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O semiárido na literatura – a água dá o tom: uma proposta de ensino Humberto Hermenegildo de Araújo José Luiz Ferreira PARADIDÁTICO

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Paradidático sobre semiárido e obras de poetas norte-rio-grandenses. Literatura e ensino, organizado pelo professor Humberto Hermenegildo.

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  • O semirido na literatura a gua

    d o tom: uma proposta de ensino

    Humberto Hermenegildo de Arajo

    Jos Luiz Ferreira

    PARADIDTICO

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensinod

    REVIS

    Od

  • PARADIDTICO

    Natal RN, 2013

    Humberto Hermenegildo de ArajoJos Luiz Ferreira

    O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino

  • Catalogao da publicao na fonte. Bibliotecria Vernica Pinheiro da Silva.

    COORDENAO DE PRODUODE MATERIAIS DIDTICOSMarcos Aurlio Felipe

    GESTO DE PRODUO DE MATERIAISCarolina Aires MayerRosilene Alves de Paiva

    PROJETO GRFICOIvana Lima

    REVISO DE ESTRUTURA E LINGUAGEMJanio Gustavo Barbosa

    REVISO DE LNGUA PORTUGUESARhena Raize Peixoto de Lima

    REVISO DE NORMAS DA ABNTVernica Pinheiro da Silva

    DIAGRAMAOElizabeth da Silva Ferreira

    CRIAO E EDIO DE IMAGENSAnderson Gomes do Nascimento

    REVISO TIPOGRFICALeticia Torres

    PR-IMPRESSOJos Antonio Bezerra Junior

    FICHA TCNICA

    GOVERNO FEDERAL

    Presidenta da RepblicaDilma Vana Rousseff

    Vice-Presidente da RepblicaMichel Miguel Elias Temer Lulia

    Ministro da EducaoAloizio Mercadante Oliva

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE UFRN

    Reitorangela Maria Paiva Cruz

    Vice-ReitoraMaria de Ftima Freire Melo Ximenes

    Copyright 2005. Todos os direitos reservados a Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte EDUFRN.Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorizao expressa do Ministrio da Educao MEC

    Secretaria de Educao a Distncia (SEDIS)

    Secretria de Educao a DistnciaMaria Carmem Freire Digenes Rgo

    Secretria Adjunta de Educao a DistnciaIone Rodrigues Diniz Morais

    CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfi co e Tecnolgico

    INSAInstituto Nacional do Semirido

  • Apresentao

    Este material didtico fruto de um projeto fi nanciado pelo edi-tal MCT-INSA/CNPq/CT-Hidro/Ao Transversal N 35/2010 Desenvolvimento Sustentvel do Semirido Brasileiro, es-pecifi camente na Linha Temtica 4: capacitao de educadores e agentes de extenso, mais especifi camente no que concerne possibilidade de produo, publicao, tiragem e distribuio de materiais paradidticos, contextualizados com a realidade da regio semirida. A perspectiva que se tem de que os materiais produzidos funcionem como um incentivo ao ensino de cincias com vistas convivncia com o ambiente Semirido e sua susten-tabilidade, podendo ser utilizados por educadores em escolas de educao bsica, ou por agentes de extenso, em seu trabalho com comunidades do Semirido brasileiro, mais exatamente o Semirido do estado do Rio Grande do Norte.

    Os materiais foram escritos a partir da colaborao de uma equi-pe multidisciplinar de vrias universidades Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Federal do Semirido (UFERSA), Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Uni-versidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) , aspecto que facilitou viabilizar a tarefa proposta a partir da produo cientfi ca regional, da cultura e da transposio didtica de conhecimentos gerados na universidade e que possam ser dirigidos s populaes dessa regio. Assim, espe-ramos contribuir para a reduo das diferenas sociais e regionais, alm de promover a valorizao da cultura e alfabetizao cientfi ca no contexto delimitado pelo projeto.

    O material produzido est pautado na necessidade de se garantir uma continuidade e incremento de aes de educao cientfi ca que j vm sendo desenvolvidas h cerca de dez anos na regio da bacia hidrogrfi ca do rio Piranhas-Assu, regio Semirida do Rio Grande do

  • Norte, onde boa parte do grupo de pesquisa envolvido nesta proposta atua estudando uma srie de reservatrios dessa bacia hidrogrfi ca, com vasta produo cientfi ca na rea.

    A nfase dos materiais produzidos se d sobre microrganismos, grupos fi toplanctnicos e zooplanctnicos, bactrias e protozorios, abordando sua ecologia e diversidade. A toxicidade encontrada nos audes da regio retratada em cordis e cartilhas, alm de termos uma produo especfi ca sobre a literatura sertaneja com o enfoque sobre o tema seca/gua, todas advindas de estudos realizados na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A oportunidade ma-terializada no edital em que se insere este projeto nos remete a um esforo de sistematizao dos dados j acumulados pela equipe de pesquisadores, contribuindo sobremaneira pra o ensino de cincias e biologia nas escolas e favorecendo a divulgao da diversidade de organismos tpicos dos ambientes aquticos locais, mais detidamente os seus reservatrios ou audes. Isso dever contribuir com a otimi-zao e ampliao de trabalhos j realizados, dando maior sentido s aes de divulgao e alfabetizao cientfi ca do grupo, uma vez que permitir a produo de materiais paradidticos para professores e alunos da regio. Aliado a isso, foram incorporados ao grupo pes-quisadores da rea de literatura e cultura, com o intuito de ampliar o enfoque interdisciplinar do projeto, mas sem deixar de ter a gua como tema organizador da proposta.

    Magnlia Fernandes Florncio de Arajo UFRNCoordenadora do projeto

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 5

    Apresentao

    Este livro rene um conjunto de leituras sobre a produo liter-ria de autores que utilizaram o tema da gua e do semirido na literatura brasileira, mais especifi camente na literatura produ-zida na regio Nordeste. Essas leituras so resultantes de trabalhos acadmicos e se destinam aplicabilidade em sala de aula, com a adequao a situaes de ensino, conforme a necessidade verifi cada pelos professores de Lngua Portuguesa.

    Objetivo

    Discutir a temtica da gua e do semirido a partir de textos literrios, verifi cando a forma artstica e as implicaes sociais decorrentes da relao entre literatura e sociedade, com vistas aplicabilidade em sala de aula.

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 7

    A Literatura na escola muita imaginao pensar num rio subitamente atravessando um deserto.Provocaria uma revoluo em crculos concntricos, cada vez maiores na proporo do afastamento do centro. Flora, fauna modifi car-se-iam determinando a vinda e nascimento de no-vas espcies vegetais e animais. E a zona de conforto faria a movimentao de vidas e interesses sem conta, encadeadas no brusco aparecimento de alimento certo em ponto fi xo.(CASCU-DO, 2006, p. 197).

    Esta proposta de trabalho resulta de uma ao produtora de mate-riais relacionados literatura regional e local que possam ser utiliza-dos por professores e alunos das escolas do semirido do Rio Grande do Norte, tomando-se como tema base a memria sobre os ambientes aquticos ou a questo da gua e da seca na regio1.

    Trata-se, portanto, de um projeto inovador no mbito do sistema escolar, particularmente no ensino de literatura, cujos problemas so infl uenciados por fatores de naturezas distintas com impacto na for-mao inicial e continuada de professores. Categorias como interdis-ciplinaridade e contextualizao tornam-se imperativas para a supera-o de um ensino e de uma aprendizagem fragmentados e estanques.

    Nesse processo, os materiais paradidticos so importantes ferra-mentas no aprofundamento de temas relacionados aos livros tradi-cionalmente adotados nas escolas e podem ter um papel fundamental na complementao de estudos. Na regio semirida, materiais dessa natureza tambm podem contribuir para a formao dos alunos, na medida em que se proponham a complementar temas do ensino no

    1 Esta uma atividade de divulgao de resultados do projeto de pesquisa Cincia e cultura em regio semirida nordestina: produo e divulgao de materiais paradidticos a partir de conhecimentos acumu-lados sobre o serto potiguar (CNPq), na perspectiva de incentivo convivncia com as caractersticas do Semirido Brasileiro. A incorporao, ao grupo, de pesquisadores da rea de literatura teve o intuito de ampliar o enfoque interdisciplinar do projeto, sem deixar de ter a gua como tema organizador da proposta.

