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SOBRE O ESTUDAR E O ESTUDANTE (Primeira Lição de um Curso)l Ortega y Gasset Espero que durante este curso venham a entender per- feitamente a frase que, depois desta, vou pronunciar. . I A frase é esta: «vamos estudar Metafísica e isso que va- mos fazer é uma falsidade». Trata-se de uma afirmação à primeira vista chocante, mas a perplexidade que produz não lhe retira a dose de verdade que possui. Note-se que, nesta frase, não se diz que a Metafísica seja uma falsidade: a falsidade é atribuída, não à Metafísica, mas ao facto de nos pormos a estudá-Ia. Não se trata pois da falsidade de um ou de muitos dos npssos pensamentos, mas da falsida- de de um fazer nosso, da falsidade daquilo que agora va- mos fazer: estudar uma disciplina. Na verdade, uma tal afirmação não vale apenas para a Metafísica, se bem que I Este texto, publicado autonomamente em iA Nation de Buenos Aires em 1933 (título em que figura nas Obras Completas de Ortega Y Gasset (cf. adiante, «Ori- gem dos textos», p. 104), constitui a primeira parte da primeira aula de um curso de Metafísica ministrado por Ortega Y Gasset na Universidade de Madrid em 1932-33 e cuja edição só postumamente foi publicada sob o título « Unas Leccio- nes de Metaflsica» (Madrid: Alianza Editorial, 1966). Em Apêndice, apresentam- -se as páginas que, aí, lhe davam continuidade, ficando assim integralmente tra- duzido o texto da primeira lição. (N. T.)

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SOBREO ESTUDARE O ESTUDANTE(Primeira Lição de um Curso)l

Ortega y Gasset

Espero que durante este curso venham a entender per-feitamente a frase que, depois desta, vou pronunciar.. I

A frase é esta: «vamos estudar Metafísica e isso que va-mos fazer é uma falsidade». Trata-se de uma afirmação àprimeira vista chocante, mas a perplexidade que produznão lhe retira a dose de verdade que possui. Note-se que,nesta frase, não se diz que a Metafísica seja uma falsidade:a falsidade é atribuída, não à Metafísica, mas ao facto denos pormos a estudá-Ia. Não se trata pois da falsidade deum ou de muitos dos npssos pensamentos, mas da falsida-de de um fazer nosso, da falsidade daquilo que agora va-mos fazer: estudar uma disciplina. Na verdade, uma talafirmação não vale apenas para a Metafísica, se bem que

I Este texto, publicado autonomamente em iA Nation de Buenos Aires em 1933(título em que figura nas Obras Completas de Ortega Y Gasset (cf. adiante, «Ori-gem dos textos», p. 104), constitui a primeira parte da primeira aula de um cursode Metafísica ministrado por Ortega Y Gasset na Universidade de Madrid em1932-33 e cuja edição só postumamente foi publicada sob o título « Unas Leccio-nes de Metaflsica» (Madrid: Alianza Editorial, 1966). Em Apêndice, apresentam--se as páginas que, aí, lhe davam continuidade, ficando assim integralmente tra-duzido o texto da primeira lição. (N. T.)

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valha eminentemente para ela. O que essa afirmação quersignificar é que todo o estudar é, em geral, uma falsidade.

Não parece que uma frase e uma tese como esta sejam asmais oportunas para serem ditas por um professor aos seusalunos, sobretudo no início de um curso. Dir-se-áque equi-valem.a .r~çomendara ausência, a fuga; que constituem-umconvite para que os alunos se vão embora, para que não vol-tem. Veremos daqui a pouco se isso acontece: se vos idesembora, se não regressais em consequência de eu ter come-çado por enunciar uma tamanha enormidade pedIigógica.Talvez aconteça o contrário, talvez que esta inaudita afir-mação vos interesse: Entretanto, quer decidam ir-se embo-ra, quer resolvam ficar, vou tentar aclarar o seu significado.

