sonetos em conflito - …static.recantodasletras.com.br/arquivos/5545155.pdfdesacertos, amarguras,...

86
SONETOS EM CONFLITO Marco Aurelio Vieira

Upload: dinhtu

Post on 04-Oct-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

SONETOS EM

CONFLITO

Marco Aurelio Vieira

Belo Horizonte, agosto de 2015.

APRESENTAÇÃO

Nasci em 1969, na cidade do Rio de Janeiro, mas mudei-

me para Belo Horizonte ainda bem criança. Desde muito cedo, a

literatura me arrebatou, graças à influência de minha avó, uma leitora

voraz, que me contava as histórias que desnudava em seus livros de

maneira tão apaixonada, que me proporcionou viagens mágicas

inesquecíveis.

Quando resolvi aventurar-me nas escritas, pretendia

escrever romances e contos. Mas ao ler artistas consagrados da poesia

brasileira e portuguesa, eu me encantei definitivamente. Nos poemas de

forma fixa, em especial os sonetos, construí minha morada, por ser

também apaixonado por música. Sim, pois compondo versos sob os

rigores da métrica e do ritmo, eu me sinto muito próximo da melodia.

Desenvolver toda uma ideia dentro de quatorze versos com o mesmo

número de sílabas poéticas e compassos coincidentes me seduz

sobremaneira.

Neste trabalho, apresento alguns sonetos que cantam

desacertos, amarguras, desamores, enfim... conflitos diversos que fazem

com que viver não seja assim tão banal como uma ensolarada manhã de

domingo.

O Autor

PREFÁCIO

Não é que ele tenha medo da chuva. Não, não é isso. O

problema é que, quando chove, ele também se liquefaz e todos os seus

sentimentos se misturam, em um amálgama de recordações e visões de

sonho que quase sempre levam às lágrimas, o afogam num abissal de si.

E as torrentes que inundam seu peito são mais violentas que a chuva

que, eventualmente, possa vir a cair lá fora, enquanto ele se debruça em

silêncio, sobre a lauda em branco.

Dizem que ele é um museu, uma Torre do Tombo mineira,

na qual preciosos sonetos são escritos em papel apergaminhado, pouca

tinta, e guardados em gavetas com puxadores de marfim. Sua

miscelânea passeia do riso estridente à dor insustentável, há sombras e

luzes em seus olhos, ai, essas janelas que roubam a alma do mundo e a

aprisionam feito gênio em garrafa, nos versos do último terceto. De

alma e de carne: sua chave de ouro.

Guimarães Rosa, Adélia Prado, Carlos Drummond de

Andrade, Rubem Alves, é como se Minas não cansasse! Também é ele

dotado dessa mesma substância etérea que se impregna no espírito de

todos que falam através da tinta, da pena. E seus versos nos seduzem,

como que escritos ao som dos folguedos, congados e cavalhadas. Às

vezes pintassilgo-mineiro, de andamento rapidíssimo e estrofes longas;

outras de gorjeio tímido e mimoso, todo saí-azul.

Como o velho Chico, ele também nasce nas Gerais e, por

muitas vezes, deságua no nordeste, onde posso beber e lavar-me nas

mesmas águas daquela chuva, daquelas lágrimas, e junto a ele chorar,

emocionado, embevecido de tanto sentir. É como se ele me arrancasse

das amarras que me prendem ao mundo dos vivos e me carregasse por

caminhos sutis, até a morada dos deuses. E lá, tomado do mais

assombroso encanto, experimento a liberdade ainda que tardia de tê-lo

aqui, ao alcance de meus sentidos e sentimentos mais elevados.

Emerson Braga

SUMÁRIO

AS CONFISSÕES DA INVEJA ................................................................... 11

O BRAMIDO DA IRA .................................................................................... 12

AZÁFAMA.......................................................................................................... 13

O INSETO (PLAGIANDO KAFKA) …............................................ 14

O FANTASMA ................................................................................................ 15

DESILUSÃO …................................................................................................ 16

VAZIO ….......…................................................................................................ 17

PESADELO CIRCENSE ..........................................................................…. 18

BAILARINO …................................................................................................. 19

VULTOS PÉTREOS ...................................................................................... 20

O POETA E O FOGÃO A LENHA ............................................................ 21

A CHAMA E O VENTO ............................................................................... 22

ANDORINHA ….................................. ..................................................... 23

O HOMEM …...................................................................................................... 24

O SOLITÁRIO .....................................................................................…......... 25

DESABAFO DE UM REVOLTADO ......................................................... 26

A IMPARCIALIDADE DA VIDA …......................................................... 27

O RÉPTIL E O CARROSSEL ...................................................................... 28

PÁSSARO CATIVO .......................................................................................... 29

ENCANTAMENTO ........................................................................................... 30

A ESCULTURA ................................................................................................. 31

CENSURAS......................................................................................................... 32

ESCURO ….......................................................................................................... 33

O DESTINO …..................... ........................................................................... 34

CAVALO ALADO ........................................................................................…. 35

FOME …............................................…......................................................... 36

SANHA URBANA ............................................................................................ 37

O VULTO…........................................................................................................... 38

O HOMEM SEM HISTÓRIA ......................................................................... 39

O VINGADOR ................................................................................................... 40

MOMENTO DE ESPERA .............................................................................. 41

BEM VINDOURO ..................................................................................…...... 42

SOMBRIO DEGREDO .................................................................................... 43

PÉTALAS PARTIDAS ................................................................................... 44

A LIBERTAÇÃO .............................................................................................. 45

O BRAÇO E AS ASAS ..............................................................................…. 46

CÉU NOTURNO …..... ….............................................................................. 47

FLOR SECRETA …................................................................................... …. 48

ESTRANGEIRO DO MUNDO ................................................................... 49

O CANTO DO PÁSSARO CEGO ........................................................... .. 50

ESTRELAS INCANDESCENTES ....................................................... …. 51

EM CENA....................................................................................................... 52

O LOBO NO VENTO …................................................................................. 53

DUAS COISAS ….............................................................................................. 54

NOTURNA ......................................................................................................... 55

TARÂNTULAS …........................................................................................... 56

A PRISÃO …...................................................................................................... 57

O AMARGOR DA MANSIDÃO ............................................................... . 58

O RISO E A PEDRA …................................................................................... 59

TRIBOS …........................................................................................................... 60

BABEL . …........................................................................................................... 61

DISPARADA …................................................................................................ 62

PULGAS E SANGUESSUGAS ................................................................... 63

A BOLHA DA FELICIDADE ..................................................................... 64

CAMINHO DE ROSAS ................................................................................. 65

O CULPADO ................................................................................................... 66

O CÁRCERE …................................................................................................ 67

O BÊBADO …................................................................................................... 68

A DERROTA …................................................................................................. 69

CARDUME …...................................................................................................... 70

PASSARINHO ….............................................................................................. 71

O DISFARCE …................................................................................................... 72

A PRAIA DE AÇÚCAR .................................................................................. 73

EMBUSTE …....................................................................................................... 74

PÓ …....................................................................................................................... 75

NA ESTRADA …............................................................................................... 76

BRUTALIDADE OU ELEGÂNCIA ........................................................... 77

O ARQUITETO DE BRINQUEDO ........................................................... 78

CENAS DESFOLHADAS .............................................................................. 79

O BANDIDO ....................................................................................................... 80

INSTINTOS PREDADORES ....................................................................... 81

ALGEMAS PÁSSARAS ................................................................................. 82

FÉ CONVULSA.................................................................................................. 83

CONFUSA CARA ............................................................................................ 84

INGRATA …....................................................................................................... 85

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

AS CONFISSÕES DA INVEJA

Quantas dores me causam triunfos alheios...

