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3 2 3 4 5 gente. Provocou a bossa nova com seu Tamba Trio, ao abra- brasileira. Quando o samba era considerado música de va- brow californiana, momentos antes da abertura da coletiva Chiodetto. Atitude parecida definiu a ascensão do músico seja porque simplesmente não gostam de limites, seja pelo Borrar contornos, atravessar muros. Muitos artistas se es- de fato um salto de originalidade em relação ao consenso obra um manifesto pela liberdade de suportes estéticos de deiro e Candeia. 6 7

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+soma . #16

Borrar contornos, atravessar muros. Muitos artistas se es-

forçam para fugir a categorizações, suas ou de terceiros,

seja porque simplesmente não gostam de limites, seja pelo

desconforto em se admitirem datados, seja porque buscam

de fato um salto de originalidade em relação ao consenso

de uma época. Gary Baseman já disse que sua arte se

situa naquele ponto nebuloso onde a linha entre genialida-

de e estupidez foi borrada e não pode mais ser reconheci-

da. Além de borrar essa linha e aproveitar para zombar dos

limites entre a reflexão séria e a piada, Baseman faz de sua

obra um manifesto pela liberdade de suportes estéticos de

forma geral. A essa maneira de enxergar e produzir arte, ele

batizou “pervasive art” – que traduzimos aqui como “arte

difusa” –, ou arte pode ser feita em qualquer meio, desde

que o artista “permaneça fiel a seus princípios e tenha uma

mensagem forte”. Falamos com ele e com seu amigo de lon-

ga data Josh SHAG Agle, outro monstro da arte low-

brow californiana, momentos antes da abertura da coletiva

dos dois na Choque Cultural, em São Paulo. A descontração

e disposição da dupla rendeu uma das entrevistas mais me-

moráveis já publicadas aqui.

Desafiar o senso comum também foi obsessão do percus-

sionista e produtor musical Hélcio Milito, cuja vida têm

uma intersecção imensa com a história da música popular

brasileira. Quando o samba era considerado música de va-

gabundos, ele peitou a própria família, integrante da elite

paulistana, e saiu de casa para mudar os rumos de muita

gente. Provocou a bossa nova com seu Tamba Trio, ao abra-

çar elementos folclóricos e dar destaque à percussão. Como

produtor da CBS, bateu de frente com executivos ao lançar

artistas negros em época de monopólio da Jovem Guarda.

No final, definiu a carreira de lendas como Jackson do Pan-

deiro e Candeia.

Na ânsia por descobrir um novo olhar sobre o mundo, o

fotógrafo Guilherme Maranhão foi de encontro à

própria definição de fotografia: lançando mão de scanners

quebrados, acabou por redesenhar a paisagem urbana com

“uma geometria lúdica, em rastros luminosos que flagram a

passagem do tempo”, nas palavras do crítico do MAM Eder

Chiodetto. Atitude parecida definiu a ascensão do músico

londrinense Bruno Morais: ao contornar noções ortodo-

xas de qualidade vocal e técnica instrumental, ele criou um

método de trabalho colaborativo particular na sua geração.

Bradando contra a cultura de ostentação do rap americano,

Mos Def sentencia: “tenho orgulho de ter crescido po-

bre”. E aproveita para mandar uma mensagem a Obama:

estamos cansados de símbolos. Ainda falamos com o jovem

artista britânico Felix Thorn, cujas traquitanas navegam

a fronteira entre música e arte, com o genial animador gaú-

cho Otto Guerra e com sua conterrânea Lidia Brancher,

que pinta com naturalidade em ruas e galerias finas. Leia e de-

safie seus conceitos também.

+SOMA

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+conteúdo

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Gary Baseman + Shag

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nsaio de fotos: Guilherme Maranhão

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MQN + Walverdes

88

Renan Santos

90 Quem Soma: Fabiano Passos

92 Seleta: Silvio Luiz + Garibaldo94 Quadrinhos

98 Reviews

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10

O projeto +Soma é uma iniciativa da Kultur, estúdio criativo com sede em São Paulo.

Para informações acesse: www.maissoma.com

Iniciativa . ssssssssssssssssss

Kultur Studio

Rua Fidalga, 98 . Pinheiros

05432 000 . São Paulo . SP

www.kulturstudio.com

REVISTA SOMA #16

Março 2010

Fundadores . Kultur

Alexandre Charro, Fernanda Masini,

Rodrigo Brasil e Tiago Moraes

Editor . Mateus Potumati

Assistente Editorial . Marina Mantovanini

Fotografia . Fernando Martins Ferreira

Revisão . Alexandre Boide

Projeto gráfico . Fernanda Masini

Arte . Jonas Pacheco e Rodolfo Herrera

Conteúdo áudio-visual . Alexandre Charro e Fernando Stutz

Colunistas .

Tiago Nicolas, Ricardo “Mentalozzz” Braga & Daniel “Ouriço” Peixoto, Stêvz,

Rafael Sica, Nik Neves, Gabriel Mesquita e Gabriel Goes

Gostaríamos de agradecer a Suemira Shah, Rodrigo Brandão, Ricardo Mohr e Converse, Baixo

Ribeiro e Choque Cultural, Larissa Marques, Eder Chiodetto, DJ Nuts, Fotonauta, Silvio Luiz, a

todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha,

anunciantes e aos pontos de distribuição da revista.

Muito obrigado!

Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista

se tornasse realidade e nos apoiam desde o início.

Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de

seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

Publicidade . Cristiana Namur Moraes

[email protected]

Para anunciar ou enviar material para review, entre em contato através

do e-mail [email protected].

Periodicidade . Bimestral

Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros culturais,

shows, eventos e casas noturnas.

Veja os endereços em: www.maissoma.com/info

Impressão . Prol Gráfica

Tiragem . 10.000 exemplares

Capa

Gary Baseman

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SOMA.ai 24/2/2010 15:38:13

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Fotonauta

O Coletivo Fotonauta é: Andrea

Marques, Daryan Dornelles e

Eduardo Monteiro.

Tiago Mesquita

Tiago Mesquita é crítico de

arte, professor e está fantasiado de

pirata.

+colaboradores

Mauricio Capellari

Fotógrafo, é do staff da Void.

Curte Nei Lisboa, paletó branco e

passa longe de ideologias baratas.

Arthur Dantas

31 anos. O capitalismo roubou

minha virgindade e atualmente

sou contra TUDO que tá aí.

Ama Crass, 4 Walls e Itamar

Assumpção. A favor da paz, do

amor e da esperança.

Ana Ferraz

Coordena o escritório criativo NOZ.

ART e a galeria FITA TAPE, em Porto

Alegre. Escreve para as revistas Vista

e Void. No tempo livre manda zines e

outros pacotes pelo correio, coleciona

HQ e stationery compulsivamente e

joga Animal Crossing.

Luise Malmaceda

Estuda artes visuais, é apaixonada

por história da arte e fotografia. Faz

a melhor massa do mundo e já foi

aspirante a saxofonista.

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Claudio Cologni

Sócio da Nitrocorpz, fotógrafo

por hobby, roqueiro por herança e

adora pamonha com linguiça.

Gabriéis Góes e Mesquita

Fazem a revista Samba, campeã

da Feira de Quadrinhos do Piauí e

indicada ao HQ Mix em 2009.

Débora Pill

É jornalista, produtora cultural

e apresentadora do programa

“Conexões Urbanas”, na rádio

Eldorado FM.

Daniel Tamenpi

Jornalista, pesquisador musical

e DJ especializado em soul, funk

e hip-hop. Escreve o blog Só

Pedrada Musical, onde apresenta

lançamentos e clássicos da

música negra.

Amauri Stamboroski

Jornalista, cover do Jack Black e

orgulho de Ijuí. Durante o verão caça

insetos para a sua filha, Ramona.

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AL000310G-An SOMA Felix.indd 1 10.02.10 14:29:17

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Cidadão FeRNANDO CATATAu, o Instigado, anda fazendo o cabeção da moçada por aqui. Troquei aquela boa e velha ideia de som com o sujeito, para os cidadãos leitores poderem ter uma noção simplória do que o astro da psico-brega-prog-pop-revolutional-synth-spiritual-art-rock brasileira transou, transa e transará. Uhuuuuuuuuu!

uM OuTRO DiSCO que

PODeRiA Se CHAMAR

uHuuu

Eddy Grant – Killer On

The Rampage

O DiSCO DO CiDADãO

CACHOeiRO-

iTAPeMiReNSe

Vixe... O de 1977, Amigo.

Mas tem o de 73,

A Cigana...

uM DiSCO TRiBuTO

Kenny Garrett –

Pursuance. Só musica

do Coltrane.

uM DiSCO AuTOGRAFADO

Queria um do Roberto Carlos e um do

Richie Havens

uM DiSCO que

PODeRiA Se TORNAR

uM MuSiCAL DOiDO

Raul Seixas – Sociedade

da Grã-Ordem Kavernista

Apresenta Sessão das 10

uM SPLiT que PODeRiA

CHOCAR O MuNDO Se FOSSe

LANçADO HOJe

Cidadão Instigado – Uhuuu! /

Voivod – Rrröööaaarrr

uM DiSCO que vOCê NãO

eNTeNDe MAS MeSMO

ASSiM PiRA MuiTO

Daminhão Experiença –

Daimião

DiSCO De uM

CiDADãO OBeSO

Não é um cidadão, mas

é a melhor cantora que

eu conheço... Alcione –

Morte de um Poeta

uM PReSeNTe De

PAPAi NOeL

Elton John, talvez...

Nem lembro qual. Esse

se garante!

Seu DiSCO MAiS

PACATO

Os do James Taylor.

Tenho alguns dele.

2TiAGO NiCOLAS é 1/6 DA CHAKA HOTNiGHTz

COM FeRNANDO CATATAuPor tiago nicolas

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Por Daniel tamenPi. colaboração De suemyra shah

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20

“Você está ouvindo, mundo?

Estão jogando com você.

Estão te enganando. A Al-

Qaeda não é o seu problema.

O terrorismo não é realmente

a questão, e todos os

terroristas têm um emprego

no governo.”

expectativa de encontrá-lo, eu já havia me conformado em apenas vê-lo no palco pela primeira vez. Mas por sorte a maré mudou: uma semana antes dos shows, fui avisado de que o rapper faria uma única entrevista no Brasil, para a +SOMA. O caminho foi longo, mas consegui falar com Mos Def no trajeto até o aeroporto, no seu último dia no Brasil. Em um bate-papo curto, mas marcante, ficou claro que ele não é um dos grandes ídolos do hip-hop na última década por acaso. 1

Orapper e ator norte-americano MOS DeF veio ao Brasil em dezembro de 2009 para duas apresentações no Indie Hip-Hop, festival anual que acontece no SESC Santo André. Além dos shows, deu um rolê por festas tradicionais de São Paulo como a Chaka Hot Nightz, no clube Tapas. Bem à vontade, conversou com os presentes, rimou e cantou. Apesar da disposição geral do astro, porém, a produção do evento não tinha notícias animadoras à imprensa. Como parte do acordo para tocar no Brasil, Mos Def tinha feito uma exigência: não conceder entrevistas. “Não insistam”, pedia a assessoria, de forma cordial mas definitiva. Sem esperanças nem

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Mos Def, nascido Dante Terrel Smith-Bey, começou trabalhando

em família. No início dos anos 1990, ao lado do irmão DCQ e da

irmã Ces, formou o grupo Urban Thermo Dynamics. Mas foi só a

partir de 96, quando participou de faixas em discos de Da Bush Babees

e De La Soul, que seu nome começou a chamar atenção. Seu primeiro

single, “Universal Magnetics” (1997), tornou-se um clássico instantâneo,

elevando-o ao posto de promessa do gênero. Mas foi com Talib Kweli que

Mos Def carimbou definitivamente seu nome no hall dos melhores MCs da

década. A parceria dos dois no Blackstar, que rendeu o álbum homônimo

lançado em 98, o colocou ao lado de Outkast e Lauryn Hill nas listas dos

melhores álbuns de hip-hop do ano. O mesmo aconteceu com seu disco

de estreia no ano seguinte, Black On Both Sides (Rawkus/Priority). Na

companhia de bambas como DJ Premier, Q-Tip e Busta Rhymes, Mos Def

alcançou a maturidade, atestada em faixas como a jazzistica “Umi Says”.

Em 2000, outra aptidão do

rapper chegou ao grande

público, com sua estreia no

cinema no filme Bamboo-

zled (A Hora do Show, no

Brasil), do diretor Spike Lee.

A atuação faz parte da vida

de Mos Def desde a ado-

lescência, quando ele fazia

pontas em séries de TV

como The Cosby Misteries

e Here And Now. Nos anos

seguintes, ele fez pequenas

participações em filmes

como A Ultima Ceia e Sho-

wtime, até conseguir seu

primeiro papel de destaque

no romântico Brown Sugar,

lançado em 2002. Desde

então a carreira dramática

de Mos Def disparou e ele

ganhou papéis de destaque

em filmes como Uma Saída

de Mestre, 16 Quadras, O

Guia do Mochileiro das Ga-

láxias e o recente sucesso

Rebobine, Por Favor.

Mas a música não ficou de

lado por muito tempo. Em

2004, o rapper retornou

com o disco The New

Danger (Rawkus/Geffen),

apresentando uma pro-

posta musical diferente

do anterior, indo em di-

reção ao rock e ao blues.

Contando com a participação em algumas faixas da banda Black Jack

Johnson – que tinha em sua formação nomes da pesada como o baixista

Doug Wimbish e o baterista Will Calhoun, ambos do Living Colour, além de

Bernie Worrell, ex-tecladista do Parliament-Funkadelic e o guitarrista Dr.

Know, do Bad Brains –, o disco causou uma certa estranheza no início, mas

foi sendo aceito gradualmente pelos fãs. Porém, em 2006 veio o fraco True

Magic (Geffen), álbum com história conturbada entre artista e gravadora

– saiu em embalagem plástica, sem sequer uma capa. As músicas traziam

o ótimo letrista de sempre, mas o conceito e a produção não estavam à

altura. O rapper, então, anunciou seu quarto álbum, The Ecstatic, prevendo

sem meias palavras que seria “um novo clássico”. Para endossar a promes-

sa, Mos Def escalou um time de produtores que incluiu Madlib, J.Dilla, Oh

No, Georgia Anne Mudrow e outros. Se é um clássico ou não só o tempo irá

dizer, mas, para um ano como o de 2009, com poucos momentos espeta-

culares no hip-hop, The Ecstatic foi certamente um dos grandes destaques

(ainda que esteja longe da obra-prima Black On Both Sides).

Foi com essa turnê que Mos Def desembarcou no Brasil, realizando o so-

nho dos milhares de fãs que esgotaram, em questão de dias, os ingressos

para as duas apresentações. No bate-papo com o público, durante a aber-

tura do festival, via-se uma pessoa de fácil trato, com falas pausadas e sor-

risos largos para todas as perguntas feitas. Aquilo me animou – afinal, além

de jornalista prestes a entrevistá-lo, eu era também parte de seu público.

A entrevista aconteceu no último momento possível. Na caótica noite de

segunda, 7 de dezembro, caía o mundo em São Paulo – o que viraria rotina

na cidade durante o verão. Mos Def falou comigo dentro da van, a caminho

do aeroporto de Cumbica, em Guarulhos. Começamos falando sobre o

Blackstar, seu primeiro grande trabalho gravado, destacando a importância

de todos os envolvidos no projeto. “Tenho muito orgulho de ter trabalhado

no Blackstar”, ele lembrou. “Muitas pessoas no grupo, além dos produtores

e de Kweli, tiveram uma responsabilidade grande pela qualidade da obra. O

ótimo clima que rolou entre todos contribuiu para o resultado final.”

Nos últimos dez anos, Mos Def foi uma das figuras mais interessantes den-

tro do hip-hop. Seus discos trouxeram um estilo particular nas rimas e no

flow, além de uma musicalidade nova, que incorporava influências variadas.

Parte disse se deve ao fato de Mos Def ser também um instrumentista. “Eu

toco bateria, baixo e teclado. Minha formação musical é bem diversificada

porque meu pai é um cantor treinado no clássico, além de ser músico.” Ele

lembra dos anos de adolescência: “Nessa época, eu já me apresentava com

ele. Estudei música, mas, sinceramente, não era bom aluno”. A aplicação

em sala de aula acabou não fazendo diferença para o mal, porque o rapper

“Os pobres de toda

parte se identificam.

Eles têm noção

de que ser pobre é

uma merda. Mas também existe

um certo orgulho

na pobreza. Eu

tenho orgulho de

ter crescido pobre.

Se você sobrevive a

isso, é uma pessoa

muito especial, tem

algo único pra dar

ao mundo. E eu faço

parte disso. Tenho

muito orgulho de ter sido pobre.” +

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gravou vários instrumentos ele mesmo em seus discos. “Em cada um eu toco

alguma coisa. Em ‘Casa Bey’ (faixa de The Ecstatic), por exemplo, toco o pia-

no no fim da música. Quero tocar ainda mais no futuro.”

Sobre suas influências, Mos Def não destacou nenhum estilo em si. “Minha

música é influenciada pela vida, não apenas por outros estilos musicais.

A música é apenas uma expressão da vida, para mim. Em matéria de

composição, às vezes eu estou tão envolvido no momento que não me

recordo de como compus a música, mesmo depois de tê-la pronta. Elas se

formam naturalmente. Essas tendem a ser as melhores.” Observo que essa

naturalidade aparentemente contrasta com o comportamento de muitos

rappers atuais, que repetem temas recorrentes em suas carreiras. Mos Def

concorda com a afirmação, mas faz uma ressalva: “Não acho que seja ruim

se repetir, mas algumas coisas não precisam ser repetidas. Todo mundo se

repete, é normal. Mas certas coisas não merecem, sabe? E eu acho que é

isso o que vem acontecendo.”

Seu último disco é exatamente o oposto da repetição. The Ecstatic não tem

produções óbvias e as letras não seguem as rimas habituais do rap america-

no atual. Mos Def se dedicou ao conceito desse trabalho durante dois anos,

gerando grande expectativa nos fãs. “Meu novo disco criou expectativas que “Barack Obama

é exatamente isso:

um símbolo da

esperança. Um

símbolo! Como

uma corrente de

ouro é um símbolo

de riqueza, mas não

significa que seu

dono seja rico. Uma

corrente de ouro

pode ser símbolo de

breguice também.

Estamos cansados de símbolos!”

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ignorei totalmente. Não dei a menor atenção a elas. Eu me importo muito

com as pessoas, mas, sem querer soar egoísta, não faço música pra elas.

Tenho que me sentir bem primeiro e, se isso acontecer, eu tenho certeza

de que as pessoas vão sentir o mesmo. Acho que estou certo nesse pon-

to.” A levar pela recepção do disco, ele realmente está certo. The Ecstatic

foi considerado um dos melhores álbuns de hip-hop em 2009 por diversas

revistas e sites especializados. A sonoridade com ares do Oriente Médio,

presente na maioria das produções, foi objeto de atenção detalhada. As

letras, que tratam de assuntos relacionados ao Afeganistão, à Guerra do

Iraque e ao Islamismo, também foram bastante comentadas. Mas não para

por aí. O álbum é também seu trabalho mais globalizado musicalmente,

indo a territórios sonoros da música latina, incluindo uma faixa cantada

em espanhol (“No Hay Nada Más”). A música brasileira é homenageada

em “Casa Bey”, que traz um sample de “Casa Forte”, da Banda Black Rio.

“O MV Bill me deu um CD da Banda Black Rio, e foi inacreditável quando

escutei”, ele lembra. “Minha relação com a música brasileira já vem de um

tempo. Conheci melhor pelo David Byrne, que me apresentou bastan-

te coisa. Alguns dos meus artistas preferidos são Jorge Ben, Caetano

Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Flora Purim, Azymuth e Tim

Maia”, completa. The Ecstatic foi ainda coroado com duas indicações ao

Grammy: melhor álbum de rap, e melhor rap, com “Casa Bey”.

Saindo um pouco do lado musical, sabemos que Mos Def tem uma história

de militância ligada ao hip-hop, com letras críticas ao governo americano.

Como a parceria com o rapper peruano Immortal Techinque no single “Bin

Laden”, lançado em 2004. Na música, que teve produção do Green Lantern,

a dupla inocenta a eminência parda do terror mundial dos atentados de

11 de setembro, apontando como principais culpados a doutrina Reagan e

George W. Bush. “Dollar Day (Katrina Clap)” , do disco True Magic (2006),

faz duras críticas ao abandono a New Orleans pelo governo Bush depois

do furacão que devastou a região em 2005. A faixa foi proibida nas rádios,

além de não poder ser cantada ao vivo – o rapper chegou a ser preso quan-

do desobedeceu a ordem, na noite do MTV Video Music Awards de 2006.

Na ocasião, Mos Def estacionou um caminhão-guincho em frente ao Radio

City Music Hall (local da premiação) e começou a cantar a música diante

da multidão que rapidamente se formou. Ele foi preso durante a perfor-

mance, apesar de ter consigo uma autorização judicial para a apresentação

na rua. O porta-voz da polícia de Nova York justificou a prisão devido “às

condições da multidão e da segurança de todos os envolvidos”. A cena foi

gravada em vídeo e pode ser vista até hoje no Youtube.

Mos Def nasceu e foi criado em Bed-Stuy, região no centro do bairro do

Brooklyn, em Nova York. Passou a infância e a adolescência nas Roosevelt

Houses, conjuntos habitacionais gigantescos formados por prédios – co-

nhecidos por lá como “projects”. Pedi uma comparação entre os projects

de Bed-Stuy e as favelas do Brasil, já que o rapper conheceu a Cidade de

Deus, no Rio de Janeiro. “A diferença entre os projects americanos e as

favelas brasileiras é uma só: os primeiros estão acima da linha do Equador

e as outras abaixo. Pobre é pobre em qualquer lugar. Existem algumas

diferenças, mas favela é favela. Algumas mais confortáveis, se é que se

pode dizer isso, outras nem tanto, mas os pobres de toda parte se identi-

ficam. Eles têm noção de que ser pobre é uma merda. Mas também existe

um certo orgulho na pobreza. Eu tenho orgulho de ter crescido pobre.

Se você sobrevive a isso, é uma pessoa muito especial, tem algo único

pra dar ao mundo. E eu faço parte disso. Tenho muito orgulho de ter sido

pobre.” Perguntei se já tinha passado por sua cabeça ter nascido no Brasil,

e a resposta foi direta: “Não. Eu não queria ter nascido em nenhum outro

lugar ou momento diferente do que nasci. Eu nasci no Brooklyn, Nova

York, em 1973, o ano em que o hip-hop nasceu. Tenho muita, muita sorte!

Mas eu amo o Brasil! É um ótimo país, com ótimas pessoas. E, se conseguir

se livrar do preconceito racial, será um dos lugares mais fascinantes do

mundo, até mais fascinan-

te do que já é”, acrescenta,

tocando diretamente em um

dos grandes tabus da nossa

autoproclamada

democracia racial.

