spitzer, leo - três poemas sobre o êxtase

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  • 5/10/2018 SPITZER, Leo - Tr s poemas sobre o xtase

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    poenlas sabre a extaseLEO SPITZER

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    LEO SPITZER

    Tres poemas sobre 0extase:John Donne,SanJuan de la Cruz,RichardWagnerTraducao de Samuel Titan Jr.

    Poemas traduzidos porAugusto de CamposCarlito AzevedoHaroldo de Campos

    Cosac & Naify

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    07 John Donneo extase [THE EXTASIE]

    17 SanJuan de la CruzEm uma noite escura [EN UNA NOCHE ESCURA]

    25 Richard WagnerTristao e Isolda [TRISTAN UND ISOLDE]

    33 LEO SPITZER'Ires poemas sobre 0extase

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    John Donneo extase [THE EXTASIE]Traducao de Augusto de Campos

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    THE EXTASIE o EXTASE

    Where, like a pillow on a bed,A pregnant banke swel'd up, to restThe violets reclining head,Sat we two, one anothers best.

    Onde, qual almofada sobre 0leito,Gravida areia inchou para apoiarA inclinada cabeca da violeta,Nos nos sentamos, olhar contra olhar.

    Our hands were firmely cimentedWith a fast balme, which thence did spring,Our eye-beames twisted, and did thred.Our eyes, upon one double string;

    Nossas maos duramente cimentadasNo firme balsamo que delas vern.Nossas vistas trancadas e tecendoOs olhos em urn duplo filamento;

    So to'entergraft our hands, as yetWas all the meanes to make us one,And pictures inour eyes to getWas all our propagation.

    Enxertar mao em mao e ate agoraNossa unica forma de ataduraE modelar nos olhos as figurasA nossa unica propaga~ao.

    As 'twixt two equall Armies, FateSuspends uncertaine victorie,Our soules, (which to advance their state,Were gone out,) hung 'twixt her, and mee.

    Como entre dois Exercitos iguais.N a incerteza, 0Acaso se suspende,Nossas almas (dos corpos apartadasPor antecipacao) entre ambos pendem.

    And whil'st our soules negotiate there,Wee like sepulchrall statues lay;All day, the same our postures were,And wee said nothing, all the day.

    E enquanto alma com alma negocia,Estatuas sepulcrais ali quedamosTodo 0dia na mesma posicao,Sem minima palavra, todo 0dia.

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    If any, so by love refm'd,That he soules language understood,And by good love were growen all minde,Within convenient distance stood,

    Se alguem - pelo amor tao refmadoQue entendesse das almas a linguagem,E por virtude desse amor tornadoSo pensamento - a elas se chegasse,

    He (though he knew not which soule spake,Because both meant, both spake the same)Might thence a new concoction take,And part farre purer then he came.

    Pudera (sem saber que alma falava,Pois ambas eram uma so palavra)Nova sublimacao tomar do instanteE retornar mais puro do que antes.

    This Extasie doth unperplex(We said) and tell us what we love,Wee see by this, it was not sexe,Wee see, wee saw not what did move:

    Nosso extase - dizemos - nos da nexoE nosmostra do amor 0 objetivo,Vemos agora que nao foi 0sexo,Vemos que nao soubemos 0motivo,

    But as all severall soules containeMixtures of things, they know not what,Love, these mixt soules, doth mixe againe,And make both one, each this and that.

    Mas que assim como as almas sao misturasIgnoradas, 0amor reamalgamaA misturada alma de quem ama,Compondo duas numa e uma em duas.

    A single violet transplant,The strength, the colour, and the size,(All which before was poore, and scant,)Redoubles still, and multiplies.

    Transplanta a violeta solitaria:A forca, a cor, a forma, tudo 0 que eraAte aqui degenerado e raroOra se multiplica e regenera.

    10 II

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    When love, with one another soInterinanimates two soules,That abler soule, which thence doth flow,Defects of lonelinesse controules.

    Pois quando 0amor assim uma na outraInterinanimou duas almas,A alma melhor que dessas duas brotaA magra solidao derrota.

    Wee then, who are this new soule, know,Of what we are composed, and made,For, th' Atomies of which we grow,Are soules, whom no change can invade.

    E nos, que somos essa alma jovem,Nossa composicao ja conhecemosPor isto: os atomos de que nascemosSao almas que nao mais se movem.

    But 0 alas so long so farreOur bodies why doe wee forbeare?They are ours, though they are not wee, Wee areThe intelligences, they the spheare.

    Mas que distancia e distracao as nossas!Aos corpos nao convem fazermos guerra:Nao sendo nos, sao nossos, Nos asInteligencias, eles a esfera.

    We owe them thankes, because they thus,Did us, to us, at first convay,Yeelded their forces, sense, to us,Nor are drosse to us, but allay.

    Ao contrario, devemos ser-lhes gratasPor nos (a nos) haverem atraido,Emprestando-nos forcas e sentidos:Escoria, nao, mas liga que nos ata.

    On man heavens influence workes not so,But that it first imprints the ayre,Soe soule into the soule may flow,Though it to body first repaire.

    A influencia dos ceus em nos atuaSo depois de se ter impresso no ar.'Iambem e lei de amor que alma nao fluaEm alma sem os corpos transpassar.

    12 13

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    As our blood labours to begetSpirits, as like soules as it can,Because such fingers need to knitThat subtile knot, which makes us man:

    So must pure lovers soules descendT'affections, and to faculties,Which sense may reach and apprehend,Else a great Prince in prison lies.

    To' our bodies turne wee then, that soWeake men on love revealed may looke;Loves misteries in soules doe grow,But yet the body is his booke.

    And if some lover, such as wee,Have heard this dialogue of one,Let him still marke us, he shall seeSmall change, when we 'are to bodies gone.

    Como 0sangue trabalha para darEspiritos, que as almas sao conformes,Pois tais dedos carecem de apertarEsse invisivel no que nos faz homens,

    Assim as almas dos amantes devemDescer as afeicoes e as faculdadesQue os sentidos atingem e percebem,Ou urn Principe jaz aprisionado,

    Aos corpos, finalmente, retornemos,Descortinando 0amor a toda a gente;Os misterios do amor, a alma os sente,Porem 0 corpo e as paginas que lemos.

    Se alguem - amante como nos - tiverEsse dialogo a urn ouvido a ambos,Que observe ainda e nao vera qualquerMudanca quando aos corpos nos mudamos.

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    San Juan de la CruzEm uma noite escura[EN UNA NOCHE ESCURA]Traducao de Carlito Azevedo

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    EN UNA NOCHE ESCURA

    I

    En una noche escura,Con ansias en amores inflamada,jOh dichosa ventura!Sali sin ser notada,Estando ya mi casa sosegada;

    II

    A escuras y segura,Por la secreta escala, disfrazada,jOh dichosa ventura!A escuras, y en celada,Estando ya mi casa sosegada.

    III

    En la noche dichosa,En secreto, que nadie me vela,Ni yo miraba cosa,Sin otra luz y guia,Sino la que en el corazon ardia,

    18

    EM UMA NOlTE ESCURA

    Em uma noite escura,Com ansias em amores inflamada- 6 ditosa ventura! -,Sal sem ser notada,Jeiminha casa estando sossegada;

    II

    No escuro e bern segura,Pela secreta escada, disfarcada- 6 ditosa ventura! -,No escuro e bern velada,Jeiminha casa estando sossegada.

    III

    Nessa noite almejada,Em segredo, que mais ninguem me via,Nem eu olhava nada,Sem outra luz ou guiaSenao a que no coracao ardia.

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    IV

    Aquesta me guiabaMas cierto que la luz del mediodia,Adonde me esperabaQuien yo bien me sabiaEn parte donde nadie pareda.

    V

    Oh noche, que guiaste,Oh noche amable mas que el alborada,Oh noche, que juntasteAmado con Amada,Amada en el Amado transformadal

    VI

    En mi pecho florido,Que entero para el solo se guardaba,Alli quedo dormido,Y yo Ie regalaba,Y el ventalle de cedros aire daba.

    20

    IV

    E talluz me guiava,Mais reto do que a luz do meio-dia,Aonde me esperavaQuem eu bern conhecia,Ali onde ninguem aparecia.

    V

    6 noite que guiaste,6 noite mais amavel que a alvorada,6 noite que juntasteAmado com Amada,Amada em seu Amado transformada!

    VI

    Em meu peito florido,Que inteiro para ele se guardava,Pousou adormecido,E eu so 0acarinhava,E de cedros urn leque brisa dava.

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    VII VII

    EI aire del almena,Cuando yo sus cabellos esparcia,Con su mana serenaEn mi cuello heriaY todos mis sentidos suspendia.

    A brisa dessa ameia,Quando eu os seus cabelos espargia,Com mao serena e cheiaEm meu colo batiaE todos meus sentidos suspendia.

    VIII VIII

    Quedeme y olvideme,EI rostro recline sobre el Amado;Ceso todo, y dejeme,Dejando my cuidadoEntre las azucenas olvidado.

    Esqueci-me, quedei-me,o rosto reclinei sobre 0Amado;Tudo parou, deixei-me,Deixando meu cuidadoPor entre as acucenas olvidado.

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    Richard WagnerTristao e IsoldaAto III - cena 3[TRISTAN liND ISOLDE]III. Aufzug - 3. AuftrittTraducao de Haroldo de Campos

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    TRISTAN UND ISOLDE TRISTAO E ISOLDA

    Mild und leise Leve e gracilwie er lachelt, Quando ele ri,wie dasAuge Enquanto abertohold er offnet: Mantem 0olho:seht ihr, Freunde, Amigos, ele os 5sah't ihr's nicht? Vel Nao os viu?Immer lichter Brilho-brilhantewie er leuchtet, Quando radiante,wie er minnig Sempre gracioso,immer macht' ger 10 Todo-charmoso, 10stern-umstrahlet Circunstrelado,hoch sich hebt: Alto se alcando:seht ihr, Freunde, Amigos, ele ossah't ihr's nicht? Vel Nso os viu?Wie das Herz ihm 15 Como urn fogoso 15muthig schwillt, Coracao pleno avoll und hehr Efundir do peitoim Busen quilt; Urn fogo intenso,wie den Lippen Quando de brandowonnigmild 20 Topazio-mel 20siisser Athem Labios de aromasanft entweht: Respiram ceu:Freunde, seht - Amigos, ele osfiihlt und seht ihr's nicht? Tateia, ve e nao vel

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    Hore ichnur 2 5 " Somente ouco 2 5 "dieseWeise, Desses sons lindosdie so wunder- Doces baloucos,voll und leise, Plenissuaves.Wonne kiagend Delicias trinamalles sagend, 3 0 'Iudo-dizendo, 3 0mild versohnend Doce-emanando,aus ihm tonend, Sons-consoando,auf sich schwingt, Se entre-ressoando,in mich dringt, Me compelindo,hold erhallend H Fonte-levando 3 5 "urn mich klingt? Tinindo em mim?Heller schallend, Cristal-cobrindo-me,mich unwallend, Me circondeando,sind esWellen Ondas exsurgemsanfter Liifte? 40 Doce-halitantes? 40Sind esWogen Ondas exsurgem,wonniger Diifte? Doce-balsamicas?Wie sie schwellen, No que se inflam,mich urnrauschen, Me murmurando,solI ich athmen, H Devo arquejar, Hsoll ich lauschen? Devo auscultar,Soll ich schliirfen, Devo engolfar-me,untertauchen, Submergir- me,suss in Diiften Em dulcearomasmich verhauchen? 5 " 0 Me esvanecer? 5 " 0In desWonnemeeres No escarceu-reboante2 8 2 9

