steampunk

15
RETROFUTURISMO E EXPERIÊNCIA URBANA: O STEAMPUNK NO BRASIL 1 GT15: Comunicação e Cidade Éverly Pegoraro 2 Resumo Esta pesquisa aborda a cultura urbana retrofuturista steampunk no Brasil. Os seus participantes elaboram criativas produções e performances que misturam características da Era Vitoriana, da Era do Vapor do século XIX e do subgênero da ficção científica, o cyberpunk. O steampunk conquistou adeptos mundo afora. No Brasil, tem um número significativo de entusiastas que se distribuem em diferentes estados brasileiros. Neste texto, serão apresentadas as características do grupo de Curitiba, capital do Paraná, no Sul do país. Argumenta-se que os jovens participantes formam, através dos eventos de socialidade que promovem e das performances e produtos que criam, uma peculiar cena steampunk que se apropria da proposta e a ressignifica a partir de características regionais. A pesquisa faz parte de um trabalho de campo desenvolvido ao longo de três anos de acompanhamento das programações promovidas pelos steamers curitibanos. Argumenta-se, ainda, que a experiência steampunk não é simples nostalgia ou reconfiguração da Belle Époque. 1 Trabalho apresentado no GT Comunicación y Ciudad do XII Congreso de la Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (ALAIC), em Lima, Peru, entre 6 e 8 de agosto de 2014. 2 Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), em Guarapuava, Paraná, Brasil. Líder do Grupo de Pesquisa Comunicação e Interfaces Socioculturais. Contato: [email protected]

Upload: anacarolinaarenhardttomaz

Post on 28-Sep-2015

6 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

steampunk

TRANSCRIPT

  • RETROFUTURISMO E EXPERINCIA URBANA:

    O STEAMPUNK NO BRASIL1

    GT15: Comunicao e Cidade

    verly Pegoraro2

    Resumo Esta pesquisa aborda a cultura urbana retrofuturista steampunk no Brasil. Os seus

    participantes elaboram criativas produes e performances que misturam

    caractersticas da Era Vitoriana, da Era do Vapor do sculo XIX e do

    subgnero da fico cientfica, o cyberpunk. O steampunk conquistou adeptos

    mundo afora. No Brasil, tem um nmero significativo de entusiastas que se

    distribuem em diferentes estados brasileiros. Neste texto, sero apresentadas as

    caractersticas do grupo de Curitiba, capital do Paran, no Sul do pas.

    Argumenta-se que os jovens participantes formam, atravs dos eventos de

    socialidade que promovem e das performances e produtos que criam, uma

    peculiar cena steampunk que se apropria da proposta e a ressignifica a partir de

    caractersticas regionais. A pesquisa faz parte de um trabalho de campo

    desenvolvido ao longo de trs anos de acompanhamento das programaes

    promovidas pelos steamers curitibanos. Argumenta-se, ainda, que a experincia

    steampunk no simples nostalgia ou reconfigurao da Belle poque. 1 Trabalho apresentado no GT Comunicacin y Ciudad do XII Congreso de la Asociacin Latinoamericana de Investigadores de la Comunicacin (ALAIC), em Lima, Peru, entre 6 e 8 de agosto de 2014. 2 Doutora em Comunicao e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora do Departamento de Comunicao da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), em Guarapuava, Paran, Brasil. Lder do Grupo de Pesquisa Comunicao e Interfaces Socioculturais. Contato: [email protected]

  • Palavras-chave: Cultura Urbana; Retrofuturismo; Steampunk; Cultura da Mdia.

    O ambiente urbano das cidades brasileiras tem sido palco de experincias

    retrofuturistas. Geralmente, so fs de fico cientfica que se renem para

    discutir, criar e performatizar sua fascinao pelo retrofuturismo em suas

    diversificadas vertentes. Esta pesquisa reflete a experincia urbana do steampunk,

    cultura juvenil que mistura elementos da Era Vitoriana e futuristas num suposto

    mundo a vapor steampunk.

