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EDITORIAL 4
ENTREVISTA
MARX, DIALÉTICA, CAPITAL 8 Com Lucio Colletti, por Perry Anderson
ARTIGOS
DA METAFÍSICA DO CAPITAL 28 Revisitando Lucio CollettiNuno Miguel Cardoso Machado
DOIS ROSTOS OU UM VASO 69 A paralaxe marxista como um problema em Zizek Joelton Nascimento
ESCRAVOS E SERVOS DO CAPITAL 85Uma análise sócio-histórica de duas formações periféricasRodrigo Campos Castro
NOS 50 ANOS DE ONE-DIMENSIONAL MAN 120 Marcuse e o espectro da recusa intempestivaCláudio R. Duarte
DÉFICIT SOCIOLÓGICO OU NEGAÇÃO DETERMINADA? 130
Diferença entre as Teorias Críticas de ontem e hoje Raphael F. Alvarenga
EM BUSCA DO SUJEITO PERDIDO 162 A superação do trabalho no novo livro de John HollowayDaniel Cunha
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Editorial
Caros leitores,
Chegamos à nossa revista no 10, ou décimo primeiro volume se considerarmos a
edição especial sobre os Protestos de Junho. Não podemos deixar de constatar que há
um acúmulo em nossas análises, que se expressa também na qualidade das
contribuições externas. Disso resulta um conjunto de textos que configura um mosaico
espelhado de reflexos e contradições, sob o fio comum da crítica categorial marxiana. É
isso que retrata a capa de Felipe Drago.
A revista está imersa no espírito do tempo, que é um espírito de crise. Nessa
penumbra social, nos esforçamos para encontrar o fio da crítica emancipatória. Esta
edição se caracteriza pelo peso destacado da crítica categorial do capitalismo, com vários
artigos que se debruçam sobre autores marxianos, buscando suas potencialidades e
inconsistências. Percebe-se também um esforço conceitual em relação ao antagonismo
social, suas formas e tendências imanentes. Também está presente a já tradicional
crítica literária materialista.
A revista começa com uma entrevista que LUCIO COLLETTI concedeu a Perry Anderson em 1974, inédita em nossa língua. Colletti foi um dos precursores da teoria
crítica do valor, e é pouco conhecido no Brasil. Na sequência, NUNO MACHADO, em
seu texto Da metafísica do capital traça um panorama histórico-conceitual da obra de
Colletti. Destaca-se a análise do capitalismo como “metafísica real”, a partir do
confronto de Marx, Hegel e Kant.
Em seguida, em Dois rostos ou um vaso JOELTON NASCIMENTO retoma um
problema proposto pelo filósofo e crítico cultural esloveno Slavoj !i"ek em torno dateoria crítica do capitalismo. O artigo defende a tese de que o problema da paralaxe
entre a crítica da economia política e a analítica dos antagonismos sociais permanece
aberto e situa a Nova Crítica do Valor no interior desta problemática. No ensejo, faz uma
crítica do encaminhamento "i"ekiano à questão.
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Na sequência, em Escravos e servos do capital , RODRIGO CAMPOS
CASTRO mostra que o capital fez nascer não apenas o trabalho da mão de obra livre,
mas recuperou redefinindo-as formas arcaicas de trabalho nas suas periferias da
escravidão e da servidão redivivas. Nessas, o trabalho de atividade supostamente
emancipadora tornou-se ou uma praga infernal ou um chamado divino. Confrontando
uma configuração com outra, o texto busca esclarecer os motivos e as consequências de
longo prazo para esse circo de paradoxos.
O primeiro crítico resenhado nesta edição é Herbert Marcuse, aqui em
comemoração ao meio século de publicação de One-Dimensional Man (1964), um
livro traduzido no Brasil como A ideologia da sociedade industrial . CLÁUDIO R.
DUARTE apresenta a sua contribuição como um convite à releitura do filósofo
frankfurtiano, em Nos 50 anos de ‘One-Dimensional Man’: Marcuse e a recusaintempestiva. Segundo o autor, o livro anuncia vários temas de uma crítica radical da
sociedade do trabalho e do estado de exceção permanente, da racionalidade tecnológica
do capital e da ideologia característica que cimenta o todo. Ao contrário do que se
afirma, a sociedade unidimensional para Marcuse não elimina as contradições e
irracionalidades do sistema, que, por isso mesmo, incitam à Grande Recusa inaudita.
Seguindo com os frankfurtianos, em Déficit sociológico ou negação
determinada? , RAPHAEL F. ALVARENGA contesta a versão consagrada de que aperspectiva normativa da Nova Teoria Crítica (mais precisamente na figura de Axel
Honneth) teria desbancado a démarche crítico-dialética da primeira Escola de
Frankfurt (T. W. Adorno e cia.).
DANIEL CUNHA , na sequência, resenha o novo livro de John Holloway,
Fissurar o capitalismo. O autor procura mostrar os eixos de sua teoria, seus pontos
fortes e limitações. Como diz o título, Em busca do sujeito perdido, o livro é apresentado
como uma tentativa de reinterpretação de um conceito central na obra marxiana – oduplo caráter do trabalho – para redefinir o sujeito. O confronto com outros autores da
crítica do valor problematiza questões teóricas importantes.
Apresentamos a seguir a tradução de um texto de NORBERT TRENKLE
(Krisis), As sutilezas metafísicas da luta de classes. O autor procura demonstrar, a
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partir da análise da teoria lukacsiana da reificação e do proletariado, que existem
pressupostos metafísicos implícitos na teorização da luta de classes, que se prolonga em
autores como Holloway e Negri/Hardt.
Em seguida, a obra de David Harvey é analisada por MAURÍLIO LIMA
BOTELHO, em seu Crise do capitalismo e “mundo do trabalho” em David Harvey. O
autor critica os momentos subjetivistas da teoria de Harvey, em especial a sua noção do
neoliberalismo como um projeto de “restauração do poder de classe”.
Seguem duas resenhas de livros de Anselm Jappe a partir de pontos de vista
diversos. Em A forma e o fim, PEDRO EDUARDO ZINI DAVOGLIO argumenta
que Jappe interdita com sucesso as receitas tradicionais de superação do capitalismo,
mas critica as posições do autor sobre a luta de classes, o colapso do capitalismo e a
autonomia da teoria.
Por outro lado, JOELTON NASCIMENTO, em Sobre a crítica do capitalismo
em decomposição, argumenta que a recepção da teoria anticapitalista avançada por
Jappe entre teóricos que operam com categorias tradicionais é marcada pelo “choque”
ou “trauma”. O choque resulta do fato de que a crítica de Jappe solapa os alicerces
categoriais das teorias tradicionais, e desvela o seu limite para compreender a dinâmica
social do capitalismo em crise.
Na sequência temos o ensaio O ovo da serpente nacional , de ALEXANDRE
VASILENSKAS, que busca interpretar o crescimento da extrema direita no país,
determinando suas causas históricas e tendências imanentes. O autor destaca a
ascensão do irracionalismo social, e aponta como decisivo para esse processo a
capitulação política do Partido dos Trabalhadores.
Em mais uma resenha, DANIEL CUNHA analisa o recém lançado livro de Chris
Carlsson, Nowtopia. Em Uma “classe média” bifronte? ele procura demonstrar que há
uma lacuna entre o que o livro pretende ser – uma análise da “recomposição de classe”
da “aristocracia operária” do capitalismo avançado – e aquilo no que algumas limitações
teóricas fazem com que ele recaia: uma ideologia de “classe média”.
Temos então dois textos que emergem da reflexão sobre as lutas sociais recentes
no país. Em “Os vândalos ao poder” , ALEX MARTINS MORAES interpreta o
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movimento ao longo de 2012 e 2013 em Porto Alegre. Para isso, o autor utiliza os
conceitos de Jetztzeit (tempo-agora) de Benjamin e de “violação do direito” de Lukács.
Em seguida, o CÍRCULO DE ESTUDOS DA IDEIA E DA IDEOLOGIA faz a
pergunta: Um partido é uma parte do quê? Os autores argumentam que as recentes
manifestações de massa tornaram visível a crise da forma-partido, e sustentam que ela
abre espaço para que se pense um outro uso para essa forma.
A revista encerra com crítica literária. Em ‘The Turn of the Screw’: o duplo como
fantasmagoria social , CLÁUDIO R. DUARTE discute a famosa novela de James
através da análise da configuração historicamente específica do duplo. O artigo mostra
que a dupla de fantasmas que aparecem é a revelação de uma verdade inconsciente de
classe, ligada à forma de um opressivo contrato entre capital e trabalho.
Finalmente, Sartre em busca de Flaubert é a tradução de um texto de FREDRIC
JAMESON, do início dos anos 1980, que visava a apresentar ao público estadunidense
O idiota da família, grande obra de Jean-Paul Sartre, cujo primeiro volume em
português acaba de sair no Brasil, pela LP&M.
Esperamos que a revista propicie material para reflexão crítica, e lembramos que
estamos abertos a contribuições e comentários. Até a próxima edição!
Os editores
Março de 2014
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Marx, dialética, capital
Entrevista de Lucio Colletti a Perry Anderson
Nota editorial. A entrevista a seguir foi concedida em 1974. Lucio Colletti (1924-2001)foi um importante teórico marxista italiano que investigou a “metafísica do capital”, e as
relações entre as obras de Marx, Hegel e Kant. Ele pode ser considerado um dos
precursores da teoria crítica do valor. Aqui a entrevista foi resumida, com ênfase nos
seus aspectos teóricos. A obra de Colletti é discutida no texto de Nuno Machado nesta
edição da Sinal de Menos.1
Perry Anderson >> Você poderia fazer um breve resumo de suas origens
intelectuais, e de sua entrada na vida política?
