ser docente universitario

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA Ser docente universitário-professor de música: dialogando sobre identidades profissionais com professores de instrumento Ana Lúcia de Marques e Louro Orientação: Dra. Jusamara Vieira Souza Porto Alegre, Brasil Março de 2004

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Docente universitário, monografias

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MSICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA

    Ser docente universitrio-professor de msica: dialogando sobre identidades profissionais

    com professores de instrumento

    Ana Lcia de Marques e Louro

    Orientao: Dra. Jusamara Vieira Souza

    Porto Alegre, Brasil

    Maro de 2004

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MSICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA

    Ser docente universitrio-professor de msica: dialogando sobre identidades profissionais

    com professores de instrumento

    Tese apresentada como requisito

    parcial obteno do ttulo de Doutor

    em Msica

    Ana Lcia de Marques e Louro

    Orientao: Dra. Jusamara Vieira Souza

    Porto Alegre, Brasil

    Maro de 2004

  • Trabalhar na universidade sempre me trouxe uma satisfao muito grande, mas sempre foi sentido como responsabilidade e cobrana. Uma cobrana que me deixava tonta s vezes e que parecia piorar na medida em que a minha prpria atuao profissional carecia de definies. Uma colega, que esteve por algum tempo afastada do nosso curso, um dia me disse: Poxa, Ana, a gente contava contigo para cuidar da rea de educao musical no curso, o que voc anda fazendo? Eu dava aulas de flauta e era chefe do departamento. Por que deveria ser diferente? Meu concurso na Universidade Federal de Santa Maria foi para professora de flauta transversa e doce; alm disso, naquela poca havia um remanejamento das disciplinas de Educao Musical devido sada de uma professora e ao afastamento para estudos de outras duas. Mas por que minha colega no me via tambm como professora de instrumento? Talvez por que professores de flauta no fazem mestrado em Educao Musical, desenvolvem pesquisas e vo a congressos. Professores de flauta tocam, isto o que so, esta sua essncia. Tambm ningum os ensinou a administrar, por que deveria? Como tu s diferente, para mim tu s a professora de Educao Musical. Mas tu no ests dando conta, tu deverias fazer muito mais! Essa parecia ser a mensagem da minha colega. Pensei em responder: A que horas, s trs da manh? Claro que no disse isso, mas me intrigava a sua pergunta, parecia que ela me colocava diante de uma escolha: atuava em Educao Musical ou em Performance. Mas duvidei um pouco da necessidade da escolha. E, com um pouco de reflexo, percebi que a culpa no era totalmente minha, que a universidade tinha suas carncias de pessoas, de definio das tarefas de cada um, e que ns, professores universitrios da rea de msica, deveramos buscar um clareamento de nossas situaes de vida na profisso. Parecia que o meu lado professora de instrumento se debatia mais nesta busca, ento tracei questionamentos neste sentido: Mas o que eu deveria ser, saber ou dizer como professora de instrumento? Existe uma maneira certa de ser o professor de instrumento no Bacharelado em Msica? Existe um espao para uma pluralidade nessa atuao profissional? Quais so os limites dessa pluralidade? Quem estabelece estes limites? E, assim, meu eu instrumentista buscava uma nova pesquisa terica...

    (Ana Lcia Louro, Dirio de Pesquisa, 9/9/03)

  • Dedico este trabalho aos meus pais Juracy Cunegatto Marques e Paulo Pereira Louro Filho, que sempre me instigaram com suas vivncias de professores universitrios.

  • 5

    Agradecimentos Aos dezesseis docentes universitrios-professores de instrumento participantes, por compartilharem momentos de suas vidas. Aos trs docentes universitrios-professores de instrumento, participantes apenas da fase inicial da pesquisa, pela sua compreenso e pelo tempo despendido. A uma pessoa muito importante na escolha dos meus caminhos acadmicos, Profa. Jusamara Souza, tambm orientadora desta tese, muito obrigada! pessoa que transformou meu estgio no exterior em uma experincia plena de crescimento pessoal, profissional e de inspiraes para os meus caminhos artsticos e acadmicos Profa. Liora Bresler, muito obrigada! Pelo esforo na transcrio literal das entrevistas. Em especial Daniela Dotto Machado e Regianea Blanck Wille. Luciane Leipnitz e Gabriela Carvalho pela reviso atenta do texto. Pela diagramao e arte da capa (lmina no incio) a Elceni Gelain. Ao grupo Educao Musical e Cotidiano, pelo apoio acadmico e afetivo. UFRGS, por mais esta oportunidade de estudo e pelo auxlio no contato com seus professores. UFPel, pela acolhida calorosa e especial deferncia na coleta de dados junto a seus professores. Ao Departamento de Msica da UFSM, por compreender a necessidade de formao em nvel de doutorado de seus professores, em particular pela concesso do afastamento de quatro anos. UFSM, por facilitar a coleta de dados junto aos seus professores e pela concesso de uma bolsa Capes/PICDT para a realizao dos meus estudos. Capes, por financiar esta pesquisa no seu perodo brasileiro e americano (bolsa- sanduche). University of Illinois at Urbana-Champaigne, pela pronta acolhida e pelo financiamento das disciplinas, durante o estgio no exterior. A E. Kay e K. Roger Van Horn por toda sua amizade e apoio ao longo do processo de doutorado.

  • 6

    Guacira Louro, Renato H. Fiori e Amauri Iablonivsky por seu auxlio nas fases iniciais do projeto. Ao Jos Luis Arstegui da Universidad de Granada, por mostrar que, mesmo por e-mail, possvel fornecer apoio intelectual e afetivo de grande significado. Magali Kleber e Joo Berchmans de Carvalho Sobrinho por me mostrarem na prtica os caminhos da co-aprendizagem entre alunos de doutorado. Lilian Neves, Maria Guiomar Carvalho e Maria Cecla Torres por seus valiosos comentrios sobre o texto e pelas trocas que tivemos ao longo de nossos processos de doutoramento. Ao Paulo de Marques e Louro, Maria Claudete Kasper e Louro e Nathlia Kasper e Louro, por estarem sempre presentes nos meus caminhos de crescimento pessoal e profissional. Ao grupo de orao Nossa Senhora de Mont Serrat e ao Ministrio de Msica Me do Cu Morena, por reafirmarem, em nossas experincias conjuntas, a existncia de outras vidas alm da profissional.

    vi

  • 7

    Sumrio

    Lista de Quadros............................................................................................................. x

    Resumo ........................................................................................................................... xi

    Abstract ......................................................................................................................... xii

    Captulo 1 - Introduo................................................................................................ 13

    1.1 Localizando a temtica da pesquisa .................................................................. 13

    1.2 Aproximaes do conceito de identidade profissional ..................................... 18

    1.3 Estrutura da Tese................................................................................................ 20

    Captulo 2 - Caminhos terico-metodolgicos ........................................................... 22

    2.1 Um enfoque sociolgico: as identidades entre o social e o individual............. 22

    2.2 Entrevistas de histria oral temtica: a memria de uma pessoa e a identidade de um grupo ............................................................................................ 25

    2.3 Entrevistas com os professores: a construo dos processos de coleta de dados..................................................................................................................................... 27

    2.3.1 A utilizao da tcnica de histria oral temtica .......................................................................27 2.3.2 Fazendo contatos e obtendo respostas: a vontade dos docentes universitrios-professores de instrumento de se narrarem .............................................................................................................30 2.3.3 Em busca de um dilogo genuno: alguns conceitos da hermenutica filosfica na construo do processo de coleta de dados...........................................................................................................32

    2.4 A realizao das entrevistas ............................................................................... 39 2.4.1 Contextos...................................................................................................................................39 2.4.1.1 Contextos das entrevistas........................................................................................................39 2.4.1.2 A pesquisadora no processo de coleta de dados .....................................................................41 2.4.1.3 Olhando para os professores...................................................................................................44 2.4.1.4 Ns somos pessoas muito ocupadas: negociando horrios e locais ....................................46 2.4.2 Durante a entrevista ...................................................................................................................48 2.4.2.1 Procedimentos ........................................................................................................................48 2.4.2.2 Conduo das entrevistas: essa metodologia como uma msica, eu vou procurar te acompanhar.......................................................................................................................................49 2.4.3 Finalizando a coleta de dados: as assinaturas das cartas de cesso............................................51

    2.5 Processos de anlise de dados............................................................................. 52 2.5.1 Princpios gerais da anlise........................................................................................................52 2.5.2 O estabelecimento de categorias de anlise provisria..............................................................54 2.5.3 Procedimentos de anlise global dos dados...............................................................................56

    Captulo 3 - Instncias de formao e vivncias universitrias ............................... 60

    3.1 Apresentando os professores participantes ...................................................... 61

  • 8

    3.2 Instncias de formao e processos identitrios............................................... 66 3.2.1 Lembranas de aprendizados na famlia....................................................................................67 3.2.2 Primeiros contatos com instncias de formao para a profisso ..............................................68 3.2.3 Formaes para a profisso: a imerso no meio profissional ....................................................69 3.2.4 Formao continuada e projetos profissionais...........................................................................72

    3.3 Trabalhando na universidade ............................................................................ 74 3.3.1 Experincia profissional: na busca da minha cara de trabalho...............................................74 3.3.2 Contextos de trabalho ................................................................................................................77 3.3.2.1 Decidindo dar aulas na universidade ......................................................................................77 3.3.2.2 Condies de trabalho ............................................................................................................82 3.3.2.3 Aes culturais perifricas......................................................................................................87 3.3.2.4 Realizao profissional...........................................................................................................89 3.3.2.5 O departamento pode ser visto como uma cooperativa? .....................................................92

    Captulo 4 - Exerccio profissional na universidade.................................................. 96