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino8

    que se refere s questes e problemticas especfi cas da regio, muitas vezes no contempladas nos livros didticos.

    Aplicada a uma realidade especfi ca e considerada perifrica no sistema capitalista que contextualiza a sociedade brasileira e latino--americana, a atividade do projeto no pode deixar de considerar a complexa situao do ensino de literatura no sistema educacional brasileiro. Em face da perda curricular dos contedos humansticos nos sistemas de ensino, torna-se cada vez mais difcil apresentar, no perodo de formao dos alunos na escola, a apreciao de obras literrias de modo a reconhecer nelas um legado capaz de condensar a experincia humana. Nesse sentido, Antonio Candido (2004, p. 186) nos alerta:

    A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos acontecimentos e viso do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruio da literatura mutilar a nossa humanidade.

    Na rea de literatura, a perda curricular dos contedos humans-ticos torna-se evidente quando se verifi ca nos programas e manuais a diminuio da nfase na leitura dos textos literrios. Muitas vezes, a presena desses textos reduzida a partes de gneros ou a modos inespecfi cos (no mesmo patamar de textos no-literrios). Uma vez consolidada na sociedade da economia global a inutilidade da Lite-ratura assim como da Filosofi a , cria-se a situao iminente de con-siderar o ensino da lngua materna apenas no aspecto da sua vertente comunicativa, sem a espessura cultural que molda todos os idiomas.2

    2 A refl exo contida neste pargrafo apresenta-se em consonncia com o estudo Cultura e formao de professores (BERNARDES, 2010).

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    Em tal situao, essa proposta de trabalho acredita que a literatura tem um papel na formao dos jovens e dos cidados em geral. Faz-se necessrio destacar ainda o seu potencial de memria lingustica e cultural, a sua fonte propiciadora do desenvolvimento das capacidades intelectuais e emocionais do homem, dentre outros fatores agregado-res de civilidade. A literatura, como patrimnio cultural, convive com todas as formas de conhecimento e imprescindvel humanizao dessas formas, sobretudo em seu aspecto transformador.

    Fresca e clara tambm a cano do rio. Realmente, o rumor das guas assume com toda naturalidade as metforas do frescor e da claridade. As guas risonhas, os riachos irnicos, as cascatas ruidosamente alegres encontram-se nas mais variadas paisagens literrias. Esses rios, esses chilreios so, ao que parece, a lin-guagem pueril da Natureza. No riacho quem fala a Natureza criana (BACHELARD, 2002, p. 34).

    O papel da gua como imagem esttica ganha um sentido universal na concepo de Bachelard. J no que diz respeito especifi camente aos contedos conjugados no projeto ao qual se vincula esse estudo, verifi ca-se que a literatura permite a compreenso do papel da gua na vida do homem de uma determinada regio, colaborando com o conhecimento cientfi co que aponta no sentido da superao de uma realidade opressora e prestes a desencadear uma catstrofe ecolgica pelo mau uso da gua.

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    A temtica da gua na literatura Um dos grandes problemas enfrentados na regio do semirido

    do nordeste brasileiro a escassez da gua. Devido s condies climticas, essa regio convive praticamente boa parte do ano com a falta desse recurso natural. Ao longo da histria, frequente, princi-palmente nos perodos de longa estiagem, os relatos em torno dessa situao que afeta diretamente a qualidade de vida da populao.

    Em meio a toda essa adversidade, o homem sertanejo foi criando maneiras prprias de conviver de forma mais harmoniosa com o seu espao. Na cultura, por exemplo, so marcantes os traos que o sertanejo vai imprimindo a esse ambiente to adverso. Um dos mais importantes estudiosos dessa cultura, Lus da Cmara Cascudo, apre-senta, em vrias de suas obras, o exemplo da culinria e da lida com o gado como prticas representativas das aes do sertanejo, homem que sempre encontrou alternativas de sobrevivncia, as quais se apre-sentam como fatores determinantes para caracterizar o seu modo de agir e interagir nesse ambiente.

    No mbito da fi co brasileira, so inmeras as obras que temati-zam sobre essa questo, principalmente sobre os efeitos devastadores que a seca prolongada provoca na vida do sertanejo. Dentre as mais conhecidas, podemos citar as obras O quinze (1930), de Raquel de Queirz, Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, bem como Morte e vida Severina (1956), do poeta Joo Cabral de Melo Neto.

    A temtica da gua se faz presente tambm em vrios outros mo-mentos da imaginativa que tem o ambiente do serto como cenrio. Na narrativa oral, nos versos de folhetos ou embalado ao som de violas, frequente a presena do elemento gua, seja para celebrar a sua presena no perodo do inverno, seja para lamentar os efeitos de sua ausncia.

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    No livro Vaqueiros e cantadores (1984, p. 306), Cma-ra Cascudo transcreve o poema matuto A vida sertaneja, de autoria de Antnio Batista Guedes, em que a primeira estrofe funciona como epgrafe para o cenrio do serto:

    Quando o inverno constanteo serto terra santa;quem vive da agriculturatem muito tudo que planta.H fartura e boa safra,todo pobre pinta a manta...

    Ao longo do sculo XX, diversos autores do Rio Grande do Norte, dentre eles, Cmara Cascudo, Zila Mamede e Oswaldo Lamartine, trabalharam o tema da gua nas suas obras literrias, associado personagem sertanejo. Dentre outros, dois fenmenos podem ter contribudo para o direcionamento do tema e da personagem: a cons-truo de audes como um fator de desenvolvimento, resultante de uma poltica de modernizao promovida pelo Estado, e a admisso do homem do interior como personagem literria, sobretudo com o advento do chamado romance de 303.

    Na prosa de fi co, na crnica e na poesia, assim como nos discursos jornalstico e poltico, o tema da gua dava a tnica de um discurso regional com matizes diversos e carentes de in-terpretao de acordo com a situao cultural e sociopoltica em que foram gerados. Mas, a recepo desses discursos, na atuali-dade, no se restringe necessariamente ao sentido determinado por aquela situao que lhe forneceu expresso. O tema da gua, universal em princpio, tem uma contextualizao tal que, mesmo no Nordeste4, no um fenmeno homogneo por se situar em

    3 Cf, a respeito o estudo Uma histria do romance de 30 (BUENO, 2006).4 Sobre a discusso em torno do Nordeste no sculo XX, cf. os estudos: A inveno do Nordeste e outras

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    um espao restrito, nem atravessa com um mesmo sentido as di-versas fases de um perodo considerado extenso como um sculo. Por se apresentar assim, esse tema carrega consigo sentidos que se agregam ao que lhe correlato, no nosso caso, a personagem sertanejo, que tambm no pode se caracterizar de forma ho-mognea em espaos e tempos diferenciados. Isso signifi ca que a recepo5 determina os sentidos, sempre em uma dada situao histrica e cultural.

    A gua dos Sertes do Serid O fragmento a seguir abre o primeiro captulo do livro Sertes

    do Serid (1980), do escritor Oswaldo Lamartine de Faria. A obra composta de cinco partes, sendo Audes dos sertes do Serid a primeira delas. O captulo referido leva o ttulo De como era no princpio, remetendo ao mundo do texto bblico, na sua gnese (No princpio era o verbo...). Tal perspectiva, contudo, no se manifesta no fragmento destacado, cujo tempo verbal, no presente do indicati-vo, revela literalmente uma viso (Espia-se) da paisagem sertaneja recortada, de modo a formar um quadro pitoresco onde, em princpio, no haveria a presena do homem.

    Espia-se a gua se derramando lquida e horizontal pela terra adentro a se perder de vista. As represas esgueiram-se em mar-gens contorcidas e embastadas, onde touceiras de capim de planta ou o mandante de hastes arroxeadas debruam-se na lo-dosa lama. O verde das vazantes emoldura o aude no cinzento dos chos. Do silncio dos descampados vem o marulhar das marolas que morrem nos rasos. (FARIA, 1980, p. 23).

    artes (ALBUQUERQUE JR., 2006); O regionalismo nordestino: existncia e conscincia da desigualdade regional (SILVEIRA, 1984).5 Sobre a questo da recepo no contexto moderno, cf. o estudo Tradio literria e conscincia atual da modernidade (JAUSS, 1996).