    Trata-se de um recorte da pesquisa de campo feita com um grupo de steamers

    (como so chamados os adeptos) brasileiros, que se localizam em Curitiba, capital

    do Paran, estado da regio Sul do Brasil. A partir da observao

    participante nas atividades do grupo curitibano, foi possvel analisar a formao

    da cena steampunk, delineada conceitualmente pelas concepes de Straw,

    Deleuze e Guattari e Jenkins. Argumenta-se, neste texto, que a experincia

    urbana dos steamers com o retrofuturismo no uma simples operao

    memorvel nostlgica. Tampouco trata-se de uma apropriao de

    estrangeirismos ao estilo da Belle poque.

    Das origens do steampunk

    O steampunk nasceu na fico cientfica, em seu subgnero cyberpunk. A

    proposta comeou a ganhar contornos ntidos na literatura a partir da dcada de

    1980. Mas foi com a obra The Difference Engine (1990), de Willian Gibson e Bruce

    Sterling, que a primeira gerao de narrativas literrias steampunk se

    consolidou. Entretanto, curioso ressaltar que a expresso surgiu anteriormente,

    sem a pretenso de se tornar a precursora de um subgnero literrio ou de uma

    cultura urbana. Em 1987, K. W. Jeter usou a expresso por achar apropriada

  • designao das histrias narradas em seus livros Morlock Night (1979) e

    Infernal Devices (1987) e nos de seus colegas escritores Tim Powers (The

    Anubis Gates, 1983) e James Blaylock (Lord Kelvins Machine, 1992).

    (WILLEFORD, 2012).

    A juno das palavras steam (vapor) e punk deve-se ao fato de as histrias se

    passarem em um contexto hbrido entre a Era Vitoriana3 e um futuro sob a tica

    punk. Nesse hibridismo temporal, imagina-se um mundo em que a Era do Vapor

    seria o pice do desenvolvimento. Nele, as tecnologias contemporneas e

    futuristas so inseridas, mas estetizadas no contexto do vapor. O punk, por sua

    vez, evoca a ideia de rebelio contra a moderna esttica manufaturada

    (MARSOCCI & DEBLASIO, 2011, p. 9). Para outros autores, como Falksen

    (2011), deve-se influncia da literatura cyberpunk e no propriamente ao

    movimento punk. Nas criaes da cultura urbana, so fcilmente

    perceptveis as conotaes gtica e punk.

    H diferentes nveis de apropriao da proposta. Para alguns, literatura de fico

    cientfica. Para outros, o steampunk caracteriza-se como a participao coletiva

    em uma cultura urbana, com performatizaes e criaes artsticas. Dessa forma,

    nem todos os que gostam de literatura steampunk participam das estratgias de

    socialidade do grupo que participa da cultura urbana, bem como nem todos esses

    participantes leem narrativas literrias.

    No Brasil, h um nmero significativo de steamers, que se dividem em diferentes

    grupos pelos estados brasileiros, formando lojas (o termo no tem conotao

    comercial, j que no so se vende nada nelas; a influncia vem da

    maonaria, no sentido de ajuda mtua). O grupo enfocado neste texto

    3 O perodo no qual a Rainha Vitria reinou na Inglaterra do sculo XIX conhecido como Era Vitoriana. Estendeu-se por 63 anos, de junho de 1837 a janeiro de 1901.

  • forma a Loja Paran do Conselho Steampunk. Outras 12 lojas espalham-se

    pelo pas, cada uma com caractersticas e atividades variadas. A paranaense

    uma das mais ativas do pas. Existe h cerca de quatro anos e administrada por

    um grupo composto pelos membros fundadores mais ativos. Alm deles, h vrios

    participantes, alguns mais regulares e atuantes (cerca de 25 pessoas), outros

    apenas eventuais. Confirmando as caractersticas fluidas, efmeras e

    diversificadas das neotribos diagnosticadas por Maffesoli (1987), eles formam

    um grupo heterogneo, composto por pessoas de ambos os sexos, vrios grupos

    tnicos e de diferentes idades (que oscilam entre 14 e 50 anos). Cabe destacar

    ainda que os membros so oriundos de diversas classes sociais, estudam e/ou

    trabalham em vrias reas, como escritores, msicos, donas-de-casa,

    professores, prestadores de servios.