    4.1 Se fosse s dar aula era uma maravilha? ...................................................... 96 4.1.1 Administrao............................................................................................................................98 4.1.2 Pesquisa .....................................................................................................................................99 4.1.3 Extenso ..................................................................................................................................102 4.1.4 Atividades musicais pblicas...................................................................................................104

    4.2 Sobre experincias de ensino na universidade................................................ 107 4.2.1. Polivalncia: j dei aula de tudo..........................................................................................107 4.2.2 Sobre os cursos de bacharelado em msica .............................................................................111 4.2.2.1 Objetivos dos cursos de Bacharelado em Msica.................................................................112 4.2.2.2 Vises sobre os egressos.......................................................................................................113

    4.3 Preparao para as aulas: eu no trabalho em outros locais, s na universidade e em casa?........................................................................................ 117

    4.3.1 Ensino a partir da prtica profissional .....................................................................................117 4.3.2 Os antigos professores como modelos.....................................................................................118

    Captulo 5 - As aulas na disciplina instrumento do curso de bacharelado em msica .......................................................................................................................... 122

    5.1 As aulas .............................................................................................................. 122 5.1.1 Modalidades de aula ................................................................................................................122 5.1.2 Ensinando interpretao: mais do que aula de instrumento, aula de msica........................123 5.1.3 A questo do repertrio ...........................................................................................................132 5.1.4 Tocar em pblico.....................................................................................................................137

    5.2 Vises dos professores sobre processos de aprendizagem ............................. 138 5.2.1 Relao professor-alunos.........................................................................................................139 5.2.1.1 Dimenses subjetivas da relao professor-aluno Estou lidando tambm com uma pessoa..........................................................................................................................................................141 5.2.1.2 Os conhecimentos que os alunos trazem ..............................................................................143 5.2.2 A aula de msica como formao............................................................................................148

    Captulo 6 - Mltiplas identidades............................................................................ 151

    6.1 Identidades e seus fluxos: como um girassol............................................ 151 6.1.1 Momentos de lazer e convivncia familiar ..............................................................................153 6.1.2 Ser me e professora................................................................................................................155 6.1.3 Ser educador/a: pai/me; professor/a.......................................................................................156

    viii

  • 9

    6.2 A profisso de docente universitrio-professor de msica............................ 157 6.2.1 Conhecimentos ........................................................................................................................160 6.2.2 Valores.....................................................................................................................................161

    6.3 Identidades coletivas dos docentes universitrios-professores de instrumento................................................................................................................................... 163

    6.3.1 Profissionalidade .....................................................................................................................163 6.3.2 Competncias musicais, pedaggicas e polticas.....................................................................164 6.3.3 Identidades profissionais .........................................................................................................169

    Captulo 7 - Consideraes finais .............................................................................. 172

    7.1 Revisitando os processos da pesquisa.............................................................. 172

    7.2 Contribuindo para a reflexo dos professores e para futuras pesquisas ..... 177

    Anexos.......................................................................................................................... 180

    Referncias .................................................................................................................. 187

    ix

  • 10

    Lista de Quadros Quadro 1 Definio dos participantes da pesquisa --------------------- 31 Quadro 2 Etapas da coleta de dados--------------------------------------- 32

  • 11

    Resumo

    Tomando como ponto de partida o tema das identidades profissionais e as

    reflexes sobre as minhas vivncias como professora universitria na rea de msica,

    proponho o estudo das narrativas de dezesseis professores de instrumentos musicais nos

    cursos de Bacharelado em Msica em trs universidades pblicas do Estado do Rio

    Grande do Sul: UFPel, UFRGS, UFSM. A metodologia escolhida a tcnica da histria

    oral temtica, atravs de entrevistas semi-estruturadas, contextualizadas com o auxlio

    de registros em dirios de campo. O conceito de dilogo genuno, vindo da

    hermenutica filosfica, tambm se torna importante para o estabelecimento de uma

    zona interpretativa, na qual as perspectivas dos entrevistados, minhas e da literatura

    pudessem ser consideradas. A anlise de dados feita a partir do estabelecimento de

    categorias que transversalizam as entrevistas, buscando-se, entretanto, a preservao da

    unicidade de cada depoimento. Primeiramente, so desenvolvidos dois grupos de

    categorias analisadas: formao e atuao. Posteriormente, desenvolvo os grupos de

    categorias referentes s experincias de ensino, fazendo uma aproximao do foco para

    os relatos sobre as disciplinas de instrumento principal dos cursos de Bacharelado em

    Msica. A seguir, fao um recuo panormico, destacando as relaes entre as

    identidades profissionais e as amplas vivncias como pessoa, de cada professor.

    Posteriormente, abordo a profisso de docente universitrio-professor de instrumento,

    confrontando os dados com os conceitos de profissionalidade, de competncias e de

    identidades profissionais coletivas. Nas consideraes finais, a contribuio dessa

    investigao para a reflexo pessoal dos participantes, para a rea de msica, para outras

    reas que tm como objeto de estudo o professor universitrio, bem como para a minha

    reflexo pessoal e profissional apontada.

  • 12

    Abstract

    Professional identities are studied through narratives of 16 university instructors-

    instrumentalists that teach at the performer program in three public universities of the

    state of Rio Grande do Sul (Brazil). The start point is the discussion about professional

    identities, against my own understanding, as it was developed according to the literature

    concerned and my own professional experiences. The main methodology is the

    technique of thematic oral history, through semi-structural interviews contextualized by

    field notes. The concept of genuine dialogue from philosophy hermeneutics is also a

    basic concept for the construction of an interpretative zone where the perspectives of the

    interviewee, mine perspectives and the one from the literature could be taken into

    account. The data is analyzed through transversal categories, though the maintenance of

    the unity of each interview is preserved. At first, two category groups are developed:

    about studies and about professional activities. Later, professional activities are taken in

    a double focus: first, the teaching activities in general and second, the teaching activities

    at the courses on the perform programs. Than, a panoramic amplification is envisaged,

    in order to emphasize relationships between the professional identities and the broad life

    experiences, as it were narrated by the participants. Further, the profession of university

    instructor-instrumental teacher is confronted with the concepts of profissionalization,

    competencies and collective identities. In the last chapter, it is described how this study

    helps on the personal reflection of the interviewee, for the music field, for other fields

    that study university teachers and for my personal professional reflections, as well.

  • 13

    Captulo 1 Introduo

    1.1 Localizando a temtica da pesquisa

    O debate atual sobre o ensino superior apresenta um quadro desafiador para o

    professor que atua na universidade brasileira. A demanda dos alunos e do mercado de

    trabalho, as reformas curriculares, a implementao de sistemas de avaliao externos e

    internos, a relao entre atividades de ensino, pesquisa e extenso e as discusses sobre

    a universidade pblica so alguns fatores que desafiam esse profissional. Muitos autores

    se debruam sobre essas questes (entre outros, Masetto, 1998; Isaia, 2001; Fernandes e

    Menetrier, 2002). Masetto (1998) aponta para uma crise do papel dos professores

    universitrios diante da superao do paradigma do professor como transmissor de

    conhecimentos.

    Para Carrolo (1997), justamente esse momento de crise que conduz ao

    surgimento de pesquisas sobre identidades, pois, nesses momentos, as instituies e os

    referenciais perdem a sua significao e seu carter de segurana. Segundo o autor, a

    crise de identidade instalou-se na conscincia do cidado contemporneo e

    generalizou-se a todos os nveis (p. 23). justamente em resposta a esta sensao, pois

    mais do que um sentimento de mal-estar uma busca pelo novo, que surgem as

    pesquisas sobre o tema da identidade em diversas reas do conhecimento.

    Dubar (1997b, p. 51)1 focaliza a questo da identidade profissional dentro deste

    quadro geral de crises das identidades e destaca:

    O trabalho est no centro do processo de construo, destruio e reconstruo das formas identitrias, porque no trabalho que os indivduos, nas sociedades salariais, adquirem o reconhecimento financeiro e simblico da sua actividade. tambm apropriando-se do seu trabalho, conferindo-lhe um sentido, isso , dando-lhe, ao mesmo tempo, uma significao subjetiva e uma direo objetiva, que os indivduos ascendem autonomia e cidadania. quando este processo perturbado que o trabalho perde a sua centralidade e que a crise social toma aspectos dramticos que provocam formas diversas de perda de identidade e de mltiplos sofrimentos.

    Em relao profisso, os problemas vivenciados adquirem caractersticas

    especficas nas diferentes reas do conhecimento e de modo particular para cada

    1 As citaes feitas a partir de edies portuguesas foram mantidas na grafia original.

  • 14

    professor. Essas diferenas podem estar associadas, entre outros fatores, a tipo de

    carreira profissional para o qual os cursos, aos quais os professores esto vinculados,

    preparam os estudantes. Esse fator apontado por Cunha e Leite (1996, p. 9) no seu

    estudo sobre os valores que caracterizam o campo cientfico das carreiras universitrias

    em seu intercmbio com as estruturas de poder presentes na sociedade contempornea.

    Na rea da msica, a questo da valorizao da atividade artstica, os

    questionamentos sobre as aulas individuais e a possibilidade de exercer a profisso sem

    a titulao universitria so alguns aspectos a serem considerados. Com referncia aos

    estudos sobre o pensamento do professor universitrio de msica a respeito de sua

    profisso, parece existir uma tendncia, apontada por Cox (1996), de se partir de uma

    ambigidade entre os papis de msico e professor. Mark (1998) considera que, entre os

    professores de msica, existe uma tendncia ao predomnio da imagem do pedagogo.

    J Roberts (1991) advoga pela construo junto aos alunos de licenciatura em msica de

    uma identidade profissional, na qual predomine a imagem de msico. Todos esses

    autores parecem considerar a questo como um dilema: ser msico ou professor. A

    perspectiva desses estudos parece estar mais relacionada com a viso de identidades

    profissionais que Malvezzi (2000) classifica como tradicional.