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    O quadro composto de modo a contrastar com a histrica viso da seca: O verde das vazantes emoldura o aude no cinzento dos chos. s conotaes de cinzento se agregam outras, formando a imagem de uma aridez anterior e no entorno do quadro destacado: as represas esgueiram-se em margens contorcidas e embastadas, expresses que propiciam o estabelecimento de relaes com textos clssicos referentes ao fenmeno da seca, ao sofrimento provocado pela aridez. quele j clssico quadro da misria se ope, por contraste, criao paradisaca. Nessa paisagem desabitada, predomi-na o silncio dos descampados. Trata-se, portanto, de um paraso cuja vida criada parece desprovida de personagens humanas. No entanto, h vida, como revelam os perodos seguintes do pargrafo citado:

    Curimats em cardumes comem e vadeam nas guas beirinhas nas horas frias do quebrar da barra ou ao morrer do dia. Nuvens de marrecas caem dos cus. Pato verdadeiro, putrio e paturi grasnam em coral com o coaxar dos sapos que abraados se multiplicam em infi ndveis desovas geomtricas. Gritos de soc martelam espaadamente os silncios. O mergulho risca em rasante vo o espelho lquido das guas. Garas em branco--noiva fazem alvura na lama. o arremedar, naqueles mundos, do comeo do mundo. (FARIA, 1980, p.23).

    O arremedar do comeo do mundo ganha traos alegricos que simbolizam um paraso sertanejo. Poderamos arriscar uma inter-pretao nesse sentido, verifi cando que acontece uma espcie de personifi cao da vida animal para representar a ao do homem naquele comeo de mundo. Os verbos vadear e multiplicar do a curimats e sapos a possibilidade de uma vida plena em que a vadeao na vau do aude seria parte essencial do cio paradisaco, e a multiplicao seria apenas o desdobramento da vida decorrente de abraos sem culpas.

    A criao do mundo acontece, tambm aqui, como um ato da vontade de Deus que abre as comportas do cu e derrama nuvens de marrecas em cima do aude. A partir de ento, aquele silncio dos

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    descampados quebrado: espcies de patos grasnam em coral com o coaxar dos sapos, gritos de soc martelam espaadamente os silncios tratar-se-ia do arremedo da palavra?

    No bastasse toda a simbologia verifi cada, o quadro encerrado com a imagem de garas, em branco-noiva, fazendo alvura na lama, como se estivssemos diante de uma promessa de casamento, de vida nova. Nessa perspectiva, o aude representa realmente um mundo novo para o serto, impossvel antes dos empreendimentos modernizadores do incio do sculo XX.

    Vendo dgua a terra cheiaEu sinto doce lembranaDo meu tempo de criana,Dos meus audes de areia.

    Esses versos de Jos Lucas de Barros so a epgrafe do livro Sertes do Serid e revelam uma perspectiva saudosista do autor, bem tpica dos regionalistas nordestinos.

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    Aps o primeiro pargrafo do livro, o seguinte fragmento arremata o subitem O aude, do captulo De como era no princpio:

    O rio, estancado em aude, continua depois, em verde sinuo-so de capinzais, copas de mangueiras, leques de coqueiros ou canaviais penteados pelo vento. Milhes de metros cbicos de gua-doce, fria e cheirosa que a gua nos desertos tambm cheira esbarrados pela muralha da parede, aninham peixes, criam vazantes, do de beber criao, fazem crescer razes, caules, folhas, fl ores e frutos e se esclerosam em veias pela terra adentro, esverdeando em folhas os sedentos chos cinzentos daqueles sertes. (FARIA, 1980, p. 23).

    A descrio do aude e do seu entorno contraria, sem deixar de se inscrever em uma mesma tradio, o discurso do lamento em torno da vida no semirido. Tal abertura, em perspectiva positiva, justifi ca a tese do livro que seria, salvo engano, a de que a construo de au-des no serto abriria um panorama novo no processo da civilizao sertaneja. Estaria consolidada a presena do colonizador que chegou vencendo o ndio, marcando a terra, construindo currais, plantando algodo... guardando as guas6. Com tal verbo feito carne, aparece enfi m o homem. Aquele ato primeiro da vontade de Deus carece, ento, de um questionamento: no seria to natural a criao da paisagem referida, uma vez que se verifi ca, a, a materializao de um mundo que surge a partir do trabalho.

    Ao leitor de hoje, recomendvel voltar ao incio do texto e desconfi ar daquele olhar primeiro (Espia-se a gua se derraman-do...): quem espia? A indeterminao do sujeito aparece como uma sugesto de universalidade que, no entanto, fruto de uma construo histrica. O resultado da criao, o aude, carrega consigo o tema universal da gua que, se contextualizado, ganha foros de particularidade.

    6 O livro, no seu plano, apresenta uma espcie de relatrio dessa marca civilizatria, epopeia cujo pice a construo dos audes. Os captulos so: Audes do serto do Serid; Conservao de alimentos nos sertes do Serid; Algumas abelhas nos sertes; ABC da pescaria de audes no Serid; A caa nos sertes do Serid.

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    Sugestes de atividades Nos captulos seguintes, apresentamos algumas atividades decor-

    rentes de leituras de teses de doutorado relacionadas ao tema da gua no semirido, todas na rea de Letras. Aps cada discusso, aparecem sugestes de atividades, as quais podero ser executadas de acordo com as necessidades verifi cadas pelo professor e conforme a realidade de cada escola na sua comunidade.

    O sertanejo e a gua na literatura regionalHumberto Hermenegildo de Arajo; Jos Luiz Ferreira7

    O poema O riacho apresenta uma imagem que no parece se encaixar na regio do semirido, a no ser em perodo chuvoso ou em espaos mais elevados, como as altitudes das serras. A sua universali-dade destoa daquela que se percebe no fragmento analisado do texto de Oswaldo Lamartine, mas no pode ser descartada como leitura. O riacho, no aparente idealismo e em comunho telrica, permite determinadas exploraes de anlise: sejam os temas da resignao ou da permanncia, ou mesmo a percepo de uma sutil erotizao da natureza, at o aproveitamento do texto para discutir sobre as possibilidades de preservao ambiental de determinados espaos de uma regio carente de proteo legal.

    7 Esta atividade tem como referncia o texto O sertanejo e a gua na literatura regional (ARAJO; FER-REIRA, 2011).

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    O Riacho

    Deslizando de manso sobre a areia,o pequenino riacho cor de pratacanta, solua, geme e serpenteiadentro da paz tristssima da mata.

    Esbarra numa pedra: empina, alteiao dorso... mais adiante uma cascata,sentimental e enamorada, anseiaouvindo-lhe a constante serenata.

    Chegando o inverno, o riacho se avoluma,e num furor terrvel de panteraestronda, ronca, ruge, atroa e espuma.

    Mas, estao que as rvores enfl ora,Perde a altivez indmita de feraE volta a ser tranquilo como outrora.

    Fonte: Damasceno Bezerra (publicado em Feitio, Natal, ano 2, n. 3, 2 fase, 23 maio 1936, p. 1).

    Uma vez tornado rio, o riacho atravessa com fora o espao ge-ogrfi co. No h como no ganhar, nesse espao, uma histria que tem faces distintas, conforme os perodos da sua narrao: da fartura (inverno), da misria (seca), da tragdia (enchente, seca).

    Em perspectiva diferente, o poeta pernambucano Joo Cabral de Melo Neto confere, no poema Morte e vida Severina, uma histria ao rio. Nele, a imagem do serto como espao nos dada a partir da personagem retirante, personifi cado, no auto do poeta pernambucano, com o nome de Severino.

    No poema Morte e vida Severina, a personagem principal conta-nos sua trajetria de vida, que simbolicamente representa o enfrentamento do homem sertanejo do semirido nordestino com os longos perodos

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino18

    de estiagem na regio. Severino escolhe como caminho-trilha, para nos contar a sua dolorosa via crucis, o leito do rio Capibaribe, na sua exten-so, ou melhor, o caminho das guas que vai desde a sada no serto at o seu encontro com o mar na cidade do Recife, momento em que rio e retirante se deparam com a cruel realidade de outros tantos severinos, vindos do causticante espao sertanejo e/ou naturais do lamacento man-gue recifense.

