sobre o talento de ser fabulosa: os “shows de travesti” e ... · desse processo não pode estar...
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cadernos pagu (53), 2018:e185314
ISSN 1809-4449
ARTIGO
http://dx.doi.org/10.1590/18094449201800530014
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Sobre o talento de ser fabulosa: os “shows
de travesti” e a invenção da “travesti profissional”*
Thiago Barcelos Soliva**
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar o processo de construção da
chamada “travesti profissional”. Tal processo está conectado ao
surgimento de um interesse cada vez maior do público brasileiro e
internacional para os “shows de travesti”, eventos famosos nas
décadas de 1960 a 1980. São aqui analisados os espetáculos
International Set e Les Girls, pioneiros nesse gênero, e os seus
impactos nas trajetórias de vida de uma geração de pessoas que
hoje se identificam como travestis. Os dados para a escrita deste
artigo foram obtidos junto a fontes documentais e orais: impressos
de jornais e revista e relatos de indivíduos que vivenciaram esse
período.
Palavras-chave: Travestis, Shows de travesti, Les Girls, Memória,
Glamour.
* Recebido em 09 de maio de 2016, aceito em 11 de abril de 2018.
** Professor do Centro de Ciências em Saúde, Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, Santo Antônio de Jesus, BA, Brasil.
[email protected] / http://orcid.org/0000-0003-3355-6569.
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About the Talent of Being Fabulous: The “Transvestite Shows” and the
invention of the “professional transvestite”
Abstract
The purpose of this article is to analyze the process of construction
of the so-called “professional transvestite”. This process is related
to the emergence of an increasing interest by a Brazilian and
international public for “transvestite shows”, which were famous
events from the 1960s to 1980s. The article analyzes the shows
International Set and Les Girls, which were pioneers in this genre,
and their impact on the life trajectories of a generation of people
who now identify themselves as “transvestites”. The data for this
article was obtained from documentary and oral sources: print
newspapers and magazines; and reports of individuals who lived in
this period.
Keywords: Transvestites, Transvestite Shows, Les Girls, Memory,
Glamour.
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Tornando-se fabulosa
A Marquesa e Rogéria (in memoriam),
eternas divas.
Ao analisar o processo de construção de estratégias criativas
de sobrevivência que sujeitos considerados fora da
heteronormatividade inventam face à sociedade que os vê como
ameaças às suas convenções, Marcia Ochoa (2004) chama atenção
para diferentes “tecnologias da intimidade” que, produzidas por
esses sujeitos, possibilitaram uma gestão da visibilidade – a partir
do manejo de convenções de gênero, sexualidade, classe social e
corpo – que converteu o lugar de desprestígio social associado a
essas formas de existir em uma “vivência possível” (Passamani,
2015). A autora chama a atenção para a seguinte estratégia de
agenciamento: o “talento de ser fabulosa”, ou seja, um tipo de
agência com a qual esses indivíduos negociaram existência, a
partir da incorporação de imagens e performances relacionadas ao
glamour. Neste artigo, analiso possibilidades de existências a partir
da emergência daquilo que minhas interlocutoras chamaram de
“travesti profissional”, uma categoria de disputa em torno de
noções sobre gênero e sexualidade que se alinha ao argumento de
Ochoa (2004) acerca da estratégia de “tornar-se fabulosa”. As
trajetórias de Rogéria, Divina Valéria, Marquesa, Yeda Brown,
Susy Parker e Jane Di Castro foram aqui privilegiadas para a
produção deste estudo.
O material para a construção da pesquisa foi amplo e
envolveu pesquisa documental, relatos orais e material
audiovisual. A pesquisa foi conduzida entre janeiro de 2013 e
dezembro de 2015. Tive a oportunidade de entrevistar Divina
Valéria, em 29 de setembro de 2014; e Marquesa, em 23 de março
de 2015, nas dependências da Turma OK. Os registros das
narrativas de Yeda Brown e Susy Parker foram a mim confiados
por outra pesquisadora, Rita Colaço1
, militante histórica do
1 Agradeço a Rita Colaço por compartilhar fontes de pesquisa e pelas conversas
valiosas que enriqueceram este trabalho.
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Movimento LGBT, historiadora, que vinha realizando registros
dessas trajetórias para um projeto pessoal. Minha aproximação
com Marquesa e Divina Valéria foi facilitada por membros da
Turma OK, local onde fiz amigos em função de minha pesquisa
sobre o grupo durante o mestrado. As tentativas de aproximação
com Rogéria e Jane Di Castro foram frustradas por sucessivas
remarcações e dificuldades de agenda, o que me levou a construir
suas trajetórias adotando material jornalístico e entrevistas
concedidas a veículos de comunicação. Segue uma descrição
sumária sobre essas interlocutoras.
Rogéria – nascida em Cantagalo, município do Rio de
Janeiro, em 1943, como Astolfo Barroso Pinto, nome que ela faz
questão de lembrar em inúmeras entrevistas a veículos de
comunicação, Rogéria iniciou a sua carreira como maquiadora da
extinta TV Rio, e essa experiência permitiu que conhecesse atrizes
como Fernanda Montenegro e Bibi Ferreira. Seu nome veio de
um concurso de fantasias de carnaval do qual participara. Ficou
famosa, assim como outras travestis, com o espetáculo Les Girls.
Fez sucesso na Europa, sobretudo no Carrosel de Paris, onde foi
considerada uma grande vedete. Regressou ao Brasil em 1973, já
com o status de uma diva internacional. Rogéria participou de
várias produções – cinema e televisão –, sendo uma das travestis
mais conhecidas no Brasil;
Divina Valéria – nascida no subúrbio do Rio de Janeiro,
provavelmente em 1942, Valéria passou parte de sua vida entre
países da Europa e o Brasil. Aos 14 anos, já frequentava os
auditórios das rádios, travando contato com as famosas cantoras
do rádio. Sua inserção no backstage artístico da Rádio Nacional
lhe proporcionou um convite para o espetáculo Les Girls, tendo
viajado para o Uruguai para apresentar-se com ele. Valéria se
fixou nesse país em função de um romance que teve com um
rapaz. Com o fim do relacionamento, ela retornou ao Rio. Na
década de 1970, voltou ao Uruguai com um show chamado
Divina Valéria, nome que adotou definitivamente. Assim como
Rogéria, foi vedete do Carrousel de Paris. Atualmente, mora em
São Paulo;
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Jane Di Castro – nascida no bairro de Botafogo, em 1948,
Jane foi criada em Cascadura, ambos bairros do Rio de Janeiro.
Sua estreia como artista foi no Teatro Dulcina, na Cinelândia,
também com o espetáculo Les Girls. Foi levada a Paris por Eloína,
sua amiga, onde atuou em cabarés. Circulou ainda em países
como Alemanha e Espanha. Também participou do espetáculo
Gays Girls, na Galeria Alaska, em Copacabana, junto com Eloína.
Além de artista é cabeleireira. Trabalhou durante muito tempo em
um salão no bairro Ipanema, mas hoje possui seu próprio salão
em seu apartamento em Copacabana;
Marquesa – nascida no Rio de Janeiro, em 1944, em uma
família de classe média alta de origem francesa. Sua família tinha
expectativas que se formasse diplomata, tendo-lhe oferecido uma
educação esmerada. Marquesa iniciou a sua carreira no
espetáculo International Set, em 1964, no Stop, na Galeria Alaska,
Rio de Janeiro. Participou também do elenco de Les Girls, em
1966, junto com Rogéria e Valéria. Trabalhou muitos anos no
Chez Homy Haag, em Berlim, tendo se aposentado pelo governo
alemão. Morava no Catumbi, bairro da região central do Rio de
Janeiro, quando faleceu.
Vale ressaltar um dado importante sobre o material
examinado. Trata-se de um campo marcado por fontes de dados
fragmentadas ou sentenciadas ao apagamento. Isso ficou mais
evidente quando me deparei com a morte de Marquesa no curso
da pesquisa. Foi a partir dessa perda, que pude avaliar melhor a
dificuldade de reunir material sobre essas pessoas, sobretudo sem
o acesso às memórias delas.
Merece destaque também a polissemia que envolve o uso
das categorias “travesti”, “homossexualidade”, “em travesti”,
“boneca”, etc. O uso de categorias identitárias relacionadas às
diversidades de gênero e sexualidades encerra problemas de
classificação que merecem reflexão por sua estreita relação com os
diferentes processos de mudanças operadas em uma dada
sociedade. Sobre essa discussão, Mauss e Durkheim (1995) já
haviam alertado para o fato de as classificações explicarem mais
sobre as lógicas subjacentes às sociedades que produzem uma
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dada categoria classificatória do que sobre uma essência comum
compartilhada por aqueles sobre os quais recai a classificação.
Assim, examinar a emergência dessas categorias implica
compreender como as diferentes sociedades constroem
expectativas sociais acerca de seus indivíduos, cuja função é
atenuar as ansiedades provocadas pela possibilidade da
ambiguidade.
Bortolozzi (2015), ao analisar a arte transformista brasileira,
chama atenção para a importância das trajetórias sociais para o
processo de construção identitária relacionado a gênero e
sexualidades. O autor defende a ideia de que a compreensão
desse processo não pode estar desarticulado de dimensões como:
as redes de sociabilidade desses indivíduos, sua inserção em
comunidades culturais e, principalmente, a sua trajetória de
carreira.