Eu não disse que estudar fosse inteiramente uma falsi-dade. É possível que estudar contenha facetas, aspectos,ingredientes que não sejam falsos. No entanto, basta quealguma dessas facetas, aspectos, ou ingredientes constitu-tivos do estudar sejam falsos para que o meu enunciado se-ja verdadeiro.

Ora, esta última consideração parece-me indiscutível.Por uma simples razão. As disciplinas, seja a Metafísica ouã Geometria, existem, estão aí, porque alguns homens ascriaram mercê de um grande esforço e, se se esforçaram, éporque necessitavam delas, porque sentiam a sua falta. Asverdades que essas disciplinas contêm foram originaria-mente encontradas por um determinado homem, e depois,repensadas e reencontradas por muitos outros que adicio-naram o seu esforço ao dos primeiros. Se esses homens asencontraram foi porque as procuraram e, se as procuraram,foi porque necessitavam delas, porque, por uma qualquerrazão, não podiam prescindir delas. Se não as tivessem en-contrado, teriam considerado as suas vidas como fracassa-

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das. Inversamente, se encontraram o que procuravam, éporque isso que encontraram se adequava a uma necessi-dade que sentiam. Trata-se de algo rebuscado, mas que, noentanto, é muito importante. Dizemos que encontrámosuma verdade quando alcançamos um pensamento que sa-tisfaZJlman~ç~s!)~dade~~!e1ectualpreviamente sentida pornós. Se não sentimos falta desse pensamento, 'eJe não serápara nós uma verdade. Dito de outro modo, verdade é aqui-lo que aquieta uma inquietude da nossa inteligência. Semesta inquietude, não se dá aquele aquietamento. De formasemelhante, dizemos que encontramos uma chave quandotemos nas nossas mãos um objecto que nos serve para abrirum armário que necessitávamos abrir.A procura aquieta-secom o encontrar: este é função daquela.

Generalizando, diremo~ que uma verdade só existe pro-priamente para quem dela tem falta, que uma ciência não éciência senão para quem empenhadamente a procura; en-fim, que a Metafísica não é Metafísica senão para quemdela necessita.

Para quem dela não necessita, para quem não a procura,a Metafísica é uma série de palavras, ou, se se preferir, deideias; ideias que, embora possamos julgar tê-Ias entendi-do, crúecem definitivamente de-'sentido.Isto é, pélLãenten-der verdadeiramente algo, e sobretudo a Metafísica, nãofaz falta ter isso a que se chama talento nem possuir gran-des sabedorias prévias. O que faz falta é uma condição ele-mentar mas fundamental: o que faz falta é necessitar dela.

Há certamente diversas formas de necessidade, de falta.Se alguém inexoravelmente me obriga a fazer alguma coi-sa, fá-Io-ei necessariamente e, no entanto, a necessidadedeste meu fazer não é minha, não surgiu em mim, antes mefoi imposta a partir de fora. Pelo contrário, se, por exem-plo, sinto necessidade de passear, então esta necessidade é

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minha, brota de mim - o que não querdizer que sejaumcapricho, uma fantasia. Não! é uma necessidade que, ten-do embora o carácter de uma imposição, não se origina àminha revelia. É-me imposta a partir de dentro do meu ser,razão pela qual a sinto efectivamente como uma necessi-dade minha-;Porém, se, ao sair para passear; um polícia de ._.

trânsito me obriga a seguir numa determinada direcção,sou confrontado com um outro tipo de necessidade, neces-sidade que já não é minha mas que, pelo contrário, me éimposta do exterior e face à qual, o mais que posso fazer;é convencer-me por reflexão das suas vantagens e, em con-sequência, aceitá-Ia. Mas, aceitar uma necessidade, reco-nhecê-Ia, não é senti-Ia, percebê-Ia imediatamente comouma nec'essidademinha; é antes uma necessidade que pro-vém das coisas, que me vem delas, forasteira, estranha.Designá-Ia-emos por necessidade mediata por oposição ànecessidade imediata, aquela que, de facto, sinto comouma necessidade nascida de mim, que tem em mim as suasraízes, indígena, autóctone, autêntica.

