sergio buarque de holanda visao do paraiso(1)

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GRANDES NOMES DO PENSAMENTO BRASILEIRO Sergio Buarque de Holanda Visão do Paraíso Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil Sob licença de IP

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  • GRANDES NOMES DO PENSAMENTO

    BRASILEIRO

    Sergio Buarque de Holanda

    Viso do Paraso

    Os Motivos Ednicos no Descobrimento e Colonizao do Brasil

    Sob licena de

    IP

  • Copyright CC> 2000 Publifolha - Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A. e Editora Brasiliense S.A., para a presente edio.

    Copyright CC> Alvaro Augusto Buarque de Hollanda, Heloisa M. Buarque de Hollanda, Sergio Buarque de Hollanda Filho, Francisco Buarque de Hollanda,

    Maria do Carmo Buarque de Hollanda, Anna Maria Buarque de Hollanda, Maria Christina Hollanda Ferreira

    Copyright CC> 1994 Maria Amelia Buarque de Holanda

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nehuma forma ou por nenhum meio, sem a permisso

    expressa e por escrito da Publifolha - Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A. e da Editora Brasiliense S.A.

    Holanda, Sergio Buarque de, 1902-1982 Viso do paraso : os motivos ednicos no descobrimento e colo

    nlzao do Brasil/ Srgio Buarque de Holanda. So Paulo : Braslllense ; Publifolha, 2000.- (Grandes nomes do pensamento brasileiro).

    ISBN 85-1113109-4 Braslllense ISBN 85-7402-189-X Publlfolha

    1. Amrica - Descobrimento c exploraes 2. Brasil - Histria 3. Brasil- Histria e exploraes, at 1549 4. Descobrimentos geogrficos portugueses S. Lendas - Amrica 6. Mitos geogrficos 7. Paraso I. Ttulo.

    CDD-981

    Esta obra foi cedida pela Editora Brasiliense especialmente para a coleo Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro da Folha de S.Paulo.

    R. Airi, 22- CEP 03310-010 So Paulo- SP Te!.: (11) 218-1488- E-mail: [email protected]

    GRANDES NOMES DO PENSAMENTO

    BRASILEIRO

    Coordenao: Publifolha Projeto grfico e capa: Ettore Bottini

    Guia de leitura: Antonio Amoni Prado Produo editorial: Editora Pgina Viva

    Reviso: Fabiana Pino Alves e Jos Alessandre da Silva Neto

    PUBLIFOLHA AI. Baro de Limeira 401 I s andar- CEP 01202-900 So Paulo- SP

    E-mail: [email protected] Internet: www.publifolha.com.br

    Impresso na Grfica Crculo

    Apresentao

    A Folha de S.Paulo apresenta a seus leitores, com exclu-sividade, a coleo Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro. Nela, esto reunidos alguns dos mais importantes autores e obras clssicas da histria e da economia, da sociologia e da literatura, que permitem redescobrir o pas e toda a riqueza e complexidade da cultura brasileira. s voltas com a comemorao dos 500 anos do Descobrimento, o leitor vai entender como e por que o Brasil se tornou o que .

    Os livros foram escritos em diferentes pocas e tratam de longos perodos da histria brasileira, clesde antes do Descobri-mento at o sculo 20. Eles analisam a formao do pas e de seu povo, os conflitos que atravessaram a histria e os que ainda atin-gem a sociedade brasileira. Buscam entender as caractersticas das relaes sociais e raciais e as razes do atraso econmico e poltico do pas.

    Cada volume da srie conta com um guia de leitura escrito especialmente para esta coleo, que inclui um resumo das idias do autor, sua biografia e uma cronologia bsica.

    Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro uma coleo preciosa e indispensvel. uma contribuio ao entendimento geral do Brasil atravs de trabalhos abrangentes e vigorosos que no querem iludir o leitor a respeito do pas que a todo momento ele est ajudando a construir.

  • Sumrio

    Nota primeira edio ................ VIII

    Prefcio segunda edio ................ IX

    I - Experincia e fantasia ................ 1

    11- Terras incgnitas ................ 19

    III - Peas e pedras ................ 43

    IV- O "outro Peru" ................ 83

    V- Um mito luso-brasileiro ................ 133

    VI -As atenuaes plausveis ................ 161

    VII - Paraso perdido ................ 183

    VIII - Viso do paraso ................ 227

    IX- Voltando a Matusalm ................ 301

    X- O mundo sem mal ................ 315

    XI - non ibi aestus ................ 349

    XII - Amrica Portuguesa e ndias de Castela ................ 383

    Bibliografia ................ 407

    ndice remissivo ................ 423

    Anexo ................ 439

    Guia de leitura ................ 443

    Marcos LuRealce

    Marcos LuRealce

    Marcos LuRealce

    Marcos LuRealce

  • Nota primeira edio

    E m setembro de 1958 imprimira-se o presente estudo em ti-ragem limitada, fora de comrcio e com o carter de tese universitria. Depois de nova distribuio da matria em cap-tulos, de correes e de ampliaes do texto, esta segunda im-presso, destinada a um pblico menos exguo, constitui, de fato, a primeira edio de Viso do Paraso.

    No posso deixar de exprimir aqui minha dvida de gra-tido a Jos Olympio e a seus colaboradores pelo interesse amigo com que tomaram a seu cargo as duas impresses sucessivas.

    So Paulo, julho de 1959.

    PRINCIPAIS ABREVIATURAS ABN- Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. AMP- Anais do Museu Paulista. ACSP- Atas da Cmara da Vila de So Paulo. DII - Documentos Ilistricos. DI- Documentos Interessantes para a Ilistria e Costumes de So Paulo. IWIR- Ilispanic American Ilistorical Review. IICPB- Ilistria da Colonizao Portuguesa do Brasil. RGSP - Registro Geral da Cmara de So Paulo. RIIIB- Revista do Instituto Ilistrico e Geogrfico Brasileiro. RIIISP- Revista do Instituto Ilistorico e Geographico de So Paulo.

    Prefcio segunda edio

    R etomando para nova edio este livro, que sai agora bastante aumentado, julguei que uma explicao preliminar ajudaria a desfazer enganos de interpretao surgidos desde que foi publicado pela primeira vez. A outra maneira de se evitar tais enganos estaria em procurar redistribuir a matria segundo critrio aparentemente mais racional, de sorte, por exemplo, que o 7u captulo e o 8, que tratam sobretudo da formao dos mo-tivos ednicos, precedessem aqueles onde se consideram os seus reflexos no descobrimento, conquista e explorao dos mundos novos.

    Ora, alm de importar em refazer-se praticamente toda a obra, o que estaria hoje acima de minha capacidade, se-melhante soluo teria o inconveniente de deixar relegado a um segundo plano aquilo que pretende ser o alvo dominante no presente estudo. No se quis, com efeito, mostrar o processo de elaborao, ao longo dos sculos, de um mito venerando, seno na medida em que, com o descobrimento da Amrica, pareceu ele ganhar mais corpo at ir projetar-se no ritmo da Histria. Nem se tc-.e em mira explorar todas as virtualidades dessa espcie de secularizao de um tema sobrenatural, e que levaram certo autor a perguntar ultimamente se os motivos ednicos no poderiam dar margem a uma ampla teoria, onde toda a Histria encontraria sua explicao. A viso do Paraso, escreve ainda o mesmo autor, foi principalmente responsvel pela grande nfase atribuda na poca do Renascimento natureza como norma dos padres estticos, dos padres ticos e morais, do comportamento dos homens, de sua organizao social e poltica'.

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  • Sem querer pr em tela de juzo os argumentos em que se funda a hiptese, devo salientar que este livro tem ambies menos especulativas e pretenses mais comedidas. O que nele se tencionou mostrar at onde, em torno da imagem do den, tal como se achou difundida na era dos descobrimentos martimos, se podem organizar num esquema altamente fecundo muitos dos fatores que presidiram a ocupao pelo europeu do Novo Mundo, mas em particular da Amrica Hispnica, e ainda assim enquanto abrangessem e de certa forma explicassem o nosso passado brasileiro. Em tais condies bem poderia servir estudo semelhante como introduo abordagem de alguns fundamentos remotos da prpria Histria do Brasil, e de outro-em que no se tocou nestas pginas-, como contribuio para a boa inteligncia de aspectos de nossa formao nacional ainda atuantes nos dias de hoje.

    Sabe-se que para os telogos da Idade Mdia no repre-sentava o Paraso Terreal apenas um mundo intangvel, incor-preo, perdido no comeo dos tempos, nem simplesmente algu-ma fantasia vagamente piedosa, e sim uma realidade ainda presente em stio recndito, mas porventura acessvel. Debuxado por numerosos cartgrafos, afincadamente buscado pelos viajantes e peregrinos, pareceu descortinar-se, enfim, aos primeiros contatos dos brancos com o novo continente. Mesmo quando no se mostrou ao alcance de olhos mortais, como pareceu mostrar-se a Cristvo Colombo, o fato que esteve continuamente na imaginao de navegadores, exploradores e povoadores do hemisfrio ocidental. Denunciam-no as primeiras narrativas de viagem, os primeiros tratados descritivos, onde a todo instante se reitera aquela mesma tpica das vises do Paraso que, inaugurada desde o IV sculo num poema latino atribudo, erradamente segundo muitos, a Lactncio, e mais tarde desenvolvida por Santo Isidoro de Sevilha, alcanara, sem sofrer mudana, notvel longevidade.

    No admira se, em contraste com o antigo cenrio fami-liar de paisagens decrpitas e homens afanosos, sempre a de-bater-se contra uma spera pobreza, a primavera incessante das terras recm-descobertas devesse surgir aos seus primeiros visitantes como uma cpia do den. Enquanto no Velho Mundo a natureza avaramente regateava suas ddivas, repartindo-as por estaes e s beneficiando os previdentes, os diligentes, os pacientes, no paraso americano ela se entregava de imediato em sua plenitude, sem a dura necessidade- sinal de imperfeio

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    _ de ter de apelar para o trabalho dos homens. Como nos pri-meiros dias da Criao, tudo aqui era dom de Deus, no era obra do arador, do ceifador ou do moleiro. .

    Dessa espcie de iluso original, que pode canomzar a cobia e banir o labor continuado e montono, haveriam de partilhar indiferentemente os povoadores de toda a nossa Amrica Hispnica, lusitanos, no menos do que castelhanos, embora a seduo do maravilhoso parecesse aten~ar-s~ entre aqueles por uma aceitao mais sossegada, quase fatahsta, da realidade plausvel. Marcando to vivamente ~s c~meos ~a expanso das naes ibricas no continente, era mevtt~vel,.n~o obstante que o mesmo tema paradisaco chegasse a tmpnmtr traos c~muns e duradouros colonizao das vrias regies correspondentes atual Amrica Latina. E no vai exagero no dizer-se que ela tambm se ter projetado sua maneira sobre a histria daquelas partes do Novo Mundo povoadas inicialmente por anglo-saxes: sugere-o qualquer retrospecto da literatura recente, mas j numerosa, dedicada ao assunto.

    No cabe aqui, seno sucintamente, um tal retrospecto. Para comear lembrarei duas tentativas esboadas com o fim de se investigarem alguns do mitos nacionais dos EUA, onde se podem discernir variantes modernas do tema paradisaco. Em uma, a de Henry Nash Smith2 , professor em Berkeley, descreve-se entre as representaes coletivas que mais claramente dominaram a Histria norte-americana no sculo passado a imagem popular de uma sociedade agrria a dilatar-se sobre as terras virgens do Oeste para as converter finalmente em um cenrio quase ednico. Nesse tema, o mito do "jardim do mundo", como o denomina Smith, efeixam-se vrias metforas expressivas das noes de fecundidade, maturao, crescimento e a do ditoso mister rural, simbolizado numa figura de lavrador munido de sua arma suprema, que o sacrossanto arado.