Outro fator que complexifica ainda mais essas formas de
classificação é a possibilidade de falar delas em “tempos que não
são o presente” (Passamani, 2015). Esse autor fala de rupturas e
permanências em relação a essas formas de classificação que não
atendem às percepções mais atuais sobre o que se entende por
orientação sexual e identidade de gênero. Considerando essa
difícil inteligibilidade, todo uso de expressões com ambições de
explicar essa diversidade de experiências é sempre algo
contingente e momentâneo (Passamani, 2015). A invenção da
“travesti profissional”, aqui examinada, mostra essa relação de
disputa de sentidos em torno de categorias identitárias e formas de
existir só passíveis de serem compreendidas a partir dessas
trajetórias sociais. Homossexuais, travestis, bichas e bonecas
constituíam processos sociais que estavam em construção e em
disputa com dimensões relacionadas a diferentes experiências que
envolviam corpo, gênero, sexualidade, classe social, cor, trajetória
profissional, etc. Este trabalho propõe analisar esses processos
tomando como central a memória dessas que são reconhecidas e
se reconhecem como “pioneiras” da arte transformista brasileira
(Bortolozzi, 2015), cujas trajetórias e carreiras artístico-profissionais
foram centrais para a compreensão das mudanças sociais nas
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convenções relacionadas a gêneros e sexualidades no Brasil
contemporâneo.
Os “shows de travesti”
Importantes estudos sobre a história da homossexualidade
no Brasil marcam a década de 1960 como um momento de
eclosão de espaços dedicados à sociabilidade homossexual nas
grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro, Salvador e São
Paulo (Green, 2000; Trevisan, 2000; Facchini, 2005; Figari, 2007;
Facchini; Simões, 2009). Esses trabalhos caracterizam essa
“movimentação”2
inicial como particularmente marcada pela
clandestinidade, mas, também, pela intimidade dos encontros que
se beneficiaram das redes de relações, sobretudo estabelecidas
entre homens homossexuais3
, os quais consolidaram fortes laços
de amizade. Diferentes espaços afiançaram essa sociabilidade: os
eventos carnavalescos, o teatro de revista, os concursos de miss e
os bastidores do rádio, e ofereceram muito mais do que recreação
aos “poucos rapazes” que acompanhavam essas estrelas
radiofônicas, vedetes e misses. Pela mediação desses espaços,
2 A noção de “movimentação” está presente nas análises de Regina Facchini e
Júlio Simões (2009) sobre o surgimento do movimento homossexual no Brasil.
Segundo os autores, essa dinâmica de homens homossexuais em redes de
amizades nas décadas de 1950 e 1960 foi fundamental para a constituição do
movimento que surgiria na década de 1970.
3 São muitos os trabalhos sobre sociabilidade de homens homossexuais, se
comparados à exiguidade de estudos sobre a sociabilidade de mulheres lésbicas.
Os estudos que se dedicaram a estudar a história social dessa sociabilidade não
deram atenção às formas encontradas pelas mulheres lésbicas para se
encontrarem e se relacionarem afetivo-sexualmente. Acredito que a invisibilidade
dessa sociabilidade se deu em função das contingências a que estavam
submetidas essas mulheres: muitas não possuíam apartamentos próprios, não
tinham uma vida financeira estável, etc., elementos que limitavam os seus
acessos ao espaço público. A etnografia de MacRae (1990) sobre o grupo Somos
oferece valiosas informações sobre as mulheres lésbicas participantes desse
movimento. Os trabalhos de Andrea Lacombe (2010) e de Nádia Meinerz (2011)
apresentam-se também como importantes referências em meio a essa escassez de
estudos.
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jovens com experiências de vida semelhantes se agregaram e se
reconheceram como amigos. Acompanhar a carreira de misses e
estrelas do rádio consolidou uma experiência coletiva entre esses
rapazes que, até então, possuíam trajetórias atomizadas –
marcadas quase sempre por histórias de conflito com a família de
origem em razão de sua aparente feminilidade. Foi assim que
Rogéria, Divina Valéria, Marquesa, Jane Di Castro e outras dessa
geração iniciaram suas carreiras.
A narrativa de Rogéria acerca de sua trajetória realça essa
estreita relação com o backstage artístico e a importância que ele
teve para a sua carreira. Ainda muito jovem, tendo que trabalhar
como maquiadora da extinta TV Rio4
para ajudar em casa,
Rogéria teve contato com muitas artistas conhecidas, como
Fernanda Montenegro que, segundo ela, foi uma das principais
estimuladoras da sua entrada no mundo artístico. Ela diz5
: “Eu
não era apenas um gay maquiador, era um artista que cantava.
Fernanda me dizia que era preciso talento e vocação. E eu,
preocupada: ‘Mas vestida de homem?’. E ela: ‘Pode ser como
você quiser’”. A afinidade com a imagem de atrizes renomadas se
constitui como um “mito de origem” da própria Rogéria como
atriz. A invenção de seu nome artístico foi o reflexo dessa
aproximação, já que a atriz Zélia Hoffman teria julgado mais fácil
chamar aquele jovem maquiador de Rogério, ao invés de Astolfo.
A feminilização do nome veio com sua participação no concurso
de fantasias do Teatro República, em 1964. Assim como Madame
Satã no passado, foi sob o reinado de Momo que Rogéria foi
batizada. Estava completa a história de sua entrada na vida
artística. Logo, ela abandonaria a profissão de maquiadora para
participar de peças de teatro e, mais tarde, programas de
televisão.
Com frequência assídua nos bastidores desses espaços,
incluindo as perambulações pela Praça Tiradentes e pela
4 Emissora de televisão que existiu entre 1955 e 1977.
5 Entrevista concedida ao repórter Valmir Moratelli (Portal IG), em 23 de
outubro de 2012.
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Cinelândia, surgiu com a ajuda do dono da boate Stop, a ideia de
construir um show exclusivamente com travestis. Marquesa, uma
das travestis que participaram dessa primeira tentativa de
montagem de espetáculos, conta como foi realizado, em uma
boate da Galeria Alaska, reduto boêmio da Zona Sul do Rio de
Janeiro, o primeiro “show de travesti”: International Set.
O Stop, na Galeria Alaska, era uma boate que o dono
estava falindo. Ele tinha 15 dias para pagar uma dívida
séria ao governo se não ele ia à falência. Aí ele pensou e
disse assim: “a única solução...”. Ele resolveu montar um
show de travesti. Aí foi aí que reunimos Rogéria, eu, Brigitte
de Búzios, Biju Blanche, Gigi Sancir, Jerry di Marco e
Manon. Éramos sete, e montamos um show chamado
International Set. Coisinha rapidinha, o que você faz, o que
você faz... e final. Em uma semana, esse homem tinha pago
todas as dívidas e estava entrando em lucro. A fila na
Avenida Atlântica, saia da Galeria Alaska e foi parar na
Avenida Atlântica, entrava na Souza Lima e seguia. Era
madame fulana de tal, fulano de tal, não sei o que, tudo
esperando para ver. O homem ficou louco, quando ele viu
(...) quando eles começaram a entrar dinheiro e tudo, aí o
homem ficou louco. O que ele fez: primeiro, neste ponto
tem que se dizer que ele foi extraordinário, ele duplicou o
nosso salário, que nós estávamos ganhando na época o
salário que Dercy Gonçalves ganhava na Excelsior, era o
mesmo. E as segundas-feiras, que era a nossa folga, ele
fazia a gente trabalhar e ganhávamos em dobro. Aí passou
um ano, o show durou um ano, um sucesso, um sucesso,
um sucesso! Aí ele resolveu fazer um outro show, foi
quando ele montou Les Girls. Aí Les Girls era um show
com... Por que foi assim, Silveira Guimarães, o Luís
Haroldo e o João Roberto Kelly trabalhavam na extinta TV
Rio, aqui no posto 6, no antigo Cassino, e eles faziam um
show musicado, naquela época tinha Times Square, não sei
o que... Eram shows musicados, com as vedetes do Carlos
Machado, com atrizes como Norma Bengell, estrelas,
Elizabeth Casper. Era um escândalo, o show! E a Rogéria
era maquiador da TV Rio, e um dia ela disse: “aí vocês não
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gostariam de fazer um show para travesti?...” Aí a Rogéria
vira-se e convida eles para nos assistir. Eles ficaram loucos,
loucos com a gente. Eles nunca imaginaram que tinha
talento, que existia talento. E nós botávamos aquele público
de pé. Então, ele ficou tão entusiasmado que topou a ideia
e montamos Les Girls (Marquesa, entrevista concedida em 23
de março de 2015).
O show International Set afetou profundamente a trajetória
de vida de uma geração de indivíduos que passaram a vivenciar o
“fazer travesti” como parte integrante de suas vidas, não mais uma
prática lúdica associada ao carnaval, como nas décadas
anteriores. Essa transição não foi apenas vivenciada do ponto de
vista artístico-profissional, ela implicou no surgimento de uma
identidade coletiva entre essas pessoas, que começaram a produzir
uma reflexividade acerca do lugar ocupado pela prática de “fazer
travesti” nas suas trajetórias. Esses shows constituíram um “divisor
de águas” nas vidas desses indivíduos, que passariam
gradativamente a não mais “fazer travesti”, mas “ser travesti”. O
“ser travesti” tornou-se um elemento central na forma como
interagiam com a sociedade e consigo. Construía-se uma
identidade, a princípio artístico/profissional que com o passar dos
anos se confundiria com uma identidade coletiva. Jane Di Castro
chamou a atenção para essa mudança:
Ah, as pessoas só viam homens vestidos de mulher nos
grandes bailes de carnaval. Na rua não via, daí nosso
grande sucesso. O público vinha nos ver mais pela
curiosidade do que pela arte. Eu, Rogéria e Veruska fomos
as primeiras a fazer esse tipo de espetáculo no Brasil (Como
se tornar..., 1983:7).