E quanto ódio em refluxo nos nervos golfados...

Dilaceram-me a alma brutais tiroteios,

quando alguém faz da vida uns acervos dourados...

O furor me afogando em violentos ondeios...

Arde em mim o amarume dos dons torturados,

mas as chagas no corpo me servem de arreios

na labuta à procura de mais fracassados...

Vou seguindo nos vales das sortes inglórias,

arrastando destinos por sórdidas rotas,

penetrando meu gládio em sombrias histórias...

Faço pouso em sinistras e lúridas grotas

a tramar as ciladas que roem vitórias,

inda que isto me custe entregar-me às derrotas.

11

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O BRAMIDO DA IRA

Estoura no peito o bramido da ira;

lacera-se víscera, a fera árdua, dura;

retesa-se músculo, pesa e perfura;

dessangra-se cérebro, o insano delira.

Com pedra afilada, estilhaça, tortura;

e arranca em metal de sua áspera lira

o som dissonante que aos nervos regira,

enquanto ensurdece o pensar que supura.

Ao bruto alastrar do combate, revira

e abrasa as artérias com fachos de agrura;

a fraca esperança, nas chamas, expira.

E frente ao poder de um instinto, a criatura,

enfim, é tomada pelo ódio que a inspira

cravar em seu tino o punhal da loucura.

12

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

AZÁFAMA

Os pensamentos movimentam-se aos compassos

enlouquecidos da rotina, vil roteiro;

na construção deste alicerce, me amordaço,

não pondo em riscos o futuro alvissareiro.

Os sentimentos nus se esgarçam sob os passos,

enquanto engulo meu desejo verdadeiro

nesta jornada alucinante que ora traço,

me pondo à venda por mais lucro, mais dinheiro.

Assim eu sigo, erguendo a vida pelos braços,

nenhum descanso, a me esgueirar de algum morteiro

que porventura bombardeie meu espaço.

Na insana lida em que me prendo, despedaço

eu vou secando, vou perdendo o paradeiro

do bom de mim, de quando livre destes aços.

13

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O INSETO (PLAGIANDO KAFKA)

Pois saibam que hoje amanheci estranho inseto;

antenas, patas e algo mais que não sabia,

as coisas todas do meu quarto, então, eu via

ponta-cabeça, pois estava preso ao teto.

Apavorado, decidi ficar bem quieto

a me lembrar do que vivi ontem de dia:

ah, sim, o emprego me tiraram, covardia!

Do jeito mais desrespeitoso, sem afeto.

Prefiro ser este bichinho quitinoso,

marcando passos com o líquido viscoso

a com a tralha desumana me juntar!

É tanto medo, desespero, só fugindo!

Espera um pouco! Estou agora descobrindo:

é que o “algo mais” são duas asas, vou voar!

14

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O FANTASMA

Eu assanhei, eu assombrei o meu fantasma,

eu o lancei disperso ao ar pesado, denso

das agonias infernais das crises de asma,

bruto torpor, torpe sofrer tão crasso, intenso...

Emanações de fel, mefítico miasma

atraem ratos para mim, um bando imenso,

que roem, bravos, minha sobra boba, pasma;

eu já não sei concatenar, eu já não penso.

E meu fantasma a revoar pelo recinto

vinga de mim e me aprisiona em labirinto

escuro, frio, sem saída, sem um fim.

Mas, ó fantasma, tu pertences ao meu ser,

nós precisamos, na harmonia, conviver;

pois me liberta e nunca mais te solto assim.

15

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

DESILUSÃO

Sou resquício de um homem jogado no mundo,

que lastima à penumbra de um quarto alugado;

nos ouvidos, retumba amargor tão profundo

da ferida inflamada de um plano frustrado.

Tento ver pelo espelho algum traço oriundo

da voraz juventude em heroico passado,

quando o sonho fluía bem forte e fecundo,

rebrilhava em meu dia feliz e dourado.

Mas não vejo vestígio daquele menino,

que perdeu-se doente em sombrio destino.

Contorcendo-se em dores, a desilusão...

Esta sanha, esta lida esvaída no escuro,

cega treva que suga o vigor do futuro...

Ardem tanto estes talhos em meu coração!

16

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

VAZIO

Eu já suguei da vida todo o sumo

e não encontro mais nenhum dulçor

em frutas rubras, beijos meigos, flor,

sequei seus gostos no álcool, noite, fumo.

Repito, cego em tédio, o mesmo rumo

seguido em tempos foscos, já sem cor,

de quando eu era um bom navegador,

mas velas gastas não possuem prumo.

Partido, sem as crenças lindas de antes...

Contando meus pulsares, meus instantes...

Lançando, aos ventos, planos de papel...

Rastejo pelos campos ermos, frios

dos meus sentidos baços e vazios.

E acima destes campos não há céu.

17

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

PESADELO CIRCENSE

Assisto, opaco, ao espetáculo de absurdos,

às cenas cinza deste circo-ardil nefando

e não se assustam mais os meus sensores surdos,

que aos poucos foram se abobando e se apagando.

Então me lançam, de repente, fogo em dardos

a me atingirem corpo e mente, bem no fundo...

E sangro, queimo, preso à jaula de leopardos...

Também me espanca o domador feroz, rotundo...

Vilões, sicários disfarçados de palhaços

com as feições plastificadas de cansaços

trituram, rudes, os meus ossos. Não há dor.

Nenhum ardor no corpo, n'alma, eu me entreguei

ao pesadelo desta vida assim, sem lei.

Eu vou dormir e não me acordem, por favor.

18

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

BAILARINO

As minhas ilusões enamoradas

sorriam às singelas descobertas...

Levavam minhas ânsias mais incertas

aos banhos de solares madrugadas...

As minhas ilusões apaixonadas

faziam desatentos meus alertas...

As portas e janelas bem abertas

às tantas ventanias desvairadas...

E eu, feito bailarino ensandecido,

pairando, aos passos leves, distraído,

não via que rodava em planos tortos...

Rodava e me envolvia e me entrançava...

Todo amarrado em sedas, eu bailava...

Até cair-me, exausto, em sonhos mortos.

19

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

VULTOS PÉTREOS

Meu vulto se mistura em outros vultos

ao longo da jornada ensandecida,

no crespo emaranhado dos tumultos,

parado rumo à treva genocida.