Mos Def não vê com bons olhos

a valorização imobiliária recen-

te em sua área e no Brooklyn

em geral: “O Brooklyn está

mudando muito. Pessoas com

dinheiro estão comprando tudo,

abrindo empresas e valorizando

aquela área. Estão tentando

tirar as pessoas de verdade

de lá. Isso, além de influenciar

minha música, me dá raiva e

tristeza. Estamos tentando con-

sertar essa situação para que o bairro seja para as pessoas de lá – não para as

pessoas que estão ali de passagem, mas para as pessoas de verdade.” Nesse

contexto de identidade negra e afirmação dos mais pobres, o assunto Obama

não poderia ficar de fora, com toda a expectativa e o choque de realidade do

seu primeiro ano de mandato. Comentei que o presidente americano era um

símbolo de esperança no mundo, e fui interrompido: “Barack Obama é exa-

tamente isso: um símbolo da esperança. Um símbolo! Como uma corrente de

ouro é um símbolo de riqueza, mas não significa que seu dono seja rico. Uma

corrente de ouro pode ser símbolo de breguice também. Estamos cansados

de símbolos! O Obama tem que acabar com essa porra dessa guerra! É isso

que ele precisa fazer. Ele precisa mostrar personalidade de verdade. Eu imagi-

no o que ele pensaria sobre essa guerra se tivesse dois filhos adolescentes, em

vez de duas filhas pequenas. O fato é que os velhos fazem as guerras para os

jovens morrerem nela, e ele é um cara bonitão, que fica bem de terno, tem um

sorriso radiante, mas isso não ofusca o fato de que ele está mandando jovens

para morrer por alguma baboseira. Você está ouvindo, mundo? Estão jogando

com você. Estão te enganando. A Al-Qaeda não é o seu problema. O terro-

rismo não é realmente a questão, e todos os terroristas têm um emprego no

governo. Então é isso, cara. Pare com essa porra dessa guerra, foda-se todo

o resto. Se ele continuar com isso, quer dizer que mentiu pra todo mundo, te

enganou, te enrolou, é um merda. É isso.”

Mos Def ainda esbravejava contra o governo de seu país quando o mo-

torista da van avisou que estávamos chegando ao aeroporto. O objetivo

estava cumprido, mas não era nesse clima que eu gostaria de me despedir.

Perguntei então sobre sua experiência com os shows de São Paulo e com

o público brasileiro. “Eu me senti bem, me diverti muito”, ele respondeu de

imediato, mudando o semblante. “Mas o mais importante é saber como as

pessoas se sentiram, e muita gente disse que foi bom. Quando eu gosto e

elas gostam, é perfeito. É um ótimo dia de trabalho. Eu adoraria voltar, sig-

nifica muito pra mim estar tão longe de casa e me sentir em casa mesmo

assim. Então eu sou muito, muito grato ao Brasil e a todas as pessoas que

me apoiaram. Muito obrigado!” Que assim seja! Até a próxima. 3

“Eu me importo

muito com as pessoas, mas, sem

querer soar egoísta,

não faço música pra

elas. Tenho que me

sentir bem primeiro

e, se isso acontecer,

eu tenho certeza

de que as pessoas

vão sentir o mesmo.

Acho que estou certo

nesse ponto.”

1SAiBA MAiS

mosdef.com

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25

Felix

Tho

rn

O trabalhO

das passagens

tiago mesquita, De lonDres (*) . imagens e retratos DiVulgação

Felix Thorn é um britânico com

menos de 30 anos que, para

fazer música, resolveu se transform

ar em escultor. A

o longo

de sua curta carreira, o jovem já passou por m

uitos ramos da

criação: música contem

porânea, música popular, artes visuais

e a invenção de instrumentos, traquitanas etc. N

esse intervalo,

trabalhou com a participação do público e com

improvisação

e se fez criador a partir do trabalho com sons eletrônicos.

Sua escultura tem um

aspecto de máquina, de invenção do

Professor Pardal. São traquitanas, máquinas caseiras, peças

que se mexem

sozinhas e tocam um

a sequência musical

predeterminada. Porém

, mesm

o sendo tão objetiva, ela não

deixa de ter alguma intenção figurativa. Por vezes, parece

uma banda, um

instrumento, um

animal. A

credito que é na

passagem de um

território a outro que a sua poética vai

sendo forjada. Pode parecer complicado, m

as não é. 1

Page 26: soma_16

26

A té o momento o artista construiu a sua

obra atravessando territórios criativos.

Começou como músico, depois quis

fazer com que sua música eletrônica se mani-

festasse fisicamente. Trabalhou com instrumen-

tos musicais, depois quis que o som viesse das

engrenagens. Hoje faz esculturas e invenções

que tocam suas composições. Com elas, já ex-

pôs em espaços de prestígio em Londres, como

a Gasworks e a Royal Academy of Arts. Esses

objetos não podem deixar de ser associados à

música que executam. São quase-esculturas que

operam como caixas de música abertas para o

espaço. O artista cria a música para o objeto

que a executará, o que, acredito, demonstra um

desejo de refazer a música eletrônica por meios

analógicos. Pude ver seu trabalho de perto du-

rante uma coletiva realizada em uma antiga

cervejaria em Brick Lane, Londres, no final de

2009. Dentre os trabalhos de que mais gostei,

me impressionou uma traquitana chamada Spi-

der – uma aranha de madeira e componentes

de metal que tocam um som à medida que o

visitante se aproxima dela. Era a primeira vez

que ele tentava conectar o som à presença do

espectador no recinto.

Nascido em Brighton, no litoral da Inglater-

ra, Thorn começou a tocar piano na infância,

época em que as notícias do que acontecia

na vanguarda europeia chegavam diariamen-

te à sua casa. Mais tarde, na adolescência, o

artista viria a se interessar por essas poéti-

cas inovadoras. Nessa época, ainda no litoral

britânico, ele descobriu a importante cena

de improvisação livre da Inglaterra e o free

jazz americano. Dessa forma, tomou contato

com uma música menos linear e a ideia de

improvisação, o que mudou sua concepção

de vida e de arte. Era a descoberta de uma

produção de sons sem batuta e nem plano

pré-determinado. Foi justamente a multiplici-

dade de eventos rítmicos e harmônicos que

chamou a sua atenção. Aquela música era

feita de melodias que não acompanhavam

uma linha sincrônica com o ritmo e a harmo-

nia. Era como se fosse criada uma série de

eventos múltiplos na mesma unidade sonora.

O gosto do artista por essa série de eventos

paralelos, que se relacionam entre si mas não

têm determinação uns sob os outros, se man-

tém até hoje.

Ainda nos primeiros anos da idade adulta, Fe-

lix Thorn se dedicou a um trabalho mais sério

com o som, algo a que aspirava desde menino.

No fim da adolescência, ele descobriu os meios

digitais de fazer música e começou a brincar

com eles, inspirado na forma de criar de com-

positores populares ousados como Richard D.

James do Aphex Twin e Luke Vibert. O curioso

é que sua aproximação de compositores do uni-

verso da música eletrônica feita para as pistas

não se deu no mundo das raves, mas em razão

do gosto pela polirritmia do jazz vanguardista

dos Estados Unidos e a improvisação livre dos

americanos. Assim, as músicas com sons simul-

tâneos e aparentemente separados uns dos

outros o levaram para as baterias eletrônicas

mais sincopadas. Sua motivação era a possibili-

dade de compor em um formato mais tradicio-

nal, utilizando as síncopes e assimetrias de que

sempre gostou, mas deixando de lado a ideia

de improvisação e abraçando a composição.

A música era programada, e as peças batiam

de acordo com uma linha do tempo previa-

mente estabelecida.

“nãO sã

O Obje

tOs que tOcam

música, m

as uma m

úsica q

ue

esculp

e Obje

tOs.”

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27

“nãO sã

O Obje

tOs que tOcam

música, m

as uma m

úsica q

ue

esculp

e Obje

tOs.”

Felix Thorn

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28

Acontecia então o que talvez tenha sido a pri-

meira passagem do artista. Ele quis que a mú-

sica que fazia fosse tocada sozinha, como se

dispusesse de um número de elementos maior

que apenas um instrumento musical. A músi-

ca digital abria para ele a possibilidade de co-

mandar sua própria orquestra. Ao terminar a

faculdade, Thorn quis passar aquela pulsação

para um lugar mais físico. A música de que ele

gostava antes de embarcar no pop eletrônico

se manifestava no espaço, não só no tempo.

John Cage, Morton Feldman, Cornelius Cardew

e Stockhausen sempre falaram de uma mecâ-

nica de sons no espaço, não só em uma ordem

temporal. Porém, nada pode ser menos espa-

cial que a eletrônica. O artista, então, começou

a se utilizar de instrumentos acústicos progra-

mados de forma eletrônica para tocar em um

determinado lugar. De compositor digital, ele

agora passava a ser um engenheiro de instru-

mentos que se tornavam esculturas.

Fascinado pela pianola e pela caixa de música,

seu primeiro objeto de trabalho foi o piano. O

piano automático, tão explorado por composi-

tores geniais como Colon Nancarrow, era trata-

do como um piano temperado. O artista cortava,

mexia dentro do instrumento e inseria pedaços

de pau e papel para modificá-lo. No entanto,

mais espaço era preciso. Foi por isso que Thorn

começou a compor objetos visuais que tocavam

música. Aliás, o modo como ele narra o processo

de criação desses objetos é muito bonito: “Não

são objetos que tocam música, mas uma música

que esculpe objetos”. Nada parece mais preciso.

A disposição, a escolha de cada peça, é sonora,

mas de um som que molda um espaço.

Dessa forma realizaram-se duas passagens: do

digital e imaterial para o analógico e físico. Ao

mesmo tempo, o artista tratou de incorporar nas

suas composições o meio que propagava o som.

Assim, instrumento passa a ser escultura. Nos

primeiros trabalhos, uma escultura feita de ins-

trumentos musicais, sobretudo instrumentos de

percussão, acionados por motores simples, de

brinquedos e eletrodomésticos. Pouco a pouco,

leds de luz são incorporados ao instrumento,

tal como os motores e engrenagem. Em Glide

(2008), peça que o artista exibiu na Gasworks, a

aparência não é de um instrumento engraçado,

mas de uma escultura cinética, como as criações

do artista suíço Jean Tinguely e do brasileiro

Abraham Palatnik. Para cada som há um movi-

mento de luz correspondente e uma reconfigu-

ração visual da obra.

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29

Assim, duas tradições mecânicas das artes do

século XX são colocadas lado a lado: as máqui-

nas de fazer som e as máquinas visuais. O balé

mecânico das esculturas é acompanhado da

música eletroacústica. Não por acaso, o artista

assina suas exposições não com o próprio nome,

embora confesse que a tendência é abandonar o

pseudônimo, mas como Felix’s Machines. Como

se fosse manipulador de um artista mecânico e

artesanal. Os trabalhos que vi em 2009 estão

cada vez menos parecidos com instrumentos

musicais e cada vez mais parecidos com engre-

nagens, aparelhos e máquinas. Isso melhorou a

obra do artista. Não se trata mais de instrumen-

tos acionados por energia elétrica, mas dos sons

da máquina a executar música.

Na peça mostrada durante a exposição coletiva,

Thorn apresentou uma escultura que só podia

ser acionada pela presença física de quem visi-

tasse a mostra. Através de sensores, a máquina

tocava uma música diferente de acordo com os

movimentos da pessoa na sala. Assim, foi pos-

sível incorporar algo de que ele sempre gostou,

algo de indeterminado na ordem dos sons. Mui-

to da arte do século XX tentou transformar o

gesto singular e acidentado do homem em algo

mais regular e controlado, tal como a máquina.

Com um senso estético totalmente pensado a

partir da máquina, Felix Thorn tenta o inverso.

Como se brincasse na hora do trabalho. 3

2SAiBA MAiS

www.felixsmachines.com

(*) Tiago Mesquita viajou a Londres a convite de

Converse, para visitar a exposição coletiva de

lançamento da campanha “Spark Creativity”, que reúne

jovens artistas visionários do mundo todo.

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30

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31

rentes. No primeiro foi xilogravura, no segundo,

pintura de painel e no terceiro, litogravura. Isso

mostra a versatilidade de uma artista em for-

mação que, apesar de vir de um contexto por

vezes fechado em si (a arte de rua), não parou

de pesquisar e experimentar diferentes formas

de se expressar. Ainda assim, Lidia mantém

uma característica fundamental da street art: a

força de comunicação. Mesmo com a profundi-

dade subjetiva do bom desenho contemporâ-

neo, a arte dela pode ser apreciada de manei-

ra simples e direta, pela forma, beleza e pelos

sentimentos que surgem, sem a necessidade de

maiores explicações.

Na entrevista a seguir, Lidia conta um pouco

mais de sua trajetória, comenta o significado de

alguns elementos de sua arte e outras coisinhas,

como hobbies, a produção de sketchbooks arte-

sanais, a troca de moleskines pelo correio e sua

relação com design gráfico.

Como começou seu envolvimento com arte?

Desde pequena eu gostava de desenho anima-

do e quadrinhos, ficava tentando copiar. Tive

professores de arte durante o colegial que esti-

mulavam os alunos a produzir coisas interessan-

tes. Estudei em colégio católico durante todo o

primeiro grau. No ano de 2005 comecei a ter

contato com o movimento de rua de Porto Ale-

gre e surgiu a preocupação com uma linguagem

direcionada para a cidade. Na mesma época

procurei o Atelier Livre da Prefeitura e comecei

a fazer cursos de gravura. Na xilogravura, tive

um professor superexigente que me fez abrir os

olhos e querer mais.

Analisar a história em retrospectiva e apontar características de indivíduos

ou grupos em determinados períodos de tempo é sempre mais

fácil do que descrever algo em constante mudança. Talvez por

isso falar da jovem artista LiDiA BRANCHeR não seja uma tarefa tão fácil. Lidia tem apenas 22 anos, mas

já é um dos nomes mais interessantes da nova geração de artistas de Porto Alegre, tanto no círculo da street art

quanto no das artes estabelecidas. Iniciou sua trajetória pintando

personagens fofos e bonitinhos na rua, mas logo percebeu que eles não

seriam o suficiente para expressar sentimentos mais profundos. 1

A pós suas primeiras incursões nos muros,

procurou o Atelier Livre da Prefeitura, um

espaço comunitário de arte em atividade

desde os anos 1960 e que tem em suas raízes

alguns dos principais artistas gaúchos, como

Iberê Camargo e Xico Stockinger. Lá, Lidia se

aprofundou no desenho, especialmente de mo-

delos vivos, e na produção de gravuras. Além

das artes visuais, sua busca por formação e re-

ferências se voltou para a literatura, enquanto

suas experiências de vida começavam a emergir

em suas obras. Foi a partir dessa mistura que a

artista chegou àquela que seria uma das suas

principais fontes temáticas: a mulher. Sem um

discurso feminista óbvio e caricato atrelado,

mas rico em reflexões, Lidia reconstrói senti-

mentos intimamente ligados ao sexo feminino

através de sua arte. Seus desenhos mostram

mulheres de verdade, sensação transmitida pela

força ou ausência de traços, e não pela busca de

uma representação realista.

Desde então, Lidia Brancher já participou de

diversos projetos legais, como o livro Xirugra-

vura, editado pela Choque Cultural e exposto

no Museu do Trabalho, as coletivas Usina Ur-

bana, na Usina do Gasômetro, e NOZ NA FITA

2009, na galeria FITA TAPE, em Porto Alegre. É

interessante notar que em cada projeto citado

ela participou com técnicas e/ou suportes dife-

Por que sua arte retrata essencialmente mulheres?

Bem, mulheres... Primeiramente porque sou adep-

ta das leituras feministas, tenho interesse pelo uni-

verso feminino. Sou mulher, sinto na pele todas as

angústias, realidades, vontades e possessividades

que caracterizam o gênero. Mulheres para mim

têm a estética perfeita, são belas e tristes. Isso fa-

cilita na hora de desenhar, porque você pode criar

uma interpretação em cada gesto, em função da

delicadeza. Admiro a evolução das mulheres den-

tro da história da humanidade e estou sempre à

procura de mulheres que fizeram alguma diferen-

ça. Me espelho em mulheres fortes, como Simone

de Beauvoir, Frida Khalo, Kathe Kollwitz, Camile

Claudel, Violeta Parra e Hilda Hilst.

MulheresAs

deLidiaPor ana Ferraz

Foto Por luise malmaceDa

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32

Noto que, juntamente com as mulheres, ima-

gens de gatos também são recorrentes.

Os gatos são sensuais, elegantes e delicados. São

animais dóceis e costumam ser ponderados. Ao

contrário dos cachorros, que necessitam de aten-

ção, o gato parece ter todos seus atos calculados.

Quando saltam de um lugar para o outro, são cer-

teiros. Além do mais, gatos eram adorados no Egi-

to, e eu gosto de arte egípcia. Essa relação entre

gatos e humanos é expressada na história da arte

há cinco mil anos. Como, por exemplo, Bastet, que

era uma deusa representada com cabeça de gato,

deusa da fertilidade e da felicidade. O engraçado

é que na Idade Média os gatos eram associados

às bruxas e assassinados juntos com elas. Existem

sortilégios que envolvem o animal, é comum ele

ser associado à sorte ou ao azar. Enfim, são fasci-

nantes e companheiros leais. Acredito que sejam

mais sinceros que os próprios humanos.

Como você vê sua personalidade retratada nos

seus desenhos?

Existem várias pessoas dentro de mim. Às vezes

sou mais rude e forte, às vezes mais delicada.

Acredito que no momento que crio não penso

só em mim ou na minha figura e expresso algum

sentimento, como as minhas dores. Olhos fecha-

dos ou cabelos que se enrolam, animais dóceis,

mulheres nuas, morangos, são todos elementos

que fazem parte de alguma história minha, que

pode ou não ser real.

Como você começou a pintar na rua?

Eu desenhava, mas era passatempo. Tinha ami-

gos no mesmo bairro que pintavam e começa-

ram a estimular. Comprei três latas e numa noite

fui para baixo de um viaduto pintar... Sem noção,

mas muito pelo feeling. Conheci pessoas e sigo

me divertindo.

você pinta bastante com suas amigas. O quan-

to isso é importante para você?

Acho muito importante ter companhia agradá-

vel e sinceridade. Para pintar procuro sempre

estar com quem tem liberdade de falar o que

gosta e o que não gosta. Entre as minhas ami-

gas, algumas começaram a pintar quase na mes-

ma época que eu, enquanto outras me passaram

experiências. Inevitavelmente mantemos cari-

nho por cada coisa que conseguimos realizar

juntas. Compartilhamos sentimentos normais e

anormais. Amizade é isso. Pintar na rua é entrar

nesse universo de se envolver com os espaços e

as pessoas de cada lugar.

Algum problema com a polícia ou situação ines-

perada pintando na rua?

Não costumo ter problemas com a polícia, mas

já tive sim. Já fui pra delegacia uma vez pintando

com um amigo em um viaduto, e era vandalismo

na cara dura. No fim deu tudo certo e consegui-

mos aval da Secretaria da Cultura, mas foi um

susto bem grande. Outra situação foi com me-

ninos de Curitiba. Eu estava só de acompanhan-

te e acabei indo junto pra delegacia. Achamos

que o policial estava plantando “coisas”, imagi-

ne! Os meninos (Cimples e Rimon) me taparam,

enquanto os materiais ainda estavam expostos.

Nisso, tinha um estojo que não era de ninguém.

Eu peguei esse estojo e botei no lixo. Depois que

nos liberaram, fui no lixo e peguei o estojo. Quan-

do abrimos era só uma escova de dentes!

Como você diferencia seu trabalho de ateliê do

feito na rua?

Tanto no trabalho de rua como no que produzo

no ateliê tento manter um diálogo temático. Na

rua, o caos: tinta, spray, pincel, dedo no muro,

barulho, poluição. No ateliê geralmente produzo

gravuras, traços mais delicados, em convivência

com várias senhorinhas e com o impressor.

Me fala da sua relação com caderninhos.

Começou quando conheci pessoas em Curiti-

ba que eram fanáticas, que produziam e pre-

enchiam os caderninhos. Me apaixonei. Queria

ter muito e aprendi a fazer, produzir séries para

vender com meu amigo Federico. Ministrei algu-

mas oficinas no Núcleo Urbanóide. Enfim, amo!

Não posso ver um diferente que quero pra mim.

São diários e parceiros nas minhas viagens,

onde colo, risco e me sinto à vontade.

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“Sou adepta das leituras feministas, tenho interesse pelo universo feminino.

Sou mulher, sinto na pele todas as angústias, realidades, vontades e possessividades que

caracterizam o gênero.”

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e as trocas pelo correio? especialmente dos moleskines?

Sempre gostei de trocar pelo correio. Quando a troca é de arte, o sen-

timento é o mesmo. Às vezes nem conheço muito pessoalmente quem

vai receber, mas compartilho universos parecidos. Com os moleskines

começou no ano passado. Já sabia da história que envolvia o caderno

e ganhei de um membro desses grupos um moleskine tipo japonês. Foi

um presente para participar do grupo “Moly_x_portrait4”, no qual fa-

zemos retratos dos donos dos sketchbooks. Ou seja, pessoas de vários

lugares me retratam no meu moleskine.

O que te faz continuar a produzir arte? O que você tem vontade de

fazer que ainda não teve oportunidade?

Eu tenho mil sonhos quanto ao meu trabalho. No momento gostaria de

pintar e fazer cada vez mais gravuras. Oportunidade de pintar laterais de

prédios, como tem sido comum em São Paulo e em outros países que já

têm a street art mais valorizada e associada a grandes galerias ou marcas.

Na verdade, enquanto minha arte puder envolver as pessoas, eu me sinto

avançando. Quando essa proporção aumentar, acho que uma parte de

mim ficará mais completa, mas nunca satisfeita. Mais rua, mais exposições,

mais produção, mais viagens e, claro, mais “din din” para poder continuar.

O que te interessa no design gráfico, e como você pretende trabalhar na área?

Sou apaixonada por materiais impressos: embalagens, papéis, rótulos,

revistas, jornais, livros, zines... E também gosto de estampas. Pretendo

trabalhar de preferência em um lugar que aceite meu perfil, mas por

enquanto estou ainda tateando esse universo. Mas é na área impressa

que gostaria de atuar.

O que vem pela frente?

Continuar produzindo gravuras e obras para uma exposição indivi-

dual em 2010. 3

1SAiBA MAiS

flickr.com/huanita

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36

vontAde

superlativa

Por mateus Potumati

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37

A trajetória de BRUNO MORAIS é incomum sob vários aspectos.

A começar pela forma peculiar que ele escolheu para entrar na música:

o teatro. Nascido em Londrina, aproveitou a tradição dramática

vanguardista da cidade paranaense – que revelou o grupo Armazém

e Itamar Assumpção, por exemplo – para fugir aos lugares-comuns

da música local. Trilhou silenciosamente um caminho em que os

obstáculos muitas vezes pareceram intransponíveis: a rejeição

natural a atores no meio musical, o isolamento dos grandes

centros do país, uma voz grave, destreinada e difícil de

trabalhar. “Eu achava minha voz horrorosa”, ele revela,

sem rodeios. “Mas fui descobrindo um timbre, até que

pensei ‘agora deixou de ser brincadeira, assim dá pra

cantar’.” Em um meio vulnerável a pretensões e

pseudismos, Morais evitou armadilhas e aprendeu

a trabalhar com seriedade e consciência. Revelou

uma capacidade brilhante de agregar parcerias,

como o trompetista Guizado e os produtores

VitaminD e XXXChange, que o ajudaram

a polir A Vontade Superstar, disco que

figurou em várias listas de melhores de

2009. De fala mansa e transparente,

Bruno Morais falou com a +SOMA

sobre o último disco, sobre o

anterior, Volume Zero, e sobre

sua passagem pela Red Bull

Music Academy. Sem deixar

de lado os detalhes de

uma jornada exemplar de

auto-conhecimento. 1

A sua carreira deve muito a uma sacada da sua

parte: ter escolhido os caras certos pra trabalhar

e ter feito a lição de casa nos lugares por onde

passou. você não toca nenhum instrumento, não

é um grande cantor no sentido convencional,

mas transformou isso em virtude. Fala um pouco

da influência desses parceiros no seu desenvol-

vimento e de como você conseguiu reuni-los.