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    wogendem Schall, Do mar gozoso,in der Duft-Wellen No undeo-perfumeo,tonendem Schall, No eco-ecoante,in desWelt-Athems H No mundo-alentos Hwehendem All- Do Todo-Arfanteertrinken- Embeber-me,versinken- Fundo-abismar- me,unbewusst- Inconscia numahochste Lust! 60 Suma volupia! 60

    310

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    LEO SPITZER

    Tres poemas sobre 0extase:John Donne,SanJuan de la Cruz,RichardWagner

    Publicado originalmente em A M e th od if l n terpre t inq Li tera ture[Northampton: Smith College, 1949]

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    Em seu artigo de "adeus a critica" ("A Farewell toCriticism", na revista Poetry de janeiro de 1948), 0poeta americano Karl Shapiro escreveu: "contestoo principio subjacente a explication de texte. Urn poe-rna nao deveria servir como tema de estudos lingiiis-ticos, semanticos ou psicologicos. [... ] Poesia nao elinguagem, mas uma linguagem sui generis, que sopode ser entendida, parafraseada ou traduzida comopoesia.[ ... ] Uma mesma palavra que figure em urntrecho de prosa ou em urn verso transforma-se emduas palavras diferentes, nem mesmo semelhantes,exceto em aparencia. Eu preferiria designar a pala-vra da poesia como 'nao-palavra' [... ] urn poema euma construcao literaria composta de 'nao-palavras'que, tomando distancia do sentido, alcancam por

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    meio da prosodic urn sentido-alem-do-sentido, Naob I, fi d "P" 'di "e sa e qua e 0 rm e urn poema. or pros~ a

    o senhor Shapiro refere-se nao apenas ao ritmopoetico como tambem as associacoes poeticas e asfiguras de linguagem.

    Assim, na opiniao de urn poeta respeitavel,deveriamos resolutamente evitar aquilo que preten-do fazer nesta serie de prelecoes: explication de texteaplicada a poesia. Ora, 0critico literario dotado deconhecimento historico pode relevar a revolta pe-riodica dos poetas contra os criticos que pretendemexplicar sua poesia - essa atitude "poetica" data doperiodo romantico, Nao teria ocorrido a Dante,San Juan de la Cruz, Racine ou Milton duvidar quesua poesia, representativa, segundo julgavam, desentimentos universais, pudesse ser explicada porseus contemporaneos; alem do mais, esses poetasesforcaram-se pessoalmente por explica-la. Entre-tanto, desde adesooberta, no seculo XVIII, do "ge-nio original", que nao fala pela humanidade, maspor si mesmo apenas - desde entao 0sentido irra-donal da poesia tern sido mais e mais sublinhadopelos poetas; todos nos j

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    My soul stands at the window of my roomAnd I ten thousand miles away;My days are filled with Ocean's sound of doom,Salt and cloud and the bitter spray,Let the wind blow,Jor many a man shall die. 1

    Nao apenas a situacao exterior e interior eclara: KarlShapiro, soldado que lutou a Segunda Guerra no Paci-fico, observa 0 oceano de sua janela e pensa no destinode tantos camaradas de armas que nao tornaram avera patria; tambem a pros6dia e assimilavel e explica-vel: 0quinto verso, que e 0 refrao do poema, quebrao ritmo do quarteto precedente com seu anapestoinicial e 0 choque subseqiiente de duas silabas tonicas(let the wind blow), evocando 0 impacto do destino,prefigurado no plano estatico do sentido, mas agoraemergente e real:Jor many a man shall die. Mas as pala-vras wind e blo w, m an e di e sao ainda palavras conheci-das da lingua inglesa, que preservaram suas conotacoescosturneiras (de resto, nao inteiramente racionais); etao-somente por obra de sua disposicao na oracaocausal ~ou melhor, pseudocausal, pois nao ha nenhu-rna conexao necessaria entre 0 vento que sopra e aI Em traducao meramente literal: "Minha alma esta a janela do meu 'quarto / E eu, dez milmilhas ao longe; / Meus dias sao tornados pelosom fatidico do Oceano, / Sal e nevoa e espuma amarga, / Q ge a ven tosa pre, p ais m uita h am em h tl d e m arre r". [ N . T .]

    morte de tantos homens) e do ritmo ja descrito quese entreve urn outro plano, 0 da poesia, Desse modo,por meio de palavras cotidianas, surge a possibilidadede urna 16gica alem da 16gica hurnana, a 16gica do des-tino que determina 0 sopro do vento e a morte doshomens. 0leitor experiente pensara imediatamentena tecnica da balada folcl6rica, de Villon em "Mais O Usont les neiges d' antan?" ou da cancao fmal de N oite d ereis [T we!fth N in ht] - "The rain it raineth every day"-,em que se confere a palavras de aparencia trivial urnanova funcao: sugerir a necessidade de submissao aodestino, figurado pelos elementos. Em vez de dizerque a poesia consiste em '''nao-palavras' que, tomandodistancia do sentido, alcancam por meio da pros6diaurn sentido-alem -do-senti do" , eu sugeriria que elaconsiste em palavras, cujo sentido e preservado e que,pela magia do trabalho pros6dico do poeta, alcan-s:am urn "sentido-alem-do-sentido"; e diria igual-mente que a tarefa do fil610go consiste em assinalaro modo como se deu a transfiguras:ao. A irracionali-dade do poema nao precisa perder nada as maos deurn critico lingiiistico discreto; ao contrario, este hade trabalhar em consonancia com 0 poeta (mas semfazer caso de sua aprovacao) na medida em que retra-ce paciente e analiticamente 0 caminho do racionalao irracional- distancia que 0poeta pode ter cober-to de urn unico salto audaz.

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    Tomemos tres poemas que tratam mais ou menos domesmo tema - a uniao extatica do eu hurnano com algoque the e exterior -, de modo a estudar a transforma-

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    mee26 both meant, both spake the same3S Love, these mixt soules, doth mixe againe36 make both one, each this and that

    4 - 1 - 4 - 2 with one another so / Interinanimates twosoules

    5 "9 soule into the soule may flow74 - this dialogue of one

    o conceito de "uniao" sugere 0corolario de "procria-crao";com efeito, encontram-se varias referencias emnos so poema ao fruto da uniao dos amantes, sempreno mesmo plano espiritual desta:

    5"-6 Our hands were firmely cimented / With afast balme, which thence did spring

    I I - I 2 pictures [... ]/ Was all our propagation15"- I6 Our soules, (which to advance their state, /

    Were gone out,)27 thence a new concoction take4- 3 That abler soule, which thence doth flow,HWee then, who are this new soule

    E poderiamos ainda acrescentar os dois primeirosversos, Where, like a pillow on a bed, / A pregnant bankeswel'd up, que fornecem a procriacao intelectual dos

    amantes urn pano de fundo de natureza e vida vegetalexuberantemente ferteis.! compare-se a passagemaos versos 37~40 (por mais que esse quarteto possaparecer urna interpolacao posterior): assim comouma violeta, transplantada em terreno novo, viceja

    3 Esse presnant banke swel'd up e obviamente urn trace da "paisagemideal" literaria, topos recentemente estudado por E. R. Curtius,Europdtsche Literatur und lateinisches Mittelalter (Berna, 194-8) , pags.I89SS [cf. pp. 24 - 1 - 6 I da traducao brasilei ra, Literatura europeia eIdade Media latina (Sao Paulo, 1996) ; a fonte primordial de tais pas-sagens e Virgilio, Bucolicas, III.55-57: Dicite, quandoquidem in molliconsedimus herba. / Et nunc omnis aser, nunc omnis parturit arbos,/ Nuncfrondent silvae; nunc jormosissimus annus, ou "Dizei, ja que estamossentados na erva macia. / E agora todo 0campo, agora toda arvoreesta pronta para produzir, / Agora as florestas enchem-se de folhas,agora 0 ano esta na epoca mais bela". Esse e exatamente 0 cenariodo poema de Donne: urn recanto natural, embelezado pela vegeta-c;:aoabundante, convidando ao repouso e ao desfrute . Em outra pai-sagem ideal de Virgilio (Buc. II .4-5S), mencionam-se oito especies deplantas e, no poeta romano tardio Tiberianus, mais quatro (entre asquais as violetas: tum nemusfrasabat omne violarum spiritu, ou "entaoo bosque exalava urn odor com toda a emanacao das violetas"); masDonne menciona apenas a violeta, provavelmente a fun de sublinharo clima amoroso, urna vez que, para os antigos, a violeta e a flor quesimboliza 0amor: tinctus viola pallor amantium, ou "a pal idez tingidade violeta dos amantes" (Horacio, Odes, III. 1 o. 14-) , e ainda palleatomnis.amans, hie est color aptus amanti, ou "todo amante empal ideca,esta e a cor adequada ao amante" (Ovidio , Ars amatoria, I, 727). Cf.Petrarca, "S'un pallor di viola e d'amor tinto", "Amorosette et pallide viole"(Concordanza delle Rime di E Petrarca, ed. McKenzie, verbete viola), eCamoes, Pintando estava ali Zifiro e Flora/ As violas da cor dos amadores(Lusiadas, IX, 61 ; vide Richard Francis Burton, Camoens, IV, 657).

    4- 3

    Lovesmysteries in soulesdoe grow, / But yet the body is his

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    com vida renovada, assim tambem as almas, no novosolo que 0 amor lhes oferece (0 solo da duplicacao),poderao "redobrar e multiplicar" suas potencialidades.

    A ideia de extase propriamente dita e retomadano simile (versos 13- I 6) dos dois exercitos sobre osquais 0Destino paira e com quem as almas negociam- simile que se desdobra na imagem seguinte da duplaLipide com figuras reclinadas, da qual as almas acabamde fugir. A ideia de almas desencarnadas recorre noverso 23, bygood love [... ]growen all minde, nos versos47-48, Forth'Atomies if which wegrow, / Are soules, whomno change can invade, e ainda nos versos .p-p,Wee[nossas almas] are / The intelligences, they [nossos cor-pos] the sp hea re - pois na cosmologia medieval as esfe-ras sao movidas pelas inteligencias angelicas.o ultimo terco do poema dedica-se inteiramen-te a urna [ustificacao do corpo: uma vez que este deveser abandonado para que a alma conheca 0extase,poderiamos supor que 0 corpo e apenas urn empeci-lho para 0 espirito. Mas Donne insiste em reabilita-lo,descrevendo 0 service que 0 corpo presta ao espirito.Por meio dos sentidos,o corpo torna-se mediadorentre as almas comprometidas: segundo 0verso 56,o corpo nao e drosse (escoria), mas alloy (liga). Ade-mais, ele produz os "espiritos" (spiritelli, esprits vitaux),que sao intimamente ligados a alma e produzem asimagens sensuais que conduzem a revelacao do afuor:

    booke. Donne condui repetindo 0motivo da imutabi-lidade das almas unidas em extase.