Lucio Colletti >> Minhas origens intelectuais são muito parecidas com aquelas de
quase todos os intelectuais italianos de minha geração. O seu ponto de partida durante
os últimos anos do fascismo foi a filosofia neo-idealista de Benedetto Croce e Giovanni
Gentile. Escrevi o meu doutorado em 1949 sobre a lógica de Croce, mas já então eu era
crítico do crocismo. Então, entre 1949 e 1950, minha decisão de entrar no Partido
Comunista Italiano gradualmente amadureceu. Devo acrescentar que essa decisão foisob vários aspectos muito difícil, e que – ainda que isso talvez soe inacreditável hoje – o
estudo de Gramsci não foi uma influência significativa. Pelo contrário, foi a minha
leitura de certos textos de Lênin que foram determinantes para a minha adesão ao PCI:
em particular, e apesar de todas as reservas que isso possa inspirar e que eu compartilho
hoje, o seu Materialismo e empiriocriticismo. Ao mesmo tempo, a minha entrada no
Partido Comunista foi precipitada pelo estouro da Guerra da Coreia, ainda que isso
tenha sido acompanhado pela firme convicção de que foi a Coreia do Norte que lançou
um ataque contra o Sul. Não digo isso para adornar-me de virgindade política a
posteriori , mas porque é a verdade. As minhas atitudes mesmo naquele período eram de
profunda aversão ao estalinismo: mas naquele momento o mundo estava dividido em
dois, e era necessário escolher um lado ou outro. Então, ainda que isso tenha resultado
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em uma violência contra mim mesmo, optei pela filiação ao PCI – com todas as
profundas resistências de formação [ formation] e cultura que um intelectual pequeno-
burguês daquela época na Itália poderia sentir em relação ao estalinismo. Você deve
lembrar que passamos pela experiência do fascismo, de maneira que toda a parafernália
de unanimidade orquestrada, aplausos ritmados e liderança carismática do movimento
internacional dos trabalhadores eram espontaneamente repugnantes para qualquer um
com a minha experiência [background ]. Não obstante, apesar disso, por causa do
conflito na Coreia e da cisão do mundo em dois blocos, optei pela entrada no PCI. A
esquerda do PSI não fornecia nenhuma alternativa real, porque naquele tempo ela era
essencialmente uma forma subordinada da militância comunista, ligada organicamente
às políticas do PCI. É importante enfatizar o relativo atraso da minha entrada no Partido
– eu tinha 25 ou 26 anos – e a ausência das ilusões mais tradicionais a esse respeito.Pois a morte de Stalin em 1953 teve em mim um efeito diametralmente oposto àquele
que teve na maior parte dos intelectuais comunistas ou pró-comunistas. Eles a sentiram
como um desastre, o desaparecimento de uma espécie de divindade, enquanto para mim
aquilo foi uma emancipação. Isso também explica a minha atitude em relação ao
Vigésimo Congresso do CPSU em 1956, e em particular em relação ao Discurso Secreto
de Krushev. Enquanto a maior parte de meus contemporâneos reagiu à crise do
estalinismo como uma catástrofe pessoal, o colapso de suas próprias convicções e
certezas, eu experimentei a denúncia de Krushev contra Stalin como uma autêntica
liberação. Parecia-me que finalmente o comunismo poderia tornar-se o que eu sempre
acreditei que ele deveria tornar-se – um movimento histórico cuja aceitação não
envolvesse o sacrifício da própria razão.
PA >> Qual foi a sua experiência pessoal no PCI, como um jovem militante e filósofo,
de 1950 a 1956?
LC >> Minha filiação ao Partido foi uma experiência extremamente importante e
positiva para mim. Posso dizer que se eu vivesse novamente, eu repetiria a experiência
tanto da minha entrada quanto da minha saída. Não me arrependo nem da decisão de
me filiar e nem de abandonar o Partido. Ambas foram decisivas para o meu
desenvolvimento. A primeira importância da militância no PCI repousa essencialmente
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nisso: o Partido era o lugar no qual um homem como eu, de formação [background ]
completamente intelectual, tomou contato real, pela primeira vez, com pessoas de
outros grupos sociais, que de outra maneira eu nunca teria encontrado, exceto em
bondes ou trens. Em segundo lugar, a atividade política no Partido me permitiu superar
certas formas de intelectualismo, e através disso entender melhor os problemas da
relação entre teoria e prática em um movimento político. O meu próprio papel foi o de
um simples militante da base [rank-and-file militant ]. A partir de 1955, porém, me
envolvi em disputas internas sobre política cultural no PCI. Naquele tempo, a orientação
oficial do Partido era centrada na interpretação do marxismo como um “historicismo
absoluto”, uma fórmula que tinha um sentido muito preciso – ela significava tratar o
marxismo como se ele fosse a continuação e o desenvolvimento do historicismo do
próprio Benedetto Croce. Foi com esse enfoque que o Partido também buscouapresentar a obra de Gramsci. A versão de Togliatti do pensamento de Gramsci não era,
é claro, acurada. Mas o fato é que os escritos de Gramsci foram utilizados pelo marxismo
de então como a realização e conclusão da tradição do idealismo hegeliano italiano,
particularmente o de Croce. O objetivo das disputas internas nas quais me engajei era,
em contraste, dar prioridade ao conhecimento e estudo da obra do próprio Marx. Foi
nesse contexto que a minha relação com Galvano Della Volpe, que naquele tempo estava
efetivamente no ostracismo no PCI, tornou-se muito importante para mim.2 (...)
(...)
PA >> A maior influência inicial em sua obra filosófica foi Galvano Della Volpe, com a
sua preocupação com a natureza das leis científicas, a sua noção do papel das
abstrações específico-determinadas na cognição, e a sua ênfase na precisão filológica
no estudo de Marx. Qual é a sua avaliação de Della Volpe hoje?
LC >> A lição essencial que aprendi do contato com os escritos de Della Volpe foi anecessidade de uma relação absolutamente séria com a obra de Marx – baseada no
conhecimento direto e no estudo real de seus textos originais. Isso pode parecer
paradoxal, mas é importante lembrar que a penetração do marxismo na Itália na
2 Para uma introdução à obra de Della Volpe, ver New Left Review 59, Janeiro-Fevereiro 1970, pp. 97-100.
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primeira década do pós-guerra, de 1945 a 1955, foi intelectual e teoricamente muito
superficial e exígua. Deixe-me explicar. O marxismo oficial daquela época, que
permanece hoje, era o materialismo dialético ao estilo soviético. Bem, Togliatti era culto
e inteligente o suficiente para ter consciência de que esse compêndio estalinista era
flagrantemente cru e dogmático para exercer muita atração sobre os intelectuais
italianos cuja adesão ao PCI ele ansiava obter. Consequentemente, havia poucos
materialistas dialéticos ortodoxos na Itália: a caridade compatriota me proíbe de
mencionar nomes. Togliatti procurou em sua política cultural trocar a ortodoxia
soviética por uma interpretação do marxismo como o herdeiro nacional do historicismo
italiano de Vico e Croce – em outras palavras, uma versão do marxismo que não exigia
nenhuma ruptura real desses intelectuais com as suas posições anteriores. A maior parte
delas era croceana por formação. O Partido simplesmente pediu que eles dessem umpequeno passo, adotar um historicismo que integrava os elementos básicos da filosofia
de Croce, repudiando apenas as proposições mais patentemente idealistas do crocismo.
O resultado foi que até 1955-6 a obra do próprio Marx, sobretudo O capital , tinha
difusão mínima no ambiente cultural da esquerda italiana. Foi nessas condições que
Della Volpe veio a simbolizar um compromisso com o estudo rigoroso do marxismo, lá
onde ele se encontra realmente, ou seja, nos próprios escritos de Marx. Para Della
Volpe, a Crítica da filosofia do direito de Hegel do jovem Marx era um ponto de partida
central. Mas isso, naturalmente, representava apenas o início de um conhecimento
direto da obra de Marx, que necessariamente teve como sua conclusão o estudo e análise
intensivos do próprio O capital .
(...)
PA >> Voltando a atenção para os seus escritos filosóficos mais tardios, neles você
expressou um respeito e admiração cada vez mais marcantes por Kant – uma preferência incomum entre os marxistas contemporâneos. A sua proposição básica
para Kant é que ele afirmou com a máxima força a primazia e irredutibilidade da
realidade em relação ao pensamento conceitual, e a divisão absoluta entre o que ele
chamou de “oposições reais” e “oposições lógicas”. Você argumenta, a partir dessas
teses, que Kant estava muito mais próximo do materialismo do que Hegel, cujo
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objetivo filosófico básico você interpreta como a absorção do real pelo conceitual, e
com isso a aniquilação do finito e da própria matéria. A sua reavaliação de Kant é
portanto complementada pela desvalorização de Hegel, a quem você critica
implacavelmente como um filósofo essencialmente cristão e religioso – ao contrário de
posteriores concepções marxistas equivocadas de seu pensamento. A questão óbvia
que surge aqui é: por que você atribui tal privilégio a Kant? Afinal de contas, se o
critério da proximidade com o materialismo é o reconhecimento da irredutibilidade da
realidade ao pensamento, a maior parte dos filósofos franceses do Iluminismo, La
Mettrie ou Holbach, por exemplo, ou mesmo, antes disso, Locke, na Inglaterra, foram
muito mais inequivocamente “materialistas” do que Kant. Ao mesmo tempo, você
denuncia as implicações religiosas de Hegel – mas Kant também foi um filósofo
profundamente religioso (para não falar de Rousseau, a quem você admira em outrocontexto), mas você parece manter um silêncio obsequioso em relação à sua
religiosidade. Como você justifica a sua excepcional estima por Kant?