    Na segunda tentativa, a de R.\V.B. Lewis, de Princetonl, aborda-se outro mito que, embora sem alcanar a popularidade do anterior, foi deliberadamente forjado, no perodo de 1820 a 1860 mais ou menos, entre alguns pensadores e escritores, para definir a imagem ideal do homem americano, que aqui apresentado como um indivduo desatado da Histria, despojado de ancestralidade, estreme das manchas nefastas que lhe poderiam legar famlia e raa, e onde uma gerao afeita leitura da Bblia via facilmente a encarnao do primeiro homem, de Ado, antes do Pecado. Ou melhor, dado que a verdadeira histria

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    TamyNotaO livro faz link com de waren dean

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  • intelectual h de ser de preferncia dialgica ou dramtica, isto , tratar menos das idias dominantes do que dos conflitos e contrastes de idias que prevaleceram em certa poca e certo pas, recorre a um sistema bipartidrio imaginado por Emerson e aponta ento para o partido do futuro contra o partido do passado, ou ainda para o partido da esperana contra o da me-mria. Lewis distingue ainda um terceiro partido, o da ironia, que se caracterizaria tanto pelo senso, negado aos "esperano-sos", das trgicas decepes a que se pode expor a inocncia, quanto pela capacidade, inacessvel esta aos "nostlgicos", de um agudo discernimento, que s o malogro e a dor podem propiciar.

    Assim como o tema do Jardim do Mundo, expresso do ruralismo pioneiro, teve seu grande campo de ao atravs dos Alleghanies e do vale do Mississippi, nos prados e serranias do oeste at as beiradas do Pacfico, o motivo admico ficou confinado costa atlntica em geral, e em particular Nova Inglaterra. Tiveram vida breve ambos os mitos. Se o Jardim do Mundo se havia dissipado quando os apitos das primeiras locomotivas j se ouviam em seus velhos domnios, o Ado americano tinha morri do quando comeavam a troar os canhes da guerra civil, de sorte que glria ednica sucedia a luta fratricida, num duro apelo realidade.

    Se certo, porm, que o mundo de hoje se mostra menos hospitaleiro do que o de h cem anos e mais ao motivo admico, tanto que, segundo o exegeta dessa mitologia, o que agora temos no lugar do Ado americano o Laocoonte americano, no falta quem ainda se esforce por prolongar-lhe a vida. Um bom exemplo desse esforo est em um livro de Leslie A. Fiedler4, onde se procura associar, por exemplo, o momentneo bom sucesso do macarthismo, com todo o seu squito inquisitorial, que punha na linha de fogo as universidades e o pensamento livre e progressista, a um tardio reconhecimento, exacerbado at os extremos da estupidez, dos perigos a que se pode expor a ingenuidade da inocncia admica diante da malcia comunista. O remdio que propugna o autor, quando advoga, em vez do mito tradicional, o de outro Ado mais maduro, Ado de aps a queda, parece um eco daquele partido da ironia descoberto pelo professor Lewis e de seu mais veemente porta-voz, que foi Henry James Senior, quando registrou como o mais assina!ado servio que prestou Eva ao nosso primeiro pai, o de o arrastar para fora do den.

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    E ainda seria possvel inscrever nesta resenha certa verso, sobretudo europia, do motivo do Ado americano, verso no raro negativa e que pode assumir, neste caso, o papel de contrapartida irnica do mito. Onde mais nitidamente pde ela exprimir-se foi no dito atribudo a Walter Rathenau5 de que "a Amrica no tem alma" e nem a mereceu ter, por isto que no consentira at ento, isto , at 1920, em "mergulhar nos abismos do sofrimento e do pecado".

    Mas esses modernos mitos, ou antes, essas variantes modernas de um mito arcaico, no podem interessar aqui seno de modo subsidirio. Em sua forma tradicional, a que alimentou a noo do Paraso entre os telogos da Idade Mdia e que na era dos grandes descobrimentos martimos pareceu materializar-se muitas vezes neste ou naquele lugar do Novo Mundo, ela no tem ocupado menos a ateno de vrios estudiosos norte-americanos, sobretudo nos ltimos tempos. Resulta de seus trabalhos que aquela noo esteve to presente na imaginao dos fundadores da Amrica Inglesa como o estivera na de muitos conquistadores ibricos neste continente. Havia contudo uma diferena sensvel entre os dois casos, se so boas as razes ofe-recidas em obra altamente sugestiva e apoiada em notvel erudio que devotou recentemente ao assunto o Doutor George H. Williams, professor de Histria Eclesistica na Universidade de Harvard6

    Reportando-se expressamente ao presente livro que apresenta, a seu ver, a demanda do Paraso entre descobridores ou conquistadores latinos, e acentuando o papel, nesse sentido, dos sacerdotes catlicos que acompanhavam aqueles homens, nota o autor como vinham eles animados pela crena em um den que generosamente se oferecia, e estava "s espera de ser ganho" (merely waiting to be gained), tanto que j Colombo anunciara ao seu soberano que o tinha achado quase com certeza. Em contraste com eles, os peregrinos puritanos, e depois os pioneiros do Oeste, vo buscar nas novas terras um abrigo para a Igreja verdadeira e perseguida, e uma "selva e deserto", na acepo dada a estas palavras pelas santas escrituras, que atravs de uma subjugao espiritual e moral, mais ainda do que pela conquista fsica, se h de converter no den ou Jardim do Senhor.

    Assim, diversamente do que acontecera com o papista Cristvo Colombo, o calvinista Cotton Mather, de Boston, v na nova plantao de templos, que se vai fazendo na "selva e

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  • deserto" (wilderness: a palavra tem em ingls esse duplo significado), o equivalente de um horto fechado (:nticos, 4,12), de "um Paraso, como se fora o jardim do den". Segundo o Professor Williams, o fato de os sectrios calvinistas, quando no primitivo deserto ou selva plantaram seu jardim, e o dos catlicos espanhis e portugueses, quando se viram atrados pelo Eldorado em seu paraso terreno, serem homens que deixaram o Velho Mundo movidos por sentimentos profundamente diversos, haveria de os levar formulao de padres de vida to apartados uns dos outros que os efeitos destes marcam at hoje os comportamentos contrastantes de seus netos neste continente. Cuida que, mesmo em suas verses secularizadas, essas duas senhas, que so, respectivamente, a do motivo ednico na explo-rao da Amrica do Sul e a do "deserto e selva" na colonizao da Amrica Inglesa pelos puritanos, so singularmente aptas a abrir caminho para o entendimento de vrios aspectos das civilizaes latina e anglo-saxnica no Novo Mundo. Tais aspectos ficariam de todo vedados nossa compreenso se nos valssemos s dessas chaves mais toscas e desgastadas que poderia fornecer eventualmente a distino entre catlicos e reformados, de um modo geral.

    A decisiva importncia histrica de que se reveste a imagem do Paraso Terrestre para bem se conhecer a cultura americana e, no caso, especialmente a dos EUA, assunto de outra obra, a do Professor Charles L. Sanford, j citada nestas pginas, e que se imprimiu quase simultaneamente com a do Doutor Williams. Tamanho , no seu entender, o valor do mito ednico, que chega a parecer-lhe "a mais poderosa e ampla fora organizadora na cultura americana".

    Fazendo um exame das diferentes modalidades assu-midas pelo tema desde Santo Agostinho e o pseudo-Lactncio, at o Renascimento e a Reforma, sem esquecer, de passagem, as doutrinas milenaristas ou quilisticas, que deslocam o Paraso para um futuro mais ou menos distante, detm-se no papel que ele poderia exercer na ocupao da Amrica do Norte pelos anglo-saxes. A lembrana do Paraso perdido, do "cu na terra", constante entre os colonos puritanos, e para alguns dos seus porta-vozes, como Roger Williams, a plantao das novas colnias copia o ato da Criao: aqueles homens, ao fabricarem igrejas e ao alarem cruzes, lanam com isso as sementes da posterioridade de um Ado novo no solo rico c virgem do den recobrado. O quadro no difere muito, aqui, do que encontramos

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    em Wildemess and Paradise, embora se saiba agora tambm que j nos primeiros tempos h colonos que imaginam ver o den materialmente presente no meio da selva selvagem, sem esperarem a futura transformao: um h que, para escndalo dos notveis de Plymouth, se apresenta com o despejo prprio de Ado e Eva antes do pecado. Bem mais para o sul da Nova Inglaterra, em lugares onde o clima e a devoo no tm os mesmos rigores, comea a ganhar trnsito fcil a idia do horto de delcias que se oferece com todas as galas, sem pedir maior esforo da parte dos fiis. J a partir da Virgnia, onde John Smith encontrou Eva na tribo de Powhatan, parecem suceder-se sem pausa as deslumbradoras paisagens. No nos devem enganar, certo, muitas dessas descries inflamadas, que podem encobrir os apetites demasiado profanos de algum especu-lador de terras ou engajador de braos. Aos ltimos pode aplicar-se, com muito mais propriedade e em sentido literal, o que escreveu meio figuradamente Capistrano de Abreu sobre o nosso Gandavo, a saber que seus livros so uma prop:::ganda de imi-grao7. Contudo o simples fato de servir para enlear despreve-nidos j no sugere uma persistente vitalidade dos motivos ednicos?

    O den do Professor Sanford, que quer ser antes de tudo um mito dinmico, no se detm entretanto nessas descries mais ou menos devotas. Nessa concepo, o tema do Paraso Terreal representou em diferentes pocas um modo de interpretar-se a Histria, um efeito da Histria e um fator da Histria. Se o descobrimento do Novo Mundo foi o sucesso que mais claramente serviu para despoj-lo do contedo puramente religioso, a verdade que, secularizando-se, continuaria esse mito a marcar com fora a vida americana. A regenerao moral passou a ser a misso coletiva que se imps ao povo dos EUA, desde que seus antepassados identificaram a nova terra com o den restaurado. Embora optando conscientemente, na prtica, por uma posio de meio-termo entre o primitivismo da "fron-teira mvel" e os requintes da civilizao europia, tendessem a formar um conceito de natureza predominantemente silvtico e rural, no deixaram os norte-americanos de associar ao pro-gresso material a elevao moral. Isso lhes permitiu adaptarem-se sem maiores atritos ou artifcios a toda a complexidade da civilizao industrial. Concluindo, observa o autor que uma vez realizadas, na aparncia, as implicaes revolucionrias do sonho ednico, a imagem do Paraso se tornou um smbolo narcisista

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  • do retraimento conservador. Assediados por novas atlies e an-siedades, passam os americanos a suspeitar que foram despojados do Paraso.