    Nesse caso, transforma-se apenas o cenrio, uma vez que a pre-sena do elemento gua no ndice de condio de vida plena e favorvel ao habitante local ou ao retirante que ali chega. Ao abordar a temtica da seca e a dispora que ela provoca, o poeta introduz uma discusso que revela o drama e as condies de vida de grande parte da populao de um pas situado na periferia do capitalismo mundial, situao que talvez tenha no drama da seca uma de suas faces mais cruis.

    Para esta leitura, destaca-se, na narrativa, a imagem do momento em que o sertanejo se aproxima da regio da zona da mata pernam-bucana e se depara com um cenrio que, somente do ponto de vista geogrfi co e climtico, completamente diferente daquele de onde ele viera. Pela voz de Severino, pode-se ter a descrio exata do es-pao que se ope imagem do serto. Nele, sobressai a gua como elemento desencadeador de toda a admirao do sertanejo.

    Nesse contexto, a gua se confi gura como o elo perdido em que o sertanejo depreende toda a sua coragem e as energias que ainda lhe res-tam para (re)conquist-la, seguindo-a pelas trilhas e caminhos por onde ela passara em direo ao mar. Nesse sentido, a gua confi gura-se como objeto de desejo e de realizao plena de vida do retirante, mas ela, em ausncia, responsvel pelo seu infortnio, aspecto que narrado ao longo do cenrio de morte que lhe acompanha e tem o desfecho quando ele chega capital pernambucana.

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 19

    [...]De onde tudo fugia,

    onde s pedra que fi cava,pedras e poucos homens

    com razes de pedra, ou de cabra.L o cu perdia as nuvens,derradeiras de suas aves;

    as rvores, a sombra,que nela j no pousavaTudo o que no fugia,

    gavies, urubus, plantas bravas,a terra devastada

    ainda mais fundo devastava.

    Terceira estrofe do poema, O Rio, de Joo Cabral de Mello Neto. Nesse caso, o prprio rio quem descreve o cenrio. Em suas lembranas, o rio-narrador destaca que, na terra devastada, apenas as pedras e poucos homens que fi cavam. Mas, no qualquer homem: o homem com raiz de pedra, ou de cabra. A simbologia da resistncia desse homem potencializada, no poema, no instante que o poeta lana mo de dois elementos de origens distintas, a mineral e a animal.

    Para o retirante, esse outro lugar, a zona da mata e o litoral seriam uma espcie de paraso, um lugar perfeito, onde a terra se faz mais branda e macia e onde se plantando tudo d. Vejamos, ento, um momento da fala da personagem em que a gua se projeta como ob-jeto de reverncia para o novo espetculo de vida que ele v surgir diante si. Ressalte-se que a memria dele ainda estava povoada pelas

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    Os rios que correm aqui

    tm a gua vitalcia.

    Cacimba por todo lado;

    cavando o cho a gua mina

    [...]

    E para quem lutou a brao

    Contra a piarra da caatinga

    Ser fcil amansar

    esta aqui, to feminina.

    Essa amostragem de discursos indica que existe uma potica em torno da personagem sertanejo na literatura brasileira, com tra-jetria e permanncia no sistema literrio nacional. O professor de literatura pode aproveitar essa tradio e desenvolver atividades que permitam a fruio do texto literrio de modo associado discusso do tema da gua em sala de aula.

    Na literatura brasileira, a trajetria da personagem serta-nejo se inicia no romantismo e tem seu pice no chamado romance de 30. De ttulo de romance de Jos de Alencar a personagem principal em obras de Graciliano Ramos, che-gando a extrapolar o espao clssico da regio Nordeste (como o caso das personagens de Guimares Rosa), o ser-tanejo se apresenta como um dos principais representantes do homem brasileiro.

    cenas de morte, vivenciadas durante o percurso que fi zera. Nesse momento, o espao metamorfoseado e a terra, de seca e causticante, passa a ser doce para os ps e para a vista:

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 21

    Atividades propostas

    a) promover uma leitura do poema Morte e vida Severina, que bastante conhecido, motivando uma discusso sobre a questo da seca e do inverno no semirido. A leitura deve estar inserida em uma unidade temtica de ensino, na qual podem ser apresenta-dos textos relacionados ao tema, como os fragmentos do texto de Oswaldo Lamartine, os poemas O Riacho (Damasceno Bezerra), Nordeste (Palmyra Wanderley) e Enchente (Jorge Fernandes);

    b) uma etapa fundamental da atividade (desta e de todas as outras) a leitura em voz alta, precedida pela leitura silenciosa, para apreenso do texto, com o objetivo de atingir uma performance signifi cativa do ritmo, em benefcio do aspecto ldico. No pos-svel discutir o contedo se no houver motivao, envolvimento do aluno com a esttica textual;

    c) destacar alguns recursos estilsticos, demonstrando a sua funo no texto: uso de tempo verbal, colocao dos adjetivos e sonorida-de das palavras so exemplos de aspectos a serem explorados para ressaltar a forma literria os alunos so capazes de verifi car as conotaes predominantes no texto, se estimulados por alguns exemplos dados pelo professor;

    d) nas sries fi nais do Ensino Fundamental, aconselhvel introdu-zir a noo de sistema literrio, para demonstrar que existe uma literatura brasileira que circula graas a uma comunidade de leitores de uma lngua comum, dentro de uma tradio8. No Ensino Mdio, a leitura deve ser contextualizada em movimentos literrios, sendo esta uma boa oportunidade para apresentar uma

    8 aconselhvel, em todas as atividades, reiterar a questo da tradio e dos movimentos literrios, por se tratar de noes imprescindveis formao escolar e, consequentemente, compreenso do patrimnio artstico e cultural nacional.

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    exposio sobre o romance de 30 no contexto do modernismo, o que ajuda a compreender a raiz do problema desenvolvido no poema de Joo Cabral de Mello Neto, embora seja ele uma nar-rativa em prosa;

    e) toda a discusso em torno da temtica deve convergir para uma atividade de produo de texto. Nesse caso, o professor deve estimular uma produo livre, ou seja, sem a defi nio prvia de uma tipologia textual o importante ser fi xar a temtica da gua como primeira etapa de um processo que ter continuidade em outras atividades.

    Entre rios: o rural e o urbano na poesia de Joo Lins Caldas

    Cssia de Ftima de Matos dos Santos9

    No poema transcrito a seguir, do poeta norte-rio-grandense Joo Lins Caldas (1888-1967), aparece a temtica da enchente. O Rio data do incio do sculo XX, perodo em que o poeta produziu os seus primeiros textos e que ainda no havia migrado para o su-deste brasileiro, onde viveu aproximadamente de 1912 a 1933. A leitura do poema deve levar em conta o perodo da sua escritura, para que se possam explorar as mltiplas conotaes sociais e histricas da advindas.

    9 Esta atividade tem como referncia a tese Vaga-lume na treva: a poesia de Joo Lins Caldas (SANTOS, 2010).

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    O RIO

    Alvo e largo, profundo entre os cabeos brancos o rio a se estirar vendo os bambus copadosE lhe vo a correr pelos seios nevadosAs torrentes de encher os lagos e os barrancos.

    Das guas que carrega, os largos veios francos,Descidos de alta serra e na vrzea alongados,Caminho do oceano, olhando os descampados,L se vo a tremer pelos rasgados fl ancos.

    Onde vai leva a andar os balseiros folhudosOs escombros de palha, os canaus cadosOs restos de fogueira e os ramos velhos mudos.

    E carrega, a rolar, aos pedaos e aos galhos,Os altos mulungus, os gravats fendidos,As lavouras de abril e a lama dos atalhos...

    Sem um nome especfi co, o rio desse poema surge como elemento da paisagem situado no universo rural, cujas rvores denunciam tons regionais da vegetao que forma a mata ciliar: bambus copados, canaus, mulungus, gravats. Esses tons da vegetao indicam que a anlise do texto no deve desprezar uma conceituao sobre o Regionalismo literrio, que pode ser resumida como o texto literrio que expresse regies rurais e nelas situem suas aes e personagens, procurando expressar suas peculiaridades lingusticas (CHIAPPINI, 1995, p. 5).