    Nao podemos escapar a impressao de que 0poe-ta procede, ao longo do poema, a maneira de urn fielque pretende inculcar em seu publico as conviccoesarraigadas em sua mente. Com efeito, ele e tao cienteda necessidade de convencer os outros que, nao satis-feito com 0 publico lei tor, gostaria de introduzir noproprio poema urna testemunha ou urn ouvinte capazde entender a linguagem do amor (versos 21-22), demodo que, within convenient distance (verso 24), escu-tasse esse dialogue if one (verso 74). Essa testemunhanao deixaria de testemunhar a pureza do ato misticoe 0efeito duradouro do extase, mesmo apos 0retor-no das almas extaticas a seus corpos.

    Para convencer seus leitores, 0poeta adota urnatecnica quantitativa: ele multiplica as evidencias demodo a martelar suas conviccoes. -Com similes novos(to ciment, to grqft, balm, concoction, to string, Violet) ouneologismos (to entergrqft, to interinanimate), ele forjaa ideia de que "dois se tornam urn", e a acumulacaode similes (negociadores militares; figuras sepulcrais;inteligencias, nao esferas; liga, nao escoria; misterio,nao livro) confere forma a ideia de extase.l\ revela-c;:aoe retratada de urna perspectiva intelectual, comoreducao matematica paradoxal: "2 torna-se 1".Nao se

    44 45 "

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    exprime a profundidade da experiencia mistica, a sen-sacao de profundidade crescente; nada se revela da ge-nese dessa experiencia, de seu percurso ate omomentoculminante do transe. 0 extase esta la desde oinicio,thisExtasie e nomeado no verso 29, e nao dura apenasurn instante, mas todo 0 dia. Podemos compartilharapenas 0estado persistente de beatitude-sem-desejo.Uma calma estatuaria prevalece em todo 0 poema.Vemos a nossa frente uma estatua aleg6rica do txtase,desvelada desde 0inicio, com figuras de linguagemflexiveis que giram a sua volta, tecendo guirlandas ete-reas, projetando sombras cambiantes - urna complexafigura aleg6rica, da qual se predicam atributos oriun-dos dos mais diversos dominies da vida. A mesma ob-servacao pode ser feita por urna variacao do conhecidodistico de Robert Frost:

    They all dance around ina circle and suppose,But the concept sits inthe middle, and knows."

    Todas as ciencias e oficios podem entrar no poema sobforma de metaforas que dao testemunho do conceitocentral: 0 oficio de perfumista, 0joalheiro que enfileira

    4 - Em traducao sempre literal: "Todas elas dancam em roda esupoem, / Mas 0 COllCeitO senta-se no meio, e sabe" _No original deFrost, le-se Secret no lugar de concept_ [ N . T . ]

    perolas, 0ardineiro que transplanta, 0negociador mili-tar, 0 escultor, 0alquimista que destila concoctions,o cos-mologista que estuda a estrutura atomica do universo -todos desfilam em cortejo diante da estatua, num trium-phus pudicitiae [triunfo do pudor] ao gosto de Petrarca.

    As hiperboles de Donne, tantas vezes mal com-preendidas pelos criticos, sao da mesma ordem que seuprocedimento quantitativo: 0 extase era tao grande queOur eye-beames twisted, and did thred / Our eyes, upon onedouble strine (versos 7-8) -feito que mal se pode visua-lizar. Mas sua intencao e justamente predicar_o impos-sivel. Segundo as exigencias do wit, do engenho meta-fisico, 0 poeta deve atribuir aquilo que descreve tantoo fisicamente impossivel como 0 ilimitado: nao bastasseIancar mao de toda a riqueza caleidosc6pica da terra,deve ainda introduzir as possibilidades invisualizaveisdo impossivel- sabendo muito bern que, a despeito deseus esforcos, 0 panegirico sera sempre urna meraaproximacao. E claro que esse tipo de panegirico terno efeito de distanciar 0 objeto louvado: Donne naoreencena 0que vai no seu intimo, mas aponta paraalgo acima dele. No lugar da recriacao da experienciaintuitiva do poeta, ficamos com uma analise enciclo-pedica e discursiva. Mas esta e moldada pela belezaritmica, a beleza do ritmo da fala, com toda sua forcade persuasao - urn ritmo que faz eco ao movimentointimo e testemunha a veracidade do relato. Note-se 0

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    ritmo (indicando igualdade por meio do retorno quias- e que urna experiencia presurnivelmente temporal e

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    tico ao mesmo) que acompanha 0simile do sepulcro(versos 18-20):

    Wee like sepulchrall statues lay;A ll day, the same our postures were,And wee said nothing, all the day.

    . " I"eja-se 0 rttmo com que se retrata a nova a rnaimutavel (versos 45-48):

    Wee then, who are this new soule, know,Of what we are compos'd, and made,For, th' Atomies of which we grow,Are soules, whom no c ha nB e c an in va de .

    Por fim, 0ritmo meditativo dos versos que indicama natureza nao-sexual do amor (versos 31-32):

    We e s ee by this, it was not sexe,W ee see, w ee sa w not what did move

    Nao pode ser urn acaso que 0ritmo escolhido pelopoeta soe mais convincente quando a imutabilidadeda uniao e contraposta a fenomenos efemeros.

    Tendo notado que, em nosso poema, 0cerne in-telectual de urna vivencia intuitiva ganha concretude

    reduzida a atemporalidade, podemos observar que aultima parte, em que se oferece urna justificacao docorpo (0 amor comeca no corpo e persistira quando asalmas tiverern retornado a ele), e poeticarnente rne-nos feliz que 0resto - apesar de joias poeticas comoo verso 64, T ha t su btile kno t, w hic h m akes us man (versoque transforrna em poesia urna definicao sucinta danatureza psicofisica do hornern), ou 0verso 68, E lse aB re at P rin ce in priso n lies, no qual entrevernos 0Segis-rnundo de Calderon em sua torre, privado da luz dossentidos.' A parte final do poema beira 0 tratado cien-tifico de fisiologia, quer dizer, de fisiologia seiscentista.Qualquer leitor sentira aqui urn anticlimax poetico (epode mesrno suspeitar de uma.composicao mais tar-dia): apos a visao do extase de duas alrnas unidas emuma, a ideia de retornoou "queda" para 0 corpo parecedesconcertante. Pois a constituicao do hornern mortalso lhe permite a visao de urn estado de arrebatamentocomo urn apice isolado, urna rnorte em vida, seguidade silencio; 0 Egmont de Goethe exclama S o la j3 m ic hsterbenl D ie W elt hat heine F reude atif d iesel para que 0pano caia em seguida.6 Donne.iporem, queria fazer

    5 0 principe Segismundo e 0 protagorusta de L a v id a e s r ue no . [ N . T . ]6 Esmont, ato III: "Debra-me morrer, 0mundo nao tem felicidademaior que esta!". [N .T . ]

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    da visao extatica urn tributario da vida cotidiana sub- barro que as suporta. 0 fato e que Donne nao tern

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    seqiiente, realcada por urna tal memoria. Mas essaintencao tao moralmente nobre, tao ligada a ideia dereforma e regenerayao religiosas, nao se presta aqui afruicao estetica: tendo participado de urn extase alemdo tempo e da mudanca, nao estamos prontos pararetornar a urn mundo no qual a mudanca, por ligeiraque seja, e sempre possfvel, E a repeticao do motivoda testemunhaque observa os amantes em sua vidapos-extase e indicio de que a imaginayao poetica deDonne minguava.

    Alem disso, sentimos de alguma maneira que 0proprio Donne, a despeito de sua tentativa de justifica-yao da carne, tinha mais conviccao intima da realidadee da beleza da uniao espiritual do que da necessidade docorpo para essa uniao. E possivel que a indole basica-mente protestante de Donne seja responsavel por essaatitude contraditoria. Pois 0distanciamento docorpoe caracteristico do protestantismo: na fe judaica, osdireitos do corpo coexistem com as exigencias que 0Criador impoe a alma humana, ao passo que, no cato-licismo, se ergue uma ponte entre corpo e alma pormeio do sacramento no qual Cristo se torna presentena uniao corporea com os fieis, que sao membra Christi.No monumento protestante que Donne ergue a uniaomistica, as lguras que encarnam essa uniao trazem asmarcas de uma mao mais firme do que 0 pedestal de

    !i0

    resposta para a questao torturante But 0alas so lona soJarre / Our bodies why doe weeJorbeare? (versos 49-50).Nao e por acaso que, neste poema, a palavra sexe (ver-so 3 I) aparece pela primeira vez na literatura euro-peia com 0sentido moderno de impulso especifico,objetivo, definivel e questionavel que condiciona avida do homem e da mulher.TTambem em seu poema''The Primrose" Donne escreve: should she / Be morethen woman, shee would aet above / All thouaht ifsexe, 0que vai de par com Weesee by this, it was not sexe; emambos os casos, 0sexo e tratado como urn fato me-nor, que existe para ser transcendido.

    Contudo, se 0 sexo e visto tao nitidamente comoal~o a ser descartado, nao se podera c011si~erar Donne

    ~-J~;isticiSmorcligioso,que totria)I emprestado ao sexo a materia-prima da sensibilidade ('. psicofisica para acolher, em plano mais elevado, mas\ tanto no corpo como na alma, a invasao do divino.~~2~e, dando carnea\ \experiencia espiritual (ao mesmo tempo que parti-/lhavam a atitude de desilusao ou desenaaiio diante docorpo), encontraram a via mais direta para conciliar 0 ,esplendor do corpo, redescoberto no Rena.cimenw: Ie a beleza sobrenatural da graya divina, vivenciada nJ

    7 Devo a sugestao ao professor Allen.

    5 " 1

    meditacao medieval. Ainda assim, nosso poema, com

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    sua demarcacao clara entre .corpo e alma, permane-cera como monurnento de clareza intelectual. Comoe caracteristico 0verbo unperples (verso 29), cunha-do por Donne (e rimando, a bern do equilibrio, comsex), como ele revela 0desejo intenso de esclareci-mento intelectual das emocoes! E justamente essedesejo que torna John Donne tao caro a nos sa epoca,urna epocaperplexa, desconfiada das emocoes ins-tintivas, preferindo talvez a clareza analitica as sinte-ses que nao pode mais ratificar de coracao,

    Em vista da interpretacao do poema de Donne que aca-bo de sugerir, e quase desnecessario dizer que discordointeiramente da opiniao do falecido professor Legouis,em sua Histoire de la litterature anqlaise, Legouis, quedecerto tinha em mente os inurn eros poemas em queDonne ridicularizava 0 tema do amor platonico (bastapensar em "The Flea"!), ve em nos so poema urn apelo"sofistico" e "insidioso" a consumacao fisica. Os doisamantes, tendo desfrutado por todo urn dia a sensacaode terem formado uma unica alma, "sentem que setornaram espiritos purificados. Da altura em que pla-nam, 0 corpo parece coisa de somenos. Pobre corpo,que entretanto merece alguma recompensa por te-los conduzido urn ao outro. E justo que se pense nele!Por que nossos corpos se abstem por tanto tempo?