    No entra no meu propsito discutir a validez das razes do Professor Sanford e nem de especulaes tais como as de outro autor'~, que encontra na Amrica Anglo-saxnica no um, mais dois mitos ednicos, que se teriam sobreposto com fr:eqncia a ponto de se fundirem e de se unificarem -o de um paraso perdido sem remisso e o de um paraso recuperado -, de sorte que, se importa distinguir aquela dualidade ou am-bigidade, no menos necessrio reconhecer esta unidade. Tais estudos servem, em todo caso, para mostrar o crescente interesse que o tema vem suscitando entre estudiosos norte-americanos. Esse interesse atestado ainda pela publicao h pouco, em ingls, de obras como a do historiador Henri Baudet, professor de Histria Social e Econmica na Universidade de Groningen, que, traduzida do original holands, primeiramente impresso em 1959, trata das reaes provocadas na mentalidade europia, ao longo dos sculos, pelos contatos com populaes das terras novamente achadas ou exploradas, e onde a imagem do den ocupa lugar eminenteY. E tambm de livros como o do Professor A. Bartlett Giamatti, de Princeton, sobre o Paraso Terrestre na pica do Renascimento 10 , o qual, embora estudando o mito num contexto diverso e estritamente relacionado com a histria literria, no deixa de aludir, embora passageiramente, nfase que o descobrimento da Amrica pde dar procura de uma condio de perdida bem-aventurana e inocncia11 Esse interesse pode ser referido em parte, no caso dos EUA, noo de que os valores dominantes na civilizao americana so como uma ddiva da Histria, isto , de que os primeiros colonos, os founding fathers, equiparam o pas, desde o nascedouro, com uma teoria poltica completa e adequada a todas as suas necessidades futuras 12 .

    Embora sem se reportar expressamente a essa inter-pretao, de razes primeira vista semelhantes que um estudioso de histria das religies deduz a preocupao recente entre americanos, e no s os do EUA, como os da Amrica Latina, por aquele Paraso Terreal que seus antepassados, atravessando o Oceano, vieram achar neste Novo Mundo1.1. Tal interesse andaria associado, para Mircea Eliade, ao desejo, entre intelectuais deste hemisfrio, de voltar atrs, de encontrar a histria primordial dos seus pases. Denotaria tambm uma

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    vontade de comear de novo, uma nostlgica ambio de reviver a beatitude e exaltao criadora das origens, em suma como uma saudade do den. Tudo isso trairia o empenho de recobrarem os fundamentos religiosos dos pases situados nesta banda do oceano. Mas o significado de tal fenmeno ainda lhe parece mais complexo. Seria possvel igualmente discernir nele a aspirao de um renovamento de antigos valores e estruturas, a expectativa de uma radical renovatio, assim como lcito interpretar a maioria das experincias recentes no campo das artes, distinguindo nelas no s o intento de ver destrudos todos os meios de expresso gastos pelo tempo e a usura, mas a esperana tambm de retornar ab initio a atividade artstica.

    Seja qual for o real valor da explicao aqui oferecida para o empenho moderno de autores americanos no sentido de uma recuperao da histria primordial, fora de dvida que ela pode prestar-se a equvocos quando acena vivamente para aquela ambio nostlgica de viver de novo as prprias origens. Estou longe de crer que as tentativas de captar, instalando-a no campo da histria das mentalidades, tomada a palavra no sentido mais amplo (e no apenas no sentido de histria das idias cons-cientemente adotadas), uma representao ideal, "espontnea" ou retletida, que to sedutora pareceu aos primeiros exploradores deste continente, devam equivaler ambio de recuperar um passado perdido. Nem acho que mostrar a fora de contgio que teve naqueles comeos a imagem ednica, ou at procurar ver como tal imagem, embora fazendo-se mais rala ou tomndo formas novas com o correr do tempo, signifique necessariamente renunciar a uma lcida inteligncia das coisas idas para soobrar no impreciso ou no irracional. Ou, ainda menos, para ceder magia ancestral do mito e querer ressuscit-lo, L:omo se dessa forma nos fosse ainda possvel fazer milagres.

    Esta espcie de taumaturgia no pertence, em verdade, ao ofcio do historiador, assim como no lhe pertence o querer erigir altares para o culto do Passado, desse passado posto no singular, que palavra santa, mas oca. Se houvesse necessidade de forar algum smile, eu oporia aqui figura do taumaturgo a do exorcista. No sem pedantismo, mas com um bom gro de verdade, diria efetivamente que uma das misses do historiador, desde que se interesse nas coisas do seu tempo- mas em caso contrrio ainda se pode chamar historiador? -, consiste em procurar afugentar do presente 0s demnios da Histria. Quer isto dizer, em outras palavras, que a lcida inteligncia das coisas

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  • idas ensina que no podemos voltar atrs e nem h como pretender ir buscar no passado o bom remdio para as misrias do momento que corre.

    O resultado mais fecundo do exame que se tentou aqui de algumas pesquisas ultimamente realizadas acerca do quadro ideal que do Novo Mundo forjaram os europeus - ou melhor, castelhanos e portugueses de um lado, do outro anglo-saxes -na era dos grandes descobrimentos est em que, obedecendo geralmente a um paradigma comum fornecido pelos motivos ednicos, esse quadro admitia, no entanto, duas variantes con-siderveis que, segundo todas as aparncias, se projetariam no ulterior desenvolvimento dos povos deste hemisfrio. Assim, se os primeiros colonos da Amrica Inglesa vinham movidos pelo af de construir, vencendo o rigor do deserto e selva, uma comunidade abenoada, isenta das opresses religiosas c civis por eles padecidas em sua terra de origem, e onde enfim se realizaria o puro ideal evanglico, os da Amrica Latina se deixavam atrair pela esperana de achar em suas conquistas um paraso feito de riqueza mundflnal e beatitude celeste, que a eles se ofereceria sem reclamar labor maior, mas sim como um dom gratuito. No h, neste ltimo caso, contradio neces-sria entre o gosto da pecnia e a devoo crist. Um e outra, em verdade, se irmanam freqentemente e se confunrlcm: j Cris-tvo Colombo exprimira isto ao dizer que com o ouro tudo se pode fazer neste mundo, e ainda se mandam almas ao Cu.

    As duas variantes podiam admitir, por sua vez, gradaes no menos significativas de intensidade, pelas conseqncias que delas resultassem. J se viu aqui como ao sul da Nova In-glaterra tendiam a esbater-se, mesmo na Amrica Anglo-saxnica, as imagens que nesse particular pde sugerir o fervor calvinista aos colonos da baa de Massachusetts. Outro tanto parece ocorrer no caso da colonizao ibrica, onde a mitologia da conquista, que to vivaz se manifestava nas ndias de Castela, passava a descolorir-se e definhar, uma vez introduzida na Amrica Por-tuguesa: o fenmeno que neste livro recebe o nome de "atenuao plausvel". Dele se trata expressamente no captulo VI, embora as possveis razes histricas das atenuaes tambm sejam desenvolvidas em outras partes desta obra.

    Mostra-se nas suas pginas como os grandes mitos da conquista ibrica foram, com uma nica exceo, de lavra castelhana, e como entre portugueses costumavam perder eles o vio originrio, despindo-se de muitas das suas frondosidades

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    trreais ou inverossmeis e fazendo-se relativamente acessveis ou plausveis para imaginaes timoratas. Compreende-se, pelas mesmas razes, como o nico mito que, por exceo, se sabe ter comeado a ganhar crdito entre portugueses, e destes se passou para os castelhanos, o de Sum, o So Tom americano, notavel-mente se enriqueceu e ganhou novas cores ao entrar no Paraguai e depois no Peru, conforme se procura mostrar no Captulo V.

    Quando acima se mencionaram razes histricas que ocasionariam as atenuaes plausveis, no se quis associ-las a alguma suposta e imutvel caracterstica tnica ou a um vago "esprito nacional" dos portugueses, que os definisse, em particular, contra os castelhanos. Entende-se, isto sim, que essas "atenuaes" e, de modo mais amplo, toda a mitologia da con-quista, se prendem sobretudo a contingncias histricas onde, em ltima anlise, vo deitar razes, e que essas contingncias podem variar no s no tempo, mas tambm no espao. Mesmo assim, no caberia neste caso dar desenvolvimento exaustivo ao estudo de tais razes, o que resultaria em alongar muito alm do tolervel as dimenses da obra.

    No pretende esta ser uma histria "total": ainda que fazendo cair o acento sobre as idias ou mitos, no fica excluda, entretanto, uma considerao, ao menos implcita, de seu complemento ou suporte "material", daquilo em suma que, na linguagem marxista, se poderia chamar a infra-estrutura. Mas at mesmo entre os tericos marxistas vem sendo de h muito denunciado o tratamento primrio e simplificador das relaes e~tre base e superestrutura, que consiste em apresent-las sob a forma de uma intluncia unilateral, eliminadas, assim, quais-quer possibilidades de ao recproca. Ao lado da interao da base material e da estrutura ideolgica, e como decorrncia dela no falta quem aponte para a circunstncia de que sendo a~ idias fruto dos modos de produo ocorridos em de~erminada sociedade, bem podem deslocar-se para outras reas onde no preexistam condies perfeitamente idnticas, e ento lhes suceder anteciparem nelas, e estimularem, os processos mate-riais de mudana social'4 Ora, assim como essas idias se movem n.o espao, h de acontecer que tambm viajem no tempo, e porventura mais depressa do que os suportes, passando a reagir sobre condies diferentes que venham a encontrar ao longo do caminho.

    O tema deste livro a biografia de uma dessas idias migratrias, tal como se desenvolveu a partir das origens religio-

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  • sas ou mticas (Captulos VII e VIII), at vir implantar-se no espao latino-americano, mormente no Brasil. Para isso foi de grande serventia o recurso Tpica, no sentido que adquiriu esse con-ceito, tomado velha retrica, desde as modernas e fecundas pesquisas filolgicas de E. R. Curtius 15, onde, conservando-se co-mo princpio heurstico, pde transcender aos poucos o cunho sistemtico e puramente normativo que outrora a distinguia, para fertizar, por sua vez, os estudos propriamente histricos.

    Entre os topoi inseparveis das descries medievais do den, oriundos em geral da elaborao que receberam de Lactncio ou de quem fosse o autor do poema latino Phoenix, redigido em fins do III ou comeo do IV sculo de nossa era, destaque-se, para citar um exemplo, o da perene primavera e invarivel temperana do ar, que prevaleceria naquele horto sagrado. Sob a forma que duzentos anos depois de Lactncio lhe dar Santo Isidoro de Sevilha- a do non ibifrigus non aestus-atravessa a imagem toda a Idade Mdia e chega a alcanar os tempos modernos. de notar como, at mesmo a ordem em que na verso do autor das Etimologias so dispostas as referncias temperatura, ou seja, o nonfrigus primeiro, depois o non aes-tus, mantm-se durante todo esse tempo com poucas excees. Entre os inumerveis textos que me foi dado consultar e utilizar a esse propsito, s encontrei a ordem contrria- "calor" antes de "frio" - em uma das mltiplas verses das peregrinaes de S. Brando, contida num texto anglo-normando, no Dittamondo de Fazio degli Uberti, nos Milagres de Berceo, numa trova inacabada de Dom Joo Manuel, neto del-rei Dom Duarte de Portugal e camareiro-mor de Dom Manuel, o Venturoso, final-mente numa poesia de Ronsard, j em pleno sculo XVI. Entre os textos de navegantes ou cronistas que registraram o mesmo esquema em terras americanas, o mais antigo a relao que deu Cristvo Colombo de sua primeira viagem, em que o des-cobridor, falando do clima ameno de Cuba, "ni frio ni calientc", segue risca o padro cannico. Muito mais tarde, ao fazer sua descrio do Paraso segundo esse padro, na Histria de las Indias, que principiou a escrever em 1527, e quase quarenta anos depois, s vsperas da morte, no tinha acabado de rever, frei Bartolomeu de Las Casas fala textualmente na boa e salubre vivenda dos homens naquele stio sagrado, onde no deveria haver calor, nem os at1igiria o frio. Em outro passo da mesma Histria, o bispo de Chiapas d razo aos homens doutos que punham o paraso dos deleites debaixo do trpico do Capricrnio,

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  • desta opinio. E quem no quiser crer venha-o experimentar". Os topoi de uma viso ednica referidos de modo direto ao Brasil, que ainda mais profusamente do que o do non ibi aestus, se disseminam em escritos procedentes da nossa era colonial, c nem sempre na forma apenas metafrica ou condicionalizada como a dos casos que se acabam de citar, e que so, por exemplo, o da vida longeva dos que aqui nascem, ou o da ausncia de pestilncias e enfermidades, no se abordam neste prefcio, nem mister faz-lo, uma vez que so examinados detidamente nos captulos IX e X da obra, e se intitulam, respectivamente, "Voltando a Matusalm" e "O Mundo sem Mal".