Estéril, arraigado em chãos incultos,

na férrea busca de ares, sóis de vida,

sou vulto, pedra humana urbanecida

entre outros pétreos vultos insepultos.

Em meio a alheios vultos sofro o peso

de ser, para manter-me ereto e ileso,

petrificado vulto de amargura...

Ai, desespero mudo, eu vulto horrendo

sentindo o delicado meu morrendo

de sede, ao fundo da carcaça dura.

20

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O POETA E O FOGÃO A LENHA

Pairando no tempo, contemplo saudoso

o velho fogão que cozia com lenha

as tantas delícias, às brasas, garboso...

Poesia melhor? Eu não creio que tenha.

O leite fresquinho, direto da ordenha...

As carnes e os doces no tacho... Que gozo!

E a tela dos tempos de paz se desenha

no meu coração sorridente e teimoso...

“Escuta o que tenho a dizer, meu amigo”...

Meu Deus! O fogão ora fala comigo!

Ó, diz que te aflige, perdoa-me o espanto!

“Cuidado com versos que lanças na vida!

Também eu os fiz, aquecendo a comida

e amargo o abandono, esquecido num canto”.

21

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

A CHAMA E O VENTO

Eu sou chama frágil de vela que dança,

girando à mercê dos embalos do vento

que invade violento o recinto esperança

da casa empoeirada do meu pensamento.

Sou chama de vela que oscila a pujança

da cor que rebrilha no brio nevoento,

distende-se, amplia-se aos ares, balança,

mas quase se apaga sem força e sustento.

Eu, chama oscilante de vela, sem rumo,

que treme inclinada tentando seu prumo

no vento que surra seu lastro e o conduz.

Ó, fechem janelas e portas, suplico!

Pois já não suporto este sopro impudico

do vento covarde que suga-me a luz.

22

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

ANDORINHA

Quem cortou as asinhas da andorinha

a flanar, mutilada, em meu canteiro?

Ai, ai, ai! Tenta o voo e desalinha,

não vai mais alcançar o abacateiro!

Dá pulinhos, caçando o paradeiro...

Indefesa, no solo se definha...

Era seu o esplendor do céu inteiro...

Que saudade do vento em sua asinha...

Ela não conseguiu fugir, perdida,

do brutal caçador voraz, malino

de estilingue às pedradas; tirania!

Andorinha esvoaçava em minha vida,

mas feriu-se às pedradas do destino!

Pobrezinha andorinha da alegria...

23

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O HOMEM

Esse homem que lamenta sobre cacos

dispersos, espalhados de seus sonhos,

que débeis, flébis, mancos, bambos, fracos,

não suportaram luz de sóis medonhos...

Esse homem debruçado nos opacos

matizes de seus dias enfadonhos,

que enterra mortas horas em buracos,

crateras ocas de amanhãs tardonhos...

Esse homem que se volta para trás

e observa a trilha seca percorrida

e o vento a desfazer o rastro seu...

Diria ao homem que ficasse em paz,

que se floresce a trilha enquanto há vida!

E o salvaria... Se ele não fosse eu.

24

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O SOLITÁRIO

Observa, pelo espelho, o aspecto triste...

Aos talhos das navalhas de carências,

acostumou-se a, sob o medo em riste,

comer, da solidão, féleas essências.

E no desfile lento a que ele assiste

das próprias perdas, nulas experiências,

dos restos seus, das dores, ais, desiste

e entrega a força às águas de dolências...

E amarga seu destino temerário,

perdido, desprovido de algum nexo,

na ardência das angústias abrasivas...

Na fuga, afã de um gozo solitário,

expele, então, sementes do seu sexo

no estéril chão de suas perspectivas.

25

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

DESABAFO DE UM REVOLTADO

Porque jamais bebi da seiva da brandura...

Porque conheço a vil nudez do indelicado...

Porque senti, do injusto, a ardência da ranhura...

Porque entalhei, na carne, a marca do enjeitado...

Meus órgãos berram da ferida que supura

na enferma essência, no meu resto fatigado,

a transfundir-se no semblante de amargura

e a latejar-se nestes vincos, neste estado.

Que não me venham com alguma reprimenda,

pois eu bem sei que, para muitos, vida é prenda,

de tão felizes, não suportam dor alheia.

Eu não condeno as esperanças ledas, lindas,

desejo mesmo que lhes sejam (sempre!) infindas,

mas não procurem adoçar-me o fel das veias.

26

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

A IMPARCIALIDADE DA VIDA

Não chores pela vida que te aflige, moço!

Não sabes que ela cumpre seu destino frio,

cravando cada sina, dia e noite, a fio,

nos âmagos dos seres, pele, carne e osso?

A Terra não lamenta ver-te neste fosso!

O abutre mata a fome frente a infértil rio

e, farto, eleva ao sol o esvoaçar sadio...

A Terra extrai, do podre, o vivo em novo esboço!

Entende tu que o mundo, ao teu chorar, é mudo...

Entrega todo o tempo ao teu viver mortal

e faze teu percurso, seja como for...

Porque, indiferente a tudo, tudo, tudo,

a vida, cegamente, segue em espiral

e alheia à borboleta morta, nasce a flor.

27

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O RÉPTIL E O CARROSSEL

Na austera luz do dia dos sofridos,

rasteja o rude réptil sobre a lama,

secando pele, crosta, seca escama,

ao sol que ri macabro e lança ardidos.

No vivo carrossel dos escolhidos,

o réptil sente sede e não reclama,

matá-la-á, de noite, em dura cama,

nos prantos desses tantos seus doridos.

E na manhã seguinte, lambe o chão,

carrega o enriquecer do algoz patrão.

Arrastos engrenando o carrossel...

Mas ele tem o seu momento céu...

Copula, produzindo mais iguais...

O carrossel precisa de animais.

28

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

PÁSSARO CATIVO

Eu sou clandestino da vida flanando

por sobre o concreto do medo profuso,

domado a cumprir o silente comando

do mundo sombrio de arranjo confuso.

Eu sou foragido em meu sonho mais brando,

que amansa-me as feras em canto difuso

por entre o bramido das veras, nefando.

Prossigo liberto no cerne recluso.

Meu pássaro vive cativo em meu peito,

por vezes adeja em sorrir contrafeito

que emano às pessoas, com âmago em brasas.

Preciso encontrar um amparo, meu norte;

não mais existir incompleto, um recorte,

alado e sem céu que sustente-me as asas.

29

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

ENCANTAMENTO

Tão logo te senti, eu me encantei...

Sem conhecer do amor, seus refloridos,

de seus jardins de nuvens soerguidos

nos corações dos homens, eu te amei...

Sem me saber amando, amei demais!

Amor em plenitude, devotado...

Brincava no teu dia ensolarado...

Vibrava em teus fantásticos reais...

E fui seguindo à espera de carinho,

assim como um carente menininho...

Mas tu me revelaste a angústia e a dor!

E negas teus sorrisos, ó querida!

Ó vida, vida linda, amada vida!

Por que desprezas tanto meu amor?