LC >> As críticas que você acaba de fazer foram levantadas contra mim muitas vezes na
Itália. O primeiro ponto a estabelecer é a diferença entre o Kant da Crítica da razão
pura e o Kant da Crítica da razão prática...
PA >> Esse não é o mesmo tipo de distinção que comumente se faz entre Hegel em
Jena e Hegel após Jena? Qual deles você rejeita?
LC >> Não, porque a diferença entre conhecimento e moralidade é essencial para o
próprio Kant. Ele teoriza explicitamente a diferença entre a esfera ética e a esfera
cognitivo-científica. Não sei dizer se Kant é importante para o Marxismo. Mas não há
nenhuma dúvida quanto à sua importância para a epistemologia da ciência. Você
destacou que La Mettrie, Holbach ou Helvetius eram materialistas, enquanto Kant
fundamentalmente não o era. Isso é perfeitamente verdadeiro. Mas de um ponto de vista estritamente epistemológico, há apenas um grande pensador moderno que pode
nos ajudar a construir uma teoria materialista do conhecimento – Immanuel Kant.
Claro, estou perfeitamente consciente de que Kant era um cristão piedoso. Mas,
enquanto na filosofia de Hegel não há separação entre o domínio da ética e da política e
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o domínio da lógica, porque os dois estão integralmente unidos em um sistema único,
em Kant há uma distinção radical entre o domínio do conhecimento e o domínio da
moralidade, que o próprio Kant enfatizava. Portanto, podemos deixar a moralidade
kantiana de lado aqui. O que importa é ver que a Crítica da razão pura é uma tentativa
de Kant de chegar a uma compreensão e justificação filosófica da física de Newton: a
obra é essencialmente uma investigação sobre as condições que tornam possível o
conhecimento verdadeiro – que para Kant era representado pela ciência newtoniana.
Naturalmente, há muitas sombras e contradições na obra epistemológica de Kant, com
as quais estou perfeitamente familiarizado: usei apenas alguns aspectos dela. Mas há
um ponto básico que deve ser sempre lembrado, não obstante. Enquanto Hegel morreu
em Berlim ministrando uma série de palestras sobre as provas da existência de Deus, e
reafirmando a validade do argumento ontológico (que um século mais tarde ainda erasustentado por Croce), Kant – apesar de suas contradições – desde o seu texto de 1763
sobre o Beweisgrund 3 até a Crítica da razão pura, nunca deixou de criticar o
argumento ontológico. A sua rejeição era fundada no abismo qualitativo (ou, como diz
Kant, “transcendental”) entre as condições do ser e as condições do pensamento – ratio
essendi e ratio cognoscendi . É essa posição que fornece um ponto de partida
fundamental para qualquer gnosiologia materialista, e para qualquer defesa da ciência
contra a metafísica. O problema de uma interpretação integral de Kant é muito
complexo, e não podemos resolvê-lo em uma entrevista. Destaquei e enfatizei um
aspecto particular de sua obra – o Kant que foi crítico de Leibniz, e o ataque [scourge] à
prova ontológica. A esse respeito, ainda que Kant não seja um materialista, a sua
contribuição para a teoria do conhecimento não pode ser comparada àquela de La
Mettrie ou Helvetius.
Portanto, meu interesse em Kant não tem nada em comum com aquele dos revisionistas
alemães da Segunda Internacional, Eduard Bernstein ou Conrad Schmidt, que foram
atraídos pela ética de Kant. Eu tento, pelo contrário, revalorizar a contribuição de Kant
para a epistemologia, contra o legado de Hegel. De fato, a minha interpretação de Kant é
precisamente aquela do próprio Hegel, exceto que enquanto Hegel rejeitou a posição de
Kant, eu a defendi. Para Hegel, Kant era essencialmente um empirista. Na sua
3 Colletti se refere à obra de Kant A única base possível para uma prova da existência de Deus.
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introdução à Encyclopaedia, Hegel classifica Kant junto com Hume como exemplos da
“segunda relação do pensamento com a objetividade”. Não é necessário lembrar a
estatura de David Hume na história da filosofia da ciência. Pode-se dizer, de fato, que há
duas tradições principais na filosofia ocidental a esse respeito: uma que descende de
Spinoza e Hegel, e outra de Hume e Kant. Essas duas linhas de desenvolvimento são
profundamente divergentes. Para qualquer teoria que tome a ciência como a única
forma de conhecimento real – que é falsificável, como diria Popper – não pode haver
dúvida de que a tradição de Hume-Kant deve ter prioridade e preferência sobre a de
Spinoza-Hegel.
Finalmente, acredito que a minha tentativa de separar o Kant da Crítica da razão pura
do Kant da Crítica da razão prática tem uma base real na história. Pois o pensamento e
a civilização burgueses tiveram sucesso na fundação das ciências da natureza; enquantoa cultura burguesa foi incapaz de gerar conhecimento científico da sociedade e da
moralidade. É claro que as ciências naturais foram condicionadas pelo contexto
histórico burguês no qual elas se desenvolveram – um processo que em si levanta
muitos problemas intrincados. Mas a não ser que aceitemos o materialismo dialético e
as suas fantasias de uma biologia ou física “proletária”, temos que, não obstante,
reconhecer a validade das ciências da natureza produzidas pela civilização burguesa
desde a Renascença. Mas os discursos burgueses nas ciências sociais não impõe essa validade: nós obviamente os rejeitamos. É essa discrepância entre os dois campos que se
reflete objetivamente na divisão interna da filosofia kantiana entre a sua epistemologia e
a sua ética, a sua crítica da razão pura e da razão prática.
PA >> Mas há tal separação total entre os dois? Os marxistas tradicionalmente
consideram a noção kantiana da coisa-em-si – Ding-an-sich – como o signo de uma
infiltração religiosa diretamente em sua teoria epistemológica, certamente?LC >> Há um subtexto religioso na noção de coisa-em-si, mas esta é a sua dimensão
mais superficial. Na realidade, o conceito tem um significado na obra de Kant que os
marxistas nunca quiseram ver, mas que Cassirer – cuja interpretação geral de Kant,
baseada em cuidadosos estudos textuais, tem a minha considerável simpatia –
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corretamente enfatizou. Quando Kant declara que a coisa-em-si é incognoscível, um
sentido (se não o único) do seu argumento é que a coisa-em-si não é de forma alguma
um verdadeiro de cognição, mas um objeto fictício, que não é nada mais do que uma
substanciação ou hipostasiação de funções lógicas, transformada em essências reais. Em
outras palavras, a coisa-em-si é incognoscível porque ela representa o conhecimento
falso da velha metafísica. Esse não é o único sentido do conceito na obra de Kant, mas é
um dos principais, e é precisamente isso que nunca foi percebido pela leitura
completamente absurda de Kant que prevaleceu entre marxistas, que sempre reduziram
a noção de coisa-em-si a um mero agnosticismo. Mas quando Kant afirma que ela é um
objeto que não pode ser conhecido, ele quer dizer que ela é o falso objeto “absoluto” da
velha metafísica racionalista de Descartes, Spinoza e Leibniz; e quando Hegel anuncia
que a coisa-em-si pode ser conhecida, o que ele está de fato fazendo é restaurar a velhametafísica pré-kantiana.
PA >> A sua obra frequentemente parece definir o materialismo essencialmente como
um reconhecimento da existência real do mundo externo, independente do sujeito
cognoscente [knowing subject]. Mas o materialismo não significou tradicionalmente
mais do que isso, tanto para o marxismo como para a filosofia clássica – uma
concepção específica do próprio sujeito do conhecimento? Na Itália, por exemplo, você foi censurado por Sebastiano Timpanaro por ignorar a “fisicalidade” do sujeito
cognoscente e os seus conceitos: ele o acusou, de fato, de reduzir o materialismo a
realismo, devido ao seu silêncio sobre esse último ponto.4 Você aceitaria essa crítica?
LC >> Não, em minha opinião o argumento de Timpanaro é completamente
equivocado. Por várias razões. Em primeiro lugar, a minha preocupação com o
materialismo era acima de tudo apenas na gnosiologia. Bem, por um lado, não é
verdade que um materialismo gnosiológico pode ser reduzido meramente aoreconhecimento da realidade e da independência do mundo externo. Essa é,
evidentemente, uma tese fundamental, mas ela por sua vez fornece a base para a
4 A crítica de Timpanaro a Colletti foi desenvolvida em um ensaio chamado Materialismo, libero arbitrio,incluído no volume Sul Materialismo , Pisa. Para as posições filosóficas gerais de Timpanaro, ver o seuensaio Considerations on Materialism, New Left Review 85, Maio-Junho 1974.
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construção da lógica experimental, e a explicação do conhecimento científico. Os
experimentos científicos significam que as ideias são apenas hipóteses. Tais hipóteses
devem ser testadas, verificadas ou falsificadas, confrontando-as com dados da
observação, que têm natureza diferente de qualquer noção lógica. Se essa diversidade
dos conteúdos materiais do conhecimento é negada, as hipóteses se tornam hipóstases
ou essências ideais, e os dados sensíveis e empíricos se tornam mais uma vez resíduos
puramente negativos, como em Leibniz ou Hegel. Por outro lado, os escritos de
Timpanaro revelam um tipo de naturalismo que permanece um tanto ingênuo, com a
sua insistência unilateral [single-minded ] na pura fisicalidade do homem como a base
principal para um materialismo filosófico. Evidentemente, quando se reconhece a
existência do mundo natural, não pode haver discordância de que o homem também é
um ente natural. O homem como um ser físico-natural é um animal. Mas essa espécienatural particular se distingue de todas as outras pela sua criação de relações sociais.
Para usar a fórmula de Aristóteles: o homem é um zoon politikon, um animal político.