A curiosidade do público, segundo Jane, foi um sentimento
valioso nesse processo.
Ao elenco original de International Set juntaram-se “outras
iguais” com trajetórias semelhantes, como Divina Valéria:
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Aí aconteceu que eu sempre frequentando a TV Rio, o meio
artístico, os bastidores e tudo mais... Surgiu a ideia de
grandes produtores da época montarem Les Girls, que foi
um espetáculo de grande sucesso onde eu fui trabalhar, que
aí que eu comecei a fazer travesti profissionalmente. Que
até então, eu só fazia nos carnavais, em festas... Então aí
que eu comecei a fazer em Les Girls profissionalmente, que
foi um espetáculo profissional belíssimo onde estava eu,
Rogéria, Marquesa, Brigitte de Búzios, Carlos Gill, Jerry Di
Marco, Carmem, Jean Jacques, éramos onze. E aí, eu fiquei
como boy de dia e girl de noite, porque eu continuei na
companhia de engenharia também trabalhando como boy,
e à noite fazendo o espetáculo. Só que saiu uma
reportagem muito grande na Manchete com todas nós, de
mulheres e de homem também e eu não apareci mais na
companhia de engenharia nem para dar baixa na carteira,
porque fiquei envergonhada que todo mundo ia descobrir
que eu estava fazendo travesti (Divina Valéria, entrevista
concedida em 29 de setembro de 2014).
A estreia de Les Girls foi um sucesso nacional, mesmo em
um contexto de ditadura, no qual a indústria de entretenimento
brasileira passou a ser objeto de censura e controle. Já na abertura
do espetáculo, o elenco vestia négligée e espartilho, em uma
alusão direta aos shows do teatro de revista no estilo burlesco.
Tratava-se de uma comédia musical no melhor estilo, que
misturava a estética da Broadway com o teatro de revista
brasileiro. Eram onze travestis que acorriam a um médico para
resolver seus “problemas de cabeça”. Cada uma delas era
responsável por um esquete. Cabia ao doutor solucionar o
“problema” das moças. Ao fim do show, a famosa canção, que
tanto marcou a vida de toda essa geração, era entoada em coro.
Les girls, oh Les Girls
Oooh Les Girls
Les Girls é ter charme, touché!
Ser podre de bem todo o dia
Les Girls é esnobar, é beber
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É ter sexy, sexy mania
Sou Les Girls, sou Les Girls, sou Les Girls...
O show não foi apenas sucesso no Rio de Janeiro.
Marquesa contou que a boate Oásis, uma das casas noturnas mais
elegantes de São Paulo, decidiu chamá-las para a sua
reinauguração, em meados da década de 1960. Ao chegar a São
Paulo, Marquesa disse que ficaram espantadas com a pouca
quantidade de pessoas na plateia, uma vez que no Rio de Janeiro
a bilheteria mantinha um volume considerável de frequentadores.
Mesmo com a casa vazia, fizeram a estreia. Para a surpresa de
todas, estava presente uma das mais destacadas figuras das altas
rodas paulistanas. No dia seguinte, segundo Marquesa, a casa foi
ocupada pelas famílias mais importantes da capital paulista. A
entrevistada afirmou que o sucesso da trupe não ficou circunscrito
à boate: elas foram chamadas a fazer outros eventos, incluindo o
aniversário do então governador de São Paulo, Ademar de
Barros. Assim, Les Girls que ficaria um mês em cartaz na boate
Oásis, ficou por três meses.
Ao fim da tournée em São Paulo, a trupe retornou ao Rio,
resultando novamente em bons números de bilheteria. Marquesa
disse que ao final desse período de sucessos, já se falava em outro
espetáculo, que se chamaria Mulheres, baseado na peça The
women, de Clare Boothe Luce, diplomata e escritora norte-
americana. Mas ela não concedeu os direitos autorais da peça.
Diante da negativa, ficou acordada a produção de uma nova
peça, que se chamaria Nunca vi mulheres tão mulheres, com cada
uma desempenhando o papel de uma mulher famosa. Marquesa
contou que seria Maria Antonieta no palco. Nesse ínterim, o dono
do Stop decidiu mandá-las para Londrina, onde fariam uma
tournée contratada pelo Teatro de Londrina.
Marquesa contou que o “patrão”, o dono do Stop, ficou
muito rico com os shows feitos pela trupe, e que gastava uma
fortuna com mulheres. Hospedadas no melhor hotel da cidade,
elas foram surpreendidas com o desaparecimento repentino do
“patrão”, que voltou para o Rio, deixando-as para trás, fugindo
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com o dinheiro e sem ter pagado as diárias vultosas do
estabelecimento. A saída, revelou Marquesa, foi fazer show na
zona de meretrício da cidade para juntar dinheiro, com o objetivo
de voltar para São Paulo. Do hotel luxuoso foram elas para um
hotel de beira de estrada. O grupo se dividiu para fazer show nos
diferentes bordéis da região. De Londrina a São Paulo, elas foram
fazendo shows nas zonas de prostituição até chegar ao seu destino
final. Marquesa disse que fazer prostituição não foi cogitado como
possibilidade para elas conseguirem pagar as contas, mas que essa
vivência nos bordéis dispôs para elas uma imensa quantidade de
amantes. Já em São Paulo, a trupe de Les Girls fez mais uma
temporada em algumas boates, mas não com a pompa de antes.
Nesse momento, meados da década de 1970, o grupo começou a
se dissolver: Rogéria regressou ao Rio, Divina Valéria, apesar de
ter participado de algumas montagens, partiu para o Uruguai;
saíram também Brigitte de Búzios e Jean Jacques.
Nesse contexto de reestruturação da companhia, Susy
Parker foi convidada a compor o grupo. A possibilidade de estar
do lado das “pioneiras” foi o motivo principal para o aceite
imediato, afirma a própria. Ela conta que ganhava muito dinheiro
e também amantes fazendo shows em casas noturnas do Rio de
Janeiro nesse período, sobretudo na Alcatraz, em Copacabana,
mas decidiu ir para São Paulo com Les Girls em função do
prestígio que a companhia tinha junto às travestis de sua geração.
Como todos os quadros do espetáculo estavam completos, Susy
Parker entrou como stand-by, sendo obrigada a conhecer todos os
esquetes para que, na falta de alguma das suas colegas, pudesse
desempenhar adequadamente aquele papel. Essa situação,
contudo, foi logo deixada de lado, quando Carlos Gill, o diretor
do espetáculo, percebendo a sua desenvoltura teatral, decidiu
incorporá-la definitivamente ao elenco principal.
Susy Parker pertenceu a que poderíamos chamar de
“segunda geração” do elenco de Les Girls. O material de
divulgação do espetáculo Alta Tensão, realizado pela companhia
no Teatro das Nações, em São Paulo, mostra as alterações no
elenco original. Alguns artistas, como Marquesa, Divina Valéria,
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Manon e Jerry Di Marco permaneceram no elenco. Outras artistas
passaram a compor o staff dos shows de Les Girls, como Susy
Parker, Yeda Brown e Akiko, e fariam muito sucesso em capitais
da América do Sul, como Buenos Aires, na Argentina, e
Montevidéu, no Uruguai. Susy Parker, Yeda Brown e Akiko
também fixaram residência em Barcelona, construindo carreiras
internacionalmente conhecidas nos nightclubs desta cidade.
Além do Les Girls em Alta Tensão, a companhia estreou em
São Paulo mais dois espetáculos: Les Girls em Times Square e
Tem Boneca na Folia. Apesar das tentativas de Carlos Gill, um
dos integrantes do grupo e detentor dos direitos autorais do
espetáculo, a equipe não alcançaria mais o êxito dos anos
anteriores. Jerry Di Marco acabou por comprar os direitos autorais
de Carlos Gill e levou o espetáculo para Belo Horizonte. Na
capital mineira, Les Girls sofreu severas críticas das Mulheres da
Liga Católica. Susy Parker conta que mesmo assim o show foi
aprovado pelas autoridades locais. Após a aprovação, não se
sabia onde hospedá-las. Ficou acordado, então, que o grupo
ocuparia um hotel de estudantes, iniciativa glorificada pela trupe.
Susy Parker relata que ficarem hospedadas em um
estabelecimento dedicado a jovens estudantes fez surgir muitas
histórias de romance e aventuras entre elas e os rapazes. As portas
dos seus quartos nem eram trancadas, afirmou, tamanho era o
movimento de entrada e saída nos mesmos. Foi ainda em Belo
Horizonte que Jerry Di Marco, lendo um jornal local, encontrou
Yeda Brown, que se apresentava em uma boate de classe média-
alta chamada Sukata. Tratava-se de uma travesti de formas
exuberantes. O jornal local destacava o ponto alto do espetáculo
de Yeda Brown na Sukata, o strip-tease. Impressionado com a
beleza de Yeda Brown, que se assemelhava à atriz norte-
americana Raquel Welch, sex symbol da década de 1960, Jerry Di
Marco decide convidá-la a entrar na companhia, pedido que foi
aceito imediatamente. Com Yeda Brown já fazendo parte da
trupe, Les Girls fez espetáculos primeiramente no Cine México, e
logo depois no Teatro Francisco Nunes, importante equipamento
cultural da capital mineira.