    Assim, existem dois modelos de identidade profissional: um relacionado a uma

    economia moderna, que estaria em fase de desaparecimento, e outro relacionado a

    uma economia globalizada, que estaria em fase de implementao. Como Malvezzi

    (2000, p. 134) explica: Na sociedade tradicional, caracterizada pela estabilidade de

    papis e estruturas, a identidade profissional era um objeto menos pressionado a mudar,

    principalmente quando a relao de indivduo e meio atingia um ponto de equilbrio. O

    profissional desempenhava o seu papel como parte de uma engrenagem, e seu posto

    de trabalho e suas tarefas contribuam com um peso significativo para a sua identidade

    profissional. J no contexto da globalizao, nas condies da empresa flexvel, a

    construo da identidade profissional impe-se como uma forma de adaptao

    ambigidade e incertezas que tornam a gesto do indivduo uma atividade mais

    complexa (Malvezzi, 2000, p. 140).2

    Para alguns autores, na rea de educao musical (Harris, 1991; Roberts, 1991;

    Cox, 1996), um fator importante na trajetria dos professores de msica a relao 2 A necessidade de competncias novas para os professores universitrios, diante das modificaes da economia, tem sido apontada por outros autores da rea de economia e administrao, como Karawejczyk (2002), por exemplo.

  • 15

    entre os papis de msico e professor. Cox (1996, p. 112) enumera as pesquisas sobre a

    percepo de papis no campo da educao musical, considerando que essas pesquisas

    tm se concentrado principalmente na natureza ambivalente da identidade do educador

    musical como professor e educador ou msico e performer.3 Cox (1996) considera

    esta ambivalncia como parte do papel social de ser educador musical.

    Por um lado, o papel de professor seria preponderante para o educador musical

    que atua na escola regular, enquanto o professor de instrumento4 de escolas especficas

    voltar-se-ia mais para o papel de msico (Mark, 1998). Por outro lado, Souza (1994, p.

    46) considera que a pergunta professor de instrumento: pedagogo ou artista? reflete

    um dos problemas bsicos da formao do professor de instrumento [...] o da definio

    de papis, do contorno, das diferentes nfases e concepes do que vem a ser o

    educador musical e respectivamente professor de instrumento.

    Tomando em considerao no s a complexidade da construo das identidades

    profissionais no momento atual, apontada por Malvezzi (2000), como tambm a

    pluralidade destacada por Nvoa (1995), optei pelo estudo da relao dos professores

    com os campos de atuao musical e docente como construo de significados de

    profissionalidade.

    Gimeno Sacristn (1995, p. 65) define a profissionalidade docente como a

    afirmao do que especfico na aco docente, isto , o conjunto de comportamentos,

    conhecimentos, destrezas, atitudes e valores, que constituem a especificidade de ser

    professor. Ao privilegiar, alm de destrezas e conhecimentos, tambm atitudes e

    valores, Gimeno Sacristn amplia a perspectiva da viso de profissionalidade para

    aspectos de maior subjetividade. Este mesmo conceito de profissionalidade pode ser

    aplicado msica. A prpria definio do que uma profissionalidade em msica ou

    em pedagogia, bem como na combinao de ambas, mostra-se muito mais complexa e

    plural do que uma simples definio de conhecimentos e destrezas associadas a essas

    profisses ou opo entre um papel social de msico e/ou professor.

    Alm disso, autores como Masetto (1998) apontam para uma ampliao das

    competncias profissionais dos professores universitrios, na qual, alm das

    competncias especficas, no caso a experincia profissional na msica e os

    conhecimentos da rea, e das pedaggicas, tambm existe uma dimenso poltica. A 3 No original: has concentrated primarily on the ambivalent nature of music educators identity as either teacher and educator or musician and performer. 4 A palavra instrumento refere-se neste texto a instrumentos musicais.

  • 16

    perspectiva desses autores direciona o olhar no apenas para a escolha de papis sociais,

    mas para os valores pessoais e as maneiras como os professores podem estar com o

    mundo (Freire, 1994), que fazem parte da profissionalidade dos docentes

    universitrios.

    Dessa forma, alguns autores da rea de msica que abordam a temtica da

    profisso de professor parecem tender para um vis relacionado escolha de papis

    sociais. Outras reas, como a sociologia e a economia, apontam para o pensamento

    sobre a profisso como construo de identidades profissionais (Dubar, 1997a, 1997b,

    1998; Carrolo, 1997; Malvezzi, 2000). Nessa perspectiva, as identidades profissionais

    so processos compostos por uma complexidade de inter-relaes, que se transformam

    ao longo da trajetria dos indivduos.

    O presente estudo pretende compreender as identidades profissionais que

    emergem das narrativas de professores de instrumento das instituies federais de

    ensino superior do Estado do Rio Grande do Sul que possuem curso de graduao em

    msica. So elas: Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

    Foram entrevistados dezesseis professores que lecionam diferentes instrumentos

    musicais nas disciplinas de Instrumento Principal dos cursos de Bacharelado em

    Msica. Tais professores sero designados, neste trabalho, como docentes

    universitrios-professores de instrumento, visto que os professores de instrumento na

    universidade fazem parte do conjunto dos docentes universitrios.

    Os docentes universitrios so vistos, nesta pesquisa, como um grupo

    profissional que apresenta subgrupos relacionados s culturas das profisses ligadas aos

    cursos que lecionam. Sendo assim, considero a possibilidade de os docentes

    universitrios-professores de instrumento possurem uma memria coletiva como grupo

    social, a qual geraria uma identidade coletiva. Tal identidade estudada a partir da

    anlise de identidades compartilhadas como grupo dos docentes universitrios-

    professores de instrumento atravs do discurso de cada professor. Cabe realar que esse

    olhar sobre o grupo busca no perder a singularidade das experincias de vida de cada

    professor, ao mesmo tempo em que procura encontrar alguns aspectos que os definam

    enquanto grupo que realiza o mesmo trabalho e compartilha idias e valores.

    O interesse pelo tema surgiu durante uma pesquisa sobre as disciplinas

    pedaggicas do curso de Bacharelado em Msica (Louro, 1997). Ao refletir sobre os

  • 17

    motivos que levam incluso ou no de disciplinas pedaggicas nos cursos de

    bacharelado, ponderei se havia uma relao entre as identidades profissionais de

    professor de instrumento e as decises sobre a grade curricular. Numa fase posterior da

    pesquisa (Louro e Souza, 1999), em anlises de entrevistas com os professores,

    surgiram questes sobre o ethos do instrumentista e a necessidade ou no do preparo

    pedaggico formal do professor de instrumento atuante na universidade. Alm disso, a

    vivncia como professora universitria na rea de msica tambm contribuiu para a

    gesto dessa temtica ao longo das minhas reflexes profissionais.

    Os trabalhos de Dubar (1997a, 1997b e 1998) sobre formas identitrias, o de

    Gimeno Sacristn (1995) a respeito de profissionalidade, e o de Masetto (1998) em

    relao s competncias do professor universitrio, contriburam para a elaborao de

    questionamentos sobre as identidades profissionais de professores de instrumento

    atuantes na universidade.

    A questo principal que norteou a investigao foi: que identidades profissionais

    emergem das narrativas dos docentes universitrios-professores de instrumento? Foram

    consideradas duas subquestes: como as noes de profissionalidade se apresentam nas

    falas dos docentes universitrios-professores de instrumento? Quais perspectivas sobre

    competncias musicais, pedaggicas e/ou polticas esto presentes em seus discursos?

    A partir de tais questionamentos, o presente estudo teve como objetivo geral

    investigar as identidades profissionais presentes nas narrativas dos docentes

    universitrios-professores de instrumento. Como objetivos especficos foram delineados

    os seguintes: identificar as noes de profissionalidade que permeiam as falas dos

    professores e analisar a viso dos professores sobre competncias musicais, pedaggicas

    e/ou polticas na atuao do professor de instrumento na universidade.

    Ao investigar as identidades profissionais dos docentes universitrios-

    professores de instrumento, o presente estudo traz subsdios para a compreenso da

    profisso de docente universitrio de msica, com foco no professor de instrumento.

    Tais subsdios podem ser significativos tanto para programas de formao de

    professores na rea, quanto para o entendimento de como esses profissionais lidam com

    os problemas que enfrentam na atualidade.

    Se, por um lado, a presente pesquisa pode colaborar com um estudo sobre

    identidades no recorte do exerccio profissional dos docentes universitrios-professores

    de instrumento; por outro lado, poder tambm contribuir para a produo de

  • 18

    conhecimento cientfico sobre a realidade da universidade, na medida em que ajudar a

    desvelar o pensamento do professor universitrio de msica.

    1.2 Aproximaes do conceito de identidade profissional

    Nvoa (1995, p. 15) destaca que a relao do professor com a profisso

    analisada a partir da construo de identidades profissionais dentro de uma linha de

    pesquisa voltada importncia do professor enquanto factor determinante da dinmica

    educativa. Nesses estudos, a identidade profissional encarada como um processo

    mvel, complexo e permeado por vivncias extraprofissionais. Para o autor:

    A identidade no um dado adquirido, no uma propriedade, no produto. A identidade um lugar de lutas e conflitos, um espao de construo de maneiras de ser e estar na profisso. Por isso, mais adequado falar em processo identitrio, realando a mescla dinmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor. (Nvoa, 1995, p. 16)

    Existe igualmente, nessa linha de pesquisa da literatura educacional geral, uma

    preocupao em estudar a inter-relao das vivncias profissionais e pessoais. Moita

    (1995) defende a hiptese de que tal identidade se constri no apenas a partir das

    vivncias profissionais, mas tambm com a contribuio de vivncias ocorridas fora do

    universo profissional.