Há uma expressão de São Francisco de Assis na qual es-tas duas fonnas de necessidade aparecem subtilmente con-trapostas. São Francisco costumava dizer: «Eu necessitode pouco e, desse pouco, necessito muito pouco.» Na pri-meira parte da frase, São Francisco alude às necessidadesexteriores ou mediatas; na segunda, às necessidades ínti-mas, autênticas e imediatas. Como todos os seres vivos,São Francisco necessitava de comer para viver. Mas, nele,esta necessidade exterior era muito fraca. Isto é, material-mente falando, São Francisco necessitava de comer muitopouco para viver.Além disso, fazia parte de sua atitude ín-tima não sentir grande necessidade de viver, ter pouco ape-go efectivo à vida, razão pela qual sentia pouca necessida-de íntima da necessidade externa de se alimentar.

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Mas, continuemos. Quando o homem se vê obrigado aaceitar uma necessidade externa, mediata, fica colocadonuma situação equívoca, bivalente, que equivale a ser con-vidado a fazer sua - ou seja, aceitar - uma necessidadeque não é sua. Quer queira quer não, tem de comportar-secomo se fosse sua. É assim convidado para uma..fissão,pa-ra uma falsidade. E, mesmo que ponha toda a sua boa von-tade em conseguir sentir como sua essa necessidade, nãoestá garantido, nem sequer é provável, que o consiga.

Feito este esclarecimento, procuremos determinar emque consiste essa situação nonnal do homem a que se cha-ma estudar. Como usamos o vocábulo estudar no sentidodo estudar próprio do estudante, tal equivale a perguntar-mo-nos o que é o estudante. Encontramo-nos então comuma afinnação tão surpreendente como aquela frase es-candalosa com que iniciei este curso. Damo-nos conta deque o estudante é um ser humano, masculino ou feminino,a quem a vida impõe a necessidade de estudar ciências semdelas ter sentido uma imediata e autêntica necessidade. Sedeixarmos de lado alguns casos excepcionais, reconhece-remos que, na melhor das hipóteses, o estudante sente umanecessidade sincera, embora vaga, de estudar «algo», algoin genere, isto é, de «saber», de s~instruir. Mas, o caráctervago deste desejo é revelador da sua frágil autenticidade. Éevidente que este estado de espírito nunca conduziu à cria-ção de nenhum saber porque o saber é sempre um saberconcreto, um saber precisamente isto ou precisamenteaquilo, e, de acordo com a lei que tenho vindo a sugerir -a lei da funcionalidade entre o procurar e o encontrar, en-tre a necessidade e a satisfação - aqueles que criaram umsaber sentiram, não um vago desejo de saber, mas umaconcretíssima necessidade de averiguar uma determinadaCOlsa.

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Daqui decolTeque, na melhor das hipóteses - e, repito,salvas as devidas excepções - o desejo de saber que obom estudante possa sentir é completamente heterogéneo,talvez mesmo antagónico, com o estado de espírito que le-vou à criação do saber. A situação do estudante perante aciência é oposta à do criador. Senão vejamos: ~ciência qãoexisté anrés do seu criador. O cri~do~não se encontrou pri-meiro diante da ciência tendo, posteriormente, sentido ne-cessidade de a possuir. O que aconteceu foi que o criadorcomeçou por sentir uma necessidade vital e não científica,procurou a sua satisfação e, ao encontrá-Ia em determina-das ideias, resultou que estas eram a ciência.

Pelo contrário, o estudante encontra-se desde logo coma ciência.já feita, semelhante a uma selTaniaque se levan-ta à sua frente e lhe balTao seu caminho vital. Na melhordas hipóteses, repito, o estudante gosta da serrania da ciên-cia, é atraído por ela, acha-a bonita, ela promete-lhe triun-fos na vida. Mas, nada disto tem a ver com a necessidadeautêntica que está na origem da criação da ciência. A pro-va está em que esse desejo geral de saber é incapaz, por sisó, de se concretizar num saber determinado. Além disso,repito, não é propriamente o desejo que está na origem dosaber mas a necessidade. O desejo não existe se, previa-mente, não existir a coisa desejada, seja na realidade, sejapelo menos na imaginação. Aquilo que não existe ainda,não pode provocar desejo. Os nossos desejos são desenca-deados pelo contacto com o que já está aí. Em contraparti-da, a necçssidade autêntica existe sem que aquilo que po-deria satisfazê-Ia tenha que lhe preexistir, ao menos emimaginação. Necessita-se precisamente daquilo que não setem, do que falta, do que não existe. E a necessidade, a fal-ta, são-no tanto mais quanto menos se tenha, quanto menosexista aquilo de que se necessita.

