simondon e o transindividual

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    Simondon e o Transindividual

    Vittorio Morfino

    1. Para além do psicologismo e do sociologismo 

    Em um artigo de 1997, dedicado a Spinoza, Étienne Balibar chamou a atenção sobre

    a obra de Gilbert Simondon, apresentando o projeto teórico deste nos seguintes termos:

    [trata-se] de uma ambiciosa tentativa de definir uma estrutura dasciências humanas através da crítica [às] doutrinas metafísicas daindividualidade, que conduzem ao clássico dualismo entre interno eexterno, entre conhecimento a priori e a posteriori, entre ‘psicologismo’e ‘sociologismo’. [Tais dualismos] sempre subordinaram a compreensãoda individuação (ontogênese) à definição do indivíduo entendido comoforma (idealmente) imutável, [enquanto que] a física e a biologiamodernas (incluídas aí algumas disciplinas como estudo dodesenvolvimento das estruturas cristalinas e a biologia dos processoscognitivos, nos quais a adaptação à mudança ambiental requer o emergirde novas estruturas) fornecem instrumentos decisivos para projetar umnovo conceito geral de ontogênese, mostrando que as formas permanentes (que reduzem a energia potencial ao mínimo) são menosimportantes nos processos naturais com respeito aos equilíbriosmetastáveis (que requerem um aumento do potencial de energia que deveser preservado geralmente na polaridade entre indivíduo e ambiente).1 

    O projeto a que Balibar se refere não se encontra expresso no célebre  Du mode

    d'existence des objets techniques, mas em um livro, L’individuation psychique et collective,

     publicado postumamente apenas em 1989, que constituía a última parte de uma tese de

    doutorado escrita nos anos 1950, de cujo as duas primeiras partes já haviam sido publicadas

    em 1964, com o título de L'Individu et sa genèse physico-biologique.

    O fulcro desse projeto é o conceito de «transindividual», conceito através do qual

    Simondon propõe-se a pensar a «ontologia do ser social» ao largo tanto da tradição

    individualista quanto da organicista. Nem pré-existência do indivíduo com respeito à

    1 E. Balibar, Spinoza: from Individuality to Transindividuality, «Mededelingen vanwege het Spinozahuis», 71,Delft, Eburon, 1997; trad. italiana organizada por L. Di Martino - L. Pinzolo, in Spinoza.  Il transindividuale,Milano, Edizioni Ghibli, 2002, pp. 112-113.

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    sociedade, nem pré-existência desta com relação àquele. Para resumir de maneira

    extremamente sintética o difícil percurso teórico através do qual Simondon chegou a

    esboçar essa via alternativa, pode-se reduzi-lo à enunciação de duas teses filosóficas de

    extrema importância, através das quais é traçada uma linha clara de demarcação com

    respeito à tradição metafísica ocidental:

    1) primado do processo de individuação sobre o indivíduo;

    2) primado da relação sobre os termos da relação.

    2. O primado do processo de individuação sobre o indivíduo  

    O conceito de individuação é um conceito-chave em Simondon, como fica claromesmo a uma olhada superficial nos títulos de suas obras. Em  A individuação psíquica e

    coletiva, Simondon propõe-se fixar a atenção sobre processos de individuação, contra uma

    tradição que concedeu um privilégio ontológico ao indivíduo já constituído. Segundo

    Simondon, tanto a tradição substancialista quanto a hilemórfica (e mesmo na contraposição

    entre ambas), de fato, hipotetizam

    que existe um princípio de individuação anterior à individuação elamesma, suscetível de explicá-la, de produzi-la, de conduzi-la. A partir do

    indivíduo constituído e dado, esforça-se em remontar às condições desua existência.2 

    A própria noção de princípio não é outra coisa que uma duplicação conceitual da

    individualidade do indivíduo, um pressuposto que serve para dar razão às características

    definitivas do indivíduo. Trata-se, ao contrário, segundo Simondon, de conhecer o

    indivíduo através da individuação, e não a individuação a partir do indivíduo, em outras

     palavras, trata-se de inverter radicalmente a perspectiva da qual se observou o indivíduo,

    afirmando veementemente o primado da individuação:

    O indivíduo seria, então, apreendido como uma realidade relativa, comouma certa fase do ser que supõe, como ela, uma realidade pré-individual,e que, mesmo após a individuação, não existe totalmente só, pois aindividuação não esgota, de um golpe só, todos os potenciais da

    2  G. Simondon,  L’individuation psychique et collective à la lumière des notions de Forme, Potentiel et Métastabilité , Paris, Edition Aubier, 20072, p. 9 ; trad. italiana organizada por P. Virno, Roma,DeriveApprodi, 2001, p. 25.

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    realidade pré-individual e, por outro lado, isso que a individuação fazaparecer não é apenas o indivíduo, mas o par indivíduo - meio. Oindivíduo é, assim, relativo em dois sentidos: porque ele não é todo oser, e porque ele resulta de um estado do ser no qual ele não existia nemcomo indivíduo, nem como princípio de individuação. 3 

    Se o indivíduo, então, é pensado não como um dado que tem sua razão de ser

    conferida por seu duplo conceitual, o princípio, mas é pensado como o resultado de um

     processo, aparece em primeiro plano a dupla relação que ele mantém com o pré-individual

    e com o ambiente. Uma tal inversão de perspectiva é possível, segundo Simondon, graças

    ao conceito de equilíbrio metastável, que ele «extrai do campo da química e da biologia»4.

    Como escreve Carrozzini, «define-se 'metastável' um estado em condições de equilíbrio

    instável. Um sistema que nesta situação consiste em uma magmática reserva de potenciais

    não-atualizados, mas atualizáveis […]. Um sistema metastável encontra-se em umacondição de tensão e potencialidade, dispersão e heterogeneidade [disomogeneità]».5  A

    metafísica, de Aristóteles a Leibniz, pensou a plena reversibilidade dos conceitos de ser e

    uno, e fundado sobre esta reversibilidade, os princípios de identidade e de não-contradição,

    sobre a base de um conceito de ordem segundo o qual a substância permanece e os

    acidentes mudam. Simondon, justamente graças a um conceito de ordem diferente, a ordem

    metastável, rompe com esse pressuposto, desestabilizando a unidade do ser do indivíduo ao

    colocá-lo em uma dúplice relação, com o pré-individual e com o ambiente, o que torna

    totalmente ineficaz a utilização do princípio de não contradição no que lhe diz respeito:

    Para pensar a individuação, deve-se considerar o ser não comosubstância, ou matéria, ou forma, mas como sistema teso, supersaturado,acima do nível de unidade, não consistindo somente nele mesmo e não podendo ser adequadamente pensado por meio do princípio do terceiroexcluído; o ser concreto, ou ser completo, isto é o ser pré-individual, éum ser que é mais do que uma unidade. A unidade, característica do serindividuado, e a identidade, que autoriza o uso do princípio do terceiroexcluído, não se aplicam ao ser pré-individual, o que explica que não se possa recompor a posteriori o mundo com mônadas [...]; a unidade e aidentidade se aplicam apenas a uma das fases do ser, posterior àoperação de individuação; [...] elas não se aplicam à ontogênese

    3 Ivi, p. 12; tr. it. cit., p. 27.4 G. Carrozzini, Gilbert Simondon: per un'assiomatica dei saperi, Lecce, Manni, 2007, p. 48.5  Ibidem.

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    entendida no sentido pleno do termo, isto é, no sentido do devir do serenquanto ser que se desdobra e se defasa [se déphase] ao se individuar. 6 

    Simondon apresenta a individuação física e a individuação no âmbito do vivente

    como casos de resolução de um sistema metastável, com a diferença que, enquanto no

    âmbito físico a individuação ocorre «em um modo apenas instantâneo, quântico, brusco e

    definitivo, deixando atrás de si uma dualidade meio - individuo», «o vivente conserva em si

    uma permanente atividade de individualização»7:

    O indivíduo vivente é sistema de individuação, sistema individuante e

    sistema que se individua. 8 

    Exatamente esse caráter da individuação no âmbito do vivente permite a Simondon

     pensar o nível psíquico e o coletivo em termos de individuações sucessivas com respeito à

    individuação vital.