    Dubar (1997b) reala a mobilidade e a constante modificao das identidades

    profissionais, caracterizando estes processos como parte da socializao dos indivduos.

    Para ele:

    as identidades sociais e profissionais tpicas no so nem expresses psicolgicas de personalidades individuais nem produtos de estruturas polticas econmicas que se impem a partir de cima, elas so construes sociais que implicam a interaco entre trajetrias individuais e sistemas de emprego, sistemas de trabalho e sistemas de formao. (Dubar, 1997b, p. 239)

    Para Carrolo (1997, p. 27), a chave do processo da construo das identidades

    profissionais est na articulao entre duas faces heterogneas: a identidade para si

    ou desejada, que possui um processo biogrfico subjacente, e a identidade para

    outrem, que possui um processo relacional subjacente. Atravs da reviso de

    conceituaes tericas de diversos autores como Piaget, Mead, Parsons e Merton,

    Berger e Luckmann e Bourdieu, Carrolo (1997) descreve esse mecanismo de dupla face

  • 19

    entre aquilo que externo ou interno ao indivduo, que vai se transformando ao longo

    da construo de sua socializao.

    A relao eu/outro tambm enfatizada por Malvezzi (2000, p. 140), ao

    relacionar a identidade com dois conjuntos de predicados, os da pessoa e os do meio,

    que podem ser tomados como um significado, da individualizao na relao

    eu/outro. Esse autor igualmente destaca a mobilidade da identidade profissional,

    afirmando que a identidade est longe de ser uma substncia ou mito, porque ela no

    algo acabado nem pronto, mas um tornar-se (Malvezzi, 2000, p. 141).

    Alm disso, na relao entre eu e o outro tambm existe um processo identitrio,

    que inclui a construo da noo de pertencimento a um grupo trazida pelo ns. A

    identidade e a alteridade constroem-se neste processo de interaco onde o indivduo

    percorre o caminho entre ns e o outro que vai descobrindo (Vieira, 1999, p. 69).

    Dubar (1997a, p. 46) desenvolve o conceito de formas identitrias, cujo modelo

    cruza o espao prioritrio de investimento e de reconhecimento (a empresa ou a rede

    familiar) com a temporalidade tpica, legvel na relao com o futuro e na reconstruo

    biogrfica (progresso ou bloqueamento). Esse autor considera que as formas

    identitrias so tipos-ideais construdos pelo pesquisador para dar conta da configurao

    e da distribuio dos esquemas de discursos delimitados pela anlise precedente (p.

    21).

    Ao apontar que as configuraes identitrias tpicas poderiam ser abstratamente

    associveis a momentos privilegiados de uma biografia profissional ideal, Dubar

    (1997b) aponta para um caminho de pesquisa emprico, relacionado ao estudo do que

    designa como trajetria individual subjetiva (Dubar, 1998). As trajetrias subjetivas

    seriam o enredo posto em palavras pela entrevista biogrfica e formalizado pelo

    esquema lgico, reconstrudo pelo pesquisador por meio de anlise semntica (Dubar,

    1998, p. 20).

    Considerando-se a perspectiva de autores como Woodward (1997) e Roberts

    (1999), que enfatizam a diferena como fator importante na construo das identidades,

    parece surgir no conceito de identidade uma permanente tenso entre o individual e o

    social. Na presente pesquisa, optei por uma perspectiva que trata o relato dos indivduos

    como possuidor das vivncias sociais que buscam narrar. Tal olhar assemelha-se ao vis

    tomado por autores como Mezzano (1998) e Melgarejo (2000). Essa ltima autora

    considera que

  • 20

    A nfase colocada no sujeito e no seu relato - e este como discurso- implica compreend-lo primeiramente como sujeito concreto, sntese de determinaes mltiplas onde se conjugam desde seu pertencimento a um grupo, uma classe, uma famlia e uma formao cultural. Onde o sujeito no existe como tal por si mesmo, no por via natural se no por um certo tipo de sociedade, de certa organizao e formas de relaes sociais. (Melgarejo, 2000, p. 45)5

    Desse modo, a fala dos professores entrevistados analisada em relao aos

    aspectos tanto individuais como, e principalmente, aqueles que constrem uma memria

    coletiva e so definidores das identidades sociais (Mezzano, 1998). Entre as

    perspectivas tericas preestabelecidas para o estudo dessas identidades socialmente

    compartilhadas est a noo de profissionalidade (Gimeno Sacristn, 1995) e as

    competncias do docente universitrio (Masetto, 1998). Assim so consideradas a

    complexidade e mobilidade das identidades profissionais, bem como a perspectiva de

    que elas possam ser compartilhadas dentro de um grupo social, no caso delimitado

    como docentes universitrios-professores de instrumento.

    1.3 Estrutura da Tese

    Aps este primeiro captulo que localiza a temtica das identidades profissionais,

    o Captulo 2 descreve os caminhos terico-metodolgicos adotados. A partir de um

    recorte sociolgico, localizada a metodologia de Histria Oral, enquanto metodologia

    multidisciplinar, que pode ser adequada a estudos na rea de educao musical. A

    tcnica de histria oral temtica descrita, e a sua utilizao na presente pesquisa

    relatada e discutida. Alguns conceitos da hermenutica filosfica so trazidos para

    analisar o papel do dilogo genuno no processo de coleta de dados. So narradas

    tambm as diferentes fases da coleta de dados bem como dos processos de anlise.

    5 No original: El acento puesto en el sujeto y su relato - y ste como dicurso - implica compreender al primero como sujeto concreto, sintesis de mltiples determinaciones donde se conjugan desde su pertencia a un sector, a una clase, a una familia ya a una formacin cultural. En donde el sujeto no existe previamente como tal hasta su mismas, no por via natural sino por cierto tipo de sociedad, de cierta organizacin e formas de relacion social.

  • 21

    No Captulo 3 so apresentados os professores, atravs de um condensamento

    dos dados por participantes. Aqui so desenvolvidos dois grupos de categorias

    analisados: formao e atuao na universidade. Nos relatos sobre formao feito um

    contraponto com os trabalhos de Dubar (1997a, 1997b, 1998) tornando mais presente o

    conceito de formas identitrias, fundamental na presente pesquisa. A partir dos relatos

    sobre atuao, so apresentados diversos autores, objetivando tecer uma teia dialgica

    com as vozes dos participantes e a minha.

    No Captulo 4 so desenvolvidos os grupos de categorias referentes s atividades

    acadmicas na universidade incluindo as de administrao, pesquisa, extenso e prticas

    musicais pblicas. Localizando-me na atuao universitria descrita pelos professores,

    fao um detalhamento das experincias de ensino.

    O Captulo 5 aborda as disciplinas de instrumento principal do curso de

    Bacharelado em Msica,6 analisando os relatos dos professores sobre o contedo

    disciplinar das aulas, bem como suas vises sobre processos de aprendizagem.

    O Captulo 6 apresenta como temtica central as identidades profissionais dos

    professores estudados. Primeiramente, fao um recuo panormico, destacando as

    relaes entre as identidades profissionais e as amplas vivncias como pessoa de cada

    professor. Posteriormente, a profisso de docente universitrio-professor de instrumento

    abordada, sendo os dados confrontados com conceitos de profissionalidade,

    competncias e identidades profissionais coletivas.

    No Captulo 7, retomo os pontos principais dos captulos anteriores. Ao mesmo

    tempo, descrevo a forma de contribuio dessa investigao para o meu crescimento

    profissional. So apontadas, ainda, pesquisas futuras que podero ser geradas a partir

    desse estudo. Alm disso, so sugeridas possveis contribuies dessa pesquisa para a

    reflexo pessoal dos participantes, para a rea de msica e outras reas que tm como

    objeto de estudo o professor universitrio.

    6 Tais disciplinas costumam ser nomeadas piano 1, ou flauta 5 ou violino principal 3, evitei essa nomenclatura para poder preservar o anonimato dos professores chamando essas disciplinas de disciplinas de instrumento principal.

  • 22

    Captulo 2 Caminhos terico-metodolgicos

    As narrativas sobre a profisso que emergem das falas de docentes

    universitrios-professores de instrumento constituram o objeto da presente pesquisa

    conforme apresentado no Captulo 1. Na dinmica dos processos de uma pesquisa

    cientfica, autores como Marre (1991) apontam para uma dialtica ascendente, na qual

    construdo o objeto de pesquisa, e uma dialtica descendente, que envolve o

    desenvolvimento de uma metodologia adequada para o estudo do objeto de pesquisa

    proposto. Neste captulo, sero relatados os diversos caminhos metodolgicos, buscando

    descrever a maneira como seus aportes foram desenvolvidos.

    No que se refere ao estudo das identidades de professores, parece no existir

    uma linha metodolgica nica. Estrela (1997) aponta para uma pluralidade de opes

    nesse sentido, considerando que as investigaes sobre identidade docente podem

    remeter aos campos tericos da psicologia, da psicologia social, da sociologia ou da

    antropologia. Para essa autora, a escolha metodolgica depende mais dos pases e de

    certas correntes a dominantes do que de fronteiras decorrentes da definio clara do

    objeto epistmico destas cincias (Estrela, 1997, p. 11). Uma vez definido o vis

    terico desta pesquisa, como baseado na sociologia, optei por um desenho metodolgico

    dentro de um enfoque sociolgico. Dentre as diversas abordagens de coleta de dados

    num enfoque sociolgico, escolhi a Histria Oral, considerando a multidisciplinaridade

    desta metodologia (Joutard, 1996).

    2.1 Um enfoque sociolgico: as identidades entre o social e o individual

    O aporte sociolgico mostra-se central para esta pesquisa, na medida em que

    possibilita compreender as relaes entre as vivncias individuais e as estruturas sociais,

    especialmente no nvel microestrutural, como os grupos sociais de indivduos que

    exercem a mesma profisso. nessas relaes entre as pessoas com outras pessoas,

    contextualizadas em locais de trabalho e estudo, que so construdas as identidades

    profissionais.