30

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

A ESCULTURA

Sobre a mesa, a escultura estendida

com seu braço a tocar firmamento

e uma perna enlaçada no vento,

encenando uma dança garrida...

Na estrutura da peça oprimida

pela pedra de seu fazimento,

que lhe nega o real movimento,

se ressalta a aparência luzida...

E a escultura com nada combina

no recinto a que enfeita e destina,

entre peças perdidas ao fundo...

Minha vida, tu és a escultura

solitária, que não se afigura

com o lindo das peças do mundo.

31

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

CENSURAS

E na falência múltipla do sonho,

desesperado, pede por ajuda!

A insanidade beira em dor aguda!

Um cataclismo agônico, medonho...

Está perdido, em busca de socorro,

mas só recebe escarros de censura!

E nos brutais espasmos de amargura,

esputa a vida que se esvai em jorro!

Oh! Tanto quer erguer-se novamente,

pois sempre amou a vida lindamente...

Porém, não mais avista o alvor do altar.

Mas secará sozinho suas dores,

por descobrir que seus censuradores

não têm capacidade de amparar.

32

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

ESCURO

No escuro me furam teus olhos aflitos

por onde faíscam rancores insanos

que invadem o quarto, lançando seus gritos

noturnos e mudos de culpas e enganos.

Domina o recinto em negrume teu rito

sinistro de atar-me em teu braço tirano,

beijar minha boca e cuspir-me o conflito

do enlace, em meu cerne, entre santo e profano.

Em treva terrível te incrustas em mim...

Nas noites infindas que entrevam-me ao fim!

Ai, já não suporto esperar-te a partida!

Por que não libertas a luz do amanhã?

Por que me condenas a alar teu afã?

Por que não me deixas, ó medo da vida?

33

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O DESTINO

O moço seguia em caminho sombrio,

na noite chuvosa de nuvens pesadas...

Com negros capote e capuz, arredio,

pisando o prateado das ruas molhadas...

Os raios, trovões assombrando o vazio

das vias desertas, à sorte deixadas...

O vento cravando nos ossos o frio,

que entrava por poros das mãos calejadas...

E trôpego, fraco, cansado, sem prumo,

porém renitente, fazia seu rumo,

cumpria, no escuro, o labor peregrino.

Ninguém há de crer! Oh, que louca magia!

Tremenda surpresa assolou-me este dia:

Na forma de um homem, eu vi meu destino!

34

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

CAVALO ALADO

E no ímpeto, eu ascendo meu cavalo

dotado de imponentes, negras asas,

que safa-se do fogo, dentre as brasas

do incêndio d'alma a arder em bruto abalo.

O meu cavalo forte, ao céu, embalo

a revoar por templos, prédios, casas,

acima das pequenas mentes rasas,

decências que se escorrem pelo ralo.

Porque queimei-me tanto, tanto e tanto,

que até secou na essência o intenso pranto!

Penar me fez imune a ações amargas.

Ah, sim! Nas chamas d'alma fui queimado!

Mas meu cavalo negro viu-se alado,

liberto das correias, rédeas, cargas.

35

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

FOME

Oh, bruta fome do que não conheço!

Carência insana, surda, cega e muda

que me perfura vísceras, aguda,

e talha em treva meu porvir de gesso!

Ó, falta oculta desde meu começo,

que sega o tino e tudo que o aluda

na seca austera de água, chão, ajuda,

qual o sentido deste vácuo opresso?

Em tal vazio, arranho a sina cava

e queimo o gelo meu na densa lava

da essência doida por demais querer!

Ai, quero tanto, quero o que nem sinto!

Quero acender o escuro labirinto

da incompletude edaz do que é viver.

36

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

SANHA URBANA

E se afogando às enxurradas turvas, densas

de tanta urgência, de tormenta, bruto afã,

os homens seguem rumo ao nada do amanhã,

cuspindo féis de egocentrismo e indiferenças.

Nesse desfile de feições tristonhas, tensas,

de sentimento entorpecido à fé malsã,

sob a chibata da rotina algoz, vilã,

a rua esmaga o tempo em suas plúmbeas prensas.

Os edifícios, nos seus vítreos dentes fartos,

pressionam, forte como as dores dos infartos,

pessoas presas dentro em salas, cifras, fones.

E sobre o asfalto, carros monstros rugem bravos

a conduzirem seus patéticos escravos...

Robotizados homens sós; oh! Meros clones!

37

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O VULTO

E foge de mim com sarcasmo no olhar,

sorriso sombrio, perverso, entredentes,

o corpo escondido nas vestes frementes

dissolve-se em vulto a correr, se afastar.

Invade, insolente, meu cerne, meu ser

nas noites de insônia e lembranças arfantes

e até me seduz de ilusões delirantes,

mas logo se cobre a negar-me o prazer.

Preciso arrancá-lo do meu pensamento!

E assim, prosseguir aspirando o momento

liberto das garras de um pássaro escuro.

Pois sei ser insano viver nesta busca

inútil, vencida da luz que se ofusca

na trilha em que some o tal vulto, o futuro.

38

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O HOMEM SEM HISTÓRIA

Prosseguiu decidido a esmagar o passado

e viver à mercê de um futuro escondido

entre brumas e véus, sob o nada perdido.

Tal cavalo a apagar o percurso avançado...

A correr, a correr, sem destino, embalado!

Desprezando lições, tradições e sentido,

dessecou, devorou seu início esquecido

sob a marcha pra frente, insistente, ofuscado.

Pois não tinha valor o que fora em outrora,

não sentia o frescor de pretérita aurora,

só banhava-se ao sol que ao presente existia.

Todavia, também o porvir não havia

e ficou sem passado e futuro e memória.

Como é triste passar sem contar uma história.

39

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O VINGADOR

Ah, tantos querem colo de um anjinho,

por serem tão perfeitos, caridosos...

Celebram fés e céus esplendorosos,

varrendo as impurezas do caminho.

Vou me afogando nesse mar de santos,

de vítimas dos outros seus algozes...

São todos inocentes, várias vozes

de gente pura e frágil sob os prantos...

Difícil aceitar-se malfeitor

que trama insídia suja, vil, infame

e louco, ateia fogo no estopim.

Pois eu assumo: sinto atroz rancor

por ser que porventura me desame.

E mato a bela flor de seu jardim.

40

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

MOMENTO DE ESPERA

Momento de atracar no porto espera

o barco tripulado por conflitos

gerados por anseios crus, aflitos

zurzidos no furor da vida fera...

Momento de calar internos gritos

e angústia que nos nervos reverbera,

ainda que se saiba: a sina austera

jamais calmar-se-á com céus bonitos...

Porque nenhum vivente humano atinge

certezas sobre o edaz futuro esfinge,

por mais perfeito seja o ensaio, o passo.

Porque, adiante, a mancha atravessada

revelará se é naja, ou quase nada,

somente quando o tempo haurir o espaço.

41

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

BEM VINDOURO

No seguinte à conquista habita o nulo,

um vazio de anseio acalentado

ante o escuro do nada desvendado

pós romper-se, no incógnito, o casulo.