    Todavia, a individuação psíquica e a coletiva não são pensadas como sucessivas

    uma à outra, segundo um modelo diacrônico de desenvolvimento, mas em termos

    sincrônicos, como um mesmo processo que dá lugar a um interno e a um externo. O

    conceito de transindividual é introduzido para dar conta precisamente desta dúplice

    individuação, psíquica e coletiva, que ocorre a um só tempo. É implicitamente refutado,

    com o vocábulo, o próprio modelo husserliano da intersubjetividade, uma vez que o sujeito,

    o interno, não precede a relação, mas é por ela constituído:As duas individuações, psíquica e coletiva, são recíprocas uma emrelação à outra; elas permitem de definir uma categoria dotransindividual que pretende dar conta da unidade sistemática daindividuação interior (psíquica), e da individuação exterior (coletiva). Omundo psicossocial do transindividual não é nem o social bruto, nem ointer-individual; ele pressupõe uma verdadeira operação de individuaçãoa partir de uma realidade pré-individual, associada aos indivíduos ecapaz de constituir uma nova problemática dotada de sua própriametastabilidade. 9 

    O transindividual é, portanto, o nome da complexa trama de relações que constitui a

    um só tempo a individuação psíquica e a coletiva.

    6 G. Simondon, L’individuation psychique et collective cit., pp. 13-14, tr. it. cit., p. 28.7 Ivi, p. 16; tr. it. cit., p. 30.8 Ivi, p. 17; tr. it. cit., p. 31.9 Ivi, pp. 19-20; tr. it. cit., p. 32.

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    3. O primado das relações sobre os elementos 

    Aqui emerge toda a importância da segunda tese através da qual se buscou delinear

    a posição filosófica de Simondon, a afirmação do primado da relação sobre os elementos,

    da constitutividade da relação com respeito aos elementos; tese sustentada alguns anos

    antes por Whitehead, e naqueles mesmos anos por Paci em obras como Tempo e relazione e

     Esistenzialismo e relazionismo, sem que, no entanto, seja relevante qualquer mútua

    influência.

    A relação nunca é, em Simondon, relação entre dois termos pré-existentes, mas

    constituição, pela própria relação, dos termos colocados em jogo. Neste sentido, trata-se,segundo Simondon, de delinear um novo método que esteja à altura de seus conceitos de

    individuação e de transindividual:

    O método consiste em não tentar compor a essência de uma realidade por meio de uma relação conceitual  entre dois termos extremos pré-existentes, e a considerar toda verdadeira relação como possuindo ostatus de ser. A relação é uma modalidade do ser; ela é simultânea emrelação aos termos dos quais ele assegura a existência. Uma relação deveser apreendida como relação no ser, relação do ser, maneira de ser, e nãosimples relação entre dois termos que se poderia adequadamenteconhecer por meio de conceitos, pois eles possuiriam uma existênciaefetivamente separada e precedente. É porque os termos são concebidoscomo substâncias que a relação [relation] é relação [rapport ] entretermos, e o ser é separado em termos porque o ser é primitivamente,anteriormente a todo exame da individuação, concebido comosubstância. Ao contrário, se a substância cessa de ser o modelo do ser, é possível conceber a relação como não-identidade do ser em relação a simesmo, inclusão no ser de uma realidade que não é somente idêntica aele; se bem que o ser enquanto ser, anteriormente a toda individuação, pode ser compreendido como mais que uma unidade e mais que umaidentidade. Um tal método supõe um postulado de natureza ontológica:ao nível do ser, tomado antes de qualquer individuação, o princípio doterceiro excluído e o princípio da identidade não se aplicam; estes princípios não se aplicam a nada além de ao ser já individuado, e elesdefinem um ser empobrecido, separado em meio e indivíduo; eles não seaplicam, assim, ao todo do ser, isto é, ao conjunto formado ulteriormente pelo indivíduo e pelo meio, mas somente àquilo que, do ser pré-individual veio a ser indivíduo. Nesse sentido, a lógica clássica não podeser empregada para pensar a individuação, pois ela obriga a pensar a