Não é necessário sair do nosso tema para esclarecermoseste ponto: basta comparar o modo de aproximaçãoà ciên-cia já feita de quem apenas a vai estudar com o de quemdela sente uma autêntica e sincera necessidade. O primei-ro, tenderá a não questionar o conteúdo da ciência, a não acriticar. Tenderá mesmo a recop.fortar-~e,,--pensanq.Qque o.conteúdo da ciência já feita tem um valor definitivo, é averdade pura. Procurará, isso sim, assimilá-Ia tal como elajá está aí. Por seu lado, aquele que sente falta de uma ciên-cia, aquele que sente uma profunda necessidade de verda-de, aproximar-se-á de forma cautelosa do saber já feito,cheio de desconfiança, submetendo-o à crítica; muito pro-vavelmente, partindo mesmo do pressuposto de que aquiloque os livros ensinam não é verdade. Em suma, precisa-mente porque sente com.radical angústia a necessidade deum saber, pensará que esse saber não existe ainda e procu-rará desfazer o que se lhe apresenta como já feito. São as-sim os homens que constantemente corrigem, renovam, re-criam a ciência.

Ora, não é este o sentido normal do estudar do estudan-te. Se a ciência não estivesse já aí, o bom estudante nãosentiria qualquer necessidade dela, quer dizer,não seria es-tudante. Estudar é para ele uma necessidade externa, quelhe é imposta. Portanto, ao colocar o homem na situação deestudante, este é obrigado a fazer algo de falso, a fingiruma necessidade que não sente.

Várias objecções são aqui possíveis. Dir-se-á,por exem-plo, que há estudantes que sentem profundamentea neces-sidade de resolver determinados problemas constitutivosdesta ou daquela ciência. É verdade que os há. Mas é im-próprio designá-Iospor estudantes. Impróprio e injustifi-cado. Trata-sede casos excepcionais, criaturasque, mesmoque não existissem estudos ou ciências, inventá-Ios-iam

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por si mesmos, sozinhos, melhorou pior; criaturas que, poruma inexorável vocação, dedicariam todo o seu esforço ainvestigar. Mas, e os outros? E a imensa maioria normal?São estes e não aqueles que realizam o verdadeiro sentido- não utópico - das palavras «estudar» e «estudante».

- São estes que.é injusto não reconhecer Gomo os verdadei-_<ros estudantes. É pois em relação a estes que se deve colo-car o problema de saber o que é estudar enquanto forma etipodo fazer humano. .

É um imperlltivo do nosSotempo - cujasgravesrazõesexporei um dia, neste curso - sentirmo-nosobrigadosapensar as coisas no seu ser desnudado, efectivo e dramáti-co. É essa a única maneira de nos enfrentarmos verdadei-ramente com elas. Seria encantador que, ser estudante, sig-nificasse sentir uma vivíssima urgência por este ou poraquele saber. Mas, a verdade, é estritamente o contrário:ser estudante é ver-se alguém obrigado a interessar-se di-rectamente por aquilo que não o interessa ou que, em últi-ma análise, o interessa apenas de forma vaga, genérica ouindirecta.