O desejo de outrora incandescente

a queimar-se na espera em sangradura,

satisfeito, não mais se prefulgura

amargando um frustrante ardor latente.

O que aciona o viver é a expectativa,

esperar bem vindouro é o que motiva

a eclosão das heroicas resistências...

Lamentável que o pleno encantamento

more à frente, em constante isolamento,

entre os vãos de improváveis existências...

42

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

SOMBRIO DEGREDO

A lança agudíssima, enorme do medo

se crava no peito, instilando peçonha

diluída nos nervos em sanha medonha,

banindo o resquício que havia de ledo.

Oh, pânico atroz, seu sombrio degredo!

Viscosos tentáculos – bruta visonha –

se enlaçam na essência afogada em vergonha

e espremem, sufocam, das sortes, o enredo.

Tais sinos tocando à orfandade de um filho,

no intento de atarem valentes reações,

lembranças retinem reveses passados...

E em torno da treva do trágico exílio,

a lança do medo cinzela os caixões

dos pobres viventes, de vida, privados.

43

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

PÉTALAS PARTIDAS

As pétalas flutuantes sobre o lago,

entregues às serenas mãos do vento,

assim penugens soltas ao relento,

desenham seu destino em manso afago.

Ingênuas, vão seguindo rumo vago,

sozinhas, sem amparo, acolhimento

da rosa, sua casa, seu sustento

e esperam derradeiro, austero estrago.

As pétalas partidas da alva rosa

tornaram-na tão linda, esplendorosa

e agora, no abandono, à morte, vão.

Quisera ser tais pétalas tão puras,

morrer depois de ornar, demais, criaturas

e não saber, jamais, que há ingratidão.

44

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

A LIBERTAÇÃO

Enovelado à vida que pressiona,

que aperta os fios ásperos e grossos

e após sufoca feita em densa lona

jogada sobre o dia e seus destroços,

procura resistir à vil tortura

o infausto ser de quedas e dispêndios,

enquanto estanca a bruta sangradura

do seu destino em sombras, vilipêndios.

Caminha todo preso, envolto aos fios,

tentando, em vão, sorver o bem da aurora,

mas quanto mais insiste, mais se aperta.

Desiste e enfim se rende aos tons bravios

e bebe um bom veneno que o devora,

feliz por ver, na morte, a porta aberta.

45

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O BRAÇO E AS ASAS

Disseram-me que tenho fortes asas,

as imaginações adejam plenas,

que elevo, no sonhar, ideias rasas

em sopro de otimismo assim, apenas.

Cravaram-me que peno exausto braço,

que anula-me a ilusão ardil ferrenho

e aperta-me a esperança à corda de aço

em lacerante, edaz e bruto engenho.

E me cantaram que asas são de sonho,

por isso, são mais firmes que as reais

e amparam-me no céu, ante o medonho.

Mas... triste! É que me traz, o braço torto,

de artérias e verdades viscerais,

as asas que arrancou do sonho morto.

46

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

CÉU NOTURNO

Um céu noturno se escancara à minha frente,

abrindo a boca sem estrelas, desdentada;

ele me exibe a imensidade sua, ingente

e se aproxima a sufocar-me à madrugada.

Eu nada mais consigo ver, senão a treva

difusa, arfante, que encarcera movimento;

todo o sentido de existência sorve, leva

ao seu vazio interno, o denso firmamento.

E mergulhado em tudo escuro me desfaço,

dissolvo essência, nervos, fibras, cada artéria

na vastidão do espesso não da insegurança.

Sou de repente mero cisco deste espaço,

pairando seco no sombrio da miséria

que grassa ao céu dos impedidos de esperança.

47

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

FLOR SECRETA

Espalha-se na sala de visitas,

encena várias faces enfeitadas,

anseia alar a imagem, céu de fadas,

vestindo apenas máscaras bonitas.

Drogado de alegria a todo custo,

jamais permitirá mostrar-se triste;

e quando alguém lamenta, dedo em riste

condena ao abandono o infausto injusto.

Porque, bem sabe, o mundo não suporta

pessoa frágil, vítima, incompleta,

que não cintila glória em seus caminhos.

Porém se fere assim que fecha a porta

e aperta a rosa d'alma, flor secreta,

sem pétalas, coberta só de espinhos.

48

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

ESTRANGEIRO DO MUNDO

Andou sozinho sempre, sobre nada,

rodeado de pessoas intocáveis

com falsas euforias invariáveis

cravando desvalor em sua estada.

Aos poucos, percebeu que mais querido

é o que soleva lábaros incríveis,

brilhando suas glórias invisíveis

à frente do invejoso tão fingido.

Apático, entranhou-se à urbana brenha,

estranho a tudo e murcho de esperança,

carente do sentido de existir.

E segue vão, perdido, sem que venha

uma saudade apenas, ou lembrança

que instigue-lhe a vontade de insistir.

49

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O CANTO DO PÁSSARO CEGO

Não posso ser tão triste! Que tristeza?

A vida é laço meigo em nós seguros!

Verdade, existem tons alguns impuros,

mas o que exala mesmo é só beleza!

Eu vou cantarolar felicidade,

comer o meu conflito impertinente,

roubar dos casarões da mocidade

os lustres de existir luminescente.

Aguardem! Eu serei feliz soneto

com versos melodiosos e rimados,

ao conseguir domar meu coração...

assim, tal fosse um passarinho preto,

que tem os seus olhinhos perfurados

para cantar mais lindo à escuridão.

50

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

ESTRELAS INCANDESCENTES

Eu gosto das estrelas que não brilham,

de foscas existências insabidas;

não deixam rastro pelo céu, fervilham

paradas, cintilando recolhidas.

Os tons de tais estrelas maravilham

apenas emoções que as veem despidas

de expectativas tolas, vãs que trilham

no mundo de aparências fementidas.

Não gosto das estrelas desvairadas,

afoitas para serem admiradas

na luz de mero invólucro, embalagem.

Prefiro, sim, estrelas não brilhantes,

que habitam infinitos mais distantes

e acendem-se na essência, não na imagem.

51

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

EM CENA

A peça vida em cena sem ensaio...

Atores giram sobre o palco erguido

no chão de sombras, vão desconhecido...

As personagens se olham de soslaio...

Na edaz disputa desta peça vida,

não se permite ouvir alguma vaia...

Há perfeição até que o pano caia...

O elenco inteiro encena ação garrida.

Mocinhos belos, fortes, salvadores...

E damas meigas vestem véus de amores...

Vantagens, glórias, festas e conquistas...

Esperam sempre lotação de estreia,

mas esta peça não possui plateia

e todos pensam ser protagonistas.

52

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O LOBO NO VENTO

Lobo manso e assustado flutua no vento,

tão vazio, levinho, revoa, revoa;

ele gira, acelera e prossegue-se lento,

tal puríssima pena, a plainar vão, à toa.

Lobo manso de agora deseja-se alento.