    B

    Urn grande principe jaz aprisionado!". Ora, para jus- see by this, it was not sexe,/ Weesee, weesaw not what did

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    tificar essa interpretacao carnal, Legouis Ie 0 verso50 (Our bodies why doe weeJorbeare?) como seforbearenao significasse"suportar, tolerar", como eu entendo,e sim "refrear, controlar". Mais adiante, no ultimoverso (Small chanqe, when we'are to bodies none), queexpliquei como retorno inevitavel do extase a vidacotidiana, Legouis ve urna alusao ao arnor fisico. E 0que nos pareceu urna descricao da origem do amor,que deve comecar no corpo seu caminho rumo aoextase, foi tornado por Legouis como convite, hie etnunc, a satisfacao do corpo; com isso, 0 nobre verso68 (Else a nreat Prince in prison lies), que descreve acondicao mortal do homem, representaria 0 climaxdo convite carnal: 0 eterno apelo choroso que 0ho-mem dirige a mulher.

    Diante de tanta sabedoria galica, de tanta fami-liaridade com os velhos estratagemas de urn sedutorastuto (urnValmont de As linaroes perinosas), como de-vern parecer ingenuas asminhas observacoes! Mas asvezes a candura e a via mais direta para 0 entendi-mento: preferi acreditar no que 0poeta diz de inicio,com voz inconfundivelmente veridica, sobre a belezae a realidade do ekstasis espiritual. Se the dermos ere-dito nesse ponto, nao poderemos ver na parte finalurn convite a carnalidade - caso em que a primeiraparte seria mero estratagema. E a sinceridade de Wee

    move - sera esse 0 tom da hipocrisia? Deveriamos sus-peitar que 0poeta ja sabia entao 0que 0 sexo e capazde mover? E quanto aquela testemunha que Donneinvoca ao final, U'hen we'are to bodies none, e dificilacreditar que Donne esteja chamando a testemunharo ato fisico aquela que 0 proprio poeta descreveracomo by nood love [... ] nrowen all minde (note-se aexcelsa expressao agostiniana: nood love, amor bonus)!

    Nao, prefiro ver em nosso poema antes umaglorificac;:aodo ekstasis autentico (talvez sem forca depersuasao artistica, pela nobre razao que ja sugeri-mos) do que urna exibicao tortuosa de filosofia neo-platonica destinada a produzir 0 inevitavel desfechomundano: nao vejo nele urn arnumentum ad hominem,ou melhor, adJeminam, mas sim, em acordo com 0proprio Donne, urn dialogue ifone- ou, se preferi-rem, urn monologo de dois.

    H

    poderiamos descrever como urn Cantico dos Canti-

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    Dissemos que a sensibilidade judaica - e creio queisso seja tao verdadeiro hoje como no tempo dos pa-triarcas - admite a coexistencia do corpo e da almana presen

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    lizados em nossa curta narrativa, pois sao eles queconduzem a as:ao; formam, por assim dizer, 0 ali-cerce dramatico, expressando urn desenvolvimentoininterrupto. Veremos que seu numero aurnenta aofinal do poema: na primeira parte, ha apenas sali(estrofe I); na segunda parte, apenas guiaste e juntaste(estrofe v); na terceira parte, alem de alli qued6 dor-mido (estrofe VI), encontramos cinco preterites naultima estrofe, quatro deles em verbos de movimen-to: a as:ao, como disse antes, e concebida em termoscorporais. Esse acrescimo de verbos dramaticos ru-mo aofinal do poema coincide, estranhamente, como decrescimo da as:ao dinamica ou voluntaria da partedo protagonista: a alma enamorada que, na primeiraparte, saira resolutamente em peregrinas:ao sera guia-da pela noite na segunda parte, e e a noite que a levaa seu Amado (ele mesmo passivo: qued6 dormido),quando entao todo esforco cessa; na Ultima estrofe, aatividade da alma resurne-se a uma auto-extincaogradual: ceso todo. Esse contraste entre a acumulacaode tempos dramaticos e 0smorzando das atividadesque eles expressam e paradoxal: 100climax da as:ao10 Damaso Alonso, que nao faz esta observacao, fala apenas da"escassez de verbos"na primeira parte do poema (op, cit., p. 184);se bem 0entendi, predominariam ali asconstrucoes nominais. >

    (que so pode ser urn dom da gras:a divina), na auto-aniquilacao. 0 primeiro preterite, sali, fora urn im-pulso movido por ansias en am ores iriflamadas, pelaansiedade candente da chama do amor; no final,dejeme, ainda que expressando 0abandono de si,funde-se imediatamente com dejando mi cuidado [... ]olvidado: cessa toda perturbacao, A as:ao do poema,que comeca com urn movimento ditado pela dor epelo impulse de apazigua-Ia, termina em completoesquecimento de si, livre de dor.

    Em posse dessa visao aerea do conjunto e dostraces mais salientes de sua estrutura, retornemosagora ao inicio e tentemos analisar a sequencia dastres partes que isolamos.

    Na primeira estrofe, como ja dissemos, a pala-vra que da inicio ao movimento e sali. Mas podemosbern nos perguntar: quem partiu? Quem e 0 prota-gonista do poema? 0 participio iriflamada (estrofe I),

    > Eu diria que, exceto pela Ultima estrofe, na qual os verbos semduvida predominam, ainda assim ganha relevo nas tres primeirasestrofes a forca do verbo sali (do qual, segundo a analise do pr6-prio Alonso, dependem todos os adverbios e parenteses). 0 ver-bo principal nao esta "ausente": ao contrario, ele se faz sentir pelosuporte que empresta as construcoes nominais. Sali simboliza aforca de vontade serena da alma que toma seu rumo, indiferentea solidao e a noite.

    5 "9

    Em meu leito, nas noites, busquei aqueIe,cujo amor e minha alma, busquei-o e naoseguido por notada e mais tarde por amado e transfor-mada (estrofe v), parece indicar urn ser feminino;

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    [0 encontrei.Vou levantar-me e rodar pela cidade.pelas ruas,Pelas largas vias buscarei aquele cujo amor e

    [minha alma.Busquei-o e nao 0 encontrei.

    uma vez que esse ser fala em unir-se a seu Amado,podemos pensar que a ayao se da nos termos doamor mundano. Ou serao esses participios femini-nos predicados daquele ser espiritual, a alma, sempretida por femirrina (e jamais mencionada no poema)?Essa ambigiiidade decerto faz parte das intencoesdo autor, nao apenas peIo desejo de expressar figu-radamente 0espiritual por meio do fisico: justa-mente porque a identidade do protagonista ~ dadapor sabida, sem necessidade de elucidacao, somosarrastados imediatamente para a atmosfera daquelaque fala de seu arnor e podemos partilhar sua expe-rtencia sem questionamentos, a medida que esta sedesenrola no poema.

    Retornemos a sali: de onde se parte? De qualpano de fundo emerge esse movimento subito? Mastao-somente as duas primeiras estrofes em conjuntodelineiam esse pano de fundo; como assinalou Da-maso Alonso, devem ser lidas como uma unica ora-yao (sem ponto final separando-as, como se faz emtodas as edicoes): contem as mesmas rimas e, em seuconjunto, exibem 0 parallelismus membrorum [0parala-lelismo dos membros de urn periodo] caracteristicodo modelo hebraico, 0Cantico dos Canticos. Com-pare-se 0 paralelismo no Cantico (3. I - 2 ) :

    e em nosso poema:

    En una noche escura,Con ansias en amores inflamada,iOh dichosa ventura!SaH sin ser notada,Estando ya mi casa sosegada;

    A escuras y segura,Por la secreta escala, disfrazada,iOh dichosa ventura!A escuras, y en celada,Estando ya mi casa sosegada.

    Essas cadencias musicais, quase de danca, contribuempara situar nosso poema no clima do misterio biblico,no qual aqueles movimentos, que pareceriam erraticosaos nao-iniciados, sao ria verdade guiados pela Provi-dencia, Na calma da noite, ouvimos esses tons miste-

    61

    riosos, apoiados, digamos assim, por motivos nominaisque se repetem com urna constancia que sugere a vi-

    divino. A alma que se decidiu a encontrar 0 divinoempenhou-se nurna aventura existencial, e 0 adjetivo

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    gencia da vontade e do proposito, As repeticoes nao sedestinam aqui a esclarecer urn conceito por meio desimiles como os de Donne; ao contrario, encontramosaqui alguns motivos nominais muito simples, repetidoscom parcimonia e pouquissima variacao: jO dichosaventura! repete-se sem alteracao, 0mesmo aconte-cendo com e sta nd o ya m i ca sa s ose ga da , 0 que serve paraestabelecer a homologia das duas estrofes. Novamen-te, na sequencia en una noche escura, a escuras y segura, aescuras y en celada, encontramos escura repetida tresvezes, ao passo que na sequencia sin se r n ota da , s ec retaescala dijrazada, en celada a afinidade e apenas tema-tica, mas sempre notavel. Nem sempre ha urn ec o mu-sical, ouvem-se contrastes mais sutis: urna alma aticadapela paixao deixa a casa envolta pelo silencio (iriflama-da, s os egada ); a escuridao noturna ( a e sc uras ) opoe-se acerteza do proposito (segura). E a rima de ventura comsegura tambem sugere urna contradicao, ainda que estaseja suavizada pelo fato de que a aventura e dita dicho-sa , "abencoada", 0 proposito da alma e, de fato, urnaempresa a ventura, rurno ao desconhecido; urna aven-tura, nao no sentido trivial de hoje (urna interrupcaocaprichosa da vida cotidiana), mas no sentido em queja se disse que a vida na Idade Media era urna aventura:a demanda aventurosa do homem pelo advento do

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    dicbosa indica que podemos contar com uma respostadivina. A palavra escala, por sua vez, sugere altura e esimbolo da ascensao da alma (basta lembrar a escadamistica de Bernardo de Clairvaux).

