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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS TABATA LARISSA SOLDAN FECHAMENTO DE RUAS SEM SAÍDA EM CURITIBA: SENTIDOS DE PERTENCIMENTO OU MANIFESTAÇÃO DA CULTURA DO MEDO? CURITIBA 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

TABATA LARISSA SOLDAN

FECHAMENTO DE RUAS SEM SAÍDA EM CURITIBA: SENTIDOS DE

PERTENCIMENTO OU MANIFESTAÇÃO DA CULTURA DO MEDO?

CURITIBA

2011

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TABATA LARISSA SOLDAN

FECHAMENTO DE RUAS SEM SAÍDA EM CURITIBA: SENTIDOS DE

PERTENCIMENTO OU MANIFESTAÇÃO DA CULTURA DO MEDO?

Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharelado no Curso de Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Maria Tarcisa Silva Bega.

CURITIBA

2011

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AGRADECIMENTOS

A

Luís Henrique Zanon Franco de Macedo, pela imensa atenção, paciência e

ajuda no desenvolvimento deste trabalho e também pelo encorajamento nos

momentos difíceis.

Família e amigos que tiveram toda a compreensão do mundo durante esse

processo monográfico e entenderam a minha ausência por algumas vezes.

Professora Maria Tarcisa Silva Bega, pelas valiosas sugestões.

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RESUMO

Este trabalho trata de questões como: dicotomia público/privado durante a Antiguidade, Idade Média e Modernidade, a fim de podermos notar as diferentes percepções dessa durante o passar das gerações de nossa civilização e a conseqüente emergência de novas esferas, que acaba acarretando em possíveis distorções do entendimento dos propósitos da cidade.

Por esse motivo trabalhamos nesta monografia algumas compreensões acerca da cidade, como espaço, dentro das Ciências Sociais. Dessa maneira, podemos entender de forma mais clara a construção de uma nova reorganização do espaço urbano, em que nos encontramos. Diante disso, utilizamos um projeto de lei para exemplificar essa crescente reorganização urbana, que está permeada por alguns discursos, como o de segurança, comodidade, pessoalidade com os vizinhos e homogeneidade, e para realizarmos nosso exercício empírico, aproximando dessa maneira teoria da prática, que teve por objetivo tentar diagnosticar nas falas dos entrevistados, além da questão da dicotomia público/privado, a questão da segurança e do sentimento de comunidade.

Trabalhamos também assuntos como: vivência em espaços fechados, entre estes as Gated Communities, sensação de segurança, medo, enclaves fortificados, controle social e fala do crime.

PALAVRAS CHAVE: DICOTOMIA PÚBLICO/PRIVADO; SENSAÇÃO DE

SEGURANÇA E SENSO DE COMUNIDADE.

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ABSTRACTS This work deals with issues such as: dichotomy between public / private during

the Antiquity, Middle Ages and Modernity, so that we can notice the different perceptions of this during the passing of the generations of our civilization and the consequent emergence of new spheres, which ends up causing possible distortions in the understanding of the purposes of the city.

For this reason we work in this monograph some insights about the city, as a space, within the Social Sciences. Thus, we can understand more clearly the construction of a new reorganization of urban space, where we are. Therefore, we used a bill to illustrate this growing urban reorganization, which is permeated by some speeches, such as safety, comfort, personality and personhood with the neighbors, and to our empirical exercise, approaching the theory of practice, which tried to diagnose the speeches of the interviewees, beyond the question of the dichotomy public / private, the issue of security and the sense of community.

We also work with issues such as: living in closed spaces, among them the Gated Communities, sense of security, fear, fortified enclaves, social control and talk of crime.

KEY WORDS: DICHOTOMY PUBLIC/PRIVATE, SENSE OF SECURITY AND

SENSE OF COMMUNITY.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 7

1 PÚBLICO E PRIVADO:

HISTÓRICO E EMERGÊNCIA DE NOVAS ESFERAS ......................................... 11

2 CONCEPÇÕES DE CIDADE E A REORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO URBANO NA

MODERNIDADE ................................................................................................... 20

3 PROPOSTA DE FECHAMENTO DE RUAS SEM SAÍDA:

ESTUDO DE CASO. ............................................................................................. 32

3.1 Projeto de Lei....................................................................................................32

3.2 O Campo...........................................................................................................36

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 42

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 48

ANEXOS..................................................................................................................51

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INTRODUÇÃO

As temáticas urbanas foram se delimitando como objeto de análise da

sociologia brasileira a partir da década de 1970, segundo Eduardo Marques, sendo

que os primeiros temas da sociologia urbana eram direcionados para estudos acerca

da pobreza e da desigualdade social (MARQUES, 2005, citado por CEDRO et al .,

2010). Na década de 1980 começaram a surgir abordagens mais específicas que as

anteriores, exemplo disso, são os estudos acerca da segregação socioespacial

(CEDRO, 2010, p. 16). Encontramos diferentes enfoques nas produções

acadêmicas acerca da segregação socioespacial no conjunto de discussões sobre

as cidades; entre esses temos o trabalho de Teresa Caldeira, “Cidade de Muros –

Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo”, como um dos principais referenciais

teóricos. Neste trabalho, Caldeira (2000) utiliza-se do método qualitativo e histórico,

onde realiza uma comparação entre a cidade de São Paulo e Los Angeles e delimita

em três fases a segregação na maior capital brasileira.

Em leitura ao artigo “Segregação Socioespacial: Descrição de Algumas

Abordagens no Brasil” de Marcelo Cedro, encontramos dentre outros autores, o

exemplo do sociólogo brasileiro Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro que trabalha com o

tema segregação socioespacial de maneira bem diferente de Caldeira (2000).

Embora Ribeiro ressalte a importância da análise qualitativa ele aponta que a

metodologia quantitativa dá maior detalhamento e compreensão sintética do

fenômeno.

Ressaltamos esses dois trabalhos nessa introdução para indicar que o tema

ao qual nos propomos desenvolver, isto é, a segregação sócio-espacial, pode ser

desenvolvido de maneiras bem diferentes, ou seja, a partir de enfoques mais

abrangentes e históricos como o de Caldeira (2000) ou de modo mais específico,

estatístico e delimitado como de Ribeiro. Importante também notarmos que o campo

da Sociologia Urbana no Brasil é relativamente novo, afinal foi apenas partir da

década de 1970 que as temáticas urbanas foram se delimitando como objeto de

análise da sociologia brasileira.

Diante destas diferentes maneiras de se trabalhar o urbano, definimos nosso

objeto de pesquisa, as percepções dos moradores de ruas sem saída sobre as

questões da apropriação privada do espaço público, uma vez que foi apresentado na

Câmara Municipal de Curitiba um projeto de lei que, acabava por fim, propondo o

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aumento dos cercamento nesses espaços. Utilizamos para esta monografia o

método qualitativo como exercício empírico a partir do Projeto de Lei que tinha por

objetivo definir critérios que aumentariam e facilitariam o cerceamento de acesso a

ruas já sem saídas, dispensando os moradores interessados dos trâmites

burocráticos, através da dispensa de processo administrativo junto às

Administrações Regionais do município de Curitiba. Esse Projeto de Lei foi

apresentado em 2007, pelo Vereador Mario Celso Cunha, aprovado pela Câmara de

Vereadores e posteriormente vetado pelo Prefeito. Apesar de não ter sido aprovado,

esse tipo de proposta evidencia algo que já vem ocorrendo nas grandes cidades,

isto é, o aumento dos “cercamentos”, explicitando assim uma reconfiguração urbana,

onde aparecem segregações, tanto espaciais como sociais, que acabam

reproduzindo preconceitos, falas etc. dentro do espaço urbano.

Foram realizadas entrevistas semi-abertas com os moradores dessas ruas

sem saída, pois entendemos que eles seriam os primeiros que se beneficiariam com

esta proposta, caso ela tivesse sido aprovada. Essas entrevistas tinham por objetivo

tentar diagnosticar, diante do posicionamento dos “maiores interessados” ao projeto,

se as questões segurança, sentimento de comunidade e dicotomia público/privado,

desenvolvidas nesse trabalho, encontravam-se em seus discursos. Nossa hipótese

principal, a partir da leitura realizada de Caldeira (2000), era que esses moradores

seriam a favor do proposto no Projeto de Lei, tendo como justificativa a questão

segurança que teriam com o aumento do “cercamento” de suas ruas.

Utilizamo-nos de duas discussões teóricas para compreender esse processo:

a discussão sobre a dicotomia público/privado e sobre a sociologia urbana. Na

primeira, tomamos como base os escritos de Hannah Arendt e Jünger Habermas,

que fizeram uma análise histórica sobre esses domínios. Utilizamos também a

análise de Richard Sennett sobre o público e o privado durante o período do Antigo

Regime e sobre a emergência da esfera íntima derivada das mudanças ocorridas

dentro destes dois domínios. Para lidar com esta questão da inserção da intimidade

na vida pública também observamos a visão otimista de Anthony Giddens,

contrapondo assim dois modos diferentes de se analisar a esfera íntima. Para nos

ajudarmos a desenvolver esse capítulo e entender esses autores e obras utilizamos

o artigo de Fayga Silveira Bedê. Esta discussão compõe o primeiro capítulo da

monografia.

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O segundo capítulo teve como objetivo abordar o assunto na perspectiva da

sociologia urbana. Conceituamos cidade como espaço, a partir de um levantamento

teórico dos diferentes conceitos de cidade concebidos de modos distintos entre os

autores clássicos da Sociologia, passando por uma reformulação na modernidade,

até a dimensão da reorganização do espaço urbano. Para desenvolvermos uma

análise “dessa cidade” que materializa a reorganização urbana, utilizamos o conceito

de enclaves fortificados desenvolvido por Caldeira (2000). Tal conceito foi essencial

para nosso entendimento dessa nova organização da cidade. Outra obra que nos

serviu de suporte foi a dissertação de mestrado de Andiara Valentina de Freitas e

Lopes que trabalha o conceito de Gated Communities desenvolvido pelos autores

Edward J. Blakely e Mary Gail Snyder, importante para essa monografia por nos

permitir entender que a questão do fechamento de ruas, sejam elas sem saída

(como é o caso do Projeto de Lei analisado) ou não, não é algo novo, pois é

encontrada em diferentes lugares, de diferentes maneiras, mas que tem

semelhantes justificativas para a realização do ato, sendo uma delas o sentimento

de pertença, típico de comunidades como as aqui analisadas.

No terceiro capítulo apresentamos o Projeto de Lei, abordando também as

principais propostas e como seria funcionalidade deste, caso fosse aprovado.

Citamos também alguns comentários dos vereadores, inclusive o posicionamento

contrário à lei das vereadoras Professora Josete do Partido dos Trabalhadores (PT)

e Renata Bueno do Partido Popular Socialista (PPS). No trabalho foi ressaltado o

veto do Prefeito Municipal de Curitiba, Luciano Ducci, e esclarecemos seu

posicionamento a partir do documento “Razões do Veto”. Por fim, neste capítulo

temos as transcrições das entrevistas que foram realizadas em três diferentes

bairros da cidade de Curitiba, a saber, Bacacheri, São Lourenço e Tingui.

A escolha por esses bairros deveu-se ao fato dos três apresentarem

indicadores socioeconômicos semelhantes, sendo considerados bairros de classe

média e alta, segundo a pesquisa realizada pelo IPPUC no ano 2000. Portanto,

foram escolhidos bairros considerados com bons indicativos econômicos, pois, de

acordo com os estudos de Caldeira (2000), os enclaves, propriedades privadas para

uso coletivo, tendem a ser ambientes socialmente homogêneos, em geral de classes

médias e altas. Percebemos também que esses bairros apresentam uma

urbanização muito semelhante, constituídos por moradores antigos, o que faz com

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que todos eles sejam considerados, pelos próprios moradores, como bairros

“familiares”.

Posto isto, são múltiplas as questões que poderiam derivar deste estudo, mas

nos aproximamos basicamente de três. Os entrevistados deveriam se posicionar a

favor ou contra ao que o Projeto de Lei propunha e explicar o motivo do

posicionamento. Se por ventura os entrevistados não tocassem na questão público

e/ou privado durante a reflexão sobre o projeto, faríamos uma “provocação” sobre o

tema, explicando a proposta e problematizando as dimensões público/privado.

Deliberadamente expúnhamos que a rua é, legalmente, um bem público, buscando

vislumbrar como as pessoas entendiam essa questão, se percebiam a relação que

existe entre o público e o privado e se isso era empecilho para a realização do

fechamento de ruas.

Assim, de maneira geral, nosso objetivo com essas entrevistas era perceber

se as questões segurança, sentimento de comunidade e dicotomia público privado,

analisados durante o primeiro e segundo capítulo deste trabalho, apareciam como

relevantes no posicionamento dos entrevistados. Tentamos, dessa maneira,

aproximar a teoria da realidade, trazendo nesse capítulo os dados empíricos. É claro

que o grupo escolhido para a entrevista é pequeno, mas compreendemos que pode

servir como um primeiro exercício de reflexão, essa monografia.