    S depois do sculo XVI e talvez por intluncia de autores espanhis que a sobriedade e o realismo que pareciam distinguir, ainda assim, os escritos portugueses, vo dar lugar a efuses mais desvairadas, que bem se podem comparar aos delrios do si,glo de oro castelhano. Entre 1645 e 1650, o licenciado Antonio Len Pinelo, filho de marranos portugueses, nascido em Valladoli, preparava no Peru um copiosssimo tratado onde, com luxuriante cabedal erudito, consegue fixar exata-mente, e quase por excluso - pois no impugna menos do que dezessete opinies infundadas -, o stio em que moraram os nossos primeiros pais antes da queda. Ficava ele, fora de qualquer dvida, bem no centro da Amrica do Sul, que tem formato de corao, dentro de um circulo de 9 graus de dimetro, que so 160 lguas, e 460 de circunferncia.

    No custa muito ao autor ajustar seu achado s indica-es da Bblia. As Escrituras dizem, com efeito, que ficava o den ao oriente da terra em que depois viveu Ado, e isso permitia hesitaes, segundo as primeiras aparncias. Pinelo no hesita, porm: claro que o texto sagrado queria dizer que estava em regies que, com respeito ao orbe habitvel, se achas-sem postas de maneira tal que na sua dialtica se alongassem do Oriente, em outra parte do mundo, bem longe das terras conhecidas. Isso significava, e no podia significar coisa diversa, que ficavam na Amrica. Em seguida tem modos de superar outra dificuldade, quando identifica os quatro rios do Paraso com o Prata, que o Fison, o Amazonas, que o Gion, o Madalena, assimilado ao Tigre, e o Orenoco, ao Eufrates. Tambm a fruta que foi causa da perdio de Ado e Eva no era com certeza a ma, que s medra naturalmente em outras latitudes, nem era a banana, por vrios sugerida, e lhe parecia esta uma opinio grosseira, ou menos ainda a figueira ndica. A fruta da rvore do

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    bem e do mal s podia ser o maracuj, ,granadilla nas ndias de Castela, que pelo aroma e sabor j era capaz de acender o apetite de Eva e cuja misteriosa tlor ostenta claramente as insgnias da Paixo do Senhor.

    Da obra de Pinelo, que s se imprimiu nos nossos dias, foi publicado em vida do autor o "aparato", constante da portada e das tbuas ou ndices, que saiu em 1656. No o devia conhecer Simo de Vasconcelos quando redigia suas "Notcias Curiosas e Necessrias das Coisas do Brasil", com que abre a Crnica da Companhia de Jesus. Imprimiu-se esta primeiramente em 1663 e nos sete ltimos pargrafos vinha explanada a teoria de que estava na Amrica o Paraso, e mais precisamente no Brasil. J se achavam prontos dez exemplares da obra quando veio ordem superior para se riscarem aqueles pargrafos. Foi a de-ciso que afinal prevaleceu, apesar dos pareceres de alguns doutores consultados por Vasconcelos, unnimes em sustentar que nada havia neles em contrrio Santa F catlica, de sorte que o texto definitivo da obra saiu expurgadr. das mesmas passagens. Aconteceu, porm, que num dos pareceres solicita-dos pelo autor, o do Doutor Lus Nogueira, so anexados os ditos sete pargrafos, e deles h cpia em Roma, na Biblioteca Nacional Vittorio Emanuelle, cujo fundo constitudo da antiga livraria do Colgio Romano, e ali os pde ler o Padre Serafim Leite e deles nos dar notcia1r..

    No me foi possvel, at o momento em que redijo estas linhas, conhecer as passagens em apreo: os microfilmes que fiz vir de Roma, baseado nos dados que a respeito publicou o benemrito historiador da Companhia no Brasil, e meu prezads-simo amigo, no corresponderam matria, tendo havido certamente lapso na indicao do catlogo. No fecho do texto impresso das Notcias, isto , nos 103 e 104, segue-se, porm, comparao entre "alguma parte deste Brasil e aquelle Paraso da terra em que Deus nosso Senhor, como em jardim, ps o nosso primeiro pai Ado", uma srie de razes que justificariam o confronto, falando-se em particular nas muitas bondades, riquezas e amenidades desta poro do Novo Mundo. Amparam-se, alm disso, em autoridades de grande ponderao no tempo, como seja o indefectvel Eusbio, ou seja, o jesuta espanhol Joo Eusbio Nieremberg, e no deixa o autor de socorrer-se igualmente de mestres escolsticos da altura de SantoToms de Aquino, So Boaventura, Suares, e at de Cornlio a Lapide, um dos nomes de nosso Padre Antnio Vieira. Na notcia que nos d dos pargrafos

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  • incriminados de Vasconcelos, enlaa-os o Doutor Serafim Leite, talvez com razo, histria literria do ufanismo brasileiro: "Todos cantam sua terra" ... "Minha terra tem palmeiras" ... "Auriverde pendo" ... "Porque me ufano de meu pas" ...

    No seria Vasconcelos o primeiro, como no foi o ltimo, a tentar, com sua fantasia barroca, dar lugar honroso na Amrica Lusitana mstica e inconstante topografia ednica. O ltimo e j bem entrado no sculo XVIII deve ter sido um Pedro de Rates Hanequim, natural e morador em Lisboa, mas que viveu longamente em Minas Gerais e era filho de um cnsul ou residente holands chamado Francisco Hanequim, natural de Roterd. Se Pedro voltou em 1722 a Portugal, tendo morado 26 anos nas minas, como resulta da documentao conhecida, teria sido ali contemporneo das mais antigas lavras de ouro, e isso explica o ter ele passado alguma vez por brasileiro. Anda seu nome associado a uma conspirao que, bem lograda, anteciparia de uns bons oitenta anos a nossa emancipao poltica, pois tinha em mira aclamar-se rei do Brasil ao infante Dom Manuel, irmo de Dom Joo V. Preso em 1741 por ordem de Sua Majestade, viu-se Hanequim chamado depois Mesa do Santo Ofcio, onde acabou pronunciado com sentena de excomunho maior e confisco dos bens, alm de relaxao justia secular. Condenou-o, afinal, a Relao de Lisboa, por acrdo de 21 de junho de 1744, a ser levado Ribeira da cidade, ali afogado, queimado depois, o corpo reduzido a p e cinza, de maneira que nem de sua sepultura houvesse memria.

    O crime que com ema morte assim pagou no foi, porm, de inconfidncia, nem de judeu professo, pois no se provou que fosse sequer da gente da nao. Foi o de heresiarca e apstata, segundo reza o acrdo. E seus erros neste particular, ao que dizem textos para os quais me chamou ateno o professor Paulo Pereira de Castro, meu colega na Universidade de So Paulo, consistiram em sustentar com obstinao impvida que o Paraso Terreal ficara e se conservava no Brasil, entre serranias do mesmo estado. Acrescentava haver ali uma rvore feio de mas ou figos, e esta era a do Bem e do Mal, e assim tambm que o das Amazonas, o So Francisco e outros, eram os quatro rios que saram daquele horto. Aliando antiga opinio de que os americanos descendiam das tribos perdidas de Israel, passagens do Velho Testamento e episdios tomados, ao que parece, da lenda do Sum, afirmava que Ado se criou no Brasil e dali se passou de p enxuto a Jemsalm, abrindo-se para isso as guas

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    do Mar Oceano, assim como as do mar Vermelho se abriram outrora aos israelitas, enfim que as marcas de suas pisadas ainda se podiam ver perto da Bahia. Dizia mais: que no Brasil se haveria de levantar o Quinto Imprio e, para maior escndalo dos inqui-sidores, que o Dilvio no foi universal, j que poupou o Brasil, que no interveio Deus Padre, mas s o Filho e o Esprito Santo na criao do mundo, e que as pessoas divinas tinham corpo, posto que espiritual, como tambm os anjos e a Senhora, uns com mais, outros com menos perfeio e espiritualidade 17

    Bondosamente admoestado pelos juzes eclesisticos que o inquiriam, tendo ele amarrados ps e mos, no quis o ru em nenhum momento abjurar de to adoidadas erronias, preferindo antes a morte e a infmia, extensiva esta a toda a sua descen-dncia, ao arrependimento. Longe de humilhar-se, no se cansou em todo o tempo, que foram trs anos, de desafiar os santos inquisidores, acusando-os de violenta e covarde tirania. Uma distncia imensurvel no tempo parece correr entre aquela censura ainda hesitante e disputada, que incriminou as quase audcias teolgicas de Vasconcelos, e essa amofinao sem trguas que vai levar at a morte danada o antigo mineiro Pedro de Rates. Agora, no limiar da era das Luzes, mas ainda em nome da Santa Madre Igreja, se vai criando um clima cada vez mais irrespirvel para os delrios de imaginao que no se deixem represar no mbito de uma estreita e insuspeitvel ortodoxia. No s a supremacia crescente do saber racional ou emprico, mas tambm um caudal maior de conhecimentos acerca das antigas terrae incognitae, fazem desbotar-se ou alterar-se uma fantasia, herdeira de tradies milenares, que se infundiu nas almas dos navegantes e de quantos homens largaram a Europa na demanda de um mundo melhor, ao contato com os bons ares e boas terras do novo continente. E que, mesmo passado o des-lumbramento inicial, ainda se mantm longamente por fora dos costumes e da inrcia, conseguindo sobrepor-se tranqilamente aos primeiros desenganos.

    Dedicou-se este livro tentativa de estudar essa espcie de fantasia e sua intluncia imediata sobre o esforo colonizador. No se exclui, com isso, que, atravs de possveis avatares, con-tinuasse ela a atuar sobre os destinos dos povos americanos, brasileiro inclusive, e nem que deixasse de haver ao seu lado, e desde o comeo, ou quase, uma imagem negadora dessa mesma fantasia. Contudo, uma considerao daquelas metamorfoses iria muito alm dos meus propsitos e me levaria ao terreno movedio

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  • de especulaes mais ou menos caprichosas. Quanto s imagens negativas que pde suscitar o Novo Mundo, nada mostra que fossem aos mesmos extremos a que chegou a sua idealizao. Ou melhor, no conseguiram cristalizar-se, salvo como opinies individuais e sem muita fora de contgio, em qualquer coisa que merecesse chamar-se um antiparaso ou, se quiserem, uma viso do inferno, capaz de contrapor-se s inumerveis vises ednicas que inspiraram as novas terras.