  • 23

    Essas relaes entre o indivduo e as pessoas, que possibilitam a construo das

    identidades profissionais, so delineadas em suas trajetrias. Passeron (1995) chama a

    ateno para a pluralidade de abordagens existentes nos estudos sociolgicos com

    cunho biogrfico. Esse autor assinala que as diferentes palavras-chave usadas para

    descrever as pesquisas, como biografia, itinerrio, trajetria ou carreira,

    demostram ngulos bastante diferentes, cada um possuindo seu prprio vis

    metodolgico. Independentemente das preferncias tericas, Passeron (1995, p. 222)

    apresenta dois quadros principais de anlise nas pesquisas biogrficas: um primeiro

    quadro, que busca realizar uma subordinao das biografias s estruturas objetivas,

    advindas da cultura ou de tratamentos estatsticos, no qual postulado que tais

    estruturas precedem e determinam a biografia do indivduo; e um segundo quadro, no

    qual o devir biogrfico compreendido como resultante de dois fatores

    intercambiveis do movimento da ao social dos indivduos e do determinismo social

    das estruturas.

    Numa linha de raciocnio prxima de Passeron, Dubar (1998) reala dois

    modos de estudo das trajetrias individuais: o modo objetivo como uma seqncia de

    posies num ou mais campos da prtica social, e o modo subjetivo, como uma histria

    pessoal, cujo relato atualiza vises de si e do mundo. Esse autor salienta o segundo tipo

    com referncia ao estudo sociolgico do conceito de identidade: Para o socilogo,

    tomar a srio falas sobre si mesmo vindo de um sujeito incitado a se narrar[...] com

    um pesquisador capacitado para escutar, talvez constitua uma condio sine qua non

    para um uso sociolgico da noo de identidade (Dubar, 1998, p. 14).

    Ao realizar uma reviso das pesquisas relacionadas a mtodos (auto)biogrficos

    de estudo de professores, Nvoa (1995, p. 18) considera que a utilizao contempornea

    das abordagens (auto)biogrficas fruto da insatisfao das cincias sociais em relao

    ao tipo de saber produzido e da necessidade de uma renovao dos modos de

    conhecimento cientfico. Esse autor classifica tais pesquisas em nove categorias

    diferentes, conforme sua relao com dois eixos temticos: primeiro a pessoa, as

    prticas e a profisso do professor e o segundo os objetivos relacionados teoria e

    investigao, prtica e formao e emancipao, investigao e formao. As pesquisas

    sobre a vida dos professores (Goodson, 1995; Huberman, 1995; Moita, 1995) buscam

    alargar o foco de investigao da rea de educao das questes tcnicas do ensino e da

    aprendizagem para as pessoas envolvidas, em especial a pessoa do professor.

  • 24

    O enfoque sociolgico do estudo adotado por esta pesquisa na tentativa de

    compreender como se constroem as vises dos professores sobre a profisso. Tal

    enfoque se justifica para uma pesquisa em educao musical na medida em que a

    possibilidade de recorrer a outras cincias no descaracteriza um objeto de estudo da

    educao musical. Kraemer (2000, p. 51) define a pesquisa em educao musical a

    partir do seu foco nas relaes entre pessoa(s) e msica(s) sob os aspectos de

    assimilao e transmisso. Este estudo procura entender a maneira como as identidades

    profissionais so construdas por professores de instrumento atuantes na universidade.

    Essas identidades formam-se na relao das pessoas (docentes universitrios-

    professores de instrumento) com outras pessoas, com msicas e idias sobre uma

    profisso ligada msica. o fato da relao de pessoas com msicas estar presente nos

    processos de construo de identidades profissionais do docente universitrio-professor

    de instrumento que faz do presente trabalho uma pesquisa em educao musical.

    Kraemer (2000) destaca que a educao musical divide seu objeto com outras

    cincias, em especial as humanas, sem, no entanto, descaracterizar-se enquanto cincia

    autnoma. Esse autor considera que:

    [...] cada rea tem um ncleo impermutvel, a partir do qual o respectivo objeto iluminado. As fronteiras entre cincias vizinhas so, com isso, flexveis, e podem mesmo sobreporem-se umas s outras ou mesmo serem abolidas. No centro das reflexes musicais, esto os problemas da apropriao e transmisso da msica. (Kraemer, 2000, p. 14)

    Uma vez que o objeto da educao musical dividido com outras cincias

    humanas, estas reas de pesquisa podem apropriar-se das metodologias utilizadas por

    outras reas afins, em especial se possurem caractersticas multidisciplinares, como o

    caso da metodologia da Histria Oral. Dessa forma, tendo a Histria Oral como base, a

    presente pesquisa busca construir um estudo de educao musical, com um enfoque

    sociolgico, presente em pesquisas da rea de educao sobre professores.

    Diversos autores tm se utilizado de metodologias biogrficas para o estudo de

    objetos de pesquisa relacionados temtica de identidades e msica. Os escritos de

    Demetrio (1994), por exemplo, parecem corroborar a possibilidade da adoo de

    metodologias biogrficas com recortes sobre a identidade em pesquisas sobre msica,

    na medida em que acenam para a msica como uma influncia possvel no modo de

    pensar dos indivduos. Esse autor reala que:

  • 25

    A biografia musical, mais uma vez, certamente a mais misteriosa, ela vai encontrar em que lugar a nossa mente aprendeu a construir a si mesma como pensamento musical. Uma dimenso que pode nos conduzir no s para saber escutar msica, para produzi-la, para comunic-la, mas sobretudo, que essa dimenso pode ser encontrada na forma que assumiu ou est assumindo a nossa vida e o nosso modo de pensar.7 (Demetrio, 1994, p. 46)

    Uma reviso detalhada dos estudos sobre essa temtica pode ser encontrada no

    trabalho de Torres (2003). Diferente de Torres (2003), que se centra nas identidades

    musicais das estudantes de pedagogia por ela investigadas, a presente pesquisa busca a

    relao das pessoas com a msica e umas com as outras dentro de um conceito de

    identidade profissional que abrange aspectos amplos da profissionalidade, aspectos que

    vo alm das prticas musicais dos participantes. Embora pesquisas como as de

    Demetrio (1994) e Torres (2003) focalizem mais significados relacionados prtica

    musical, diferenciando-se da presente pesquisa, demostram, ao mesmo tempo, que as

    metodologias relacionadas a aportes biogrficos tm sido utilizadas na rea de educao

    musical.

    Dessa forma metodologias relacionadas a aportes biogrficos esto ao mesmo

    tempo presentes em estudos sobre educao musical e sobre professores. Alm disso,

    tais metodologias se mostram adequadas a um enfoque sociolgico que parta da

    narrativa do indivduo em contraste com outras metodologias que tm como ponto de

    partida as estruturas sociais. Entre as metodologias biogrficas com enfoque

    sociolgico, a Histria Oral se apresenta como uma opo que privilegia, entre outros

    fatores, a interseco entre as vivncias individuais e sociais.

    2.2 Entrevistas de histria oral temtica: a memria de uma pessoa e a

    identidade de um grupo

    A Histria Oral como estratgia de pesquisa est inserida em uma corrente da

    histria que, por um lado, estuda polticos e pessoas com visibilidade social, mas, por

    outro, procura olhar para as vivncias cotidianas e contar a histria das pessoas de

    menor visibilidade social, focalizando acontecimentos que no se caracterizam como

    fatos histricos, mas como modos de viver em determinado local em um determinado

    7 No original: La biografia musicale, ancora una volta, certo la pi misteriosa, va rintracciata laddove la nostra mente ha imparato a costruire se stessa como pensiero musicale. Una dimensione che pu averci condotto non soltanto a saper ascoltare musica, a produrla, a comunicarla: ma, soprattutto, che rintracciabile nella forma che ha assunto o sta assumendo la nostra vita e il nostro modo di pensare.

  • 26

    tempo. Ao realizar uma reviso da trajetria da metodologia de Histria Oral no campo

    cientfico da Histria, Trebitsch (1994, p. 34) descreve o perodo da dcada de 1970

    quando, na Frana, os pesquisadores iniciaram trabalhos com um enfoque que se

    interessava pela vida cotidiana, pela famlia, pelos gestos do trabalho, pelos rituais e

    pelas festas.

    O relato das vivncias nas entrevistas de Histria Oral considerado um

    processo duplo de lembrana e construo da memria. Para Pollak (1987), a Histria

    Oral almeja responder tanto a uma demanda de conhecimento como construo de

    identidades pessoais e coletivas. As identidades parecem estar associadas memria e

    maneira de narrar as vivncias enquanto lembranas. A problemtica do que

    individual e do que se torna coletivo surge quando os autores tratam da questo da

    memria. Halbwachs (1990, p. 55) considera que:

    No estamos ainda habituados a falar da memria de um grupo, mesmo por metfora. Parece que uma tal faculdade no possa existir e durar a no ser na medida em que est ligada a um corpo ou a um crebro individual. Admitamos todavia que haja, para as lembranas, duas maneiras de se organizar e que possam ora se agrupar em torno de uma pessoa definida, que as considere de seu ponto de vista, ora distribuir-se no interior de uma sociedade grande ou pequena, de que elas so outras tantas imagens parciais. Haveria ento memrias individuais e, se o quisermos, memrias coletivas.

    A maneira como os participantes narram suas vivncias profissionais pode,

    portanto, possuir tanto aspectos individuais como coletivos. As identidades profissionais

    so construdas em suas vivncias com as pessoas, bem como com as concepes e os

    mitos sobre a profisso, presentes em seus locais de trabalho e estudo.