    Com o intuito de divulgar suas iniciativas, os steamers frequentemente participam

    de eventos de outras culturas juvenis, tais como piqueniques vitorianos (uma

    programao que j se tornou referncia em Curitiba). Cada atividade promovida

    pela Loja Paran do Conselho Steampunk tem uma temtica especfica, em

    homenagem a personagens e acontecimentos histricos, por exemplo. Nestas

    atividades, possvel perceber mais nitidamente as reapropriaes

    contextualizadas. As programaes no tm uma agenda fixa, variam em

    cada evento, mas geralmente giram em torno da msica, da dana, da

    literatura e de performances individuais dos steamers, por mais que a

    caracterizao no seja obrigatria para participao.

    Todas as lojas recebem o apoio do Conselho Steampunk, que composto pelos

    precursores da cultura no Brasil. Esse apoio fator importante para cada grupo

    iniciar suas atividades. A misso do Conselho Steampunk sintetizada em sua

    pgina oficial na internet:

  • O Conselho SteamPunk foi idealizado tendo como idia

    central a democratizao, flexibilizao e sustentabilidade do

    movimento SteamPunk. Trata-se menos de uma organizao

    e mais de um conceito, sobre o qual representantes da

    comunidade SteamPunk podem criar suas Lojas, como so

    denominadas as clulas montadas a partir do conceito do

    Conselho.[...] O Conselho SteamPunk tem como misso

    oferecer mecanismos para a divulgao da cultura

    SteamPunk, disponibilizar material de referncia, promover

    toda sorte de eventos correlatos, incentivar a produo

    cultural desta sorte de subjetividade, prestar homenagem a

    todos aqueles que criam material do gnero e produzir

    cultura SteamPunk em todas as formas que nos for possvel.

    (CONSELHO STEAMPUNK, on line)

    Similarmente aos jogos de RPG, os steamers da Loja Paran do Conselho

    Steampunk so incentivados a criar personagens, com indumentria (roupas e

    acessrios), histria, contexto social e histrico, cujas performances pblicas se

    do nas programaes que a loja paranaense promove ou participa. Trata-se da

    prtica do steamplay (uma adaptao do termo cosplay). Uma srie de fatores

    interfere na criao do personagem, desde gostos e hobbies de cada um, que

    interferem na habilidade de elaborar e customizar o personagem, at as condies

    financeiras para investir no visual.

    Da extrapolao do imaginrio literrio, a proposta transformou-se numa cultura

    urbana. A mobilizao da resultante significativa: expressa e constri um estar

    junto (MAFFESOLI, 1987) de fruio, ao mesmo tempo crtico e inovador.

    necessrio enfatizar que os membros do grupo paranaense compartilham o gosto

    por um conjunto amplo de interesses culturais, estabelecendo relaes diretas

    com o contedo dos produtos da cultura da mdia. Em alguns casos, eles

  • misturam, apropriam-se, reconstroem personagens e contextos de diversos

    produtos miditicos, da literatura e das narrativas histricas tradicionais.

    Em cena, o steampunk

    Nesta pesquisa, utiliza-se o conceito de cena (STRAW, 2006; 2013) para

    compreender as vrias foras presentes em um contexto especfico, relacionando

    os agentes e o entorno, isto , as produes culturais e os seus espaos de

    circulao e consumo, analisando caractersticas unificadoras e heterogneas do

    processo.