    Quando muito redundaram na idia, cara a naturalistas do sculo XVII, sobretudo a Buffon, de que na Amrica no se mostrara prdiga a natureza ou estuante de vitalidade e energia criadora como acontecera com tantas partes do Velho Mundo. Quer dizer que ela envelhecera precocemente, dando desde cedo sinais daquela degradao a que se referiram certos autores setecentistas, e que exprime a seu respeito um Corneille De Paw nas Reflexions Philosophiques, ou ainda que no pudera robus-tecer-se e ganhar formas ntidas. A mesma imagem negativa do Novo Mundo podia esgalhar-se, pois, indiferentemente, em duas idias que na aparncia se opem: a de um mundo gasto ou degenerado e a de um mundo inacabado ou imaturo. Sob este ltimo aspecto acha ela talvez sua derradeira expresso no pensamento de Hegel, e vai presidir decisivamente seus pontos de vista sobre as duas Amricas, a anglo-saxnica- que foi pro-priamente colonizada - e a ibrica ou latina que, com certas reservas ou atenuaes no que respeita ao Brasil, foi antes conquistada, tudo desembocando afinal na insinuao de um antagonismo futuro entre ambas, que no chega a delinear-se precisamente no seu espirito, por acreditar que imprprio do mister de filsofo o pretender ser profeta.

    Para elaborar-se esta nova edio, e no sei ~8 definitiva, de Viso do Paraso, tive oportunidade de socorrer-me de nu-merosas fontes documentais a que no tivera acesso quando preparava a primeira, ainda que de algumas j tivesse notcia. o caso, para citar um exemplo, do tratado do Paraso na Amrica, de autoria do Licenciado Antonio Len Pinelo. Embora j sou-besse que o manuscrito seiscentista fora finalmente impresso em 1941 por diligncia do ilustre historiador e homem de Estado peruano Raul Porras Barrenechea, tinham sido inteiramente inteis os meus esforos no sentido de obter algum exemplar da obra: a resposta invarivel s indagaes feitas junto a livreiros de Lima era de que se tratava de impresso fora do comrcio, de ti-ragem limitada e j completamente esgotada. S mais tarde tive

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    a grata satisfao de receber os dois compactos volumes ~a obra de Len Pinelo, que me foram gentilmente mandados de L1ma por Don Felix Denegri Luca. Devo tamanha gent~leza int~rveno solcita e generosa de um comum amigo, o Professo~ Lew1~ Hankc, ento da Universidade de Columbia, a quem de1xo reiterados aqui, e ao Senhor Denegri, os meus melh?,res agradecimentos.

    Trs visitas que posteriormente hz aos EUA, uma das quais se prolongou por perto de um ano, deram-m~ a ocasio de aumentar muito e atualizar meu cabedal de conhecimentos s~bre 0 tema aqui estudado. Para isso foram de inestim~vel v~ha as pesquisas que pude efetuar, sucessivamente, na Lllly L1bra~, especialmente na sua opulenta cole~ B. Men.del, da. Um-versidade de Indiana, onde me levou conv1te receb1do por mter-mdio do Professor James Scobie para dar curso sobre matria de minha especialidade naquela casa; na biblioteca da Uni-versidade de Yale, facilitada esta por um convite semelhante, partido de velho e caro amigo, o Professor Richard M. Morse; por fim, mas not least, na Livraria Pblica da cidade de Nova York. Com os muitos subsdios novos que me proporcionaram essas pesquisas, e com um reexame mais detido de algumas partes da obra, de h muito esgotada, veio-me a tentao de public-la de novo, refundindo em muitos pontos e enriquecendo o seu texto.

    So Paulo, novembro de 1968.

    Notas

    1. Charles L. SANFORD, Tlie Questfor Paradise. Europe and American Morallmagination, Urbana, III., 1961, pgs. 34, 56 e passim.

    2. Ilenry Nash SMITII, Virgin Land. The American West as Symbol and Myth, Cambridge, Mass., 1950.

    3. R. \V. n. LE\VIS, TlwAmericanAdamlnnocence, Tragedyand Tradition in the Nineteenth Century, Chicago-Londres, 1955.

    4. Leslie A. FIEDLER, An End to lnnocence, lloston, 1955. 5. Andr GIDE, Journa/, 1889-1935, Paris, 1955, pg. 719. 6. George li. \VILLIAMS, IVildemess and Paradise in ChristianThotl!lht,

    Nova York, 1962. 7. Sobre esse tipo de publicidade, que parece ter tlorescido singularmente

    a propsito da Virgnia nos sculos XVII e XVIII, pode-se ler Louis \VRIGIIT, The Colonial Search for a Southem Eden, llirminghan, Ala., 1953, sobretudo s pgs. 41-62, o captulo intitulado "Eden anti Utopia South of Virginia".

    R. Frederic I. CARPENTER, "The Amcrican Myth - Paradise (to be)

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  • Regained", Publications of the Modem Language Association, vol. 74, Nova York, dezembro de 1959.

    9. Henri BAUDET, Paradise on Earth: Some Thoughts on European Images of Non European Man, New Haven, 1965.

    10. E. Bartlett GIAMATTI, The Earthly Paradise and the Renaissance Epic, Princeton, N. J., 1966.

    11. "Indeed, the hope of finding it ('the lost state of bliss and innocence') seemed to increase enormously with the discovery of the New World, and American literature itself ls constantly read as a record of the quest for the happiness in the great unspoiled garden", op. cit. pg. 6. No retrospecto forosamente incompleto que se apresenta neste prefcio, deixei de citar o trabalho de Alan HEIMERT, "Puritanism, the Wilderness and the Frontier", New England Quartely, XXVI, 1953, tido por George H. Williams como o primeiro estudo sistemtico da influncia ednica na colonizao da Nova Inglaterra, por no ter tomado conhecimento dele, nem antes nem depois de preparada a primeira edio do presente livro. No referido estudo, ainda segundo Williams, peregrinos e puritanos pensaram ver na Amrica primitiva uma terra prometida, depois um deserto e selva (wilderness), por onde se alcanaria finalmente a Jerusalm mstica. Deixei igualmente de abordar a obra de L.I. RINGBOM, Paradisus Terrestris, Myt, Bild och Verklinghet, Helsinki, 1958, devido a minha total incompetncia com relao ao idioma em que foi escrito (sueco).

    12. Danid J. BOORSTIN, The Genius o f American, Politics, Chicago, 1965, pgs. 11 e segs.

    13. "Indeed there have rarely been published more books with titles containing the word 'paradise', than on the colonization o f the Americas. Among works published in recent years, let us point out: Viso do Paraso: os moti'Vos ednicos no descobrimento e colonizao do Brasil (Rio de Janeiro, 1959), by Sergio Buarque de Holanda; The Questfor Paradise (1961), by Charles L. SANFORD; Wilderness and Paradise in Christian Thought (1962), by George H. WILLIAMS, subtitled 'From the Garden of Eden and the Sinai desert to the American Frontier"'. Mircea ELIADE, "Paradise and Utopia: Mythical Geography and Eschatology"; Utopia and Utopian Thought, edited by Frank E. Manuel, Boston, 1966, pg. 261.

    14. Adam SCHAFF, "The Marxist Theory of Social Development", Le D'Veloppement Social, Paris-Haia, 1965, pg. 78.

    15. Ernst Robert CURTIUS, Europaische Literatur und lateinisches Mittelalter, Berna, 1948.

    16. Serafim, LEITE, "O tratado do Paraso na Amrica e o ufanismo brasileiro", No'Vas Pginas de Histria do Brasil, Lisboa, 1963, pgs. 379-382.

    ( +) Nota 3 edio: Ver Anexo pgina 439 do presente volume. 17. Ernesto ENNES, Dois Paulistas Insgnes, 1 vol., S. Paulo, 1944, pgs.

    101 e segs., e 435 e segs.

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    I. Experincia e fantasia

    O GOSTO DAMARA VILHA E DO MISTRIO, quase inseparvel da literatura de viagens na era dos grandes descobrimentos martimos, ocupa espao singularmente reduzido nos escritos quinhentistas dos portugueses sobre o Novo Mundo. Ou porque a longa prtica das navegaes do Mar Oceano e o assduo trato das terras e gentes estranhas j tivessem amortecido neles a sensi-bilidade para o extico, ou porque o fascnio do Oriente ainda absorvesse em demasia os seus cuidados, sem deixar margem a maiores surpresas, a verdade que no os inquietam, aqui, os extraordinrios portentos, nem a esperana deles. E o prprio sonho de riquezas fabulosas, que no resto do hemisfrio h de guiar tantas vezes os passos do conquistador europeu, em seu caso constantemente cerceado por uma noo mais ntida, por-ventura, das limitaes humanas e terrenas.

    A possibilidade sempre iminente de algum prodgio, que ainda persegue os homens daquele tempo, mormente em mundos apartados do seu, alheios aos costumes que adquiriram no viver dirio, no deixar de afet-los, mas quase se pode dizer que os afeta de modo reflexo: atravs de idealizaes estranhas, no em virtude da experincia. possvel que, para muitos, quase to fidedignos quanto o simples espetculo natural, fossem certos da fantasia: da fantasia dos outros, porm, no da prpria. Mal se esperaria coisa diversa, alis, de homens em quem a tradio costumava primar sobre a inveno, e a credulidade sobre a imaginativa. De qualquer modo, raramente chegavam a transcender em demasia o sensvel, ou mesmo a colori-lo, retific-lo, complic-lo, simplific-lo, segundo mo-mentneas exigncias.

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  • O que, ao primeiro relance, pode passar por uma caracterstica "moderna" daqueles escritores e viajantes lusitanos- sua adeso ao real e ao imediato, sua capacidade, s vezes, de meticulosa observao, animada, quando muito, de algum interesse pragmtico- no se relacionaria, ao contrrio, com um tipo de mentalidade j arcaizante na sua poca, ainda submisso a padres longamente ultrapassados pelas tendncias que governam o pensamento dos humanistas e, em verdade, de todo o Renascimento?

    Nada far melhor compreender tais homens, atentos, em regra geral, ao pormenor e ao episdico, avessos, quase sempre, a indues audaciosas e delirantes imaginaes, do que lembrar, em contraste com o idealismo, com a fantasia e ainda com o senso de unidade dos renascentistas, o pedestre "realismo" e o particularismo prprios da arte medieval, principalmente de fins da Idade Mdia. Arte em que at as figuras de anjos parecem renunciar ao vo, contentando-se com gestos mais plausveis e tmidos (o caminhar, por exemplo, sobre pequenas nuvens que lhes serviriam de sustentculo, como se fossem formas corpreas), e onde o milagroso se exprime atravs de recursos mais convincentes que as aurolas e nimbos, to familiares a pintores de outras pocas1

    S a obstinada iluso de que a capacidade de apreender o real se desenvolveu at os nossos dias numa progresso constante e retilnea pode fazer-nos esquecer que semelhante "retrocesso" no se deu apenas na esfera da arte. Se parece exata dizer-se que aquela iluso foi estimulada e fortalecida pelo inegvel incremento das cincias exatas e da observao da Natureza, a contar do sculo XVI, indubitvel, no entanto, que nossa noo da realidade s pde ser obtida em muitos casos por vias tortuosas, ou mesmo por escamoteaes ainda que transitrias, do real e do concreto.

    bem significativo o vio notvel alcanado, em geral, durante o Renascimento, por estudos tais como os da Retrica, da Magia, da Astrologia, da Alquimia, que, na sua maior parte, julgamos hoje anticientficos e ineficazes, por isso mesmo que nos parecem tender a algumas daquelas escamoteaes. Na primavera da Idade Moderna, quando tradio medieval, rabe e crist se alia a do mundo clssico, agora ressuscitada, povoando o cu de imagens "onde se transfiguram, ganhando foras novas, as crenas mitolgicas da Antiguidadc"2 , longe de chegarem a desfalecer , ao contrrio, um recmdescimento o que conhecem muitos desses estudos.