Acreditamos que tenha sido válido este trabalho, por que além do

conhecimento adquirido durante o processo de realização dessa monografia, nos

proporcionou uma experiência de campo, satisfazendo ao propósito de unir teoria e

prática.

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1 PÚBLICO E PRIVADO: HISTÓRICO E EMERGÊNCIA DE NOVAS

ESFERAS.

Para trabalharmos melhor algumas questões que emergiram a partir da

definição do objetivo desta monografia – entender em que me medida a proposta de

Lei que permitia o cercamento de ruas fechadas era precedido ou provocava alguma

reflexão sobre a relação público/privado – neste capítulo faremos uma revisão de

literatura. Iniciamos com a questão na Antiguidade, referindo-nos à Grécia e à

Roma, mais detalhadamente, pois consideramos que o modelo de pensamento da

dicotomia público/privado iniciou-se nesse período de nossa civilização; depois, com

a Idade Média e por fim com a Modernidade, sobre as diferentes noções de público

e privado. Para isso, utilizamos o livro “A Condição Humana”, da pensadora alemã

Hannah Arendt, publicado pela primeira vez em 1958 e o livro “Mudança Estrutural

da Esfera Pública” de Jünger Habermas. Examinamos também, a partir do livro: “O

Declínio do Homem Público - As tiranias da Intimidade”, os domínios público e

privado, analisados por Richard Sennett, durante o período do Antigo Regime, e a

emergência de uma nova esfera, a esfera íntima derivada das mudanças ocorridas

dentro destes domínios. Por fim, para ajudar-nos na compreensão desses autores

utilizamos o artigo “O Público e o Privado: Deslizamentos e Rupturas” de Fayga

Silveira Bedê.

Segundo Hannah Arendt, a vida ativa do homem na Antiguidade era

desenvolvida apenas dentro das esferas pública e privada que, eram entendidas

como espaços bem definidos e facilmente identificáveis. Ela utilizou a Antiguidade

Greco-Romana para tratar o debate acerca dessas duas esferas. Não devemos

esquecer que há várias diferenças entre Grécia e Roma no que diz respeito à

dicotomia público/privado, mas como as diferenças são menores que as

semelhanças, unificamos Grécia e Roma para nos referirmos à Antiguidade. Nesse

mesmo sentido Fayga Silveira Bedê (s/d) entende que é importante que se faça uma

remissão ao paradigma original, ou seja, voltar aos gregos para podermos trabalhar

sobre as questões que envolvem o público e o privado.

Para Arendt (2003) o público tinha a ver com tudo aquilo que possuía

publicidade e também com o que era de pertencimento de todos, características

estas que, segundo ela, eram facilmente encontradas na pólis grega.

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Nesse período o cidadão grego era considerado um ser político, pois os

limites da esfera pública coincidiam, na Antiguidade, com os limites da vida política.

A responsabilidade deste ser político era dedicar sua vida no interesse da cidade,

onde deveria se valer apenas do discurso, chamado de léxis, e da ação, chamada

de práxis. De acordo com Bedê (s/d), no momento discurso (léxis), os cidadãos

exerciam a sua liberdade, onde a violência do poder despótico era substituída pela

“força” do melhor argumento. A pólis era uma esfera léxico-argumentativa, que se

dava entre iguais, onde a violência calava-se diante do poder da palavra. O segundo

momento, que decorria da liberdade político-argumentativa do momento léxis, dava-

se na práxis por meio da adoção de práticas comunitárias que derivavam de

decisões tomadas por todos os cidadãos.

Segundo Arendt (2003), na Antiguidade era a política que consolidava o

mundo comum dos homens, pois era esse tipo de ação que dizia respeito à esfera

pública. Segundo ela, eram essas atividades “públicas” que preexistiam ao homem

individual e a ele sobreviveriam, que davam sentido à existência humana na

proporção em que possibilitava sua comunhão em torno de valores comuns. Para

Bedê (s/d), isso nos demonstra a influência da mentalidade grega no que diz

respeito ao prestígio do trabalho intelectual, em detrimento do trabalho manual.

Conforme Arendt (2003), como havia uma distinção, na Antiguidade, das

atividades humanas, separando o público do não público, delimitava-se, assim, uma

esfera complementar à esfera pública, onde se situavam as atividades estranhas e

“inferiores” a essa esfera, isto é, a esfera privada.

Jürgen Habermas assim como Hannah Arendt definiu a esfera privada na

Antiguidade como a vida obscura, subtraída aos olhares do público, confinada aos

limites da casa, onde estavam submetidos os escravos, as mulheres e os

estrangeiros, todos dedicando suas vidas as tarefas domésticas e a uma rotina de

trabalhos manuais, que tinham por objetivo a produção dos bens necessários à

sobrevivência da família. Por isso esse espaço era entendido como o reino da

necessidade, em que nascimento, vida, labor, reprodução e morte traçavam o seu

curso silencioso (HABERMAS, 2003, p. 37). A vida na casa era privada da evidência

do público, menor e comprimida entre o útil e o necessário e seus habitantes

estavam sob o domínio de um chefe despótico, sendo que o poder desse chefe

estava compelido pela urgência das necessidades biológicas, por esse fato que, era

por assim dizer, até mesmo esperado do chefe de família que ele comandasse

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despoticamente, muitas vezes, utilizando-se da violência. A lei da casa era o

princípio orientador, que possuía como objetivo vencer as necessidades biológicas e

assim assegurar a sobrevida dos membros da família.

Arendt (2003) ressaltou que a importância da relação entre as esferas pública

e privada não se encontrava na sua simples oposição, mas na questão de que a

existência da esfera pública presumia a preexistência da esfera privada. De acordo

ela, os romanos, mais do que os gregos, estavam conscientes de que,

paradoxalmente, comprometeriam a própria esfera pública se tentassem expandi-la

a ponto de absorver a esfera privada.

Devemos prestar atenção que na “cultura grega” a propriedade privada

possuía um sentido diferente do qual nós conhecemos hoje em dia, ou seja,

associado à uma idéia de riqueza. Segundo Bedê (s/d), na Antiguidade a

propriedade privada era considerada como sendo uma espécie de passaporte de

acesso à esfera pública. Esse acesso estaria assegurado a partir de quando o

cidadão tivesse satisfeito suas necessidades de subsistência, reafirmando assim

que o conteúdo da esfera privada consistia nas atividades de sobrevivência

biológica.

Conforme Arendt (2003), a propriedade privada era, por conseguinte, muito

mais do que mera riqueza material; representava, na verdade, para o homem grego,

o seu lugar no mundo (ARENDT, 2003, p.71-72). Segundo Bedê (s/d), era como ter

um lugar para onde se pudesse voltar, após o cumprimento de seus deveres de

cidadão, “um refúgio onde se esquivar dos olhares do público” (BEDÊ, s/d, p. 3457).

Sobre o período que correspondia à Idade Média, Habermas (1984) analisou

que “durante esse período na Europa, a contraposição entre público e privado,

embora corrente, não tinha vínculo de obrigatoriedade” (HABERMAS, 1984, p. 10).

Esclarecendo em seguida que durante o feudalismo

a autoridade “privada” e “pública” fundiam-se numa inseparável unidade, já que ambas eram a emanação de um único poder, sendo também compreensível que estavam ligadas aos bens fundiários e que podiam ser tratadas como direitos privados bem adquiridos. (HABERMAS, 1984, citado por BEDÊ et al ., s/d).

Segundo Arendt (2003), na Idade Média já era possível encontrar o princípio

da depreciação da dicotomia público/privado, que somente se consolidou na

sociedade moderna. Por causa da influência que o cristianismo exerceu sobre toda a

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era medieval, todo esse período foi perpassado por um forte sentimento de aversão

ao político e ao público em geral. Ou seja, a preocupação comum nessa época era o

outro mundo e os princípios morais vigentes, por influência da igreja, eram o amor e

a bondade, que por si só eram avessos à publicidade.

As esferas pública e privada só existiam na Antiguidade por estarem

relacionadas paralelamente uma em relação à outra, portanto, se na Idade Média

acabou ocorrendo uma dissolução da esfera pública, pelo fato de a vida ter se

recolhido ao interior dos feudos e das casas, consequentemente sucedeu-se

também a descaracterização da esfera privada. Assim, as atividades de uma esfera

passaram a sofrer a influência de elementos da esfera oposta, consolidando os

primeiros acenos do social.

Através da comparação que é possível realizar entre o chefe de família

despótico da Antiguidade, e o senhor feudal da Idade Média, podemos observar um

exemplo da mescla das esferas pública e privada do período Medieval, que foi

observado por Arendt. Por ser despótico, o chefe de família da Antiguidade não se

utilizava da justiça para governar sua família, ou seja, as leis, nesse período, eram

de exclusividade da esfera pública, não sendo utilizadas dentro do âmbito privado.

Já no período medieval, o senhor feudal tinha a incumbência de administrar a justiça

dentro do território que estava sob sua jurisdição. Portanto, podemos observar que a

justiça, que na Antiguidade era considerada um princípio público, acabou sendo

aplicada na Idade Média em um espaço que, embora não fosse propriamente

privado, também, certamente, não poderia mais ser considerado público.

Os governos monárquicos começaram a se reerguer por toda a Europa ao

final da Idade Média; consequentemente o “público” começou novamente se

evidenciar, porém com características bem diferentes da que possuía na

Antiguidade. Nessa esfera pública emergente foram incorporados os aspectos

políticos do sistema feudal, ou seja, o interesse do Estado recaiu sobre a vida dos

indivíduos, fazendo com que assim o aspecto da subsistência, exclusivo da esfera

privada na Antiguidade, tornasse preocupação também da esfera pública. Podemos

notar, a partir disso, a confusão que ocorre dentro e entre essas esferas, pois elas

acabam perdendo suas qualidades específicas e por fim, se dissolvem na

emergente esfera social.

Para melhor compreensão desse processo de corrosão da esfera pública do

mundo moderno, e a conseqüente emergência da esfera social, Bedê (s/d) sugere

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uma análise comparativa entre a concepção grega de liberdade e o ideal de

liberdade da modernidade liberal. Para os gregos, a liberdade possuía uma forte

conotação política e a pólis constituía o espaço onde essa liberdade era exercida. A

modernidade liberal acabou subvertendo o significado atribuído pelos gregos ao

papel da esfera pública, ocorrendo assim uma mudança de paradigma nesse

período. Diz que: “o paradigma originário de liberdade política, que animava o

espírito grego na Antiguidade, foi substituído por uma concepção economicista de

liberdade, manchando assim o que havia de mais sagrado na esfera pública, a idéia

do homem que só realiza plenamente a sua humanidade como cidadão, integrado a

um corpo social e político” (BEDÊ, s/d, p. 3455). Portanto, na medida em que a

modernidade liberal introduz a concepção de liberdade como ocorrência

essencialmente econômica transforma a sacralização do espaço público, da

Antiguidade, em divinização do mercado. Assim, a burguesia liberal deslocou a

tônica do espaço público para a economia, promovendo a emergência do que Arendt

(2003) chamou de “esfera social”, o que corresponde a uma espécie de

“nacionalização da economia doméstica” (BEDÊ, s/d, p. 3457). Ou seja, as

atividades produtivas, restritas ao âmbito doméstico, ligadas à questão da

sobrevivência da família e consideradas inferiores pelos gregos, foram alçadas à

condição de questão estratégica para o desenvolvimento do Estado-Nação.

Portanto, segundo Bedê (s/d), as questões econômicas passaram a ditar pautas e

diretrizes para as políticas públicas e o sistema jurídico se tornou um sancionador da

ordem econômica, mobilizando, assim, o aparelho repressor do Estado toda vez que

as propriedades e os interesses individuais se encontrarem ameaçados. Assim, essa

supervalorização da economia consistiu em um dos fatores relevantes para o

processo de erosão do espaço público na modernidade liberal.

O processo de precarização decorrido da emergência da esfera social e a

ascensão de uma nova esfera, a esfera íntima, constituíram um novo modo de

retração da esfera pública, conforme aponta Richard Sennett em seu livro “O

Declínio do Homem Público”.

Sennett (1988) iniciou descrevendo a relação entre público e privado no

período do Antigo Regime, modelo de governo, que marcou a Europa durante a

Idade Moderna e que era baseado em três pilares, a monarquia, o clero e a

aristocracia. Na esfera política, este período era caracterizado pelo absolutismo em

que o soberano concentrava em suas mãos os modernos poderes executivo,

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legislativo e judiciário. Para o autor, nesse período, essa relação entre público e

privado era constituída de um equilibro entre os dois domínios.

De acordo com Sennett (1988), no Antigo Regime havia uma clara oposição

entre natureza e cultura através do contraste entre o privado e o público. A família,

nesse contexto, era tida como um “assento da natureza” (SENNETT, 1988, p.119),

portanto se o natural e o privado estavam unidos, então a experiência das relações

familiares dos seres humanos seria sua experiência da natureza, ou seja, privada.

Sobre o espaço público Sennett (1988) compreendeu que existia um código de

credibilidade, que mediava a interação entre os habitantes desse espaço, sendo

assim o espaço público era caracterizado pela diferença que, através deste código

era superada pelos indivíduos que assumiam seus papéis que eram construídos

socialmente.