Os homens vivem em sociedade e têm uma história, e é esse nível de sua existência que é
essencial para o materialismo histórico. A especificidade do homem como ser natural se
refere à natureza na medida em que ele se refere a outros homens, e se refere a outros
homens na medida em que se refere à natureza. Essa relação dupla é precisamente o que
se apreende no conceito de Marx de “relações sociais de produção”. Para Marx, não
pode haver produção – ou seja, relações entre os homens e a natureza – fora ou
apartada das relações sociais, ou seja, relações com outros homens; e não pode haver
relações entre homens que não sejam função de relações entre os homens e a natureza,
na produção. A peculiaridade da “natureza” no homem é encontrar a sua expressão em
“sociedade”. Do contrário, qualquer discurso sobre o homem poderia igualmente ser
aplicado às formigas ou às abelhas. A característica distintiva do homem como uma
espécie físico-natural é a sua geração de relações sociais de produção, ao invés de
colméias ou teias de aranha. Está na natureza do homem ser um sujeito histórico-social.
PA >> No campo do materialismo histórico foi, é claro, Engels que classicamente
insistiu mais sobre a estrutura física do homem, e sobre as relações entre o homem e a
natureza, em seus escritos tardios. Você tendeu a contrapor Marx contra Engels de
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uma maneira muito radical em sua obra. Por exemplo, você atribui toda a
responsabilidade pela noção de “materialismo dialético” a Engels. Em outro lugar,
você sugere que foi Engels que introduziu os primeiros elementos perniciosos de
fatalismo político no marxismo, na Segunda Internacional. Contrastando com isso,
você absolve Marx de todo erro em qualquer dessas direções. De fato, em uma
passagem você chegou a falar sobre “o abismo entre o rigor e a complexidade que
caracteriza cada página de Marx e a vulgarização popular e às vezes diletantismo das
obras de Engels”. 5 Você realmente manteria uma formulação como essa hoje? Marx,
afinal de contas, não apenas leu e aprovou, mas colaborou com o Anti-Dühring; e em
suas introduções de O capital, há certamente colocações que implicam um fatalismo e
mecanicismo pelo menos tão equivocados quanto qualquer coisa no Engels tardio.
Acima de tudo, uma polarização desse tipo, excessivamente dramática, entre Marx e Engels, não contém o grave perigo de não apenas às vezes criticar Engels
injustamente, mas também de criar, por contraste, uma espécie de zona sagrada em
torno de Marx, que de forma correspondente se torna à prova de crítica?
LC >> Concordo absolutamente com o seu último comentário sobre a criação de uma
zona sagrada em torno de Marx. Você não deve esquecer que a passagem citada foi
escrita há 17 anos. A minha visão sobre a relação entre Marx e Engels é agora muito
menos rígida e com mais nuances, no sentido de que percebi que também em Marx hááreas críticas de incerteza e confusão sobre a dialética. Estou no momento preparando
um estudo que lidará com essa questão. Portanto, eu aceito integralmente a sua objeção:
é vergonhoso conferir uma aura sagrada a qualquer pensador, inclusive Marx. Hoje eu
rejeito totalmente esse tipo de atitude, mas admito que posso tê-la encorajado no
passado. Isso é uma autocrítica. Dito isso, porém, continuo mantendo que a imagem
tradicional dos gêmeos teóricos que presidem o nascimento do movimento operário é
infantil e absurda. Os fatos, afinal de contas, falam por si mesmos. Todos sabem que
Marx passou grande parte de sua vida estudando no Museu Britânico, enquanto Engels
estava trabalhando em uma tecelagem em Manchester. Almas gêmeas são milagres que
5 Essa passagem está na longa introdução que Colletti escreveu para uma edição dos Cadernos filosóficosde Lênin em 1958. A Introdução foi então reimpressa uma década mais tarde como a primeira parte do volume italiano Il Marxismo e Hegel , Bari, 1969. A edição inglesa de Marxism and Hegel (NLB 1973) éuma tradução da segunda parte do volume italiano, que foi escrita como um livro à parte por Colletti em1969. A passagem acima se encontra em Il Marxismo e Hegel , p. 97.
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não existem no mundo real; duas mentes nunca pensamente exatamente da mesma
maneira. As diferenças intelectuais entre Marx e Engels são evidentes, e foram
discutidas por muitos autores além de mim: Alfred Schmidt, George Lichtheim ou
Sidney Hook quando ainda era marxista, entre outros. Então, também, não há malícia
histórica ao lembrar as cartas que Marx escreveu contra Engels em seu tempo de vida, e
que foram destruídas pela sua família após a sua morte. No que concerne à dialética da
natureza, ainda que reconheça um certo exagero em meus escritos, eu ainda insistiria
que, ao fim, toda a obra de Marx é essencialmente uma análise da sociedade capitalista
moderna. Os seus escritos básicos são As teorias da mais-valia, os Grundrisse e O
capital : todo o resto é secundário. Enquanto no caso de Engels, um de seus maiores
escritos é indubitavelmente A dialética da natureza – 90 por cento dessa obra é
irremediavelmente comprometida com uma Naturphilosophie ingênua e romântica,contaminada por temas cruamente positivistas e evolucionistas.
(...)
PA >> Na sua Introdução aos Cadernos Filosóficos de Lênin, escrita em 1958, você
conclui dizendo que o jovem Lênin de 1894 não havia lido Hegel quando escreveu
Quem são os amigos do povo?, mas apesar disso conseguiu entendê-lo melhor do que o
Lênin tardio dos Cadernos, que o estudou em 1916, mas o compreendeu mal. Então, em
uma conclusão enigmática, você complementa que esse paradoxo indica “duas
diferentes ‘vocações’ que ainda hoje estão em disputa no interior da alma do próprio
marxismo. Explicar como e por quê essas duas ‘vocações’ se tornaram historicamente
conjugadas e superpostas seria uma tarefa formidável: mas, não obstante, ela deve
ser enfrentada” 6. O que você quis dizer com isso?
LC >> Você deve ter em mente que eu era jovem e entusiasta quando escrevi essas
linhas. Era propenso ao exagero. É verdade que Lênin não conhecia Hegel em primeiramão quando escreveu Quem são os amigos do povo? . Mas esse texto é marcado pela
6 Il Marxismo e Hegel , pp. 169-70.
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cultura positivista da época: os significados esotéricos que eu atribuía a ele, hoje eu
repudiaria firmemente. Os subtextos ocasionalmente positivistas da minha Introdução
de 1958 são, eu penso, corrigidas e superadas em meu estudo de 1969 sobre Marxismo e
Hegel . Porém, através dessas sucessivas divagações e oscilações, eu estava tateando em
direção a um problema sério e real, que tem me preocupado diretamente por vários
anos. Há duas possíveis linhas de desenvolvimento no discurso do próprio Marx,
expressas respectivamente no título e no subtítulo de O capital . A primeira é aquela que
o próprio Marx adianta no seu prefácio da primeira edição, e no posfácio da segunda
edição, na qual ele apresenta a si mesmo simplesmente como um cientista. Marx, de
acordo o seu próprio relato aqui, está desempenhando no campo das ciências históricas
e sociais uma tarefa que já havia sido desempenhada nas ciências naturais. Essa foitambém a interpretação de Lênin sobre Marx em Quem são os amigos do povo? , e a
minha própria Introdução de 1958 foi na mesma direção. O próprio título de O capital
indica essa direção. Ele promete que a economia política, que começou com as obras de
Smith e Ricardo, mas que com eles permaneceu incompleta e contraditória, agora se
tornará uma ciência verdadeira no sentido profundo do termo. O subtítulo do livro,
porém, sugere outra direção: uma “crítica da economia política”. Essa noção teve pouco
eco na Segunda e na Terceira Internacional. Lênin certamente rejeitaria a ideia de que o
marxismo fosse uma crítica da economia política: para ele, trata-se de uma crítica da
economia política burguesa apenas, que finalmente tornou a própria economia política
uma ciência real. Mas o subtítulo de O capital indica algo mais – ele sugere que a
economia política como tal é burguesa e deve ser criticada tout court . Essa segunda
dimensão da obra de Marx é precisamente aquela que culmina em sua teoria da
alienação e do fetichismo. O grande problema para nós é saber se e como essas duas
direções divergentes da obra de Marx podem ser mantidas juntas em um sistema único.
Pode uma teoria puramente científica conter em si um discurso sobre a alienação? Oproblema ainda não foi resolvido.
PA >> A escola dellavolpeana original interpretava a obra de Marx de maneira
semelhante a uma analogia estrita com a de Galileu. Há dificuldades óbvias, porém,
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ao transferir os procedimentos experimentais das ciências naturais para as ciências
sociais. Notoriamente, a história não é um laboratório no qual os fenômenos podem
ser artificialmente isolados e repetidos, como na física. Lênin dizia com frequência:
“Esse momento é único: ele pode passar, e a chance que ele representa pode nunca
mais retornar...” – o exato oposto da repetibilidade. Há uma passagem marcante na
sua Introdução aos Cadernos filosóficos, porém, na qual você diz: “A lógica e a
sociologia são constituídas simultaneamente, na mesma relação de unidade-distinção
como a obtida entre a consciência que elas representam e o ser social: portanto, a
lógica está contida na ciência da história, mas a ciência da história está contida por
sua vez na história. Ou seja, a sociologia informa as técnicas da política, e se torna
uma luta pela transformação do mundo. A prática é funcional à produção da teoria;
mas a teoria é por sua vez uma função da prática. A ciência é verificada na e comosociedade, mas a vida associada por sua vez é um experimento em curso no
laboratório do mundo. A história é, portanto, uma historia rerum gestarum, teoria
prática; mas é também uma ciência como as próprias res gestae, prática teórica; ou,
nas palavras de uma grande máxima de Engels, “história é experimento e indústria”.