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    Em todo o longo curso da polmica dos humanistas contra a escolstica e o aristotelismo, a superioridade freqen-temente afirmada da Retrica em confronto com a Dialtica e a Lgica relaciona-se para muitos sua capacidade de aderi~ ma~s intimamente ao concreto e ao singular ou, ainda, sua ehccta maior como instmmento de persuaso1 Pode dizer-se que o influxo deste modo de sentir ir marcar ulteriormente o pensamento e, segundo todas as probabilidades, a estti~a dos seiscentistas, dirigindo esta ltima, de um lado, no senttdo de esquivar-se expresso direta, e de outro, paradoxalmente, para a forma incisiva e sem meandros.

    A propsito deste ltimo aspecto houve mesmo quem relacionasse especulao de certos humanistas a doutrina do estilo cho, propugnada pelos puritanos, e nela visse o prenncio, quando no exatamente a causa, do racionalismo. Contudo, o pano de fundo daquela especulao ainda o complexo de ensinamentos contra os quais ela procura rebelar-se, ganhando foras atravs desta rebelio: o aristotelismo e a escolstica medieval, mas a escolstica de fsicos e lgicos, como o fora o portugus Pedro Hispano, no tanto a de telogos, como o prprio Santo Toms de Aquino.

    principalmente nos pases ibricos que, apesar de Vives, por exemplo, ou dos erasmistas hispnicos, mais podero-sos se iro fazer os entraves da tradio (em particular da tradi-o aristotlica, logo depois retomada, e da escolstica, recupe-rada e quase canonizada, at fora das universidades) a certas manifestaes extremadas do humanismo. s animadverses de um Pedro Ramus, to intluentes entre os povos do norte4 , ningum se h de opor com vivacidade mais agastada, em prol do Estagirita e da Universidade, do que, em sua Responsio, de 1543, o portugus Antnio de Gouveia5 .

    Mesmo nesses pases, porm, mal se poder dizer sem exagero que ficar intil todo o trabalho desenvolvido pelos humanistas em sua campanha antiescolstica ou antiaristotlica. Da exaltao da Retrica, oposto desse modo Lgica e Dialtica, e ainda da averso declarada a todo pensamento de cunho abstrato e puramente especulativo, permanecero neles sinais duradouros.

    Se a tanto vo as conseqncias do interesse generalizado pela Retrica numa poca em que se situam as verdadeiras origens do moderno racionalismo e experimentalismo, dificil-mente se dir que foi menos eminente o prestgio, ento, de

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  • certas doutrinas que a experincia e a razo parecem hoje repelir. No inteiramente justo pretender-se, e houve no entanto quem o pretendesse, que o ocultismo da Idade Mdia se reduz baixa magia dos bruxedos, ao passo que a grande magia pertence de fato ao Renascimento. E todavia parece exato dizer que durante a era quinhentista e ao menos at Giordano Bruno e Campanella, se no mais tarde, as idias mgicas alimentam constantemente a mais conhecida literatura filosfico-teolgica.

    No tem mesmo faltado ultimamente quem procurasse assinalar a ntima relao existente entre as operaes mgicas e a prpria cincia experimental dos sculos XVI e XVII. Por mais que um Bacon, por exemplo, tivesse procurado eliminar de seu sistema as fbulas, maravilhas, "curiosidades" e tradies, a verdade que no logrou sustar a infiltrao nele de princpios dotados de forte sabor mgico e ocultista. Em embora sem poupar acres censuras Astrologia, por exemplo, chega a admitir, no obstante, que essa arte h de depurar-se apenas de excessos e escrias, mas no deve ser inteiramente rejeitada.

    Por outro lado, os rastros que muitas concepes mgicas deixariam impressos nas suas teorias filosficas, em sua biologia, sobretudo em sua medicina, que em alguns pontos parece confundir-se com a charlatanice, s se notam em escala muito menor na doutrina cartesiana, porque o terreno por esta aberto deixa naturalmente poucas oportunidades para uma invaso ostensiva da magia e do ocultismo.

    Mas quem, como o prprio Descartes, ousou confessar sua incapacidade de discorrer sobre experincias mais raras antes de conseguir investigar ervas e pedras miraculosas de ndia, ou de ver a ave Fnix e tantas outras maravilhas exticas, e alm disso se valeu de lugares-comuns tomados magia natural para abordar segredos cuja simplicidade e inocncia nos impedem de admirar as obras dos homens, no pode ser considerado to radicalmente infe11so a tal ou qual explicao oculta de fatos empricos. E as causas fornecidas para as propriedades do m e do mbar por um esprito como o seu, que tinha em mira dar motivos racionais e mecnicos para fenmenos supostamente ocultos, j puderam ser interpretados como de molde a animar, e no a destruir, a crena na existncia de tais fenmenos 6

    Assim, as mesmas correntes espirituais que iro desem-bocar a seu tempo na negao do sobrenatural, passando sucessi-vamente pelo naturalismo, o racionalismo, o agnosticismo e

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    enfim pelo atesmo sem rebuo ou temor, parcct.:m ocupadas, num primeiro momento, em retardar o mais possvel, e por estranho que parea, em contrariar a marcha no sentido da secularizao crescente da vida: meta necessria, posto que nem sempre manifesta, dos seus esforos. De modo que no hesitam em ataviar, idealizar ou querer superar a qualquer preo o espetculo mundano. Propondo-se uma realidade movedia c ativa, rica em imprevistos de toda sorte, elas destoam aberta-mente do tranqilo realismo daqueles que, ancorados na certeza de uma vida ditosa e perene, ainda que pstuma, consentem em aceitar o mundo atual assim como se oferece aos sentidos, e se recusam a vesti-lo de galas vs.

    O resultado que uns, meio desenganados, talvez sem o saber, das promessas consoladoras, e movidos de uma desorde-nada impacincia, procuram ou j cuidam ter encontrado na vida presente o que os outros aguardam da futura, de sorte que o mundo, para suas imaginaes, se converte num cenrio prenhe de maravilhas. Aos ltimos, porm, o viver quotidiano nem os deixa oprimidos nem os desata dos cuidados terrenos, e o freio que parece moderar sua fantasia uma esperana conten-te e sossegada.

    No est um pouco neste caso o realismo comumente desencantado, voltado sobretudo para o particular e o concreto, que vemos predominar entre nossos velhos cronistas portugue-ses? Desde Gandavo e, melhor, desde Pera Vaz de Caminha at, pelo menos, Frei Vicente do Salvador, uma curiosidade rela-tivamente temperada, sujeita, em geral, inspirao prosaica-mente utilitria, o que dita as descries e retlexes de tais autores. A extravagncia deste ou daquele objeto, que ameaa desafiar o costume e ordem da Natureza, pode ocasionalmente acarretar, certo, alguma vaga sugesto de mistrio. De que nos serve, porm, querer penetrar a todo o transe esses segredos importunos? Muito mais do que as especulaes ou os desvai-rados sonhos, a experincia imediata o que tende a reger a noo do mundo desses escritores e marinheiros, e quase como se as coisas s existissem verdadeiramente a partir dela. A experincia, "que madre das coisas, nos desengana e de toda dvida nos tira" 7, assim falou um deles nos primeiros anos do sculo XVI.

    "Madre" das coisas, no apenas sua "mestra", de acordo com a frmula antiga, que mal principiavam a reabilitar pela mesma poca espritos do porte de Leonardo. A obsesso de

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  • irrealidades , com efeito, o que menos parece mover aqueles homens, em sua constante demanda de terras ignotas. E, se bem que ainda alheios a esse "senso do impossvel", por onde, segundo observou finalmente Lucien Febvre, pode distinguir-se a nossa da mentalidade quinhentista8, nem por isso mostravam grande af em perseguir quimeras. Podiam admitir o maravilhoso, c admitiam-no at de bom grado, mas s enquanto se achasse alm da rbita de seu saber emprico. Do mesmo modo, em suas cartas nuticas, continuaro a inscrever certos topnimos anti-quados ou imaginriosY, at o momento em que se vejam levados a corrigi-los ou suprimi-los, conforme o caso.

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    No era essa, ento, a atitude comum entre povos navegadores. J s primeiras notcias de Colombo sobre as suas ndias tinham comeado a desvanecer-se naquele Novo Mundo os limites do possvel. E se todas as coisas ali surgiam magnificadas para quem as viu com os olhos da cara, apalpou com as mos, calcou com os ps, no seria estranhvel que elas se tornassem ainda mais portentosas para os que sem maior trabalho e s com o ouvir e o sonhar se tinham por satisfeitos. Nada parece, alis, quadrar melhor com certa sabedoria sedentria do que a impacincia de tudo resolver, opinar, generalizar e decidir a qualquer preo, pois o nimo ocioso no raro se ajusta com a imaginao aventureira e, muitas vezes, de onde mais minguada for a experincia, mais enfunada sair a fantasia.

    Reduzidas porm palavra impressa, com o prestgio que se associa novidade, muitas razes falsas e caprichosas deveriam ganhar, por aquele tempo, a fora das demonstraes. A Rabelais, ou a quem escreveu o quinto livro de Pantagruel, deve-se certa alegoria que traduz a importncia atribuda, entre seus contemporneos, literatura corrente sobre as terras incg-nitas. Disforme velhinho, de enorme goela em que se agitam sete lnguas - ou uma lngua repartida em sete -, a falarem simultaneamente em sete idiomas diversos, o prodigioso OuyrDire, apesar de cego e paraltico das pernas, ostenta da cabea aos ps tanto de orelhas quanto de olhos tivera Argos.

    Cercado de uma chusma de homens e mulheres, sempre atentos e gulosos de cincia, no cessa o monstro de ministrar-lhes, ajudado do mapa-mndi, explicaes sumrias, em breves

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    e incisivos aforismos, a respeito das mais notveis maravilhas existentes em toda a superfcie desta esfera terrestre, com o que se fazem eles sapientssimos doutores, aptos a discorrer de cor e com perfeita elegncia sobre os mnimos aspectos da matria versada. Matria de que toda uma vida humana haveria de representar, normalmente, muito pouco para se conhecer sua centsima parte.

    No sem alguma surpresa que, no rol dos historiadores antigos e modernos, dissimulando-se por trs de um tapete a trabalhar afanosamente para Ouvir-Dizer e seus discpulos, vamos encontrar (nico portugus nominalmente citado entre os membros de vasta equipe, que no inclui um Vasco da Gama, como no inclui, alis, Colombo, nem Vespcio) o descobridor da terra de Santa Cruzw. E j alguma coisa o fato desse Pietre lvares surgir na relao mutilado apenas do seu apelido mais notrio, quando outros nomes- o de Andr Thevet, por exemplo, convertido em Tevault, ou o de Cadamosto, transformado em Cadacuist -,de to estropiados se tornam quase irreconhecveis.

    De qualquer modo a presena de Pedro lvares Cabral numa ilustre companhia de cronistas ou, como l est, de histo-riadores, companhia to larga quanto ecltica, pois abrange, entre outros, Estrabo e Plnio, Herdoto e Marco Polo, Halton o armnio e o Papa Pio Il, ou seja, Enias Slvio Piccolomini, s seria explicvel por alguma estranha confuso: confuso, talvez, entre o almirante lusitano e o chamado Piloto Annimo, autor de uma das relaes conhecidas de sua viagem11

    A parte que cabe aos portugueses nas origens da geografia fantstica do Renascimento acha-se, realmente, em ntida desproporo com a multplice atividade de seus navegadores. Sensveis, muito embora, s louanias e gentilezas dos mundos remotos que a eles se vo desvendando, pode dizer-se, no entanto, que, ao menos no caso do Brasil, escassamente contri-buram para a formao dos chamados mitos da conquista. A atmosfera mgica de que se envolvem para o europeu, desde o comeo, as novas terras descobertas, parece assim rarefazer-se medida em que penetramos a Amrica Lusitana. E quando muito guisa de metfora que o enlevo ante a vegetao sempre verde, o colorido, variedade e estranheza da fauna, a bondade dos ares, a simplicidade e inocncia das gentes- tal lhes parece, a alguns, essa inocncia que, dissera-o j Pero Vaz de Caminha "a de Ado no seria maior quanto v~rgonha" -, pode sugerir~ lhes a imagem do Paraso Terrestre.