Essa oposição entre privado/natureza e o público/cultura era considerada por

esse autor como uma relação mais de controle e equilíbrio do que de aversão, na

qual o domínio privado deveria pôr à prova o público para verificar até onde os

códigos de expressão, arbitrários e convencionais, poderiam controlar o senso de

realidade de uma pessoa. Já o domínio público, igualmente corretivo, deveria corrigir

uma deficiência da natureza, isto é a incivilidade, pois o homem natural era

concebido como um animal. De acordo com Bedê (s/d), o conceito de civilidade,

nesse contexto, consiste em “valer-se de máscaras”, ou seja, essas máscaras

habilitariam os atores sociais a representarem seus papéis na sociedade, não

sobrecarregando, assim, os indivíduos com os fardos pessoais, permitindo, com

isso, que estes pudessem tirar proveito da companhia de outros indivíduos. Erving

Goffman e Norbert Elias utilizaram-se também desse conceito de máscaras sociais.

Para Goffman (2005) as máscaras sociais eram artifícios culturais, na medida em

que elas assumiam facetas públicas e permitiam aos sujeitos se movimentarem

dentro das estruturas sociais e a desempenharem diversos papéis sociais. Para

Elias (1993), as máscaras sociais caracterizavam o indivíduo moderno, que era

considerado por ele como metropolitano e complexo. Portanto, Sennett (1988)

entendeu o público como uma criação humana e o privado como a condição

humana, e esse equilíbrio estaria estruturado pela impessoalidade, ou seja, nem em

público, nem privativamente, “os acidentes da personalidade individual” constituíam

um princípio social (Sennett, 1988, p. 128).

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Conforme os estudos desse autor, o capitalismo foi responsável pelo

enfraquecimento da vida pública no meio urbano, pois esse novo sistema político-

econômico, que surgiu no final do século XIX, com o advento das indústrias,

transformou as relações comerciais e privatizou a vida burguesa. Com isso, os

indivíduos passaram a analisar a vida em público a partir de uma moralidade da vida

pública, assim, os indivíduos começaram a demonstrar em público, algo íntimo, sua

real personalidade, onde o outro pode dessa maneira perceber esses sinais, criando

assim, segundo Sennett (1988), uma sociedade intimista.

Como já foi observado, para Sennett (1988), o conceito de civilidade

consistia-se na utilização de máscaras. No entanto, ele diagnosticou que na

sociedade, chamada por ele de intimista ocorre o contrário desse ideal, uma vez que

as pessoas nessa situação são incentivadas a tornarem públicos problemas

pessoais, desestimuladas a cumprirem suas representações sociais, emergindo,

dessa maneira, um novo valor a ser perseguido, ou seja, a autenticidade. Conforme

a análise de Bedê (s/d), o culto e a celebração da intimidade, da personalidade e da

autenticidade, tal como estão postos na sociedade intimista, são fatores que

implicam, para Sennett (1988), uma crescente desvalorização da esfera pública, pois

as relações sociais vão perdendo força por causa da excessiva mobilização das

atenções em torno da esfera íntima.

É bom esclarecermos, que não foi apenas Sennett (1988) que lidou com essa

questão da intimidade na vida pública. Anthony Giddens, em “A transformação da

intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas”, também tratou

dessa questão, mas diga-se de passagem, de maneira bem menos pessimista do

que Sennett.

Para Giddens (1993), a entrada da intimidade na vida pública seria a

responsável pela a descoberta do eu como sujeito de sua própria história, sendo

então, a partir desse momento, o individuo torna-se capaz de governar sua própria

existência, dotado de livre-arbítrio e racionalidade. Para ele, a intimidade sofreu

vários processos de reestruturação, dando como um desses exemplos, o ingresso

da mulher no mercado de trabalho no século XX. Diante disso, esse autor

demonstrou-se um entusiasta diante dessas novas possibilidades e dimensões da

intimidade no mundo contemporâneo, que, segundo ele, são capazes de

democratizar a relação entre indivíduos, exercendo, dessa maneira, como entendeu

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Bedê (s/d), uma influência altamente positiva sobre as instituições sociais de um

modo geral.

Sennett (1988) analisando a esfera intima observou que com essa nova forma

de interação surgiu um novo tipo de cidadão, o cidadão narciso, que busca a si e

não à intimidade na relação com o outro. Bedê (s/d) analisa que este autor entende

que, a adoção de uma cultura demasiadamente intimista estaria gerando o desgaste

dos laços sociais, onde não há uma relação de alteridade, mas sim, uma aparência

de intimidade, em que os atores sociais estão interessados apenas em se

descarregarem de seus problemas pessoais, gerando dessa maneira, uma

sensação agradável de reconhecimento. Além disso, esse modelo de interação

estaria gerando também uma recusa ao estranho, ao desigual, criando, assim, uma

relação impossível com indivíduos que não compartilham as mesmas opiniões,

visões de mundo e valores.

Dessa maneira, a relação com a diferença que era possível a partir do código

de credibilidade tornou-se impossível com a consolidação da sociedade intimista,

pois o diferente e o estranho passaram a ser tratados, a partir dessa consolidação,

como aspectos difíceis de serem aceitos, por que o contato nesse tipo de sociedade

se tornou um contato íntimo. Consequentemente, esse fato acabou por modificar

nosso entendimento a respeito dos propósitos da cidade: se antes, era um espaço

heterogêneo, com uma diversidade de indivíduos, com diferentes modos de vida e

interesses, acabou, segundo Sennett (1988) sendo descaracterizada por causa do

medo da impessoalidade. Entendendo assim que, com a entrada da personalidade

no espaço público, a vida neste tornou-se possível apenas em termos de uma

comunidade, dialogando dessa forma com Max Weber.

Para Weber, comunidade consistia-se em um conceito amplo que se referia a

“uma relação social quando a atitude na ação social – no caso particular, em termo

médio ou no tipo puro – inspira-se no sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional)

dos partícipes da constituição de um todo” (WEBER, 1973, p.140, citado por Oliveira

et al .,1999). De acordo com Weber, em uma comunidade há uma conformidade

quase total entre os participantes para determinados fins, onde existe assim um

sentimento comum na busca de se formar um todo.

Após esta revisão teórica dos estudos de Sennett (1988), notamos que os

termos “urbano” e “civilizado” são, segundo ele, experiências rarefeitas de uma

pequena classe. Para o autor, com o temor da vida impessoal e com a valorização

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do contato intimista, uma existência civilizada, que se constituía em uma relação em

que os indivíduos interagiam uns com os outros de uma maneira que estes se

sentiam à vontade diante de uma diversidade de experiências encontra bases

apenas entre os ricos e os bem-nascidos, ou seja, ocorre uma “retribalização”

(SENNETT, 1988, p.414).

Giddens (1993) sugeriu a idéia de troca entre iguais, ao falar de intimidade.

De certa maneira, Giddens (1993) e Sennett (1988) acabam se aproximando nesse

sentido, pois, se para Giddens (1993) a intimidade só é possível entre iguais, para

Sennett a vida em público, dentro de uma esfera intima, só é possível em termos de

uma comunidade que proporcione a criação de uma personalidade coletiva.

Acreditamos que o conceito de “retribalização” utilizado por Sennett, caberia no

contexto da tese de Giddens sobre a indesejável formação de guetos. Segundo este

autor, as pessoas que detêm uma condição diferenciada acabam sendo forçadas a

esta formação, pois, somente assim os indivíduos seriam restabelecidos numa

suposta condição de “igualdade”, porque estariam, finalmente, entre seus pares.

Sennett (1988) conclui que essa absorção nas relações intimistas é a marca

de uma sociedade incivilizada, pelo fato que se a cidade serviu, durante a maior

parte da história do homem civilizado, como foco para a vida social ativa, para o

conflito e o jogo de interesses, para a experiência das possibilidades humanas, hoje

em dia ao contrário, essa possibilidade civilizada encontra-se adormecida.

Este capítulo teve como objetivo demonstrar as concepções de público e

privado desde à Antiguidade, utilizando o exemplo da Grécia mais especificamente e

da Roma, até a Modernidade, percebemos dessa maneira as mudanças que essa

dicotomia sofreu durante o passar dos anos de nossa civilização, inseridas nesse

contexto temos também as emergências de duas esferas, analisadas nesse capítulo,

que são, a esfera social e a esfera intima. Além disso, tratamos dentro desse

capítulo conceitos, dentre outros, como: máscaras sociais, cidadão narciso e código

de credibilidade. De acordo com Sennett, com a emergência do cidadão narciso

surge a impossibilidade da existência de um código de credibilidade, que permitia,

antes da entrada da intimidade na vida pública, que os moradores interagissem

entre estranhos, com isso ocorre a distorção do entendimento dos propósitos da

cidade. A partir disso, no capítulo seguinte, entre outros assuntos, analisamos

algumas concepções de cidade concebidas por diferentes autores e Escolas da

Sociologia.

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2 CONCEPÇÕES DE CIDADE E A REORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO

URBANO NA MODERNIDADE

Se às concepções de público e privado novas dimensões como as das

esferas social e íntima demarcam o cenário da modernidade, outra dimensão

igualmente precisa ser incorporada a análise – a cidade – de forma que possamos

dar conta, do ponto de vista teórico, de uma situação empírica que aparece nas

aglomerações urbanas que é o “cercamento” de espaços públicos. Para isso, é

necessário retomar a discussão da cidade que, na modernidade, ganha status de

uma categoria sociológica.

Louis Wirth, em seu texto “O urbanismo como modo de vida”, analisou que

“somente na medida em que o sociólogo tiver uma compreensão clara do que seja a

cidade, como entidade social e possuir uma teoria razoável sobre o urbanismo, este

poderá desenvolver um corpo unificado de conhecimentos” (WIRTH, 1979, p.112). A

partir disso acreditamos ser relevante discutir nessa monografia alguns conceitos de

cidade e alguns paradigmas da sociologia urbana.

Por isso nesse capítulo apresentamos um breve levantamento teórico dos

diferentes conceitos de cidade, a partir dos textos, “Conceito e Categorias da

Cidade” de Max Weber, “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento

humano no meio urbano” de Robert Park, e “O urbanismo como modo de vida” de

Louis Wirth. Retomaremos também “O Declínio do Homem Público – As Tiranias da

Intimidade” de Richard Sennett e “A transformação da intimidade: sexualidade, amor

e erotismo nas sociedades modernas” de Anthony Giddens. Utilizamos também o

texto “A Concepção de Cidade em Diferentes Matrizes Teóricas das Ciências

Sociais” de Maria Josefina Gabriel Sant Anna para auxiliar nas análises destes

diferentes conceitos que são concebidos de modos distintos entre os autores

clássicos, dentro das Ciências Sociais.

Para trabalharmos questões como vivência em espaços fechados, entre estes

as Gated Communities, sensação de segurança, medo, enclaves fortificados,

controle social e fala do crime, utilizamo-nos da tese de Andiara Valentina de Freitas

e Lopes intitulada “Condomínios Residenciais: novas faces da sociabilidade e da

vivência de transgressões sociais”, do livro “Cidade de Muros: Crime, Segregação e

Cidadania em São Paulo” de Teresa Caldeira; das obras “História do Medo no

Ocidente 1300-1800 Uma Cidade Sitiada” de Jean Delumeau, “Europa: Uma

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Aventura Inacabada” de Zygmunt Bauman, “El Control Social” de Georges Gurvitch

e “A cultura do medo” de Barry Glassner.

Vimos no primeiro capítulo que Sennett (1988) entendia por cidade a idéia de

um “palco” onde o homem civilizado vivia sua vida social, isto é, lidava com jogos de

conflitos e interesses, convivia com as diferenças, adquirindo assim experiência para

lidar com as possibilidades humanas. Sennett (1988) finalizou seu livro “O Declínio

do Homem Público – As Tiranias da Intimidade” com uma visão muito pessimista da

cidade moderna, pois, segundo ele, esta estaria tão descaracterizada, que a

possibilidade de encontrar uma civilidade nesse momento seria algo quase

impossível.

Retomando a construção histórica, no início do século XX, Max Weber (1979)

observou diferentes tipos de cidade que existiram no passado, como, as cidades de

principados, de consumidores, dos produtores, industrial, mercantil, etc., expondo as

diferentes origens destas e enfatizando a importância do mercado para o seu

desenvolvimento, entendendo-a como um lugar de mercado, que possuía uma

política econômica urbana, uma zona urbana e uma autoridade urbana e que devia

se apresentar como uma associação autônoma em algum nível, como um

aglomerado com instituições políticas e administrativas. Caracterizou a cidade a

partir da evidência de algumas características:

“1) a fortaleza, 2) o mercado, 3) tribunal próprio e direito ao menos parcialmente próprio, 4) caráter de associação, e, unindo a isso, 5) ao menos uma autonomia e autocefalia parcial, portanto, administração a cargo de autoridade em cuja escolha os burgueses participassem de alguma forma. Esses direitos se revestiriam no passado da forma de privilégios estamentais. Portanto, um estamento de burgueses, como titular desses privilégios, constitui a característica da cidade no sentido político” (WEBER, 1979, p. 82).