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    operação de individuação com conceitos e relações entre conceitos quesó se aplicam aos r esultados da operação de individuação, consideradosde maneira parcial. 10 

    Essa nova lógica, não mais fundada sobre a substância mas sobre a relação, permite

     pensar a relação indivíduo - sociedade não em termos de primado de um elemento sobre ooutro. O transindividual não é outra coisa que a categoria ontológica imposta por esta

    lógica relacional, é o nome do sistema metastável que dá um lugar às individuações

     psíquica e coletiva, trama de relações que atravessa e constitui os indivíduos e a sociedade,

    interditando metodologicamente a substancialização tanto desta última quanto dos

     primeiros:

    A sociedade – escreve Simondon – não surge realmente da mútua presença de muitos indivíduos, mas tampouco é ela uma realidade

    substancial que deveria ser superposta aos seres individuais e concebidacomo independente deles: ela é a operação e a condição de operação pelaqual se cria um modo de presença mais complexa que a presença do serindividuado sozinho. 11 

    É precisamente essa concepção da sociedade como operação que determina um

    modo de presença mais complexo que permite a Simondon fugir de uma substancialização

    da sociedade. A sociedade não é pensada a partir do modelo da substância ética hegeliana,

    modelo certamente relacional, mas centrado sobre uma contemporaneidade essencial que

    faz do indivíduo uma  pars totalis. Simondon, através da categoria de transindividual, propõe pensar a sociedade não como o substrato de inerência de um feixe de relações do

    qual ela seria o centro lógico ou a qualidade temporal (o  Zeitgeist ), mas como um sistema

    de relações ele mesmo sem centro. Em outras palavras, a própria relação indivíduo -

    sociedade não se dá nunca como uma relação simples, mas como um sistema de relações

    extremamente complexo e estratificado:

    [...] é difícil – escreve Simondon – considerar o social e o individualcomo se afrontando diretamente em uma relação entre indivíduo e

    sociedade. Tal afrontamento corresponde apenas a um caso teóricoextremo ao qual se aproximam certas situações patológicas vividas; osocial se substancializa em sociedade para o delinqüente ou o alienado,talvez para a criança; mas o social não é um termo de relação: ele é

    10 Ivi, pp. 23-24, tr. it. cit., pp. 35-36.11 Ivi, p. 177, tr. it. cit., p. 144.

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    sistema de relações, sistema que comporta uma relação e a alimenta. Oindivíduo entra em relação com o social tão somente através do social.  12 

    Simondon conclui que «não há algo como o psicológico e o sociológico, mas o

    humano que, no limite extremo e em situações raras, pode se desdobrar em psicológico e

    em sociológico»13.

    4. Conclusões 

    Aquilo que Simondon constrói através seu A individuação psíquica e coletiva é um

    verdadeiro e próprio sistema filosófico, no fundo, no mesmo estilo dos grandes sistemas do

    idealismo alemão. Uma tentativa de construir um método que permita pensar os diferentesníveis do ser sobre a base do conceito de ordem metastável. Empreendimento titânico.

    Todavia, se hoje talvez tenha se tornado possível reescrever em termos materialistas uma

    filosofia do espírito à la Hegel, a estrada certamente foi aberta pelo conceito simondoniano

    de transindividual, sob a condição de que ele seja repensado não apenas através da

    conceitualidade spinozana, como o fez Balibar, mas também através daqueles que

    constituem o ineludível ponto de referência de qualquer concepção contemporânea da

    individuação: Marx, Darwin, Freud. Este é o desafio filosófico que nos reserva o porvir.

    12 Ivi, p. 179, tr. it. cit., p. 146.13 Ivi, p. 180, tr. it. cit., p. 146. [ il n’y a pas du psychologique et du sociologique, mais de l’humain qui, à lalimite extrême et dans des situations rares, peut se dédoubler en psychologique et en sociologique.]