    A comear pela sua forma de soneto em versos alexandrinos, o poema compe um quadro plstico, situando a imagem do rio em um cenrio onde somente a natureza se faz presente. o rio descrito como uma descoberta do paraso. As imagens so referenciais, na

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    sua maioria, o que enfraquece a fora potica do texto. O poema como um todo descreve um rio em sua fora natural, forando as margens e arrastando correnteza abaixo aquilo que encontra. Alvo, largo, profundo so termos que j denotam para o leitor a fora dele e a sua abundncia em gua o faz encher os lagos e os barrancos. Os largos veios francos, afl uentes que descem da alta serra so na vrzea alongados e seguem em direo ao oceano aumentando a fora que abre fl ancos na terra. Como uma avalanche, a fora do rio carrega palha, ramos, rvores e galhos cados. Arrasta As lavouras de abril e a lama dos atalhos.

    [...] a imaginao material encontra na gua a matria pura por excelncia, a matria naturalmente pura. A gua se oferece pois como um smbolo natural para a pu-reza; ela d sentidos precisos a uma psicologia prolixa da purifi cao (BACHELARD, 2002, p. 139, grifos do autor).

    No h presena de humanos no poema. a sua dimenso fsica que povoa a imaginao do poeta, levando-o a compor uma cena em que a fora primitiva da natureza ainda no foi permeada pela mo humana. O espao a no sofreu transformao, aparecendo em sua forma mais prxima do virginal. A descrio da paisagem natural exuberante e grandiosa, algo similar s descries feitas pelos romn-ticos, pois trata do mesmo tema: reafi rmar uma paisagem tipicamente brasileira. Tem, alm da atmosfera romntica e idealizada, um estilo parnasiano que confi rma o quanto essa tendncia perdurou entre os poetas at que o Modernismo se fi rmasse.

    O verbalismo metrifi cado do poema poderia levar-nos a associ-lo a certo preciosismo da forma, no fosse a capacidade de criar as imagens que nos propem a estabelecer uma relao afetiva direta com a natureza (BOSI, 2000, p. 131), podendo superar o enfadonho

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    e ser apreciado como uma imagem caudalosa de um rio em pleno inverno nordestino. Por outro lado, partindo da imanncia do texto, o ritmo previsvel criado pelos versos rimados e metricamente ajus-tados, bem como pelos termos verbais selecionados destacando a grandiosidade da paisagem, releva tratar-se de um tempo histrico em que o ritmo preponderante da vida no entorno era o da natureza, ao qual os homens se curvavam e respeitavam.

    O poema em questo revela marcas de um tempo em que o espao do mundo rural ainda no tinha sofrido as transformaes provo-cadas pela chegada de modelos e de elementos modernizadores da produo, como fbricas, pontes, meios de transportes, maquinrios, etc. O Rio Grande do Norte, um dos estados que mais demorou a se desenvolver se comparado a outros estados nordestinos, o lugar de nascena do poeta. O Rio simboliza tal situao.

    Por outro lado, existem outros poemas do autor, como A ponte, em que se veem mudanas provocadas pela chegada dos elementos modernizadores, estabelecendo com eles um dilogo cuja caracters-tica principal a resistncia ao que se apresenta como moderno. Essa resistncia se acentua no poema Tu no foste a cidade, em que o poeta refl ete sobre a sua experincia no meio urbano.

    Da resistncia entre estar imerso nesse espao de mudanas e a difi culdade de com elas conviver, surgem o confl ito e a tenso que caracterizam o sentimento do sujeito potico.

    Podemos ver o rio como um todo, pois a imagem construda alcan-a a composio de uma paisagem total, por meio de vrios elementos que se adensam para formar o quadro natural cuja fora primitiva se instaura desde as primeiras torrentes. A experincia lrica comprova uma relao com a paisagem que permanece intocada, sem interfe-rncia humana. Encontra-se harmonizada com os demais elementos naturais. Se a alma lrica for condizente com a forma com que enxerga o rio, o sujeito potico tambm pode ser mais um elemento integrado ao meio. Cabe-lhe a apreciao da natureza, sem nela interferir.

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    Atividades propostas

    a) provocar uma discusso sobre a especifi cidade da linguagem po-tica: por que o texto em questo considerado um poema? Qual a diferena entre literatura e os gneros no literrios? possvel distinguir, com certa facilidade, vrios tipos de gneros (tantos os literrios como os no literrios)? Nessa atividade, o professor deve explorar ao mximo os recursos formais do poema, sempre estimulando os alunos a, eles mesmos, identifi carem no texto esses recursos. Para realar a especifi cidade dessa linguagem, aconselhvel comparar o seu uso potico com o uso comum e cientfi co da linguagem;

    b) discutir a funo da modernizao da sociedade em contexto regional, tomando como ponto de partida o rio do poema, no seu aspecto primitivo, como um elemento da natureza ainda isolado dos processos modernizadores. Como elemento provocador do debate, questionar sobre a possibilidade de existncia de espaos com essas caractersticas na atualidade;

    c) aproveitar, sobretudo no Ensino Mdio, a oportunidade que o texto oferece para revisar contedos da esttica do romantismo (a atmosfera romntica e idealizada) e do estilo parnasiano. Nesse sentido, o perodo em que o texto foi escrito pode ser considerado Ps-romntico10, ou seja, quando a ideologia do romantismo ainda atraa um grande nmero de poetas e quando o Modernismo ainda no se apresentava como tendncia dominante nas letras nacionais. Tal discusso importante para introduzir a noo de processo e, assim, superar a antiga e estanque diviso dos pe-rodos literrios com suas respectivas caractersticas imutveis;

    10 O termo Ps-romntico utilizado por Antonio Candido (1980, p. 112) para caracterizar o perodo que vai de 1880 a 1922 na Literatura Brasileira.

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    d) o poema deve ser trabalhado, enfi m, de forma a estimular a pro-duo de um texto descritivo como exerccio de apropriao da paisagem local (por exemplo, o entorno de um rio que corta a re-gio). Provavelmente, sero produzidos textos com vises distintas daquela apresentada no poema, ou seja, mais crticas e negativas. No entanto, podero surgir vises igualmente idealizantes. Ambas as posies devero ser respeitadas pelo professor e vistas como legtimas, porm elas devem ser colocadas em confronto para um debate mais aprofundado sobre a situao atual.

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    A dispora sertaneja na poesia de Jorge FernandesMaria Suely da Costa11

    O poema Cano do retirante, voltado para a tematizao da condio humana e o meio social, tem uma estrutura moderna com versos livres e sem rimas regulares, pondo em destaque situaes consideradas dramticas na vida do sertanejo. De autoria de Jorge Fernandes (1887-1953), foi publicado na Revista de Antropofagia (n. 9, jan. 1929):

    CANO DO RETIRANTE

    Entrou janeiro o vero danoso Sempre afi tivo pelo serto...Cacimbas secas sem merejavam...O moo triste disperanadoFez uma trouxa de seus terns...

    De madrugada sem despedida Foi pra So Paulo pras bandas do sul...

    A moa triste se amurrinhouFicou biqueiraVirou ispeto Ela que era um mulhero Int que um dia j derrubada De madrugadaFoi pra So Paulo...

    Pra um So Paulo que ningum sabe no....

    11 Esta atividade tem como referncia a tese Produo em revista: representao do moderno e do regional na experincia potiguar anos 1920 (COSTA, 2008).

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    Neste poema, os verbos no pretrito do forma a uma curta nar-rativa de um processo que longo: somente depois de muito resistir aos efeitos da estiagem que o sertanejo deixa a sua terra12. Um as-pecto que chama a ateno a objetividade do eu-lrico (3 pessoa do singular introduzindo narrativa) no relato de um drama marcado por conotaes subjetivas.