De maneira geral, para esse autor, a cidade, na sua forma típica ideal,

caracterizava-se por constituir-se em um local de mercado e por possuir autonomia

política. De acordo com Weber (1979), a comunidade urbana no sentido pleno da

palavra, existia como fenômeno extenso unicamente no Ocidente, na medida em

que somente no capitalismo todos os requisitos do tipo-ideal estariam presentes.

Embora a cidade não fosse tema central de suas preocupações podemos

afirmar, de maneira bem sucinta, que também Marx afirmou em “O Capital” que o

modo de produção capitalista, por meio das transformações que ocorreram nas

cidades, fez com que as manufaturas fossem substituídas pelas fábricas. Assim,

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segundo ele, a cidade teria se tornado em um mercado, um mercado de bens, de

capitais e de mão de obra.

Apesar das diferenças teóricas de Marx e Weber, podemos analisar que, de

maneira geral, estes dois autores caracterizavam a cidade ocidental como um lugar

de mercado. Sant’Anna (2003), considerando as profundas distinções das

concepções que orientavam Marx e Weber, afirma que para eles, a cidade,

enquanto considerada parte de uma totalidade, seria, dessa maneira, objeto legítimo

de análise. Ambos se interessavam pelos fatores históricos e estudavam a cidade

como síntese de manifestações econômicas, políticas e sociais. Para eles, de

acordo com diferentes circunstâncias e forças históricas, existiram cidades de tipos

diferentes, desempenhando funções ligadas às áreas nas quais estavam inseridas.

Apesar das divergências entre Marx e Weber serem profundas e fundamentais, é

preciso notar que os dois analisaram a cidade historicamente e mostraram, de

maneiras diferentes, que na tradição ocidental a cidade tem sido o ponto de

convergência de processos diversos.

Émile Durkheim, no livro “Da divisão do Trabalho Social”, distinguiu duas

formas de solidariedade social, são elas, a solidariedade mecânica e a solidariedade

orgânica, que correspondem a duas formas extremas de organização social. Nesse

sentido, as sociedades “primitivas” eram consideradas por ele dominadas pela

solidariedade mecânica, onde os indivíduos se identificavam através da família, da

religião, da tradição, dos costumes, não se diferenciavam e reconheciam os mesmos

valores, os mesmos sentimentos, os mesmos objetos sagrados, porque pertenciam

a uma coletividade. A solidariedade orgânica consistia em sua forma oposta, onde,

através da divisão do trabalho social, os indivíduos tornavam-se interdependentes,

garantindo, dessa maneira, a união social, mas não pelos costumes e tradições, pois

nesse tipo de sociedade os indivíduos não se assemelhavam e o consenso atuava

como resultado da diferença existente entre os indivíduos. De acordo com Durkheim,

na medida em que a sociedade se complexifica, a solidariedade mecânica foi

perdendo terreno progressivamente para a solidariedade orgânica. Dessa maneira, a

cidade assume um sistema de organização mais complexo e, por fim, adquire

estatuto de vida própria baseado na organização profissional.

Para o autor a combinação de volume, de densidade material e de moral da

sociedade seriam as causas da diferenciação social nas sociedades modernas. Para

ele, volume consistia no número de indivíduos que pertenciam a uma determinada

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sociedade. Densidade material caracterizava-se como o número de indivíduos em

relação a uma superfície dada do solo, e a densidade moral era medida pela

intensidade das comunicações e das trocas entre os indivíduos. Encontramos,

assim, uma definição aproximada de Durkheim sobre a cidade:

"As relações sociais - diríamos mais exatamente intra-sociais - se tornam, por conseguinte, mais numerosas, pois se estendem, de todos lados, além de seus limites primitivos. Por conseguinte, a divisão do trabalho progride tanto mais quanto mais houver indivíduos suficientemente em contato para poderem agir e reagir uns em relação aos outros. Se conviermos em chamar de densidade dinâmica ou moral essa aproximação e o intercâmbio ativo que dela resulta, poderemos dizer que os progressos da divisão do trabalho são diretamente proporcionais à densidade moral ou dinâmica da sociedade" (DURKHEIM, 1995, p.252, citado por Lema, et al ., s/d).

Se a temática da cidade está presente, de forma subsidiária na teoria

sociológica clássica, torna-se o centro do debate com a Escola de Chicago.

Robert Park foi um dos fundadores e integrante da vertente ecológica da

Escola de Chicago, inaugurando um tipo de reflexão até então inédita, que tinha a

cidade como objeto privilegiado de investigação, ou seja, possuía uma noção de

cidade como sendo um laboratório social, que tinha como referência a própria cidade

de Chicago dos anos 20. A sociologia praticada na Universidade de Chicago era

bastante empírica resultado da busca de soluções concretas para uma cidade então

caótica, marcada por um intenso processo de industrialização e urbanização, que ali

ocorria desde o final do século XIX. A cidade norte-americana passava por um

crescimento demográfico espantoso, aliada à intensificação da imigração, formação

de guetos, a concentração populacional excessiva, as péssimas condições de vida e

de infra-estrutura, etc. Este processo favoreceu a formulação da idéia da cidade

como um problema social, o que dificultou aos adeptos dessa Escola a uma

transcendência de tal realidade e elaboração de uma teoria com maior grau de

abstração.

Park (1979) possuía como referência a posição dos indivíduos no meio social

urbano, questionando até que ponto o espaço físico e as relações sociais,

determinavam ou influenciavam o modo e o estilo de vida dos indivíduos. Ou seja, a

questão central da vertente ecológica era entender se os comportamentos

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desviantes eram ou não produtos do meio social em que o indivíduo encontrava-se

inserido (PARK, 1979, p.26-31, passim).

Em seu balanço sobre as diferentes concepções teóricas de cidade

Sant’Anna (2003) afirma que noção de cidade para Park, consistia em uma entidade

físico-territorial empiricamente formada e delimitada no espaço por critérios

geográficos, demográficos, numéricos e político-administrativos. Park identificava, no

interior de uma comunidade urbana, um sistema de forças que tendia a produzir um

agrupamento ordenado e característico de sua população e de suas instituições.

Analisando Chicago e propondo uma agenda de pesquisas, Park (1979)

entendia que as relações de vizinhança se baseavam na contigüidade, na

associação pessoal e nos laços comuns à natureza humana, estando entre as inter-

relações mais íntimas e reais da vida e, na comunidade pequena, seriam

praticamente inclusivas. Numa cidade grande, onde a população é instável, com

milhares de pessoas vivendo lado a lado durante anos sem nem ao menos um grau

de conhecimento que possibilitasse um mero cumprimento, as relações íntimas do

grupo primário acabavam se enfraquecendo, e a ordem moral que sobre elas

repousava dissolvia-se gradativamente. Ele ressaltou ainda que uma parcela bem

grande da população das cidades grandes, inclusive as que constituem seu lar em

casas de cômodos ou apartamentos, vivem em boa parte como as pessoas em

algum grande hotel, que se encontram, mas não se conhecem. (PARK, 1979, p.39-

47, passim).

Louis Wirth era integrante da vertente culturalista da Escola de Chicago, que

possuía como hipótese a idéia de que a cidade “fabricava” um produto bem

característico, isto é, a cultura urbana. Wirth, escrevendo nos anos da década de

1930 acreditava que o estabelecimento de cidades implicava no surgimento de uma

nova forma de cultura, que, por sua vez transcendia os limites espaciais. Portanto,

descaracterizava-se, assim, a importância da delimitação física da cidade,

salientando que caracterizar uma comunidade como sendo urbana tomando por

base o tamanho é, obviamente, arbitrário, idéia presente em autores, principalmente,

da vertente ecológica, e destacava-se a capacidade de a cidade moldar o caráter da

vida social à forma especificamente urbana (WIRTH, 1979, p. 92).

Sobre a questão das habitações e das relações de vizinhança, Wirth (1979),

em “O urbanismo como modo de vida”, compreendia que elementos populacionais

diversos, habitando localidades compactas, tendiam a se separar um dos outros na

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medida em que suas necessidades e modos de vida eram incompatíveis uns com os

outros e na medida em que eram antagônicos, ou seja, em outras palavras, pessoas

de status e necessidades homogêneas, consciente ou inconscientemente, se

dirigem ou são forçadas para a mesma área. O local de residência, segundo Wirth

(1979), deveria ser o local onde as relações de amizade íntimas e duradouras entre

os membros deveriam ser promovidas, mas de acordo com ele, na modernidade

esta condição acabou se tornando algo difícil de ser encontrada. (WIRTH, 1979, p.

100-105, passim).

No final da década de 1960, principalmente a partir dos estudos da Escola

Francesa, se consolida uma ruptura teórica com essa “sociologia urbana”. A cidade

é, prioritariamente discutida através de uma ótica crítica à Escola de Chicago.

Principalmente para os sociólogos franceses, a cidade deveria ser compreendida

como espaço socialmente produzido, assumindo, assim, diferentes configurações de

acordo com os vários modos de organização socioeconômica e de controle político.

A interação entre as relações de produção, consumo, troca e poder que se

manifestavam no ambiente urbano ganharam, dessa maneira, importância.

(SANT’ANNA, 2003, p. 3)

Neste contexto, Castells considerava as teorias que entendiam a cidade como

variável determinante da cultura, como teses ideológicas sobre a sociedade urbana,

colocando-se como o crítico mais consistente da Escola de Chicago. Para ele, a

sociologia urbana mereceria um novo ponto de partida, ou seja, a criação de um

novo campo teórico, que consistiria na análise sociológica da produção do espaço,

que resultaria numa espécie de sociologia do planejamento urbano (SANT’ANNA,

2003, p. 3), vendo a “necessidade de se incluir o espaço urbano nas tramas das

estruturas sociais, não como variável em sim, mas como elemento real e a re-

transcrever de cada vez em termos de processo social” (CASTELLS, 1979, p. 32).

Outros autores como Jean Lojkine, Raymond Ledrut e Henri Lefébvre de

orientação marxista, construíram junto com Castells outra concepção sobre o

urbano. Politizaram a questão urbana e, a partir disso, surgiram novas questões de

investigação, a saber, os movimentos sociais urbanos, os meios de consumo

coletivo, a estruturação social do território na sociedade capitalista e o papel do

Estado na urbanização (SANT’ANNA, 2003, p. 3-4, passim).

Depois desse levantamento teórico, podemos destacar alguns aspectos sobre

as diferentes formas de se entender a cidade como objeto sociológico, ou seja, para

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cada autor, ela possuía uma concepção diferente, algumas dessas concepções se

aproximam, de certa maneira, mas cada uma com suas peculiaridades, por exemplo,

a de Marx, a de Weber e a da Escola Francesa. Outras se distanciam com um outro

modo de estudar esse objeto, como é o caso da Escola de Chicago, que se afasta

bastante dos autores clássicos da Sociologia, que possuíam um alto grau de

abstração, e propõe uma abordagem apoiada nos problemas sociais presentes na

cidade. Mas algo que fica claro, é que nenhum dos autores e escolas, expostos

nesse capítulo, concebiam a cidade como um lugar homogêneo, ou seja, um lugar

de interação entre iguais. Como entendeu Wirth a cidade caracteriza-se por ser um

lugar denso e heterogêneo (WIRTH, 1979, p. 102 – 106, passim), porém podemos

observar que dentro dessa estrutura existe espaços onde os indivíduos tendem a se

agrupar de acordo com suas semelhanças, criando sub-espaços homogêneos,

exemplo disso são os locais de habitação, um dos aspectos analisados neste

trabalho.

Sennett (1988, p. 414), fala em retribalização, ou seja, ele argumenta que

com a emergência de uma esfera íntima, ocorreu na sociedade moderna um medo

da vida impessoal, a cidade deixou de ser um lugar onde indivíduos heterogêneos

interagiam entre si de uma maneira “natural”, para se transformar em um lugar onde

as pessoas tendem a delimitar seu contato apenas com iguais. Exemplifica essa

situação, citando os ricos e os bem-nascidos. Giddens (1993), ainda sobre a

questão da emergência da intimidade na sociedade moderna, entendeu que a

intimidade só é possível em termos de uma comunidade que proporcione a criação

de uma personalidade coletiva. A partir dessa questão, Giddens (1993) elabora sua

tese sobre a indesejável formação de guetos onde, as pessoas que detêm uma

condição diferenciada acabam sendo forçadas a esta formação, pois, somente

assim os indivíduos seriam restabelecidos numa suposta condição de “igualdade”,

porque estariam, finalmente, entre seus pares. Esse fato não é privilégio da cidade

contemporânea, uma vez que Engels observou a questão das habitações operárias

de Manchester em pleno 1840, ou seja, operários que eram impelidos, por sua

igualdade social, a viverem nessas habitações precárias.

No início do século XX, Weber (1979) compreendeu que a vizinhança se

caracterizava como um lugar onde indivíduos possuíam conhecimento pessoal

mútuo. Porém, de acordo com ele, na sociedade moderna, essas relações

encontram-se descaracterizadas. Para Park (1979) a vizinhança consistia, no

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passado, na contigüidade, na associação pessoal e nos laços comuns à natureza

humana. Wirth (1979) lendo a cidade na mesma matriz weberiana conclui que o

local de residência deveria ser o lugar onde as relações de amizade íntimas e

duradouras entre os membros deveriam ser promovidas, mas, concluiu que, na

modernidade, essa condição não mais é encontrada.