    As duas estrofes seguintes deveriam igualmenteser lidas em conjunto (ainda que ninguem 0tenhasugerido ate agora), tanto por causa das mesmasrimas em -ia como pelo discreto paralelismo que asperpassa. Voltamos a encontrar a alternancia de mo-tivos que assegura 0fluxo continuo do poema: aspalavras dichosa e secreta da estrofe IIreaparecem; sinser no tada , da estrofe I,e retomado por nadie me vela,e e n c ela da da estrofe II 0 e por en parte don de nadieparecia. Vale ainda notar que, nesse par de estrofes, 0verbo central e 0imperfeito gUiaba. Tomada a decisaoque 0preterite sall anuncia dramaticamente, a ac;aopode decorrer num ritmo calmo, firme e seguido,que sugere a decisao firme, E percebemos urna notanova de serenidade e claridade: en una neche escuracede lugar a en la n oche dicbosa, a noite tornou-se urnambiente familiar, em que a alma conhece seu cami-nho. E nessa escuridao que brilha uma luz provenien-te do coracao, introduzida negativamente (sin o tra lu z- S ino), como se emergisse das trevas. Essa radianciaguia (a uia , g Uia ba ) a alma com mais certeza que 0

    brilho do dia. E 0 primeiro verso da estrofe IV sugereurn suspire de alivio feliz: aquesta me gUiaba. Do labi-

    de la Cruz ele adquire urn sentido mistico. Uma vezque 0 misticismo cristae representa 0 desenvolvimen-

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    rinto da terceira estrofe, que sugere 0 movimento daalma que procura seu caminho em meio as trevas,emerge 0 guia certeiro; a luz prodigiosa, de iniciosugerida aproximativa ou negativamente nurna oracaosubordinada, e agora celebrada abertamente nurnaoracao principal: aquesta .... A estrutura da oracaotraduz 0 firme progresso da alma, encorajada pelaesperans:a intima (segura, dichosa), ate 0 momento emque sua luz interior ilumina tudo a volta e mesmoalem, na direcao da meta agora bern nitida (adonde):aquele (qui en) cuja morada a alma conhecia instinti-vamente (quien yo bien me sabla / en parte donde nadieparecia). Encontramos aqui a ideia de conhecimentosecreto, exclusivo, assim como antes se sugeria urnaviagem secreta, clandestina (a escada mistica estavadigrazada). Esse motivo do amor sub-repticio podebern ser urn resquicio das convencoes sociopoeticasda lirica amorosa trovadoresca;'! mas com San Juan

    1 1 Cf. a exposicao didatica dessa convencao em velhas passagensprovencais, como esta: Pals amador mi fa nt o ra n d esto rbie t, / C ar so n ja n-0 10 s, en ojo s, m al p arlier; / M as ieu p ero ten c la dreita carrau / E va uc a va nsuavet e a frau. / Qy'eu l' a uzi d ir en un v er r ep ro vie r: / P er =r parlarc re is so n m ai nt e nc om br ie r; P er q u'e u m'en eel a tot h om en carnau. She-pard e Chambers traduzem-na assim in R om a nc e P h il ol o8 Y 2, 1948,p. 86: "Muito me irritam os falsos amantes, pois sao indiscretos, >64

    to maximo da crenca crista em urn Deus pessoal, queforma a alma imortal do homem, e como esta, emcontrapartida, pressupoe Deus - sendo assim, a almamlstica pode arrogar-se em isolamento, ate mesmoem segredo, urn conhecimento desse Deus indivi-dual como posse pessoal. Com estas ultimas linhas aperegrinas:ao chega ao fim, isto e, a esse quieti, pro-nome ambiguo que indica urn individuo sem revelarsua identidade. Mais tarde, esse individuo amado apa-recera como amado (estrofe v, verso 4) e finalmentecomo Amado (verso seguinte).

    Essa tecnica de variacoes musicais e de desdo-bramento sintatico gradual conduziu-nos da necheescura a urna luz mais brilhante que 0 dia, da solidaoao encontro com Aquele que e a meta divina - daqui-10 que os gregos chamariam de steresis ("privas:ao")a hexis ("possessao"). Esses sao termos da 16gica, ede fato vemos que a ideia de privacao, de ausenciade caracteristicas definidas e traduzida por elementos

    > cansativos e de mau falar; mesmo assim, sigo 0 reto caminho eavans:o suave e secretamente. Ouvi dizer urn dito verdadeiro: mui-tos males vem de muita conversa; por isso guardo meu tesouro detodo homem mortal". Destaquei em itahco asexpressoes provencaisque antecipam as de San juan de la Cruz; anteve-se aqui a via solita-ria da alma enamorada que caminha na dires:ao de seu al~o certeiro,

    gramaticais negativos, como sin, nadie, ni ... cosa, sin,nadie, que nos conduzem a aquesta e a quien, a consu-

    Oh noche, que guiaste,Oh noche amable mas que el alborada,

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    macao: nao ver nada e 0 caminho para a visao doAmado. 0 misticismo pressupoe a privacao, a renun-cia, a expiacao como ponto de partida para a consu-macae, amplificando assim alguns principios cristaos:so temos quando nada temos, so vemos a verdadequando fechamos os olhos para 0mundo exterior (osolhos do coracao, oculi cordis, sao mais penetrantesque os olhos dos sentidos), a luz do coracao brilhamais forte que qualquer outra luz.12

    Entendemos agora as exclamacoes de jubilo queabrem a parte seguinte, de urna unica estrofe:

    12 Sobre essa concepcao nada classica ou platonica de escuridao,cf. 0magistral ensaio de Rudolf Bultmann, "Zur Geschichte derLichtsymbolik imAltertum", in Philoloqus 97,1948, pp. 1-36, quedata a perda da nocao classica de luz do decHnio da polis: na Greciaclassica, a luz do dia era considerada nao apenas 0melhor meio deorientacao como tambem a fonte primaria de esclarecimento men-tal, ao passo que, nos cultos de misterio posteriores, 0 homemdualista, tendo perdido confianca na luz do dia, passa a esperar queo conhecimento supremo se revele por meio de poderes sobrena-turais que brilham nas trevas. Nos textos gn6sticos, diz-se que a luzdo dia e uma "luz escura", e Dionisio Areopagita fala da "divinaescuridao". Bultmann compara 0 templo grego, que se volta dire-tamente para a luz e cujos menores detalhes podem ser percebidospelo fiel, a igreja crista, cujo interior priva 0fiel da luz do dia,enquanto se acende uma luz artificial, imagem da inspiracao divinaque invade seu coracao. A mistica crista amplifica de caso pensadoas ideias de Dionisio sobre a divina escuridao,

    66

    Oh noche, que juntaste

    Tambem aqui ha urn paradoxo: noche que8uiaste. E maisnatural pensar na luz como guia; mas a essa altura jasabemos que a noite se fez dia (a steresis aparece noesplendor da hexis). Essa noite radiante tambem res-ponde pelo encontro: juntaste e 0climax da sequencia8uiaba - 8uiaste - juntaste. Ja notamos que, em aquestame 8uiaba, havia uma nota nova de tranqiiilidade (0impeto da vontade, anunciado originalmente por sali,agora se amaina, conforme a alma se entrega a luz in-terior); agora, com iOh noche, quejuntaste, 0guia assu-miu a direcao, a iniciativa passa da luz do coracao paraa propria noite, e e tao-somente esta que propicia auniao. Essa simbologia poetica da noite como media-dora do matrimonio espiritual e urn trace original deSan Juan de la Cruz, conforme apontou Baruzi, quetambem sugere que se distinga 0slmbolo da noite emnosso poema da aleootia da noite, elaborada nos comen-tarios em prosa do poeta. 13 Se a alegoria consiste nurnjogo intelectual em que urna serie de qualidades fixaspertencentes a urn reino serve de correspondente a

    13Nao creio, por exemplo, que as estrofes 1 e 2 tratem de duas"noites" distintas, a noche de los sentidos e a noche del entendimiento.

    uma serie de qualidades fixas pertencentes a outroreino (de modo que urna "traducao" literal seja possi-

    noite: jO h noche, que junta ste! .Assim, a noite equivale-ria ao amor. E, ao lado de amado e am ada, noche am a-

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    vel), urn simbolo representa a identificacao emocionalde urn complexo de sentimentos a urn objeto exte-rior, 0 qual, urna vez que se tenha estabelecido a iden-tificacao original, produz imagens sempre novas, comritmo e desenvolvimento proprios, nem sempre pas-siveis de traducao. 0 simbolo evolui continuamenteno tempo, ao passo que a alegoria se fixa para sempre.A alegoria do amor no Rom an de la rose pode ser tradu-zida passo a passo; a rosa, por exemplo, tern espinhos,perfume delicioso etc., com implicacoes alegoricasbastante obvias. Mas a cruz de Cristo e urn simbolo:urna vez que a Paixao foi simbolizada por aquele ins-trurnento de tortura, urna vez que Cristo tomou asia cruz, esta pode tornar-se, com 0passar do tempo, a"balanca" que pondera os pecados do mundo, a "arvo-re" da vida que vence a morte, a "lira" de Orfeu etc.Com San Juan de la Cruz, a noite torna-se urn simbolointraduzivel, capaz de gerar novas situacoes e emo-

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    fiel para 0que pode haver de mais importante, a res-surreicao do Senhor no Domingo de Pascoa. Talvez ainspiracao poetics possa ser tracada ate a tradicaogeral da mistica crista (cf. nota 12), ou ainda ao gene-ro trovadoresco da alba, no qual muitas vezes a gloriada noite e cantada, em desdouro da aurora.!" Mas ebern verdade que a situacao dramatica nao e a mes-rna: nao ha nenhurn vigia a postos na torre para avisaros amantes (muitas vezes em vao) do perigo da auro-ra iminente - aqui, os amantes nada tern a temer.

    Neste ponto, vale notar que a metamorfosemistica descrita por San Juan de la Cruz (a Amadaconfundindo-se com o Amado) nao implica nenhumatransformacao complementar (Amado em Amada),i~to e, nenhurna igualdade entre os amantes, comoacontecia em Donne. 0 amor.descrito por Donne emurn plano espiritual e urn arnor que nao convida ainterpretacao metaforica de uniao com 0divino, porcausa de seu conceito (muito rnoderno) de igualdadefundamental entre os dois amantes. Se nosso poeta

    1 6 Cf. a cena do L lib re d e A m ich e A m at, 2 . 1 " : C a nt av en l os a uc el ls l'lba,e desperta's l'm ic , qui es l' lb a; e lo s a uc ell s J en ire n llu r c an t, e l' a mi c m or lpe r l'm at, en l' lba, ou C an ta vam o s p a ss ar os a a ur or a e a co rd ou 0 amieo,qu e e a a uro ra , e o s p a ssa ro s te rm in ara m seu ca nto , e 0 a mieo m orreu p eloAmado, na a uro ra - 0refrao em prosa l'lb a indica a situacao original.

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    hurnano, segundo urna tradicao centenaria, nao impli-ca nenhurna igualdade: a noiva subrnete-se ao noivo.

    Tratamos a estrofe v como apice Hrico do poe-rna, urna interpretacao lingiiisticamente fundarnen-tada na sequencia de tres apostrofes a noite. Esseestilo declamatorio ja fora anunciado pela repeticaode joh dichosa ventura! entre parenteses. Mas agora anota triunfante chega a sua expansao maxima - e seexpressa por meio de urn padrao que, na liturgiajudaico-crista (nao a encontramos na liturgia paga,segundo Eduard Norden), era exclusivo das apostro-fes a divindade: urn vocativo seguido de oracoessubordinadas que descrevem os triunfos ou os favo-res de Deus, por sua vez geralmente seguido de urnapelo por mais favores'? (por menos que se possa,em nosso poema, desejar ,mais algum favor divino: aalma quer apenas extravasar sua gratidao ao podercarismatico do amor).