Podemos com isso entender o nexo profundo entre o “profeta” ou político, e o cientista,
na estrutura da obra do próprio Marx”.7 Você ainda pensa que essa solução é
satisfatória?
LC >> Você selecionou a melhor página daquele texto – aquela na qual me esforcei mais
para calcular a quadratura do círculo! Não concordo mais com essa posição, porque o
que então parecia ser uma solução, hoje percebo que ainda é um problema sem
resposta. Estou atualmente em uma fase de repensar radicalmente muitas dessas
questões – processo cujo resultado ainda não posso antever completamente.
Provavelmente publicarei uma pequena obra em breve, sobre a teoria das contradições
capitalistas em Marx.8 Para isso, tomarei uma distância ainda maior da obra de Della
Volpe, e tentarei mostrar através do estudo de Kant Ensaio para introduzir a noção de
grandezas negativas na filosofia, de 1763, que o conceito marxiano de uma contradição
capitalista não é a mesma que a noção kantiana de “oposição real”. Estou confiante
7 Il Marxismo e Hegel , pp. 126–7.8 O texto foi publicado no ano seguinte: “Marxism and the Dialectic”, New Left Review I/93, 1975, p.3. (N.
do T.)
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quanto a esse ponto, mas ele permanece limitado, e ainda não estou certo de suas
implicações. Porém, em resposta à sua questão, minha resposta seria que o sentido do
meu argumento nesse estudo futuro é que Marx não pode ser simplesmente igualado a
Galileu; ele somente o seria se as contradições capitalistas fossem oposições reais no
sentido kantiano do termo.
PA >> Um de seus temas centrais em Marxism and Hegel é que as contradições
existem entre proposições, mas não entre coisas. A confusão entre as duas é para você
a marca distintiva do materialismo dialético, que o define como uma pseudociência.
Mas no último ensaio do seu From Rousseau to Lenin, escrito um ano após, você
repetidamente fala da própria realidade capitalista como “invertida”, um sistema que
“se apóia sobre a própria cabeça”.9 Isso não é simplesmente uma maneira metafórica
de reintroduzir a noção de “contradição entre coisas” – por uma imagem literária, ao
invés de um axioma conceitual? Como pode a ideia de uma “realidade invertida” ser
reconciliada com o princípio da não-contradição, que você insiste que é central para
toda ciência?
LC >> É exatamente com esse problema que estou trabalhando: você está
absolutamente correto ao destacar a dificuldade. Pois mantenho firmemente a tese
fundamental de que o materialismo pressupõe a não-contradição – que a realidade é
não-contraditória. A esse respeito, concordo com Adjukiewicz e Linke, e reitero
totalmente a minha crítica do materialismo dialético. Ao mesmo tempo, relendo Marx,
percebi que para ele as contradições capitalistas são inegavelmente contradições
dialéticas. Della Volpe tentou salvar o dia interpretando a oposição entre capital e
trabalho assalariado como uma oposição real – Realrepugnanz – no sentido kantiano:
ou seja, uma oposição sem contradição, ohne widerspruch. Se a relação entre capital e
trabalho fosse uma oposição real de tipo kantiano, ela não seria dialética, e o princípio básico do materialismo estaria resguardado. Mas o problema é na verdade muito mais
complexo. Eu ainda acredito que o materialismo exclui a noção de uma realidade
contraditória: mas não há dúvida de que para Marx a relação entre capital/trabalho
9 Ver From Rousseau to Lenin, pp. 232–5.
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assalariado é uma contradição dialética. O capitalismo é uma realidade contraditória
para Marx, não porque, sendo realidade, ele deve portanto ser contraditório – como
sustentaria o materialismo dialético, mas porque ele é uma realidade emborcada,
invertida, de cabeça para baixo. Tenho perfeita consciência de que a noção de uma
realidade invertida parece colidir com os preceitos de qualquer ciência. Marx estava
convencido da validade dessa noção. Não digo que ele estava necessariamente correto.
Ainda não posso estabelecer se a ideia de uma realidade invertida é compatível com a
ciência social.
Mas gostaria de comentar sobre o problema da relação entre a ciência social e a ciência
natural, que você levantou antes. Não mantenho mais a posição otimista de minha
Introdução de 1958, que era muito simples em seu pressuposto de uma homogeneidade
básica entre as ciências da natureza e as ciências da sociedade. Por outro lado, posso verque as duas grandes posições que são geralmente adotadas sobre esse problema, ambas
acarretam graves problemas. A primeira posição é aquela que eu tomei em minha
Introdução, e que deriva de Della Volpe: ela efetivamente identificou as ciências social e
natural – Marx foi “o Galileu do mundo moral” para nós, naquele momento. Hoje, essa
fórmula me chama a atenção como altamente sujeita a debates: antes de qualquer outra
questão, ela pressupunha que a relação capital-trabalho em Marx era uma oposição não-
contraditória, o que não é o caso. Por outro lado, há uma segunda posição, que insistena heterogeneidade entre a ciência social e a ciência natural. O perigo dessa alternativa é
que as ciências sociais então tendem a se tornar uma forma qualitativamente distinta de
conhecimento em relação às ciências naturais, e tendem a ocupar a mesma relação no
que se refere a elas que a filosofia ocupava em relação à ciência como tal. Não é por
acaso que essa foi a solução dos historicistas alemães – Dilthey, Windelband e Rickert.
Ela foi então herdada por Croce, Bergson, Lukács e a Escola de Frankfurt.
Invariavelmente, a conclusão dessa tradição é que o conhecimento verdadeiro é a
ciência social, que, já que não pode ser assimilada pela ciência natural, não é de maneira
alguma ciência, mas filosofia. Portanto, ou há uma forma única de conhecimento, que é
ciência (a posição que eu ainda gostaria de defender) – mas então seria possível
construir as ciências sociais em bases análogas às das ciências naturais – ou as ciências
sociais são realmente diferentes das ciências naturais, e há duas formas de
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conhecimento – mas uma vez que duas formas de conhecimento não são possíveis, as
ciências naturais se tornam pseudoconhecimento. A alternativa ideologicamente
dominante é a última. A filosofia continental europeia nesse século esteve virtualmente
coesa em seu ataque às ciências naturais – de Husserl a Heidegger, de Croce a Gentile,
de Bergson a Sartre. Contra os perigos desse idealismo espiritualista, pessoalmente
prefiro incorrer no risco oposto do neopositivismo. Mas estou dividido sobre essa
questão, e não tenha solução pronta para o problema.
(...)
PA >> Em um texto recente, você parece aceitar que há uma teoria do “colapso” em O
capital, ainda que a sua análise seja prudente, sugerindo a presença de contra-elementos na obra marxiana. Você identifica a principal variante da teoria do
“colapso” como o postulado da tendência decrescente da taxa de lucro em O capital.10
Você a considera uma lei científica que foi “conclusivamente verificada pelo ulterior
desenvolvimento da própria história”?
LC >> De forma alguma. De fato, acredito que há algo muito mais grave a ser dito sobre
as previsões contidas em O capital . Não somente a taxa decrescente de lucro não foi
verificada empiricamente, mas o teste central do próprio O capital ainda não foi
realizado: uma revolução socialista no Ocidente avançado. O resultado é que o
marxismo está em crise hoje, e pode superar essa crise apenas se reconhecê-la. Mas
precisamente esse reconhecimento é conscientemente evitado por virtualmente todos os
marxistas, grandes ou menores. Isso é perfeitamente compreensível no caso dos
numerosos intelectuais apolíticos e apologéticos nos partidos comunistas ocidentais,
cuja função é meramente conferir um lustro marxista para uma prática política
absolutamente não-marxista desses partidos. O que é muito mais sério é o exemplo
dado por intelectuais de grande estatura, que sistematicamente escondem a crise domarxismo em suas obras, e com isso contribuem para prolongar a sua paralisia como
ciência social. Deixe-me citar dois exemplos, para ser claro. Baran e Sweezy, na sua
10 Ver a Introdução de Colletti a L. Colletti e C. Napoleoni, Il Futuro del Capitalismo: Crollo o Sviluppo? ,Bari 1970, p. c-cv ff.
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introdução de Capital monopolista, informam seus leitores em uma breve nota que não
utilizarão os conceitos de mais-valia, mas a de excedente, nem a de trabalho assalariado,
mas a de trabalho dependente. O que isso realmente significa? Significa que Baran e
Sweezy decidiram que eles foram incapazes de usar a teoria do valor e da mais-valia em
suas análises do capitalismo do pós-guerra estadunidense. Eles tinham todo o direito de
fazê-lo; eles podem até mesmo estar corretos ao fazê-lo – não precisamos entrar nessa
questão aqui. Mas o que é significativo é a sua maneira de fazê-lo. Eles efetivamente
explodem a base da construção marxiana: sem a teoria do valor e da mais-valia, O
capital é estraçalhado. Mas eles meramente mencionam a sua eliminação em uma nota,
e então prosseguem despreocupadamente como se nada houvesse acontecido – como se,
uma vez que essa correção menor fosse feita, a obra de Marx permanecesse mais robusta
e sólida do que nunca.Tomemos outro caso, de um grande intelectual e acadêmico por quem tenho o maior
respeito, Maurice Dobb. Ao apresentar uma edição de O capital um século mais tarde,
Dobb escreveu um prefácio no qual expressa que tudo nele está em ordem, exceto um
pequeno defeito, uma pequena falha no original. Esse pequeno erro, diz Dobb, é a
maneira pela qual Marx opera a transformação de valores em preços no Volume III de O
capital : felizmente, porém, o erro havia sido corrigido por Sraffa, e tudo está bem
novamente. Dobb pode estar certo ao não contentar-se com a solução de Marx para oproblema da transformação, assim como é possível que Sweezy tenha boas razões para
rejeitar a teoria do valor. Para o momento, podemos suspender o julgamento sobre essas
questões. Mas onde eles certamente estão errados, é em acreditar ou fingir acreditar que
os pilares centrais sobre os quais o edifício teórico marxiano se assenta podem ser
removidos, e que a construção ainda pode permanecer em pé. Esse tipo de
comportamento não é apenas uma ilusão. A recusa de admitir que o que se rejeita na
obra de Marx não é secundário, mas essencial, oculta, e com isso agrava, a crise do
marxismo como um todo. A evasão intelectual desse tipo somente aprofunda a
estagnação do pensamento socialista evidente em qualquer lugar do Ocidente hoje. O
mesmo se aplica aos jovens economistas marxistas na Itália que adotaram a maior parte
das ideias de Sraffa. Não digo que Sraffa está errado; estou disposto a admitir como uma
hipótese que ele pode estar certo. Mas o que é absolutamente absurdo é aceitar Sraffa,
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cuja obra implica a demolição de toda a fundamentação da análise marxiana, e ao
mesmo tempo fingir que essa é a melhor maneira de sustentar Marx.