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No Rio de Janeiro, o Teatro Rival tentava fazer ressurgir os
tempos áureos do teatro de revista e trazia Rogéria como estrela
de Vem quente que eu estou fervendo. Marquesa, que não
acompanhou Les Girls em sua temporada mineira, foi convidada
por Rogéria a completar o elenco, o que foi logo aprovado por
Gomes Leal, dono do teatro, que passaria a ser grande
estimulador dos “shows de travesti”. A parceria entre Marquesa e
Rogéria se estendeu por três anos, quando a última iniciou a sua
carreira internacional, indo para Angola, na África. Nesse período,
os “shows de travesti” fizeram parte integrante da programação
dos teatros do Rio de Janeiro. Susy Parker conta que, nesse
período, era um sucesso absoluto de público, esse tipo de show.
Dois donos de teatros se estabeleceram como os principais
promotores desse tipo de espetáculo: Gomes Leal, no Teatro
Rival, e Brigitte Blair, no teatro que leva o seu nome. Blair foi uma
antiga vedete do teatro de revista que comprou um teatro com a
ajuda de um dos seus admiradores, contou-me Marquesa. Para
Marquesa, as montagens posteriores a Les Girls não investiram
muito no luxo, o que tornou os espetáculos menos extravagantes e
atraentes. Além desse fato, Marquesa disse que os produtores
como Brigitte Blair eram extremamente grosseiros, diferentes
daqueles dos tempos áureos de Les Girls.
O espetáculo Les Girls constitui um “mito de origem” dos
“shows de travesti” no Brasil, dado o seu alcance e o seu tempo
de duração em cartaz. A importância de Les Girls, em particular
para essa geração de pessoas, pode ser avaliada em função da
memória permanentemente acionada por elas quando falam de
suas carreiras. Aparentemente, esse show está intimamente
associado ao reconhecimento público delas como artistas, o que
teria oferecido uma espécie de portfólio para que se
apresentassem nas casas noturnas latino-americanas e europeias.
Entretanto, mais do que a carreira artística, o espetáculo propiciou
construir uma rede de amizades e cooperação. Essa colaboração
foi fundamental quando elas deram continuidade às suas carreiras
na tão sonhada Europa.
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A presença de travestis em shows não era exatamente uma
novidade no Brasil. O teatro de revista foi um precursor desse tipo
de espetáculo, mas a consolidação da “travesti profissional”, como
afirma Divina Valéria, só ocorreu na década de 1960, quando
determinados produtores começaram a investir nesse tipo de
linguagem teatral, atentos ao que já vinha ocorrendo em grandes
centros urbanos no mundo. Dessa forma, as travestis deixam de
compor os shows para serem o próprio espetáculo. Em um
levantamento nos arquivos do jornal O Globo, pode-se constatar o
aumento expressivo de propaganda dedicada a esse tipo de
evento na cidade do Rio de Janeiro.
Um dos idealizadores pioneiros desse tipo de espetáculo foi
Luís Haroldo. Na ocasião da estreia de Les Girls, em 1966, Luís
Haroldo tinha dez anos de carreira, sendo já reconhecido por suas
produções. Em matéria publicada em 27 de maio de 1966 no
jornal O Globo, ele é apresentado como o único produtor e diretor
de espetáculos “à base de travestis”. Quando perguntado acerca
desse tipo de espetáculo e a sua produção, ele respondeu:
Eu produzo e dirijo “shows de travestis” para civilizar uma
cidade, e não precisar ir a Paris para tomar banho de
civilização, se aqui mesmo é possível. Acontece que no
Brasil já se pode fazer algo de válido nesse gênero, tão
ingrato em outras épocas (O tema…, 1966:7).
Ao que parece, o argumento que o produtor evoca sobre os
“shows de travestis” no Brasil se relaciona à suposta necessidade
de trazer um “verniz civilizador” para a nossa sociedade quando
comparada a algumas cidades da Europa Ocidental, onde esses
espetáculos eram parte integrante dos guias turísticos. A fala de
Luís Haroldo perfaz uma percepção do Brasil e, claro, dos seus
habitantes como um país estacionado na história, uma espécie de
“espaço anacrônico”, expressão cunhada por McClintock (2010)
para se referir àqueles “humanos anacrônicos” – ou seja, aquelas
pessoas que, mesmo dentro da metrópole, tais como as mulheres
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trabalhadoras, são percebidas como fora da história, manifestação
acabada do arcaico, do primitivo.
Tal estratégia de divulgação parece ser orientada
diretamente às classes mais abastadas da sociedade brasileira, as
quais tradicionalmente veem na europeização dos hábitos de
consumo um mecanismo de distinção social. Balieiro (2014), em
seu estudo sobre a construção da identidade nacional a partir da
imagem de Carmem Miranda, oferece um panorama muito
semelhante do uso de determinados hábitos de consumo para
produzir distinção social. Para esse autor, a cultura nacional
forjada à época de Carmem Miranda pelo mercado de
entretenimento carioca era nutrida pela ideia básica de um “ideal
moderno”, com o qual se esperava um alinhamento das elites
brasileiras com as “nações civilizadas”. É a partir desse “ideal
moderno” que toda a publicidade de Luís Haroldo, e também de
outros depois dele, foi construída em relação aos “shows de
travesti”. Transitar nesses shows era uma forma de vincular esses
indivíduos a uma concepção de modernidade, uma estratégia de
compressão tempo-espacial (Hall, 2006) com os países da Europa
Ocidental e dos Estados Unidos. As “travestis profissionais”
constituíram uma forma de negociar a modernidade.
Acredito que a estratégia de Luís Haroldo em adotar a
noção de “falta de civilização” para falar de uma característica de
nós, brasileiros, que precisava ser ultrapassada teve um desfecho
bem-sucedido, uma vez que os shows produzidos por ele não
apenas lotaram de uma audiência variada – principalmente a elite
– como também ajudaram a organizar sensibilidades menos
nocivas às travestis. Preocupado em se aproximar das convenções
europeias, um público crescente afluía aos “shows de travestis”,
tornando o gênero um sucesso e projetando suas protagonistas em
diferentes veículos de comunicação. Acredito que conforme a elite
buscava distinção – tentando se aproximar dos países europeus
que já constituíam tradição nesse tipo de apresentação –, ela
promovia reconhecimento a essas formas de existir, aproximando-
a das noções de cosmopolitismo e modernidade. A elite foi uma
importante mediadora na mudança do regime de visibilidade das
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“travestis profissionais”, uma vez que, consumindo esses
espetáculos e os indivíduos que dele faziam parte – pela busca do
refinamento dos seus prazeres (Duarte, 1999) –, reconhecia a
existência dessas pessoas.
A aclamada “falta de civilização” no Brasil para esse gênero
de show não era um argumento somente adotado por Haroldo
para garantir público aos seus projetos. A propaganda que
circulava nos jornais e revistas populares na época revela a
preocupação em associar esse tipo de exibição a referências
internacionais, dotando de “civilização” esse tipo de
empreendimento. Daí os nomes dos shows serem sempre em
outros idiomas: Very, Very Sexy; The International Set e Les Girls,
para citar os mais importantes. Essas referências também eram
realçadas na caracterização do elenco, quase sempre identificado
como formado por artistas “internacionais”.
O discurso de Luís Haroldo acerca de nosso “atraso
cultural” em relação à Europa ganhou eco na imprensa da época,
que noticiava entusiasmada o novo empreendimento, o qual, de
acordo com o veículo Correio da Manhã, de 20 de dezembro de
1964, não era tão novo assim entre nós, mas antes carecia de
“uma certa dignidade”. O jornal destaca que as iniciativas
anteriores a Les Girls de se fazer “show de travestis” eram sempre
consideradas pouco profissionais, caindo na esparrela da
“gratuidade exótica”. Tal entusiasmo da imprensa pode ser
observado no trecho do Correio da Manhã que destaca o caráter
internacional desse gênero de espetáculo.
O travesti é um fato internacionalmente aceito como uma
das atrações noturnas das grandes cidades onde há boates
e teatros especializados na exploração e cultivo do gênero.
O travesti é a arte de transformar homens em mulheres e
vice-versa. Muito mais versa do que vice, é a arte
transformista por excelência. Em Paris, Nova York,
Londres, Berlim e Hamburgo há espetáculos deslumbrantes
neste sentido e sentimento, onde todo um mundo plural de
celebridades se reúne e diverte com o equívoco natural,
provocado ou artístico (Jafa, 1964:2).
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O legado de Haroldo foi além da publicidade positiva a
esses shows nos veículos de comunicação brasileiros. Foi ele, de
acordo com Marquesa, que ajudou a profissionalizar essas travestis
na etiqueta do show business. De acordo com ela, o produtor as
ensinou sobre o apreço pela pontualidade, a respeitar a disciplina
do teatro, a se antecipar nos bastidores no que se relaciona a
maquiagem, cabelo, etc. Para Marquesa, esse repertório de
aprendizagens iria possibilitar que, quando elas saíssem do Brasil,
realizassem sua adequação aos palcos internacionais com relativa
facilidade, produzindo uma percepção positiva das travestis
brasileiras no exterior.
O fenômeno Coccinelle
A associação entre as travestis, transformações corporais e o
glamour internacional ficou ainda mais evidente com a vinda de
Coccinelle, a famosa transexual francesa, ao Brasil. O
“desembarque-surpresa” (como alertaram as manchetes dos
jornais em 1963) de Coccinelle no Rio de Janeiro despertou
grande interesse da imprensa na época. Os veículos de
comunicação fizeram diferentes reportagens com a corista,
fotografando-a na pérgula do hotel Copacabana Palace e
publicando falas suas acerca da suposta vontade de ser mãe,
como foi o caso do periódico Última Hora, em 13 de março de
1963. Nos jornais, Coccinelle foi apresentada como o “ex-
travesti”6
Jacques Charles Dufresnoy7
, recruta do exército francês
6 Acredito que a noção de “ex-travesti” que o jornalista da época buscou evocar
está relacionado a tentativa de retirar de Coccinelle o estigma da ambiguidade do
corpo feminino com pênis. A “ex-travesti” se aproximaria da moderna noção de
“transexual”, tal como negociada atualmente.