Foi isso que eu sempre soube fazer mesmo, o

resto eu não sei. Ainda estou aprendendo. Quan-

do eu parei de fazer teatro e resolvi montar uma

banda, em 97, descobri logo que era um cantor

tosco, desafinado. E eu era bom ator. Mas tinha

um parâmetro alto, ouvia muita música – sempre

comprei bastante disco – e sabia o que queria.

você só fazia teatro naquela época, né? Ainda

não tinha tentado nada na música.

Eu sempre quis trabalhar com música, entrei no

curso [da Escola Municipal de Teatro de Londri-

na] pra me aproximar de um trabalho vocal. Não

tinha nada decente em Londrina – eu tinha fei-

to duas aulas de canto lírico, uma tosquice sem

tamanho (risos). Acho que eu sempre tive esse

radar, de identificar as minhas falhas e o que eu

precisava aprender. Hoje o fato de não ter essas

habilidades virou minha ferramenta de trabalho.

É um jeito bem particular de trabalhar.

e você montou a banda rápido em Londrina?

Nada, o povo tinha preguiça de tocar com ator

(risos gerais). Mas fui aprendendo aos poucos

quem eu devia chamar. Quando gravei meu

primeiro disco, coloquei Volume Zero (2005)

porque eu não queria que fosse o primeiro. Eu

queria dizer pras pessoas “ainda tô fazendo meu

TCC”, perguntar o que elas achavam. Porque a

gente é oriundo dessa falência da indústria, en-

tão eu já sabia que não tinha perspectiva nenhu-

ma de pagar um aluguel bacana, mobiliar uma

casa trabalhando com isso. Sabia que seria uma

aventura eterna. Então tinha que ter alguma re-

levância, senão era melhor não fazer. Aí, quando

a banda acabou por lá eu vim pra São Paulo.

em que ano foi isso?

2003. Trabalhava de garçom ali no Santa Gula

(bar/restaurante na Vila Madalena) e morava

de favor com uma amiga. Conheci um monte

de gente, mas não adiantava nada (risos). Não

tinha tempo pra tocar. Aí fui embora querendo

desistir, mas minha mãe me convenceu a não

parar. Aí o Júlio [Anizelli, produtor londrinense]

e o Gustavo [Potumati, também produtor] esta-

vam construindo o estúdio deles em Londrina, e

fui gravar meu disco.

Fora da periferia de Londrina quase ninguém

escuta rap, e seu trabalho se sobressaiu lá mui-

to por um cuidado de produção devedor ao

gênero, mesmo quando é orgânico.

Tinha uma época que eu gostava de groove –

Beck, Jorge Ben, Tim Maia –, depois comecei

a curtir muito hip-hop por causa do Voodoo

(2000), do D’Angelo. E junto vieram Erykah

Badu, The Roots, Common, Macy Gray. Essa ga-

lera me interessou muito. Paralelamente a isso,

sempre ouvi João Gilberto, Caetano, Gil, Tropi-

cália, Michael Jackson/Jackson 5. Mas até hoje o

que eu acho a coisa mais bonita do mundo são

mesmo Beatles e João Gilberto. E samba de raiz,

que veio depois.

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Logo depois do Volume Zero rolou a Red Bull

Music Academy. Foi algo bem importante no

processo de A Vontade Superstar, conta como

aconteceu.

Fiquei sabendo por acaso. Todo mundo me falava

“olha, isso é muito difícil, muito concorrido”. Fiquei

em dúvida se valia a pena. Mas mandei pra lá, e

cinco meses depois eu estava em Seattle (novem-

bro de 2005). Aí o negócio mudou. Lá, eu come-

cei a entender um monte de coisa, especialmente

em termos de colaboração livre. Nove estúdios,

trinta novos artistas do mundo inteiro. Foi muito

interessante conviver com isso. Era a Disneylândia,

aprendi a falar inglês em três dias (risos).

e além dos músicos também tinha vários pro-

dutores, né?

Sim, eram 30 medalhões. O cara que produziu

a Björk, Chuck D, ?uestlove, muita gente impor-

tante. E o conceito era essa coisa da gênese – a

primeira grande palestra era com o Leon Ware.

Ele inventou um lance, né? Compôs “I Want

You”, do Marvin Gaye, trabalhou com o Quincy

Jones, produziu Ike and Tina etc. Na primeira

noite, bebaço, encontrei ele numa balada do

evento. Não fazia ideia de quem era, mas entre-

guei o disco. No outro dia, ele chegou falando

meu nome, que a minha voz era muito diferente

das outras que tinha ouvido. E foi ali que eu co-

mecei a entender de verdade a minha voz. Me

senti muito autorizado a continuar com aquilo.

e em A Vontade Superstar o grande salto foi a

tua voz.

É. E eu gravei com o Leon Ware. Foi a única gra-

vação assistida por toda a academia e impren-

sa. Eu tava cagando de medo (risos). Mas isso

significou que eu poderia colaborar com quem

quisesse – porque lá você tem que ganhar as

pessoas, o técnico, os colaboradores. Estava de

olho no VitaminD (produtor de Blackalicious,

Chali 2na etc.) e no XXXChange, que ainda não

era ninguém (o DJ/produtor faria sucesso logo

depois com o Spank Rock). Aí eu tinha levado

pra Seattle um baixo de “O Mundo é Assim”

(versão do clássico de Alvaiade que entrou em

A Vontade Superstar), junto com outras ideias.

O VitaminD gostou e produziu a faixa comigo.

Depois chamei a Anya (cantora americana de

ghettotech/soul) pra fazer aqueles “pa-pa-pa”.

A versão que entrou no disco foi toda gravada

na Academia?

Algumas coisas sim, outras não. Eu tinha todas

essas coisas já gravadas e fui fazendo, pedindo

opinião para as pessoas. Depois chamei o XXX-

Change pra produzir “Planos”, chamamos o Tony

Chang, do [septeto neozelandês de dub/jazz]

Fat Freddy’s Drop pra fazer sopro... Ele gravou

todas as faixas do disco e até hoje é parceiro. Aí,

quando eu voltei, já tinha uma matéria um pouco

maior falando de mim no jornal, tinha mais espa-

ço pra conversar com os caras daqui... Porque a

merda é assim mesmo, o pessoal só olha pra tua

cara quando você tem o aval de alguém.

você veio de lá com quantas músicas?

Com três: “Planos” e “O Mundo é Assim”, que

entraram no disco, e essa com o Leon Ware,

que eu vou guardar pro futuro. Mas todo esse

pessoal continuou gravando comigo, partici-

param de todo o disco. Uma raw mix dessas

duas faixas entrou no disco da Music Aca-

demy, também, mas é algo bem distante da

versão final. Aí, quando eu voltei, precisava

de uma banda nova, porque todo mundo com

quem eu tocava já estava em outra. O Marcelo

(baterista) tinha ido embora pros EUA, não ti-

nha como trazer o Mizão (guitarrista) pra cá,

o Fuca (Rafael Fuca, parceiro e compositor)

tinha ido embora. Também precisava de uma

produtora, e achei a Lili [Molina], que me

apresentou o [baterista] Guilherme Kastrup.

O Kastrup me apresendou o Guizado, o Fuca

me apresentou o “novo Fuca”, que era o Zé

(o guitarrista José Passeti), que depois ga-

nhou peso e compôs muita coisa comigo, e

eu tinha essas bases que gravei em Londrina.

Gosto muito de gravar lá, com o Felipe [Bar-

them], porque ele é muito bom de harmonia,

traduz maravilhosamente bem o que eu quero

e faz comigo uma coisa que ele não faz com

mais ninguém, e vice-versa. Com o XXXChan-

ge também é parecido, o que ele faz comigo

não tem nada a ver com o Spank Rock, ou os

remixes famosos que ele fez pro CSS, Santi-

gold. É outro planeta. Gosto disso, de chamar

um cara pra se divertir, fazer algo que ele não

faz normalmente. Já que eu não vou ter como

bancar, que pelo menos ele seja feliz, descubra

alguma coisa nova.

você falou do samba, que foi um salto impor-

tante pra você. quando começou a se dedicar

mais ao gênero?

Qual era a essência do que eu escutava? Eu ouvia

várias coisas, mas nunca fui muito a fundo na histó-

ria delas. Naquele tempo que passei em São Paulo,

eu precisava ganhar uma grana e comecei a fazer

noite com o Fuca. Ele queria pegar um repertório

de cover, Marisa Monte etc., mas eu falei “eu não

tenho competência pra isso, não vai dar certo”. Aí

ele começou a tocar uns sambas, e eu sabia cantar.

Não era uma música que eu ouvia todo dia, mas

sabia cantar – Orlando Silva, essas coisas. E aí co-

mecei a ouvir mesmo, comprar muito disco. Entrei

fundo na Velha Guarda da Portela. “O Mundo é As-

sim” é a primeira aventura nessa praia. Aí, de Seat-

tle eu fui pra Chicago, conheci o Green Mill (clube

centenário de jazz da cidade) e pirei! A história do

jazz estava toda ali, a gênese de muita coisa que

eu escutava. E tinha uma conexão com esse samba

de raiz, então eu comecei a entender que o meu

negócio era esse – de um jeito muito pop, que eu

só ouvi pop a vida inteira –, e aí o disco apareceu.

você já soltou algumas faixas novas depois do

disco (versões para músicas de Lulina e Rômu-

lo Fróes). Como estão seus planos agora?

Eu continuo aproveitando esse momento. O Mau-

rício [Tagliari, da YB] fez, por conta dos 10 anos

do selo, um especial com câmeras de cinema.

Dois artistas da casa – eu e a Lulina, os mais no-

vos –, a Tulipa [Ruiz], o [Marcelo] Jeneci e a Blue

Bell. Cada um gravou duas músicas. Esse mate-

rial foi pra internet, depois pra MTV, no Estúdio A.

Agora as faixas vão virar clipe, e eu tenho tocado

elas nos shows. E tô fazendo músicas novas. Vou

fazer tudo do jeito que fiz, mas dá pra pensar

passo a passo, sem crise, porque tenho uma pro-

dutora e tem a YB junto. Já conheço todo mun-

do aqui, então fica mais fácil continuar com essa

brincadeira de chamar pessoas. Mas isso mais

pra frente, por enquanto eu quero continuar esse

show e dar um tempo de gravar. Interagir com

esses amigos novos, compor com eles. 3

1SAiBA MAiS

myspace.com/brunomorais

Leia esta entrevista na íntegra e baixe as faixas

exclusivas “Bichinho do Sono” e “Cidade Baixa” em

www.maissoma.com

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40

Não é todo dia que temos a oportu-nidade de bater um papo descon-traído com dois dos nomes mais im-portantes da arte underground atual. Foi nesse clima que sentamos com os norte-americanos Josh “SHAG” Agle e Gary Baseman, momentos antes da abertura da exposição de ambos na Choque Cultural no início de fevereiro, em São Paulo. A ideia inicial era mediar um bate-papo entre os dois, mas acabamos entrando na conversa. Gary fala pe-los cotovelos e faz piadas o tempo todo com sua voz de desenho ani-mado – ele próprio poderia ser um personagem de sua série animada Teacher’s Pet, produzida pela Disney no começo da década. Josh é mais comedido com as palavras e dado a enunciações acadêmicas, fruto de um curso de artes levado a sério na

Por mateus Potumati e tiago moraes

GARY BASEMAN & SHAG

Cal State University. Ambos têm uma visão lúcida sobre sua obra e a His-tória da Arte, devidamente apimen-tada por refinadas doses de auto-humor e sarcasmo.

Além do humor, outro ponto comum no trabalho dos dois é a inevitabi-lidade em lidar com a meia-idade. Aos 49 e 47 anos, respectivamen-te, Baseman e SHAG retratam à sua maneira os clichês e dúvidas reais do momento que vivem. Se SHAG abandonou o clima de festa e co-quetéis de seus trabalhos anterio-res, trazendo à tona um tom mais sombrio e surreal, Baseman parece desafiar cada vez mais os limites entre opostos como o divertido e o sombrio, o infantil e adulto, como se fosse uma batalha pessoal entre a juventude e a maturidade. 1

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GARY BASEMAN & SHAG

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SHAG . você lembra qual foi o primeiro de-

senho que fez?

Gary Baseman . Lembro do primeiro que

vendi, eu tinha 12 anos (risos). Vendi por 100

dólares, era um cartão de Natal. Minha irmã

trabalhava para uma empresa e me contra-

taram. Mais tarde comecei a trabalhar como

ilustrador, fazendo coisas pra Time, Rolling

Stone, The New Yorker. Revistas boas e ruins

(risos). Em 1992 tive uma exposição (Nervous

Twitches) em uma pequena galeria chamada

Illustration Gallery, em Nova York. Naquela

época, nenhuma galeria de arte aceitava al-

guém que trabalhasse com publicações. Hoje,

não ligam se você é da street art, se é de Mar-

te, se transa com bonecas. O que importa é

a sua arte.

GB . essa pergunta foi bem interessante,

agora vou fazer a minha: por que seu traba-

lho ficou tão fálico?

(Risos gerais) SHAG . É pra valer?

GB . Foi a primeira coisa que me veio à cabeça.

Posso fazer mais uma pergunta, se você quiser.

SHAG . Não, a pergunta é boa. Em primeiro lu-

gar, é fácil desenhar um pênis. É só você fazer

o contorno e todo mundo já sabe do que se

trata. Acho que também é uma forma de me

distanciar do meu estilo anterior, que era ba-

sicamente sobre pessoas bebendo coquetéis,

indo a bares, festinhas. Mas, se você olha para

esta aqui (aponta para a tela Trojan Head, ex-

posta no andar inferior da galeria), ela não é

tão sexual como os trabalhos do Gary. Não

tem personagens cobertos de sêmen ou algo

assim (risos).

GB . Não é sêmen! É creamy love, que o Chou-

Chou expele depois de tirar as energias nega-

tivas das mulheres.

GB . Mas a questão além: o que eu amo neste

seu trabalho é o fato de você ter se inspira-

do e acho que muitos de nós hoje também o

somos – em The Garden of Earthly Delights,

de [Hyeronimus] Bosch. você era o artista do

cool, do hip, do jazz, e ainda tem esses ele-

mentos – a paleta de cores continua a mes-

ma, a abordagem para criar imagens ainda é

SHAG, mas agora o tema principal tem uma

natureza surreal, onde as coisas não são mais

tão belas. Não que o seu trabalho anterior não

fosse interpretativo, mas aqui ele está quase

em um código onírico, como se fosse sua au-

tocrítica. Por que isso agora?

SHAG . Chega um ponto da sua carreira em

que você alcança tudo que sempre teve von-

tade de ter, vários bens materiais, uma esposa

que todo mundo olha e admira, mas isso não é

necessariamente sinônimo de felicidade. Então

você reavalia sua vida e tenta definir quais são

as coisas que te fazem feliz e quais as que você

pensa que te fariam feliz, mas que na verdade

não fazem. É bem isso que está retratado nesse

quadro. Eu estou bem ali, de quatro, e minha

mulher e meus dois filhos estão sobre as mi-

nhas costas. Olho para aquelas duas mulheres

lindas e nuas escorregando nas costas de uma

baleia. Não vou fazer nenhuma interpretação

(risos), mas acho que [o sentido] é bem óbvio.

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43

+SOMA . A sua mulher está com uma expres-

são meio de pena, sua filha parece estar com

muita raiva e o seu filho está achando o má-

ximo (risos).

SHAG . Exato. Eu tentei capturar a persona-

lidade de cada um, a forma como eles reagi-

riam em uma situação dessas. Estou com 47

anos, devia ter uns 28 quando decidi que que-

ria chegar a algum lugar na vida. Me matei de

trabalhar nos 12, 14 anos seguintes. Não deixei

passar nenhuma oportunidade de trabalho,

pintava quase 18 horas por dia. O sucesso foi

chegando, mas eu abri mão de qualquer di-

versão, só queria saber de pintar. Há um ano e

meio ou dois, percebi que eu não queria mais

só pintar, queria voltar a me divertir. Voltei a

surfar, o que não fazia há 25 anos, voltei a sair

com meus amigos, ter vida social. Foi mais ou

menos nessa época que eu comecei a fazer

trabalhos desse tipo.

+SOMA . você começou cedo como o Gary?

SHAG . Eu não vendia desenhos com 12 anos

(risos), mas tive bastante influência na infân-

cia. Meu avô era era um artista comercial bem sucedido, então eu sabia que existia a possibilida-

de de ter uma carreira.

GB . Eu não tive nada disso! Tive só Bob Clampett e Sergio Aragonés (risos). Ninguém na minha

família fazia nada que lembrasse arte. Meu pai era eletricista, minha mãe era confeiteira. Não

conheci meus avós, mortos no Holocausto. Mas, mesmo sendo de classe média, tive a sorte de es-

tudar em uma escola pública boa de Los Angeles. E as filhas de Bob Clampett estudavam lá. Ele

criou um desenho animado nos anos 1960 chamado Beany and Cecil, mas também foi um dos pri-

meiro diretores da Warner Bros., e lá ele fez um dos meus curtas de animação favoritos de todos

os tempos, Porky in Wackyland (filme de 1938, com o porco que ficou conhecido no Brasil como

Gaguinho), que é uma versão Bosch-surreal dos desenhos da Warner. Ele também criou o Piu-Piu.

É um tremendo animador, muita gente se inspira nele até hoje, e foi falar na minha escola quando

eu tinha 12 anos! De repente ele estava ali, a três metros de mim! Mas também, naquela época,

meu irmão sempre me dizia “tenha seu próprio estilo”. Então, desenhar sempre foi mais desen-

volver meu estilo e meus personagens do que copiar, mesmo que eu venerasse Bob Clampett.

+SOMA . é verdade que você ganhou prêmios por bom comportamento?

GB . É! Eu nunca fui de estudar muito, mas ganhei prêmios por ser um bom menino (risos) – do

Los Angeles Youth Council e outros. Eu não era um grande aluno, não era inteligente ainda não

sou (risos) – mas acho que os professores gostavam de mim. Tinha alguns objetivos claros: ser

um bom menino, trabalhar duro, alcançar algum objetivo na vida. Meus pais eram sobreviventes

do Holocausto, meus avós foram mortos na Polônia, perderam tudo que tinham. Assim, a dor pela

qual eles passaram não teria sido em vão. É por isso que naquela época meu lema era obedeça

às regras. Depois virou fodam-se as regras (risos).

“Enquanto Eu trabalhava três sEmanas Em uma tEla, EssEs caras martElavam uma lata dE cErvEja numa cadEira E iam dirEto pro bar bEbEr! (risos) E agora todo EssE povo trabalha Em alguma lojinha vEndEndo pôstEr, nEnhum dElEs sE tornou artista. concEito é importantE, mas vEm dEpois. é prEciso sE concEntrar Em outras coisas antEs.” shags

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+SOMA . você citou o Mark Ryden e no traba-

lho dele há um senso de inocência contamina-

da, que eu também vejo nos seus desenhos.

Talvez porque você tenha se inspirado muito

no Bob Clampett na infância, antes de mandar

as regras à merda.

GB . Inocência Contaminada, tá aí o nome da

minha próxima exposição! (risos) Bob Clam-

pett me mostrou uma maneira de ganhar a vida,

mas eu também era muito fã do John Lennon,

por exemplo, que mesmo sem ser underground

sempre foi rock and roll pra mim, e me mostrou

que era possível misturar arte e poesia. Também

teve a comédia, os Irmãos Marx, Jerry Lewis. Es-

sas coisas me fizeram ter vontade de entreter as

pessoas e fazê-las pensar. Alguns de meus per-

sonagens podem parecer sujos, malvados, mas

o Chou Chou, por exemplo, tira o ódio das mu-

lheres e traz amor. Ele tem algo de subversivo, e

existe uma certa dor nele, mas as mulheres ado-

ram, vivem dizendo “quero um pra mim” (risos).

Em várias exposições minhas, acabei criando

personagens que representam uma série.

SHAG . qual é o desta exposição?

GB . Não tem (risos). Para esta exposição, eu

estava experimentando estilos de pintura, e era

minha desculpa para voltar ao Brasil no Carnaval

(risos). Tentei evitar certos temas para criar uma

realidade de sonhos, porque esta é uma exposi-

ção pequena. Em geral, quando faço uma gran-

de, produzo em média 35 telas, mais uns 15 de-

senhos, em torno de 60 trabalhos no total. Aqui,

são 14 telas e 6 desenhos. Eu amo os trabalhos

que produzi para esta exposição, mas é diferen-

te de montar uma grande série. Quando expus

em Nova York, na Jonathan Levine – a minha

Garden of Unearthly Delights (2005) – criei o

Hot Cha Cha Cha, um demoniozinho que deflora

anjos roubando suas auréolas. Na Earl McGrath,

quando fiz a Happy Idiot (2003), contava histó-

rias sobre um boneco de neve que se sacrifica

por amor a uma sereia, se derretendo para que

ela sobreviva em seu corpo transformado em

água. Em todas essas exposições há um ícone.

SHAG . Então é isso que essas coisas significam!

(risos gerais)

GB . Agora espero poder fazer mais narrativas.

Nas minhas primeiras exposições, eu não queria

nada escrito, queria que as pessoas entrassem

na galeria como astronautas, vendo tudo pela

primeira vez, cercados pelos trabalhos, e inter-

pretassem por si mesmas. Agora, quero traba-

lhar em histórias que tragam mais vida a esse

mundo.

+SOMA . Como vocês veem a distinção entre

o contemplativo e o conceitual no trabalho

de ambos?

SHAG . Quando estudei arte, tinha amigos cur-

sando escolas com grade bem mais conceitual. Eu estudei mais arte clássica, pintura a óleo, desenho a

carvão com modelos nus, essas coisas. Enquanto eu trabalhava três semanas em uma tela, esses caras

martelavam uma lata de cerveja numa cadeira e iam direto pro bar beber! (risos) E agora todo esse

povo trabalha em alguma lojinha vendendo pôster, nenhum deles se tornou artista. Conceito é impor-

tante, mas vem depois. É preciso se concentrar em outras coisas antes.

+SOMA . Onde fica a divisão entre ilustração e obra de arte, pra vocês?

SHAG . Acho que ilustração é tentar contar uma história. Mas, claro, o trabalho de Gary conta histórias,

o meu também...