Chegamos à conclusão que, se de certa forma, anteriormente à modernidade,

o agrupamento de pessoas semelhantes em determinado lugar era justificado pela

idéia da intimidade e identidade para com o igual, essa teoria acaba sendo refutada

na modernidade, por vários autores. Mas, mesmo assim, é importante ressaltarmos

que essa idéia continua internalizada nos indivíduos moradores das cidades. Nesse

sentido, entendemos que há outras questões que se colocam nos dias de hoje,

como por exemplo, por que há um aumento na oferta e procura de condomínios, de

todos os conceitos possíveis. E por quê do surgimento de uma proposta de um

projeto de lei que autoriza o fechamento de ruas residenciais sem saída em

Curitiba? Compreendemos que está segunda questão está intrinsecamente ligada à

primeira.

Teresa Caldeira (2000), em estudo comparativo entre São Paulo e Los

Angeles, no final dos anos de 1990, em que analisa o crescimento dos condomínios

fechados de habitações e de empreendimentos comerciais, afirma que

recentemente, a busca por segurança consiste num motivo maior que se incorpora,

para o sucesso dos condomínios. O medo associado ao aumento da violência

urbana é um fator que impulsiona a procura de moradia nos condomínios, uma vez

que, além da oferta de lazer e serviços, esses enclaves1 passam a oferecer todo um

aparato de serviços especializados relacionados à segurança. O resultado disso é

um número cada vez maior de pessoas morando, trabalhando e vivendo dentro

destes enclaves, negando e discriminando o espaço público da cidade e

privilegiando os espaços privados.

Segundo a autora os enclaves tendem a ser ambientes socialmente

homogêneos formados, principalmente, pelas classes média e alta, diferentemente

do espaço publico, da cidade, que é heterogêneo. Têm como uma de suas

manifestações, os anúncios comerciais que elaboram o mito de um “novo conceito

1 Para Caldeira (2000), o novo padrão de segregação urbana baseado na criação de enclaves

fortificados representa o lado complementar da privatização da segurança e transformação das concepções do público. O novo modelo de segregação separa grupos sociais de uma forma tão explícita que transforma a qualidade do público. (CALDEIRA, 2000. p.11).

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de moradia”, a partir da articulação de imagens de segurança, isolamento,

homogeneidade, instalações e serviços. Porém, para Caldeira, a imagem que

confere maior status é a de uma comunidade fechada e isolada, um ambiente

seguro no qual se pode usufruir os mais diversos equipamentos e serviços e,

sobretudo, viver apenas entre iguais. A imagem dos enclaves se opõe da cidade,

representada como um mundo deteriorado permeado de “confusão e mistura”, ou

seja, heterogeneidade social e encontros, às vezes, indesejáveis. Entende a

separação, o isolamento e a segurança como questões de status, isto é, a partir

desse argumento, podemos conceber que tanto os condomínios, quanto o

fechamento de ruas, produzem uma nova sensação de igualdade entre moradores.

Aprofundando essa discussão, Lopes (2008) entendeu que a vivência em

condomínios, embora imbuída de uma idéia de comunidade, acaba não refletindo a

experiência de ações e laços presentes nessa categoria analítica. De acordo com

ela, na realidade, o estudo sobre socialização demonstrou uma vida individualizada

dentro de uma suposta estrutura coletiva, onde os moradores se isentam dos

interesses coletivos e por privilegiarem apenas os próprios interesses desrespeitam

as regulamentações vigentes do condomínio e por esse motivo, muitas vezes,

acabam transgredindo-as. Conclui que não é o sentimento de intimidade para com o

outro o princípio motor da procura cada vez maior por espaço fechados para se

morar como os condomínios. É, ao contrário, um imaginário coletivo o diferencial

que esses espaços produzem ao atender novos desejos e novas necessidades das

pessoas que procuram conforto, lazer, serviços e, principalmente, segurança.

Lopes (2008) analisou não apenas, os condomínios, mas também as Gated

Communities. Ela citou, em seu trabalho, os autores Edward J. Blakely e Mary Gail

Snyder que definiram o termo Gated Communities como áreas residenciais com

acesso restrito, nas quais os espaços públicos são na verdade privatizados. Ou seja,

ruas, calçadas, parques, estacionamentos, praias, rios, etc., que seriam legalmente

de acesso ao público, em geral, são cercados pelos muros das Gated Communities

e tornam-se categoricamente de acesso privado e restrito. O termo Gated

Communities foi empregado para designar um fenômeno que começou a surgir na

década de 1960 em algumas cidades norte americanas. Blakely e Snyder

identificaram e classificaram as Gated Communities de acordo com quatro critérios

baseados em fatores sociais: senso de comunidade, exclusão, privatização e

estabilidade. Porém, ficou claro no estudo desses dois autores que a busca pelo

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critério “senso de comunidade” não representa prioridade em nenhum tipo de Gated

Communities. Apesar disso, muitos residentes apontam esse critério como um dos

principais motivos para procurarem esses tipos de moradias, ou seja, a busca por

laços estreitos entre vizinhos e um sentimento de comunidade. Lopes (2008)

destaca que os autores foram claros ao apontarem e criticarem a ausência prática

do senso de comunidade nas Gated Communities.

As Gated Communities são o reduto de pessoas economicamente e socialmente aparentemente homogêneas, sendo a lógica por trás disso o sentimento de pertencimento e segurança gerado pelo fato de estar entre iguais. Isso se reflete até mesmo numa busca homogeneizada por projetos arquitetônicos, plantas e fachadas iguais e padronizadas para todos dentro de uma Gated Community. Essa padronização chega ao ponto de definirem cores iguais para fachada e até mesmo os tipos de vegetação a ser utilizada por todos (LOPES, 2008, p.55).

Lopes (2008) fez uma comparação desse fenômeno com os condomínios

fechados na cidade do Recife, tendo como resultado, por um lado, uma relativa

homogeneidade econômica em seu interior, mas, notou-se também que não existe

uma homogeneidade social e cultural entre seus moradores. O ocorre, de acordo

com Caldeira (2000), é a busca por uma diferenciação exterior, para distinguir-se

individualmente dos outros moradores. Essa distinção se estende, de forma

contrária ao caso norte-americano, ao projeto arquitetônico. No Brasil, casas

padronizadas estão associadas a classes populares e por isso são desvalorizadas.

Neste sentido, os moradores de condomínios horizontais fazem o possível para se

diferenciarem uns dos outros, personalizando e individualizando suas residências.

Portanto, de certa maneira, essa atitude acaba desmistificando o ideal de

homogeneidade desses espaços.

Neste trabalho partimos da idéia proposta por Caldeira (2000), de que o fator

segurança seria o princípio motor dessas atitudes, cujo resultado abarca desde o

aumento pela procura de moradias em condomínios fechados, até mesmo a

realização do ato de fechamento de ruas. É o sentimento do medo que impulsiona

essa vontade de se sentir seguro.

Jean Delumeau (1989), em “História do Medo no Ocidente 1300-1800 Uma

Cidade Sitiada”, tratou a questão do medo e da ansiedade como objetos. Desse

modo, ele fez uma distinção entre medo e ansiedade, entendidos como duas coisas

distintas, mas que se complementam. Assim, o medo

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[...]tem um objeto determinado ao qual se pode fazer frente. A angústia não o tem e é vivida como uma espera dolorosa diante de um perigo tanto mais temível quanto menos claramente identificado: é um sentimento global de insegurança. Desse modo, ela é mais difícil de suportar do que o medo”. (DELUMEAU, 1989, p.25.).

Para o autor, o processo de lidar com o medo acaba consistindo em um

processo de ordenação do mundo.

Zygmunt Bauman (2006) demonstrou, no livro “Europa: Uma Aventura

Inacabada,” que o medo acaba consolidando uma economia política, onde o

capitalismo encontrou uma inesgotável fonte de recurso, como exemplos, as

indústrias bélicas, que dão emprego a muita gente, a segurança privada e vários

outros. Delumeau também acredita nessa consolidação de uma economia política do

medo e, de acordo com ele, esse tipo de economia lucra e intensifica o controle

social “perverso”.

No texto, El Control Social, Georges Gurvitch (1965) definiu, de maneira geral,

controle social, como sendo qualquer meio de levar as pessoas a se comportarem

de forma socialmente aprovada. Segundo ele, é através da assimilação de valores,

crenças e normas que o indivíduo pode se comportar desse modo esperado.

Portanto, não basta o desejo de recompensas nem o medo de punições para que os

indivíduos se comportem de maneira socialmente esperada, essas punições e

recompensas devem ter um significado subjetivo para o indivíduo para que atuem

sobre o comportamento deste. Ressalta também que o mundo social é marcado pelo

conflito, que muitas vezes advém das relações de poder. Uma sociedade, que

respeitar cada vez mais a diferença, que é a causa do conflito, caracterizará uma

sociedade de tipo ideal onde o controle social produz “bem estar”, isto é, proteção.

Por outro lado, uma sociedade caracterizada por não realizar o que promete, onde

as leis, as normas e os valores apenas dão sensação de justiça e na verdade não

conseguem ao fim produzir bem estar, pois mantém privilégios, acaba produzindo

um controle social perverso, ocorrendo assim um processo de manutenção de

privilégios que produz três outros processos: o de criminalização, o da marginalidade

e o da pobreza.

Para Delumeau (1989), o medo advinha do desconhecido, da alteridade, do

diferente, por isso, o “outro” consiste na maior fonte do medo. O autor afirma que

antigamente o “outro” era um ser distante, mas agora, na modernidade, ele se

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tornou um ser próximo e, por estar próximo, intensifica-se o surgimento e o

crescimento dos “cercamentos”, ou seja, dos muros. Como colocou Caldeira

A segregação urbana contemporânea é complementar à questão da violência urbana. Por um lado, o medo do crime é usado para legitimar medidas progressivas de segurança e vigilância. Por outro, a produção cada vez mais intensa de falas sobre o crime passa a ser o contexto no qual os habitantes geram e fazem circular estereótipos, classificando diferentes grupos sociais como perigosos e, portanto, como grupos a serem temidos e evitados. As falas cotidianas sobre o crime funcionam na base de elaborações sobre o bem e o mal e, ao alinhar os grupos sociais um ao outro desses pólos simbolicamente irreconciliáveis, criam diferenças rígidas entre esses grupos além de fazer aumentar o temor daqueles colocados no lado do mal. Essas falas contribuem para a construção de separações inflexíveis que são, nesse sentido, análogas aos muros que se multiplicam na cidade. Impõem fronteiras rígidas. Assim, uma das conseqüências de morar em cidades segregadas por enclaves e marcadas pelo medo do crime é que, ao mesmo tempo que diminui o contato entre pessoas de grupos diferentes, as diferenças sociais são percebidas com maior rigidez e a proximidade de estranhos é vista como perigosa. Em cidades de muros e medos, as desigualdades são produzidas e reforçadas a cada passo. (Caldeira, 1997, p.174)

Barry Glassner (2003), em “A cultura do medo”, em certa medida, também

abordou essa questão da fala do crime, quando afirma que, frequentemente

tememos as coisas erradas, que com os sensacionalismos, os números

mascarados, as intenções obscuras e as notícias enganosas desviam o tema central

que, segundo ele, consiste na desintegração social. Se o medo está em todo o lugar,

ele não está em lugar nenhum, ou seja, Glassner (2003) defende a teoria de que

temos cada vez mais medo de fatos que acontecem cada vez menos. E,

paradoxalmente, ignoramos problemas e acontecimentos que deveriam esses sim,

causar preocupações e resultar em atitudes drásticas.

Concluindo, este segundo capítulo teve como objetivo apontar como se

constitui o campo de saber sobre o qual nos situamos, ou seja, a sociologia urbana.

Ao conceituarmos cidade como espaço social sob intensa reformulação na

modernidade nos deparamos com esta nova reorganização do espaço urbano, que

se materializa no que diz respeito ás habitações, com a presença dos condomínios

fechados e, neste estudo de caso, com o fechamento das ruas sem saídas. Desse

modo, no próximo capítulo relataremos nosso exercício empírico que, a partir de um

projeto de lei, tentará diagnosticar, junto a moradores de ruas sem saída, se

questões como segurança, sentimento de comunidade e dicotomia público privado

aparecem como relevantes no posicionamento, a favor ou contra, a este projeto.

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3 PROPOSTA DE FECHAMENTO DE RUAS SEM SAÍDA: ESTUDO DE

CASO

Neste capítulo elucidamos a proposta de lei sobre o fechamento “total” de

ruas sem saída na cidade de Curitiba, projeto apresentado à Câmara Municipal e

que tinha como questões estruturantes as dimensões público/privado e sensação de

segurança. Além deste detalhamento citamos também alguns comentários dos

vereadores e a explicação do veto do Prefeito Municipal de Curitiba, Luciano Ducci.