7 Na década de 1950, George Jorgensen escandalizou os Estados Unidos
chegando de avião ao país após ter realizado na Dinamarca aquela que ficou
conhecida como a primeira experiência midiatizada de operação de “mudança
de sexo” (Preciado, 2008; Pelúcio, 2009). Tal feito incidiu diretamente no
interesse da medicina norte-americana, que passou a estimular pesquisas nessa
área.
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que se tornou Jacqueline Charlotte Dufresnoy. Coccinelle, ao
chegar ao Brasil, já havia construído uma sólida e polêmica
carreira na França, sobretudo nos famosos cabarés Chez Madame
Arthur e Carrousel de Paris, ainda na primeira metade dos anos
1950. Em 1958, a corista fez a cirurgia de “mudança de sexo” –
conforme era chamada na época – em Casablanca8
, no Marrocos,
tornando-se a primeira pessoa francesa a se submeter a esse tipo
de procedimento. Apesar do ineditismo de sua iniciativa, o dado
de sua vida que causou maior comoção popular foi o seu primeiro
casamento, em 10 de março de 1960, com o jornalista esportivo
Francis Paul Bonnet, em uma igreja. Tal informação só fez
aumentar a sua reputação, consolidando sua fama internacional.
Em O Globo, de 11 de março de 1963, uma foto de
Coccinelle ao lado do bailarino Mário Heynes ilustra a informação
sobre a estadia de três dias da corista na cidade enquanto
esperava a passagem de avião para conduzi-la novamente a Paris,
onde iria se apresentar no Olympia, ao lado de Edith Piaf e Frank
Sinatra. Elementos sedutores não faltavam na publicação, os quais
causaram grande comoção a um conjunto de pessoas que se
identificavam com a trajetória de vida da corista.
Acredito que a passagem de Coccinelle pelo Brasil, mais do
que despertar o interesse da imprensa ávida por notícias
sensacionalistas, encorajou um conjunto de pessoas que via na
“ex-travesti” fotografada no Copacabana Palace um projeto de
vida. As notícias destacavam a hiperfeminilidade de Coccinelle,
seu marido perfeito, seu corpo e, sobretudo, a sua carreira de
sucesso internacional. Associadas aos seus já propalados feitos
extraordinários, essas notícias serviram de dínamo para esses
indivíduos começarem a reconstruir seus projetos de vida,
fascinados que estavam com a possibilidade de serem iguais à
corista. A fala de Jane Di Castro ao jornal O Pasquim, em 1983,
8 Barbosa (2015) chama a atenção para alguns países que se tornaram atraentes
para o que ele chama de “turismo cirúrgico”, dentre os quais o Marrocos e a
Dinamarca. Muitas pessoas com aspirações iguais a de Coccinelle afluíam a esses
países para procedimentos cirúrgicos visando à transformação corporal.
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informa com bastante precisão os efeitos que essa presença
causou na sua imaginação e nas suas escolhas:
Ela me entusiasmou muito, porque senti os recursos que
podia usar. Li tudo sobre ela, vi suas fotos de homem, as de
mulher, soube que ela serviu o exército. Um dia faltei à aula
e fui ao Copacabana Palace assistir [a] Coccinelle tomar
banho de piscina, pensando: “ainda vou ficar igual a ela”
(Como se tornar..., 1983:7).
Coccinelle revela-se como uma mediadora entre essas
pessoas e a “moderna Europa”, onde as travestis já faziam parte
da paisagem e eram inclusive assumidas como atrações nos guias
turísticos, associadas aos shows de entretenimento noturno. Mais à
frente, pode-se ver como ela foi importante para as trajetórias de
vida de Divina Valéria, Marquesa e Rogéria quando iniciam suas
carreiras na Europa.
Não somente a presença física de Coccinelle encorajou essas
pessoas a construírem projetos de vida em que “fazer travesti”
possuía centralidade. As informações que circulavam acerca da
corista francesa acentuavam o clima de fascinação e atração
causado pelas inovações associadas à possibilidade de mudar o
corpo. O casamento dela com o jornalista esportivo ganhou
projeção internacional, chegando ao Brasil por meio de diferentes
veículos de comunicação. O “efeito Coccinelle” foi importante
também para a trajetória de vida de Marquesa, que ficou
conhecida pela reprodução que fez do casamento da famosa
corista em um nightclub carioca cuja frequência começava a ser
marcadamente homossexual: o Alfredão.9
9 O Alfredão foi assim batizado por Stanislaw Ponte Preta, o Sérgio Porto. O bar,
de acordo com entrevista feita pelo jornal O Globo, publicada em 12 de
dezembro de 1983 (Do picadinho..., 1983:12), foi reduto da boemia de
Copacabana, sendo frequentado pelas travestis que serviam de coristas nos
shows de Carlos Machado nas boates da região.
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O Alfredão [dono do bar que levava o mesmo nome]
resolveu reabrir a boate, aumentar, comprou do lado.... E
ele quis então formular uma peça de publicidade para a
abertura dessa casa, publicidade. Naquela época, a
Coccinelle, que foi a primeira a operar, tinha casado, tinha
sido um escândalo! Então, ele queria uma noiva. Aí ele
precisava de uma noiva pra boate, pra festa. Como eu vivia
sempre lá, ele disse: “Ah, Marquesa, você não quer fazer a
noiva?” Eu na hora: “É claro!”;“Pois bem, eu te monto, e
tudo, dou tudo”. Na época, o maior cabeleireiro era o
cabeleireiro da Maria Teresa Goulart, que era a primeira-
dama na época. Modelo da Casa Canadá, enfim, de noiva.
Eu estava impecável, impecável! E casei. Só que esta festa
foi o maior escândalo que aconteceu no Brasil na época
(Marquesa, entrevista concedida em 23 de março de 2015).
O escândalo provocado pelo “casamento de mentira” gerou
imensa comoção popular, sobretudo pela visibilidade promovida
pela revista Fatos & Fotos, que estampou em sua capa da edição
de 22 de dezembro de 1962 o seguinte título: “As bodas do
diabo”. Marquesa ganhou quatro folhas inteiras nas quais o
jornalista João Luiz de Albuquerque noticiou o que considerava a
“solenidade mais espantosa do século”. Os registros da solenidade
incluíam fotos de Marquesa ganhando conselhos de suas amigas
travestis sobre os deveres da noiva, sua felicidade diante dos
presentes de casamento que ganhou de amigos e o famoso brinde
com os noivos cruzando os braços diante da plateia. Marquesa,
então com 17 anos, disse que, ao sair da boate naquela noite, foi
cercada por uma legião de jornalistas que queriam registrar o feito:
o primeiro casamento de “anormais” realizado no Brasil. Muito
embora tenha conseguido sair ilesa do episódio, foi presa dias
depois, durante o carnaval. Em um baile do Teatro República, foi
interpelada por dois agentes que julgara interessados nos seus
dotes corporais, mas que, no fim das contas, prenderam-na sob a
acusação de atentado ao pudor.
De acordo com Alfredão (dono do bar, um empresário
português cujo pai era proprietário de um botequim na Rua do
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Lavradio, centro do Rio de Janeiro), em entrevista ao jornal O
Globo, de 12 de dezembro de 198310
(Do picadinho..., 1983:12), o
que deveria ter sido “uma noite engraçada” acabou se
constituindo em escândalo de tamanha proporção que o
governador Carlos Lacerda mandou fechar a casa. Alfredão foi
trabalhar na casa Fred’s, onde, depois de um tempo, conseguiu
recuperar o dinheiro perdido para reabrir, em 1964, o Barman
Club, na Praça do Lido, Copacabana. O casamento não
incomodou somente o governador. Dom Hélder Câmara, um dos
líderes mais destacados da Igreja Católica no Brasil, se manifestou
contrário em seu programa no rádio sobre a possibilidade de se
fazer uma cerimônia religiosa entre dois homens. Da noite para o
dia, Marquesa tornou-se conhecida em todo o Brasil como a
“Marquesa do Casamento”. Em meio a todo esse alarde, foi
convidada a integrar a equipe de International Set.
As “travestis profissionais” como “espetáculos de consumo”
Até o fim da década de 1960, os “shows de travesti” se
constituiriam como um lugar-comum, sendo frequentados por
diferentes setores da sociedade. O Les Girls, certamente, foi o
mais importante, por ter revelado um conjunto de indivíduos que,
é possível afirmar, foram precursores na produção de sentidos e
performances sobre o que era ser “travesti profissional”. Rogéria,
Divina Valéria, Marquesa, Eloína e Jane Di Castro saíram desses
shows – elas marcaram uma geração de travestis que transitaram
dos bastidores dos espaços de entretenimento para os holofotes da
vida cotidiana.