Que vergonha! Ter sido malvado o atordoa,

mas ninguém acredita em seu plácido intento

e por isso não acha o que o ama, perdoa.

O lobinho levita no céu inventado,

solitário, a sonhar um refúgio encantado

de criaturas amenas, que entendam perdão.

E persiste embalado no vento em que mora...

Vendo o bando egoísta e sozinho de fora,

se convence, ele vive em melhor solidão.

53

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

DUAS COISAS

Domado se entrega ao martírio do dia.

Em ônibus cheio, ele é presa da caça.

Precisa chegar à minaz padaria.

Jogar-se à cozinha, ir ao forno, tal massa.

No espelho quebrado, ela chora outra ruga.

Lamenta carente do céu, desencanta.

E pensa em fugir, mas de cruz não há fuga.

As pernas inchadas. A dor se agiganta.

Os músculos do homem sozinhos trabalham.

As fés da mulher nos entulhos se espalham.

Arrastam-se, coisas, na lama da vida.

Se juntam de noite, em rotina cuspida.

No duro do estrado se deitam, escudos.

E tentam falar-se; mas, tarde. Estão mudos.

54

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

NOTURNA

Ela acolhe a estrela solta lá do céu

a aquecer a noite intensa do seu peito

e acender o seu futuro de papel

nas esquinas, embolado ao desrespeito.

E no mar incerto feito em cama alheia,

se aprofunda inteira, corpo, brio e luz.

E clareia-se abnegada, aberta, cheia.

E se entrega às ondas doidas que seduz.

Mas precisa, em breve, de ir embora; sabe.

Convenções humanas, nada aqui lhe cabe.

Quer ceder seu brilho noutros cosmos, ruas.

E ela sai, enquanto dorme o explorador

(tão bonito, o seu amante malfeitor).

Este mundo não comporta duas luas.

55

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

TARÂNTULAS

Tarântulas do medo entrançam pernas

peludas fartas farpas repulsivas

nas pernas de necroses muito internas

das ânsias da verdade em mim cativas.

E as pernas destas ânsias presas vernas

esmagam-se entre as pernas tantas vivas

e negras mais que noites de cavernas,

as pernas das tarântulas nocivas.

Tarântulas medonhas vêm me estranham

e medram seus intuitos ardilosos

com pernas crespas ásperas que entranham.

E em ríspidos temores pegajosos,

esganam meus resquícios e me arranham

os últimos metais esperançosos.

56

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

A PRISÃO

Um homem a sonhar vivência branda

lamenta, à janelinha da prisão

vigiada pelo fero monstro cão

da realidade austera, edaz, nefanda.

Contempla triste a folha na ciranda

do vento em movimento brincalhão,

que gira sem nenhuma proteção,

enquanto amarga medo que o comanda.

Então se inspira à imagem linda vista,

respira força e avança na conquista

de alar despido o rumo seu, destino.

Descobre, cão e grades são de penas

desfeitos ante simples sopro, apenas

e o algoz que o aprisionou: seu próprio tino.

57

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O AMARGOR DA MANSIDÃO

Sereno e sorridente, ardeu-se ao murro

que o deram só de empáfia bruta, afronta;

por dentro da cabeça turva, tonta,

batia assim martelo: “burro, burro”.

Em pés e mãos pisados, sujos, surro,

fincadas mil de agulha em fina ponta;

e o moço a atar-se ao terço, a cada conta,

à espera da brandura de um sussurro.

Mancando, todo em dor, teimou sorriso...

E no arrastar-se flácido e impreciso,

sentiu amarga a própria mansidão.

Tentou reagir, do manso enfim desperto,

mas quando deste véu se achou liberto,

findavam de arrancar-lhe o coração.

58

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O RISO E A PEDRA

Na cara arcada cara em riso armado

de dentes que se apertam salientes;

se mostra o mais voraz dos mais contentes,

dá glórias à existência, escancarado.

Da estirpe dos notáveis sorridentes,

contempla vida linda e sol dourado;

não vê o escarro denso derramado

das pedras-gente, gosmas indigentes.

Sorrindo, nem percebe os malcheirosos

estorvos, seus cachimbos venenosos,

caminha como fosse num jardim.

Tamanha alienação, porém, tem preço:

tropeça em quase vivo humano gesso;

quebrada a arcada, o riso é morto, enfim.

59

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

TRIBOS

Sustento em meu íntimo várias aldeias

de povos hostis entre si, oponentes;

alguns, de tão frios, congelam-me as veias

e atacam aqueles que as deixam ferventes.

No branco vestindo o que sinto, as alheias

verdades do intento de mim procedentes

se ferem no gelo e acendendo as candeias,

no fogo o derretem, combates ardentes.

No meu universo de humanos genuínos,

em neve, esquimós; em deserto, beduínos

disputam a mesma paisagem e aresta.

Preservam, no entanto, os pueris indiozinhos,

por causa do leite que trazem, bonzinhos,

da ordenha do leve que ainda me resta.

60

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

BABEL

No dia anoitecido que desperta

de sol, tristonha estrela vacilante,

revoa a borboleta torta, incerta

da lívida esperança dissonante.

Que chora, pois a gente não se alerta,

soberba de babel prossegue avante,

rompendo nuvem, céu e porta aberta

daquele que no ameno é caminhante.

Na borboleta exausta da esperança,

a fera intolerância grassa, avança,

comendo tudo em sua sanha farta.

Minando a resistência à bruta gula,

vencida, a borboleta se acasula

e toda pelo avesso, se enlagarta.

61

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

DISPARADA

Na crença de alcançar auroras belas,

embora não soubesse como ou quando,

seguia entregue às ilusões singelas

que ornavam, de dourado, ardil nefando.

Um dia, desistiu de atar as selas,

por não sentir se estava no comando,

seguro, mesmo em charcos e procelas,

ou se outros o levavam, dominando.

E agora, nos urbanos, gris desertos

tão fervilhantemente povoados,

ainda mais perdido em seus incertos...

Prossegue à vida, como se montado

de pernas, braços soltos, bem abertos,

no dorso de um corcel desembestado.

62

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

PULGAS E SANGUESSUGAS

Mordiscam, saltitantes, buliçosas,

fundilhos da razão, as doidas pulgas

do que se transformaram as viscosas

e lerdas certezinhas sanguessugas.

As pulgas destas dúvidas penosas,

cavando nestas faces vincos, rugas,

ai, pulam, pululando vigorosas,

agitam meus receios tartarugas.

Ah, que pulguinhas chatas, irritantes,

que picam, aos pulinhos incessantes,

o pensamento em dúvida aturdida...

Mas, não! Prefiro arder no ceticismo

em pulgas, a entregar-me ao comodismo

com vermes me sugando em plena vida.

63

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

A BOLHA DA FELICIDADE

Àquele que festeja exaltação

no mundo entoando a dor em vil prelúdio,

a minha consternada indignação

de espessa intensidade, meu repúdio...

Ao que, pisando lôbrega penúria

alheia, se alardeia tão feliz,

de consciência imersa em turva incúria,

e guarda toda a água em seus cantis.