GB . Talvez o termo aí seja ilustrativo. Não significa necessariamente que seja uma ilustração. Pra mim, ilustra-

ção é uma tarefa geralmente realizada para uma publicação ou anúncio, quando alguém te apresenta uma

história que deseja ilustrar. Acabei de fazer uma ilustração para a New Yorker, a primeira em cinco anos não

tenho feito mais nada para revistas, concentro meu tempo no meu trabalho pessoal. Eles me mandaram uma

história, eu li e criei uma imagem baseada nela. Nesse caso, foi um trabalho ilustrativo e foi também uma

ilustração. Boa parte do meu trabalho também é ilustrativo. Quando você trabalha com desenho e pintura,

exerce um lado ilustrativo, que vem da arte comercial – como Josh, Mark Ryden, os Clayton Brothers, Eric

White e outros já fizeram. Mas, nas telas, você lida tanto com arte perceptiva como com ilustrativa. É por isso

que uso o termo “arte difusa” (“pervasive art”), a ideia de que a arte pode ser percebida em qualquer lugar,

que somos capazes de criar arte que não se prenda aos limites que outros tenham criado. Pra mim, a defi-

nição de arte difusa é: desde que você seja fiel à sua estética e tenha uma mensagem forte, pode fazer arte

em qualquer coisa. Ao passo que arte comercial é negociar minha integridade para vender quadros. Mas não

existe preto no branco. Há vários artistas de rua que ganham a vida com marcas de tênis.

shag 4the little buck . 2010

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46

+SOMA . quando li sobre arte difusa pela pri-

meira vez, pensei em Rauschenberg, que rom-

peu com o expressionismo de maneira pare-

cida. Como você falou, os artistas de rua de

hoje assumiram uma relação mais direta com

a publicidade, com a arte comercial de massa.

você avalia isso como uma nova ruptura, como

evolução natural ou como um mau sinal?

GB . Não há resposta simples a essa pergunta.

Depende do artista e do que ele faz. Se você

faz um trabalho para uma grande corporação,

já sabe: não pode xingar, mostrar genitais, fa-

zer nenhuma crítica social ou política. Eles estão

comprando só seu estilo. Como artista, eu nun-

ca gostei de fronteiras. Quando era ilustrador, eu

tinha que ser rápido e trabalhar dentro de um

perímetro apropriado para aquela publicação.

Da mesma forma, quando fiz minha animação

para a TV, trabalhei dentro de limites. Como pin-

tor, não quero saber dessas coisas. Gasto meu

tempo criando à minha própria maneira, sem

ninguém dizendo “ah, não pode colocar essa

terceira perna no diabinho”, “não pode escorrer

essa meleca do umbigo”. Estou dizendo algo

maldoso? Estou machucando alguém? Não!

Estou passando mensagens sobre amor, desco-

berta, abertura, aceitação. Quero ser um mágico

que atravessa muros, que as crianças mais novas

possam se apaixonar pela minha arte, que todos

possam entendê-la e apreciá-la, do mais leigo

ao maior especialista. Mas você acha que vai

ver o Chou-Chou em um anúncio da Nike? Ou

mulher pelada? Eles não querem receber uma

carta de algum grupo ofendido. E eu tenho

algumas amigas lésbicas que amam o Chou-

Chou, mas também já recebi algumas cartas

doidas – de homens (risos) – criando polêmica

em cima de nada.

+SOMA . Matt Stone e Trey Parker, do South

Park, disseram em uma entrevista que a cada

episódio eles se fazem a mesma pergunta: “o

que teremos que fazer desta vez para sermos

demitidos?” Teacher’s Pet não tem nada de

chocante, acredito que tenha sido mais fácil de

trabalhar com os produtores. você teve muita

interferência criativa?

GB . A atitude do diretor e dos roteiristas a esse

respeito era bacana. Quando [os produtores da

Disney] diziam pra mudar alguma coisa, eles

me mostravam que não era �sim, senhor, vou

mudar�. Várias pessoas tirariam muito e aca-

bariam matando a história, mas eles pensavam

“queremos falar isso, como podemos tirar o mí-

nimo possível?� Nós não queríamos ofender só

por ofender. Por mais que South Park seja mui-

to ofensivo, também não é só isso. Eles estão

se manifestando em favor da democracia, da

liberdade de expressão. Eu nunca estudei arte,

me formei em Comunicação na UCLA. Sempre

defendi a Primeira Emenda [à Constituição dos

EUA, que fala sobre liberdade de expressão],

fui até estagiário da Federal Communications

Commision (agência independente responsável

pela universalização da comunicação nos EUA).

Quase fiz faculdade de Direito, mas depois per-

cebi que a melhor forma de ajudar era partici-

pando. Perdi algumas batalhas, claro. Meu pri-

meiro grande trabalho foi uma capa para o New

York Times Book Review. Dentro, havia uma se-

ção de arte, e eu desenhei detalhes de quadros

importantes pra mim entre deles The Garden

of Earthly Delights. Desenhei uma cena a pró-

prio punho no fundo da página. E o diretor de

arte virou pra mim e perguntou “o que é isso?”

“É um detalhe de Bosch, arte clássica”, eu res-

pondi. “Mas o que é isto aqui, em particular?” “Ah,

isto? É uma flor saindo da bunda de um homen-

zinho, mas é parte de uma tela clássica, é arte!“

Ele disse, “Quando Bosch desenha, é arte. Quan-

do você desenha, é uma flor saindo da bunda

de um cara. Você tem que tirar isso daí (risos)”.

Dez anos depois, quando montei a exposição na

Jonathan Levine, a primeira tela que eu fiz foi

um diabo com uma flor saindo da bunda (risos).

Dez anos depois, coloquei isso na parede de

uma galeria importante.

GB . Falar sobre flores saindo da bunda é o

gancho perfeito para voltarmos ao trabalho do

Josh (risos gerais). O que você está achando

do Brasil?

SHAG . Eu amo o Brasil, as pessoas aqui não pa-

recem ser como em Nova York e LA, que vivem

pisando nas outras pra subir na vida.

GB . As pessoas que conhecemos até agora são

mais tranquilas. Esta é a minha terceira vez aqui.

Na primeira, fiquei só em São Paulo fazendo pa-

lestras. Na segunda, há dois anos, fui para o Rio

também. Era perto do Carnaval, e me arruma-

ram uma credencial para a avenida.

+SOMA . Foi só ver as escolas de Samba ou viu

mais coisa?

GB . Vi tudo e todo mundo que você possa ima-

ginar. Fui nas festas legais, nas festas caídas (ri-

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47

sos), nos blocos de rua com gente vestida de Mickey e outras fantasias muito bem sacadas. Todo

mundo bebendo geladinho de cachaça, dançando direto por 30 horas. Depois a gente ia pra algum

clube e voltava pra rua de novo. Fui ver os desfiles, consegui entrar na avenida e tirei nove mil fotos

com este filho-da-puta (o boneco Toby, que carrega para todos os lados). Não vejo a hora de levar o

Josh pro Rio, porque aqui é muito grande. Lá é mais fácil se movimentar por todos os cantos, ir à praia,

aos morros.

+SOMA . O Baixo [Ribeiro, da Choque Cultural] disse que pediu pra você escolher uma data e você

disse �Carnaval� (risos).

GB . Ele queria ter feito duas semanas antes, mas eu disse “não, vamos fazer mais perto do Carnaval”

(risos). Em Los Angeles, tenho uma rotina de trabalho muito pesada, então a gente faz um esforço muito

grande pra vir aqui, porque vale a pena. O Brasil tem uma identidade tão única, e o engraçado é que todo

mundo aqui fica me avisando pra ter cuidado. Todos os lugares do mundo onde as pessoas me dizem

pra ter cuidado acabam sendo os melhores! Me disseram pra ter cuidado na Rússia, em Israel, no Brasil.

E todos foram inesquecíveis – as pessoas são mais animadas, amigáveis, e você vive coisas que não vive

normalmente. Eu fui criado em Hollywood, que é um lugar muito transitório, pra onde muita gente vai,

mas poucos ficam. Todo mundo vai pra lá pra tentar se dar bem no mundo do entretenimento, e muitos

pensam que é como ganhar na loteria. Existe gente talentosa, é claro, mas muitas pessoas veem que

você é pintor e pensam “que legal, acho que vou ser pintor também”. Eu penso “você não tem culhão pra

isso!” (risos). O Josh, por exemplo, pinta todo dia, tem estrutura, algo a dizer. Esse povo acorda um dia

e pensa “vou virar artista”, mas não tem nada a dizer! Ser artista não tem nada a ver com isso. Quando

monto uma exposição, estou fazendo um manifesto, reunindo um conjunto de trabalhos.

“gosto da idEia da difusão, dE uma artE mais abrangEntE, capaz dE quEbrar as barrEiras EntrE as mídias. podEmos trabalhar na moda, Em shapEs dE skatE, Em brinquEdos, criar uma pErformancE. prEfiro pEnsar no método a pEnsar no contEúdo.” gary basEmans

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Quero desafiar as pessoas, fazê-las pensarem,

rirem, serem mais confiantes em si mesmas,

descobrirem coisas. A minha última exposição

se chamava �La Noche de La Fusion� (realiza-

da em Los Angeles em maio de 2009), que foi

inspirada em parte pela minha última visita ao

Brasil. Foi a noite da fusão, do derretimento, de

borrar os contornos, misturar puro com impu-

ro, certo com errado. Tinha garotas fantasiadas

de personagens meus, bailarinos, cuspidores de

fogo, escultores de balões, jogos. Foi mais do

que uma festa, foi uma experiência, feita para as

pessoas interagirem.

+SOMA . O que você acha do termo surrealismo

pop�, usado por alguns para descrever o traba-

lho de artistas como você, Mark Ryden e outros?

GB . Eu não gosto do termo, prefiro arte difusa.

Chamar de surrealismo pop é tentar definir o

conteúdo da arte. Pra mim houve a pop-art, que

foi muito importante, mas é algo dos anos 1960.

Surrealismo foi igualmente fundamental, inspira-

do por vários movimentos, mas é um fenômeno

dos anos 1920-40. Warhol foi uma influência,

certamente, mas, se você olhar para o conteú-

do da arte dele, não é importante para os dias

de hoje. Há tantos artistas talentosos, pintando

de maneiras tão diferentes e originais. É muito

limitado definir o trabalho deles como uma mistu-

ra entre cultura pop e imagens surreais. É por isso

que gosto da ideia da difusão, de uma arte mais

abrangente, capaz de quebrar as barreiras entre

as mídias. Podemos trabalhar na moda, em shapes

de skate, em brinquedos, criar uma performance.

Prefiro pensar no método a pensar no conteú-

do. Acho errado reduzir a isso o que Mark Ryden

faz, a forma como ele cria seus ícones e os reúne,

suas imagens oníricas, tão assustadoras, belas e

perturbadoras ao mesmo tempo. Ou os Clayton

Brothers, cujo trabalho é tão forte que criou um

folclore próprio. Ou Camille Rose Garcia, que tam-

bém criou seus personagens e tem um estilo mui-

to particular. Ou mesmo o Shepard Fairey, que é

designer, tem uma revista, uma linha de roupas, e

tem um traço tão forte que ajudou a eleger nosso

presidente. O trabalho dele atravessa essas fron-

teiras e tem densidade. Pra mim, isso é arte difusa.

É possível que exista alguma semelhança estilísti-

ca entre nós? Não sei, talvez cem anos depois da

minha morte alguém consiga identificar, ou talvez

isso seja chamado pra sempre de low-brow.

+SOMA . essa conversa começou entre vocês

dois, então acho que vocês poderiam encerrá-la.

GB . Deixa eu pensar... Onde você quer estar daqui

a cinco anos?

SHAG . Sendo bem sincero, eu gostaria de pintar

menos do que agora. Passar menos tempo traba-

lhando e mais me divertindo. Mas tenho mulher,

dois filhos, uma casa, empregada... Várias pessoas

dependem de mim.

GB . E aposto que todos eles acham que você não

passa tempo suficiente pintando (risos gerais).

SHAG . Pois é, mas eu trabalho 10, 12 horas por dia.

Cada peça nesta sala demorou em média um mês

para ficar pronta. Será que se eu pintasse três ve-

zes menos por ano, meus quadros valeriam mais

(risos)?

GB . Acho que todos nós, artistas, passamos por

algumas revoluções pessoais. Quero chegar daqui

cinco anos e me perguntar “como eu quero criar?”

Comecei como ilustrador, trabalhei com animação

para TV e me estabeleci como pintor. Em cinco

anos, quero ser capaz de criar e trabalhar de ma-

neira diferente mais uma vez. 3

2SAiBA MAiS

www.shag.com

www.garybaseman.com

Leia esta entrevista na íntegra e veja a galeria com os

dois artistas em www.maissoma.com

gary baseman 4chouchou DiPtich . 2009

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shag 4an excuisite hunger . 2010

gary baseman 4Dying oF thirst . 2007

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O olho de um scanner abandonado não está cego. Apenas deixou de olhar o mundo conforme programação formulada pela indústria. Um equipamento quebrado se torna marginal na sociedade de consumo. A esse olhar marginal da máquina, GUILHERME MARANHãO sobrepõe a atitude libertária, subversiva, de reinventar seu ponto de vista sobre o visível. Ao recuperar esse olho eletrônico do lixo das lojas de sucatas e reinseri-lo no mundo, o artista tira do automático a máquina, a função do fotógrafo e, por fim, a percepção de quem observa tais imagens.

Esse circuito, criado por Maranhão, permite que o acaso também concorra na interpretação da paisagem, conferindo-lhe uma visualidade que não tem como referência a hegemonia do olhar humano, e tampouco segue a bula do programa que transforma o mundo numa mimese pasteurizada e hegemônica, elaborado pelos engenheiros.

“Pluracidades”, gestada à margem da automaticidade do olhar da indústria eletrônica e sob o ponto de vista deste fotógrafo desobediente das regras, faz emergir no nosso olhar robotizado a paisagem reinventada de uma cidade errática. Sem referências geográficas, essa estranha urbe se redesenha em geometrias lúdicas, em rastros luminosos que flagram a passagem do tempo. E, assim, a vida se precipita, linha por linha, em poéticas fusões de cores, formas e associações que redimensionam a experiência do olhar.

eDeR CHiODeTTO

curaDor Do clube De colecionaDores De

FotograFia Do mam-sP

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ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A +SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E

PAIXÃO QUE MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO

QUE CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.

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Quer publicar seu trabalho na revista e expor no nosso espaço?

Mande um email para [email protected] com amostras

da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!

Page 59: soma_16

Quer publicar seu trabalho na revista e expor no nosso espaço?

Mande um email para [email protected] com amostras

da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!

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Por Débora Pill . Foto Por Fotonauta

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HÉLCIO PASCOAL MILITO é uma lenda viva. Percussionista, baterista e produtor musical, foi também o inventor da tamba, instrumento de percussão formado por quatro frigideiras, caixa-clara, três tambores e dois bambus. Iniciou sua carreira profissional em São Paulo, em 1948, no Conjunto Robledo, e passou por grupos como a Orquestra do Maestro Peruzzi, o Sexteto Mario Casali, a Grande Orquestra de Luís César, o trio de Izio Gross e a Orquestra da Rádio Nacional. Em 1957, se mudou para o Rio e tocou no Conjunto de Djalma Ferreira; um ano depois, acompanharia Ary Barroso em sua turnê pela Venezuela.

Ao lado de Roberto Menescal, Luiz Carlos Vinhas, Bebeto Castilho, Luiz Paulo e Bill Horn, formou o Conjunto Bossa Nova, nos primórdios do gênero, e gravou o compacto Bossa é Bossa (1959). Em 1960, tocou a tamba pela primeira vez durante o show do cantor Sammy Davis Jr. no Teatro Record, em São Paulo. Em 62, fundou o histórico Tamba Trio, ao lado de Luiz Eça e Otávio Bailly, logo substituído por Bebeto Castilho. Dois anos depois, saiu da banda e foi para os Estados Unidos tocar ao lado de feras como João Gilberto, Stan Getz, Astrud Gilberto, Luiz Bonfá, Gil Evans, Tony Bennett, Wes Montgomery e Duke Ellington. No Brasil, acompanhou Nara Leão, Eumir Deodato, Maysa, Carlos Lyra, Clementina de Jesus, Quarteto em Cy, Joyce, João Bosco, Sivuca, Milton Nascimento e Nana Caymmi, entre muitos outros. Produtor musical da CBS e Tapecar, promoveu uma revolução criativa nas duas gravadoras, levando à lista dos mais vendidos uma série de nomes ignorados por ambas. Participou também da trilha sonora dos filmes Cinco Vezes Favela, Os Cafajestes e Garrincha, Alegria do Povo.

Milito ainda esteve presente em outros momentos históricos. Nasceu em meio à polêmica dos militares na ponte da Estrada de Ferro da Lapa, durante o movimento separatista paulista nos anos 1930. Botou fone no ouvido e, em um rádio-galena, sintonizou a primeira estação da região. Riscou o asfalto de Interlagos a 150 km por hora na corrida de 24 horas do autódromo. Teve que mostrar suas letras para as “quatro velhas histéricas” da censura. Em todas essas aventuras, garante, esteve “sempre com a mente na música”. Senhoras e senhores, o mestre Hélcio Milito. 1

quando a música invadiu a sua vida?

Eu tinha 6 anos de idade, era 1937. Minha mãe tinha aqueles

fogões a lenha enormes, com oito bocas. Eu resolvi pendurar

um monte de tampa de panela pra tocar. Foi do nada – eu

não tinha visto isso em lugar nenhum! Não faço ideia de onde

tirei aquilo. Talvez seja uma coisa genética mesmo. A verdade

é que eu pendurava as panelas, batia e infernizava a vida da

minha mãe (risos).

e a inspiração veio de onde?

Meus avós por parte de mãe eram pintores e escultores. Minha

mãe era desenhista de moda, de Milão – desenhava chapéus

para as grandes famílias da sociedade paulista. Meu pai era en-

genheiro da estrada de ferro São Paulo Rail Company. Todos ita-

lianos que chegaram aqui e foram estudar. Eu vim desse meio.

Além disso, minha mãe cantava ópera afinadíssima, a capela.

e seu pai?

Meu pai não era ator profissional, mas andou aparecendo como

amador. Ele era boa pinta, tipo calabresão. O pessoal achava ele

mais bonito que o Clark Gable! Escrevia poemas, não usava revól-

ver. Porque lá embaixo, no Sul da Itália, era um faroeste danado.

quando você largou as panelas e foi tocar de verdade?

No meu bairro tinha um salão de baile. Eu ajudava o baterista,

que era o titular da orquestrinha do Orlando Ferre. Na época

não tinha escola, os bateristas brasileiros tinham que ir pra Bue-

nos Aires estudar. Aí eu estudava na casa de um amigo, que foi

professor na escola do Zimbo [Trio], mas não adiantava, porque

a gente não conhecia o sistema! Só fui conhecer o sistema com

um professor, master de percussão da Sinfônica de Cleveland.

Eu saí de lá sabendo trabalhar até como regente! Quando fui

pros EUA, entendi o quanto isso tinha sido importante, porque

ia gravar com orquestra e cada vez encontrava um regente dife-

rente. Um regente inseguro leva você a se sentir inseguro tam-

bém. Minha estreia em São Paulo foi num táxi-danças...

Comecei a gravar os compositores negros das escola de samba. Se você quer gravar, tem que ouvir os caras! A fonte está ali, são eles! Eu calei a boca de todo mundo!”

4A TAMBA

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O que eram os táxi-danças?

Era um grande acontecimento por aqui, copiado dos EUA. As meninas fica-

vam sentadas dentro do salão, e, quando você entrava, ganhava um cartão

com vários números. Elas eram obrigadas a dançar com você, não podiam

rejeitar. Era grosseiro… muito machismo. Quando terminava a dança, a menina

marcava o tempo e dava pro fiscal, que perfurava o cartão. Aí você sentava,

tomava sua cerveja, e quando saía tinha um caixa. Eles faziam o cálculo pelo

cartão e você pagava a conta. Muitas meninas enlouqueciam, mas elas não

podiam deixar de ganhar aquele dinheiro. Tinham que aturar um monte de ca-

fajeste, que aprontavam todas. Esse táxi-danças ficava na esquina da Ipiranga

com a São João, se chamava Dancing Maravilhoso. Tinha também o Cuba,

perto da Duque de Caxias, o Olido… Eu fui progredindo, mesmo sem escola,

tocando nesses lugares todos. Em 1952, acabei tocando com a banda do Ma-

estro Peruzzi, considerada a melhor na época. Era praticamente só de negros.

Eles usavam aqueles paletós com o ombro que vinha até aqui, sabe? (mostra

um tamanho maior que o ombro). Cópia das bandas americanas, você deve

ter visto nos filmes velhos. Fora a calça justa. Tinha um delegado no Rio que

jogava uma laranja na calça do sujeito, pela cintura. Se não passasse, ele pren-

dia o cara. Se você usasse a boca da calça justa era sinal de que era malandro.

Aliás, se você tocasse samba, era malandro e podia ser preso.

você sofreu preconceito por ser branco e tocar samba?

Minha família era racista. “Você vai tocar esse instrumento de bêbados e ne-

gros?” Eu era bem jovem. E não aguentava mais aquilo, por isso fui embora.

e quando veio a primeira gravação?

Em 1954 gravei um “dobrado” em comemoração dos 400 anos de São Pau-

lo. Dobrado porque a música brasileira é em dois por quatro, é marcial. É

militarista, veio de uma mentalidade militar.

Como você foi parar no Rio?

Nós trabalhamos aqui no Teatro da Praça Júlio Mesquita com o José Vas-

concelos. Eu estava namorando uma moça que era modelo na peça dele.

A gente apaixonadão, aquela coisa de jovem... E lá fomos nós pra Bahia

com a peça do Zé. Passamos um mês lá. E ficar apaixonadão na Bahia é um

negócio maravilhoso! Sinto muitas saudades dessa época. Bom, aí a gente

foi pro Rio com ele. Acontece que o Zé não pagou a gente. E lá no Rio, não

tendo como pagar o hotel, eu tive que me virar. Liguei pro meu pai, depois

o Dom Romão me ajudou também. Aliás, ele foi um dos grandes amigos

que eu tive. Adorável.

Onde você tocou no Rio?

Lá eu tocava no Drink, que era uma casa do Djalma Ferreira. Eu e a Marlene

morávamos no segundo andar do Drink. Eu descia por dentro pra ir tocar! E

ela desfilava com Carlos Machado na época, então vinha pro centro e voltava.

E eu lembro de várias histórias lá no Drink... Por exemplo: praticamente toda

noite, eu levava o Ary Barroso pra casa, lá no Leme. Ele ficava de porre! Mas

porre mesmo, de ficar com a boca mole. Ele me chamava: “Ô garoto! Quer

me levar pra casa?" Tinha um Chevrolet 55, e eu dirigia pra ele sem ter cartei-

ra nem nada. Deixava ele em casa e escutava um “Brigado, garoto!”. (risos)

Os ‘donos da bossa nova’, que eu não preciso falar o nome, criticavam! E eu falava: ‘Bicho, vocês estão totalmente por fora. Isso é bossa nova, é samba, não interessa! Eu estou interessado no país, na cultura da gente! Não vou ficar preso’.”

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e aí você foi pro rádio.

Na sequência, arrumei um emprego na Rádio Na-

cional. Era bom, pagava meu aluguel. Eu era o sexto

baterista da Rádio. Naquela época era tudo ao vivo

– às 14h, Marlene, Emilinha, Ângela Maria... Toquei

com todas. Eu era o mais novinho. Teve um dia que

era a Ângela Maria, e eu tava com aquela energia

toda, quebrando tudo... A orquestra fez a abertura

da música e eu tinha um pequeno breque de bateria

de dois compassos. Quando vi a parte – eu já estava

estudando, lendo e tal – não sei por quê, mas fiz um

troço que ela não conseguiu atracar! Foi um desas-

tre! Caiu a orquestra, caiu ela… O maestro queria me

matar! Me suspender! E olha que ela era muito boa

de ritmo, hein! Ela era danada! A melhor de todas…

E queria me jogar lá de cima, do 22º andar. Eu era

inexperiente… Depois, mais velhos, a gente conver-

sou sobre isso e morreu de rir.

quando você resolveu criar a tamba?

