-

revelador. lilases e goivos-amarelos perfumavam a manhã.

Will suspirava. Todos estavam bem, aquelas belezas da

primavera de Buckinghamshire, mas ele as apreciaria

muito mais se tivesse alguém ali para compartilhar as

férias de Páscoa. Metade de sua grande família ainda vivia

em casa, mas o irmão mais próximo de sua idade, James,

estava fora, em um acampamento para escoteiros por uma

Page 378: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

semana, e a próxima da fila, Mary, tinha desaparecido de

vista, indo para a casa de algum parente galês para se

recuperar de uma caxumba. O restante se mantinha

ocupado com preocupações entediantes de gente mais

velha. Este era o problema de ser o mais novo entre oito;

todos os outros pareciam ter crescido rápido demais.

Havia um aspecto no qual ele, Will Stanton, era mais

velho do que todos, ou que toda criatura humana. Mas só

ele sabia da grande aventura que lhe revelaram, em seu

aniversário de onze anos, pelo fato de ele ter nascido e

ser um tal de complexo Anglo-Americano. Ele ouviu tudo

sobre seus dois primos adultos que pareciam ser

contemporâneos de seu irmão mais velho, Stephen, e

contaram-lhe bem mais do que realmente gostaria de saber

sobre o estado de Ohio e o jeito chinês de negociar. Tio Bill

era evidentemente próspero, mas essa parecia ser sua

segunda viagem ao Reino Unido desde que emigrara há

mais de vinte anos. Will gostava de seus olhos redondos e

brilhantes e da voz rouca e lacônica. O menino começava a

sentir que as perspectivas para sua semana de férias

estavam melhorando consideravelmente quando descobriu

que seu tio Bill ficaria com eles apenas uma noite, pois

deveria partir para uma viagem de negócios em Londres e

no outro dia para a Cornualha a fim de se juntar à esposa.

Assim, seus ânimos se abateram novamente.

— Um amigo meu me buscará, e desceremos de

carro. Mas, digo uma coisa para vocês, Frannie e eu

voltaremos e passaremos alguns dias antes de nosso

Page 379: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

retorno aos Estados Unidos. Se puderem hospedar a todos

nós.

— Eu espero que sim — disse a mãe de Will. —

Depois de dez anos e algumas três cartas, meu rapaz, você

não escapará com umas míseras vinte e quatro horas.

— Ele me enviou presentes — disse Will. — Todo

Natal. Tio Bill sorriu-lhe. — Alice — chamou de repente a

sra.

Stanton —, visto que Will está de férias da escola

nesta semana e não está muito ocupado, por que não me

deixa levá-lo para a Cornualha durante as férias? Eu

poderia colocá-lo no trem no final da semana. Nós

alugamos um lugar com mais espaço do que precisamos. E

esse meu amigo tem alguns sobrinhos que estarão conosco

também e acredito que são praticamente da mesma idade

de Will.

Will deixou escapar um grito estrangulado de alegria

e olhou ansiosamente para seus pais que, franzindo a testa

seriamente, deram início a um dueto previsível.

— Bem, é muito gentil de...

— Se tiver certeza de que ele não...

— Ele certamente gostaria de...

— Se Frannie não...

Tio Bill piscou para Will. O menino subiu para o

quarto e começou a arrumar sua bagagem era sua mochila.

Colocou dentro dela cinco pares de meias, quatro trocas de

roupas de baixo, seis camisetas, um pulôver e um suéter,

dois pares de shorts e uma lanterna. Depois, lembrou-se de

Page 380: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

que seu tio só partiria no dia seguinte, mas mesmo assim

não havia razão para não preparar a bagagem. Ele desceu,

a mochila quicando em suas costas como uma bola de

futebol inchada.

Sua mãe começou a dizer: — Bem, Will, se você

realmente quiser... ah.

— Até breve, Will — disse seu pai.

Tio Bill riu baixinho. — Desculpem-me — disse ele. —

Eu poderia usar o telefone...

— Eu levo o senhor. — Will conduziu seu padrinho

até a sala. — Não é muita coisa, é?— perguntou ele,

olhando em dúvida para a protuberante mochila.

— Está bom — disse seu tio enquanto discava. —

Olá? Olá, Merry. Está tudo certo? Bom. Só uma coisa.

Estou levando meu sobrinho mais novo comigo por uma

semana. Ele não tem muita bagagem... — disse sorrindo

para Will mas eu achei que deveria me assegurar de que

não estaríamos dirigindo algum carrinho bonitinho de dois

lugares... ah, ah. Não, não de fato em figura... bom, ótimo,

vejo você amanhã. — E desligou.

— Tudo certo, amigão — disse ele para Will. —

Sairemos amanhã às nove da manhã. Está bom pra você,

Alice? — A sra. Stanton estava atravessando a sala com

uma bandeja de chá.

— Esplêndido — disse ela.

Desde o início do telefonema, Will permaneceu bem

quieto. — Merry? — disse ele lentamente. — Este é um

nome incomum.

Page 381: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

— É sim, não é mesmo? — disse seu tio. — Um cara

incomum também. É professor em Oxford. Um cérebro

brilhante, mas eu penso que você o achará um tipo

estranho e muito tímido que odeia conhecer pessoas. Ele é

muito confiável, no entanto. — E acrescentou rapidamente

para a sra. Stanton: — E um ótimo motorista.

— Qual é o problema, Will? — perguntou sua mãe. —

Você parece que viu um fantasma. Há algo errado?