Porque sorriso em meio a tantas mortes

de sonhos, perspectivas, frágeis sortes,

se não denota parva insanidade...

Então demonstra torvo egocentrismo

de flutuar por sobre um cataclismo

a salvo numa bolha de maldade.

64

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

CAMINHO DE ROSAS

Derramei as sementes de alvas rosas

na intenção de enfeitar o meu caminho

de serenas belezas tão viçosas,

não lembrei que nasciam com espinhos.

E floriram, meiguinhas, carinhosas,

se espalhando em alegre desalinho,

todavia podiam ser danosas

aos que fossem tatear os seus carinhos.

Espetadas, as mãos sangravam medos,

descobriam, das rosas, pontos tredos,

se tocada a aparente singeleza.

Eu pensei, de verdade, que pudesse

ser apenas o belo, o que floresce,

mas o mal é também da natureza.

65

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O CULPADO

Relâmpagos berram trovões tenebrosos;

do céu, saraivadas despejam-se brutas;

à rua, enxurradas carregam gomosos

detritos de noites drogadas e putas.

Na trilha que leva ao covil dos gulosos

festins genitais e corpóreas permutas,

embatem-se olhares mordazes, fogosos

vendendo barato seus picos e grutas.

Enquanto a voraz tempestade castiga,

o moço atolado na culpa inimiga

procura outro réu que o conceda prazer.

Cansou-se, afinal, de sentir-se bandido

por ter diferenças na própria libido;

agora é gozar e gozar e morrer.

66

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O CÁRCERE

Premido dentro em gasto amontoado

de frágeis ossos, músculos e veias,

o pensamento do homem avelhado

lateja envolto à mente e suas teias.

Anseia voos no amplo emaranhado

de luas outras, céus, rincões e aldeias,

mas pena o corpo enfermo, subjugado

ao peso imenso das entranhas feias.

Rasteja, latejante de agonia,

na amarga frustração voraz, sombria

de ter fulgor de vida atado em treva.

O pensamento, sim, não tem idade,

no entanto é escravizado à realidade

da carne que apodrece e junto o leva.

67

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O BÊBADO

Por entre dez garrafas de conhaque

chupadas no gargalo até o final,

rasgado feito presa após o ataque

sangrento de um famélico animal...

Esfumam-se lembranças do combate

da noite anterior, nalgum balcão

de bar, bebendo o próprio disparate

de sua vida escarro à escuridão...

E luzes, vozes, caras misturadas

fervilham na cabeça em badaladas,

se embolam, se entrançando ao novo porre.

Até que finalmente cai vencido,

de brio, de sentido e sins despido;

e por mais uma vez, desaba e morre.

68

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

A DERROTA

Arranco do solo, nas unhas, torrões

e lanço raivoso o valente revide,

contudo a ossatura vacila e os vilões

esmagam com pedras meu frágil envide.

Persisto e me aprumo bravio, teimoso

às muitas, ferozes pedradas que doem

e pesam-me o corpo em furor pavoroso;

meus ombros, joelhos e orgulhos se moem.

Injusta batalha de um só contra tantos...

E logo aparecem mais uns, não sei quantos...

Combato, resisto, revido, tudo arde.

Insisto, levanto-me, insistem, eu caio...

Insistem, levanto-me, insisto, recaio...

Desisto e me riscam na cara: covarde!

69

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

CARDUME

No afã desgastante, incessante dos dias

com dentes agudos de medos ocultos,

o lema é banir os pensantes estultos

de ideias opostas laivando harmonias.

Porque paridade entre vidas e vias

permite o tranquilo assolar de tumultos,

cobrir, com floridos, intentos incultos,

vestir de santinhas brutais tiranias.

Feroz banimento do hostil, do contrário

no reino dos donos do bem monetário

e a salvo a felícia de iguais iludidos.

Impostos padrões, se encarcera em redoma...

A gente no aquário, ao poder que nos doma,

o frágil cardume de humanos perdidos.

70

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

PASSARINHO

O passarinho de altos, ledos anos,

que tanto canto ergueu no tempo lindo,

tornava seu o céu imenso, infindo,

com mil bailados de asas soberanos.

Em gozo e força, juventude e vida,

tomava o mundo, flor a flor, todinho,

da terra aos ares, para ser seu ninho,

repouso a cada vastidão vencida.

Mas, pena, os voos plenos na existência

deixaram seus tesouros para trás,

sem que notasse, à edaz velocidade.

E ao ver passada a jovial vivência,

o passarinho, à jaula em que ora jaz,

canta em silêncio, pois virou saudade.

71

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O DISFARCE

Cavalga, a ilusão, na virente campina

da mente do moço de virgem vivência;

flutua-lhe plena, a travessa menina,

o onírico mundo, a calmar-lhe a existência.

Amplia, a ilusão, da miopia, a neblina,

enquanto propaga condões de inocência,

sorrindo criancinha, pueril, pequenina

a angústias do moço, escarcéus de carência.

Se a atroz realidade assustar, perniciosa,

menina sagaz resplandece preciosa

auréola de luz a ofuscar mal que avança.

E ansiando mostrar-se serena e madura,

a astuta ilusão dissimula a figura,

vestindo o disfarce chamado esperança.

72

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

A PRAIA DE AÇÚCAR

A praia feita do açúcar fino

da gentileza dissimulada

é derretida no sol a pino

do tempo e torna-se cal melada.

Ingenuamente encantado no alvo

daqueles grãos, o sujeito pula

e brinca achando-se estar a salvo,

mas logo suga-o a pasta em gula.

As ondas brutas do mar que a envolve

despejam altas seu fluido salso

na goma clara, que se dissolve.

Também dissolve-se a ingenuidade

do tal sujeito que andou descalço

na praia doce da falsidade.

73

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

EMBUSTE

Até queria rebrilhar-me tons sombrios,

banir manente as excrescências necrosadas

que lentamente se alastraram pelos brios,

pesando muito e me impedindo as escaladas.

Seria bom demais jamais os tempos frios

em minhas lerdas emoções e ações paradas,

levando o murcho coração aos calafrios,

que neva eternas, infernais manhãs nubladas.

Queria mesmo ser melhor, manar nobreza,

raspar crostinhas de arrogância com firmeza,

amar pessoas, respeitar, por mais que custe.

Mas a consciência gigantesca berra agudo,

me grita ao peito, nervos, fibras, dentro, tudo:

o meu pendor ao bem de amor é puro embuste.

74

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

Atolado em tenaz desencanto

da existência esfregando sadismo

e cravando agulhinhas no pranto,

me definho no vão do ostracismo.

Atirado em caótico espanto,

nas entranhas faz-se ácido abismo,

quando bebo lesivo egoísmo

de indivíduo inviolável e santo.

O restolho das fés inocentes

é espremido às pisadas urgentes

de indivíduo implacável e só.

E aturdido, me arrasto somenos,

misturado a poluentes, venenos

da cidade, a seu lixo, seu pó.