    Argumenta-se que as prticas e as socialidades do steampunk curitibano formam

    uma cena, pois essa cultura urbana em Curitiba no se define pelo espao

    geogrfico, mas pelas prticas que configuram o que o grupo entende ser a sua

    proposta steampunk. Nas cenas urbanas, muitas prticas culturais ldicas e

    experimentais adquirem forma e consistncia. Por isso, a cena engloba a

    efervescncia e a exposio das experincias que refletem a teatralidade da

    esttica urbana (STRAW, 2013).

    Cenas no so simplesmente o nome que damos aos meios

    informais de organizao do lazer, porm, como se fosse

    possvel entrar numa cena a partir de uma esfera de trabalho

    ou de transaes comerciais radicalmente opostas. As cenas

    surgem a partir dos excessos de sociabilidade que rodeiam a

    busca de interesses, ou que fomenta a inovao e a

    experimentao contnuas na vida cultural das cidades.

    (STRAW, 2013, p. 13)

  • De acordo com Straw (2013), uma cena mobiliza energia em mltiplas direes de

    interesses sociveis, at mesmo incentivando formas simples de

    empreendedorismo, como muitos steamers curitibanos revelaram nas entrevistas,

    ao aprimorar-se em determinadas reas, como moda, artesanato, customizao.

    Dessa forma, as experincias do grupo curitibano com o steampunk excedem a

    socialidade tpica de uma atividade de entretenimento, propiciando novas

    experincias que contribuem na fomentao do espao cultural curitibano.

    Ainda possvel enquadrar o steampunk como uma manifestao da cultura

    juvenil tpica da sociedade midiatizada em que vivemos, na qual [...] as

    tecnointeraes exercem influncia marcante nos padres de sociabilidade e nas

    percepes dos indivduos. (MORAES, 2006, p. 36)

    Para Braga (2010, p. 75), a mediatizao no diz respeito apenas ao aparato

    tecnolgico-econmico, mas tambm aos aspectos centrais de interao social.

    Ele argumenta que a mediatizao envolve interaes sociais muito mais diversas

    do que aquelas apenas restritas confrontao direta com as mdias tecnolgicas

    ou com seus produtos. Dessa forma, ela no marca apenas formas de organizar e

    transmitir mensagens, mas envolve, principalmente, os modos pelas quais se

    constitui o tecido social. Para o autor, a mediatizao formada por processos

    transmissivos e interacionais permeados por lacunas, insuficincias,

    incompletudes, bem como por processos de resistncia e subtrao lgica

    sistmica.

    A sociedade vai fazendo, com as instrues que tem mo

    adequadas ou no e com o prprio fazer tentativo vo

    sendo geradas as instrues de rearranjo. A incompletude

    se evidencia aqui pela indefinio dos subuniversos ou

    setores sociais em que a realidade possa ser apreendida e

    constituda de modo suficientemente estvel para viabilizar

    CarolHighlight

  • comutaes eficientes. (BRAGA, 2007, p. 161, grifo no

    original) O conceito de agenciamento de Deleuze e Guattari (1995 a, b) primordial

    para empreender anlises nessa sociedade midiatizada, pois trata-se da

    confluncia de relaes materiais a um regime de signos correspondente. Os

    agenciamentos comportam elementos heterogneos de ordem biolgica, social,

    maqunica, gnosiolgica, imaginria (GUATTARI e ROLNIK, 2005) que trabalham,

    simultaneamente, sobre fluxos semiticos, materiais e sociais (DELEUZE e

    GUATTARI, 1995a).

    Os agenciamentos maqunicos dizem respeito mistura e s relaes entre os

    corpos em sociedade. Os agenciamentos de enunciao so produtores de

    processos de subjetivao esta entendida como modos de produo de si

    os quais no so centrados em agentes individuais ou grupais (GUATTARI

    e ROLNIK, 2005), mas descentrados.