É interessante destacar que o florescimento dos “shows de
travestis” no cenário cultural brasileiro se deu ao mesmo tempo
que houve a instituição, em 1964, da ditadura militar, fato que
manifesta a atitude ambígua do governo brasileiro face a essas
existências. De acordo com Jane Di Castro:
10 Essa entrevista foi feita anos depois do episódio protagonizado por Marquesa.
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Os militares não se metiam com a gente não, viu? A
censura... tinha aquele problema de assistir [a]o espetáculo,
e como nosso espetáculo não tinha nenhuma conotação
política, então, nós nunca tivemos problemas com a polícia,
com os militares. Porque eles sabiam que o nosso show era
um show muito de frescura. E quando tinha censura,
porque tinha aquelas três ou quatro cadeiras da censura, o
empresário avisava: “oh tem o censor aí!” Aí nós tirávamos
todos os cacos, porque a gente brincava, claro, também em
cima. Mas como tinha sempre um censor no teatro, um
olheiro vinha avisar no camarim para todo mundo cortar
aquele texto assim e ficava uma coisa mais suave. Então,
nós nunca tivemos esse problema. Nós tivemos problema
com um delegado, que se chamava Padilha, que num certo
dia veio proibir o show de travesti, mas tinha uma censora
com o nome de Dona Marina que adorava... que ela
adorava os travestis, né? E sempre tem um anjo bom, né? E
ele [o delegado] falava: “não, não vai não!” [a censora
replicava] “Eles vão continuar. O senhor não vai fechar o
Rival, porque elas são artistas”. Ela vinha ao censor, e
lutava contra esse delegado (Caparica; Cimino, 2014).
Pode-se perceber, no relato mencionado, que os “shows de
travestis” não constituíam preocupação primeira dos governos
militares.11
A inquietação com esse tipo de show era antes residual
e moldada pela subjetividade do censor responsável pela
autorização ou não do espetáculo. Aparentemente, a preocupação
dos órgãos de repressão era com indivíduos identificados como
potencialmente perigosos à manutenção do sistema, tais como as
diferentes vertentes teóricas e políticas articuladas à esquerda. A
noção de “show muito de frescura” evocada por Jane Di Castro
revela o lugar de menor prestígio ocupado por esse tipo de
espetáculo no conjunto das programações culturais consideradas
transgressoras pelos militares. Diante dessa quase ausência de
preocupações, Jane Di Castro e as outras podiam realizar com
11 Vale lembrar que a Turma OK também sobreviveu a esse período, estando
ainda em funcionando até a data presente.
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relativa liberdade seus shows, contando com uma audiência
cativa. A ideia de que a ditadura percebia a homossexualidade
como algo de menor peso diante do conjunto de supostas
ameaças ao sistema começou a ser modificada quando essas
pessoas passaram a se infiltrar em uma nova tecnologia, mais
abrangente que os palcos cariocas e paulistas: a televisão.
O sucesso dos “shows de travestis” continuaria nas décadas
posteriores a de 1960. Luís Haroldo abriu um espaço importante
para esse gênero teatral no Brasil, provocando a formação de um
mercado para as travestis que se consolidaria entre fins da década
de 1970 e início da década de 1980. O reconhecimento desse
gênero, de certa forma, amoleceu alguns veículos de
comunicação, como o Jornal do Brasil que, conforme diz Adão
Acosta, colunista do Lampião da Esquina12
, era famoso por suas
páginas preconceituosas, não oferecendo espaço aos temas
relacionados às sexualidades. O sucesso desses shows, inclusive
internacionalmente, gerou visibilidade a essas pessoas, que foram
retiradas momentaneamente das sombras das casas noturnas em
que se apresentavam. Tal reconhecimento não foi obtido de forma
automática. Foi resultado de diferentes ações coletivas do próprio
mercado de bens culturais, que começava a mobilizar esforços no
sentido de construir um público e uma estética próprios a esse tipo
de espetáculo.
Essa mobilização contou com a preciosa atenção de
indivíduos com carreiras consolidadas no mercado de bens
culturais brasileiro, como as atrizes/cantoras e diretoras Marlene,
Bibi Ferreira e Berta Loran. Essas diretoras emprestaram prestígio
a esses shows, e ainda mobilizavam uma equipe de reputação que
ficava responsável por outros momentos da produção, como
cenografia e figurino. O resultado de todo esse investimento foi
uma adesão crescente de uma certa elite a esse tipo de espetáculo,
incluindo muitos turistas, que afluíram aos teatros. Tamanho
12 Considerado uma das primeiras publicações dedicadas à pauta homossexual,
esse jornal circulou entre 1978 e 1981, tendo em seu corpo editorial
personalidades como Aguinaldo Silva e Peter Fry.
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sucesso foi registrado na crítica de Aguinaldo Silva ao espetáculo
Gay Fantasy, no jornal Lampião da Esquina, de março de 1981:
Gay Fantasy, como estava na primeira semana, sem os
cacos que os artistas certamente vão acrescentar ao texto
pobre de Arnaud, já é espetáculo para ficar dois anos em
cartaz. Eu, por exemplo, pretendo vê-lo muitas vezes ainda.
Mesmo que, para isso, tenha que fazer como fiz da primeira
vez: disputar um ingresso, a socos e pontapés, com a legião
de heterossexuais, principalmente argentinos e
assemelhados, que para lá acorrem todas as noites. É
incrível, mas, por causa deste show, até na Galeria Alaska
as bichas agora também são minoria... (Silva, 1981:15).
O envolvimento desse staff tão prestigiado no campo
artístico brasileiro nos “shows de travestis” investiu de autoridade
esse gênero teatral, bem como as travestis que dele faziam parte.
Pela agência desse conjunto de diretores – Luís Haroldo, Marlene,
Bibi Ferreira, Lennie Dale e Berta Loran – as travestis foram
convertidas em mercadorias culturais (Morin, 2007), passando, via
cultura de massas, a fazer parte do quadro de atrações turísticas da
cidade do Rio de Janeiro. Esse envolvimento não se deu
exclusivamente a partir dessa elite artística: ele atingiu, sobretudo,
uma outra elite, formada por “damas da alta sociedade”: mulheres
bem-nascidas e consagradas pelos veículos de comunicação por
sua reputação nos círculos sociais. Era o caso da ex-primeira-
dama D. Yolanda Costa e Silva que, em entrevista à revista O
Cruzeiro, de 15 de outubro de 1979 (Bueno, 1979:5)13
, dizia adorar
“shows de travestis”, informação estampada na capa da referida
revista. Dando continuidade à entrevista, Yolanda afirmou que
frequentava esse gênero de espetáculo pois “os considero pessoas
como nós e nos shows deles me sinto perfeitamente à vontade”. O
tom que ela assume na entrevista d’O Cruzeiro parece tentar
produzir uma imagem de si leve e arrojada, talvez na tentativa de
desconstruir uma associação com o período da ditadura, perto do
13 Agradeço a Milton Ribeiro por compartilhar essa referência.
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fim. Ao adotar os “shows de travesti” para construir essa imagem
moderna, Yolanda Costa e Silva consolida uma percepção entre
as elites de que esses shows são modernos e, portanto, espaços
que devem ser ocupados por essas pessoas e, mais do que isso,
pelas chamadas “famílias de bem”.
Mas não era apenas D. Yolanda Costa e Silva que circulava
ali. Todo um grupo de “damas da alta sociedade” também o
fazia14
. Essa frequência é evidenciada na fala das travestis que
faziam shows, as quais destacam as presenças ilustres que
compunham o seu público. Mais do que assistir, essas “damas da
alta sociedade” tinham alguma agência no que diz respeito à
manutenção desses espetáculos durante o período mais duro da
ditadura, uma vez que, como afirma Jane Di Castro, eram elas
que intervinham diretamente nos órgãos censores para que os
shows pudessem ocorrer. É válido destacar a importância dessa
elite cultural e política para o desenvolvimento de uma
sensibilidade para esses shows e, por conseguinte, para a
produção de percepções menos hostis sobre as “travestis
profissionais”. Tal lógica muito se aproxima daquela analisada por
Fry (1982) no processo de construção do candomblé e do samba
como mercadorias culturais.
No pequeno artigo Feijoada e Soul Food (1982), o autor
destaca o quanto o pacto com as elites foi fundamental para “fazer
existir” tanto o candomblé quanto o samba, ainda que ambos
tenham sido produzidos pelas populações de origem africana em
situação de dominação. Tal infiltração das elites implicou a
conversão desses símbolos, antes circunscritos a espaços de
resistência étnica, em “instituições nacionais lucrativas” (Fry,
1982:52). Para o autor, essa conversão por meio da cultura de
massas trouxe consequências funestas, entre as quais a mais
14 Aureliano Lopes (2017) também chama atenção para a presença de socialites
nos concursos de beleza realizados nas décadas de 1960 e 1970 por homens
vestidos “de mulher” ou “montados”. O autor evidencia a cooperação existente
entre essas mulheres e seus cabeleireiros, que concorriam nesses certames. Essa
cooperação ativa se realizava pela doação de roupas de luxo para os
concorrentes e, também, pela presença delas nesses eventos.
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nociva: a difícil tarefa de denunciar a situação de dominação
racial, invisibilizada pelo sentido de nação produzido a partir
desses símbolos.
Processo muito semelhante foi analisado por Vianna (1995)
em seu estudo sobre a transformação do samba, indo de ritmo
execrado a símbolo da identidade nacional, item constitutivo da
brasilidade. Para Vianna (1995), a relação entre cultura erudita e
cultura popular nunca foi propriamente estanque, a história dos
ritmos populares pré-samba, como as modinhas, são exemplos
importantes desse argumento. De acordo com suas análises, os
saraus e outros eventos protagonizados pela elite carioca desde
sempre convocaram instrumentos, artistas e ritmos populares. A
construção do samba como ritmo autenticamente brasileiro foi
facilitada por essa elite intelectual, econômica e mesmo política
que mediou o processo de ressignificação do ritmo em questão,
afastando-o das percepções racistas que a ele se associavam.