A nossa geração tinha muito orgulho de dizer que era

brasileira. Vocês não imaginam! Toda aquela coisa –

nova capital, cinema novo, primeira Copa do Mundo de

futebol… O Juscelino era o presidente bossa nova. Não

era só a música bossa nova, tudo era bossa nova! Enten-

deu? Todos nós pensávamos em criar alguma coisa! E

todos eram inocentemente nacionalistas. Então eu pen-

sei em criar um instrumento! Eu pensava: “Por que tenho

que tocar um instrumento americano? O ritmo brasileiro

tem que ser tocado em pé, com movimento!” Eu tocava

sentado, mas me sentia melhor tocando em pé. Fiz en-

tão o instrumento, à mão, com um amigo. Simplezinho.

e de onde veio a inspiração do desenho da tamba?

A Rússia tinha acabado de mandar o Sputnik, e eu co-

mecei a filosofar sobre a coisa de o homem sair de si

mesmo. Como se fosse um novo nascimento, sabe?

Aquilo me impressionou. Eu olhava o Sputnik ali, com

as três antenas, e resolvi virar de ponta-cabeça, trans-

formar em três perninhas. Aí furei a bola com uma ros-

ca, botei as perninhas e estava pronta a tamba!

e o Tamba Trio?

O Tamba não era só bossa nova. A gente pegava uma

música folclórica, fazia o arranjo e éramos ovaciona-

dos em qualquer lugar! Nos shows, eu colocava a

tamba no canto do palco e o Bebeto parava o baixo,

fazia ponte com a flauta e voltava a capela… Aí iam

os três pro lado da tamba, o Luiz pegava o tamborim,

o Bebeto, o agogô e a gente fazia uma batucadinha!

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704TRêS COMPACTOS DA PESADA PRODUZIDOS POR MILITO: CAPiM GORDURA (TAPECAR), WATUSi (EPIC) E Rô E CARLiNHOS (CBS), ESTE úLTIMO BASTANTE RARO. EMBAIXO, SEU GRANDE ORGULHO: O 78

DA PRIMEIRA GRAVAçãO DE “GAROTA DE IPANEMA”, FEITA PELO TAMBA TRIO, À ÉPOCA AINDA SEM LETRA.

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Mas aí os “donos da bossa nova”, que eu não

preciso falar o nome, criticavam! E eu falava:

“Bicho, vocês estão totalmente por fora. Isso é

bossa nova, é samba, não interessa! Eu estou

interessado no país, na cultura da gente! Não

vou ficar preso…”

e como era a CBS quando você entrou?

Só funcionava ieieiê com Roberto Carlos. Eu

criei algumas coisas, comecei a gravar os

compositores negros das escola de samba,

por exemplo. Esse era o meu trabalho, ouvir os

caras. Se você quer gravar, tem que ouvir os

caras! A fonte está ali, são eles! Eles ficavam

lá na porta da companhia. Eu saía pra almo-

çar, voltava, eles estavam lá. E onde é que eles

iriam estar? Tinham que estar lá mesmo! Então

eu me equipei, botei um gravador bom e pas-

sei a atendê-los. As pessoas não acreditavam,

isso nunca tinha sido feito. E eu calei a boca

de todo mundo lá dentro! No final das contas,

botei cinco, seis nomes na lista dos mais ven-

didos: Wilson Moreira, Zuzuca, José Pegador,

a Velha da Portela – acabei me tornando mem-

bro da escola por causa disso –, o Candeia.

Você sabe, eu não bebo, mas subia o morro e

tomava cachacinha com ele pra ouvir o som. É

assim, quando você quer ouvir, tem que fazer,

não ficar na conversa! E por que eu mantinha

o Jackson do Pandeiro na CBS? Porque esse

cara é de uma importância… Esse pessoal não

pode imaginar o que ele fez pra música bra-

sileira! A suingueira que ele era… Um simples

pandeirista! Ele e a Almira! Pena que antes de

ele morrer eles se separaram… Outro orgulho

foi o Jacob do Bandolim. Eu tirei ele da RCA.

Os dois últimos álbuns ele gravou na CBS. Foi

uma grande vitória pra mim.

e “Capim Gordura”?

Essa foi outra vitória. Composição do [maestro]

Laércio de Freitas. Eu dei pro [pianista Luís Car-

los] Vinhas, pra ele ganhar um dinheiro. Ele era

um problema pra todo mundo, menos pra mim…

Eu adorava ele. O disco vendeu 900 mil cópias.

Outra coisa muito boa naquele álbum é que no

lado B eu botei “Chovendo na Roseira” do Tom.

Imagina! De um lado, “Capim Gordura”, interior

de São Paulo, com vocal carregado de sotaque e

tudo… Outro mundo! (risos) E vendeu pra caram-

ba! O imagem Barroca também foi assim. Fico fe-

liz em saber que até hoje, depois de 42 anos, esse

disco ainda vende no Japão. Era cravo, quarteto

de cordas, instrumentinhos… E eu mesmo fiz a

bateria, um negócio muito leve. O Bailly num lado

e no outro Luiz Eça, duas coisas opostas! O Luiz

vivia se queixando. Na verdade todo arranjador

de valor reclama que não tem chance de fazer

um grande trabalho. Então eu falei pro Luiz meter

a caneta, e ele escreveu. Mas não vem com essa

de improvisação, senão não vende! Eu escolhia

outros caminhos, mas que vendiam. Você tem

que calar a boca deles fazendo, só isso.

em meio a tantos sucessos, houve algum erro?

Dom Salvador. Ele usava aquele cabelão do

black power e tal. E eu fiz a capa assim, ele

com a mão fechada na mesa, tudo em preto

e branco, ele com uma jaqueta meio black

panther. Mas ele era gatinho, não tigre! Perdi

tempo. E ele também. E a companhia perdeu

dinheiro. Na época eu pensava: “Vou fazer um

disco que vai vender menos, mas que precisa

ser feito. Alguma coisa vai acontecer”. Não

vendeu e eu nem me incomodei, porque sabia.

Foi assim com a Orquestra Afro-Brasileira, com

o Pedro [Santos, do enigmático e idolatrado

disco Krishnanda].

Conta do Pedro.

Ele era baterista da Orquestra do Severiano

Araújo. Eu já tinha ouvido falar dele, e ele falou

comigo das ideias que tinha, umas coisas místi-

cas, mas que no final não eram místicas, e por

isso o povo chamava ele de “Pedro Maluco”…

Essa coisa ignorante.

que ideias eram essas?

Ele era profundamente contra o que as religi-

ões pregavam, tinha outros caminhos pra expli-

car suas preferências. Você vê que o álbum é

todo ele, a música que ele criou, o desenho da

capa, a filosofia, as letras. Olha só o que tem ali!

Como percussionista, ele era o melhor de todos.

Se fosse lá pra fora, seria um cara riquíssimo,

porque ele criava. Pegava um brinquedinho de

criança e transformava num instrumento. Não é

todo mundo que faz isso.

e a Orquestra Afro-Brasileira?

A Orquestra do Abigail Moura foi apresentada

pra mim pelo Carlos Negreiros. Vi eles ensaian-

do, achei tão humano, tão bonito! Sabia que não

ia vender – eu não poderia mexer, o repertório

era deles –, mas não podia deixar aqueles ca-

ras sem um álbum. Acabei gravando [o disco

Orquestra Afro-Brasileira, de 1968] do jeito que

eles tocavam, no estilo deles, com o vibrato, que

o músico de jazz não gosta. Porra, tô de saco

cheio desse troço, músico de jazz virou palavra

final agora? Tem outro tipo de música que é le-

gal. Por exemplo, tem dias que eu ouço Miles

Davis porque acho fora do tempo. De repente

ouço música clássica, outro dia vejo na TV um

duo sertanejo com uma letra bem humana.

Como eu adoro o eletrônico às vezes. Música é

momento, arte é momento.

e, falando em momento, qual o segredo dessa

energia toda aos 79 anos de vida?

Olha, eu nunca fui de entrar em porcariada. Não en-

trei em droga nem bebida. Eu sabia que, se entras-

se, não saía mais. Fui fazer ioga. Entrei numa escola

onde um amigo, que tocava violino, praticava. Ele

percebeu que eu também estava buscando algu-

ma coisa diferente. Porque Nova York é muito dura,

se não estiver bem consigo mesmo você dança. E

quando bate aquele frio de 30 abaixo de zero? Mas

lá fui eu… E me encantei pela coisa! Depois, já aqui

no Brasil, aprendi um relaxamento que até hoje

faço se estou com estresse. É uma época de muita

transformação no mundo. E eu não tenho religião,

então faço exercício, a técnica Schultz, em que

você controla seu corpo. É fantástico. Não tomo

nada: só sento, faço esse exercício e passa tudo.

e quais os planos para o futuro?

Estou de olho em uma companhia para fabricar

a tamba. E tem o método também, que vai sair.

Além do que você viu aqui nessa tamba, tem dois

bambus que o Pedro [Santos] me deu em 67.

Agora eu adicionei os tubos que uma família ita-

liana fez pra mim em Nova York, são lindos. O som

é celestial. Porque barulheiro tá cheio por aí! A

percussão tem o seu romance, a necessidade de

diálogo, por isso que eu gosto de gravar coisas,

porque é um diálogo. Um desenho aqui, outro lá.

Aí eles tocam. Eles falam! Um fala com o outro. 3

4DISCO DE DOM SALVADOR: “úNICO FRACASSO”.

1SAiBA MAiS

myspace.com/tambatrio

bit.ly/d25NfO (verbete do All Music Guide, em inglês)

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OttO Guerra

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OttO Guerra

trinta anOs e enfim a sbOrnia

POR ARTHUR DANTAS . RETRATO POR MAURíCIO CAPELLARI . IMAGENS DIVULGAçãO

Esqueça os estereótipos e os desenhos animados para crianças. A Otto Desenhos Animados, criada pelo lendário notívago e biriteiro gaúcho Otto Guerra, 53 anos, está por aí faz mais de trinta anos jogando areia nos olhos dos incautos e fazendo dinheiro quando possível. O que começou nas telas ingenuamente, com o O Natal do Burrinho – sucesso no Festival de Cinema de Gramado de 1984 – acabou em longas mais cascas-grossas como Rocky & Hudson (baseado nos personagens de Adão Iturrusgarai), de 1994, e Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll (personagens de Angeli), de 2006. Após a versão tropical de Cheech & Chong, o negócio ficou sério: são 42 pessoas trabalhando no estúdio, onde estão no meio de um longa baseado na peça Tangos & Tragédias, Fuga em Ré Menor de Kraunus e Pletskaya e se preparam para a operação mais audaciosa: um filme baseado na fase recente de tiras mais nonsense e existencialistas de Laerte. 1

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No site da Otto Desenhos, há uma síntese da

gênese nada sagrada do lance todo, descri-

ta com o humor característico de seu criador:

“Em agosto de 1978 a Otto Desenhos Animados

Ltda. surgiu a partir de uma iniciativa do jovem,

musculoso e talentoso Otto Guerra, do alto dos

seus 22 anos de idade. Naquela época a TV

broadcast (sic) exigia as mesmas 720 por 486

linhas de definição de hoje e o mínimo para al-

cançar esse patamar era a película 16mm. Uma

câmera Paillard Bolex usada custava algo como

8 mil dólares! (…) Sendo assim, após locar du-

rante um ano esse equipamento (…) a empresa

comprou em São Paulo (...) a tão almejada Bo-

lex. A primeira Bolex a gente nunca esquece!”

A entrevista foi realizada a palo seco – contra-

riando os conselhos de amigos em comum, que

achavam mais interessante entrevistá-lo no bar,

regado a muito álcool – em sua produtora de

aparência nada chamativa, onde o notório bo-

êmio nos falou das incomuns pedradas criadas

lá dentro. Porque, como disse Allan Sieber em

mensagem também alcoolizada, “animação no

BRAZIL é cuzeta mesmo, mas pelo menos o

Otto faz alguma coisa menos monga”.

qual a maior parte do trabalho do estúdio?

Faz uns seis anos que não trabalho com publici-

dade – graças a Deus (risos). Em vinte e tantos

anos de trabalho fiz uns 600, 700 comerciais.

Como eu fazia quadrinhos antes de montar a

produtora, a ficção é quase como um filho, e a

publicidade com o vínculo com o cliente tem

o objetivo concreto de venda e deixa a coisa

muito restrita. Mas foi através desses trabalhos

que formei mão-de-obra, comprei equipamen-

tos. Agradeço a propaganda todos os dias, mas

que é um saco é um saco. O último trabalho

que a gente fez foi uma campanha grande pra

RBS (“Monstros RBS”), que é a Globo daqui. Até

chamei o Jaca pra esse trabalho, só que a lin-

guagem dele é muito evoluída pra propaganda

(risos). A partir da genial derrocada do cinema

brasileiro causada pelo gênio Collor, com o fe-

chamento da Embrafilme, posteriormente surgi-

ram entidades públicas e privadas sem aqueles

vícios todos de corporativismo, de conchavo,

toda aquela merda...

Mas tá rolando de novo, não?

Tá rolando de novo a mesma merda. A Anci-

ne tirou a força das novas entidades. Como o

último concurso era setorial, foram aprovados

apenas projetos do Rio de Janeiro e de São

Paulo. A Marta [Machado Desenhos], que é

nossa produtora, uma guerreira, entrou numa

briga com os cachorros grandes. Não dá pra

deixar o corporativismo voltar – seria trágico

para o cinema. Esse modelo brasileiro de o

cinema ser mantido por grana pública é um

lance polêmico pra burro: cinema deveria ser

uma indústria com o ingresso pagando a pro-

dução. Daí tem essa distorção de o cinema

não precisar atrair público. Sempre questio-

nei isso: o pessoal fala do lance de dar grana

pra filmes e não pra hospitais, por exemplo.

Mas é um exagero: um país não ter uma pro-

dução de cinema causa uma doença de falta

de identidade. Quando eu era guri o cinema

era algo muito mais cultural – era quase como

ler um livro, não era entretenimento apenas.

O cinema tá passando por um fenômeno que

é cinema pra comer pipoca e se divertir. No

mundo todo.

“[Tangos e Tragédias] Tá na meTade, falTa um ano e meio mais ou menos de produção. eu preferi dar um foda-se para os prazos e fazer uma puTa animação. Vai ficar em um níVel alTíssimo!”

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Como começou seu interesse por animação?

Sou da mesma geração do Jaca e do Angeli, por

exemplo. Em Porto Alegre tem uma comunida-

de de desenhistas fantástica. Mas todo mundo

tem dificuldade pra viver disso. E na década de

1970 já era assim. A animação foi uma forma de

conseguir fazer dinheiro.

Mas animação não era um lance fácil, eu imagi-

no. Ainda mais em Porto Alegre.

Tinha uns argentinos – eles têm uma puta tradi-

ção em animação, foram os argentinos que fize-

ram o primeiro longa animado do mundo – que

vieram pra Porto Alegre, tinham a manha toda,

revelar os filmes de 16mm, sonorizar etc. Eu

trabalhei com eles, fazendo muita publicidade,

para o Brasil todo. Como o custo de vida no Rio

e em São Paulo era mais alto, as produções lá

custavam mais, e assim gente de todos os can-

tos faziam com a gente.

e você era uma espécie de sweatshop dos ar-

gentinos no Brasil.

Lógico (risos). E assim consegui comprar meu

equipamento. Uma câmera custava um balaio

de grana. E na real a história de vender a alma

ao diabo custou meu estilo próprio, que era um

lance bem Tintin, do Hergé. Eu perdi o estilo e

meu desenho não evoluiu. A partir de 1984 parei

de desenhar. O diretor de arte do filme atual é o

Alemão (Eloar Guazelli, artista das HQs e ilustra-

dor gaúcho que vive em São Paulo).

O Allan Sieber e o Fabio zimbres já trabalha-

ram com você.

O Allan começou bem guri, fazendo faxina, la-

vando banheiro (muitos risos). O Zimbres fez

direção de arte em dois curtas nossos. O cara

tem um estilo fantástico. O Jaca fez pouco. A

gente chegou a tentar fazer um curta que não

foi adiante. Mas antes de morrer quero terminar,

o trabalho dele se presta muito a animar.

e tem outros animadores conhecidos que pas-

saram pela produtora?

“a ancine Tirou a força das noVas

enTidades. como o úlTimo concurso

era seTorial, foram aproVados

apenas projeTos do rio de janeiro

e de são paulo. (...) não dá pra deixar o corporaTiVismo

VolTar – seria Trágico para o

cinema.”

O Andres Lieban, um argentino que mora no Rio

e faz produção para o Canadá, animou o Rock &

Hudson. O Lancast Mota, um cearense que ani-

mou a série Annabel, que foi a primeira a passar

em TV comercial, na Nickelodeon. Muita gente,

aqui em Porto Alegre tem muito.

e qual foi a primeira ficção?

Foi o curta O Natal do Burrinho, de 1984. Na-

quela época era muito raro um filme de anima-

ção brasileiro de ficção. Eu pegava dinheiro do

próprio bolso pra fazer esses filmes, não tinha

retorno. Com a retomada do cinema nacional, a

partir de 1995, fizemos um longa, Rocky & Hud-

son, do Adão Iturrusgarai, que também escreveu

o roteiro do longa. Era muito divertido – foi tudo

feito à base de muita birita, o storyboard feito

com caneta BIC (risos).

uma verdadeira esbórnia.

Sim. Aliás, o novo longa é baseado em Tangos

& Tragédias (Sbónia é uma metáfora avacalhada

do Rio Grande do Sul, uma ilha que fica vagan-

do no oceano criada pelos comediantes Hique

Gomez e Nico Nicolaiewsky), uma peça que está

em cartaz faz mais de 25 anos. Eu vi a dupla

em 1984 e foi a primeira vez que me identifi-

quei com algo da cultura gaudéria. Por mais que

quando fosse guri usasse bombacha em Alegre-

te. Tu acaba se identificando mais com Johnny

Quest na TV do que com as tradições.

e como será a animação?

A peça é um musical, uns esquetes. O roteiro

tinha a pretensão de fazer cinema comercial

mesmo – mas não estúpido – e chamamos dois

roteiristas: o Tomás Kreus e o Rodrigo John, que

fez o roteiro do Wood & Stock. Eles escreveram

por dois anos. O filme tá na metade, falta ainda

um ano e meio mais ou menos de produção. Eu

preferi dar um foda-se para os prazos e fazer

uma puta animação. (Wood & Stock já rendeu

problemas com o MinC pelos mesmos motivos,

em 2000). Fazer um filme que custaria US$ 10

milhões com apenas 2 milhões. Vai ficar em um

nível altíssimo!

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O estilo é diferente das produções anteriores?

Sim, o filme novo dá um banho. Minha sobrinha

de 10 anos viu o Wood & Stock e falou: “por que

você fez ele assim?” (risos).

e agora que você é o patrão? Onde entra a sua

mão nesse processo?

É uma polêmica aqui no estúdio. Dizem que há

dois polos. Um que escolhe as pessoas para o

trabalho, pra fazer a animação etc., e outro que

vai mexer em todo o processo. Eu seria o pri-

meiro: escolhi a história, escolhi quem seriam os

melhores animadores e os melhores roteiristas.

Participo também na edição final – o que faz o

cinema, a narrativa cinematográfica, é a edição.

O Brasil não tem tradição forte em animação.

isso ajuda ou atrapalha?

Pessoalmente, foi muito importante ter um olho

em terra de cego. É bom e é ruim. Por outro

lado, não ter uma escola, uma tradição, não aju-

da muito. As primeiras coisas que fiz eram horrí-

veis – são poucas as coisas que eu não teria ver-

gonha de mostrar. O Wood & Stock entrou em

todos os festivais – em Brasília só entrou porque

não tinha filme brasileiro. Estamos reinventando

a roda. Teve o Sinfonia Amazônica (primeiro lon-

ga animado do Brasil, de 1953), do Anélio Lattini

Filho. A gente quer ter uma produção constante,

tem feito um trabalho atrás do outro e esse novo

filme vai nos colocar em outro nível.

e o cinemão de animação dos estados unidos?

Pixar, Disney etc...

Eu gosto muito. Vi agora A Era do Gelo 3. Eles

estão num nível de roteiro surpreendente. A ex-

pressão mais desenvolvida do ser humano é o

desenho, porque é a mais antiga – é dela que vem

a escrita. A animação com desenho é algo muito

memOrias aLCOOLiCas, pOr aLLan sieber “EM 2000, MORáVAMOS EU, DENISE (MINHA MULHER E SóCIA NA ÉPOCA), LICA (MINHA OUTRA SóCIA) E

TODO O DEFALLA NUM APARTAMENTO DO LEBLON QUE FUNCIONAVA COMO MORADIA E PRODUTORA. ERA

UM INFERNO. NA ÉPOCA, OTTO ESTAVA NUMA MERDA MEDONHA E RESOLVEU MORAR NO RIO. ODIOU MUITO,

CLARO. POIS BEM, UMA BELA NOITE ESTOU TRABALHANDO DE MADRUGADA NA SALA E IRROMPE OTTO AOS

URROS: ‘FILHO DA PUTA!’ ELE TINHA ACABADO DE TOMAR BANHO E SE SECADO NUMA TOALHA QUE ESTAVA

CHEIA DE MERDA. ATÉ HOJE ELE ACHA QUE EU CAGUEI NA TOALHA DELE.PROVAVELMENTE FOI ELE, BEBUM,

QUE FEZ ISSO NA NOITE ANTERIOR.”

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fantástico, tem muito a se desenvolver. Estamos

fazendo o roteiro de um filme do Laerte, Cidade

dos Piratas. Eu tava indo pra São Paulo conversar

com ele e caiu a ficha que não valia a pena tentar

esse tipo de cinemão, início-meio-conflito-vira-

da-virada-fim, porque não dá pra competir. No

filme do Laerte vou me agarrar a referências ao

cinema marginal brasileiro – brincar em cima da

transgressão. E esse existencialismo atual do Laer-

te é genial. Já tem um argumento, usando as tiras

mais atuais: vamos usar várias fases dessas tiras,

amarrando tudo isso. É um longa, porque tem que

ser um produto pra ter visibilidade. Só assim tem

chance de ser exibido. O Brasil é um país muito

rico culturalmente. A gente tem essa coisa de falar

que o país é pobre, atrasado, e é um estereótipo

que vem de fora. Em um festival na Itália, ano pas-

sado, passou o Wood & Stock. Um italiano numa

mesa de debate ficou assustado pelo fato de o

governo pagar por um filme daqueles, com sexo,

drogas. E eu falei: “Sim, o Brasil é um país muito

evoluído” (risos). E é verdade! O italiano ficou de

cara. Estamos fazendo uma co-produção sobre

o José Lutzenberger, um ecologista famoso aqui

do Sul, secretário do Meio Ambiente no governo

Collor. Bebum notório, uma pessoa maravilho-

sa. Ele contou pra mim, em um bar, uma história

ótima: já muito incomodado com a história toda

do governo etc, ele foi pra áustria em encontro

com o Collor, a Zélia Cardoso de Mello – só o pri-

meiro escalão. E todos os ministros, o presidente,

falando em inglês, dizendo que o Brasil era um

país pobre. O Lutz falava alemão fluente, e fez um

discurso que era mais ou menos assim: “O Brasil é

um país rico em todos os aspectos, tem riquezas

naturais, um povo maravilhoso, uma cultura riquís-

sima... pobres são os políticos, como vocês pude-

ram observar pelas falas anteriores” (risos). E nin-

guém do governo sabia alemão. No outro dia, com

a repercussão toda, exoneraram o Lutz do cargo.

e essa história entra no filme?