    Dessa forma, importante estabelecer que uma parcela significativa do cotidiano,

    das posturas e dos valores de cada um organiza-se imersa nesse processo de

    mediatizao, a partir de agenciamentos coletivos e individuais. Os steamers, por

    meio de suas experincias visuais e socialidades delas decorrentes, realizam

    agenciamentos da cultura miditica, promovendo uma transgresso negociada

    entre passado, presente e futuro. possvel, ainda, perceber que os vnculos que

    se estabelecem entre o consumo de bens materiais e simblicos alimentados

    pela cultura da mdia que envolve o universo steampunk so reapropriados e

    ressignificados em um contexto local.

    CarolHighlight

  • Apropriaes retrofuturistas do espao urbano

    O hibridismo de subjetividades e temporalidades tpico do retrofuturismo configura

    apropriaes originais do espao urbano na formao da cena steampunk.

    Embora alguns possam achar que se trata de uma releitura nostlgica da Belle

    poque, as experincias retrofuturistas de culturas urbanas tais como as do

    steampunk apontam um cenrio contemporneo complexo, resultante das fissuras

    nas relaes espao- temporais propiciadas, principalmente, pela cultura

    tecnolgica.

    Needell (1993) descreve como os valores aristocrticos europeus

    determinavam o comportamento da elite brasileira e os passatempos de salo da

    poca, no perodo da Belle poque, demonstrando a importncia da imagem que

    a elite projetava de si mesma. Tais valores estavam entre as caractersticas que

    indicavam a continuidade e a legitimao das famlias tradicionais com o poder. A

    descrio que o autor d a um dos mais conhecidos personagens do cenrio

    carioca naquele perodo, Joaquim Nabuco (1849-1910), ajuda a delinear os

    tempos de fascnio pelo paradigma aristocrtico franco-ingls:

    Nabuco destacou-se pela facilidade de expresso, pelo gosto

    por roupas da moda, pela presena de esprito nas

    conversas, pelas escapadas amorosas na juventude e pelo

    domnio da cultura literria francesa. [...] recebeu notvel

    influncia do modelo aristocrtico ingls em termos de

    conduta na sociedade refinada: modos mesa e cortesias

    pessoais, por exemplo, eram de inspirao inglesa, na casa

    de Nabuco. (NEEDELL, 1993, p. 139)

    Para Sevcenko (1998, p. 534-535), o apego e as referncias ao passado na Belle

    poque, concretizados atravs da compra de peas de poca e at de ttulos

    CarolHighlight

  • honorficos, eram efeitos da insegurana crnica de uma nova sociedade

    brasileira que, no tendo histria atrs de si, necessitava imaginar uma, atravs de

    smbolos e recursos materiais.

    O steampunk e outras culturas juvenis da contemporaneidade4 obviamente

    sugerem um cenrio diferente do incio do sculo XX. O steampunk sinaliza

    fascinao pelo futuro representado pela alta tecnologia mas, ao mesmo

    tempo, pelo passado. Isso agencia muitos jovens a buscar referncias em

    costumes, padres estticos e valores contextualizados no sculo XIX.

    Maffesoli (1995) acredita que as culturas se interpenetram, contaminadas por

    diferentes temporalidades, maneiras de ser e de pensar. Por isso, no se pode

    falar de maneira simplria em um retorno aos anseios da Belle poque, mas em

    ressignificao de elementos do passado, permeados por inquietaes do

    presente e especulaes sobre o futuro. A proposta retrofuturista steampunk

    evidencia a concepo maffesoliana de tempo espiralado (MAFFESOLI, 1995). A

    mistura aponta para a mescla de culturas diferentes em temporalidades distintas,

    tendo na tecnologia um fator que potencializa esta aproximao, principalmente,

    por ser um elemento catalisador desse hibridismo, j que ela est presente, de

    uma ou outra forma, em praticamente todas as criaes dos steamers.