    Finalmente, a cena da unio mystica: com as pri-meiras linhas da estrofe VI, sentimos imediatarnente

    17 c r. a C h an so n d e R o la nd , vv. 23848s: "V eire Paterne, ki u nk es n e m en -tis, / S ein t L aza ro n d e m ort ressu rrex is / E D an ie l d es leo ns eu aresis, / Gua-ris de m ei 1 'anm e de tuz perils [ .. ' . J / " , ou "P ai v e rd a de ir o, q u e nao mentis-te jamais, / trouxeste Sao Lazaro de entre os mortos / E salvasteDaniel dos leoes, / Salva m in ha a lm a de todos os perigos [ ... J ! " .

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    uma nova calma e compostura, em contraste com 0tom exultante e sonoro da estrofe precedente. Come-

    a seu objetivo, Ao descrever essa espera, talvez te-nhamos desdenhado a referencia, na estrofe IV, ao

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    cemos por notar a palavra pecho - dotada de sentidotanto moral (0 "coracao") como fisico;" Certarri.ente,devemos entender em sentido moral 0 verso 2 (queentero para el solo seguardaba), que torna explicita pelaprimeira vez a motivacao monogamica da peregrina-c;ao, daquele sali que, de inicio, parecia urgido por umapaixao subita, mas agora se revela como profunda leal-dade ao divino. Mas nao ha como escapar a insinuacaosensual, logo no primeiro verso, de pechoflorido (quesem duvida significa "com perfume de flores"); a almadesencarnada, cujo caminho acompanhamos, adquireum corpo mistico. 0 adjunto adverbial en mi pecho flo-rido faz pensar em en una noche oscura e en la nochedichosa; a noite ambiente cede lugar ao pechofloridosobre 0qual 0Amado repousa: En mi pecboflorido /[... ]/ AlIi qued6 dormido.

    Mas nesse alli, nesse adverbio logicamente su-perfluo, urn tanto coloquial, nao se pode sentir umainsistencia emocional, como se 0pechoflorido Fosse 0objetivo alcancado pelo Amado? Ate aqui, tratamosda peregrinac;ao apenas como esforco da alma rumo

    I8 Esseduplo sentido so e possivel com a substitui~o dos "seios"doC~tico dos Canticos pelo pecho singular. Note-se tambem que, nopoema hebraico, 0perfume emana do noivo, figurado pela mirra.

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    noivo que a esperaba no local do encontro. Agora,podemos ouvir nesse alli uma mencao delicada aocalmo e fume anseio divino pela alma hurnana, 19 cujaIibertacao do desejo se declara nesse alIi suavementetriunfal (certamente urn eco de aquesta, suspire dealivio com que a noiva saudara a luz). Ali 0divinorepousa. Durante seu sono, a alma conhece 0 arroubomistico fmal, descrito na ultima estrofe. 0 sono deCristo, como entende-loj Todos os criticos, calandosobre esse ponto, devem ter pensado apenas no noivodo Cantlco dos Canticos, que figura como "mirraentre os seios" - muito embor'a nao conste que esti-vesse dormindo. A unica hipotese que me parecesatisfatoria e a lenda medieval do Llnicornio, simbolode Cristo, que dorme sobre 0busto recendente deurna virgem. Contra esse pano de fundo, esse pechoflorido, que se guardou apenas para Ele, adquire urnsignificado espedfico. Em nos sa cena idilica em tor-no ao Deus que repousa, toda atividade se amaina,todos os participantes se calam: a divindade, a almahurnana, a natureza - esta Ultima figurada por cedrosbiblicos suavemente agitados pela brisa. 0 teor idilico

    19 Cf. 0 Canttco dos Canticcs (7. II): "Eu sou de meu amado emeu eo desejo dele".

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    da cena e realcado pela repeticao de y, que sugereurna ternura infinita: y yo le reaalaba / y el ventalle de

    dois quadros contradit6rios: os cedros do Libanoseriam altos a ponto de alcancar os torreoes? E os

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    cedrosaire daba. A palavra aire e repetida no primeiroverso da estrofe seguinte; parece que ainda estamosna mesma atmosfera tranqiiila, acalentados por urnabrisa suave, que talvez brinque com os cabelos doAmado enquanto aAmada os desembaraca, Mas naonos deixemos enganar: esse e el aire del almena (almena,termo de origem arabe, implica urn castelo medievale sua torre). Seria uma sugestao de guerra, ataquesubito, flechas hostis? Damaso Alonso nao deu poresse tom militar: para ele, a torre e urn refugio agra-davel, ao qual os amantes subiram para desfrutar abrisa que sopra suavemente entre os torreoes.??Oeixemos ao born senso dos leitores decidir entre

    20 Damaso Alonso, op. cit., P: 70, sugere que essa almena vem daEBloBa seBunda de Sebastian de C6rdoba, por sua vez provenientede uma ecloga de Garcilaso a 1 0 divino: nesse poema, 0 desespera-do Silvano, rechacado por sua Celia, visita uma torre: "AlIi en otrasnoches de veranohabia Bozado losfavores de amor de su Celia, del alma",e ali, sentado "entre almena y almena", recorda "las noches de verano alfresco viento". Mas apenas os dois ultimos trechos citados podem serencontrados no original de Sebastian de Cordoba, uma vez que afrase "alIi en ottas noches etc." nao tern base no poema: "Mis ojos elIUBarreconocieron, / que alBuna vez mire , de alIi contento, /los favores deamor que seme dieron" - em outras palavras, 0ugar em que se derama s cenas amorosas nao e a torre, mas urn lugar que 0amante padever da torte. De qualquer modo, a "almena" de "En una noche escura"nao tem absolutamente nada a ver com" entre almena y almena" na > '

    lirios da Ultima estrofe: estariam crescendo na torre?Nao, certamente os amantes estao ao pe da torre,entre os lirios, sob os cedros.

    Mas algo dessa torre vern golpear e ferir (herla):deve ser a flecha do amor, a flecha que transfixouSanta Teresa, na cena que a estatua de Bernini tornouvisualmente familiar. E claro que nossa cena nao deveser visualizada tao concreta e plasticamente, ou comefeito tao pungente; a flecha que golpeia a nuca des-coberta e apenas a brisa, que a acaricia suavemente,con su mano serena- sem por isso deixar de atingir seualvo e trazer consigo a morte gentil. Esse e 0mo-mento do extase e da aniquilacao (todos mis sentidossuspendia), daquele estado "teopatico" bern conhecidode todos os misticos e muitas vezes descrito comomescla de docura celeste e dor perfurante. 21 A mao

    > cena bern diferente que Sebastian de C6rdoba descreve. 0 dese-jo de encontrar 0elo perdido entre Garcilaso e San Juan de la Cruzforcou 0 historiador da literatura a enxergar uma semelhanca desituacoes que nao se ve nos textos.2I Cf. 0 poema de Crashaw"In memory of the Vertuous and lear-ned Lady Madre de Teresa": "Oh how ' * shalt thou complaine / Of asweet and subtile paine? / Of intollerable joyes?/ Of a death in which whodyes/ Loves his death, and dyesaBaine, / And wouldforever sobe slaine! /And l ives and dyes, and knows not why/ T o live, that he still may dy", ou"Oh, quantas vezes vos queixareis / de uma dor doce e sutil? / >

    suave e feroz sugere urna personificacao ousada, queentretanto nao se materializa: 0aire del almena nao se

    senslvel, que chegara a sua intensidade maxima nauniao mistica, agora recua; 0poeta estimulou os sen-

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    enrijece nurna figura de contornos definiveis (muitomenos na figura do alegre Cupido de Bernini), ele semantem como atmosfera vaporosa, a maneira deMurillo. E um agente intangfvel, imaterial, cuja ati-vidade imperceptivel conduz ao climax - enquantoCristo dorme. Esse ar que fere com serenidade seriaurn simbolo do Espirito Santo, que os comentarios deSan Juan de la Cruz comparam freqiientemente ao ar(como na relacao entre spiritus e spirare, "respirar")?Talvez nao possamos ultrapassar 0veu com que 0 san-to espanhol tanto vela como revela 0misterio da ativi-dade inativa, da atividade quase natural da divindade.E agora a Ultima estrofe, que reproduz acusti-camente a extincao gradual da vida, a morte peloarnor. Antes mesmo de chegar a estrofe, sabemos quetodos os sentidos estao em suspenso, inclusive osnossos: os sentidos antes solicitados (0 olfato pelasflores, 0 tato pelo ar) estao agora embotados; a vida

    tidos apenas para que conhecessemos 0 erotismoespiritual vivido pela alma mistica que abandona a vidasensivel, Essa condicao de priva'Yao ou steresis e bemsimbolizada pelos lirios imaculadamente brancos(azucenas), que se perfilam delicadamente contra aaurora, desprovidos de cor chamativa (ao contrarioda roma do Cantico dos Canticos). 0 mistico urn-brio Jacopone da Todi diz da alma mistica imersa nomar divino: en ben sf va notando / belleza contemplandola qual non ha colore ["ela nada em meio a docura, /contemplando urna beleza que nao tem cor"]. 22 Emnosso poema, a sugestao de urn nada beatifico, de urnauto-esquecimento gradual da-se pela combinacao dedois procedimentos: de um lado, vemos urn quadrode relaxamento fisico, que conduz a extincao psiquica(recline mi rostro, dejeme), de outro, um efeito acusticode sortilegio tranqiiilizante, produzido pela repeti-'Yaomonotona de sons. Quanto ao primeiro, el rostrorecline e inteiramente fisico; dejeme mistura 0 fisico eo espiritual; e deiando mi cuidado descreve apenas urnestado de alma. 0 aspecto psicofisico e ativo-inativoda experiencia nao poderia encontrar expressao me-lhor que esse ambivalente dejar, Quanto aos efeitosacusticos, notemos as duas variacoes do verbo dejar(dejeme e dejando), as duas de olvidar (olvideme eolvidado)

    > De alegrias intoleraveis? IDe uma morte em que 0moribundo IAma suamorte, e morre de novo, IE quisera ser morto assimparasempre?! IE vive e morre, e s6 viveIPara morrer novamente". 0martir nllstlco que "ama sua morte" nao deve ser confundido comRichard Wagner, "amante da morte", de quem falaremos em breve.Deve-se ter em mente que 0poema de Crashaw e uma louvacao aSanta Teresa, nao uma reencenacao de suas experieneias misticas.

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    e, em especial, a repeticao da rima em =eme (quedeme,olvideme, dejeme), que sugere uma descida gradual no

    e simplicidade, como se 0poeta sentisse que essaexperiencia, concedida apenas aos eleitos, e dotada

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    abismo do esquecimento. Com a cadencia final eprolongada de dejeme, / Dejatuio mi cuidado / Entre lasazucenas olvidado, sentimos uma transicao do ato deabandonar 0mundo para 0estado que dai resulta - 0esquecimento de si. Com a ultima palavra, olvidado,esse estado aparece como fato consumado, que dealgum modo ja se deu - de modo que, quando che-gamos ao termo, sabemos que ja 0 deixamos paratras. A alma jd se dissolveu em Deus. E esse jd, esseadverbio temporal que me parece sugerido pordeiando, e a contrapartida do ya explicito das primei-ras estrofes (estando ya mi casa sose8ada): do comes;oao fim do poema, vemos 0 progresso temporal daexperiencia mistica.