    Essa memria viva identifi cada na lrica do poeta potiguar foi apreciada por Mrio de Andrade no livro O turista Aprendiz (2002, p. 212): quando Jorge Fernandes est livre assim, a Poesia nasce pra ele. E com a fora vivida, com a esquematizao essencial da memria fsica. Nesse sentido, percebe um fazer potico no como refl exo do cotidiano imediato, mas como construo de uma realidade singularizada numa morfologia do desejo de chamar a ateno para o homem simples na relao com o meio13. O autor de Macunama comenta o drama existente no poema:

    [...] no alto do serto do Rio Grande do Norte, e muito no Cear tambm, a emigrao pra S. Paulo est grassan-do. Centenas de homens, do dia pra noite resolvem partir. Partem, sem se despedir, sem contar pra ningum, partem buscando o eldorado falso que nenhum deles sabe o que ... Vo-se embora, rumando pra sul... Isso Jorge Fernandes est vivendo agora. E isso fl oresce em poemas de dor, que nem esta marchada (ANDRADE, 2002, p. 212).

    12 Fato expressivo na cultura popular: s deixo meu Cariri, no ltimo pau-de-arara (trecho da cano ltimo Pau-de-Arara, cantada por Luiz Gonzaga; composio de Venncio / Corumba / J.Guimares. 13 Em outros textos do Livro de poemas de Jorge Fernandes, essa relao com o meio reitera-se como drama: Mo nordestina, Manioba, Manoel Simplcio, Avoetes....

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    A Cano do retirante traz a marca do drama de quem vive a experincia do xodo obrigatrio. O tempo (janeiro/ vero danoso), o meio (serto/ cacimbas secas) e o homem (moo triste, disperan-ado / moa triste, derrubada) so emoldurados pelo predicativo da negatividade, fazendo jus a um poema de dor.

    A poesia de Jorge Fernandes ensaia uma posio discursiva em que a noo de experincia histrica no requer necessariamente a narra-o de grandes feitos executados por grandes homens, mas o relato da vida cotidiana, do imaginrio social que assegura a transmisso das experincias coletivas que espelham vises do mundo, mesmo a partir daqueles chamados excludos da Histria. Na sua percepo lrica, a resistncia aparece como contrapeso nas atitudes de um su-jeito (o sertanejo que trabalha no campo) frente a uma realidade sem sada, cuja consequncia um xodo nem sempre bem sucedido. Vale lembrar que o fenmeno da tradio forada do xodo, que marca a histria nacional do fi m do sculo XIX e se estende pelo sculo XX, um dilema que reapareceria de forma determinante na fi co de 1930.

    Estruturalmente, o poema Cano do retirante pode ser dividido em dois momentos, ambos com cinco versos (1-5 e 8-12 versos). A forma equilibrada dos versos retrata, ironicamente, a forma do de-sequilbrio, ou, melhor dizendo, o porqu do desequilbrio social da retirada. Estrategicamente, entre uma situao e outra, o poeta reitera a sada historicamente posta como vivel: migrar pras bandas do sul. Os versos que dividem os dois momentos (6-7), os que encerram a terceira estrofe na forma de enjambement (13-14) e o que fecha o poema (15) revelam traos das condies da viagem sem despedi-da sombra da madrugada, e o seu destino, So Paulo. Contudo, o lugar visto como um dos mais prdigos do pas, a receber o fl uxo migratrio de jovens expulsos do seu local de origem em busca de sobrevivncia, aparece no poema sob a perspectiva da indefi nio.

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    Se a regio do Nordeste no fosse uma rea subdesen-volvida, de economia to fraca e rudimentar, poderia resistir perfeitamente aos episdios da seca sem que sua vida econmica fosse ameaada e as suas popu-laes acossadas pela fome. Poderiam mesmo esses episdios funcionar como um fator de propulso e de expanso de sua economia (CASTRO, 1992, p. 260).

    O texto potico de Jorge Fernandes, como que apoiado numa lei-tura retirada do contato direto com a realidade, rompe, ento, com a viso idealizada de que a dura vida do retirante, no Sul do pas, teria uma soluo. Revela, pois, uma sociedade de profundas contradies, fundada nas diferenas de classe assim como nas diversidades regio-nais, marcando ponto na formao de uma modernizao desigual que deixa intactas as condies de misria.

    Outro aspecto de destaque em Cano do retirante a lingua-gem. A presena de termos regionais, em quase todos os versos do poema (danoso, afi tivo, merejavam, disperanado, terns, pras bandas, amurrinhou, biqueira, ispeto, mulhero), alm de produzir um efeito rtmico ao texto, tende a caracterizar o tipo social que fi gura na narrativa potica. Esse manuseio com a lin-guagem, associado a outras tcnicas, dando forma literria matria local, foi interpretado como uma atitude inovadora e moderna do poeta potiguar.

    A ltima estrofe, formada por um nico verso, se apresenta como uma metfora do isolamento e incertezas de um sujeito do qual se sabe que foi pras bandas do sul..., mas pra um So Paulo que ningum sabe no....

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    preciso recuar no tempo para sentir o impacto que Jor-ge Fernandes provocou [...] no somente nas formas novas de poetar, no apenas na referncia a coisas consideradas prosaicas para a poca, mas igualmente na maneira de grafar as palavras, utilizando termos populares, expresses vulgares, e at na pontuao exagerada, esbanjando reticncias em quase todos os versos (MELO, 1970, p. 7). Na viso de Cmara Cascudo, o vocabulrio, a sntese e a ortografi a so [...] bem brasileiros. Brasileiros do Norte. [...] Jorge Fernandes uma linda expresso intelectual do Brasil novo. Novo para qualquer extenso do vocbulo (CASCUDO, 1970, p. 91-92).

    Como todos os tmidos audaciosssimo. Na soluo de lngua brasileira que emprega, prefere registrar directamen-te a dico nordestina, em vez de procurar pra ella uma universalizao possvel de se normalizar. Porm no tenho poder nenhum pra censurar essa tentativa. S o futuro que justifi ca invenes dessas.

    Comentrio de Mrio de Andrade sobre os traos singulares da linguagem da poesia de Jorge Fernandes (artigo publicado no Dirio Nacional, 15/04/1928).

    Ao comungar dos estratos de um cdigo novo (dando vitalidade expresso, por meio de uma inovao das estruturas fnicas, lexicais, sintticas do discurso, de pontuao, indo at o traado grfi co do texto), o poeta norte-rio-grandense constri um lirismo marcado pela recorrncia do elemento regional.

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    A matria potica de Jorge Fernandes, alm de oferecer o novo em termos de forma, o faz tambm em termos de linguagem, inscre-vendo-se como algo desconhecido, no familiar, pode-se dizer estran-geiro. o elemento nacional no (re)conhecido impondo-se como estranho e difcil de digerir. O processo de assimilao aparece, agora, necessitando caminhar de forma inversa: preciso devorar o no nacional, de onde se acredita vir todo o poder, conforme a proposta antropofgica, mas antes de tudo preciso digerir o prprio que se impe e desperta para novos poderes. A receita prope o acrscimo de mais ingredientes alm do s me interessa o que no meu, passando a status de fermento os elementos locais, fazendo o di-ferencial de uma literatura moderna dentro de um projeto de nao, sem o rano do exotismo.

    Muito dessa nova postura, quanto s possibilidades do elemento regional, deveu-se a Mrio de Andrade, que buscava nas diferenas regionais a sntese da cultura brasileira. Para esse poeta itinerante conforme denominao de Antonio Candido (2004) , viajante sequio-so de conhecer as regies Norte e Nordeste do pas, nos anos 1920, o caminho para dotar o Brasil de uma literatura moderna e, ao mesmo tempo, universal, passava pela representao de uma cultura pr-pria, nacional, revelando, pois, a necessidade de se conhecer o pas.