    O que o steampunk reitera que a tecnologia no diz respeito apenas a

    mquinas, mas a novos modos de percepo e linguagem. Essa cultura urbana

    aponta jovens que tm uma forte sintonia com a cultura tecnolgica, que resulta

    em uma cumplicidade expressiva de relatos, imagens, sonoridades e ritmos, que

    4 Alm do steampunk, h gneros semelhantes, como clockpunk (as histrias enfatizam relgios) e dieselpunk (o diesel combustvel e o poder nuclear substituem o vapor em histrias alternativas, que geralmente tm uma conotao poltica) (Cf. VANDERMEER & CHAMBERS, 2011, p. 54), e outros que simplesmente adotam os costumes e o vesturio ingleses do sculo XIX, como os vitorianos, numa caracterizao mais nostlgica.

    CarolHighlight

    CarolHighlight

    CarolSticky Noteessa ressignificao no deixa de ser a imagem virtual que o Joo trata no trabalho.

    CarolHighlight

  • so, simultaneamente, fragmentados e misturados. (MARTN-BARBERO, 2004,

    p. 287-288)

    Radicalizando a experincia de des-ancoragem produzida

    pela modernidade, a tecnologia des-localiza os saberes,

    modificando tanto o estatuto cognitivo como o industrial das

    condies do saber e das figuras da razo, o que est

    conduzindo a um forte apagar, borrando-se as fronteiras

    entre razo e imaginao, saber e informao, natureza e

    artifcio, arte e cincia, saber perito e experincia profana.

    (MARTN-BARBERO, 2004, p. 35-36)

    A constante negociao entre o passado vitoriano e o futuro

    tecnolgicomovido a vapor nas mais variadas criaes propicia percepes5 que

    variam da ironia perda, da nostalgia romntica crtica. Todo esse conjunto

    entendido como resultado de uma visualidade especfica a respeito do sculo XIX,

    ressignificada contemporaneamente pelas interferncias miditicas que, por sua

    vez, transforma-se em uma nova esttica retrofuturista.

    As mesmas experincias visuais podem levar a lgicas de resistncia e

    confrontao, dependendo das propostas e da interpretao que o grupo

    apresenta. possvel dizer que h uma negociao contnua de percepes e

    imaginrios na criao da visualidade steampunk, associada a aes no mundo

    concreto vinculadas a valores polticos, econmicos, culturais etc.

    5 importante observar que o termo percepo nessa pesquisa, adota um sentido alm do usualmente atribudo: sensao pura ou isolada. De acordo com Valverde (2010, p. 69), a percepo uma atividade de configurao. A percepo no , pois, uma atitude meramente contemplativa e, ainda menos, uma ausncia de atitude, mas um agenciamento corporal, uma performance, um comportamento que, mais que representar o mundo, exprime o movimento pelo qual o habitamos.

    CarolHighlight

    CarolHighlight

  • Consideraes Finais

    O steampunk uma das muitas culturas contemporneas que se utiliza do espao

    urbano para aliar estratgias de entretenimento, hedonismo, consumismo e crtica

    social. Os jovens envolvidos nas prticas retrofuturistas no apenas renem-se

    em eventos de socialidade para dar vazo s suas fantasias. Numa bricolagem

    cultural caracterstica, tal como Certeau (1998) e Jenkins (2010) propem, os

    steamers investem na apropriao cultural de diferentes textos, tais como obras de

    fico cientfica, filmes, quadrinhos e jogos de RPG, mas conferindo-lhes novos

    significados, expandindo as histrias, aprofundando caractersticas de

    personagens e reformulando contextos de acordo com suas prprias capacidades

    imaginativas.

    Similarmente ao que Jenkins (2010) acredita, uma forma de perverso esttica

    aos limites tradicionais impostos pelas hierarquias culturais dominantes que

    delineiam as culturas desejveis e as no desejveis. Dessa forma, eles

    constroem uma identidade cultural e social mediante apropriao e modificao

    dos significados dos produtos culturais que circulam pelos meios de

    comunicao, como forma de expresar suas prprias vises de mundo.