Não, é uma conversa pessoal. Mas ele foi muito

espirituoso e derruba essa pecha de sermos po-

bres. A gente tem uma cultura riquíssima, nós

absorvemos tudo, e eu acho isso fantástico.

Tem muitos animadores brasileiros trabalhan-

do para os grandes estúdios no exterior?

O Carlos Saldanha, por exemplo. Ele fez a dire-

ção do A Era do Gelo, criou aquele esquilo ma-

luco. Teve o Ennio Torresan, que trabalhou em

Madagascar, Bob Esponja...

você pensou em ir pra gringa?

Eu tive algumas propostas – era muito dedica-

do, nerd, mandava currículo pra todos os lados.

Chegaram até a me chamar, mas eu não sabia

inglês e pensei: “Porra, vou acabar diluído naqui-

lo tudo”. E tinha um clichê da época que dizia “é

melhor ser a cabeça do rato do que o rabo do

leão” (risos). Com esse filme do Laerte eu que-

ro fazer um clássico, com ideias que não tentem

reproduzir aquela maravilhosa e fantástica in-

dústria americana, que vem evoluindo continu-

amente desde A Branca de Neve.

você gosta de algum animador novo por aqui?

Tem aquele povo que fez o Avaiana de Pau,

completamente anárquico, e o próprio Allan Sie-

ber, com a Toscographics, que eu admiro muito.

você fez a voz de Deus em Deus é Pai (série

polêmica criada por Sieber), né?

Sim, foi o primeiro papel que eu fiz. Me deram

um à minha altura (muitos risos). Eu ajudei tam-

bém na filmagem. Acabamos em Paris por causa

do filme, tomando chope (risos). 3

2SAiBA MAiS

Além do Youtube, você pode ser os filmes da

Otto Desenhos Animados em:

www.ottodesenhos.com.br

www.portacurtas.com.br

“no filme do laerTe Vou me agarrar a

referências ao cinema marginal brasileiro – brincar em cima da

Transgressão. e esse exisTencialismo aTual

do laerTe é genial. (...) Quero fazer um

clássico, com ideias Que não TenTem reproduzir

aQuela maraVilhosa e fanTásTica

indúsTria americana, Que Vem eVoluindo

conTinuamenTe desde a branca de neVe.”

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Os shows estavam marcados: Rio de Ja-neiro, São Paulo, Florianópolis e Pinda-monhangaba, no interior do estado de São Paulo. Depois de fazer uma turnê pela Europa, esse foi o trajeto das apre-sentações que Joseph Jackson, conhe-cido como Ranking Joe, fez no Brasil em dezembro de 2009. Era a sua segunda passagem pelo país, e também a chance de conseguir uma entrevista cara a cara com o toaster jamaicano – que cres-ceu na periferia de Kingston, gravou o primeiro single com o mestre Coxsone Dodd e se mantém na ativa até hoje, aos 50 anos, sem perder o fôlego.

Mesmo vivendo em São Paulo, escolhi entrevistá-lo em Pindamonhangaba por dois motivos: primeiro, era a cidade em que eu cresci e que me ensinou a gostar de reggae; segundo, o show aconteceria no Eco Bar, um galpão rústico a uns 40 minutos do centro da cidade, cercado por montanhas e cachoeiras, e muito semelhante aos locais onde rolavam os bailes de sound system, regados a gan-ja, na Jamaica dos anos 1960 e 1970.

Enquanto eu percorria a estrada sinu-osa e escura, rodeada de plantações de eucalipto, para chegar ao Eco Bar – um trajeto que fiz muitas vezes para assistir aos shows que aconteciam nos sítios da região – pensava nas dificuldades de en-trevistar um artista jamaicano: o inglês que mais parece um dialeto e o humor peculiar que eles cultivam. 1

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Gun CourtDepois de treinar em casa, Joe fez algumas apre-

sentações na escola com músicos como Winston

McAnuff, U Brown e Earl Sixteen e viajou por algu-

mas paróquias, se apresentando com Horace Andy

e outros nomes agenciados pelo músico e produ-

tor Jackie Brown. Em 1974, com apenas 15 anos,

participou de uma audição no lendário Studio One,

de Sir Clement “Coxsone” Dodd, e apresentou a

música “Gun Court”. A canção falava sobre o pro-

blema das armas e da violência em Kingston. “Na-

quela época, as armas estavam invadindo o nosso

país. Precisávamos de uma lei que regulamentasse.

Músicas com temas políticos e sociais foram impor-

tantes naquele momento. Queríamos mudanças e

falávamos sobre isso nas letras. Coxsone gostou e

gravou meu primeiro single.”

Na época, Joe tinha outro epíteto: Litlle Joe. “Como

artista, você quer um nome que as pessoas se lem-

brem. A maioria dos deejays daquele tempo esco-

lhia nomes de gente do cinema, como Dillinger ou

Clint Eastwood. Optei por Little Joe porque gos-

tava de ver Bonanza na TV. Mas aí minha popula-

ridade cresceu e as pessoas me perguntavam: ‘Por

que é que ainda se chama Little Joe?’ Em seguida,

o [produtor] Prince Tony Robinson começou a me

chamar de Ranking Joe. As pessoas gostaram, eu

também, e aí ficou.“ “Gun Court” cresceu nas pa-

radas de sucesso em Londres e Kingston, e a gra-

vação atraiu a atenção dos produtores Bunny Lee,

Watty Burnett e Brother Derrick Howard, que gra-

varam mais músicas suas. A sorte estava lançada, e

em 1976 o deejay passou a fazer parte de um dos

mais importantes sistemas de som da ilha, o King

Stur-Gav Hi-Fi, de U-Roy. “Eu respeito muito o U-

Roy. Foi ele que tornou possível para mim viver de

música, como toaster, e eu tive o privilégio de tra-

balhar com ele e aprender com um dos maiores.”

Em 1977, Ranking lançou seu primeiro álbum. The

Best Of Ranking Joe incluía hits como “John Saw

Them Coming” e “Queen Majesty Chapter 3”. No

ano seguinte saiu Weakheart Fadeway, com a can-

ção clássica homônima, uma das músicas mais to-

cadas nas noitadas de reggae. Enquanto lançava

os discos, ele continuava como deejay no sound

system de U-Roy e construía uma reputação res-

peitável com suas enérgicas apresentações ao vivo.

Metr iCa rap idaDurante os shows, o toaster criou um estilo que

lhe rendeu o apelido de Bionic Deejay – rimas

muito rápidas misturadas a onomatopéias e gri-

tos agudos. Podia soar estranho, mas tinha força.

“Eu sempre quis fazer diferente. Queria criar

algo meu, ter um estilo. Então eu treinava em

casa, tentava rimar cada vez mais rápido, e de-

pois comecei a misturar com alguns barulhos.”

A necessidade de sempre se aperfeiçoar e na-

dar com a maré o fez passar por diversos sis-

temas de som diferentes. “Cada sound system

tem estilo e vibração distintos. Quando um

sistema de som começa a crescer e se tornar

grande, o ego atrapalha, e as pessoas querem

dizer o que deve fazer e tocar. As mudanças

são necessárias e fazem também você conhe-

cer outras pessoas, outros estilos, crescer.”

Seguindo essa linha de pensamento, ele acei-

tou o convite para gravar uma versão dub de

“Time”, do clássico Dark Side of The Moon, do

Pink Floyd. “Nunca tinha escutado o som deles,

ouço mais hip-hop, R&B e música jamaicana.

Aí fui convidado pelo EasyStar AllStars para

gravar uma música do disco. Topei sem ouvir

a versão original, foi interessante o processo,

mas até hoje não tive a oportunidade de ouvir

esse disco.”

Há quatro anos, Ranking Joe veio passar as

férias no Brasil e conheceu Marcus MPC, um

dos integrantes e fundadores do Digitaldubs.

Ficaram amigos, tocaram e decidiram gravar

uma música juntos. “Fya Bun Dem” nasceu de

um desses encontros, e a ideia para uma turnê

também. Os dois também participaram, no ano

passado, do consagrado Ostróda Reggae Festi-

val na Polônia, onde fortaleceram sua parceria.

“Antes de um show sempre faço uma seleção

de discos da Studio One. Mas a maior parte do

show é espontânea, gosto quando o DJ lança

uma música nova ou diferente e eu rimo em

cima, só vou sentindo e falando.”

Assim que a entrevista terminou, voltamos para

o galpão escuro. Estava na hora de o show co-

meçar. De música brasileira, Ranking Joe assu-

me entender muito pouco. Escutou algumas

coisas que o DJ Marcus MPC mostrou a ele,

mas não lembrava o nome de nenhum artista.

No palco, porém, a dupla se entende perfeita-

mente – do primeiro ao último minuto, com o

grave rolando solto e entre bases de reggae e

riddims de rub-a-dub, Ranking disparou as ri-

mas intercaladas pelos clássicos gritos (“waaa-

wl!”) e deu uma aula de improvisação. No final,

tentou agradecer a cidade por recebê-lo: “Mui-

to obrigada, ‘Bingomonhangaba’”. Ele pode

não ter acertado o nome, mas acertou coisas

muito mais importantes naquela noite. 3

2SAiBA MAiS

www.myspace.com/digitaldubssound

www.myspace.com/rankingjoemusic

Cheguei ao sítio às 11 da noite, e tínhamos combi-

nado de conversar uma hora depois. Já era uma

da manhã quando ele apareceu e decidiu que

não queria ficar nem um minuto no camarim,

inquieto com as lembranças que o local tinha

despertado nele. “Parece que estou na Jamaica

com meus amigos. A gente tocava em uns lugar-

es muito parecidos com este.”

Perguntei se a gente podia bater um papo em

um lugar mais reservado, fora do galpão pou-

co iluminado onde acontecia o show da Tropa,

banda que abriu a noite. Estendendo-me a mão,

ele disse que sim. Bem à vontade, começamos

a andar devagar, em silêncio, em direção ao rio

que circunda o sítio.

Ranking Joe continuou até parar embaixo de

uma árvore perto da água, de onde observou

bem o lugar antes de falar sobre sua inserção

na música.

Sound SySteM O trabalho de Ranking Joe foi muito influen-

ciado pelos sounds systems jamaicanos sur-

gidos nos anos 1960. Naquela década, o in-

teresse pelo blues e o jazz norte-americanos

abriu caminho para o surgimento dos famosos

deejays, que perambulavam pela ilha com suas

caminhonetes carregadas de grandes caixas

de som, tocando discos de 45 rotações com

pérolas da música local e dos EUA.

DJs como King Edwards e o lendário Sir Cle-

ment “Coxsone” Dodd, vestidos com roupas

extravagantes como coletes de lamê, coroas

brilhantes, capas pretas e caveiras, competiam

para ver quem trazia mais novidades a uma ju-

ventude ávida por música.

Era um momento de revolução musical na Ja-

maica. Os sistemas de som e o reggae cres-

ciam exponencialmente no gosto popular.

Todos queriam participar de alguma forma, e

Ranking Joe tinha o exemplo dentro de casa.

“Ser um toaster foi uma inspiração que Jah

Rastafari passou para o meu pai”, lembra.

“Quando eu era criança, ele operava sound

systems, e a aparelhagem ficava guardada na

nossa casa.”

Entre os oito e os nove anos, ele gastava o di-

nheiro do lanche da escola em vinis de U-Roy, I

Roy e Dillinger, entre outros. “Eu queria cantar

como eles. Ser um deejay. O problema era que

não tínhamos microfone, então eu usava o re-

ceiver do telefone e colocava os discos como

base. Tudo escondido do meu pai, que nem

podia imaginar que eu usava o equipamento”.

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121 decibéis. Um show de rock que chega a esse volume, contando com toda aparelhagem, já é considerado muito alto. Só como referência, 126dB mantiveram o The Who no Guinness por oito anos como banda com o som mais alto do mundo ao vivo. Em novembro de 2009, durante a passa-gem de som para seu show conjunto no Goiânia Noise, MQN e Walverdes chegaram aos 121dB. Mas com um detalhe: durante a medição, estavam ligados apenas os monitores de palco. Para quem não entende os pormenores técnicos, basta saber que, na hora do vamos ver, ficou MUITO mais alto. Eu sei, eu estava lá.

A brincadeira de medir volume, a um só tempo masturbatória, divertida e adolescente, resume bem o estado de espírito, naquele dia e sempre que se encontram, dessas duas velhas parceiras de estradas esburacadas, vans apinhadas de mar-manjos e uma alternância entre noites memoráveis e presepadas homéricas. A “molecagem” no Noise foi o último golpe nos tímpanos de uma amizade que se confunde com a história da música inde-pendente no Brasil. A partir de Goiânia (MQN) e Porto Alegre (Walverdes), as duas bandas ajuda-ram a costurar uma rede sólida de bares, festivais, bandas e produtores que estão mudando a cara da música no país. Mas o que faz a cabeça deles mesmo é tocar. Alto. 1

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Por mateus Potumati . Fotos Por clauDio cologni

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O Walverdes é mais antigo que o MqN, então

imagino que a amizade entre vocês veio do in-

teresse da Monstro no Walverdes, é isso?

Fabrício Nobre . O Walverdes entrou na Mons-

tro antes de mim. O 90 Graus saiu pelo selo em

1999, mas na primeira vez que eles tocaram no

Noise eu estava na produção, e o MQN tocou.

Foi na 6ª edição, em 2000. Lembro que o Jorge

[Nascimento, ex-baixista] pirou no Walverdes.

E eu e Mini já éramos amigos via [a lista de dis-

cussão] Poplist. É isso, Mini?

Gustavo Mini . É isso aí. O Léo [Bigode, da Mons-

tro] entrou em contato com o Marcos [Rube-

nich, baterista do Walverdes] quando a gente

estava terminando o 90 Graus. Era ótimo ser-

mos lançados por uma gravadora de fora do Rio

Grande do Sul. E o Fabrício era nosso parceiro

de Poplist, o cara do CD-R com aquela capinha

esquisita, uma letra cheia de rococós escrito

MQN (risos).

você já conhecia a Monstro?

GM . A gente conhecia a Monstro por alto.

Eu não tinha noção da força que o selo viria a

ter. Era um bom parceiro pra lançar nosso EP,

que entendia o som e falava a mesma língua.

E tinha a disposição de botar na rua, porque nós

nunca fomos muito bons nesse lado.

FN . Marcio [Jr., sócio da Monstro] e Bigode são

muito do zine, e o Mini também, né?

GM . Eu fiz três números de um zine chamado

Pôneifax. Foi uma experiência bacana, mas não

me considero propriamente fanzineiro. Li e tro-

quei muito fanzine, mas nunca militei na causa.

Foi uma passagem experimental bem bacana.

Meu contato veio também das fitas dos Walver-

des. A gente lançou seis, então trocamos muito

com fanzines.

vocês falaram da Poplist, e a lista teve um pa-

pel importante em toda uma geração de ban-

das e produtores.

GM . Era um lance muito fértil, deu em muitos

contatos que frutificam até hoje.

FN . Não tenho mais tempo e/ou saco pra seguir,

mas foi foda. Poplist era o Twitter. Você fazia um

lance e ficava louco para as pessoas saberem.

GM . A quantidade de informação circulante era

bem alta, numa época em que não tinha tanta

informação como hoje. Foi algo muito valioso.

E tinha um componente humano também: todo

mundo fazendo porque gostava ou de música ou

de bagunça, então a coisa rolava de um jeito leve.

FN . Hoje em dia tem outra geração que vem de

outras articulações de web, mas muitos Poplis-

ters seguem firmes. A primeira vez que tocamos

em São Paulo foi com a Debbie, Adriano Cintra

e Marco Butcher (Thee Butchers Orchestra e

Ordinary Records). Também foi nas listas que

conhecemos Lariú, Wry, Relespública... O pesso-

al de Brasília, da Divine, Prot(o) e tal. Autoramas,

pessoal da Borracharia, Rodrigo do Grenade,

os Irmãos Martucci de São Carlos, Sandro Garcia

(Continental Combo), Zimmer e Ambervisions,

o pessoal do Nordeste... Além de Walverdes,

Video Hits e Bidê ou Balde. Essa galera meio

que virou a turma da Monstro daí 5 ou 6 anos,

fizemos shows e discos de quase todos. A Obra

(Claudão) e Motor Music (Jeff, Fernanda e

Boffa) também ajudaram muito, marcaram nos-

sos primeiros bons shows fora – SXSW, Seattle

com a Estrus. Pessoal da Slag, e em volta deles

depois Gui, Dago... Putz, vou esquecer alguém e

pagar um baita mico, certeza (risos).

em 2001 vocês fizeram a tour com Nebula. Foi

a primeira tour gringa da Monstro?

FN . Foi a primeira que a Monstro se meteu a

fazer sozinha. Latada! (risos)

Tomaram no cu?

FN . Cara, tomar no cu é algo bem menor

(risos). Não recebemos Londrina até hoje, tive-

mos que bater no baixista drogado num dia, vol-

tamos dentro da van de reboque de Uberlândia

a Goiânia, quase fomos presos com a van toda

enfumaçada na fronteira entre Goiás e Minas.

Perdemos toda a grana que tínhamos ganhado

no Noise. Aquelas roubadas que só a Monstro

foi capaz de fazer (risos). Mas foi foda. Era 2001,

não tinha essas tours de hoje – um show em SP

e um festival pagando tudo. Era tour mesmo!

Mas me lembro de ter ouvido os refrões na

demo do Anticontrole (disco do Walverdes lan-

çado em 2002) e pensado “pelo menos alguém

aproveitou” (risos).

GM . Mas peraê, quando fizemos essa tour o

Anticontrole já estava gravado...

FN . Então não serviu mesmo pra nada! Fodeu!

(risos gerais)

Lembro que um jornalista de São Paulo falou

mal dessa tour, que vocês tinham colocado os

gringos numa van (risos).

GM . Foi o álvaro Pereira Junior. Eu escrevi pra

ele dizendo “Os caras se matam pra trazer uma

banda pra vocês assistirem e você só reclama?”

E na resposta o cara foi bem menos ácido e mais

compreensivo... Tem jornalista que tem síndro-

me de reclamão e confunde isso com qualidade.

vocês também tocaram juntos com o Breeders

em 2004, né?

FN . Essa tour foi classe. Tocamos no Club Fuzz

em São Paulo com o Diagonal, no Curitiba Pop

Festival, na Obra em BH com Space Invaders...

E teve o Amexastock em Floripa, com Amber-

vions e The Dools!

GM . Amexastock no Rio Tavares com presença

do Fábio Massari e do Gastão.

FN . Na Chácara do [guitarrista do Ambervi-

sions] Amexa! Foi foda! As bandas tocaram lite-

ralmente na garagem. E nós levamos o Gastão e

o Massari, que encontraram a gente em Curitiba.

Chegando lá tinha uma bebida chamada “Aque-

la Mistura” (risos). Ficou todo mundo bêbado,

100% da festa. Daí a galera dormiu na casa do

Amexa, e no outro dia dois fatos aconteceram:

um cara cagou na cadeira da sala (risos) e a

Fender novinha do Amexa sumiu. Acordou todo

mundo de ressaca e puto, mas logo virou piada:

os únicos não conhecidos eram os dois, então

um tinha cagado no sofá e o outro roubado a

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guitarra! (risos gerais) Ficamos rindo disso o dia

inteiro, depois acho que até contei pro Massari.

Walverdes e MqN pegaram bem essa transição

de antes/depois da internet. vocês lembram

como encararam isso na época?

FN . O Walverdes pegou mais isso, porque é

mais antigo. Mas eu chapei de cara com a inter-

net: em 97, na faculdade, a gente pôde se ins-

crever para testar e eu entrei. E ajudava meu pai

no escritório dele também. Ficava o tempo que

podia no computador, participando de tudo que

é lista, zines eletrônicos.

GM . Antes da internet usávamos o que tinha.

Qualquer meio digital era caro ou difícil no iní-

cio. A primeira grande mudança veio com as lis-

tas de email. Hoje se fala muito da importância

do mp3, mas falar com mais agilidade foi uma

revolução. Antes tinha que gastar uma grana de

telefone ou dependia de carta. Outro avanço

importante foi o advento de companhias aéreas

mais baratas. Ficou mais fácil fazer tour.

O que mudou quando vocês começaram a sair

mais de Porto Alegre?

GM . Fez toda a diferença, foi quando a banda

renasceu. Antes do 90 Graus a gente vinha fa-

zendo pouco show, meio afastados em termos

de banda. Eu tava com a Tom Bloch, o Marcos,

o Bruno e o Gian com o Wander [Wildner], e

a gente deixou a coisa meio em banho-maria.

Com o 90 Graus e a Monstro, a gente começou a

tocar mais e sair de Porto Alegre. Foi fundamen-

tal pra abrir os olhos, formar contatos, ver como

as pessoas de outras cidades resolviam suas

questões. Nos primeiros anos a gente não era

nada empreendedor, era um lance muito “subir

no palco, ligar os instrumentos e ver no que dá”.

E dava frutos, porque a melhor forma de conhe-

cer Walverdes é ver o show. O Anticontrole foi

outro salto. O disco nos deixou mais conhecido

fora de Porto Alegre, por conta das músicas, da

produção e do trabalho da Monstro. Todo mun-

do ganhou com ele: a gente, o [produtor] Iuri

Freiberger e a Monstro. Não dinheiro, mas reco-

nhecimento.

e o MqN, quando começou a sair mais?

FN . Em 1999 a gente foi pra São Paulo numa

viagem com Motherfish, Prot(o) e Divine. Toca-

mos na Borracharia, Matrix, Torre e Alternative,

e ainda gravamos Lado B MTV. Lembro exata-

mente o valor do nosso primeiro cachê na Bor-

racharia: R$ 79, rachados com a Divine (risos).

O mais importante pra uma banda é viajar.

É meio inacreditável saber que já dividi palco

com Buzzcocks, Mudhoney (Mark Arm até can-

tou com a gente), Trail Of Dead, Deep Purple,

Nashville Pussy, L7 etc.

O ponto alto da amizade entre vocês até ago-

ra foi o show das duas bandas no Noise 2009.

Falem um pouco a respeito.

GM . Foi tudo muito simples. O Fabrício propôs

e a gente começou a ensaiar, cada banda na sua

cidade, as músicas da outra. Durante os ensaios

a gente meio que se arrependeu, porque come-

çou a bater um receio de que fosse um fiasco.

Mas não tinha mais volta. E tinha que ensaiar

direitinho – nos covers cortamos as partes que

não nos interessam ou nos atrapalham, mas nes-

se caso a gente tinha que tocar certo. Dois dias

antes fomos pra Goiânia ensaiar, mas eu acordei

com uma sinusite dos infernos. Pra completar,

descobri que a agência onde eu trabalho per-

deu uma das maiores contas. Mas, de qualquer

forma, fizemos os ensaios e uma boa passagem

de som. E até hoje me impressiona como tudo

funcionou bem. O show foi ótimo, e seria fácil

embolar as duas bandas, do jeito que tocamos,

no Martin Cererê. Facilitou porque quem operou

o som foi o Iuri, que conhece muito bem as duas;

o diretor do palco era o André dos Astronautas,

que também conhece. É um daqueles assus-

tadores momentos em que tudo converge pra

funcionar.