    Atividades propostas

    a) fazer uma apresentao biogrfi ca do poeta, dando destaque ao Livro de poemas de Jorge Fernandes e chamando a ateno dos alunos para os poemas do livro que tratam sobre a realidade cultural sertaneja (pode-se apresentar atravs de slides, alguns desses poemas);

    b) iniciar uma roda de conversa na qual os alunos iro socializar as impresses que tiveram do poema, tendo como ponto de partida

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    o seu aspecto formal. Em seguida, discutir as implicaes de na-tureza sociolgica apresentadas no texto. Em turmas do Ensino Mdio, possvel introduzir a apresentao das vanguardas do incio do sculo, com destaque para o Manifesto antropfago, no contexto do modernismo brasileiro;

    c) objetivando mostrar aos alunos que outras formas de expresso artstica tambm se utilizam da mesma temtica abordada pelo poema, reproduzir em sala de aula o udio da msica Triste partida com interpretao de Luiz Gonzaga. Em seguida, fazer a distribuio impressa da letra da msica para os alunos e discutir com eles as impresses causadas pelo texto, fazendo uma compa-rao entre a msica e o poema Cano do retirante;

    d) solicitar leituras voluntrias dos romances O Quinze e Vidas Secas, cujos resultados podem ser apresentados individualmente ou em grupos, valendo ponto na avaliao da unidade. Nessa lei-tura, o professor dar um roteiro no qual os alunos iro observar aspectos inerentes narrativa literria, tais como tempo, espao, personagens, etc. Nessa etapa, a atividade ter como ponto de partida a comparao entre as situaes descritas no poema e no romance, momento em que se chamar a ateno para a forma como cada autor trabalha a linguagem, verifi cando semelhanas e diferenas entre os gneros textuais. No Ensino Mdio, deve--se retomar a contextualizao em movimentos literrios, sendo esta uma boa oportunidade para reforar a compreenso de que a temtica abordada no poema est igualmente presente em roman-ces publicados na dcada seguinte, demonstrando que, de certa forma, o poeta anteviu a discusso que tomou conta da literatura brasileira nos anos de 1930;

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    e) toda a discusso em torno da temtica deve convergir para uma atividade de produo de texto. Nesse caso, o professor deve estimular a produo e defi nir previamente a tipologia textual dissertativa, uma vez que a importncia do texto ser no sentido de despertar no aluno, a partir da literatura e das experincias de vida, a capacidade de refl etir e se posicionar criticamente sobre os efeitos que a questo da gua provoca na vida da populao.

    Descaminhos da estiagem: narrativa de emigrao Andr Pinheiro14

    A imagem da seca no serto, como episdio da estiagem, aparece de forma contundente no poema Ode s secas do Nordeste, de Zila Mamede (1928-1985), publicado no seu livro Corpo a corpo (1978). Uma dose de ironia desponta da organizao do sintagma que compe o ttulo, pois, se o termo ode designa um hino de exaltao, verifi ca-se que a matria narrada apresenta um carter extremamente deprecia-tivo e doloroso. Apesar da infl exo irnica, possvel vislumbrar no texto uma espcie de arranjo pico moderno, em que a fragmentao do heri constitui o prprio ato de grandeza. Mas, o matiz heroico do poema tambm decorre dos fatos narrados, j que nele se conta uma histria de luta, travessia e morte. Trata-se de um causo sertanejo narrado a partir de alguns procedimentos estruturadores da literatura de folhetos certamente uma forma adequada para acomodar os da-dos da realidade nordestina. Eis as duas primeiras estrofes do poema:

    14 Esta atividade tem como referncia a tese Essa marca de suor numa cano: o processo de reduo estrutural na poesia de Zila Mamede (PINHEIRO, 2012).

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    ODE S SECAS DO NORDESTE

    1. Na estrada norte era noitena estrada sul era diaEm todo o Serto queimadoque diferena faziase o sol nascesse de noitese a lua enchesse de dia?

    O resultado era o mesmoem cada boca vaziacada estmago encolhidocada p de terra esguiacada enxada que cavandos pedra e fome trazia:nem gro cozido ou farinhafumo angu mel-rapaduramolambos que os lombos toscoscobrir do calor no vinham

    2. A estrada norte nem sabese a estrada sul vai levandoo arrastar das boiadas(descaminhadas, perdidas)os paus-de-arara vendidosaos grados latifndiosa sombra dos rostos gastostodos os joos, as marias,os antnios, as comadresas cacimbas entupidasriachos sem correntezasa rede ch, incertezasno medo dos retirantesos ps-no-cho das veredasos rastos das estiagensmutilao das vazantes

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    primeira vista, a imagem que abre o texto (as duas estradas) sugere a existncia de um ambiente que concede diferentes oportunidades para seus habitantes. O desencontro entre esses dois caminhos pressupe a escolha de um rumo especfi co que trar inevitveis danos para a vida do sujeito. Logo se percebe que as trilhas se confi guram como uma espcie de destino para o ser humano.

    Culturalmente, o norte considerado a direo guia, de modo que a sua imagem constantemente empregada para designar um estado de juzo e ordenao. por esse motivo que as agulhas da bssola esto sempre apontadas para o norte. Zila Mamede promove, contudo, uma inverso de valores, j que a direo guia aparece ofuscada pela escurido noturna, deixando os habitantes daquela regio completamente perdidos e sem assistncia (Na estrada norte era noite).

    Essa confi gurao espacial corresponde prpria situao geopoltica do pas, que tinha, na poca, o grande montante da riqueza concentrado na regio sudeste. Atravs da criao de um microespao, Zila Mamede transfere para a imagem das estradas o perfi l genrico de duas realida-des sociais distintas. A situao nos confi ns do norte to drstica que nem mesmo o fulgor das terras sulistas seria capaz de promover alguma mudana substancial (que diferena fazia / se o sol nascesse de noite). Descrentes do prprio destino, resta aos habitantes do Nordeste lamentar a vida que se defi nha na medida em que a terra, cada vez mais seca, perde o seu vio. A questo posta dessa forma pode parecer demasiado dramtica, mas a verdade que o excesso de imagens destrutivas e as inverses operadas no signo potico cumprem a funo de evidenciar uma realidade fora do eixo.

    Ainda que o poema se estruture a partir de uma oposio entre o norte e o sul e que a poetisa reproduza alguns paradigmas regionais, o vis humanizador com que o tema pontuado impede que tais modelos pendam para o esteretipo. A prpria histria do pas parece justifi car essa viso segmentada; sem falar que a migrao para o sul evento palpvel entre os nordestinos. Nesse sentido, os episdios narrados no

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    poema antes so frutos de uma investigao objetiva da realidade do que pea oriunda de um imaginrio criativo.

    Tomando o contexto geral da lrica mamediana, facilmente se cons-tata que o espao campestre do Nordeste est mais associado ideia de beleza e calmaria do que ao perfi l problemtico da seca. Logo, se conclui que as imagens da pobreza no so utilizadas com o intuito de criar uma identidade nordestina. O solo miservel do serto , antes de qualquer coisa, pretexto para se realizar uma expressiva denncia social.

    Nesse poema, espao e ser humano esto igualmente fragmentados, como se a misria dos nordestinos encontrasse o seu mais ntido refl exo na pobreza material da terra. A identifi cao do homem com o ambiente, no entanto, acaba por imprimir ao texto um vis social mais agudo, uma vez que a situao lastimvel atinge todos os componentes da cena. Do ponto de vista formal, a repetio do pronome cada ao longo da segunda estrofe enfatiza o sentimento de angstia perante a permanncia da mis-ria. Com efeito, apesar dos esforos realizados na tentativa de promover alguma mudana, o quadro social mantm-se inalterado (cada enxada que cavando / s pedra e fome trazia). A imagem da fome ainda mais acentuada depois de se constatar que os nordestinos no tm sequer acesso aos produtos tpicos de sua regio, como a farinha, o fumo, o angu e a rapadura. claro, esses produtos aparecem no poema como uma espcie de matria simblica, cujo signifi cado pode ser expresso atravs da ideia de subsistncia, devaneio, energia e doura, respecti-vamente. Nesse sentido, os nordestinos no esto apenas desprovidos de uma vida digna, mas tambm da possibilidade de superar a prpria indignidade da vida.

    No preciso muito esforo para perceber que Ode s secas do Nor-deste se assemelha, em alguns aspectos, a Morte e vida severina, de Joo Cabral de Melo Neto. Alm da abordagem da temtica da migrao sertaneja, motivada pela precariedade econmica e pela escassez de gua, nota-se entre os dois poemas uma similaridade na confi gurao do esquema narrativo, que se desenvolve a partir da seguinte frmula: apresentao de um problema fuga de um ambiente original che-

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    gada ao destino programado constatao de que o problema no se resolveu. A construo rtmica, baseada nas manifestaes de literatura oral do Nordeste, outro aspecto que aproxima os dois textos. Por fi m, algumas imagens de relevncia para a confi gurao da obra (pedra, ce-nrio escaldante, anonimato da populao, constncia da morte) esto presentes nos dois textos.