    Alm disso, optar por participar do steampunk saber que a proposta vai alm do

    visual, mas envolve reflexes sobre a prpria cultura tecnolgica que pauta

    o comportamento desses jovens, bem como as relaes que estabelecemos com

    o passado, o que esperamos dele e o que ele trouxe. Pode-se dizer que se trata

    de uma experincia diferenciada de operao memorvel, em que os jovens

    (re)constroem uma memria intencionalmente fictcia de passado, inserindo

    percepes de presente, selecionando fatos, personagens, concepes e crticas

    que mais lhe interessam sobre esse passado.

  • REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Braga, J. L. (2010). Experincia esttica & mediatizao. In: Leal, B., Mendona,

    C., & Guimares, C. (orgs.). Entre o sensvel e o comunicacional. (pp. 73-

    87). Belo Horizonte: Autntica.

    Braga, J. L. (2007). Mediatizao como processo interacional de referncia. In:

    Mdola, A. S. L. D., Araujo, D. C., & Bruno, F. (orgs.). Imagem, Visibilidade

    e Cultura Miditica. Livro da XV Comps. Porto Alegre: Sulina.

    Certeau, M. De. (1998). A Inveno do Cotidiano. 1. artes de fazer. (3. ed).

    Petrpolis: Vozes.

    Conselho Steampunk. http://www.steampunk.com.br/. ltimo acesso em 23

    mar. 2014.

    Deleuze, G., & Guattari, F. (1995a.). Mil Plats. Vol. 1. So Paulo: Ed. 34.

    Deleuze, G., & Guattari, F. (1995b.). Mil Plats. Vol. 2. So Paulo: Ed. 34.

    Falksen, G. D. (2011). Steampunk 101. In: Donovan, Art. The Art of Steampunk.

    Extraordinary Devices and Ingenious Contraptions from the Leading Artists

    of the Steampunk Movement. East Petersburg: Fox Chapel Publishing.

    Gibson, W., & Sterling, B. ( 1991). The Difference Engine. NY: Bantam Books.

    Guattari, F., & Rolnik, S. (2005). Micropoltica: cartografias do desejo. Rio de

    Janeiro: Vozes.

  • Jenkins, H. (2010). Piratas de textos. Fans, cultura participativa y televisin.

    Barcelona: Paids.

    Maffesoli, M. (1987). O tempo das tribos. O declnio do individualismo nas

    sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-Universitria.

    Maffesoli, M. (1995). A contemplao do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofcios.

    Marsocci, J., Deblasio, A. (2011). How to draw Steampunk. Discover the secrets to

    drawing, painting, and illustrating the curious world of science fiction

    in the Victorian Age. Irvine: Walter Foster.

    Martn-Barbero, J., & Rey, G. (2004). Os exerccios do ver: hegemonia audiovisual

    e fico televisiva. (2 ed.). So Paulo: Senac.

    Moraes, D. (org.). (2006). Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad X.

    Needell, J. (1993). Belle poque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio

    de Janeiro na virada do sculo. So Paulo: Companhia das Letras.

    Sevcenko, N. (org.). ( 1998). Histria da vida privada no Brasil 3. Repblica:

    da Belle poque Era do Rdio. So Paulo: Companhia das Letras.

    Straw, W. (2006, agosto). Scenes and Sensibilities. In: E-Comps, Braslia,

    COMPS, (6). ltimo acesso em 27 out. 2011. Disponvel em:

    http://www.compos.org.br/e-compos.

    Straw, W. (2013). Cenas culturais e as consequncias imprevistas das polticas

    pblicas. In: Janotti Junior, J., & S, S. P. de (orgs.). Cenas Musicais. So

    Paulo: Anadarco.

  • Willeford, T. ( 2012). Steampunk Gear, Gadgets and Gizmos. A makers guide

    to creating modern artifacts. New York: McGraw Hill.