FN . A ideia era maluca, mas, como aqui no

Noise a gente teria controle total da produção,

eu resolvi arriscar. Todo mundo ficou cabreiro,

mas topou. A preocupação maior foram as duas

bateras, mas a galera se empenhou. Na hora foi

muito alto, o Cererê lotado – melhor lugar do

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mundo para um show desses –, o povo pirando!

Temos que repetir isso um dia.

Mini, as letras do Walverdes misturam coisas

agressivas com outras mais filosóficas, talvez

porque você seja budista. você é budista há

quanto tempo?

GM . Meu primeiro contato foi em 97, mas só

comecei a praticar formalmente anos depois.

Como influenciou toda minha visão de mundo,

acaba influenciando nas letras. Mas eu já tinha

minhas dúvidas existenciais antes de ter contato

com o budismo. O que ele me ofereceu foram

ferramentas para investigá-las.

“insistente”, por exemplo, é uma mistura de um

senso de humor punk – uma coisa gaúcha, no

sentido Replicantes – e desse tipo de reflexão.

GM . É exatamente isso. A gente tem muita influ-

ência de Replicantes – não consciente, mas é do

ambiente daqui. Aquela coisa TNT, Cascavelet-

tes, Replicantes, da segunda metade dos anos

80, foi muito forte. Não era alternativo, tocava

na Atlântida, a principal FM.

e tem a coisa de cantar em português também,

bem forte no Sul.

GM . Isso era uma coisa engraçada. Até 2001,

quando a gente saía de Porto Alegre e nos en-

trevistavam, sempre perguntavam: “Por que

essa escolha de cantar em português?” (risos

gerais) E a gente ria, né, o que tu vai falar? Como

assim, é a nossa língua? No resto do Brasil, 90%

das bandas cantavam em inglês. Mas não era

militância, era da nossa formação. Depois veio o

mangue beat, Planet Hemp e aí parou essa coisa

de inglês x português. Hoje cada um faz o que

quer e ponto final. A gente até botou numa fita

“Cantar em português is cool” (risos). Mas era

só tiração de onda. Aliás, essa é a melhor coisa

dos tempos atuais: caiu um certo patrulhamento

que existia.

Não só em termos de letra, mas em termos de

som também. A curadoria de um festival como

o Noise era impensável 10 anos atrás.

GM . De tudo. As coisas estão diferentes.

Fabrício, essa curadoria é fruto de um gosto

musical mais amplo que você desenvolveu nos

últimos anos. Hoje vejo você curtindo tanto

Hellbenders como Siba. Mas musicalmente o

MqN é mais conservador, até mais do que ban-

das que influenciaram vocês. Como você resol-

ve isso na tua cabeça?

FN . Cara, eu ouvi muito rádio quando era crian-

ça, muito rock brasileiro e gringo tipo Kiss, Que-

en, Beatles, Stones. No final da adolescência eu

caí de cabeça no tal do indie, grunge, essas coi-

sas. Então estão na base Pavement, Sonic Youth,

Teenage Fanclub, Sonics, Cramps, Rocket From

The Crypt, Gories, Nirvana, Melvins, Mudhoney.

Quem me aplicou o heavy metal foram os guris

do MQN, CJ e Miranda, e descobrimos junto

o stoner. Então AC/DC, Deep Purple, Accept,

vêm deles, e a gente pirou junto em Fu Manchu,

QOTSA, Nebula. Então com a banda eu toco algo

que representa mais o som que a gente gostou

junto, aprendeu a fazer. MQN é meio rock burro,

de roqueiro, diversão, mas tem um conceito, que

funciona com aqueles quatro caras tocando da-

quele jeito, naquele volume, com aquele tanto

de cerveja derramada. O lance da música bra-

sileira vem de um uns seis anos pra cá, quando

comecei a viajar mais. Tenho Siba como herói,

acabei de produzir um show dele. Sou fã do

Roberto Correa, trabalhei com Almir Sater, acho

sensacional o pré-Carnaval no Recife. Jorge Ben

e Tim Maia estão sempre no toca-discos no final

de semana. Eu gosto de música. 3

2SAiBA MAiS

myspace.com/mqn

myspace.com/walverdes

Leia a entrevista na íntegra e a discografia comentada

das duas bandas em www.maissoma.com

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SICO

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Como você se envolveu com o desenho?

Quando eu era criança, descobri A Divina Comédia. Me apaixonei de cara pelas ilustrações

do Gustavo Doré, e passei a infância tentando reproduzir aqueles desenhos “cheios de

risquinhos”. Mas, antes mesmo de A Divina Comédia, eu já criava personagens bizarros,

desenhava histórias em quadrinhos com situações absurdas, coisas de guri. Sempre recebi

muito incentivo da minha família pra não parar de desenhar: comecei estudando animação

aos 10 anos com o [animador] Otto Guerra em Porto Alegre. Três anos depois fui estudar

quadrinhos e fiquei um bom tempo ligado nisso. Deixei as HQs de lado e resolvi

cursar arquitetura, mas não me dei muito bem com cálculos e régua. Vi então que tinha que

voltar pro início da estrada. Voltei a estudar quadrinhos e gravura em metal. Fiz também

um curso de desenho em Nottingham, na Inglaterra, e estou em aprendizado constante.

uma vez você comentou que a França o ajudou a amadurecer o seu estilo. quais foram

as influências desse país na sua arte?

Lembro que antes de chegar à França já me diziam que eu iria me identificar muito com

aquele lugar, que ele tinha muito a ver comigo, mas eu sinceramente não esperava

tanto. Fiquei impressionado com o orgulho que eles têm da própria história, com o cuidado

que têm com o patrimônio histórico. É tudo tão mágico por lá, é uma vibração que não tem

como definir com palavras. Só sei que causou uma baita revolução dentro de mim.

Os personagens que aparecem nos seus trabalhos parecem ter saído dos contos

escritos pelos irmãos Grimm. qual a sua relação com o universo da fantasia?

Tenho uma relação muito forte com o passado, vivo nesse mesmo universo desde criança.

Outra coisa que faz parte disso tudo são os meus sonhos. Desde muito pequeno tenho

alguns bem interessantes. Já faz alguns anos que eu tenho anotado os sonhos em um

caderno, quero fazer uma história infantil com esse material daqui a um ou dois anos.

As molduras antigas que você coloca nos seus trabalhos se encaixam tão perfeitamente

com os seus desenhos que parecem ter sido criadas para eles. De onde surgiu a ideia

de combinar molduras com trabalhos?

Não lembro exatamente quando surgiu essa ideia. Sempre frequentei antiquários – a

minha mãe me dava de presente brinquedos desses lugares. Na adolescência comecei a

comprar objetos antigos, mas sem o intuito de colecionar – apenas queria tê-los, gostava

de me sentir ligado de certa maneira ao que já passou. Então, como o meu trabalho

já se parece muito com algo antigo, aproveitei pra juntar o útil ao agradável. Agora as

molduras mofadas são parte dele.

O que você acha da street art? vê algum ponto em comum entre o seu desenho e esse

tipo de arte?

A arte urbana tem um peso enorme pra este momento que estamos vivendo. Os artistas

de rua abriram muitas portas e a cabeça de muita gente mostrando que não precisa

estar dentro de uma galeria pra ser arte. Como muita gente jovem que faz arte hoje

em dia, eu acabo sofrendo, sim, muita influência da arte urbana. O que nós temos em

comum é o meio de expressão. Nossa diferença é que eu não tenho essa atitude de

sair pra rua, botar a arte pra fora do ateliê, pra mudar de certa maneira o cotidiano

das pessoas. Eu pinto em paredes também, adoro reproduzir os meus trabalhos em

grande escala, mas infelizmente não posso sair na rua, porque meu trabalho é feito

com pincelzinho e demora um certo tempo pra ser concluído. Mas adoraria sair por aí e

pintar uns vagõezinhos de trem (risos). 3

Por marina mantoVanini

N ascido em Canoas, no Sul do Brasil, o artista Renan Santos, 22, sabe que ainda está no

começo de uma longa trajetória. Os traços finos, em constante aperfeiçoamento, criam personagens de um mundo de fantasia, que nascem muitas vezes de seus sonhos.

É nítido o quanto Renan gosta do que faz. Sem nunca ter deixado o lápis e o papel de lado, ele estudou desenho e se inspirou nos melhores. Artistas como Gustavo Doré, Goya, Winsor McCay, Edward Lear e os contemporâneos Osgemeos, Carol W, Speto e Cusco estão na sua lista de preferências. A boa seleção se reflete em seu minucioso trabalho, que ele explica na entrevista que cedeu à +Soma. 1

TRAÇO CLÁSSICOSICO

2SAiBA MAiSflickr.com/renanzz

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. FABiANO PASSOS . Por Jonas Pacheco . Fotos por Danilo Vieira+quem soma

o Patrão faz. Afinal, para ganhar esse

apelido dentro da cultura hardcore

no Brasil, sem que ele carregue um

sentido negativo, é preciso ser muito coerente

tanto no discurso como na prática. No início

dos anos 2000, a continentalidade geográfica

do Brasil praticamente dissipava toda a energia

empregada por uma dezena de pequenos uni-

versos punks espalhados pelo país, ávidos por

tentar mostrar que as coisas poderiam ser feitas

de formas diferentes. Se em São Paulo, propor-

cionalmente tão excessiva em importância em

relação ao restante da nação, a circulação mais

estruturada desse tipo de cultura poucas vezes

conseguia transpor as fronteiras superiores do

Sudeste, o esforço realizado nas cidades do

Nordeste e outras regiões vizinhas para ter algo

próximo de uma cena era heróico. Tudo para

manter a chama acesa.

Fabiano Passos, com metade dos 28 anos de

hoje, bancava do próprio bolso – o que exigia

um esforço a mais, já que as viagens interesta-

duais ainda eram bem caras – suas andanças

fora dos limites de Salvador, para ver e conhe-

cer shows, bandas e pessoas que o inspira-

vam. De tanta sede, finalmente resolveu dar

a cara a tapa: “Pensei: se eu for pra São Paulo

ver tal banda vou gastar X, se gastar X+Y pos-

so trazer a banda pra cá, fortalecer a cena da-

qui, e se tudo der certo consigo bancar tudo.”

O passo inicial para essa resolução tinha sido

dado pouco tempo antes, com sua distribuido-

ra, mais tarde selo, Estopim Records. Na base

da consignação, muito material independente

percorreu de cima a baixo o difícil eixo vertical

do país, fazendo com que outras distros e ban-

das se conhecessem e aproximassem. Desde o

Street Bulldogs, primeira banda cuja “subida” o

Patrão agilizou, a história só cresceu. Se valen-

do das amizades, ele trouxe e levou mais punks

e hardcoreanos, como Mukeka di Rato (ES),

Dead Fish (ES), Confronto (RJ), Ratos de Porão

(SP), Execradores (SP), Triste Fim de Rosile-

ne (SE), No Violence (SP), Garage Fuzz (SP),

PARA FABIANO, O MAIS INTERESSANTE ERA PERCEBER O QUANTO ARTISTAS – NACIONAIS E GRINGOS – MAIS ENVOLVIDOS COM O DISCURSO DE PROTESTO E MUDANçA DO PUNK SE PARECIAM NOS DIáLOGOS, ADMIRADOS COM A DIVERSIDADE CULTURAL QUE EXISTIA À SUA VOLTA.

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. FABiANO PASSOS . Por Jonas Pacheco . Fotos por Danilo Vieira

2SAiBA MAiS

estopimrecords.wordpress.com

Jason (RJ), Discarga (SP), junto com as locais

Scooter Brigade, Lumpen, Adcional, A Sangue

Frio, entre outras, em uma lista que soma mais

de quarenta nomes.

Fabiano é bom em aproximar pessoas. Muitas das

bandas que passaram pela Bahia, indo ou voltan-

do de suas turnês – que ele acompanhava de cabo

a rabo –, tocaram no espaço que ele mesmo aju-

dou a movimentar, o Quilombo Cecília, que, além

do local do show, contava com restaurante vega-

no, biblioteca, loja da Estopim e estúdio de ensaio.

Mesmo em meio a prejuízos, problemas de coluna,

estresses, brigas e rasteiras ocasionais – algumas

homéricas –, o baiano fez acontecer. O selo corria

paralelamente a tudo isso, incluindo, além de ban-

das soteropolitanas e de outras cidades do Nor-

deste, algumas internacionais, como os chilenos

do Entrefuego e os americanos do Hellshock.

Para Fabiano, o mais interessante era perceber o

quanto artistas – nacionais e gringos – mais envol-

vidos com o discurso de protesto e mudança do

punk se pareciam nos diálogos, admirados com a

diversidade cultural que existia à sua volta e den-

tro das próprias cenas locais existentes durante

esse período no Nordeste. Ficava muito clara a

influência das distâncias geográficas no Brasil,

mesmo em relação a uma cultura estrangeira que

tomou corpo tão recentemente por aqui. Este tal-

vez seja o grande mérito de figuras facilitadoras

como Fabiano: possibilitar a troca.

Em 2005, junto com outros agitadores do rock

de Salvador, o Patrão montou a Associação

Baiana de Selos Independentes (ABASIN), que

por sua vez idealizou o Tomada Rock, festival

que contou com duas edições. O objetivo era

pleitear uma vaga na ABRAFIN (Associação

Brasileira de Festivais Independentes). Para isso,

precisariam organizar a terceira edição do even-

to, que não se concretizou devido a um golpe

curioso do destino. “As vendas de discos dimi-

nuíram muito nessa época, e acabamos desani-

mando com a associação”, ele lembra. Por con-

sequência, o festival deixou de existir.

Mas o Patrão continua agilizado. Um pouco me-

nos agora, no caso do selo e dos shows, por causa

de seu atual interesse na produção de conteúdo

audiovisual. Mesmo assim, em agosto de 2009,

a Estopim completou 10 anos. A comemoração

aconteceu em novembro, com mais um festival

organizado pelo selo em Salvador. Para 2010?

“Esse lance vicia, depois que entra é difícil de sair.

Já estou com alguns shows de bandas de outros

estados marcados aqui pra este ano. Quero fazer

um festival grande de hardcore comemorando

os 11 anos da Estopim no mês de agosto, trazer

algumas bandas de outros estados e fazer uma

grande festa, uma celebração.”

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92

quer dizer que, no mundo da seleta de brin-

quedos, a frase “o barato sai caro” adquire

outro sentido?

Exatamente. Funciona assim: as pessoas muitas

vezes querem o brinquedo que já tiveram um

dia. Por causa do preço baixo, muita gente na

época teve um Garibaldo cofre, e isso torna sua

procura alta agora. Mas ele era feito com uma

matéria-prima não muito nobre – o plástico se

quebra facilmente, tornando muito difícil en-

contrar um Garibaldo como esse intacto hoje.

Nenhuma fábrica conhecida assina o brinquedo,

acho que foi um dos primeiros casos de pirata-

ria de brinquedos que conheci. Alguém aqui no

Brasil provavelmente percebeu a oportunidade

de vendas com o sucesso do programa e fabri-

cou o produto sem autorização, com matéria-

prima de baixa qualidade. Assim, a lei da oferta

e da procura torna esse item uma verdadeira pe-

dra preciosa no mercado de brinquedos antigos.

Alguém já fez uma oferta pelo Garibaldo?

Sim, tem uma pessoa que quer muito o produ-

to. Não posso de forma alguma revelar quem

é, não por se tratar de uma personalidade da

TV, mas minha ética não permite revelar os no-

mes dos colecionadores. Posso garantir que

não é a Aracy Balabanian nem a Sônia Braga

(risos – atrizes que contracenaram com o Gari-

baldo). Às vezes a pessoa demora para enten-

der o preço do Garibaldo cofre, acha estranho

e acredita que vai achar fácil o produto por

aí. Pode até achar, mas eu sei o que tenho nas

mãos e garanto: Garibaldo cofre inteiro não se

acha em qualquer lugar. 3

na pré-história, Garibaldo era um personagem do

programa infantil Vila Sésamo (versão brasileira

do Sesame Street americano), produzido aqui por

uma colaboração inédita entre as TVs Cultura e

Globo na década de 1970. O programa, educati-

vo que era, ensinava a criançada a contar até vinte

esvaziando um maço de cigarros, entre outras coi-

sas. No mundo da Seleta é assim: eu brinquei com

Falcon e sou tricotilomaníaco, assisti à Vila Sésamo

e só sei contar até vinte se estiver fumando um.

Onde você achou o Garibaldo?

Foi há mais de dez anos. Eu estava passando em

frente a uma casa e vi o caminhão de mudanças

da Granero. Na hora me deu uma vontade de fa-

zer xixi, e veio junto o pensamento de guardador

“aqui no meio desta mudança pode ter algo que

procuro mas nem sei o que é”. Aí parei pra fazer

o xixi e perguntei aos donos se eles tinham coi-

sas velhas que não iriam para a casa nova. Me

mostraram uma caixa de brinquedos, e o Garibal-

do cofre estava lá, vazio. Peguei pra mim porque

gostei, paguei pouco por ele. Mas com o tempo

percebi o grande interesse que os colecionado-

res têm pela peça, e a dificuldade de encontrar

outra em tão bom estado de conservação.

e quanto vale um Garibaldo hoje, se alguém

quiser comprar com você?

Muita gente pergunta sobre ele, e eu nem o ex-

ponho muito, não tenho tanta vontade de ven-

der. Mas, como tudo que guardo aqui nesta casa,

ele é negociável. Por ora ele não tem um valor

fechado para a venda, porque o produto é muito

raro e tem um custo bem diferenciado.

Por que ele é tão raro?

Porque foi feito com um material que não tinha

grande durabilidade e era vendido nas feiras por

ambulantes. Custava muito barato, algo equiva-

lente a um real hoje.

Por mentalozzz e ouriço

2mentalozzz e ouriço sofrem de síndrome do pânico e atuam na censura televisiva.

para conhecer o garibaldo e outros brinquedos de silvio luiz, entre em contato

pelo telefone (11) 8297-7915

Ele é formado em Adminstração e Economia, mas a paixão por carrinhos matchbox falou mais alto. Para não brincar em serviço, silVio luiz deixou tudo de lado e passou a se dedicar exclusivamente à arte de guardar brinquedos, hábito que herdou do pai, colecionador de chaveiros, maços de cigarros e tampinhas de garrafa de leite. Em uma casa no bairro da Moóca, Silvio coleciona uma quantidade absurda de brinquedos, reunidos ao longo de 20 anos. Durante esse período, ele formou uma seleta de amigos nada infantis – ok, um pouco –, que o procuram para sanar aquele trauma de não ter ganhado o presente certo do Papai Noel, ou para matar a saudade e abrandar a culpa por ter destruído ou deixado a mamãe dar para o filho da empregada aquele brinquedo esquecido no fundo do caixote. 1

Apreciando a coleção de brinquedos do Silvio

Luiz, topei com um cofrinho do Garibaldo, e per-

cebi que ele tinha um lugar de destaque nas pra-

teleiras – junto ao MUG da sorte do Simonal, perto

do elefante da Shell, entre o Tigre da Esso e o Bra-

silino, aquele do pré-histórico bordão “Fabrica de

móveis Brasil, tá?”. Para aqueles que não nasceram

coisas que gostamos de guardar

4silVio luiz e a Família em seu aPartamento na moóca, em são Paulo.

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+reviews

1NãO DeveMOS NADA A vOCê . DANieL SiNKeR (ORG) . Edições Ideal . 2010

Década de 1990. Imagine uma realidade musical em que as rádios locais estadunidenses não tenham

sido engolidas por monopólios que determinem uma programação geral para todas as suas retransmis-

soras, uma realidade em que o grunge não tenha transformado contestação e independência em moda e

alienação, em que gravadoras independentes como a SST tenham pagado direito artistas como o Sonic

Youth e este nunca tenha ido para uma major, uma realidade em que a música é o foco e não a imagem

que ela sugere sendo ditada por uma emissora como a MTV. Em que o movimento anticapitalista, cujo

ápice foi o tumulto em Seattle em 1999, não tenha se dispersado, espetacularizado. Tudo isso para dizer

que essa realidade alternativa seria a da cultura faça-você-mesmo inspirada no peace punk de um Crass

ou Zounds, que teve seu apogeu nos EUA com o Fugazi e figuras como Jello Biafra, Steve Albini, Mike

Watt, Kathleen Hanna e Ian MacKaye, por exemplo. Um lugar onde diversidade era o foco, e processo e

resultado final eram indissociáveis. Política era algo natural em uma cena que incentivava/discutia todas

as esferas da vida. Justamente pela falência desse projeto é que o livro Não Devemos Nada a Você,

organizado pelo editor do espetacular fanzine Punk Planet, Daniel Sinker, parece falar de algo que não

dialoga com a cultura jovem atual.

Alguns fanzines, como Flipside e Maximunrocknroll, chegaram a tiragens na casa da centena de milhares

nos EUA. O Punk Planet apareceu já durante o declínio dessa ideia de pensar a música independente como

a expressão de uma comunidade. Sua qualidade principal era resgatar a pluralidade que havia se perdido

no punk rock, tanto por sua fraquezas como pela sua cooptação traumática por parte da indústria cultural.

Assim, cabiam no zine entrevistas com gente como Thurston Moore, Bob Mould, Jello Biafra, Jawbreaker,

Negativland, Los Crudos, The Gossip, artistas como Miranda July, Jem Cohen e Frank Kozik, grupos ativistas como o Punkvoter e o Vozes no Deserto

e até o respeitado intelectual/ativista Noam Chomsky. O Punk Planet foi uma espécie de incrível exército de Brancaleone de uma cena, já que tentava

recuperar a solidez que havia se desmanchado no ar. Sua grande riqueza está nos momentos em que os entrevistados falavam francamente e com

desenvoltura – dialogavam com gente que vivia o que eles viviam.