Por fim, esclarecemos o motivo da escolha dos bairros, especificamente, Bacacheri,

São Lourenço e Tingui, e as estratégias utilizadas no campo. E no final deste

capítulo analisamos quatro entrevistas realizadas que teve como objetivo aproximar

a teoria da empiria.

Há uma prática presente na cidade de Curitiba desde os anos de 1980 em

que, a partir de demandas dos moradores, a Prefeitura autoriza a restrição de

acesso as determinadas ruas ou trechos delas. Essa restrição pode ser através de

construção de jardinetes em cruzamentos, redutores de velocidade, afunilamento de

tráfico em esquinas, até a colocação de cancelas. Em alguns bairros de Curitiba

foram criadas associações de moradores que se cotizaram para manter inclusive

guardas privados com guaritas. Nesse sentido, o projeto de Lei do Vereador Mário

Celso Cunha propõe a oficialização das ruas já fechadas e a ampliação do processo

de cercamento das mesmas. Notamos, portanto, que esse processo de privatização

do espaço público não é recente e está presente em bairros de classes médias e

altas.

3.1 – Projeto de Lei

O projeto de lei número 005.00232.2007, do Vereador Mario Celso Cunha,

eleito pelo Partido Social Brasileiro (PSB), tinha como proposta a dispensa de

processo administrativo junto às Administrações Regionais para o fechamento de

vilas e ruas residenciais já sem saídas, considerando que rua sem saída consiste

em “uma via oficial, que se articula em uma de suas extremidades e cujo traçado

original não tem continuidade com a malha viária da outra extremidade” (Art.3º),

fechando assim completamente o acesso aos automóveis a esse tipo de rua.

“Somente será admitido o fechamento de acessos a vilas e ruas sem saída cuja

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passagem seja exclusivamente para acesso às casas nelas existentes, sendo

vedado o fechamento quando esses acessos servirem de passagem para outros

locais, especialmente áreas verdes de uso público ou áreas institucionais”

(Parágrafo único do Projeto de Lei 005.00232.2007). O decreto deixava claro que os

portões, cancelas, correntes ou similares não poderiam ser construções

permanentes e não deveriam impedir a passagem dos pedestres, ou seja, mesmo

nos casos onde não fosse possível identificar o passeio, deveria ser reservado

espaço com largura mínima de um metro de cada lado da rua. O projeto previa

algumas regras para a instalação dos portões, alinhamento predial, possíveis obras

e recolhimento do lixo. De acordo com o decreto, os moradores de ruas residenciais

sem saída deveriam encaminhar, à regional competente, ofício assinado, por no

mínimo por 70% de seus moradores, comunicando o fechamento. Além disso,

seriam exigidas cópias dos títulos de propriedade e do carnê do Imposto Predial e

Territorial Urbano (IPTU) relativos aos imóveis, além de croqui esquemático ou

relatório descritivo da via e das casas. Se o fechamento fosse aprovado, o custo

ficaria por conta dos moradores. Por fim, o projeto salientava que, se houvesse

descumprimento das condições estabelecidas na lei, a Prefeitura intimaria os

moradores, que teriam cinco dias para se adequarem às condições necessárias. Se

nada fosse modificado, o portão, a cancela ou a corrente poderiam ser retirados pela

fiscalização. (Referência: Projeto de Lei proposição Nº 005.00232.2007).

Este projeto foi aprovado por maioria na Câmara dos Vereadores, no dia 30

de Novembro de 2010, com 22 votos favoráveis e quatro contrários. Encontramos no

website do vereador autor da proposta algumas opiniões e comentários de

vereadores acerca do mesmo. Entre eles Valdemir Soares do Partido Republicano

Brasileiro (PRB), que se posicionou a favor a aprovação, pois de acordo com ele, se

aprovado o projeto “haveria uma valorização dos imóveis em razão da área comum”

(http://www.mariocelso.com.br/news_det.php?cod=1853). A vereadora Julieta Reis

do Partido Democratas (DEM), mesmo se posicionando a favor à aprovação,

“ressaltou sua preocupação para que as ruas em questão, não perdessem o domínio

público, na medida em que seriam cuidadas e administradas pelos moradores”

(http://www.mariocelso.com.br/news_det.php?cod=1853). Um dos pontos mais

debatidos pelos parlamentares foi que o fechamento das ruas poderia proporcionar

uma maior segurança aos moradores. Nas palavras do vereador Roberto Aciolli do

Partido Verde (PV), “esta é uma das necessidades da família paranaense”

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(http://www.mariocelso.com.br/news_det.php?cod=1853). Ocupando a tribuna para

ampliar o debate a favor a aprovação da lei, o vereador Jonny Stica do Partido dos

Trabalhadores (PT), arquiteto e urbanista, falou sobre a diferença entre cidade

aberta e condomínios fechados, considerando que “há dificuldades nas ruas sem

saída em relação à segurança, sendo esta proposta uma alternativa, mas não é

somente fechando espaços que ficaremos livres dos crimes. Cada dia teremos uma

cidade mais individualizada” (http://www.mariocelso.com.br/news_det.php?cod=1853

Um dos votos contrários ao projeto foi o da Professora Josete, do Partido dos

Trabalhadores (PT) que, justificando seu posicionamento, abordou a questão sobre

o direito à cidade. Na opinião dela, esta seria uma medida paliativa e a população

assumiria responsabilidades que são de fato do poder público, ressaltando que “com

a aprovação, compartimenta-se a cidade, protegendo um número limitado da

população. Em geral, as camadas mais abastadas, que terão condições para fechar

as ruas” (http://www.mariocelso.com.br/news_det.php?cod=1853). Também

contrária ao projeto, a vereadora Renata Bueno do Partido Popular Socialista (PPS)

avaliou a inconstitucionalidade da proposta, pois esta estaria transformando o

patrimônio público em algo privado. Sobre a questão da segurança, ela lamentou

que a população esteja se fechando cada vez mais em casas e agora, nas ruas, e

que não há preocupação com a coletividade

(http://www.mariocelso.com.br/news_det.php?cod=1853).

A proposta foi encaminhada ao Prefeito Municipal de Curitiba, Luciano Ducci,

do Partido Social Brasileiro (PSB) que, no dia 21 de Dezembro de 2010 opôs veto

total ao projeto de Lei nº 005.00232.2007, por este apresentar “vício de

inconstitucionalidade” (Referência: Documento: Razões do Veto, p. 4).

No documento sobre as Razões do Veto, o prefeito caracterizou as ruas como

sendo bens públicos de uso comum e que pertencem ao domínio estatal, sendo que

o titular é o povo e o Estado atua como um “gestor” para fiscalizar, vigiar e garantir

sua utilização comum. “Os bens de uso comum do povo (previsão nos arts. 99,

inciso I do Código Civil e 112, inciso I da Lei Orgânica Municipal), tem sua fruição

coletiva, ou seja, não podem ser limitados ao uso exclusivo de alguns, porque

pertencem a toda coletividade” (Referência: Documento: Razões do Veto, p. 2). De

acordo com este documento, o sistema das vias públicas deve visar atender à

função social da cidade e o fechamento de ruas permitiria que alguns moradores

fizessem uso exclusivo de bens cuja utilização se destina a toda coletividade,

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ocorrendo, assim, a prevalência do interesse privado sobre o público. Conforme o

Prefeito, esse fato iria à contramão dos preceitos inerentes à Administração Pública,

tais como: legalidade, impessoalidade e supremacia do interesse público. O

documento salienta que se entende que é inconstitucional a prática de promover o

acesso restrito a determinados bens de uso comum por ser assegurado, em nossa

Carta Magna, a liberdade de locomoção e o direito de ir e vir, salvo em tempo de

guerra (art. 5, inciso XV, da Constituição Federal). Ademais, de acordo com o Veto,

verifica-se a imposição de atribuições aos moradores dos imóveis que seriam

atingidos pelo fechamento das ruas, ou seja, seriam impostas aos moradores a

fiscalização e o repasse de informações ao Município caso ocorresse alguma

“irregularidade”, o que evidentemente é atividade exclusiva do Poder Público

(Referência: Documento: Razões do Veto).

Em um primeiro momento, a idéia era a de que entrássemos em contato com

o Vereador Mario Celso da Cunha para tentarmos descobrir se houve alguma

demanda para a criação desse projeto de lei, isto é, qual era a justificativa dele para

a criação dessa proposta. Foram inúmeras tentativas, tanto pessoalmente, quanto

por email, de se marcar um horário para entrevistá-lo, no entanto, nenhuma teve

sucesso, pois seus assessores nos explicaram que o vereador Mario Celso da

Cunha havia sido nomeado como Secretário Estadual para Assuntos da Copa do

Mundo de 2014 e por esse motivo o agendamento de um horário seria impossível.

Mudamos então de estratégia para continuarmos desenvolvendo nosso trabalho2,

optando pelas fontes documentais. Encontramos em alguns jornais e no website do

vereador que a justificativa para a criação do projeto seria o fator segurança, “a

intenção, segundo Mario Celso, é garantir uma alternativa de segurança aos

moradores, após estudos com a Secretaria Municipal de Urbanismo, além de

diminuir custos da prefeitura, já que a conservação dos imóveis e da rua será feita

pelos próprios moradores” (http://www.mariocelso.com.br/news_det.php?cod=1853).

A partir de um exercício empírico, tentamos verificar se essa questão da

segurança, entre outras desenvolvidas nesse trabalho, estaria presente nos

discursos de moradores de ruas sem saídas da cidade de Curitiba, entendendo que,

se por ventura o projeto de lei fosse aprovado, estes seriam os atingidos, pois caso

2 Contamos com a ajuda de uma amiga que trabalha na Câmara dos Vereadores de Curitiba,

mesmo não conseguindo a entrevista que desejávamos, ela teve acesso aos documentos do Projeto de Lei e das Razões do Veto do Prefeito Municipal de Curitiba, o que nos ajudou bastante, principalmente no desenvolvimento deste capítulo.

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quisessem, poderiam torná-las “exclusivas”, aumentando o processo de cercamento

das ruas sem saída, onde apenas moradores e pedestres poderiam, em tese,

circular normalmente por esses locais.

3.2 - O Campo

A partir disso, na pesquisa de campo foi aplicada a técnica da entrevista.

Essas entrevistas foram realizadas durante o mês de maio de 2011, com quatro

moradores de ruas sem saída, sendo um do bairro Bacacheri, dois do bairro São

Lourenço e um do bairro Tingui. Foram entrevistas semi-abertas, considerando que

as respostas dos entrevistados seriam pessoais e de certa forma esse aspecto

exigiria uma flexibilidade nas perguntas. Em campo, porém, encontramos

dificuldades em abordar as pessoas em suas casas, mas essa situação foi

amenizada pelo fato das entrevistas terem sido curtas, o que tornou nossa presença

menos incômoda. Posto isto, nos focamos nas seguintes questões: os entrevistados

deveriam responder se eram a favor ou contra o projeto de lei e qual era o motivo do

posicionamento. Independente das respostas, a última indagação era se a pessoa

havia pensado na questão da dicotomia público/privado enquanto refletia sobre o

projeto de lei que propunha o fechamento de ruas residenciais sem saída. Assim, o

objetivo com essas entrevistas era perceber se, caso o projeto de lei fosse

aprovado, os moradores dessas ruas sem saída se mostrariam interessados em

executar o proposto na lei, ou seja, aumentar o cercamento, tentando verificar se as

questões de segurança, sentimento de comunidade e dicotomia público privado,

analisados durante o primeiro e segundo capítulo deste trabalho, apareciam como

relevantes nos posicionamentos.

A escolha destes bairros deveu-se à semelhança social entre eles. De acordo

com Caldeira (2000), os enclaves, propriedades privadas para uso coletivo, tendem

a ser ambientes socialmente homogêneos, na maioria das vezes formadas por

famílias de classes médias e altas. Ou seja, os enclaves fortificados representam

uma nova alternativa para a vida urbana dessas classes, de modo que são

codificados como algo que confere alto status, em outras palavras, contextualizando

para a questão de fechamento de ruas os que se interessariam pela questão de

fechamento de ruas, provavelmente, seriam advindos das classes médias e classes

altas. Através do acesso dos dados disponíveis no site e levantados pelo Instituto de

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Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) podemos observar as

semelhanças, principalmente econômicas destes bairros.

Estudando sobre a história destes bairros, na Coleção Bairros de Curitiba,

percebemos que houve nos três uma re-urbanização a partir da década de 1970,

onde foram melhoradas as infra-estruturas de acesso, áreas de lazer e uma

estruturação do espaço habitacional. Estas melhorias fizeram com que na década de

1990 estas regiões se tornassem alvo do mercado imobiliário, acentuando sua

verticalização. Contudo, eles permanecem em sua maioria horizontal, seja pelo

relevo acidentado ou por ser região de tráfego aéreo. Ao pesquisarmos sobre os

mesmos no jornal Gazeta do Povo, encontramos várias matérias que ressaltam suas

características positivas como a existência de áreas verdes, aliada à comodidade da

infra-estrutura urbana, estabelecimentos urbanos e boa localização. O mercado

imobiliário ressalta que todos os benefícios se aliam a uma promessa de segurança,

bastante procurada pelos novos compradores. Este discurso é associado à idéia de

que estes bairros são “familiares”, ou seja, com moradores antigos, vida tradicional e

casas antigas.