No caso das “travestis profissionais”, a relação com uma
elite também fez existir outros sentidos acerca do “lugar social”
ocupado por elas. Sem a agência dessa elite cultural certamente
esse grupo não passaria a existir além dos limites dados pelo
teatro de revista e pelo carnaval. Ainda que Fry (1982) e Vianna
(1995) estejam se referindo a produtos culturais distintos, sua
reflexão acerca dos impactos da cultura de massas sobre símbolos
étnicos oferece pistas para compreender como tipos sociais
considerados tão perigosos e corruptores aos olhos das
autoridades, como eram os “homens em travesti”15
, foram
convertidos em mercadorias culturais – representantes legítimos de
nossa adesão a uma concepção de modernidade. No entanto,
cabe resgatar novamente Fry (1982), quando o autor analisa as
consequências desse processo de conversão de símbolos étnicos
em “instituições nacionais lucrativas”. Se a aproximação com as
elites fez com que as “travestis profissionais” fossem vistas como
15 Forma adotada pela imprensa da primeira metade do século XX para falar dos
homens “em travesti” que frequentavam os bailes de carnaval da Praça
Tiradentes e da Cinelândia, região central do Rio de Janeiro.
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parte de um mercado de consumo de bens culturais, ela
invisibilizou, por outro lado, a violência com que essas pessoas
lidavam cotidianamente, uma vez que mantinha essa possibilidade
de existir somente dentro dos limites desse novo mercado de bens
culturais, ou seja, da fantasia.
Logo, o lucrativo mercado dos “shows de travestis”
chamaria as atenções de espectadores de todas as partes do país e
do mundo, chegando a despertar até mesmo sentimentos
nacionalistas acerca das “nossas travestis”, produto genuinamente
nacional. Matérias de revistas de ampla circulação no Brasil, como
a Manchete e a Fatos & Fotos, que documentaram o período
áureo dos “shows de travestis”, adotavam no título de suas
matérias, em letras garrafais, chamadas que destacavam o bem-
sucedido “negócio travesti”. Tais matérias atentam para o
crescimento desse mercado e dos indivíduos que a partir dele
construíam suas carreiras. Na matéria “Escola de Bonecas”16
, da
revista Fatos & Fotos, de 1981 (Gay Fantasy..., 1982)17
, o veículo
afirmaria que o “negócio travesti” estava superando em
renovação de valores até mesmo uma das instituições brasileiras
mais consolidadas, o futebol.
Tal associação com o símbolo máximo de brasilidade
também foi verificada na capa da edição 32 de o Lampião da
Esquina, de janeiro de 1981. Nela, é possível ver onze travestis,
16 Silva Junior (2017) oferece uma descrição nativa da categoria boneca ao
entrevistar Claudia Celeste, outra importante personalidade do cenário artístico
transformista da década de 1970. Para Claudia, “tudo era boneca na época, não
se chamava travesti nem gay. Falava bonecas. Espetáculo de travestis era
espetáculo de bonecas. O pessoal começava a achar que travesti era pejorativo,
aí eles começaram a chamar bonecas. Era show de bonecas: ‘Bonecas com tudo
em cima’, ‘Bonecas com algo mais’, ‘O mundo é das bonecas’, ‘Liberdade para
as bonecas’. Era tudo boneca [...]” (Claudia Celeste citada por Silva Junior,
2017:15). Entre as minhas interlocutoras, a categoria boneca apareceu de forma
menos intensa do que na memória acionada por Claudia. Acredito que isto tenha
relação com a geração de Claudia Celeste, entendida como “mais nova” quando
comparada àquelas travestis que estrearam na década de 1960, na qual era
recorrente o uso da expressão “show de travesti”.
17 Recorte da revista presente no acervo pessoal de Jane Di Castro.
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dentre as quais Jane Di Castro, na pose tradicional adotada pelos
jogadores de futebol em fotografias de divulgação do time. Todas
elas trajavam blusas do clube carioca Vasco da Gama. Na
chamada da matéria, destacam-se as cinco páginas dedicadas às
chamadas “bichas biônicas”, como a equipe do Lampião se
referia às travestis, e uma entrevista exclusiva com a “Zico” dessa
seleção: Rogéria. Já em uma edição da revista Manchete, de 1981,
o título “Travestis S.A., uma sociedade nada anônima (nem
limitada)”18
realça o caráter internacional desses espetáculos,
chamando a atenção para a “graça” das travestis cariocas como
um traço superior das “nossas travestis” quando comparadas às
de origem internacional. Aparentemente, essas matérias –
associadas àquelas sobre o retorno dessas travestis da Europa –
ajudaram a amolecer a opinião pública acerca dessa presença até
então incômoda.
A construção do orgulho associado à produção de
sentimentos nacionalistas é um ponto interessante a ser analisado
a partir dessa publicidade focada nas travestis. Vianna (1995)
chamou a atenção para essa construção no processo de
consolidação do samba como símbolo nacional. Esse material
sobre o “boom travesti” sugere uma tentativa de produzir orgulho
nacional a partir das travestis brasileiras que circulavam
internacionalmente. É interessante destacar que o orgulho
nacional era produzido concomitantemente às iniciativas hostis da
ditadura a essas pessoas. Essa ideia de orgulho se aproxima da
noção de “culturalismo travesti”, tal como sugere Barbosa (2015),
em seu trabalho sobre a produção das categorias travesti,
transexual, trans e transgênero. Ainda que esse autor esteja se
referindo a processos identitários mais recentes, a ideia de
construir uma identidade travesti a partir de noções de nação e
brasilidade constitui caminho interessante para se compreender a
forma como as “travestis profissionais” produziram representações
sobre si tanto nacionalmente quanto internacionalmente. A
“institucionalização das travestis” via ideais nacionalistas produziu
18 Recorte da revista presente no acervo pessoal de Jane Di Castro.
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um modelo domesticado de ser “travesti profissional”, com foco
em noções de “respeito” e “bom gosto”. Era o mínimo que se
esperava de uma artista que trabalhou nas casas noturnas
europeias. Esse processo de domesticação via glamour talvez
tenha sido uma das primeiras formas de “transglobalização”
(Barbosa, 2015), ou seja, um processo civilizador a que os “corpos
travestis” foram submetidos pela incorporação de conteúdos
simbólicos referidos à ideia de glamour.
É possível inferir que a aproximação das “travestis
profissionais” com símbolos de brasilidade – como a mulata, o
samba e o carnaval –, não somente ajudou a compor a imagem
de um Brasil liberal e moderno, mas favoreceu a visibilidade da
“travesti profissional” junto à sociedade. A entrada de Rogéria na
condução do espetáculo com mulatas da boate Sucata19
, no Rio
de Janeiro, papel ocupado antes por Rosemary, constituiu outro
exemplo valioso desse processo. Rogéria confundia-se
definitivamente com a brasilidade patrocinada por esse espaço,
cujo produto principal era a mulata. Esse foi um dos primeiros
trabalhos dela recém-chegada da Europa, logo após a sua
experiência com a peça Por vias das dúvidas ou por dúvidas das
vias, dirigida por Agildo Ribeiro.
Outro dado que sugere a conversão das travestis em
mercadorias culturais é a estreita relação dos “shows de travesti”
com o calendário turístico do Rio de Janeiro, como já era
conhecido em alguns países europeus. A publicidade construída
para dar visibilidade a esses eventos sempre os associava ao
período de verão, época do ano marcado pelas altas temperaturas
que, combinadas às praias, resultam em representações sobre os
corpos e os desejos que evocam. Esses elementos são
responsáveis pela construção de representações sobre a cidade,
consumida pelos turistas que aqui desembarcam. Shows como o
Vídeo Gay, em 1985, dirigido por Berta Loran e com concepção
visual de Joãozinho Trinta, e Adorável Rogéria, do mesmo ano,
19 A Sucata era de propriedade de Osvaldo Sargentelli, um dos grandes
responsáveis pela popularização dos “shows de mulata” na noite carioca.
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fazem suas estreias adotando o verão como pano de fundo, talvez
na tentativa de associar as travestis a noções de tropicalidade,
portanto, de brasilidade. Mesmo aquelas que iam trabalhar em
outros estados regressavam ao Rio de Janeiro para temporadas de
verão em casas noturnas e teatros de menor dimensão, como
afirmou Susy Parker em entrevista.
Rogéria protagonizou momentos importantes de sua carreira
nesse contexto de valorização dos “shows de travesti”, como pode
ser ressaltado no sucesso de bilheteria do acima comentado Gay
Fantasy e do espetáculo Gay Girls, montagens que
compartilhavam o formato do antigo Les Girls. Sua estreia
brasileira após a temporada europeia foi em 03 de outubro de
1973, com o espetáculo Por vias das dúvidas ou por dúvidas das
vias, dirigido por Agildo Ribeiro, no teatro Princesa Isabel, em
Copacabana. Foi Agildo Ribeiro também que, em 1972, afiançou
a primeira aparição de Divina Valéria nos palcos brasileiros depois
do seu regresso da Europa. A peça Misto Quente tinha direção de
Augusto César Vannucci e estreou em julho de 1972, no teatro
Princesa Isabel. A publicidade da peça recaía, sobretudo, na
imagem de Divina Valéria, apresentada na imprensa como a mais
perfeita transformação. A crítica feita por Moli Ferreira, no Correio
da Manhã, de 28 de julho de 1972, destacou a sua perfeição como
atriz e cantora. Segundo a especialista, a sua potência vocal lhe
permitia cantar sem fazer uso do microfone.