    As abordagens de pesquisa em Histria Oral privilegiam este olhar sobre a

    tenso entre a construo de significados individuais e socialmente compartilhados por

    um grupo. E, justamente por se colocarem no ponto da interseco das relaes entre o

    que exterior ao indivduo e o que ele traz em seu ntimo (Queiroz, 1988, p. 40), so

    vistas como ferramentas valiosas para a pesquisa.

    Alguns autores destacam a superposio do pessoal e do coletivo nos textos

    resultantes das entrevistas de Histria Oral. Portelli (1997, p. 30), por exemplo,

    considera que os resultados das entrevistas:

  • 27

    so narrativas nas quais a fronteira entre o que toma o lugar fora do narrador e o que acontece dentro, entre o que diz respeito ao individual e o que diz respeito ao grupo, pode se tornar mais enganosa que os gneros escritos estabelecidos, de modo que a verdade pessoal possa coincidir com a imaginao compartilhada.

    2.3 Entrevistas com os professores: a construo dos processos de coleta

    de dados

    2.3.1 A utilizao da tcnica de histria oral temtica

    A entrevista torna-se um instrumento mais adequado para a pesquisa de Histria

    Oral, porque a memria deve ser lembrada e reconstruda. durante a entrevista que se

    faz histria, na medida em que as lembranas so reconstrudas no ato de se narrar.

    Por outro lado, se o momento da entrevista a construo de um espao determinado no

    tempo, no qual as lembranas so revividas e contadas dentro de um contexto, tal

    contexto precisa ser desvelado e levado em considerao na construo dos significados

    que ocorre na entrevista.

    Entre os diversos tipos de pesquisa que utilizam a metodologia de Histria Oral,

    h uma graduao da interferncia do pesquisador nas entrevistas, desde uma entrevista

    dirigida, uma histria oral temtica at a histria de vida que, para Lang (1996) seria a

    tcnica de coleta de dados na qual o entrevistador teria um menor grau de influncia.

    Na busca pela abordagem de um tema especfico, a entrevista semi-estruturada

    privilegiada na tcnica de histria oral temtica. Esse tipo de entrevista possibilita a

    abordagem de um tema, mas, ao mesmo tempo, ao no fechar completamente as

    perguntas em torno de hipteses preestabelecidas, oferece um espao para que a voz do

    entrevistado possa ser ouvida, possivelmente surpreendendo o pesquisador com

    respostas e abordagens de assuntos que no foram antecipados.

    Uma reflexo que surge em relao maior ou menor diretividade das

    entrevistas, o quanto o interesse da pesquisa se volta para a vida dos participantes

    como um todo ou se focaliza nas suas experincias de vida relacionadas a um tema

    especfico, como, neste caso, a profisso de professor de instrumento na universidade.

    Parece haver uma tenso entre entender sua riqueza como pessoa, que optou pela

    carreira de professor de msica, ou construir o foco a partir das narrativas sobre suas

    vidas, retirando delas as partes relativas profisso. Mesmo havendo a possibilidade de

    opo pela tcnica de histria de vida, como outros estudos sobre professores j o

  • 28

    fizeram (por exemplo, Maia, 1998; Fonseca, 1997), parecia mais adequado aos

    objetivos propostos a busca por uma abordagem que no desconsidera a riqueza dos

    relatos individuais, mas que, ao mesmo tempo, tivesse o foco nos aspectos

    compartilhados, que poderiam apontar para os docentes univeristrios-professores de

    instrumento como grupo social que possui configuraes identitrias comuns. Para

    focalizar os comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que

    segundo Gimeno Sacristn (1997, p. 65), definem a profisso de professor, enquanto

    compartilhados, ou no, pelos diferentes professores, foram escolhidas entrevistas

    temticas, centradas no em um fato histrico, mas em uma temtica das histrias das

    vidas dos participantes suas vivncias como professores universitrios.

    As entrevistas foram realizadas a partir de dois roteiros: um roteiro geral, para as

    primeiras entrevistas (n. 2) e um individual, para as segundas e em alguns casos

    terceiras entrevistas ( n. 3, exemplo). Os roteiros individuais foram elaborados a partir

    da anlise das primeiras entrevistas, buscando, ao mesmo tempo, estimular os

    entrevistados a comentar sobre a primeira entrevista, retomando, de forma livre, suas

    narrativas e abordando temas considerados de maior importncia para a anlise.

    Nesses roteiros, as perguntas esto listadas em itens, estando boa parte da sua

    elaborao final a cargo do entrevistador no momento da entrevista. Como Alberti

    (1989, p. 65) reala, o roteiro na entrevista de histria oral temtica tem como funo

    orientar o pesquisador, ajud-lo a acompanhar o depoimento e a lembrar-se das

    questes que devem ser levantadas, sem contudo servir de camisa-de-fora. No

    momento das entrevistas, as prprias falas dos entrevistados podem ser utilizadas como

    ganchos para as perguntas, procurando solicitar, por exemplo, que o entrevistado

    desenvolva mais detalhadamente o assunto narrado.

    A anlise do contexto das entrevistas foi informada principalmente pelos dirios

    de campo. Uma estratgia utilizada para definir os assuntos a serem abordados no dirio

    de campo est baseada em Burgess (1997). Esse autor descreve trs tipos de notas a

    serem utilizadas no dirio de campo: as notas substantivas, que descrevem situaes,

    acontecimentos e conversas, com o objetivo de proporcionar uma descrio detalhada

    das vrias situaes que envolvem o pesquisador; as notas metodolgicas, que se

    constituem em reflexes pessoais sobre a atividade de coleta de dados; e as notas de

    anlise, que se referem s categorias analticas e s primeiras idias sobre a anlise que

    podem surgir durante a coleta de dados.

  • 29

    O dirio de campo mostrou-se muito importante para a compreenso dos

    contextos de realizao das entrevistas na presente pesquisa. Assim, foram narrados os

    contatos iniciais, espordicos e regulares. Tambm foi descrito o local e os

    acontecimentos circunstanciais, a presena de outras pessoas, a premncia do horrio

    por compromissos, entre outros, e o processo de avaliao mtua que ocorreu entre

    entrevistado e entrevistador.

    Outros fatores de interesse descritos no dirio de campo versam sobre a relao

    do entrevistado com o gravador, se existe inibio ou rejeio, e a permisso dada para

    o uso do mesmo. Alm disso, esto registradas no dirio de campo a explicao e a

    aceitao do uso das falas na pesquisa por parte dos entrevistados, juntamente com a

    questo do anonimato. Finalmente, esto apontadas notas que, a partir da memria

    recente da entrevista, j organizavam os dados em certas categorias que, posteriormente,

    foram teis para a anlise.

    Desde o primeiro contato para a realizao das entrevistas at o modo como foi

    conduzida, o ideal que se caminhe em direo a um dilogo informal e sincero, que

    permita a cumplicidade entre entrevistado e entrevistadores, medida que ambos se

    engajam na reconstruo, na reflexo e na interpretao do passado (Alberti, 1989, p.

    69). Para tanto, a postura de respeito s convices do entrevistado e a abertura em

    escut-lo necessitam estar claramente propostas por parte do pesquisador, desde o

    primeiro contato.

    No entanto, por maior que seja o esforo do pesquisador no sentido de propiciar

    uma plena abertura exposio das idias dos entrevistados, pelo menos dois fatores

    limitantes j esto postos pelas prprias caractersticas da metodologia: 1) a presena do

    entrevistador e 2) a escolha de um tema central.

    Thompson (1992, p. 159) destaca a presena social do entrevistador, mesmo

    quando no demostra nenhuma opinio explcita que possa influenciar o entrevistado.

    Esse autor exemplifica com a leitura que os entrevistados podem fazer de uma

    pesquisadora mulher, de classe mdia. Na medida em que existe uma conscincia das

    imagens formadas, torna-se mais fcil dar o desconto do vis resultante nas respostas; e

    tambm pode ser facilmente contrabalanado pela demonstrao de respeito pelas

    opinies dos informantes. Tais demonstraes de respeito podem ocorrer nos

    momentos de diferenas de opinies, nos quais o pesquisador se abstm de fazer

    comentrios que possam resultar em juzos de valor.

  • 30

    2.3.2 Fazendo contatos e obtendo respostas: a vontade dos docentes

    universitrios-professores de instrumento de se narrarem

    Para oferecer uma viso de diferentes realidades institucionais, foram

    entrevistados professores de diversos instrumentos que atuam nas instituies federais

    de ensino superior do Estado do Rio Grande do Sul Universidade Federal de Pelotas

    (UFPel), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade Federal

    de Santa Maria (UFSM) que oferecem cursos de Bacharelado em Msica.

    Nos primeiros contatos feitos com as instituies entre novembro de 2000 e

    maro de 2001, na UFPel, no departamento de Canto e Instrumento do Conservatrio de

    Msica, estavam lotados 15 professores, dos quais um estava afastado, trs tinham

    contratos temporrios e nove trabalhavam com disciplinas de instrumentos no

    Bacharelado em Msica com contratos permanentes.8 No departamento de Msica da

    UFRGS estavam lotados 34 professores, dos quais 17 trabalhavam com disciplinas de

    instrumentos.9 Na UFSM, no departamento de Msica, estavam lotados 25 professores,

    dos quais cinco estavam afastados e dois tinham contratos temporrios. Entre esses, oito

    trabalhavam com as disciplinas de instrumentos em carter permanente naquele

    semestre.10

    A diversidade de instrumentos foi um fator importante para a compreenso dos

    diferentes pontos de vista em relao atuao e definio profissional desse tipo de

    professor. Embora os professores de instrumento tivessem uma caracterizao

    profissional diferenciada, como pianistas e instrumentistas de orquestra, por exemplo,

    determinados problemas relacionados atuao profissional na universidade, bem como

    algumas das vises dos professores sobre a profisso, mostraram-se comuns. A partir

    dessas crenas em comum, foram analisados tambm como parte de um grupo social

    que, em alguns aspectos e talvez de forma tnue, apresenta uma identidade coletiva.