75

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

NA ESTRADA

A larga estrada em que me levo entardecido

estende aos olhos o caminho pela frente

até a visão não ser capaz de claramente

despir a imagem do que espera-me escondido.

Velocidade incontrolável e inconstante;

perante o olhar, um transparente e escuro escudo

limita a vista, impede a luz, o vento e tudo;

eu preso em mim assim redoma sufocante.

É tanto chão a percorrer e não consigo

seguir mais rápido ao destino que persigo,

talvez esteja lá guardado meu sossego.

Mas quanto mais eu me aproximo, mais se afasta

o que imagino ser o fim da estrada vasta,

ziguezagueio, volto, insisto e nunca chego.

76

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

BRUTALIDADE OU ELEGÂNCIA

Prefiro o bruto que sai despido

no compromisso de ser sincero,

ao elegante vestido a esmero

em grossa capa escondendo o ardido.

O bruto morde se for mordido

aos palavrões, xingamento fero,

mas o elegante de olhar austero

morde por dentro e sorri fingido.

Quando elegância é falaz mentira,

se a hipocrisia disfarça a ira,

que perigosa a investida incerta.

Mais me apavora o feroz cortês

na fantasia da polidez,

que o bruto indócil de chaga aberta.

77

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O ARQUITETO DE BRINQUEDO

Achou quebrado seu brinquedo predileto

do tempo tudo em colorido e rutilância,

era um menino em apetrechos de arquiteto

que desenhava mundo em mágica de infância.

De como e quando se quebrou não sabe exato,

talvez aos poucos, feito as gotas da inocência

se evaporando sobre a adusta pedra fato,

secando em sede o encanto sonho da existência.

Seu arquiteto de brinquedo companheiro

tornava o céu imaginado em verdadeiro

com traços leves de concreta fantasia.

Para aguentar a realidade do caminho,

precisa urgente recolar cada caquinho

de seu menino e só viver do que ele erguia.

78

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

CENAS DESFOLHADAS

Desfolha cenas delicadas da lembrança,

aquelas de ave ao céu em dia ensolarado,

e as lança à frente, ao seu caminho irrevelado,

na crença tola de abrandar o após que avança.

Mas desfolhadas cenas, baças de indolência,

estão cativas à exaustão de acontecidas,

paralisadas no passado, escurecidas

e se ressecam de apagada resistência.

E cada cena reduzida a seca folha

é pisoteada pelo atroz ladrão de escolhas,

o tempo afoito condutor de tudo ao fim.

Enquanto amarga às más amarras da saudade,

é cego às cenas das palpáveis realidades,

nem vê que o filho brinca alegre em seu jardim.

79

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

O BANDIDO

No cinzento de dentro e no imundo do asfalto,

perambula o bandido impreciso e sombrio;

planejando arrancar um alento em assalto,

ele lambe o punhal que afervora seu cio.

Tal detrito do mundo, indolente e arredio,

aprendeu a reagir sem qualquer sobressalto

a traições e prisões, em drogado fastio,

penetrando seu ódio aos que o miram lá do alto.

E prossegue chupado, arrancado de tudo,

cravejando no olhar a revolta, um escudo

que o defende do ataque ardiloso de amar.

Porque sabe, sentiu da existência na agrura,

que a febril realidade esbraseia a ternura;

só consegue viver o que aprende a matar.

80

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

INSTINTOS PREDADORES

Engulo gatos bravos de unhas finas

que descem lacerando-me a garganta

e as viscerais verdades mais felinas

e arranham meu furor, que se agiganta.

Depois escarro verbos crus, infames

no intuito de estancar o sangramento

que os gatos com espinhos nos pelames

me cravam sobre carne e sentimento.

Em meio aos verbos, cuspo os gatos brutos

de volta ao ar do mundo, aos seus redutos,

babando suas ganas de agressores.

E o que é razão se curva em tais batalhas

que travo a unhada e verbo assim navalhas,

expondo meus instintos predadores.

81

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

ALGEMAS PÁSSARAS

Avisto algemas de asas neste achaque

que enfada meu sombrio pensamento;

rodando às vezes rápido, ora lento,

volitam ameaçando bruto ataque.

E frente a tal voejo incerto, horrendo,

entrego o peito ao gozo do azorrague

do medo que talvez a algemas vague

e pese em suas asas derretendo.

De súbito percebo-me algemado

enquanto apanho até sangrar o brado,

sentindo o fluido abaixo dos joelhos.

Ferido em meu limite, o brio em brasas

concede vida ao sangue, veste as asas;

e algemas viram pássaros vermelhos.

82

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

FÉ CONVULSA

Aguço a contundência da repulsa

sentida frente ao santo de mentira

que atado a seu capeta imerso em ira,

disfarça a própria sanha em fé convulsa.

E torna a vida inteira gota insulsa

vertida na consciência que delira

com mitos decantados verso e lira,

enquanto a compaixão do peito expulsa.

Ah, se no coração, sem vigilância,

pudesse ele abrigar o bem sagrado

que irmana a convivência à tolerância...

Aguando toda a farta e vasta lavra

de quando o amor, ansiando ser tocado,

se livra dos limites da palavra...

83

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

CONFUSA CARA

A vida de confusa cara assusta,

confunde, ilude, afaga, ampara, bate,

disfarça de bonita a cena injusta

e raspa crosta sábia em disparate.

A gente atarantada e tonta segue

em meio ao turbilhão voraz, faminto

de dúvida, incoerência e medo, entregue

à imprecisão do escuro labirinto.

Mas luz brilhando em si, preciso é tê-la,

que seja raramente apenas, pela

premência em ofuscar o fero espanto.

Por isso, ansiando achar a noite clara,

invento fantasia em versos para

embebedar meu seco desencanto.

84

Sonetos em Conflito - Marco A Vieira

INGRATA

Cansaço pesando no rosto delata

sinais de aventuras no tempo perdidas;

nos vincos amarga a fadinha acrobata

das fés, ilusões juvenis sucumbidas.

O olhar arreganha o remorso rançoso

por tantos enganos, tropeços e fintas,

porque não se apaga um passado ruidoso

tal mancha em parede, a camadas de tintas.

Procuras delícias sorvidas na infância

em que se desliza com paz em constância,

mas logo desistes; frustrada é a intenção.

Não sabes? É o preço que a vida te cobra.

A ingrata, perversa fustiga, soçobra

quem dela abusou, desvairado em paixão.

85

INTENSIDADE

Quero acender, em versos meus, a claridade

dos sentimentos, minhas selvas perigosas...

Ceder, à escrita musical, a intensidade

dos meus conflitos e lembranças lamentosas...

Quero entranhar, em letras, verbos, a verdade

das intenções que me dominam, fervorosas,

e oferecer, aos versos meus, a liberdade

de derramarem na poesia minhas rosas...

E me esparramo no poema, este amuleto,

na angústia louca de sangrar em um soneto

a transparência nua e plena da emoção...

Mas não consigo que meus versos representem

as aflições que meus poetas... tantos... sentem

aprisionados em um mesmo coração!