(...)
PA >> Como você vê o seu desenvolvimento pessoal como filósofo hoje? E o que você vê
como problemas centrais para o futuro geral do marxismo?
LC >> Discutimos a escola de Della Volpe na Itália, na qual tive minha primeira
formação. O que eu gostaria de finalmente enfatizar é algo muito mais profundo do que
todas as críticas que fiz dela até aqui. O fenômeno do dellavolpeanismo – como o do
althusserianismo hoje – sempre esteve ligado aos problemas da interpretação do
marxismo: ele nasceu e permaneceu confinado em um espaço puramente teórico. O tipode contato que ele estabeleceu com o marxismo foi sempre marcado por uma
dissociação e divisão básicas entre a teoria e a atividade política. Essa separação
caracterizou o marxismo em todo o mundo desde o início dos anos 20. Contra esse pano
de fundo, a escola de Della Volpe na Itália é necessariamente reduzida a dimensões
muito modestas: não devemos ter nenhuma ilusão sobre isso, nem exagerar as
diferenças políticas entre os dellavolpeanos e os historicistas naquele tempo. O fato real,
fundamental, era a separação entre o marxismo teórico e o movimento operário real. Se
você examina obras como A questão agrária de Kautsky, A acumulação de capital de
Luxemburgo, ou O desenvolvimento do capitalismo na Rússia de Lênin – três das
grandes obras do período que sucederam imediatamente as de Marx e Engels – você
imediatamente registra que a sua análise teórica contém ao mesmo tempo os elementos
de uma estratégia política. São obras que têm tanto um verdadeiro valor cognitivo,
quanto um propósito operativo estratégico. Tais obras, quaisquer que sejam os seus
limites, mantiveram o essencial do marxismo. Pois o marxismo não é um fenômeno
comparável ao existencialismo, à fenomenologia ou ao neopositivismo. Uma vez que elese torna isso, está acabado. Mas após a Revolução de Outubro, a partir do início dos
anos 20, o que aconteceu? No Ocidente, onde a revolução falhou e o proletariado foi
derrotado, o marxismo viveu meramente como uma corrente acadêmica nas
universidades, produzindo obras de escopo puramente teórico ou pura reflexão cultural.
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A carreira de Lukács é a demonstração mais clara desse processo. História e consciência
de classe, com todos os seus defeitos, estava equipado para ser um livro de teoria
política, orientado a uma prática real. Posteriormente, Lukács passou a escrever obras
de natureza totalmente diferente. O jovem Hegel ou A destruição da razão são produtos
típicos de um professor universitário. Culturalmente, eles podem ter um valor muito
positivo: mas não possuem mais nenhuma conexão com a vida do movimento operário.
Eles representam tentativas de alcançar um avanço cognitivo no plano da teoria, que ao
mesmo tempo são completamente vazios de toda implicação estratégica ou política. Esse
foi o destino do Ocidente. Enquanto isso, o que aconteceu no Leste? Lá ocorreram
revoluções, mas em países cujo nível de desenvolvimento capitalista era tão atrasado
que não havia chance de construção de uma sociedade socialista. Nesses países, as
categorias clássicas do marxismo não tinham sistema objetivo de correspondências narealidade. Havia prática política revolucionária, que às vezes gerava experiências de
massa muito importantes e criativas, mas elas ocorreram em um contexto histórico que
era alheio às categorias centrais da própria teoria de Marx. Essa prática, portanto, nunca
conseguiu traduzir-se em um avanço teórico dentro do próprio marxismo: o caso mais
óbvio é o de Mao. Portanto, simplificando muito, podemos dizer que, no Ocidente, o
marxismo se tornou um fenômeno puramente cultural e acadêmico; enquanto no Leste,
os processos revolucionários se desenvolveram em um ambiente muito atrasado para
permitir a realização do socialismo, e assim, inevitavelmente, encontrou expressão em
ideias e tradições não-marxistas.
Essa separação entre Ocidente e Leste mergulhou o marxismo em uma longa crise.
Infelizmente, o reconhecimento dessa crise é sistematicamente obstruído e reprimido
entre os próprios marxistas, mesmo os melhores deles, como vimos nos casos de Sweezy
e Dobb. Minha própria visão, ao contrário, é que a única chance para o marxismo de
sobreviver e superar essa prova é cavucar esses mesmos problemas. Naturalmente, o
que um indivíduo pode fazer sozinho nessa direção, ou mesmo com alguns colegas, é
muito pouco. Mas essa, de qualquer maneira, é a direção na qual estou tentando
trabalhar agora: e é nessa perspectiva que devo expressar minha mais profunda
insatisfação com o que fiz até aqui. Sinto-me imensamente distante das coisas que
escrevi, porque no melhor dos casos elas não me parecem mais do que um apelo a
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princípios, contra fatos. Mas de um ponto de vista marxista, a história não pode nunca
estar errada – em outras palavras, meros axiomas a priori nunca podem se opor à
evidência do seu desenvolvimento real. A tarefa real é estudar por que a história tomou
um curso diferente daquele previsto por O capital . É provável que qualquer estudo
honesto disso terá que questionar alguns dos dogmas centrais do pensamento do
próprio Marx. Portanto, eu agora renuncio completamente ao triunfalismo dogmático
com o qual endossei cada linha em Marx – o tom das passagens da minha Introdução de
1958, que você citou. Deixe-me colocar isso de maneira ainda mais forte. Se os marxistas
continuarem presos na epistemologia e na gnosiologia, o marxismo efetivamente
perecerá. A única maneira pela qual o marxismo pode ser reanimado é se livros como
Marxism and Hegel deixarem de ser publicados, e em vez disso livros como O capital
financeiro de Hilferding e Acumulação de capital de Luxemburgo – ou mesmo Oimperialismo de Lênin, que era uma brochura popular – forem novamente escritos.
Resumidamente, ou o marxismo tem a capacidade – eu certamente não tenho – de
produzir naquele nível, ou sobreviverá meramente como uma excentricidade de alguns
professores universitários. Mas nesse caso, ele estará verdadeiramente morto, e os
professores poderão muito bem inventar um novo nome para a sua intelligentsia.
Traduzido por Daniel Cunha
Título original: A political and philosophical interview. Publicada originalmente em
New Left Review I/86, Julho-Agosto 1974
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Da Metafísica do Capital
Revisitando Lucio Colletti
Nuno Miguel Cardoso Machado
Se objetarmos à dialética (…) que ela reduz indiscriminadamentetudo o que cai em seu moinho à forma meramente lógica da
contradição, deixando de lado (…) a plena multiplicidade do não-contraditório, do simplesmente diverso, então deslocamos a culpada coisa para o método.
Theodor W. Adorno
1 – Introdução
Lucio Colletti (1924-2001) foi um dos filósofos italianos mais importantes do
século XX, assumindo uma posição de destaque no contexto do denominado Marxismo
Ocidental, ao lado de nomes como Lukács, Adorno, Horkheimer, Lefebvre ou Althusser.1
Na década de 70 “era descrito como o mais importante filósofo Marxista italiano vivo,
eclipsando mesmo Antonio Gramsci e Galvano Della Volpe”.2 Diz-nos Redhead que
“Colletti desenvolveu teorias para o valor, Estado, estética, direito e política que ainda
são relevantes hoje em dia. [Não obstante,] o seu legado intelectual é bastante menos
influente do que seria de esperar”.3 Procuraremos dar o nosso contributo para colmatar
de alguma maneira esta lacuna, relembrando alguns aspetos centrais do pensamento de
Colletti.
O percurso teórico de Colletti foi extremamente sui generis. Marcado
inicialmente, como a maior parte dos marxistas italianos da sua geração, pela “lógica
1 Cf. ANDERSON, Perry. Considerações Sobre o Marxismo Ocidental . Porto: Edições Afrontamento,1976.
2 REDHEAD, Steve. “From Marx to Berlusconi: Lucio Colletti and the Struggle for Scientific Marxism”. Rethinking Marxism, 22, 1, 2010, p. 148.