A outra objecção que se pode colocarao que acimafoi di-to consiste em recordar o facto indiscutívelde que os jovenstêm uma curiosidade sincera e inclinaçõespeculiares. O es-tudante, dir-se-á, não é um estudante em geral; estuda ciên-

. cias ou letras,o que supõejá umapredeterminaçãodo seuespírito, uma apetência menos vaga e que não é imposta apartir de fora. Creio que no século XIX se deu demasiadaimportância à curiosidadee às inclinações,pretendendone-las fundar coisas demasiado graves, quer dizer, demasiadoimportantes para que possam ser sustentadas por entidadestão pouco sérias como a curiosidade e as inclinações.

A palavra «curiosidade», como tantas outras, tem umduplo sentido: um, primário e substancial; outro, pejorati-

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vo e por excesso. O mesmo se passa com a palavra «ama-dor», a qual tanto significa aquele que ama verdadeira-mente alguma coisa, como aquele que é apenas um ama-teur2. O sentido próprio da palavra «curiosidade» vem daraiz latina (para a qual Heidegger chamou recentemente a

.. .?.tynçãoLç~r:a,cuidaQo,aJ1iç~o.,~quilo a que ch~lmopreo-cupação. De cura vem curiosidade. Assim se explica que,na linguagem vulgar, um homem curioso seja um homemcuidadoso, quer dizer, um homem que faz o que tem a fa-zer com atenção, rigor extremo e beleza, que não se des--preocupa daquilo que o ocupa; que, pelo contrário, sepreocupa com a sua ocupação. No espanhol antigo, cuidarera preocupar-se, curare. Este sentido originário de curaconserva-se ainda hoje nas palavras curador, procurador,procurar, curar e mesmo pa palavra «cura» enquanto sa-cerdote, alguém que tem por missão curar as almas. Curio-sidade é pois cuidadosidade, preocupação. Inversamente,incúria significa descuido, despreocupação e a palavra se-gurança, securitas, significa ausência de cuidados e depreocupações.

Se, por exemplo, procuro as chaves, é porque me preo-cupo com elas e, se me preocupo com elas, é porque ne-cessito deias para fazer alguma coisa, para me ocupar.

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Quando esta preocupação se exerce mecanicamente, in-sinceramente, sem motivo suficiente, degenera em indis-crição. Estamos então perante um vício humano que con-siste em fingir cuidado por aquilo que, em rigor, não nosdá cuidado, uma falsa preocupaçãocom coisas que, na ver-dade, não nos vão ocupar e, portanto, a incapacidade deuma autênticapreocupação. É isto que significam os vocá-

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2 Em francês no original. (N.T.)

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bulos «curiosidade» e «ser um curioso» se usados de for-ma pejorativa.

Daí que, quando se diz que a curiosidade leva à ciência,das duas uma: ou nos referimos àquela sincera preocupa-ção pela ciência, aquilo a que antes chamei «necessidadeimediata e autónoma»-a qual,..como também reconhece.,.-mos, não pode ser sentida pelo estudante, ou nos referimosà curiosidade frívola, à indiscrição de quem quer meter onariz em todas as coisas, o que não creio que possa servirpara fazer de alguémum homemde ciência. .

Estas objecções são no entanto vãs. Deixemo-nos deidealizaçõesacercada rude realidade,.de posiçõesbeatasque nos conduzem a diminuir, esfumar, adoçar os proble-mas, a limar as suas mais agudas cruezas. O facto é que oestudante-tipo é um homem que não sente necessidade di-recta da ciência, que não está preocupado com ela e que,no entanto, se vê forçado a ocupar-se dela. Aqui se mani-festa desde logo a falsidade geral do estudar. Em seguida,vem a necessidade de uma concretização quase perversapelo particular: o estudante é obrigado, não a estudar emgeral, mas sim a confrontar-se com uma situação em que,quer queira quer não, o estudar lhe aparece dissociado emcursos especiais, cada qual constituído por disciplinassingulares, por esta ou aquela ciência. E quem poderápretender que um jovem, num certo momento da sua vi-da, possa sentir uma efectiva necessidade por uma ciên-cia determinada inventada um belo dia pelos seus ante-cessores?

Daquilo que, para os criadores da ciência, foi uma ne-cessidade tão autêntica e viva que a ela dedicaram toda asua vida, faz-se agora uma necessidade morta e um falsosaber. Não tenhamos ilusões: com um tal estado de espíri-to, não se pode chegar a saber o saber humano. Estudar é

~ . . .