E ao Brasil, o que isso tudo comunica? Se a minha geração, que tanto se espelhou nos referenciais do PP, falhou e virou uma espécie de

culto vazio (nas palavras do ativista gay Matt Wobensmith), o livro traz inspiração e questionamentos para a cultura jovem que surgiu em

um mundo onde a distinção entre majors/indies é rarefeita e o objeto CD como produto pouco diz sobre a música. E é por isso que a ideia

de não dever nada a ninguém pode ganhar corpo e dimensão novamente a qualquer momento. 3POR ARTHUR DANTAS 1vOCê eNCONTRA eSTe e

OuTROS LivROS NA LOJA DA +SOMA

1 PROJeTO GuRi CONviDA . váRiOS ARTiSTAS . MCD . 2010

Este álbum é surpreendente em vários sentidos. Primeiro porque conseguiu reunir um time dos sonhos de músi-

cos brasileiros, entre nomes novos e consagrados. Segundo porque, ao contrário de tantos discos coletivos, é um

trabalho cuidadoso, musicalmente vibrante e sem pontos baixos – está no nível dos melhores títulos da aclamada

série Red Hot, em benefício da luta contra a AIDS. Terceiro porque é resultado de uma iniciativa social eficiente,

o Projeto Guri, que ensina música de graça a 40 mil crianças em 301 cidades paulistas e tem o apoio do governo

do Estado. Quarto porque 308 alunos do projeto tocaram de verdade nas gravações, mérito indiscutível do diretor

artístico Beto Villares. Projeto Guri Convida traz 18 faixas que se aproveitam de um brilho infantil para criar uma

música universal, para todas as idades. “Sonho de Criança” abre o disco com um vocal despretensioso de menino,

que evolui num dueto poderoso entre a voz aveludada de Thalma de Freitas e o flow descontraído de Max B.O. Em

seguida, Antonio Pinto – compositor indicado ao Globo de Ouro, que criou trilhas para filmes como O Senhor da Guerra e Cidade de Deus – usa

aliterações para contar a história de um tatu, criando um tema que não deve nada a “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, de Gilberto Gil. Em “Vende-se

Dinheiro”, Arnaldo Antunes usa um poder de síntese que todos perdemos com os anos para tocar no cerne de uma das maiores crises dos nossos

dias: “Vende-se dinheiro/ Mas não se pode comê-lo/ Vende-se dinheiro/ Para comprar mais dinheiro”. Fernando Catatau dá o toque absurdo ao

álbum com o pragmatismo de “Resto da Tinta” (“Eu não quero nem saber quem pintou a zebra/ Eu quero é o resto da tinta”). Seguem ainda faixas

com os Sonantes (Céu, Rica e Gui Amabis, Dengue e Pupillo), Anelis Assumpção, Maurício Pereira, Fernanda Takai, Siba, Iara Rennó, Rappin’ Hood,

André Abujamra e outros. Se eu fosse criança hoje, iria querer que este fosse o meu Saltimbancos. 3POR MATEUS POTUMATI

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1eLO DA CORReNTe . O SONHO DOuRADO DA FAMíLiA

Independente . 2009

A trinca de ouro formada por Caio, Pitzan e PG está de

volta com este EP de 7 músicas, sua prova mais recente de

que as pesquisas com música brasileira e a busca por uma

nova forma de fazer rap continuam. “No mesmo instante

em que a alma esbraveja, se faz nescessário voar...”, diz a

rima de “É Necessário Voar”, e é exatamente isso que o Elo

da Corrente vem fazendo desde o fim de 2008 para con-

seguir de colocar na rua, ainda este ano, seu disco come-

morativo de 10 anos. Devido ao ritmo intenso de produção,

o trio reuniu um número significativo de faixas e definiu a

trajetória musical que vai seguir na reta final de produção

do seu álbum comemorativo. O resultado? Um outro signi-

ficativo punhado de sons que, apesar de não atenderem às

nescessidades criadas pelo roteiro do próximo álbum, têm

por si só um enorme e expressivo valor por fazerem parte

do mesmo processo criativo.

Irmão menor de uma gestação univitelina, O Sonho

Dourado da Família é fruto real do que o trio vem pre-

parando para esse próximo lançamento, que cumpre o

papel de nos entreter com o melhor da habilidade lírica

e riqueza personal que caracterizam o Elo. Porém, o ál-

bum vai muito além de cumprir esse papel degustati-

vo, ganhando autonomia e características marcantes.

Os temas vão das mais profundas reflexões a questio-

namentos diários e corriqueiros, passando por inúmeras

referências à cultura brasileira, em especial regiões do

país muitas vezes esquecidas por não se encontrarem

dentro do eixo comercialmente mais fortalecido. Dife-

rentes vertentes da música brasileira de raiz, somadas

à programações, scratchs e rimas, compõem um rico

cenário em que a fusão de novas linguagens se apre-

senta com autoridade. Estilo Lampião dançando break,

ou mulher rendeira fazendo scratch, o Brasil se fortalece

cada vez mais com alicerces como este Sonho Dourado.

3POR EDU LOPES

1HOT CHiP . ONe LiFe STAND . EMI . 2010

É muito fácil se deixar encantar pelo Hot Chip.

Mestres da dance music com refrão, eles pavi-

mentaram o caminho do sucesso com hits para

as pistas como a grudenta “Over and Over”

e a suave “Ready for the Floor”. Em One Life

Stand, seu quarto álbum, o quinteto de Londres

se desafia a manter o equilíbrio tênue entre os

dois sentidos da palavra “balada”. A faixa-título

é um caleidoscópio clean de efeitos musicais

quase sampleados – guitarras, sintetizadores e

até steel-drums (o novo cowbell) convivem em harmonia. Ainda na seção mais

dançante, parece que a época das suas influências avança da disco dos anos 1970

para a música eletrônica dos anos 1990. A impaciente “We Have Love” parece ter

os efeitos roubados de um MPC de rádio de flash house, enquanto “I Feel Better”

ensina o sentido da expressão “poperô” para as novas gerações, com direito à

melodia de “La Isla Bonita” no refrão. Porém, ao lado do baixinho e frenético Alexis

Varley, repousa o barbudo e gordinho Joe Goddard, responsável por explorar os

potenciais musicais mais contemplativos do grupo. O resultado são folks eletrôni-

cos tramados com simplicidade, como na serena “Slush”, em que as linhas vocais

dialogam até se tornarem uma doce canção de ninar – afinal, no fim da festa e no

fim da noite, ainda há beleza a ser celebrada. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.

1A FiLiAL . $1,99 . Independente . 2009

Se DIY (do-it-yourself) é fazer você mesmo, Edu

Lopes é um dos caras que conheço que levam o

termo mais a sério. Produtor, compositor e mestre

de cerimônia – e principalmente especialista em ti-

rar leite de pedra –, gravou $1,99 com um software

pirata, um microfone e um estúdio improvisado (e,

quando eu digo improvisado, leia-se colchões fa-

zendo a acústica da sala e samplers de passarinhos

gravados pela janela) em sua casa no bairro de Santa Teresa, no Rio.

A receita é simples: não seguir nenhuma receita. Com sensibilidade, bom gosto e

talento natural, é só misturar sem medo tudo de bom que aparecer pela frente, da

bossa nova ao jazz, do maracatu ao baião, do erudito ao eletrônico. Para engrossar

o caldo dessa iguaria popular, $1,99 conta com a fundamental participação dos

amigos multi-instrumentistas Ben Lamar (trompete e teclado), Castro (DJ e tecla-

do), Flávio 52 (saxofone, flauta e cavaco) e Rodrigo Pacato (percussão).

E eles resolveram ir além do sugestivo nome do álbum: em parceria inédita com

a revista 100%Skate e a marca de roupas estadunidense Ezekiel, disponibiliza-

ram 1,99 de graça na internet. Por falar em Estados Unidos, vale lembrar que o

disco foi lançado há pouco mais de um ano por lá, pelo selo nova-iorquino Ver-

ge Records, conquistando dezenas de críticas elogiosas de veículos de res-

ponsa, que vão de Wax Poetics ao New York Times. Destaques para as faixas

“Calma Pedro”, “Baião One Two” e “Brown Suéter”. Baixe agora, de graça, no

site cemporcentoskate.com.br/afilial. 3POR TIAGO MORAES 1vOCê eNCONTRA eSTe e

OuTROS DiSCOS NA LOJA DA +SOMA

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+reviews

1GARAGe Fuzz

DeFiNiTiveLy

ALive . Flame

Discos/Ideal

Records . 2009

Uma coisa sempre me chamou a atenção

no Garage Fuzz, desde o primeiro show

que vi deles há quase 20 anos: a capacida-

de que a banda tem de soar nitidamente

limpa e perfeita, muito superior, por exem-

plo, às duas ou três bandas que haviam to-

cado antes na mesma noite, com os mes-

mos equipamentos. Definitively Alive não

foge à regra. Gravado em Santos, cidade

natal da banda, em um show intenso de

pouco mais de uma hora, o DVD impres-

siona pela qualidade de áudio e captação,

com diversas câmeras, travelings e gruas.

Uma delas passeia pelo meio do público,

dando uma boa noção do que é assistir

a um show do GF. A edição também não

ficou para trás, com uma montagem dinâ-

mica e precisa.

A escolha do setlist do show também foi

extremamente feliz, trazendo 19 faixas, en-

tre elas clássicos como “Shore of Hope”,

“Observant”, “It’s Funny” e “Embedded

Needs”. Apesar de o show já valer muito a

pena por si só, os caras ainda prepararam

um pacote de extras pra lá de generoso:

um documentário média-metragem que

conta toda a trajetória da banda e de seus

integrantes, um ensaio em estúdio, um cli-

pe e para fechar com chave de ouro um CD

com várias músicas que ficaram de fora do

DVD, como “Wrapping Paper”, “Pitiable” e

“Morgan”, além das inéditas “Old Red Low

Top” e “Dive Into Yorself”.

Para quem acompanhou de perto o início

da trajetória da banda e da cena hardco-

re/punk brasileira no começo dos anos 90

como eu, ou para as novas gerações que a

acompanham hoje, esse lançamento é um

marco e definitivamente merece um lugar

especial na estante. 3POR TIAGO MORAES

1eMiCiDA . AvuA BeSOuRO / SuA MiNA Ouve Meu RAP TAMBéM . Laboratório Fantasma . 2010

Mais do que um rapper, Emicida deve ser considerado um artista pop. Suas letras mostram que

do jogo do rap ele já superou várias fases, e agora ele parte com a cara e a coragem que não lhe

faltam para uma esfera maior. Não se deixem enganar pelo método de guerrilha usado para disse-

minar sua arte, isso é só parte da sua sensibilidade. Desde sempre, seu talento e sua desenvoltura

para transformar chavões um tanto desgastados do rap lembram artistas como Jay-Z. Mas o rap

não é indústria por aqui – mal chegou à MTV. Nesse contexto, Emicida é esperto o suficiente para

dimensionar seus pequenos passos e não jogar o bebê junto com a água do banho: ele pode

não estar no topo do mundo como o rei de Nova York, mas a disposição é a mesma, e as inúteis

barreiras entre rap underground e comercial não o assustam. “Já é hora do jogo virar, disposto, na

sede / Meu caso é grave, eles querem sacudir as redes / Eu vim pra arrancar a trave”. Os versos

de “Avua Besouro” são sintomáticos: caso viesse da boca de outro candidato a MC pop, soaria

como pura falta de noção. Tanto no recém-lançado single como no EP, Emicida amplia seu leque

criativo de forma curiosa, com resultados diversos.

O single, feito em parceria com Felipe Vassão, um mangue beat à moda Nação Zumbi, serve de

cama para uma das melhores letras que o rapper já escreveu. Padre do balão, Glória Maria, Beto

Jamaica, Ronaldo, gripe suína, flashdance, um herói da capoeira convertido em estrela de cine-

ma – nunca sua visão foi tão precisa ao se valer do imaginário popularesco para falar do sempre

pertinente tema da percepção dos negros em versão realista fantástica nervosa. Como sempre, a

levada do MC – consciente como ninguém do poder da voz, da interpretação – é ágil e potenciali-

za o sentimento que busca despertar no ouvinte. Mas o que levaria Emicida a fazer rap/rock – uma

equação perigosa desde sempre – aos 45 do segundo tempo? A explicação parece óbvia: Jay-Z

não arriscou sua credibilidade ao lado do Linkin Park? Sabotage não gravou com o Charlie Brown

Jr.? Quando o alvo é o pop, o que parece um desvario justifica-se em certa medida.

Já no EP Sua Mina Ouve Meu Rap Também, cujo nome faz referência a um som do MC Marechal,

Emicida mostra o que tem de melhor: se a solução para o rap, que perde a cada dia espaço para

o funk, é criar sons para as garotas (como “Mulher Elétrica”, dos Racionais), ele manda exemplos

de ironia com amor interessado (“Quer saber/ é fácil gostar de mim/ fácil assim/ afinal, onde

vou, onde tô”), elogia a arte do flerte, fala sobre o cara que não sabe dar valor às mulheres, amor

sexual... Se essa é a cara do rap esperto do momento, mais uma vez Emicida está na frente.

São ações pontuais como essas que o tornam o protótipo do artista completo do século XXI e

deixam no ar a pergunta: será que, com o lançamento de um álbum de verdade, com produção

à altura, seus trabalhos vão se tornar objetos cercados de expectativa como os discos dos Ra-

cionais MCs? Acompanhar a evolução e a música de Emicida é estimulante como poucas vezes a

música consegue ser. 3POR ARTHUR DANTAS

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1GiL SCOTT-HeRON . i’M NeW HeRe

XL ReCORDiNGS . 2010

Um dos grandes nomes do último século

na música negra está de volta com novo

disco após treze anos longe dos estúdios.

Gil Scott-Heron é considerado o pai do rap

e um dos artistas mais influentes da cena

jazz/funk da década de 1970, com clássicos

monstruosos como “The Revolution Will

Not Be Televised”, sua música (e frase) mais

conhecida. O cantor, escritor e poeta volta

em ótima forma com i’m New Here, disco

que se adapta musicalmente ao novo sécu-

lo, usando produções eletrônicas minimalis-

tas em vez de uma banda jazzística, como

seria de esperar. São quinze músicas entre

o cantado e o falado, com faixas no melhor

estilo spoken word, além de pequenos in-

terludes. O álbum foi produzido por Richard

Russel, dono do selo XL Recordings e um

dos principais incentivadores da volta de

Heron aos estúdios, depois de diversas pas-

sagens por prisões e clínicas de reabilitação

pelo uso de cocaína. Fruto de dezoito me-

ses de produção, o resultado está à altura

de sua obra. O disco abre com “On Coming

From A Broken Home”, música dividida em

duas partes, que traz um poema recitado

em cima do sample de “Flashing Lights”, de

Kanye West. Mas a faixa mais impactante

fica para o single “Me And The Devil”, ver-

são do clássico de Robert Johnson cantada

sobre um beat sombrio, que conta com um

videoclipe assustador. Outros destaques

são “New York Is Killing Me”, “Your Soul And

Mine”, “I’ll Take Care Of You” e a faixa títu-

lo, “I’m New Here”. Que o novo Scott-Heron

continue rendendo outras pérolas como

esta no futuro. 3POR DANIEL TAMENPI

1CRiOLO DOiDO . Live iN SP . Independente . 2010

Gravado em dezembro de 2008, este DVD é um passo importante

na carreira de um MC singular. Apesar de adorado no hip-hop, seja

por suas letras contundentes, pelo carisma pessoal ou por sua li-

derança decisiva no renascimento do rap paulistano, Criolo Doido

ainda não foi devidamente apreciado e digerido por uma audiên-

cia maior. Em Live in SP, fica um pouco mais fácil entender o que

tantos estão perdendo. A começar pelas execuções inflamadas das

dez faixas maturadas em seus 20 anos de carreira. Após o spoken

word afiado do parceiro de rinha DJ DanDan, num palco onde falta

espaço mas sobra sangue nos olhos, Criolo metralha “Até Me Emo-

cionei”. Na ofensiva e de peito aberto, ele canta, entre o descritivo e

a metalinguagem, sobre “aquele que até a respiração sai rimando”.

Em “Selva Urbana”, chama o parceiro carioca MC Funkeiro e mostra a força de uma comunidade

freestyle sem fronteiras. “É o Teste”, um dos grandes clássicos do rapper, espreme mais gente ainda

no palco e provoca a catarse anunciada, em nível desproporcional ao público barulhento e modesto.

Se o show ainda reserva momentos especiais como “No Sapatinho”, “Chuva ácida” e “Ainda

Há Tempo”, é nos extras que está guardada a cereja do bolo. Em pouco mais de 13 minutos de

depoimento numa laje no bairro do Grajaú, extremo Sul de São Paulo, Criolo Doido destila uma

saraivada de ideias que trazem na mesma dose articulação, loucura, amor, revolta, urgência e

gratidão. “O erro do homem é querer tirar a razão do outro. Todo homem tem a sua razão, por

que querem foder com a minha?”, ele diz num momento. “A gente se odeia demais, por isso que

tamo acabando com o mundo”, sentencia em outro. Ao lembrar de uma crítica que ouviu por-

que suas letras “têm palavras bonitas demais”, ele não perdoa: “O cara vira pra mim e fala que

eu tenho que ser o rei da merda pra representar ele? Por isso que eu sou doido, eu levo porrada

dos dois lados”. Mais adiante, ele segue falando sobre os dois lados da ponte, tocando no ponto

mais delicado da relação: “acham que quem tem condição [financeira] é o demônio, mas muita

gente ajuda pra caralho”. Em vez de jogar para a plateia, no lugar comum do ódio de classe,

ele rejeita a atitude como armadilha nociva à comunidade. Documento precioso para quem não

se contenta com as águas mornas da mediocridade. 3POR MATEUS POTUMATI 1vOCê eNCONTRA eSTe e

OuTROS DvDS NA LOJA DA +SOMA

1CHARLOTTe GAiNSBOuRG . iRM . Because Music . 2010

Carregar um sobrenome com esse peso não deve ser fácil, e optar

por trilhar passos bem semelhantes aos do pai menos ainda. Mas

parece que Charlotte Gainsbourg esperou a hora certa para colocar

em prática os talentos herdados do poeta e cantor Serge Gains-

bourg. Não compará-la a ele é praticamente impossível, mas isso

vem para o bem: mostra mostrar que Charlotte, mesmo sendo filha

de quem é, consegue desenhar suas próprias linhas, adotando uma

linguagem musical contemporânea, sem abandonar as lições que aprendeu em casa.

No seu terceiro álbum, iRM, Charlotte convidou Beck para cuidar da produção. A combinação foi per-

feita: ele trouxe aditivos para a música da francesa e soube como criar climas sonoros para a voz su-

ave e limitada de Charlotte. A convidativa “Master’s Hands” abre o álbum e mostra uma das faces do

disco, que se divide em momentos mais serenos e outros mais dramáticos –sentimento que ela trou-

xe por conta de um acidente sério que sofreu em 2007, enquanto praticava esqui aquático – como a

etérea “Vanities”. “Heaven Can Wait”, um dueto com o amigo Beck, é um dos pontos altos do álbum,

e a mensagem está ali: o céu pode esperar. Ainda bem. Ouvi-la traz paz. 3POR MARINA MANTOVANINI

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1MARTyN . GReAT LeNGTHS . 3024

2009

Great Lengths é o álbum de estreia do

produtor holandês Martjin Deykers aka

Martyn. Apesar de ser seu primeiro disco,

Martyn tem um longo currículo como DJ

de drum‘n’bass e techno nos anos 90 e

presenciou a popularização e evolução da

música eletrônica na Europa. Residente de

uma das festas mais famosas da cena un-

derground holandesa durante onze anos, o

DJ se deparou com a cena 2-step, grime e

dubstep e enveredou por essas áreas na produção, lançando suas primeiras mú-

sicas em 2005. Em 2007, Martyn abriu seu próprio selo, 3024, e não parou mais,

tornando-se uma das grandes revelações do dubstep. Sua música tem influência

de estilos que fazem parte de seu passado e tenta aproximar ainda mais o dubs-

tep das pistas de dança, incorporando uma série de outras sonoridades, principal-

mente o techno, dando um andamento mais rápido as batidas. O resultado sonoro

de “Great Lenghts” é ótimo. Com o dubstep como carro chefe, Martyn viaja por

várias vertentes com uma originalidade incrível, mantendo um conceito pessoal

nas batidas, muito percussivas e com diversas variações. Passeia pelo techno em

“Seventy Four” e “Elden St.”, brinca com o dub na enfumaçada “Little Things”, e

até onde as batidas não estão presentes o produtor mostra sua qualidade, como

nas espaciais “Bridge” e “Brilliant Orange”. Mas seus melhores momentos estão

no dubstep, com as ótimas “The Only Choice”, “Vancouver” e “Far Away”. Apesar

de ser um disco longo, Martyn mostrou como fazer um álbum coeso, que funciona

tanto nas pistas de dança quanto no fone de ouvido. 3POR DANIEL TAMENPI

1SPOON . TRANSFeReNCe . Merge . 2010

Por alguns anos, a base musical do Spoon si-

tuava-se em gravações que remetiam à crueza

de gravações ao vivo. No entanto, foi um forte

e lapidado apelo pop, fundido a um indie-rock

festivo, que marcou a maior parte da carreira

dos texanos. Transference, pela primeira vez

na história do grupo, equilibra com hones-

tidade os dois lados da moeda. É assim que

funciona, por exemplo, a sequência que inclui

“Mystery Zone” – uma baladinha catchy e gostosa de se ouvir – e “Who Makes

You Money” – música com instrumental minimalista e vocais que quase en-

tram em segundo plano. Apesar de possuir canções tão características, como

“Got Nuffin” e “Before Destruction”, ora ou outra novas influências melódicas

esbarram nas faixas de Transference: “Written In Reverse”, com piano mar-

cante, parece ter sido tirada do disco de estreia do Cold War Kids; “I Saw The

Light” remete, mesmo que vagamente, aos bons anos do Weezer e “Good-

night Laura” se revela uma canção-de-ninar sem precedentes na carreira da

banda. Transference abre 2010 destacando-se dos demais lançamentos e sa-

tisfaz logo de cara. 3POR ALEX CORREA

1GiGANTe ANiMAL . OBRiGADO, TéNN

Independente . 2009

O Gigante Animal é do tamanho da atual fase do rock inde-

pendente nacional. Nem tão lá nem tão cá, o quarteto formado

em 2006 demonstra cuidado e sofisticação tanto na produção

como no resultado final, que por si só informam muito sobre

suas virtudes. Em todos os quatro EPs gravados, cada um

com três sons, a produção é esmerada. A cada passo, o grupo

compartilha o processo de descobrimento das próprias poten-

cialidades, como quem descobre o amor – ao vivo, o grupo é

uma experiência passional de timbres, variações e harmonias.

O que é apenas sugerido nas letras um tanto vagas é preen-

chido pelos sons – tal qual o nome da banda, uma síntese de

estranheza e retidão. A distribuição dos EPs é feita nos shows

e com base na troca de e-mails: você manda uma mensagem

e leva um dos EPs, acompanhado de um link pra baixar os que

faltaram. Esse equilíbrio entre expor a procura pela musicali-

dade e se colocar criativamente no mercado, combinado com

o já referido estranhamento, são a marca de um determinado

segmento da música urbana jovem atual. Tomemos trechos do

último trabalho da banda, Ténn: “E esse cinza que não passa/

sem graça, passará!” (de “Cinza”), “depois pra sempre não há/

quem disse que pra sempre será?” (de “Ah, Tá Bom”) e “passa

passa passará/ seus dias nunca vão voltar/ passa passa passa-

rá/ tenho medo de me arrepender/ a seco, acertos descontos”

(de “Pelo Reflexo”), recortes que passeiam, ao fim e ao cabo,

pela perda da inocência e por ritos de passagem à moda dos

melhores romances de formação. E, assim como o talento dos

recifenses do Nuda, que em muito se irmana com o Gigante, a

fórmula musical é o que poderíamos chamar de pós-Los Her-

manos: romantismo jovem, um hibridismo que busca a ameni-

zação de temas locais e estrangeiros. Mas, enquanto o Nuda

se vale de cores vibrantes e tropicais para alcançar tal emprei-

tada, o Gigante se esmera no reaproveitamento do combalido

indie rock saído do pós-hardcore estadunidense. E é nesse mé-

todo de tentativa e erro tão abertamente exposto que reside o

interesse em acompanhar o amadurecimento estético do gru-

po – ainda que tudo, por fim, fique cinza. 3POR ARTHUR DANTAS

+reviews

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