3 Idem, Ibidem, p. 148.
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neoidealista” de Benedetto Croce, a sua maior influência viria a ser Galvano Della Volpe
e a sua defesa de um “socialismo científico”.4 Posteriormente, afastar-se-ia
progressivamente do Marxismo e aproximar-se-ia cada vez mais da direita política,
acabando mesmo por ingressar nas fileiras do partido de Silvio Berlusconi.5
Podemos afirmar, seguindo Jay 6, que o pensamento Collettiano é composto por
três “períodos” distintos: um primeiro período, entre 1954 e o final dos anos 60,
marcado por um quadro de referência Della Volpeano, pela defesa incondicional de um
“socialismo científico” e pela rejeição acérrima da dialética como “metafísica”; um
segundo período, entre 1967 e meados dos anos 70, em que Colletti se apercebe da
relevância da teoria da alienação e do fetichismo e da sua relação com a teoria do valor
em Marx, identificando o capitalismo como uma “realidade invertida” ou “metafísica
real”; e um terceiro período, a partir de meados dos anos 70, “em que se torna cada vezmais claro que a sua tentativa de enquadrar a teoria da alienação de Marx com as suas
pretensões científicas não estava a resultar”,7 sendo que, “forçado a escolher entre o
Marxismo e a ciência, como ele a entendia, escolheu esta última”.8 Colletti acabou por
concluir que “o Marxismo era uma pseudociência”, irremediavelmente marcada pela
dialética, “que deveria ser abandonada”.9
Neste artigo, dedicaremos uma atenção primordial ao “segundo período” de
Colletti, aquele que julgamos ser o mais interessante e relevante para a atualidade, e em
que identifica a dialética como realidade especificamente capitalista. Segundo Colletti, e
ao contrário do que defende o “materialismo dialético”, não é a realidade em geral
(física, biológica, social, etc.) que é dialética, mas é o capitalismo que é uma “metafísica
real”, sendo daqui que decorre a relevância do método dialético para o estudo desta
sociedade. Hegel efetuou inadvertidamente a descrição “correta” de uma “realidade
falsa”, invertida: a sociedade capitalista moderna.
4 Cf. COLLETTI, Lucio. “A Political and Philosophical Interview”. New Left Review, I/86, 1974, pp. 3-28. [Publicada parcialmente nesta edição da Sinal de Menos, p. 8-27. (N. E.) ]
5 Cf. REDHEAD, Steve. “From Marx to Berlusconi”, op. cit. 6 JAY, Martin. Marxism and Totality – The Adventures of a Concept from Lukács to Habermas.
Berkeley: University of California Press, 1984, pp. 445-452.7 Idem, Ibidem, p. 447.8 Idem, Ibidem, p. 449.9 Idem, Ibidem, p. 449.
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De acordo com o autor, o núcleo do pensamento de Marx é constituído por um
tema unificador: a reificação ou alienação, i.e., a hipostasiação ou substantivação do
abstrato. “Este tema constitui a base da sua crítica à lógica especulativa de Hegel e à
economia política em geral e, igualmente, da sua crítica da hipostasiação real do Estado
e do capital”.10
Tal como, para Hegel, a metafísica plenamente realizada constitui a realização doidealismo, i.e., a Ideia ou Logos tornada realidade, também para Marx a metafísica não émais apenas uma forma particular de conhecimento, mas um processo que diz respeito aopróprio núcleo da realidade. Por outras palavras, não constitui apenas a representação(metafísica) da realidade, mas a própria realidade, que está invertida ou «de cabeça para baixo»; por isso, o próprio mundo deve ser subvertido e «endireitado». A hipostasiação douniversal, a sua substantivação ou reificação, não se refere apenas (ou até primariamente)à Lógica de Hegel; refere-se à própria realidade. Em suma, a hipostasiação da Noção deHegel refere-se à hipostasiação do capital e do Estado.11
Isto permite-lhe chegar a uma conclusão de extrema importância: a identidade
que se estabelece, em Marx, entre a teoria do fetichismo (ou alienação) e a teoria do
valor. A teoria do valor de Marx, muitas vezes acusada de conter resquícios metafísicos,
é-o efetivamente, mas na medida em que analisa o funcionamento das verdadeiras
“entidades escolásticas” capitalistas: a mercadoria, o valor, o trabalho (abstrato), o
capital, etc. Ao recuperar a crítica categorial de Marx, radical em termos literais, Colletti
aproxima-se bastante da teoria crítica preconizada pela chamada “Nova Crítica do
Valor”, assumindo-se como um dos precursores desta corrente.
Assim, começaremos por apresentar, no ponto 2, a “dialética da matéria” de
Hegel na ótica de Colletti, assim como a distinção que o autor faz entre “oposição real” e
“contradição dialética”, no ponto 3. Em seguida, no ponto 4, apresentamos a sua crítica
ao “materialismo dialético” enquanto ciência equivocada. No ponto 5, elucidamos a sua
análise do capitalismo como realidade invertida e a “contradição dialética” como
especificidade capitalista. No ponto 6, voltamos a nossa atenção para o conceito de
“trabalho abstrato”, enquanto no ponto 7 analisaremos em detalhe a problemática deColletti em torno da cientificidade do marxismo, que o conduzirá ao abandono do
mesmo. Finalmente, no ponto 8, salientaremos o acolhimento que a obra de Colletti teve
10 COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel . Londres: Verso, 1979 [1969], p. 195.11 Idem, Ibidem, p. 198.
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na literatura Marxista e, no ponto 9, realçaremos os paralelos que existem entre a teoria
de Colletti e a Nova Crítica do Valor.
2 – Ser/não-ser, finito/infinito: a dialética da matéria em Hegel
Comecemos por analisar a exposição crítica da “dialética da matéria” de Hegel
por parte de Colletti. O tema central do pensamento Hegeliano é a sua tese acerca da
identidade que deve existir entre idealismo e filosofia. O idealismo é o ponto de vista
segundo o qual as coisas e o mundo finito não possuem uma realidade verdadeira.
Assim, o ser (being) é atribuído ao infinito, ao Espírito, a Deus, enquanto o finito é o
limitado, o perecível, o efémero. O finito “parece” ser, mas não é.12
Segundo Hegel, a filosofia revelou-se sempre inconsistente pois adotou o ponto
de vista do intelecto (intellect ) e o princípio da não-contradição ou da exclusão mútuados opostos. Para a filosofia, o finito é irreconciliável com o infinito, não podendo unir-
se a ele. Esta não-contradição, que pretende ser um princípio de absoluta coerência
lógica, é na verdade a fonte da maior inconsistência.13
Assim, o finito, que deveria ter desaparecido, perdura. O infinito, por seu turno,
que deveria ter sido transformado no absoluto ou na totalidade, assume-se, pelo
contrário, apenas como “um dos dois” (one of the two): “Apenas enquanto um dos dois
[polos] é em si mesmo finito, não é o todo mas apenas uma parte; possui o seu limite
naquilo que o confronta; é portanto um infinito finito”.14
Para que o infinito seja compreendido de um modo coerente, o finito deve ser
destruído: o infinito não pode ter ao seu lado outra realidade que o limita. Por outro
lado, uma vez expurgado o finito e suprimido aquilo que relega o infinito para o além –
enquanto realidade vazia, desprovida de existência real – o infinito pode regressar do
além para o aqui e agora, ou seja, tornar-se corpóreo e adquirir formas mundanas.15
Hegel realiza o idealismo absoluto mediante a denominada dialética da matéria
(dialectic of matter). Não se trata apenas de dizer que o finito não possui uma realidade verdadeira; o finito possui como “sua” essência e fundamento o “outro” distinto de si
mesmo, i.e., o infinito, o imaterial, o pensamento. Assim,
12 Idem, Ibidem, pp.7-8.13 Idem, Ibidem, p. 9.14 HEGEL apud COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., p. 10.15 COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., p. 12.
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se o finito possui como sua essência este «outro» distinto de si mesmo, parece claro que,para ser verdadeiramente – ou «essencialmente» – ele próprio, já não pode continuar aser ele próprio, ou seja, o ser que é “aparentemente” – o finito – mas antes o «outro». Ofinito «não é» quando é realmente finito; e vice-versa, ele «é» quando «não é», é «ele
próprio» [apenas e] quando é o «outro»; ganha vida (comes to birth) quando morre. Ofinito é dialético.16
Note-se desde já a proximidade entre o esquema “metafísico” e “idealista” de
Hegel e a análise da mercadoria empreendida por Marx: o corpo sensível da mercadoria
(“valor de uso”) existe apenas enquanto suporte de uma entidade suprassensível – mas
real – o “valor”, que constitui o verdadeiro objetivo da produção capitalista. Nesta
sociedade, a produção material, o “metabolismo com a natureza”, é puramente
acidental, um “mal necessário” para a produção de valor, de uma fantasmagoria real. “O
suprassensível é a verdade estabelecida do sensível e do percetível”.17 Mas continuemos
com Colletti.
Para se relacionarem entre si, as coisas finitas têm de o fazer através do seu
“outro”. As coisas “reais” não são aquelas exteriores ao pensamento, mas antes aquelas
penetradas pelo pensamento, ou seja, aquelas coisas que já não são coisas mas simples
“objetos lógicos” ou momentos ideais. Apenas na sua Noção existe verdade num objeto,
enquanto o imediato é apenas aparência e contingência A matéria não possui qualquer
realidade separada ou a priori da Noção. A matéria não é negada, mas é afirmada emfunção daquilo que não é: estamos perante uma conceção negativa do mundo sensível .
O finito é, portanto, internamente contraditório. Isto significa que deve tornar-se num
“finito ideal”, num momento dentro da Ideia.18
O real torna-se ideal e o ideal torna-se real; o concreto torna-se abstrato e o
abstrato concreto. Esta auto-negação do mundo, esta autoidealização, concretiza-se na
autorrealização da Ideia ou do Infinito. Para compreender o ser, deve-se compreender o
pensamento, a Ideia; não existem coisas, existe apenas a razão; não existe
determinidade exclusiva, um “isto aqui” que exclui o seu oposto, mas um “isto
16 Idem, Ibidem, p. 14.17 HEGEL apud COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., p. 47.18 COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., pp. 15-18.