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pois algo constitutivamente contraditório e falso. O estu-dante é uma falsificação do homem. Ser homem é ser pro-priamente só o que se é autenticamente, por íntima e ine-xorável necessidade. Ser homem não é ser - ou, o que éo mesmo - fazer qualquer coisa, mas ser o que irreme-diavelment~,se é. Há muitos modo$ di~tintose igualmenteautênticos de ser homem. O homem pode ser homem deciência, homem de negócios, homem político, homem re-ligioso porque todas estas coisas são, como veremos, ne-cessidades constitutivas e imediatas da condição humana.Mas, por si mesmo, o homem nunca seria estudante, damesma maneira que, por si mesmo, o homem nunca seriacontribuinte. Tem que pagar contribuições, tem que estu-dar, mas não é, nem contribuinte,nem estudante. Ser estu-dante, tal como ser contribuinte, é algo «artificial» que ohomem se vê obrigado a ser.

Estamos perante uma afirmação que, podendo de inícioser chocante, consubstancia afinal a tragédia constitutivada pedagogia. É porém deste paradoxo tão cruel que, emminha opinião, deve partir a reforma da educação.

Tendo em vista que a actividade, o fazer que a pedago-gia regula e a que chamamos estudar, é, em si mesmo, al-go de humanamente faiso, nunca será de;;ulaissublinharque, mais do que em qualquer outra ordem da vida, é noensino que a falsidade é mais tolerada, constante e habi-tual. Todos sabemos que também há uma falsa justiça, quese cometem abusos nosjulgamentos e nas audiências. Mas,cada um dos que me escuta poderá perceber pela sua pró-pria experiência que nos daríamos por muito contentes se,na realidade do ensino, não existissem mais insuficiências,falsidades e abusos do que os que ocorrem na ordem jurí-dica. Na verdade, o que aí se considera como abuso intole-rável - a saber, que não seja feita justiça - é quase a or-

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dem do dia no ensino: o estudante não estuda e, se estuda,pondo nisso toda a sua boa vontade, não aprende. Claroque, se o estudante não aprende, seja por que razão for, oprofessor não poderá dizer que ensina. No máximo, pode-rá dizer que tenta ensinar mas que não consegue.

. . Entretanto,amontoa-segigantescamente,geração apósgeração, a mole pavorosa dos saberes humanos que o estu-dante tem que assimilar, tem que estudar.Quantomais o sa-ber aumenta, quanto mais se enriquece e especializa, maislongínqua será a possibilidade de que o estudante sinta umanecessidade imediata e autêntica desse saber. Quer isto di-zer que cada vez haverá menor congruênciaentre esse tris-te fazer humano que é estudar e o admirável fazer humanoque é o verdadeiro saber. Trata-se de uma situação que iráaumentar ainda mais a terrível dissociação, iniciada pelomenos há um século, entre a cultura viva, o saber autêntico,e o homem médio. Como a cultura, ou o saber, só tem rea-lidade se responde e satisfaz, em qualquer medida, necessi-dades efectivamente sentidas e, como a forma de transmitira cultura é o estudar, o qual não implica que essas necessi-dades sejam sentidas, o que acontece é que a cultura, ou osaber, vai ficando a pairar no ar, sem raízes de sinceridadeno homem médio, obrigado apenas a ingurgitá-Ia,a engoli--Ia. Introduz-se na mente humana um corpo estranho, umrepertório de ideias mortas, não assimiláveis,ou, o que é omesmo, mortas. Esta cultura sem raÍzesno homem, que nãobrota espontaneamente dele, não é autóctone ou indígena;é antes algo de imposto, extrínseco, estranho, estrangeiro,ininteligível, em suma, irreal. Sob a cultura recebida masnão autenticamente assimilada, o homem ficará intacto,quer dizer, ficará inculto: quer dizer, ficará bárbaro. Quan-do o saber era menor, mais elementar e mais orgânico, eramais fácil poder ser verdadeiramente sentido pelo homem

médio que então o assimilava, o recreava e revitalizavadentro de si. Assim se explica o paradoxo colossal destes'últimos decénios: o facto de um gigantesco progresso dacultura ter produzido um tipo de homem como o actual, in-discutivelmente mais bárbaro que o de há cem anos. Assimse explica também que a aculturaçãoou acumulaçãoda cul-tura esteja a produzir, de forma paradoxal mas automática,uma rebarbarização da humanidade.