A importância de Rogéria e Divina Valéria para essa
geração de travestis não se deve apenas às suas participações
nesse conjunto de espetáculos tidos como específicos – “shows de
travesti” –: elas fizeram papéis destacados na cena teatral
brasileira. Rogéria atuou em dois importantes espetáculos: o Alta
Rotatividade, em parceria com Agildo Ribeiro, em 1976; e Roque
Santeiro, dirigido por Bibi Ferreira, em 1987. Sua atuação no
teatro lhe rendeu o prêmio Mambembe, em 1979. Os trânsitos por
esse universo cultural mainstream foram convertidos em capital
simbólico na trajetória de vida de Rogéria, sendo sempre
lembrados em diferentes entrevistas que ela oferecia a veículos de
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comunicação com o objetivo de agregar valor à sua vida, artística
e pessoal.
O espetáculo Alta Rotatividade foi um sucesso de audiência
nacional. Agildo Ribeiro, em uma revisão de sua trajetória de vida
organizada pela Imprensa Oficial de São Paulo, afirma que esse
espetáculo foi o maior sucesso de sua carreira. O espetáculo rodou
todo o Brasil, entre 1979 a 1984. Agildo Ribeiro disse que o show
só teve seu final porque não havia mais teatros para ir. Sobre a
forma como o espetáculo foi concebido, ele disse:
O espetáculo seria comigo, a Rogéria, o Ary Fontoura e a
Leila Cravo. Ia ser tipo uma entrevista de televisão.
Começava com o cara sentado no palco respondendo: Seu
nome? Que ano você nasceu? É verdade que aconteceu
isso e aquilo quando você era garoto? E por aí continuaria.
Algo meio Tudo é Verdade, aqueles programas do Flávio
Cavalcanti, tipo Essa é Sua Vida. O Machado olhou,
pensou e disse: Muito bom, mas quem escreve? Nós, ora.
Cada um monta o que gostaria de falar a partir das
perguntas do outro. O Ary Fontoura entrava como se fosse
um apresentador. Era uma abertura. Música alta. E depois
entrava a Rogéria toda vestida de gala como se fosse a
primeira entrevistada da noite. O Ary dizia: Boa noite,
senhora, qual o seu nome? Astolfo Pinto, respondia a
Rogéria. E daí pode-se imaginar como a coisa engrenava. A
Rogéria contava histórias homéricas. Desde como foi sua
primeira vez até a última vez. Sem censuras. Descia o verbo
mesmo. As pessoas se acabavam de rir. Era uma revelação
ter aquele artista com nome e voz de homem, jeito de
mulher, histórias femininas, masculinas, uma festa só
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007).
Em 1985, com o espetáculo Adorável Rogéria, ela desponta
como produtora e diretora teatral. O show recebeu atenção
midiática em diferentes veículos, sendo o único do gênero que
possui material disponível para consulta nos arquivos da
Fundação Nacional de Artes – FUNARTE, no Rio de Janeiro.
Adorável Rogéria foi considerado um show de variedades, cujo
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objetivo era fazer ressurgir os tempos áureos dos “shows de
travesti” no Teatro Alaska. Além de Rogéria, atuaram Elaine,
Desirée e Andréa Gasparelli. Nas tiras jornalísticas, o espetáculo
era propagandeado como voltado, sobretudo, aos turistas, que
procuravam entretenimento de alta qualidade quando de férias no
verão carioca. A montagem não ficou restrita ao Rio de Janeiro,
tendo viajado por Brasília, Recife e Belo Horizonte.
Adorável Rogéria constituiu ainda a primeira iniciativa de
retirar a expressão “gay” dos letreiros dos espetáculos cujo foco
eram as “travestis”. Rogéria, em entrevista ao Jornal de Brasília20
,
na ocasião de sua estreia na capital, explica suas opções por
retirar a palavra “gay” dos títulos dos espetáculos.
Resolvi tirar o nome gay da fachada dos espetáculos.
Travesti não precisa ser uma coisa vulgar, pode e deve fazer
shows alinhados. Não tenho preconceitos em relação ao
homossexualismo e acho que demonstro isso no palco.
Trabalho com honestidade, dedicação. Por isso, recebo
constantemente o reconhecimento do público (Rogéria,
1985).
Aparentemente, as etiquetas “travesti” e “gay” passaram a
provocar incômodo em Rogéria, o que parece estar associado às
mudanças sociais operadas na percepção pública sobre as
travestis. Em nota de imprensa veiculada no jornal O Dia de 18 de
dezembro de 1985, Rogéria dizia que o espetáculo seria encenado
por atores transformistas de talento, não por travestis
estereotipados. Aparentemente, a adoção da noção de travesti
para descrever um estereótipo supostamente negativo visava a
distinguir a “arte de Rogéria”, como sublinhava a matéria, da
população de travestis que crescia nas ruas da cidade, aumento
também evidente no exterior. Essa dinâmica marca ainda um
processo de diferenciação entre essa geração, as “travestis
20 Recorte de jornal do acervo pessoal de Claudia Celeste, sem referência
completa.
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35
profissionais”, e aquelas “outras travestis” associadas à
vulgaridade e ao negócio da prostituição.
A noção de “travesti estereotipado” evocada por Rogéria
remete às análises de Carvalho (2011) sobre o processo de
“purificação da poluição de gênero” a que são submetidas
travestis e transexuais para obter reconhecimento social21
em meio
a um contexto de exclusão simbólica, na qual são percebidas
como fora do espectro de intelegibilidade do humano (Carvalho,
2011). Para o autor, o glamour agenciou um “caminho de
reconhecimento e purificação da imagem ‘imoral’ da travesti”
(Carvalho, 2011:94), ainda que fosse parcial, considerando a
persistência de imagens referidas à quimera e à fantasia – como se
fosse um ser mitológico. É sobre essa ideia de glamour que
Rogéria se baseia para produzir fronteiras simbólicas com aquelas
que acusa de “travesti estereotipado”.
Mas o incômodo de Rogéria não se restringia somente aos
letreiros de seus espetáculos. Em entrevista ao jornal Lampião da
Esquina, de janeiro de 1981, ela expressou sua preocupação em
ser associada somente ao fato de ser travesti:
Porque tenho horror que as pessoas pensem que meu
sucesso é porque eu sou travesti; travesti uma merda, porra!
Sou ator ou atriz, sei lá. Então as pessoas me convidam pra
trabalhar porque sabem que eu vou segurar a barra (Silva,
1981:9).
Na trajetória de Rogéria, o manejo de categorias identitárias
constitui exemplo importante da disputa de sentidos relacionados
a gênero e sexualidade. Bortolozzi (2015) também destaca a
21 A pesquisa do autor se refere ao surgimento do moderno movimento político
de travestis e transexuais no Brasil, um momento no qual essas categorias
possuem sentidos bem diferentes daqueles disputados no passado. Além do
glamour, o autor sugere outros caminhos de obtenção de reconhecimento de
travestis e transexuais, como a medicalização e a carreira militante. Essas são
formas mais recentes de reconhecimento relacionadas ao processo de politização
dessas identidades nos cenários nacional e internacional (Carvalho, 2011).
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polissemia de categorias identitárias que ela acionava para falar de
si. Gay, travesti, mulher e até mesmo “homem viril” são adotados
por ela em entrevistas concedidas a diferentes veículos de
comunicação ao longo de sua carreira. Como sugere o autor, a
trajetória de Rogéria reflete a complexa relação entre sua carreira
artística e a produção de identidades coletivas. Talvez seja por
essa razão que de todas as categorias com as quais ela se
apresentava, a noção de artista tenha sido a mais destacada,
refletindo a sua habilidade de transitar entre mundos,
esfumaçando convenções de gênero e sexualidade.
Entretanto, o apelo midiático às “travestis profissionais”
gerou outros sentidos. O palco, de certa forma, estabilizava a
presença das “travestis profissionais” na sociedade – a
domesticava –, situando essas pessoas dentro de um espaço
demarcado e controlado. Enquanto estivessem no palco, esses
seres teriam assegurada a sua existência. O problema foi quando
elas começaram a penetrar em outro espaço, mais perigoso em
função de seu alcance mais global: a televisão. Tal ingresso
evidenciou as fronteiras simbólicas que as “travestis profissionais”
deveriam respeitar para que pudessem preservar a sua existência.
O aparecimento cada vez mais frequente das “travestis
profissionais” na televisão gerou agitação de setores da sociedade
brasileira preocupados com os ditos valores morais. Essa
preocupação ficara ainda mais expressiva quando da descoberta
de uma doença que supostamente só acometia pessoas com
comportamento homossexual, a aids.
A conversão das “travestis profissionais” em mercadorias
culturais foi um processo importante para a construção de um
“lugar social” para essas pessoas. Tal processo esteve conectado
ao contexto dos “shows de travestis” e à circulação internacional
dessa primeira geração de “travestis profissionais”. Foi através
desses espaços e pelo fazer artístico produzido para o consumo
das massas que elas encontraram o ambiente propício para
inventar uma identidade e uma rede de cooperação. Essa
conexão com o fazer artístico mediou uma mudança vivenciada
por elas na percepção acerca da prática de se “fazer travesti”. O
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surgimento da chamada “travesti profissional”, categoria que
emergiu do relato de vida de Divina Valéria, considerada uma
pioneira dessa geração, é um desdobramento desse processo. Na
trajetória de vida de Rogéria, noções de “profissional” e “artista”
também foram fundamentais no processo de construção de si.
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