    8 Fonte: Informaes por e-mail de um professor do departamento de Canto e Instrumento fornecidas em 21 de novembro de 2000. 9 Fonte: Lista dos contatos dos professores do departamento de Msica da UFRGS fornecida pela chefe do departamento em 08 de novembro de 2000. 10 Fonte: Lista de freqncia das pessoas lotadas no departamento de msica de 7 de novembro fornecida em 28 de novembro de 2000 pela secretria do departamento.

  • 31

    Em maro de 2001 foram enviadas cartas-convite (n. 1) para os 34 professores

    da UFPel, da UFRGS e da UFSM que atuavam nas disciplinas instrumento11 no

    segundo semestre de 2000. Aqui no foram includos os professores em licena ou

    aqueles em contrato temporrio. Foram recebidas 19 respostas de professores que

    aceitaram participar da pesquisa. Os 19 professores que responderam inicialmente

    constituem 55,88% das cartas-convite enviadas, uma percentagem consideravelmente

    elevada para resposta de solicitao de pesquisa, o que indicou uma motivao dos

    professores em falar sobre o seu trabalho.

    A princpio, o critrio de seleo foi a vontade manifestada, atravs da resposta

    carta-convite, por parte dos professores at uma data determinada. No momento da

    realizao das segundas entrevistas, foram revistos os critrios de seleo e os 19

    professores foram reduzidos a 16. Nesse momento, foram excludos os professores com

    carga horria de 20 horas, por apresentarem caractersticas profissionais diferenciadas, e

    um professor com contrato temporrio, que havia sido entrevistado por uma falha na

    troca de informaes com sua universidade de origem.

    Quadro 1- Definio dos participantes da pesquisa

    UFPel UFRGS UFSM Total

    Professores lotados nos departamentos de

    msica 15 34 25 74

    Professores que lecionavam a disciplina de

    instrumento no semestre 2000/2 (menos

    aqueles com contrato temporrio)

    9 17 8 34

    Professores que responderam carta-

    convite 4 10 5 19

    Professores participantes da pesquisa na

    fase final de coleta de dados 3 8 5 16

    A coleta de dados foi proposta em trs momentos: aps o contato inicial, foi

    realizada, entre abril e agosto de 2001, uma primeira entrevista com os todos os

    professores. Posteriormente realizou-se uma segunda entrevista, e, em alguns casos,

    uma terceira. Estas ltimas ocorreram entre os meses de setembro de 2002 e fevereiro

    de 2003. A segunda entrevista teve como ponto de partida a transcrio e a anlise da 11 As disciplinas normalmente tm o nome do instrumento como piano 4, flauta 3 ou violino 1.

  • 32

    primeira entrevista, luz de diversos autores e com a seleo de citaes de trechos de

    temas considerados de maior aprofundamento. A seleo dos temas deu-se atravs da

    interseco da literatura, da minha anlise e dos interesses manifestados pelos

    entrevistados na primeira entrevista. Esses procedimentos buscavam dar seguimento ao

    processo de negociao da interpretao e das vozes na pesquisa. O mesmo ocorreu

    num terceiro momento, entre setembro 2003 e janeiro de 2004, quando foi apresentada

    aos professores a transcrio da segunda entrevista e foram assinadas as cartas de cesso

    ( n. 4).

    Quadro 2 - Etapas da coleta de dados

    1 Etapa

    abril a agosto de 2001

    Primeiras entrevistas

    2 Etapa

    setembro de 2002 a

    fevereiro 2003

    Segundas (terceira) entrevistas

    3 Etapa

    outubro de 2003 a

    janeiro de 2004

    Assinatura da carta de cesso

    Nas entrevistas, os professores indicam os diversos motivos que os levaram a

    participar da pesquisa. Dentre esses, destaco o desejo de colaborar com as pesquisas

    realizadas no Programa de Ps-Graduao em Msica da UFRGS, colaborar comigo

    como professora da UFSM ou porque conheciam pessoalmente o meu trabalho como

    pesquisadora e/ou aluna e professora de flauta transversa. Alm de tudo isso, destaco

    ainda a vontade de se narrarem e refletirem sobre suas atuaes profissionais, que

    talvez fosse o mais relevante motivo que os impulsionava.

    2.3.3 Em busca de um dilogo genuno: alguns conceitos da hermenutica

    filosfica na construo do processo de coleta de dados

    No momento em que um tema proposto na entrevista atravs de um roteiro de

    perguntas, se estabelece uma tenso entre a agenda do pesquisador e aquela dos

    participantes (McFadzaen, 1999). Parece que a questo central deste equilbrio entre

  • 33

    tema proposto e espao de expresso das idias dos participantes se encontra na busca

    de um dilogo genuno (Schwandt, 2001). No caso da presente pesquisa, procurei

    negociar essa tenso ao longo do processo, de tal forma que os participantes pudessem

    contar as suas histrias e ter uma voz na pesquisa, mas de forma que eu pudesse

    tambm abordar a temtica das identidades profissionais, o objeto de pesquisa

    estabelecido.

    Em um artigo publicado (Louro, 2003b), discuto a problemtica do dilogo na

    construo da metodologia da presente pesquisa. Neste trabalho, destaco uma

    circunstncia da coleta de dados que instigou a minha reflexo sobre o dilogo. No

    dirio de campo, questiono a dificuldade de estabelecimento de um dilogo mais

    fecundo, durante entrevista com uma professora que tambm minha amiga h muitos

    anos.

    Fomos para o apartamento dela, eram 14h15 da tarde, ficamos fazendo entrevista at as 15h10. Na sala tem uma mesa de jantar e dois sofs, dessa vez opto pelos sofs, provavelmente porque me sinto mais vontade nessa casa. Ela se senta numa poltrona, coloca os ps em cima de outra poltrona, bem vontade, e diz: Vamos trabalhar? Pergunto se ela tem alguma curiosidade sobre a pesquisa. Ela diz: No, estou aqui para responder o que tu precisas e no vou dar palpite. Parece que ela espera por um questionrio fechado. Explico que justamente a opinio dela que me interessa. A sua viso da profisso de professor de instrumento atuante na universidade e dos outros professor que vou estudar. [...] Tenho uma certa dificuldade de ir a fundo com essa professora, e acho engraado, quanto mais prxima a pessoa parece ser mais difcil, acho que tenho medo de que nossas diferenas de opinio sobre a profisso afetem nossa amizade. Em todo o caso tive cuidado com todos, mais ntimos e menos ntimos. (Dirio de campo, 26/05/2001, p. 1-2)

    A partir desse questionamento, busquei um aporte terico que me auxiliasse na

    discusso sobre a questo do dilogo. Percebi que tal questo remetia tambm aos

    paradigmas de pesquisa envolvidos, pois a postura da minha amiga, ao colocar-se como

    respondente que no se envolve, tanto quanto os meus questionamentos sobre a forma

    com que as minhas relaes pessoais, de amizade no caso, deveriam estar contempladas

    na metodologia da pesquisa, eram questes que remetiam a definies e vises sobre a

    pesquisa cientfica. Desse modo, localizando minha pesquisa em um modelo

    interpretativo, busquei compreender qual a funo da metodologia.

    Aos poucos delineou-se para mim a nfase desse tipo de pesquisa na construo

    de significados, o que a diferenciava da idia de que a boa construo de uma

  • 34

    metodologia, por si s, garante a construo do conhecimento. Schwandt (1997, p. 160)

    escreve essa postura focalizada no mtodo da seguinte forma:

    Uma concepo moderna, cartesiana ou iluminista de mtodo tambm assume uma dicotomia entre sujeito-objeto [...] Nessa maneira de pensar, a funo do mtodo de bloquear os preconceitos e manter o objeto de estudo distanciado, onde ele pode ser observado de forma segura, desinteressada e sem envolvimentos. Portanto, no a subjetividade do pesquisador que produz o conhecimento, mas o mtodo.12

    E, no mesmo texto, o autor destaca como exemplo de uma abordagem

    interpretativa a filosofia hermenutica que

    Desafia a idia de que compreender o nosso mundo social deve ser determinado pelo mtodo, e de que o conhecimento produto de uma conscincia metdica... Um pesquisador ps-moderno pode utilizar uma estratgia como a desconstruo, mas nunca um mtodo. Essas estratgias devem permitir o paradoxo de mltiplos significados e do jogo de infinitas variedades de interpretao. (Schwandt, 1997, p. 160-161)

    Na minha interpretao desta citao, busco resumir algumas das querelas do

    mtodo, ao mesmo tempo em que localizo a metodologia da presente pesquisa:

    Mais do que uma querela em torno das possibilidades de exposio matemtica das questes em estudo ou validao de um estudo que no toma uma totalizao da sociedade como objeto (Boudon, 1989), a questo trazida por Schwandt parece centrar-se na tomada ou no de uma teoria da significao relacional (Oliva, 1989) na construo das metodologias de pesquisa. Sendo assim, no so as possibilidades determinsticas, o uso de hipteses ou a capacidade de generalizao do estudo de um recorte pontual que esto sendo questionados, mas a aquisio do conhecimento que no se desenvolve pelo mtodo de maneira apriorstica e sim nas relaes que so estabelecidas entre as estratgias metodolgicas e as construes de significados ao longo do processo da pesquisa. (Louro, 2003b, p. 4)

    Quando pensava sobre o processo de coleta de dados, iluminada por essas

    reflexes tericas, percebia que, s vezes, durante as entrevistas, parecia que a busca

    por uma postura metodolgica distante, fechada e nica dificultava o trabalho de

    12 No original: A modern, Cartesian, or Enlightenment conception of method also assumes a subject-object dichotomy. [...] In this way of thinking, the function of method is to bracket bias or prejudice and keep the object of understanding at arms length, where it can be observed safely with disinterest and lack of involvement. Thus, it is not the subjectivity of the inquirer that produces knowledge but the method.