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No entanto, como todos compreenderão, não se resolveeste probleITI;adizendo: «Pois bem, se estudar é uma falsi-ficação do homem e, além disso, leva, ou pode levar, a taisconsequências, então que não se estude!». Dizer isto nãoseria resolver o problema, mas antes ignorá-Io de formasimplista. Estudar e ser estudante é sempre, e sobretudohoje, uma necessidade inexorável do homem. Quer queiraquer não, o homem tem que assimilar o saber acumulado,sob pena de sucumbir individual e colectivamente. Se umageração deixasse de estudar, nove décimas da humanidadeactual morreria fuhninantemente. O número de homensque hoje estão vivos só pode subsistir mercê da técnica su-perior de aproveit~m~ntodo ulaneta Que as ~1pnci~~tor-_.. 1.

nam possível. É certo que as técnicas podem ensinar-semecanicamente. Mas, as técnicas vivem do saber e, se es-te não puder ser ensinado, chegará a hora em que tambémas técnicas sucumbirão.

Há pois que estudar! Estudar é, repito, uma necessidadedo homem, ainda que uma necessidade externa, mediata,como o é para mim seguir pela direita se a isso sou obri-gado pelo polícia de trânsito quando sinto necessidade depassear.

Há porém uma diferença essencial entre estas duas ne-cessidadesexternas- o estudare o seguirpeladireita-

100 Ortega y GassetSobre o Estudar e o Estudante 101

e é essa diferença que transforma o estudar num problemasubstancial. Para que a circulação funcione perfeitamente,não é preciso que eu sinta uma necessidade íntima de se-guir pela direita. Basta que, de facto, siga por essa direc-ção, basta que aceite, que finja sentir essa necessidade.Com o estudar, porém, não aconlece o mesmo: para que euentenda verdadeiramente uma ciência não basta que finjaexistir em mim a necessidade dela, ou, o que é a mesmacoisa, não basta que tenha vontade de a aceitar; numa pa-lavra, não basta que estude. Para além disso, é necessárioque eu sinta autenticamente necessidade dessa ciência, queas suas questões me preocupem espontânea e verdadeira-mente. Só assim entenderei as soluções que ela dá, ou pre-tende dar, a essas questões. Ninguém pode entender umaresposta sem previamente ter sentido a pergunta a que elaresponde.

O estudar é pois diferente do caminharpela direita. Nes-te caso, é suficiente que eu desempenhe bem a minha obri-gação para que o efeito desejado se verifique.Naquele,não.Não basta que eu seja um bom estudante para que consigaassimilar a ciência. O estudar é, portanto, um fazer humanoque se nega a si mesmo, que é simultane~m~nte_necessárioe inútil. Há que estudar para alcançar um certo fim, mas,afinal, esse fim não se alcança desse modo. É justamentepor isso, porque as duas coisas são simultaneamenteverda-de - a necessidade e a inutilidade - que o estudar é umproblema. Um problema é sempre uma contradição que ainteligência encontra à sua frente, que a atrai para duas di-recções opostas e que ameaça levá-Ia a perder-se.

A solução para um problema tão cruel e dilacerante de-corre de tudo o que se disse atrás. Ela não consiste em de-cretar que não se estude, mas em reformar profundamenteesse fazer humano que é estudar e, consequentemente, o

ser do estudante. Para isso, é necessário voltar o ensino doavesso e dizer: ensinar é primária e fundamentalmente en-.sinar a necessidade de uma ciência e não ensinar uma ciên-cia cuja necessidade seja impossível fazer sentir ao estu-dante.