De acordo com os dados analisados, as famílias residentes dos bairros

Bacacheri, São Lourenço e Tingui, no ano de 2000, na sua maioria eram

pertencentes, a partir da classificação através da renda, à classe social B23, ou seja,

o rendimento nominal familiar era em torno de 5 a 10 salários mínimos.

No bairro Bacacheri, dos 7.107 Chefes de Domicílios entrevistados pelo

Censo Demográfico do IBGE, 6.007 recebiam mais de 3 salários mínimos, no ano de

2000, isto é, 84,52% dos entrevistados. Desses 6.007, 1.954 recebiam de 5 a 10

salários, ou seja, 32, 52%. No bairro São Lourenço, neste período, 92,45% das

famílias residentes possuíam renda salarial de mais de 3 salários mínimos,

ressaltando que a maioria, dentre estas, cerca de 26,55%, recebiam de 5 a 10

salários. No Bairro Tingui, 79,37% das famílias residentes, durante o mesmo período

analisado, possuíam renda maior de 3 salários mínimos, onde a maioria, 28,40%,

dentre estas, possuíam renda mensal de 5 à 10 salários mínimos. Portanto, esses

3 A classificação B2 foi utilizada e elaborada pelo IPPUC/Banco de Dados para designar classificação social das famílias, a partir das Faixas Salariais por Chefes de Domicílios (em Salários Mínimos). De acordo com o IPPUC, na falta de uma distribuição por classes através de salários mínimos, foram estipuladas as seguintes divisões: classe A1/A2: acima de 15 S.M., classe B1: mais de 10 a 15 S.M., classe B2: mais de 5 a10 S.M., classe C: mais de 3 a 5 S.M., classe D: mais de 1 a 3 S.M. e classe E: até 1 S.M.

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bairros foram escolhidos, pois todos eles possuem relativa homogeneidade

econômica, boa infra-estrutura e todos são integrados à malha viária.

Das quatro entrevistas, uma foi realizada no bairro Bacacheri, duas no São

Lourenço e uma no Tingui. É importante ressaltarmos aqui que, primeiramente,

nenhuma das pessoas entrevistadas era previamente conhecida e que todas foram

escolhidas aleatoriamente. Segundo ponto importante é que para preservarmos a

identidade dos entrevistados criamos nomes fictícios para nos referirmos a eles. No

bairro Bacacheri a entrevista foi realizada em uma das ruas do Conjunto Solar, no

dia 06/05/2011, com a Sra. Maria, dona de casa de 54 anos. No Bairro São

Lourenço as duas entrevistas realizadas aconteceram no dia 14/05/2011, em duas

ruas diferentes, mas paralelas, uma delas foi realizada com o aposentado Sr. João

de 67 anos e a outra com o Sr. Paulo, que não permitiu a gravação da entrevista, de

61 anos e também aposentado. No Bairro Tingui a entrevista foi realizada também

no dia 06/05/2011, em uma das ruas transversais à Rua João Ivanoski, com o

morador Fábio, 18 anos, estudante de cursinho pré-vestibular.

Dona Maria me atendeu, pois a filha, que é estudante da Universidade,

insistiu para que ela respondesse as questões. Mesmo assim, ela hesitou muito em

responder, teve dificuldades de expressar sua opinião sobre o tema, pois ficava se

apegando à idéia que o fechamento não daria certo, mesmo sendo explicado a ela

que o projeto de lei não havia sido aprovado e que eu apenas gostaria de ouvir a

opinião dela, independente da aprovação ou não da lei. Depois de explicadas as

razões da pesquisa, ela primeiramente se posicionou indiferente à questão, disse

que a rua em que mora era tranqüila, que só entrava morador mesmo. Era uma

tarde de sexta-feira e a rua estava bem calma, e “ela seria assim todos os dias,

como eu podia ver”. Conversando, eu disse para ela que o argumento de muitas

pessoas para que se fechem ruas, é o de que a partir dessa ação a segurança

aumentaria. E que, portanto, sendo ela indiferente, ela possivelmente não

concordava com esse argumento. A partir disso o posicionamento dela mudou.

Segundo Dona Maria, a rua de certa maneira se tornaria mais segura sim, pois ela

considera que o índice de assalto no bairro é alto, citou um assalto que ocorreu com

sua vizinha, e me falou que ela e os vizinhos sempre estão alertas, que um conhece

o outro e cuidam um do outro e que o fechamento da rua só iria contribuir para que

isso continuasse a acontecer e assim a segurança aumentaria também. Então, para

finalizar a entrevista, perguntei a ela se, quando ela me respondeu as questões e

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enquanto ela falava comigo, ela chegou a pensar na questão de público/privado, ou

seja, sendo a rua pública não seria possível torná-la privada, ela simplesmente me

respondeu que não pensou nisso e que não seria por esse motivo que ela acharia

uma incongruência o fechamento de ruas, pois, de acordo com ela, isso acontece

sem problemas em outros lugares.

A entrevista com o estudante Fábio foi bem fácil de fazer, ele foi receptivo e

respondeu diretamente as perguntas, expressou bem sua opinião, deixando-a clara

para mim. Ele seria a favor ao fechamento da rua, pois, segundo ele, esse ato daria

mais segurança aos moradores, deu o exemplo de que se um pedestre com a

intenção de roubar algo entrasse ali, seria bem mais difícil de ele sair sem ser

percebido. “Teria mais segurança porque a gente saberia quem entrou direito, por

que às vezes de noite pode vir qualquer um aqui, ainda mais que é escuro, é

perigoso de noite, de dia é tranqüilo, o problema é de noite, então com vigia ou se

fosse fechado seria mais seguro”. De acordo com ele, o bairro está ficando cada vez

mais perigoso e, portanto, por isso, ele acharia importante fechar a rua. Por isso,

perguntei a ele, sobre a freqüência da ocorrência de assaltos na rua, o entrevistado

respondeu que a freqüência é baixa, que é bem difícil de acontecer assaltos, mas

que já aconteceu, de acordo com ele, já roubaram uma bicicleta de dentro da casa

dele e que houve assaltos no condomínio (a rua termina em um condomínio com

muros bem altos) e na casa de cima. “Acontece lá de vez em quando, uma vez por

ano mais ou menos. Mas aqui nunca aconteceu muito não, muito grave assim. São

roubinhos bobos, então se fechasse a rua, a pessoa que estivesse com a intenção

de roubar algo como uma bicicleta iria pensar, ah, mas aqui vão ver né, então a

pessoa se sente meio inibida”. Segundo Fábio, para ele, o fechamento da rua em

que ele mora só mudaria a questão da segurança, no resto tudo continuaria normal.

Então, perguntei a ele como era a sua relação com os vizinhos. De acordo

com ele a relação é tranqüila, pois, ele conhece bem os vizinhos, que são na sua

maioria, moradores antigos. Indaguei sobre a questão fechamento de rua e o

aumento de um sentimento de comunidade se para ele existia alguma relação entre

essas duas sentenças, ele respondeu afirmativamente. Segundo ele, o sentimento

de comunidade aumentaria, pois a rua é dividida entre um lado da rua e outro, nota-

se que de um lado da rua a maioria das casas são construções mais antigas e de

madeira e do outro lado da rua as casas são mais novas, provavelmente

reformadas, e de alvenaria. “As pessoas não se conversam, a relação é meio

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estranha, ajudaria a unir, não resolver.” Para finalizar, perguntei sobre a questão da

dicotomia público/privado e ele respondeu que nem pensou sobre esse aspecto ao

responder essas questões e nem acharia isso um empecilho forte para o não

fechamento de ruas.

A entrevista com o Sr. João foi uma surpresa muito boa. Eu já estava bem

desanimada no dia, aquela era a terceira rua sem saída do bairro São Lourenço que

eu estava, e ninguém tinha me concedido entrevista, era um sábado à tarde, por

isso pensei que seria mais fácil achar as pessoas em casa, foi sim mais fácil

encontrá-las em casa, mas muito mais difícil do que no Bacacheri e no Tingui de

convencer alguém a dispender cerca de 3 minutos para responder questões

relacionadas à rua em que eles moram. A entrevista com o Sr. João foi

surpreendente para mim, pois, ele além de ter sido muito receptivo, foi o primeiro a

dar uma posição contra o fechamento de ruas sem saída e com bons argumentos

justificando sua opinião. Sr. João se disse contra ao fechamento de rua, pois, de

acordo com as próprias palavras dele, todo mundo tem o direito de ir e vir. “Como é

que faz quem panfleta, entrega propaganda, tá certo que hoje em dia aqui na região

tem muito morador de rua e que não tem hora para bater a campainha, mas assim

mesmo eu sou contra”. Na contra corrente, Sr. João defende abrir as ruas ao invés

de fechá-las. De acordo com ele, que mora ali desde 1982 e viu toda a evolução da

região, “antes era tudo aberto aqui, daí foi fechando e fechando, se fechar mais a

rua ainda aí...” Deveriam abrir inclusive o acesso da rua sem saída que ele mora.

Essa rua termina em uma ponte apenas para pedestres. Quando indagado sobre, se

com o fechamento de rua a questão segurança mudaria em alguma coisa, ou seja,

beneficiaria os moradores, ele respondeu que não. Disse: “o mundo já é tão

individualista, fechar a rua só pioraria as coisas”. Sobre a relação entre os vizinhos,

Sr. João informa ser morador antigo ali, que a maioria dos vizinhos estão ali há mais

de 10 anos, e que, portanto, há uma boa relação entre eles. Quanto a uma maior

união entre os moradores devido ao fechamento de ruas, novamente foi enfático:

“Fechar a rua pra beneficiar o que? 12 pessoas”. Para finalizar, como em todas as

outras entrevistas, perguntei sobre a questão dicotomia público/privado, se ele

pensou nisso também quando se posicionou contra o fechamento. Defendeu o

principio da rua ser um espaço público e esse é também um bom fator para mantê-la

assim.

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Na rua paralela à do Sr. João havia outra sem saída, onde encontrei o Sr.

Paulo que, quando me identifiquei não foi muito receptivo, disse que não queria se

envolver com esse tipo de coisas, algo que eu já tinha ouvido naquele dia nesse

mesmo bairro. Insisti mais uma vez, dizendo que eu apenas era uma aluna de

graduação da Universidade, que eu não tinha nenhum vínculo com a Prefeitura

Municipal e que eu apenas necessitava fazer as entrevistas para meu trabalho de

conclusão de curso, e que estava bem difícil, que eu apenas tinha sido atendida por

uma pessoa naquele dia. Acredito que ele tenha se sensibilizado e me concedeu a

entrevista desde que não fosse gravada por considerar desnecessário. Diante dessa

situação toda, ele me respondeu que acharia melhor não fechar a rua,

argumentando que a questão da segurança não é dever do cidadão é dever do

governo dar segurança ao povo. Ele não vê necessidade em fechar rua, muito pelo

contrário, ele acredita que atrapalharia ao invés de ajudar. Questionado sobre a

questão da criminalidade na região, mais especificamente, na rua em que ele mora,

Sr. Paulo respondeu que mora naquela rua há 20 anos e em todo esse tempo ele se

lembra apenas de um assalto que aconteceu na rua dele, que foi há uns três anos

atrás, na casa da esquina. Portanto, por isso, afirma que na região existe um baixo

índice de criminalidade. Para finalizar, perguntei sobre a dicotomia público/privado,

ele informou que pensa nessa questão também e que enfim ele é contra o

fechamento.

Estas entrevistas tiveram como objetivo tentar aproximar a teoria da

realidade, trazendo alguns dados empíricos para refletirmos sobre a leitura teórica

dos capítulos anteriores. Desse modo, recortamos alguns aspectos teóricos, entre

eles segurança, senso de comunidade e dicotomia público/privado. É claro que o

grupo escolhido para a entrevista é pequeno, mas acreditamos que possa servir

para um trabalho monográfico. Diante disso, relacionamos, na conclusão a seguir,

os argumentos até aqui trabalhados.

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CONCLUSÃO

O presente trabalho teve como objeto as percepções dos moradores de ruas

sem saída sobre as questões da apropriação privada do espaço público,

especificamente em três bairros. Este objeto foi definido a partir de um Projeto de Lei

que propunha a dispensa de processo administrativo junto às regionais para o

fechamento de vilas e ruas residenciais sem saídas. O interesse pelo projeto veio no

sentido de que ele está inserido em uma reconfiguração urbana, onde apareceram

segregações dentro do espaço urbano. Esta reconfiguração está permeada por

alguns discursos, como o de segurança, comodidade, pessoalidade com os vizinhos

e homogeneidade.

Assim, fomos a campo para entender se essas dimensões estariam presentes

quando essa proposta de lei era informada a alguns moradores de ruas sem saídas,

considerando que seriam estes os primeiros atingidos diretamente pela lei caso

fosse aprovada. A principal hipótese era a de que encontraríamos algumas destas

palavras nos discursos dos entrevistados, principalmente a de segurança. Para isso,

tivemos que fazer um embasamento teórico do tema.