    San Juan de la Cruz foi capaz de transcrever aIinha ininterrupta, a parabola dessa experiencia, daprocura energica a auto-aniquilacao, da as;ao humanaa divina - tudo isso num poema curto, de oito estro-fes (talvez para sugerir que algo tao intenso nao podeser medido pela cronometria humana), um poemaem que 0misterio se apresenta com maxima clareza

    de uma limpidez acessivel mesmo as criancas.Ao contrario do mistico alemao Jacob Bohme,

    que recorre a neologismos para exprimir 0 inexpri-mivel, somando 0misterio das palavras ao da expe-riencia misteriosa, nosso poeta, seguindo a s6bria tra-dis;ao latina de toda a literatura religiosa em linguasromanicas, contenta-se com a provisao de palavras adisposicao, limitando-se mesmo a um numero redu-zido delas. Ao mesmo tempo, multiplica, por meiode repeticao, variacao e disposicao sintatica, a den-sidade de sua teia de relacoes semanticas, ressusei-tando as mem6rias (carnais e espirituais) latentes emtermos populares. Assim, muito embora nosso poemacontenha apenas palavras familiares e inteligiveis aosespanhois de hoje (com a possivel excecao do gali-cismo ventalle, "leque"), essas mesmas palavras foramdotadas de uma profundidade mistica que as faz pare-cer novas (muito embora sejam, com 0perdao dosenhor Shapiro, as mesmas de sempre).A mesmaim-pressao de profundidade mesclada a simplicidadeencontra-se na musica de nosso poema, que e facilsem ser trivial. Seu metro e 0 da lira, uma forma sole-ne, semelhante a ode, que entretanto se torna cantavelgras;as a predominancia de uma rima em cada estro-fe - no caso, uma rima feminina que acentua ainda

    2 2 Suponho que a mencao it alborada na estrofe t; (em contrastecom estando yo mi coso sosesada) prepara a sequencia temporal, achegada da aurora, quando os contornos do mundo estarao maisapagados.

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    mais a musicalidade da poesia espanhola; nem sequeras consoantes que ocorrem nessas rimas dissilabicas(quase sempre Ibis e Id/s aspirados e evanescentes)

    isso nao sera sacrHego?Nao sera que 0 subsolo pagaodo catolicismo sobe aqui a superficiei=Muitos de

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    destoam do carater vocalico da lingua, sugerindo, aocontrario, 0sopro suave do aire de l almena).~ia possivel dizer que, com a poesia mistica deSan Juan de la Cruz, a lirica renascentista espanholatoma distancia de seu carater de erudicao e ornamen-ta

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    Dante, 0maior dos poetas medievais, que substitui asalegorias atemporais daAmada perfeita pela imagemvivida de uma Beatriz que caminha, sorri e suspira,num poema que tern comeco, meio e firn-? (ao con-trario do "Extasie" de Donne, em que somos lanca-dos a uma alegoria atemporal pre-dantesca). A liricamoderna, mesmo a secular, deve a poetas religiososcomo Dante e SanJuan de la Cruz a forca da carne ed~ tempo que eles souberam conferir a descricao dossentimentos mais intimos.

    27 Essa diferenca foi sublinhada por Erich Auerbach em D ante alsD i ch t er d e r i rd i sc h en Welt (Berlim, 1929) [M edis:aobrasileira: Dante.P oe ta d o m un do se cu la r [Rio de Janeiro, 19971.

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    Passemos agora a nosso terceiro retrato poetico doextase; consideremos a cen!l da morte de amor (Lie-bestod) de Isolda ao final de Tristiio e Isolda, "dramamusical" de Richard Wagner .

    .A escolha pode parecer surpreendente a pri-meira vista, uma vez que 0texto deWagner da a im-pressao de exigir a associacao com a musica - arteque por definicao transcende as palavras. E e verda-de que, neste caso, 0 texto da nos sa explication de textedevera ser arrancado ao contexto em que deveriasempre imergir. Contudo, como 0proprio Wagnersempre incluiu 0texto de suas operas em suas obrascompletas, dando assim a entender que julgava suapoesia capaz de resistir por merito proprio, temosboa justificativa para analisa-Io criticamente. E talvez

    justamente aqui, no caso de urn poeta cujos textoscostumamos ouvir mesclados com urna musica ine-briante ou submersos nela, a sobria interpretacao

    Weise). Note-se ainda a sintese de sensacoes carac-teristica do extase, agora sublinhadas pela insisten-cia programatica de urn Edgar Allan Poe ou de urn

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    filologica das palavras possa ser mais necessaria. 28o cenario e urna falesia breta a beira-mar, ondevemos Isolda junto ao corpo morto de Tristao, queencontrou tarde demais. Em seu monologo, dirigidoa Marke, Brangane e Kurwenal, seguido'de sua mor-te e transfiguracao, ocorrem variacoes sobre os ter-mos da cena de amor do segundo ato; 0monologo ecantado sobre a mesma musica, 0melodioso motivoda Liebestod, desenvolvido orgiasticamente pelos ins-trurnentos, como contrapartida a monodia aspera domotivo da nostalgia (Sehnsucht). [Ver pp. 26 - 3 I]

    E aTristao morto que Isolda moribunda vai seunir, num extase que marca a separacao final entrecorpo e alma. Isolda sente 0 estado transfiguradode Tristao, sente a luz que emana de seu olho aindaaberto (Immer li~hter / wie er leuchtet), 0perfume queseus labios ainda exalam (wie den Lippen / wonniamild / siisserAthem / sarifi entweht), a musica que res-soa de seu peito ainda palpitante (Hare ich nur / diese

    Baudelaire.i? Segundo a ideologia wagneriana do"erotismo santificado", 0amante morto e apresen-tado nao apenas como sobrevivente a morte, mascomo urn santo, cujo corpo, contrariamente aosprocess os naturais, adquire qualidades miraculosasque fazem dele urn deleite para os sentidos. 0 pro-prio Wagner percebia que essa filosofia seria dedificil aceitacao por parte da plateia, pois Isoldasente-se constrangida a pedir a corroboracao deseus companheiros (sah't ihr's nicht?), exatamentecomo no poema de Donne. Os versos 7-24, urntanto tlirgidos, dao lugar a verdadeira poesia quan-do Wagner faz I~olda descrever a cancao que ela, eela apenas, ouve do corpo de Tristao (Hare ich nur/ dieseWeise). 0 extase mistico e precipitado, como

    28 Em seu ensaio sobre Wagner in L ei de n u nd G ro sse d er M eis te r (Ber-lim, 1935), ao qual recorrerei extensamente na discussao quesegue, Thomas Mann cita a mesma passagem como exemplo demestria, de equivalente germaruco da poesia dos parad i s a r t! f tc i el sde Baudelaire e Poe.

    29 Os recursos sinesteticos sao tambem 0 fundamento da ideia, taocara aWagner, de uma obra de arte total (Gesamtkunstwerk), a qualtodas asartes deveriam contribuir. Essaideia e atacada porThomasMann como "mau oitocentismo": como se a adicao quantitativaFossecapaz de urn efeito amplificado! Contudo, 0fato e que qual-quer missa catolica e uma Gesamtkunstwerk e que j a os primeiroshinos de Ambrosio tendem nessa direcao (cf. meu ensaio "Classicaland Christian Ideas ofWorld Harmony: Prolegomena to an Inter-pretation of the Word Stunmunq (1)",in Traditio 2, 1944).

    e caracteristico em Wagner, nao pelo olho quedepende da luz,30 mas pelo ouvido que escuta urnamelodia sobrenatural - pela musica, radiante e

    seja, da vontade), sugerem suspiros de alivio edealegria, conforme a alma imerge no mar da auto-aniquilacao, Na sequencia que comeca com a duvida

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    dolorosa, forte e serena ao mesmo tempo, quetransfixa Isolda como urn dardo e a envolve comouma nuvem (in rnich drinot / [... ] / ur n mich klinot? /rnich urnwa11end).As faculdades de Isolda embotam-se gradualmente, de modo que ela nao conseguemais distinguir as fronteiras entre os sentidos: sindes Wellen / sarifter Liifte? / Sind es Wooen / wonnioerDiifte? E quando eIa pergunta soll ich athmen, / sollich lauschen? / 5011ich schliiifen [... ]?, notamos tam-bern 0 recuo gradual da vontade, por mais que apropria interroga9ao mostre que a razao ainda naose extinguiu. Mas logo se dara urna curiosa desinte-gra9ao sintatica, que faz eco ao relaxamento davontade: os infinitivos destacam-se de sol1ich e aca-bam por parecer semi-independentes, como se naofossem mais questoes impostas pela consciencia,mas efusoes liricas livres- ao mesmo tempo quesoam impessoais, sugerindo urn processo semagente: ertrinken - / versinken. Esses infinitivos, par-cialmente libertos da tutela de sollen e wollen (ou

    diante da realidade do milagre (Hiire ich nur / dieseWeise?) e da natureza dos fenomenos milagrosos(sind es Wellen / [... ] / Sind es Wooen / [... ] ?), e queconduz as perguntas que reveIam a gradual desinte-gra9ao da vontade (solI ich [... ] ?) e aos suspiros delibertacao (ertrinken - / versinken), Wagner descobriuurn recurso inimitavel de onomatopeia sintaticapara exprimir os ultimos esd.gios da uniao mistica.

    Entretanto, ainda que haja aqui, como em SanJuan de la Cruz, urna atmosfera de todos los seutidossuspendidos, 0 extase que Wagner quer descrever difereem urn ponto essencial. Auniao ansiada por Isolda naoe mais urna uniao direta com Tristao (que se perde devista apos 0 verso 32), mas com os elementos em queele se dissolveu: 0perfume, 0 sopro, os sons excitamem Isolda 0 desejo de uma mesma dissolucao (michverhauchen) nesse mesmo meio (note-se como a pre-posicao ur n sugere urn ambiente), figurado aqui pelomar: untertauchen / [... ]/ In desWonnerneeres/ wooendemSchwall / [... J / ertrinken - / versinken.31Estamos diante

    30 0 proprio Wagner escreveu (apud Thomas Mann): "Tenho aimpressao de que 0olho nao e suficiente como orgao de percepcaodomundo".