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  • Se imagem semelhante alguma vez lhes ocorrera, alis, no curso de sua j longa tradio nutica, fora, talvez, quando, passados os primeiros decnios de explorao da costa africana, queles quadros que at ento tinham descortinado quase inces-santemente, de baixos de pedra e areia movedia, em que nem cresce erva, nem h mostras de coisa viva, sucede, transposta a foz do Senegal, o espetculo de um imenso pas verdejante, tlorido e frtil, como a lembrar-lhes um stio encantado.

    Ao majestoso de tal espetculo imprimia ainda um cunho de mistrio a verso de que as guas do mesmo rio vinham da regio das nascentes do Nilo. Alcanado o lugar em 1445 por Dinis Fernandes, dez anos depois um navegante veneziano a servio do Infante Dom Henrique imagina-se, escudado no pare-cer de "homens sbios", em face de um dos muitos ramos do Gion, que nasce no den: outro ramo seria o Nilo 12 .

    Note-se, porm, que no era de forja lusitana ou sequer quatrocentista essa curiosa teoria que levava um doi' tributrios do Gion- por certos autores identificados com o prprio Nilo-a ir despejar as guas no Atlntico. Pretendeu-se com bons argu-mentos que o primeiro a formul-lo fora Eutimenes de .Masslia, e o "priplo" que celebrizou esse nauta data do sexto sculo antes de Cristo. Impressionara-se ele com a presena em um rio africano que desemboca no Atlntico de bestas-feras em tudo semelhantes s que se encontram no Egito. Assim se l na transcrio que de seu testemunho nos d Sneca, como tambm a afirmativa lacnica de que o Nilo corre naquelas partes ociden-tais: "Navigavi Atlanticum mare. Indc Nilus tluit [ ... ]"1.1. Outros testemunhos antigos precisam que as tais bestas, semelhantes s do Egito, eram crocodilos e tambm hipoptamos.

    Que Eutimenes tivesse efetivamente alcanado a boca do Senegal ponto ainda hoje controverso. Em apoio de semelhante presuno vem justamente aquela referncia aos crocodilos, que, a julgar pelas condies atuais, no poderiam encontrar-se em nenhum outro lugar mais ao norte na costa atlntica da Africa 1 ~. Como esses grandes surios passavam ento por uma espcie de prerrogativa do Nilo, no custava aparentar a este todo rio onde porventura se achassem. Foi o que se deu com o prprio Indo, que ainda ao tempo de Alexandre, c para o prprio Alexandre, passava por ser, em realidade, o curso superior do Nilo.

    Por incrvel que possa parecer, a idia continuou a ter crdito durante muitos sculos, c saiu mesmo fortalecida com o advento do cristianismo. Pois no est no Gncsis que manava

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    do Paraso Terreal um rio para reg-lo, e dali se tornava em quatro ramos, o Fison, o Gion, o Heidequel e o Eufrates? Desde que os trs primeiros passaram a ser em geral identificados com o Ganges, o Nilo, e o Tigre, respectivamente, restava todavia um problema de difcil soluo: onde c como chegariam suas correntes a contluir? Flvio Josefo dissera do den que era regado por um s rio, cuja corrente circunda a Terra, subdividida em quatro braos. A dificuldade foi por alguns resolvida com a sugesto de que as guas desse rio iam unir-se, na sua maior parte, por baixo da terra.

    Registrando semelhante verso, que tambm se acha bem documentada, alis, na monumental antologia crtica das antigas viagens de descobrimento elaborada pelo Doutor Richard Hennig, pde Howard R. Patch invocar a afirmao de Filostrgio de que as guas do Nilo ou Gion, depois de deixarem o den c antes de chegarem a qualquer stio habitado, se dirigem secretamente ao Mar ndico; empreendem ento uma espcie de curso circular e logo passam por baixo de todo o continente, que se estende at o Mar Vermelho, onde penetram tambm s ocultas, para irem reaparecer, afinal, sob os montes chamados da Lua. Ali arreben-tam de quatro fontes, no muito arredadas umas das outras, que lanam suas guas a grandes alturas. Em seguida cai o rio em um precipcio alcantilado e, atravessada a Etipia, entra por fim em terra do Egito15

    Por menos espantosa, na aparncia, a teoria de que o Nilo deitava um brao para o poente e que este bem poderia ser o Senegal dos antigos navegadores portugueses, teve mais longa vida do que a de sua comunicao subterrnea e submari-na com o Indo ou o Ganges. Segundo observa Rinaldo Caddeo, em nota sua edio das viagens de Cadamosto, ainda em 1711 o alemo G.B. Homann casa o Nilo com o Nger, chamando a um Nilus albus e a outro Nilus ater: ao ltimo faz desaguar no Atlntico atravs de vrios ramos, um dos quais seria o Sene-gaF6. Durante toda a Idade Mdia, a teoria iniciada por Eutime-nes e bem acolhida de muitos autores da Antiguidade clssica fora acreditada principalmente pelos gegrafos rabes, que, des-de Edrisi, por volta de 1150 de nossa era, tinham conhecimento do Nger, a que denominavam o Nilo dos negros. O prprio Edrisi chegara a dizer textualmente que, se o Nilo egpcio corre do sul para o norte, outra parte do mesmo rio "se dirige do oriente at os extremos limites, no poente: ao longo deste brao esten-dem-se em sua totalidade ou maior parte, os pases dos pretos"17

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  • No impossvel que, para Cadamosto e seus compa-nheiros portugueses, razes semelhantes s que tinham levado o marinheiro massiliota a associar ao Nilo um dos rios africanos que desembocam no Atlntico tivessem servido para fortalecer a mesma convico. O fato que, depois de aludir existncia de hipoptamos no Gmbia e em muitos outros cursos de gua da regio 111 , acrescenta que esse animal no se acha em outras partes navegadas pelos cristos, ao que ouvira dizer, salvo, talvez, no Nilo:"( ... ] non si trova in altre parti dove si naviga per nostri Cristiani, per quanto ho potuto intendere, se non per ventura nel Nilo". De qualquer modo, to generalizada andava a opinio de que este e o Senegal representam galhos de um mesmo rio que, antes mesmo da primeira viagem do navegador veneziano a servio do Infante Dom Henrique, encontrava ela guarida na clebre bula Romanus Pontifex de Nicolau V, onde se diz das caravelas lusitanas mandadas a descobrir as provncias martimas para a banda do plo antrtico, terem alcanado a boca de um rio que se pensava ser o Nilo.

    de crer que, herdando essa opinio dos gegrafos rabes, ou mesmo de numerosos autores da Antiguidade greco-romana, tais como Herdoto, Aristteles ou Plnio, no duvidas-sem muitos portugueses em aceit-la, tanto mais quanto se limi-taram suas exploraes geralmente orla martima, onde no havia lugar para se verificar sua falsidade.

    A imagem dessa frica insular, abraada, em grande parte de seu territrio, pelos dois ramos de um mesmo rio, no deixaria de ser sugestiva, alis, para um povo dado navegao. Da mesma forma poderiam figurar ainda uma ndia insular, tendo em conta que, para o gentio daquelas partes, era fama, segundo refere Joo de Barros, que o Indo e o Ganges saam de uma veia comum: de onde a fbula dos dois irmos que entre eles corria'Q E sabe-se como o fato de numerosos mapas quinhentistas e seiscentistas mostrarem as guas do Amazonas e as do Prata unidas no nasce-douro, atravs de uma grande lagoa central, levou o historiador Jaime Corteso a sugerir ultimamente a idia de uma "ilha Brasil", que teria sido concebida entre os portugueses da poca sob a forma de mito geopoltico.

    No fcil, contudo, imaginar de que forma concepes como essa, se que existiram de fato, poderiam ter tido papel to considervel na expanso lusitana. No caso particular da frica, onde elas deviam encontrar terreno excepcionalmente favorvel a seu desenvolvimento, devido velha sugesto de que

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    as guas do Senegal, assim como as do Nilo, provinham do prprio Paraso Terreal, nada faz crer que chegassem a exercer sobre aqueles navegantes algum extraordinrio fascnio. E se tal crena logrou ser amplamente partilhada em Portugal, o que dela nos chega, em escritos dos primeiros anos do sculo XVI, quando muito o abafado eco: certa aluso, por exemplo, a um pas abenoado, onde os homens aparentemente no adoecem, ou, se j enfermos, logo ficam so em l chegando.

    Com efeito, numa pgina do Esmeralda referente Etipia Inferior, que como ento se chamava a zona limitada ao norte pelo rio do "anag", Duarte Pacheco Pereira d como "certo e sabido" que nunca, em algum tempo, morreram ali homens de "pestelencia". E no somente era dotado o stio dessa admirvel virtude, "que a magestade da grande natureza deu, mas ainda temos, por experiencia, que os navios em que para aquelas partes navegamos, tanto que naquele crima so, nenhuns dos que neles vo, desta infirmidade morrem, posto que desta cidade de Lisboa, sendo toda deste mal, partam e neste caminho alguns aconteam de adoecer e outros morrer; como na Etiopia so, nenhum dano recebem"20 .

    Mesmo se sucedia capitularem momentaneamente ao pendor para o fabuloso, quase sempre na experincia "madre das coisas" que vemos fiarem-se os marinheiros e exploradores portugueses da poca: os olhos que enxergam, as mos que tateiam, ho de mostrar-lhes constantemente a primeira e a lti-ma palavra do saber. Saber este ainda fiel a ponderados conselhos como os de el-rei Dom Duarte, quando reclama de seu leitor que no se deixa mover "sem fundamento certo, nem cure de signos, sonhos ou topos de vontade"21 . E que ir marcar as prprias ~ginas dos Lusadas, numa das oitavas finais, onde o poeta, fa~~ndo a Dom s;bastio, exclama, a propsito, da "disciplina mtlttar prestante , que esta no se aprende

    {. .. ] nafantasia, Sonhando, imaginando ou estudando, Se no vendo, tratando e pelejanclo22 .

    A explorao pelos portugueses da costa ocidental afri-cana e, depois, dos distantes mares e terras do Oriente poderia assimilar-se, de certo modo, a uma vasta empresa ex~rcstica. Dos demnios e fantasmas que, atravs de milnios, tinham povoado aqueles mundos remotos, sua passagem ir deixar, se

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  • tanto, alguma vaga ou fugaz lembrana, em que as invenes mais delirantes s aparecem depois de filtradas pelas malhas de um comedido bom senso.

    inclinao para engrandecer eventualmente ou para falsear as coisas vistas no ultramar desconhecido ope-se neles a.fideifaciendae difftcultas, de que chegar a lamentar-se o Bispo Dom Jernimo Osrio. Aubrey Bell no hesita em afirmar de "todos os viajantes portugueses" quinhentistas, que se pem de guarda contra a "incredulidade notria" que distingue pela mes-ma poca os seus conterrneos, e a semelhante regra no abre exceo o prprio Ferno Mendes Pinto, cujos escritos, tidos durante longo tempo como fantasiosos, lhe parecem guardar, apesar de tudo, "o cunho da verdade"2.1.