— Nada — disse Will. — Ah, não. De jeito nenhum.

* * *

Simon, Jane e Barney se esforçavam para sair da

Estação de St. Austell carregando um emaranhado de

malas, sacolas de papel, capas de chuva e brochuras. A

multidão do trem de Londres estava se reduzindo em volta

deles, engolida por carros, ônibus e táxis.

— Ele disse que nos encontraria aqui, não disse?

— É claro que sim.

— Eu não consigo vê-lo.

— Ele está um pouco atrasado, é só isso.

— Tio Merry nunca se atrasa.

— Nós deveríamos descobrir de onde vem o ônibus

de Trewissick, para garantir.

— Não, lá está ele, eu o vejo. Eu disse que ele nunca

se atrasa.

Barney saltava para cima e para baixo, acenando.

Depois parou. — Mas ele não está sozinho. Tem um homem

com ele. — Um leve tom de indignação soou em sua voz. —

Page 382: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

É um garoto.

* * *

Um carro buzinou imperativamente uma, duas, três

vezes do lado de fora da casa dos Stanton.

― Lá vamos nós — disse o tio Bill, segurando sua

sacola e a mochila de Will.

O menino deu um beijo rápido de adeus em seus

pais, cambaleando com a enorme sacola de sanduíches,

garrafas térmicas e bebidas frias que sua mãe despejou em

seus braços.

— Comporte-se — disse ela.

— Eu não acho que Merry sairá do carro — disse Bill

para ela enquanto saíam em bando pela entrada de

veículos. — É uma pessoa muito tímida, não o levem a mal.

Mas é um bom amigo. Você vai gostar dele, Will.

― Ele respondeu: — Tenho certeza que sim. No final

da entrada, encontrava-se um antiqüíssimo e enorme

Daimler parado esperando.

― Ora, ora — disse o pai de Will respeitosamente.

― E eu estava me preocupando com lugar! — disse

Bill. Eu deveria saber que ele dirigiria algo assim. Bem,

adeus, pessoal. Aqui, Will, você pode entrar na frente.

Numa onda de despedidas, entraram no digníssimo

veiculo; uma figura enorme e bem agasalhada encontrava-

se sentada curvada sobre o volante, coberto por um boné

marrom e peludo, horroroso.

— Merry — disse tio Bill enquanto eles partiam —,

este é meu sobrinho e afilhado. Will Stanton, Merriman

Page 383: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

Lyon.

O motorista jogou para o lado o terrível boné e um

volumoso cabelo branco apareceu em desgrenhada

liberdade. Os olhos escuros e assombreados olharam de

soslaio para Will de um perfil arrogante, revelando um

nariz de falcão.

— Saudações, Ancião — disse a voz conhecida na

mente de Will.

— É maravilhoso vê-lo — cumprimentou Will

silenciosamente e feliz.

— Bom dia, Will Stanton — falou Merriman.

— Como tem passado? — perguntou Will.

* * *

Eles conversaram consideravelmente durante o

percurso de Buckinghamshire até a Cornualha,

particularmente depois do piquenique de almoço, quando

seu tio Bill adormeceu e continuou dormindo

tranqüilamente pelo resto do caminho.

Will disse finalmente: — E Simon, Jane e Barney não

fazem idéia de que as Trevas programaram esse roubo do

graal para coincidir com a consagração da Feiticeira Verde

?

— Eles nunca ouviram falar da Feiticeira Verde —

disse Merriman. — Você terá o privilégio de contar para

eles. Informalmente, é claro.

— Hum — disse Will. Ele estava pensando em outra

coisa. — Eu me sentiria muito mais feliz se soubéssemos

Page 384: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

pelo menos que forma as Trevas irão assumir.

— Um velho problema. Sem solução. — Merriman o

olhou de relance, com uma sobrancelha grossa levantada.

— Só temos que esperar e ver. E eu acho que não

esperaremos muito...

Já quase no final da tarde, o Daimler entrou

roncando nobremente dentro do pátio frontal da estação

ferroviária de St. Austell, na Cornualha. Em pé, dentre uma

pequena piscina de bagagens, Will avistou um garoto um

pouco mais velho que ele, vestindo um casaco escolar e

com um ar consciente de autoridade; uma garota quase da

mesma altura, com os cabelos longos amarrados num rabo-

de-cavalo, revelava em seu rosto uma expressão de

preocupação; e um garotinho com um volumoso cabelo

loiro, quase branco, sentado placidamente sobre uma mala,

observava a aproximação deles.

— Se eles não devem saber nada a meu respeito —

comentou ele com Merriman na linguagem dos Anciãos,

através da mente — acho que eles não gostarão de mim

nem um pouco.

― Isso pode certamente ser verdade — falou

Merriman.Mas nenhum de nós tem qualquer sensação

sobre isso, pois esta é a menor conseqüência quando

comparada à urgência desta busca.

Will suspirou. — A busca pela Feiticeira Verde —

disse ele.

Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source paraEsta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de suaproporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua

Page 385: Suzan Cooper - Os Seis Signos da Luz

leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitamleitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book oude meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmenteaté mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e acondenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livrohumildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.livremente.Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir oApós sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicaçãooriginal, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.de novas obras.Se quiser outros títulos nos procure: Se quiser outros títulos nos procure: http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazerhttp://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.recebê-lo em nosso grupo.

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

http://groups.google.com/group/digitalsource