  • 35

    interpretao de significados que procurava realizar. Talvez a verdadeira questo fosse

    o modo de adotar determinados procedimentos de pesquisa sendo, ao mesmo tempo,

    natural. Como ser amigo, pesquisador e participante ao mesmo tempo? Se as

    identidades so mltiplas, de acordo com os autores ps-modernos (Hall, 1997; Stokes,

    1994) ento seria realmente possvel desempenhar mais de um papel social ao mesmo

    tempo. Era uma certa influncia da concepo de cincia como siga os procedimentos

    da sua metodologia que parecia ter me paralisado em alguns momentos, mas era um

    processo de aprendizagem pessoal. Um processo de aprendizagem que se deu ao longo

    da coleta de dados, tanto de uma entrevista para outra quanto de uma forma mais

    acentuada, no intervalo de um ano e meio entre a primeira e a segunda etapas da coleta

    (ver Quadro 2, p. 32).

    Um ponto chave dessa reflexo sobre mais que regras, posturas de pesquisa

    centrou-se na questo do dilogo, sendo contemplado o conceito de dilogo genuno da

    filosofia hermenutica. Como afirma Schwandt (1997), a filosofia hermenutica uma

    das teorias que pode ajudar na construo de estratgias para a pesquisa qualitativa.

    Nesse sentido, ao descrever as entrevistas em pesquisa qualitativa, Kvale (1996, p. 46)

    aponta que a literatura hermenutica pode ajudar a olhar para o processo de entrevista,

    tanto no momento da coleta de dados como no da anlise. Para esse autor:

    A entrevista de pesquisa uma conversa sobre o mundo da vida humana, com o discurso oral transformado em texto para ser interpretado. A hermenutica ento duplamente relevante para a pesquisa que utiliza entrevistas, primeiramente na iluminao do dilogo produzido na entrevista a ser interpretado, e posteriormente na clarificao dos subseqentes processos de interpretao dos textos produzidos pela entrevista, que podem tambm ser concebidos como um dilogo ou uma conversao com o texto.13

    Como explicado por Kvale (1996), a entrevista pode ser considerada um

    dilogo. A palavra dilogo pode assumir diferentes nuanas de significado, conforme o

    contexto em que usada. Nesta pesquisa, a palavra dilogo utilizada no sentido que

    assumi para a linha de pensamento da filosofia hermenutica. Schwandt (2001, p. 272)

    descreve que: 13 No original: The research interview is a conversation about the human life world, with the oral discourse transformed into texts to be interpreted. Hermeneutics is then doubly relevant to interview research, first by elucidating the dialogue producing the interview to be interpreted, and then by clarifying the subsequent process of interpreting the interview texts produced, which may again be conceived as a dialogue or a conversation with the text.

  • 36

    A chave para dar-se conta de um evento genuno de compreenso se realiza atravs do dilogo com o outro (sendo ele uma pessoa, um texto ou uma tradio), que ns deixemos o outro nos falar. Isso significa que ns no debatemos simplesmente nossos pontos de vista contra os deles (desta maneira simplesmente reproduzindo, reafirmando continuando a argumentar a favor da nossa compreenso anterior) mas que cada parte do evento de compreenso genuinamente coloque em risco suas prprias compreenses pessoais e conseqentemente se torne aberto para a possibilidade de uma compreenso mutuamente envolvida, nova e diferente.14

    Nessa linha de argumentao proposta por Schwandt (2001), o verdadeiro

    evento de compreenso decorre de um dilogo genuno. Esse tipo de dilogo s se torna

    possvel na medida em que as partes envolvidas arriscam seus prprios pontos de vista.

    O olhar possvel sobre a noo de arriscar os prprios pontos de vista d-se atravs dos

    riscos dos preconceitos. Diversos autores da filosofia hermenutica tratam dessa

    perspectiva, inerente a um dilogo genuno. Bernstein (1986) comenta a distino feita

    por Gadamer entre preconceitos cegos e preconceitos justificveis que so produtos

    do conhecimento. Bernstein (1986, p. 90) enfatiza a impossibilidade de distinguir esses

    diferentes tipos de preconceitos antes de comear o processo de interpretao de um

    objeto especfico ou um dilogo com uma pessoa, um texto ou tradio.

    Como possvel distinguir entre esses tipos de preconceitos ou prejulgamentos? Uma resposta est claramente estabelecida. Ns no podemos fazer isso por um ato solitrio ou monlogo de pura auto-reflexo onde ns bloqueamos ou suspendemos todos os julgamentos que envolvem nossos preconceitos.15

    Bernstein (1986) argumenta que, como parte integrante do nosso ser, os

    preconceitos no podem simplesmente ser postos de lado antes de iniciar o processo de

    interpretao. No entanto, durante o processo, podemos perceber qual preconceito pode

    ser til e qual pode tornar nossa compreenso mais confusa. Alm disso, Blacker (1993,

    p. 2) afirma quando os preconceitos do intrprete conscientemente so colocados no

    14 No original: The key to realizing a genuine event of understanding is that it is through dialogue with another (be it person, a text, or a tradition) that we allow the other to speak to us. This means that we do not simply debate our view versus their (thereby simply reproducing, restating and continuing to argue for our current understanding) but that each party to the event of understanding genuinely risks her/his own self-understanding and thereby is open to a possibility of a mutually evolved new and different understanding. 15 No original: How do we distinguish between these types of prejudice or prejudgment? One answer is clearly ruled out. We cannot do this by a solitary or monological act of pure self-reflection where we bracket or suspend judgment about all of our prejudice.

  • 37

    jogo com aqueles do objeto quando os horizontes so fundidos emerge uma

    linguagem viva em comum.

    Se a conduo da entrevista for vista como uma interpretao construda atravs

    do dilogo genuno, torna-se importante analisar trs aspectos: o horizonte do

    entrevistador, o horizonte dos entrevistados e o modo como, na dinmica do dilogo, os

    horizontes so fundidos. Uma perspectiva para abordar essa questo foi a tentativa de

    descobrir quais os preconceitos que estavam em jogo e como eles interagiam entre si.

    Isso foi possvel na medida em que refleti sobre o meu prprio horizonte uma

    professora de instrumento que fez todos os seus cursos de ps-graduao em Educao

    Musical , em contraste com o horizonte de Anita, um exemplo que pode ser tomado

    entre os professores entrevistados, algum que fez todos os seus cursos de ps-

    graduao em prticas interpretativas. As nossas concepes sobre msica e

    educao, sobre a arte e o papel da msica na sociedade, provavelmente estaro

    calcadas em perspectivas diferentes.

    Esse processo de construo de um espao, onde eu pudesse ouvir Anita mais

    ou menos com os seus ouvidos, pode ser entendido como a construo de uma zona

    de interpretao, um conceito desenvolvido por Bresler (2001) para a pesquisa

    qualitativa internacional. Esse conceito elaborado em contextos nos quais o

    pesquisador que vive em um determinado Pas se prope a realizar pesquisas em outros.

    Acredito que esse conceito igualmente til para a pesquisa qualitativa com base em

    entrevistas. Bresler (2001, p. 12), citando Gallagher, enfatiza um estado de compreenso

    que alcanado atravs de uma

    apreciao, reconhecimento e exame do prprio horizonte histrico. A fuso de dois horizontes resulta na realizao com sucesso do ato de compreenso A conscincia histrica efetiva a conscincia do ato da fuso. Eu considero que essa fuso de horizontes facilitada quando ns trabalhamos colaborativamente na zona interpretativa.16

    Como explica McFadzean (1999, p. 32), em sua abordagem sobre o uso da

    filosofia hermenutica nas entrevistas de Histria Oral, importante chegar a um acordo

    sobre a interpretao.

    16 No original: appreciation, recognition and examination of ones own historical horizon. The fusing of the two horizons results in the successful completion of the act of understanding. Effective-historical consciousness is the conscious act of this fusion. I contend that this fusion of horizons is facilitated when we work collaboratively in the interpretive zone.

  • 38

    A hermenutica um processo dialgico em que a compreenso de um texto se inicia atravs do desenvolvimento de um acordo de interpretao entre o autor do texto e o historiador... O segundo processo o dilogo hermenutico entre o entrevistador e o sujeito, que o testemunho gravado, um acordo de interpretao.17

    No caso da presente pesquisa, esse acordo no significou simplesmente que as

    diferenas de opinio sobre os assuntos tratados deixaram de ser consideradas, mas que

    os entrevistados tiveram assegurada uma voz na tese e que, quando essa voz viesse

    tona, atravs das citaes das entrevistas, seria de uma maneira estabelecida por ns em

    conjunto, atravs de um acordo de interpretao. A grande abordagem metodolgica

    ento foi a postura de estar aberta, no parar em meus preconceitos iniciais, mas saber

    que meus preconceitos estariam sempre presentes, assim como estaria presente a minha

    inteno de estar aberta a um dilogo genuno.

    Considerar as entrevistas como uma interpretao hermenutica, na qual os

    horizontes so fundidos na medida em que os preconceitos so postos em risco atravs

    do dilogo genuno, foi uma estratgia para compreender a construo dos significados

    no processo das entrevistas. Isto ocorreu porque, ao arriscar meus preconceitos e olhar

    atravs de uma zona de interpretao, na qual o meu horizonte e o horizonte dos

    participantes foram considerados, o acesso construo dos significados nos processos

    de entrevistas pde ser feito de forma mais complexa, na medida em que a neutralidade

    negada e so assumidas as perspectivas de onde falamos, tanto as minhas como as dos

    participantes.

    17No original: Hermeneutics is a dialogical process in which the understanding of a text is initiated