APÊNDICE3

Mas, talvez que alguns de vós estejam neste momento aperguntar: que tem tudo isto a ver com um curso sobre Me-tafísica? Como disse logo de início, espero que durante es-te curso venham a entender, não só que o que atrás se dis-se tem a ver com a Metafísica, como também que já esta-mos nela. Para já, vou dar uma justificação mais clara dofacto de assim ter começado, antecipando para tal uma pri-meira definição de Metafísica, tão modesta que ninguémse atreva a pô-Ia em dúvida. Digamos que a Metafísica éalguma coisa que o homem faz, ou, pelo menos, que algunshomens fazem. Veremos,daqui a pouco, que todos a fazemainda que disso se não dêem conta. Mas, esta definição nãoé suficiente porque o homem faz muitas coisas e não ape-nas Metafísica. Mais ainda, o homem é um incessante, ini-ludível e puro fazer. O homem faz agricultura, faz política,faz indústria, faz versos, faz ciência, faz paciência, e mes-mo quando parece que nada faz, espera, e esperar - a vos-sa experiência o confirmará - é por vezes um terrível eangustioso fazer: é fazer tempo. E aquele que nem sequerespera, aquele que não faz verdadeiramente nada, o fait--néant4,esse, faz o nada, quer dizer, sustém e suporta o na-

3 Cf. atrás, nota I.

4 Em francêsno original(N.T.)

102 Ortega y Gasset Sobre o Estudar e o Estudante 103

da de si mesmo, o terrível vazio vital a que chamamosaborrecimento, spleen5, desespero. Quem não espera, de-sespera. Trata-se então de um fazer horrível, que implicaum duro esforço, um dos esforços que o homem menosconsegue aguentar e que o pode levar a fazer o nada efec-tivo e absoluto - aniquilar-se, suicidar-se.

Entre tantos e tão variados fazeres humanos, como reco-nhecer então o fazer peculiar da Metafísica? Para isso, te-rei que antecipar uma segunda definição, mais determina-da: o homem faz -Metafísicaquando busca uma orientaçãoradical para a sua situação.

Mas, qual é a situação do homem? O homem encontra--se, não em uma, mas em muitas situações distintas. Porexemplo, cada um de vós, neste momento, encontra-se nu-ma situação que, por acaso, consiste em estar a começar aestudar Metafísica, tal como, há duas horas atrás, se en-contrava noutra situação e, amanhã, se encontrará numaoutra. Ora bem, todas essas situações, por diferentes quesejam, coincidem em ser parcelas da vossa vida. Quero eudizer com isto que a vida do homem se compõe de situa-ções, assim como a matéria se compõe de átomos. Sempreque se vive, vive-se numa determinada situação. Mas, éeviàente que nessas situações vitais, pcrmuito àh1:inlasque sejam, haverá uma estrutura elementar, fundamental,que faz com todas elas sejam situações do homem. Essa es-trutura genérica será aquilo que elas têm essencialmente devida humana. Dito de outro modo, quaisquer que sejam osingredientes variáveis que formam a situação em que meencontro, é evidente que essa situação é um viver. Pode-mos pois concluir: a situação do homem é a vida, é viver.

Dizemos que a Metafísica consiste na procura pelo ho-mem de uma orientação radical para a sua situação. Mas,isto supõe que a situação do homem - isto é, a sua vida._ consiste numa radical desorientação. Não que o ho-mem, na sua vida, se encontre desorientado de forma par-cial, nest~ QUnaquele aspecto, nos seus negócios, no seucaminhar pela paisagem, na política. Aqúele que se deso-rienta no meio de um campo, procura um mapa, uma bús-sola, ou pergunta a um transeunte, e isto basta para seorientar. A nossa definição pressupõe, pelo contrário, umadesorientação total, radical, quer dizer, não que aconteçaao homem desorientar-se, perder-se na sua vida, mas que asituação do homem, a vida, é desorientação, é estar perdi-do - e, por isso - existe a Metafísica.

5 Em inglêsno original.(N.T.)