    No haver grande exagero em dizer-se daqueles homens que, alheios, embora, s ruidosas especulaes, puderam, com seu tosco realismo, inaugurar novos caminhos ao pensamento cientfico, no alvorecer dos tempos modernos, pelo simples fato de terem desterrado alguns velhos estorvos ao seu progresso. E dificilmente se poderia deixar de dar razo a historiadores portu-gueses que assinalam a importante contribuio prestada nesse sentido por aqueles viajantes e marinheiros. "Eliminar erros e prejuzos", escreve judiciosamente um destes historiadores, "equivale pelo menos a desbravar o acesso verdade, e este foi, com efeito, o primeiro e mais retumbante resultado dos descobri-mentos. As idias geogrficas acerca da frica comearam a ruir subitamente com a passagem do Equador, e com este rasgo audaz os nossos pilotos articulam, ao mesmo tempo, os primeiros desmentidos cincia oficial e aos prejuzos comumente admi-tidos. A inabitabilidade da zona trrida, certas idias sobre as dimenses da Terra, o 'stio do orbe', as imaginadas propores das massas lquida e slida de nosso planeta, os horrveis monstros antropolgicos e zoolgicos, as lendas de ilhas fants-ticas e de terrores inibitrios-, tudo isso que obscurecia o enten-dimento e entorpecia a ao, foi destrudo pelos nossos pilotos com o soberano vigor dos fatos indisputveis"24 .

    E um erudito pesquisador da histria literria dos desco-brimentos martimos pde de modo semelhante, e sem intuito, alis, de pretender associ-la diretamente sobriedade de imagi-nativa daqueles pilotos e exploradores, apresentar como uma das conseqncias de sua obra a progressiva retrao da rea tradicional dos pases da lenda e do sonho. "Na poca de Colombo e de Pigafetta", observa efetivamente Leonardo Olschki, "as

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    ~experincias coloniais dos portugueses tinham arrebatado at I. mesmo s terras da sia e da frica muitos dos seus encantos.

    medida em que, no sculo XV, prosseguiam os empreendimentos inspirados por Henrique o Navegador ao longo da orla ocidental

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    africana, as representaes fabulosas e monstruosas preexistentes se iam apagando dos roteiros, dos mapas, das imaginaes, deslo-cando-se para outros rumos. Desde que Dinis Dias tomou posse do Cabo Branco, em 1445, e que, passado um ano, lvaro Fernan-des se lanou at a embocadura do Rio Grande, ou que Alvise Da Ca Da Mosto, gentil-homem veneziano, penetrou na regio do Senegal, subindo o curso do rio para lugares no sabidos, a costa africana deixou de ser uma incgnita e, em seguida s exploraes de Bartolomeu Dias, pareceu despojar-se at de seus mistrios. E quando, mais tarde, Vasco da Gama, dobrando o Cabo da Boa Esperana, chega, aos 20 de novembro de 1498, vista de Calicute, tambm a ndia fabulosa vai converter-se num imenso mercado que o grande navegador, feito vizo-rei, ensinar a desfru-tar em nome de seu soberano"25

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    Seria possvel dizer o mesmo, com a mesma nfase, a propsito das faanhas nuticas de outros povos, dos castelhanos em particular? No precisamente um aguar-se do senso da maravilha e do mistrio o que parece ocorrer, ao menos nos primeiros tempos, quando seus marinheiros entram em contato com os mundos distantes e ignorados? J ao tempo de Colombo, a crena na proximidade do Paraso Terreal no apenas uma sugesto metafrica ou uma passageira fantasia, mas uma espcie de idia fixa que, ramificada em numerosos derivados ou varian-tes, acompanha ou precede, quase indefectivelmente, a atividade dos conquistadores nas ndias de Castela.

    Ao chegar diante da costa do Pria, esse pressentimento, que aparentemente animara ao genovs desde que se propusera alcanar o Oriente pelas rotas do Atlntico, acha-se convertido para ele, e talvez para os seus companheiros, numa certeza inaba-lvel que trata de demonstrar com requintes de erudio. Assim, na carta onde narra aos Reis Catlicos as peripcias da terceira viagem ao Novo Mundo - "outro mundo", nas suas prprias expresses-, prope-se seriamente, logo que tenha mais notcias a respeito, mandar reconhecer o stio abenoado onde viveram nossos primeiros pais26

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  • Certas verses geralmente bem apoiadas nos juzos dos telogos, que tendem a situar o Paraso nos confins da sia, pare-cem corresponder em tudo aos dados da geografia fantstica em que se deixava embalar o navegante. Se vista da Ilha de Haiti julgara, de incio, ter chegado diante da bblica Ofir- c quantos, depois dele, no entretiveram a mesma idia sobre as mais diversas regies do Novo Mundo? -, a interpretao dada aos nomes indgenas firmar logo a obstinada convico de que apor-tara ao extremo oriente. Cibao, por exemplo, seria uma simples variante fontica do Cipangu de Marco Polo, e no prprio nome de "canibais", associado ao gentio mais in tratvel e sanhoso daquelas ilhas chegava a descobrir uma aluso evidente ao Gro-Co da Tartria.

    A essa porfia e de procurar prevenir na medida do poss-vel quaisquer dvidas sobre a veracidade de suas identificaes, prende-se o zelo que teve, segundo relembrou, no h muito, um historiador, de recolher os espcimens da nora do lugar que lhe parecessem aptos a dar-lhes mais peso. Como existisse ali certo arbusto cujas folhas cheiravam a canela, no houve hesita-o: era canela. Que melhor prova para sua pretenso de ter alcanado o Oriente das especiarias? Assim tambm o nogal del pas, com suas pequeninas nozes, imprestveis para a alimen-tao, viu-se assimilado- lembra-o ainda Samuel Eliot Morison - ao coqueiro das ndias, celebrado por Marco Polo27 Vrios homens acharam umas razes no mato e levaram-nas logo aMes-tre Sanchez cirurgio para que as examinasse: este, como os que mais se comprazem em abonar de imediato os prprios pareceres e d-los por certos do que em cuidar se o so, deliberou arbitrariamente que se tratava, nada menos, do precioso ruibarbo da China.

    O prprio ouro, to vivamente almejado, pressentido e j tocado com a imaginao, ainda antes de dar de si mostra menos equvoca, sendo exato que a s existncia dele naquelas partes pagaria todo o trabalho de descobrimento e conquista, devia tambm contribuir a seu modo para corroborar essa pretenso. Pois no assentara Colombo que at costa de Veragua se estendiam as famosas minas do Rei Salomo, situadas por Josefo na urea, ou seja, ao oriente da fndia?28

    No s daria aquele ouro grande acrscimo Fazenda Real, alm de cobrir os gastos havidos para to gloriosa empresa, como o fora a incorporao de novos mundos ao patrimnio da Coroa, mas sobretudo poderia servir a fins mais devotos, entre

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    estes o da recuperao do Santo Sepulcro em Jerusalm. E a presena de tamanhos tesouros nas terras descobertas, se no bastava para atestar a vizinhana com o paraso perdido, de qualquer forma dava meios para o acesso eterna bem-aventu-rana. Assim cuidava, com efeito, o genovs, e escrevendo da Jamaica, em 1503, aos Reis Catlicos, reafirma com singular veemncia essa convico: o ouro, dizia ento, excelentssimo; de ouro faz-se tesouro, e com ele, quem o tem, realizar quanto quiser no mundo, e at mandar as almas ao parasd~. De sorte que, faltando a remunerao deste mundo, sempre haveria de acudir a celeste.

    Notas

    1. Cf. lleirinch WOLFFLIN, Classic Art, p:g.~. 222 e segs. Sobre o senso de unidade introduzido pela arte renascentista em contraste com a dos fins da Idade Mdia, veja-se do mesmo autor os Kunstgcschichtliche Gnmdbcg1itt'e p:gs. 180 e seg.~., e passim, em particular toda a quarta seo, onde so examinadas, segundo um critrio estilstico, as "categorias" antitticas de Multiplicidade e Unidade.

    2. G. PICO DELLA MIRANDOLA, T)isputationes Advcrsus Astrolo,4iam Divinatricem, I, p:gs. 13 e segs.

    3. Ilem tpica da argumentao quinhentista sobre o problema a tese sustentada por Ilrocardo, nos dilogos de S. Speroni, de que, no plano "histrico", no se oferece lugar para as verdades absolutas das cincias demonstrativas, mas s para os conhecimentos aproximativos. Achando-se o homem colocado em um meio-termo entre os animais e as inteligncias puras, de modo mediano que ele se conhece. "O qual modo", diz, "no seno a opinio gerada pela retrica[ ... ]". Convm, pois, que "as nossas repblicas sejam prudentemente governadas, no pelas cincias demonstrativas, verdadeiras e certas para todos os tempos, mas pelas retricas opinies, variveis e transmutveis (como o so as nossas obras e leis)". Apucl Eugenio GARIN, Mcdioevo e Rinascimcnto, p:g. 135, e L'Umanesimo Italiano, p:g. 225.

    4. Cf. Walter J. ONG, S. J., "Ramus and the Pre-Newtonian Mim\", En,4/ish /nstitutc Essays, p:g. 169. A intluncia de Ramus seria sensvel na Frana e, ainda mais, em terras protestantes, como a Alemanha e a Gr-Ilretanha, ou mesmo nas colnias inglesas da Amrica do Norte, terras essas em que o seu sistema, segundo a observao de um historiador das idias, se tornaria rapida-mente um srio rival da lgica aristotlica nas escolas, Paul Oskar KRISTEI,.LER, The Classic and Renaissance Tlwught. p:g. 41. Ver tambm Perry MILLER, The N

  • 5. Da Antonii Gotteani pro Aristotele resposw, aduersus Petri Rami calunias h reproduo fac-similar moderna, seguida de traduo portuguesa de autoria de Aquilino Ribeiro: Antnio de Gouveia, Em prol de Aristteles, Lisboa, 1940.

    6. Lvnn TIIORNDII4.

    7. Duarte PACHECO PEREIRA, Esmcraldo De Si tu Orbis, pg. 20. H. "Les hommes de 1541 ne disaient pas: impossible. Ils ne savaient pas

    douter de la possibilit d'un fait. Aucune notion tyrnnnique, absolue, contraignante de /oi ne linlitait pour eux l::t puissance illimite d'une nature cratrice et productrice sans frein. La critique du fait ne commencera, prcisement, que !e jour o cette notion de !oi entrera en vigueur universellement _ Je jour o, par ! m~me, la notion d'impossible, si fcomle en dpit de ses app;rences ngatives, prendra un sens; le jour o, pour tous les esprits, le non posse engendra le non esse. Au XV! e siecle, ce jour n'est pas venu", L. FEI3VRE, Le Probleme de l'lncroyance, pgs. 476 e segs.

    9. Leo llAGRO\V, Die Geschichte der Karto_4raphie, pgs. 90 e segs. 10. Panta_4ntel, Liv. V, ch. XXXI. 11. Lembrou o Senhor Afonso Arinos :le Melo Frnnco, a outro propsito,

    como, publicada primeiramente em italiano, a relao do "Piloto Annimo" saiu em latim, em verso impressa por Grineu no ano de 1512, em que tambm se redigiu o livro segundo de Panta_4ntel, o mesmo que anuncia a viagem projeta-da para 0 heri ndia - onde se iria casar com a filha do Preste Joo - com escala no pas dos canibais, inspirada possivelmente na rota ~.:abm\ina. Aludindo ainda relao, escreve Melo Franco: "Rabelais leu-a seguramente, uma vez que cita nominalmente Pedro Alvares, cujo nome figura no texto da narr