    3IThomas Mann assinalauma passagemno dialogo dos amantes emLucinde,de Friedrich Schlegel, que parece antecipar a atmosfera deTr is ti io e I solda e que Wagner deve ter lido: "Ah, nostalgia eternal -Mas enfim 0anseio esteril, 0vilofasdnio do dia devera seafundar >

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    da natureza. No sistema wagneriano, 0espirito domundo, lgurado aqui como "sopro do mundo" (Welt-Athem), identifica-se ao conjunto do universo (dasAIl):

    da nocao panteista de fusao no universo de duas almasque se consomem de anseio e nostalgia. Nas palavrasde Isolda - que ouvimos em voz de contralto profun-

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    ja nao e 0espirito de Deus que sopra sobre as aguas,mas sim Deus s i ve na tura [Deus ou a natureza]. Esse Allda natureza, como aparece no climax da visao extatica,e 0verdadeiro noivo de Isolda. Os partidpios woaen-d em , t on endem , wehendem , com seu teor onomatopaicoe ritmo dactilico, acrescentam seu impacto a evoca-s;ao do caos de movimento infinito. Vimos que, nopoema espanhol, se alcancava urn efeito poetico comtermos e expressoes populates; Wagner, porem, vale-se da natureza da lingua alema e acumula combinacoese compostos incomuns (woaendem Schwal l, Wonnemeer,D'! ft - Wel len, para nao falar do tremendo hapax Welt-Athem, que enche os pulmoes de qualquer alemao) afim de espelhar lingiiisticamente a abundancia de for-mas em mutacao incessante. >Enquanto San Juan de laCruz explorava a genufna riqueza vocalica da linguaespanhola como convite a nos abandonarmos aossentimentos serenos do poema, Wagner reforca a na-tureza consonantal do alemao por meio do recursomedieval da aliteracao (in des W elt-A them s I w eh en -dem All - os I al oclusivos tern um sabor consonan-tal), como se quisesse retratar 0dinamismo de umuniverso ttirgido e pulsante. Esse efeito de pulsaeaoe reforcado ainda mais pela multiplicacao insistente

    do - nao ha nenhuma mencao de movimento ascen-dente (como na apoteose final de 0 ho landes voador ),mas sim de descida para 0 oceano da auto-aniquila-yao. Apenas a parte orquestral, que se une a voz deIsolda na Ultima nota (um pianissimo que acompanhaLust), faz pressentir uma apoteose e uma ascensao=-como se'0cumulo da liberdade so pudesse ser con-quistado com a descida as profundezas.

    Esse oceano nao e aquele vazio descrito porJacopone e por outros misticos (inclusive San Juande la Cruz): um vacuo criado pela alma a fim de queDeus venha preenche-la. Ele surge como uma massaturbulenta de ondas, perfumes, sopro (I n d esW onn e-meeresI wopetulem S ch all, I in d er D '! ft- W e lle n I to ne nd emS ch all, I in d esW e lt- Ath em s I w eh en dem A ll), governadanao por um Deus pessoal, mas pelas forcas violentas

    > e se apagar, e uma grande noite de amor se fara sentir eterna-mente". Esse trecho, supostamente de urn dialogo em prosa, j a epoesia, mas Wagner sublinhou seu carater poetico por meio daonomatopeia sintatica. A transicao gradual dos infinitives, que passam de interrogacoes a exelamacoes, e antecipada na cena de amordo segundo ato: "W ie es Jassen / wie sie lassen / diese W onne! / [ ... ] /o bn e W iih ne n / s ar ifte s S eb ne n, / o hn e B an ge n / s iis s V er la ng en ", ou "Comocapturar / como abandonar / essas delicias! / [ ... ] / sem se iludir /suave ansiar / sem temer / suave demandar".

    das rimas reverberantes que pontuam a longa oracaodos versos 26-50 e que, de certo modo, servem tam-bern para fazer eco a intensidade latejante dos senti-

    chegamos (ou quem sabe antes) ao olvidado final- ea voz so pode abaixar-se. Mas aqui, com Wagner,devemos deixar a alma no umbral de novas experien-

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    mentos de Isolda, essa alma que busca a liberdade,martelando contra os muros de sua propria indivi-dualidade, alem da qual pode ouvir os vagalhoes dasforcas cosmicas que prometem Iibertacao, 0 dina-mismo da dissolucao que encontramos no poema deWagner, a descricao do esforco apaixonado para seperder a propria identidade contrastam fortementecom 0 controle tranqiiilo que molda 0 poema e.spa-nhol, no qual a alma pode permanecer individualize-da; da mesma forma, devemos distinguir entre auniao com as forcas impalpaveis do universo e a uniaocom um Deus pessoal - na verdade, ambos os con-trastes sao interdependentes.

    Chegamos assim aos dois ultimos versos, unbe-wusst - / hiichste Lust!, nos quais encontramos umaequacao epigramaticamente isolada (soldada pela ri-ma) de dois termos que formam a base da filosofiawagneriana (que nao e a de Descartes ou Kant, massim a de Schopenhauer): 0prazer (Lust) maximo estana libertacao da consciencia e da individualidade, istoe , no nirvana. Mas a palavra Lust, que se ergue inespera-damentesobre as notas graves de ertrinkea - / versinken,traz apenas a expectativa de urn prazer. No poema espa-nhol, todas as expectativas ja se realizaram quando

    cias ou paraisos timida e hesitantemente entrevistos:unendliche Werdelust ["infinito prazer de devir"] quepermanece apos 0final do poema.

    Notemos ainda que unbewusst - / hocbste Lust! euma variacao significativa de uma passagem do due-to de amor do segundo ato: ein-bewusst: / [... ] hochsteL iebe s-Lu si l . E in -bewuss t ["uni-consciente"], que se dizdos dois amantes, e substituido por unbewusst ["in-consciente"], predicado de Isolda apenas; e hochsteLiebes-Lust ["maximo prazer do amor"] torna-se ape-nas hochste Lust ["maximo prazer"]. Por meio desseparalelismo (reforcado pelo mesmo motivo musical),Wagner insinua que 0extase da morte representa aconsumacao do extase amoroso: pois 0amor, comoo segundo ato 0apresentava, associava-se a noite e amorte (na mesma cena aparecia a expressao Liebestod,morte de amor) e definia-se como extincao da indi-vidualidade, extincao inalcancavel a luz do dia, quecontorna com nitidez as individualidades distintas,mas sim durante a noite de amor, que as reune: ewiaeinia, / unaetrennt ["sempre unos, / indissociados"],ohne Nennen, / ohneTrennen ["sem nome, / sem cisao"].Amorte representa apenas urn processo mais radicalde dissolucao da individualidade: amorte e uma noite

    de amor eterna. Se, emWagner, a ideia de amor im-plica 0anseio pela morte, assim tambem a mortetern urn teor de extase erotico. 0 uso da mesma

    , Para os Padres da Igreja, 0amor erotica era ape-nas urn reflexo vil do amor a Deus, mas paraWagner,freudiano antes de Freud, 0 erotismo e a fontede

  • 5/10/2018 SPITZER, Leo - Tr s poemas sobre o xtase

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    musica para as duas cenas sugere que, na primeira, aenfase recai sobre a morte-no-amor e, na segunda,sobre 0amor-na-morte - a expressao Liebestod e am-bivalente. Poderia mesmo ter urn terceiro sentido,de "morte do amor", adeus ao amor: pois a Isoldamoribunda nao esta se libertando das cadeias domortifero instinto sexual? Quem sabe se 0Wagnerdo periodo de Wesendonk.V incapaz de encontrarrepouso da obsessao passional, nao teria encarregadoIsolda, essa valquiria dos sentidos, de morrer umamorte vicaria p or ele ?

    Ja rnencionamos varias diferencas de detalheentre os poemas espanhol e alemao, vemos agora quesao diametralmente opostos em seu tratamento doamor. Para glorificar 0erotismo, Wagner eleva-o aurn novo misticismo; San Juan de la Cruz glorifica(isto e , torna efetiva) a uniao mistica e espiritual aotraze-Ia para a carne. 0 universo de Wagner e pan-teista e pan-erotico; 0mundo de SanJuan de la Cruze orientado pelo amor divino.

    todos os tipos de amor.J' Contudo, nao se pode dizerque 0panteismo erotico deWagner tenha raizes emurna confianca saudavel e ingenua nos sentidos, comoacontecia entre os gregos, em Goethe ou em WaltWhitman: ele e tingido de melancolia e pessimismo.Wagner inspira-se no desejo de submergir 0fardo davida e da individualidade no amor e na musica deamor-morte. Jamais cantaria asfolhas da relva. 34 Suasflores saoj1eu rs du m al opiaceas, em contraste com oslirios de San Juan de la Cruz e as violetas de Donne.

    32 Em 1852, exilado na Suica,Wagner apaixona-se por MathildeWesendonk, esposa do banqueiro que apoiava 0 compositor, ededica a ela cinco Lieder. [ N . T .)

    33A mesma atitude q~e Santo Agostinho denomina amabam amaree que ele recusara como aberracao juvenil e 0 cerne do conceitowagneriano de amor: a propria formulacao amabam amare compa-rece, longe de qualquer conotacao pejorativa, na primeira versao(em prosa) de Tristao e Isolda: "Kiinnte ich die Liebeje nicht mehr liebenwollen?" ["Pudera eu nao querer mais amar 0 arnor!?").34 Deve-se reconhecer, entretanto, que WaltWhitman nao deixoude sacrificar no altar do amor-morte deificado; cf. 0poema "Scen-ted Herbage of My Breast": "[... ]you [the leaves) make me think c fdeath. / Death is beautiful flom you (what indeed is / beautiful exceptdeath and love?). / Oh I think it is not jor life I am chantino here/ mychant c f lovers. / I think it must bejor death . .. / Death or life I am thenind!lferent, my soul/declines toprifer (I am not sure but the / hiOh soul c flovers welcomes death most)", ou "Voc~s[asfolhas)me fazem pensar namorte. / Vinda de voces, a morte e bela (e de resto 0que e / belosenao amorte e 0 arnor?). / Oh, nao e para a vida que-canto aqui/meu canto de amantes. / Deveser para amorte ... / Morte ouvida, >

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    Em termos esteticos, deve-se dizer que a formapoetica escolhida por Wagner para exprimir sua filo-sofia e tao convincente quanto a de San Juan de la

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    > que diferenca faz, minha alma / declina escolher (talvez / a almaaltiva dos amantes acolha melhor a morte)". De resto, a coinciden-cia de datas e surpreendente: 0 poema de Whitman foi escrito em1860, a Invitation de Baudelaire e 'Iristiio e Isolda sao de 18n.

    Cruz (e decerto a musica dionisiaca do mestre ale-mao conquistou mais almas que qualquer artista dequalquer nacao). Porem, sob a forma artistica dapoesia de Wagner (e sob a "melodia infinita" de suamusica), acha-se a natureza amorfa de sua filosofia.Pois 0 desejo de escapar a individualidade, seja pormeio do amor, da morte ou da musica - tendenciaque levou a resultados tragicos na historia alema dosseculos XIX e xx -, e sempre urn desejo essencial-mente amorfo e niilista de sucumbir ao caos do uni-verso. Em contrapartida, a filosofia mistica que pre-serva e purifica a personalidade, que so se aniquiladiante do Criador, representa urn triunfo da formaintima sobre 0caos do mundo.o climax do desejo e representado em nossosdois poemas pelos dois verbos reflexivos, mich ver-bauchen e dejeme: e caracteristico que 0primeiro serefira ao processo meramente fisico de evaporacaoe 0segundo, a urn ato deliberado da vontade de urnser moral.

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