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juntamente com aquilo”, ou seja, uma unidade de identidade (sameness) e alteridade
(otherness), de “ser” e “não-ser”, de finito e infinito, no infinito.19
Tal como o finito é um ser ilusório que possui a sua essência para além de si,
também essa essência, que é o absoluto, possui a sua manifestação no positivo ou no
finito: “O ser ilusório não é um nada, mas uma reflexão, uma relação com o absoluto;
ou, é um ser ilusório na medida em que é nele que é refletido o absoluto. (…) é um meio
que é absorvido por aquilo que reflete”.20 Em síntese, “o mundo desapareceu. Aquilo
que parecia finito, é na verdade infinito. Já não existe um mundo material
independente. (…) Não é o finito, mas a manifestação positiva do Absoluto. Não é, não
significa, «este» objeto determinado – pão e vinho, por exemplo – mas significa o
Espírito”.21
E podemos acrescentar, com Marx, que em Hegel “a realidade empírica é tomadatal como existe. É também declarada racional, embora não em virtude da sua
racionalidade intrínseca, mas porque o facto empírico possui na sua existência empírica
outro significado para além de si próprio”.22
Uma vez o ser reduzido ao pensamento, o pensamento, por sua vez, é, i.e., a
unidade lógica dos opostos ganha vida e é incarnada por um objeto real. Tudo é ele
mesmo e o seu oposto, “é” e “não é”. Esta contradição coloca a matéria em movimento,
“fá-la morrer enquanto coisa de modo a que possa renascer como pensamento ou
infinito”.23 É absolutamente espantosa a analogia que se estabelece entre o esquema
Hegeliano e o movimento do capital enquanto processo de “valorização do valor”.
Voltaremos a este assunto no ponto 5.
Podemos concluir com Colletti que
Hegel não nos dá mais simples abstrações fixas, mas todo o processo de abstração ou aabstração auto-abrangente (self-encompassing). (…) Mas na medida em que estanegatividade, que é a razão, não é estabelecida na base de um objeto real, mas antes sedistingue dele ao pôr-se ( positing) a si mesma como existindo para si mesma, torna-se,
19 Idem, Ibidem, p. 18.20 HEGEL apud COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., pp. 18-19.21 COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., p. 19, itálico nosso.22 MARX apud COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., pp. 19-20.23 COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel , op. cit ., p. 20.
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nas palavras de Marx, «uma abstração que se cristaliza como tal e é concebida como umaatividade independente, como a própria atividade».24
A consequência é que a razão, tendo de servir simultaneamente como pensamento erealidade, cristaliza-se numa coisa, i.e., torna-se uma unidade simples, positiva, incapazde se abrir e de tomar em consideração o que é diferente de si; adquire portanto o carácterexcludente que é propriedade da matéria.25
3 – Oposição real vs. contradição dialética
Colletti, numa posição verdadeiramente polémica, sempre defendeu que o
Marxismo – e o materialismo – deveriam tomar como ponto de partida a obra de Kant e
não a de Hegel. O que se passa é que
Uma vez que Hegel transforma a inclusão lógica dos opostos, que é a razão, no verdadeiroprincípio do idealismo (a razão é a única realidade, não existe nada fora dela), ele exclui precisamente a exclusão dos opostos (a exterioridade do ser em relação ao pensamento),que é o verdadeiro princípio do materialismo.26
Para Hegel, esta unidade domina e cancela todas as distinções, i.e., a totalidade
“racional” oblitera o “intelecto”, pelo que o princípio da razão exclui o da matéria.27 Ora,
negar a existência de premissas na realidade significa tomar a Noção ou Ideia como algo
absoluto e sem limitações, como uma entidade independente em si.28
Segundo Colletti, se o “ceticismo relativamente à matéria” é um momento
indispensável da filosofia qua idealismo, o “ceticismo em relação à razão”, a crítica darazão, é um princípio do materialismo. A distinção entre processo lógico e processo real
implica que a razão é per se negativa, i.e., desprovida de realidade. A razão não possui
uma realidade contida em si, é uma forma, uma função de outra coisa. Em si mesma não
é o sujeito, mas o predicado de um objeto real.29
Neste sentido, a relevância de Kant deriva da sua crítica à “transposição do lógico
para o ontológico”, à elevação arbitrária do mental ou subjetivo a “essência” do mundo,
24 Idem, Ibidem, pp. 33-34. Note-se a proximidade entre este entendimento da razão em Hegel e aquiloque Horkheimer e Adorno virão a chamar “Razão Instrumental”, que caracteriza as sociedadescapitalistas.
25 Idem, Ibidem, p. 35.26 Idem, Ibidem, pp. 34-35.27 Idem, Ibidem, p. 35.28 Idem, Ibidem, p. 89.29 Idem, Ibidem, pp. 92-93.
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à elevação do conceito a base ou substrato da realidade.30 Kant, embora permitindo que
o pensamento fosse uma “síntese original”, mantém a distinção entre condições reais e
condições lógicas, de modo que, tendo reconhecido que o pensamento é uma totalidade,
ele considera-o – precisamente porque esta totalidade é apenas a do pensamento –
apenas um elemento ou uma parte do processo real.31
A realidade é aquilo que é objetivo, exterior e independente do pensamento
subjetivo. Assim, Marx retira de Kant “o princípio da existência real enquanto aquele
«algo mais» que não está contido no conceito, um princípio que torna o processo real
irredutível ao processo lógico” e, ao mesmo tempo, realça que, “se o conceito é o
primeiro logicamente, de outro ponto de vista é ele mesmo um resultante – o resultado
da elaboração da perceção e representação em conceitos, i.e., o ponto de chegada da
passagem da realidade empírica ao conhecimento”32
No início dos anos 70, após uma releitura de Kant, a atenção de Colletti voltar-se-
á para a distinção entre “oposição real” – no sentido Kantiano do termo – e “contradição
dialética”33. A oposição real – ou contrariedade (contrariety) de opostos incompatíveis
– é uma oposição sem contradição, ou seja, não viola os princípios da identidade e da
não-contradição, pelo que é compatível com a lógica formal. Por seu turno, a
contradição dialética, como o próprio nome indica, é contraditória, i.e., envolve uma
oposição do tipo dialético.34
Assim, a oposição real pode ser expressa pela fórmula “A e B”, isto é, cada um dos
opostos é real e positivo, cada um deles existe para si próprio. Dado que, para ser ele
próprio, cada termo não tem de se referir ao outro, estamos perante uma relação de
repulsão mútua. Trata-se de uma oposição exclusiva, em vez de uma oposição
inclusiva.35
Para ilustrar esta ideia, Colletti cita várias vezes, ao longo da sua obra, uma
30 Idem, Ibidem, p. 94.31 Idem, Ibidem, p. 118.32 Idem, Ibidem, p. 122. Não obstante, Jay salienta que subsiste na obra de Colletti uma tensão “entre a
sua epistemologia Kantiana, com o seu agnosticismo acerca das coisas-em-si, e a sua ontologiamaterialista, que atribui um conteúdo substantivo a estes objetos fora da consciência humana” (JAY,Martin. Marxism and Totality, op. cit ., p. 459).
33 Uma distinção que se revelará problemática para Colletti, contribuindo decisivamente para o seuposterior abandono do Marxismo, como se verá no ponto 7.
34 COLLETTI, Lucio. “Marxism and the Dialectic”. New Left Review, I/93, 1975, p. 3.35 Idem, Ibidem, p. 6.
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passagem da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel :
os extremos reais não podem ser mediados, precisamente porque são extremos reais. Nemtêm qualquer necessidade de mediação, uma vez que as suas naturezas são completamenteopostas. Eles não possuem nada em comum, não necessitam um do outro, não se
complementam mutuamente. Um [extremo] não comporta em si um desejo (longing),uma necessidade, uma antecipação do outro.36
Desta forma, os extremos reais não se intermedeiam, pelo que é um absurdo
falar-se de uma dialética das coisas. No caso de uma oposição real, não há qualquer
necessidade de uma mediação dialética, porque os opostos, uma vez que são reais, “não
possuem nada em comum”.37 Kant é o pai desta teoria da “oposição real”. De acordo
com o autor, a oposição real
é aquela em que dois predicados de uma coisa são opostos (opposed ), mas não mediante oprincípio da contradição (…) Duas forças, uma imprimindo movimento a um corpo numadireção, e a outra imprimindo igual efeito na direção contrária, não se contradizemmutuamente: eles são ambos possíveis enquanto predicados de um único corpo. Oresultado é o equilíbrio, que é uma coisa.38
Portanto, na oposição real também existe negação, anulação, mas de um tipo
diferente, pois ambos os predicados, A e B, são afirmativos, i.e., positivos e reais. A
negação que cada um dos extremos exerce sobre o outro consiste meramente no facto de
que eles anulam mutuamente os seus efeitos.39
Existe negação, mas não no sentido emque um dos termos tenha de ser considerado como negativo em si mesmo, como não-ser
(non-being).40
Em síntese, não existem coisas que são negativas em si mesmas, coisas que
constituem negações em geral e, portanto, o não-ser, no que concerne à sua constituição
interna. As coisas, os objetos, os dados factuais são todos positivos, elementos que
existem e são reais:
Os conflitos entre forças na natureza e na realidade, como sejam a atração/repulsão naFísica Newtoniana, as lutas entre tendências contrapostas, os contrastes entre forçasopostas – todas elas não apenas não comprometem o princípio da (não-)contradição,
36 MARX apud COLLETTI, Lucio. “Marxism and the Dialectic”, op. cit., p. 6.37 Idem, Ibidem, p. 6.38 KANT apud COLLETTI, Lucio. “Marxism and the Dialectic”, op. cit., p. 7.39 COLLETTI, Lucio. “Marxism and the Dialectic”, op. cit., p. 7.40 Idem, Ibidem, p. 8.
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como o confirmam. Trata-se de o