Assim, no primeiro capítulo entendemos que a dicotomia público/privado

sofreu várias mudanças de concepções durante os períodos de nossa civilização,

sendo que o princípio dessa forma de pensamento ocorre na Antiguidade, onde

notamos que esses dois domínios eram facilmente identificáveis. Uma de nossas

hipóteses era a essa dicotomia por encontrar-se diluída na esfera social, no

presente, como podemos observar no primeiro capítulo, ela não seria exposta

claramente nos discursos dos nossos entrevistados ao refletirem sobre o projeto de

Lei da Câmara de Vereadores de Curitiba. Em outras palavras, como tomávamos

como pressuposto que esta reflexão era do domínio acadêmico, presentes nas

nossas análises feitas a partir de autores como Arendt e Habermas, prevíamos a

não explicitação por parte dos moradores dessa questão. Porém, as duas pessoas

que se posicionaram contra, quando instigadas sobre a questão do público e do

privado, afirmaram pensar nessa dicotomia.

Assim, consideramos possível que a partir do trabalho de campo realizado,

dizer que é necessário investigar com maior profundidade sobre a presença ou não

de clareza, entre os moradores pesquisados, da noção sobre a dicotomia

público/privado, que era tão evidente na Antiguidade. Apesar da pequena amostra,

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temos uma primeira indicação que as esferas pública e privada realmente estão

diluídas e que por esse motivo não são facilmente percebidas. Podemos ressaltar as

respostas das duas pessoas que se posicionaram a favor ao aumento do

“cercamento” das ruas sem saída, que o fato de a rua ser considerada um bem

público, não foi indicado como um grande empecilho para a não realização do ato de

fechá-las. Público, na Antiguidade, de acordo com Arendt (2003), era considerado

tudo aquilo que era de conhecimento de todos e o que era de pertencimento de

todos. Essas concepções nas entrevistas não pareceram tão evidentes, pois apenas

o Sr. João, morador do bairro São Lourenço, quando foi tocado no assunto sobre a

questão da dicotomia público/privado, reafirmou sua posição contrária ao

fechamento de ruas sem saídas ressaltando que a rua é pública e esse é também

um bom fator para mantê-la assim.

Podemos perceber que outras questões se sobrepuseram a esta dicotomia,

na modernidade. Notamos que a elaboração de um Projeto de Lei, mesmo que

vetado pelo Prefeito, foi aprovado por folgada maioria na Câmara de Vereadores,

evidencia um aspecto crescente nas grandes cidades, isto é, o aumento do

“cercamento” de espaços públicos, ou seja, que o uso coletivo do espaço está sendo

substituído, dando lugar a questões individuais4. Um exemplo de questão individual

pode ser percebido no discurso da segurança dos entrevistados, pois apenas os que

foram contra pensaram na questão da segurança como um todo, não apenas na rua

em que este mora. Ou seja, a questão da segurança individual é tratada acima das

questões públicas. Contra o discurso individualista temos o discurso do Sr. João,

que quando questionado sobre o fator segurança colocou: “o mundo já é tão

individualista, fechar a rua só piorariam as coisas”.

O outro entrevistado o qual nos referimos é o Sr. Paulo que é contra o projeto.

Segundo ele, a segurança deve ser algo dado pelo governo e não de

responsabilidade da população. Este discurso também foi encontrado no trabalho de

campo feito por Caldeira (2000), na cidade de São Paulo, onde as pessoas

entrevistadas entendiam que o crime é um sinal de autoridade fraca, seja ela da

escola, família, mãe, igreja, governo, polícia ou sistema judiciário. Essas autoridades

são responsabilizadas por controlar a difusão do mal. Na fala do crime, o mal é tido

4 Dizer isso não quer dizer que as questões individuais não estejam relacionadas a questões

sociais. Esta noção baliza nosso trabalho, partindo das idéias de Nobert Elias, que acredita que o modo como um indivíduo decide e age desenvolve-se sempre nas relações com outras pessoas, tendo uma modificação de sua natureza pela sociedade (ELIAS, 1994).

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como algo poderoso e que se espalha facilmente. Ainda, segundo ela, uma

conseqüência importante dessa teoria de contágio e do fracasso das autoridades em

controlar o mal é que as pessoas intensificam suas próprias medidas de

encerramento e controle, de separação e construção de barreiras, tanto simbólicas,

como o preconceito e a estigmatização de alguns grupos, quanto as materiais, ou

seja, os muros, as cercas e as aparelhagens eletrônicas de segurança. No que

constitui uma concepção bastante difundida da ordem, autoridade, instituições,

trabalho, razão e controle são vistos como armas contra o mal. Quando as pessoas

vêem o crime aumentando, elas frequentemente culpam as instituições públicas e

diagnosticam a necessidade de uma autoridade forte. Quando as instituições

públicas falham, as pessoas sentem que têm que resolver os problemas por seus

próprios meios. Quando se considera que o ambiente ficou muito perigoso, a melhor

resposta é construir barreiras por toda parte e intensificar todos os tipos de controle

privado (CALDEIRA, 2000, p. 90 - 91).

Percebemos na fala do Sr. Paulo o destaque à necessidade de uma

autoridade forte. Contudo, ele não compactua com a idéia de que o cidadão deva se

responsabilizar pela segurança da rua em que mora, cabendo ao Estado, como

autoridade pública, garantir a segurança em outras ruas também.

Dentro do posicionamento a favor da rua como espaço público, outra

argumentação se centra na questão legal, isto é, no direito de ir e vir, que foi o

argumento determinante para que o projeto não fosse aprovado. Aqui é interessante

entender a fala do Sr. João, que enfatiza que nenhum benefício individual ou de uma

pequena coletividade deveria se sobrepor o direito do cidadão de ir e vir.

Conceituar cidade como espaço, passando por uma reformulação na

modernidade, foi uma discussão importante no segundo capítulo, pois, podemos

entender de forma mais clara essa nova reorganização do espaço urbano, sob a

denominação de condomínios fechados e, nesse estudo de caso, o fechamento das

ruas residenciais sem saídas. Aqui trabalhamos também questões como segurança

e relação de vizinhança que foram investigadas no trabalho de campo.

Nas entrevistas realizadas, podemos observar nos dois posicionamentos em

favor do fechamento de ruas sem saída, a questão da segurança como o principal

motivo que justificaria este ato. Estas respostas vão ao encontro dos discursos

captados por Caldeira (2000), ou seja, que seria a busca pela segurança o princípio

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motor dessas atitudes, como por exemplo, o aumento pela procura de moradias em

condomínios fechados.

Porém, fica evidente, principalmente na fala de Fábio, que o ideal de

segurança está ligado mais a um discurso, do que à violência real, ou seja, como

diria Caldeira (2000), a uma fala do crime, pois ao mesmo tempo em que ele afirma

que o bairro está cada vez mais perigoso, diz que os roubos que ocorrem na rua são

pequenos e não freqüentes. Para Caldeira (2000), a fala do crime alimenta um

círculo em que o medo é trabalhado e reproduzido. Ao contrário da experiência do

crime, que rompe o significado e desorganiza o mundo, a fala do crime

simbolicamente reorganiza o mundo ao tentar restabelecer um quadro estático

deste, e essa reorganização simbólica é expressa em termos muito simplistas, que

se apóia na elaboração de pares de oposição óbvios oferecidos pelo universo do

crime. O mais comum deles é o que opõe o bem contra o mal. Há concordância

entre Caldeira (2000) e Delumeau (1989) neste aspecto, pois para o autor o

processo de lidar com o medo consiste num processo de ordenação do mundo.

Essas narrativas e práticas, de acordo com Caldeira (2000), impõem separações,

constroem muros, delineiam e encerram espaços, estabelecem distâncias,

segregam, diferenciam, proíbem, multiplicam regras de exclusão e de evitação, e

restringem movimentos. Em outras palavras, elas simplificam e encerram o mundo,

criam preconceitos e tentam eliminar ambigüidades. A narrativa do crime ajuda a

violência a circular e a proliferar e consequentemente produz a segregação, ou seja,

gera uma ordem que não é democrática, igualitária e tolerante. Em menor escala, o

caso do Projeto de Lei, em Curitiba, caminha no mesmo sentido, ou seja, coloca-se

o interesse de uma minoria acima do bem coletivo.

Anteriormente à modernidade, o agrupamento de pessoas semelhantes em

determinado lugar era justificado pela idéia da intimidade e identidade para com o

igual, porém houve uma mudança de comportamento na modernidade. Esse

fenômeno fica evidente nas reflexões de autores como Weber, Park e Wirth,

analisados no segundo capítulo deste trabalho, quando explicitaram sobre a questão

da relação de vizinhança. Para estes autores as relações de vizinhanças tinham a

ver com o conhecimento mútuo entre os moradores, consistiam em uma

contigüidade na associação pessoal, nos laços comuns à natureza humana e nas

relações de amizade íntimas e duradouras entre os vizinhos. Porém, para os três,

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esse aspecto mudou na sociedade moderna, com aumento do número de habitantes

e da densidade do agrupamento, descaracterizando tais relações.

No trabalho de campo todos disseram conhecer bem seus vizinhos e manter

bom relacionamento vicinal. O sentimento de comunidade parece de certa maneira

existir, confirmando, desse modo, que a idéia de internalização da intimidade e

identidade nas relações de vizinhança ainda é existente nos moradores.

Acreditamos que esse aspecto aparece pelo fato de esses três bairros serem

considerados “familiares”. Apesar disso, temos a situação da rua do entrevistado

Fábio que é dividida entre um lado da rua e outro, com casas que apresentam

desenhos arquitetônicos, estéticas e condições sociais evidentemente diferentes.

De acordo com Lopes (2008), que abordamos no capítulo dois, embora a

vivência em condomínios esteja imbuída de uma idéia de comunidade, esta não

reflete a experiência de ações e laços presentes em uma comunidade. Na realidade,

seu estudo sobre socialização demonstrou uma vida individualizada dentro de uma

suposta estrutura coletiva, onde os moradores se isentam dos interesses coletivos e

privilegiam apenas os próprios interesses. Foi tratada no segundo capítulo também a

questão das Gated Communites, uma prática estadunidense em que espaços

normalmente públicos são na verdade privatizados e como áreas residenciais com

acesso restrito, nas quais os espaços normalmente públicos são na verdade

privatizados, tornam-se categoricamente de acesso privado e restrito.

Nossa intenção em abordar essa questão sobre a relação de vizinhança entre

os moradores era notar se existia essa percepção de comunidade e se eles

considerariam, caso fechassem a rua, que esse sentimento de comunidade

aumentaria. Observamos que metade das pessoas entrevistadas não concordou

com essa pressuposição. As pessoas que se posicionaram a favor ao projeto

disseram que acreditavam na possibilidade de aumentar o senso de comunidade

caso as ruas fossem fechadas. Não foi possível fazer uma observação participante

para avaliar se realmente as relações de vizinhança estavam imbuídas de princípios

identitários ou de intimidade indicados nas falas dos moradores entrevistados. Por

isso não podemos afirmar o quanto esta fala corresponde às práticas sociais ou se

expressam apenas noções de “bom-tom” de civismo.

No terceiro capítulo tentamos esclarecer, citando até mesmo partes do texto

do Projeto de Lei do Vereador Mario Celso Cunha, o que a lei propunha,

compreendendo, de maneira geral, que esta apenas veio no sentido de não criar

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algo novo, mas evidenciar e reforçar uma prática cada vez mais crescente nas

grandes cidades do mundo todo, ou seja, o aumento dos “cercamentos” tanto físico

quanto social. Foi neste capítulo também que expomos nosso trabalho de campo

com as entrevistas que foram realizadas nos bairros Bacacheri, São Lourenço e

Tingui, localizados na cidade de Curitiba.

Consideramos que de modo geral conseguimos atingir nosso principal

objetivo que era tentar verificar o quanto esse projeto de Lei possuía algum tipo de

vinculação com as demandas ou expectativas dos entrevistados em relação a

questões como segurança, senso de comunidade e dicotomia público/privado,

apesar de termos observado que, diretamente, nenhuma das pessoas entrevistadas

citou essa dicotomia. Para nós, essa era uma reação esperada, pois levamos em

consideração o levantamento histórico que realizamos no primeiro capítulo sobre as

mudanças que estes domínios passaram.

Outro ponto que destacamos nesse trabalho foi a confirmação de nossa

hipótese de que as pessoas favoráveis ao aumento dos “cercamentos” em suas ruas

sem saída, tomariam o fator segurança como o principal motivo para justificar seus

posicionamentos. Diante disso, podemos dizer que nessa amostra as falas da

segurança pôde balizar a idéia de uma segregação espacial urbana, com o aumento

dos enclaves fortificados, utilizando o termo de Caldeira (2000).

Temos consciência, porém, dos limites desse trabalho e entendemos que

pode ser futuramente retomado e melhorado em vários aspectos, entendendo-o

como uma pesquisa exploratória e um primeiro exercício de reflexão sobre as

múltiplas dimensões do espaço urbano.

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ANEXOS I – PROJETO DE LEI SOBRE O FECHAMENTO DE RUAS SEM SAÍDAS

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ANEXO II – RAZÕES DO VETO

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