    Mais importante do que as relaes semnticas, o ritmo (construdo a partir do uso regular da redondilha maior) talvez seja o elemento que mais aproxime os textos. Realando o trabalho rtmico, o esquema de rimas tambm bastante similar entre as obras.

    Os quadros a seguir evidenciam as semelhanas estruturais e se-mnticas existentes entre os dois textos, a partir de dois episdios. No primeiro, verifi ca-se que a completa improdutividade do cenrio acaba por criar uma identifi cao entre os habitantes; no segundo, mostra-se que o homicdio um fato to corriqueiro no serto que a sua gravidade se confunde com o peso da morte natural:

    Episdio 1

    Ode s secas do Nordeste Morte e vida severina

    O resultado era o mesmoem cada boca vaziacada estmago encolhidocada p de terra esguiacada enxada que cavandos pedra e fome trazia...

    Somos muitos Severinosiguais em tudo na vida:na mesma cabea grandeque a custo que se equilibra,no mesmo ventre crescidosobre as mesmas pernas fi nas,e iguais tambm porque o sangueque usamos tem pouca tinta.

    Episdio 2

    Ode s secas do Nordeste Morte e vida severina

    Tanto papel carimbado(a Lei exige, que jeito!)para enterrar os morridosjustifi car os matados

    E foi morrida essa morte,irmos das almas,essa foi morte morridaou foi matada?

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino40

    A segunda parte do poema traz uma imagem que pode ser considerada smula de um dos processos sociais apresentados por Zila Mamede: a incomunicabilidade dos destinos (A estrada norte nem sabe / se a estrada sul vai levando / o arrastar das boiadas). Percebe-se, a partir da organizao textual, que os habitantes da estrada sul ignoram os problemas que afetam o Nordeste brasileiro, j que em momento algum h migrao rumo ao norte. Por outro lado, o prprio nordestino desconhece as consequncias de sua jornada rumo ao sul. Como os dois caminhos nunca se cruzam, mnima a possibilidade de eles desenvolverem uma rede social tangvel. No episdio analisado, cada estrada segue o seu prprio curso, indiferente s condies de sobrevivncia das outras vias. Evidentemente, por trs dessa organizao espacial desponta o perfi l de uma sociedade fragmentada e individualista, cujos setores se ocupam apenas dos seus prprios interesses.

    Tambm h um sentimento de insegurana vinculado ao passo lento da boiada (que corresponde ao prprio homem), pois esse andar colado ao cho corresponde ao receio de deixar a terra natal. Mas, se o abandono do lar pode trazer danos para a vida do sujeito, perma-necer na regio signifi ca estar igualmente danifi cado. Dessa forma, o sertanejo se v diante de uma situao em que a incompletude a nica alternativa possvel. Isso certamente explica o excesso de imagens degenerativas disseminadas ao longo do poema. Atravs de um processo de amputao do signo potico15, Zila Mamede faz com que determinadas imagens deixem de signifi car aquilo que elas con-vencionalmente signifi cam. Os caminhos, por exemplo, no levam a lugar algum (descaminhadas, perdidas) e os condutores de veculos populares j no servem camada popular (os paus-de-arara ven-didos / aos grados latifndios). Os nomes prprios fl exionados no plural e grafados com iniciais minsculas roubam a identidade das

    15 Embora inspirado na obra de Antonio Carlos Secchin (Joo Cabral: a poesia do menos, 1999), o conceito de amputao do signo potico aqui est sendo utilizado em outro sentido. Para Secchin, o ato de ampu-tao do signo est vinculado eliminao do seu natural transbordamento de signifi cados. Nesta pesquisa, o processo de amputao corresponde subverso do fentipo de uma imagem.

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 41

    pessoas e lhes conferem uma personalidade genrica (todos os joos, as marias); at mesmo um ato de camaradagem aqui funciona como meio de obscurecer a identifi cao do povo (as comadres). A cacimba incapaz de gerar gua (as cacimbas entupidas) e a silhueta do rio no manifesta qualquer sinal de movimento e de vida (riachos sem correntezas). H, portanto, uma quebra do fl uxo normal da vida.

    Trata-se de um cenrio expressionista, cujas caractersticas mais notrias so o sofrimento excessivo e a quase completa abdicao da vida. A estrada norte composta por um cho pesado. Um territrio sobre o qual a seca, para atestar o seu poderio, fez questo de dei-xar marcas fsicas (os rastos das estiagens). O campo aqui no tem aquela tonalidade romntica que lhe confere um ar de mistrio ou uma aparncia harmoniosa. Neste poema, a realidade apresentada de forma crua e sem idealizaes.

    Atividades propostas

    a) retomar a discusso sobre a questo da seca do Nordeste, inician-do a concluso da unidade temtica que se apresentou desde a primeira atividade. Sugere-se que a turma seja dividida em grupos formadores de opinio para, ao fi nal, apresentar um CONSENSO de cada grupo sobre as principais consequncias da seca e sobre os modos de enfrentamento do problema. Uma vez que esse um problema histrico, o desafi o da discusso verifi car a sua atualidade, a sua pertinncia na situao social e poltica atual do pas e da regio;

    b) solicitar aos alunos a continuidade da anlise do poema no seu todo, chamando a ateno para o modo como a poetiza organiza as demais partes e estrofes, o seu fechamento verifi car, enfi m, que o poema um texto orgnico com estrutura prpria. Seria possvel dar um ttulo a cada parte numerada? A viso das partes

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino42

    deve convergir para a viso do todo, possibilitando aos alunos a apreenso da organizao textual, aspecto fundamental na produ-o de texto por eles exercitada ao longo da unidade;

    c) aproveitar a disposio estrutural apreendida fuga de uma situ-ao desfavorvel percurso rspido chegada a um ambiente de grandes adversidades para solicitar a produo de um texto narrativo, preferencialmente em prosa, representando uma situ-ao similar, de emigrao, mas no necessariamente causada pelo fenmeno da seca. Alm da produo de textos com carter indito, deve-se aceitar tambm parfrases dos textos estudados. Considere-se, portanto, os diferentes nveis de aprendizagem e o estmulo criatividade em qualquer nvel.

    Velha parede do aude: espao da memria Andr Pinheiro16

    O campo um dos objetos poticos mais signifi cativos da obra de Zila Mamede, tanto que a autora dedicou um livro inteiro represen-tao das experincias campestres (O arado, 1959). O encantamento diante da natureza a perspectiva dominante da lrica mamediana e h um dado de ordem social que fundamenta essa constatao: trata-se da aliana afetiva que os sertanejos mantm com a vida campestre. Essa herana remonta era colonial, pois o incio da civilizao bra-sileira est intimamente vinculado atividade agrcola.

    16 Esta atividade tem como referncia a tese Essa marca de suor numa cano: o processo de reduo estru-tural na poesia de Zila Mamede. (PINHEIRO, 2012).

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 43

    Em Razes do Brasil, Srgio Buarque de Holanda revela que, pelo menos no primeiro e segundo sculos de colonizao, era notrio o interesse da sociedade brasileira por fi xar residncia em territrios rurais:

    Sucedia, assim, que os proprietrios se descuidavam fre-quentemente de suas habitaes urbanas, dedicando todo o zelo moradia rural, onde estava o principal de seus have-res e peas de luxo e onde podiam receber, com ostentosa generosidade, aos hspedes e visitantes.

    [...] A pujana dos domnios rurais, comparada mesqui-nhez urbana, representa fenmeno que se instalou aqui com os colonos portugueses (HOLANDA, 2008, p. 90).

    Constituda a partir de uma perspectiva moderna, a natureza re-tratada por Zila Mamede nem se confunde com o trao inspido da paisagem rcade, nem com a nebulosidade da paisagem romntica. O ambiente natural deixa de ser encarado como um ponto de fuga e se transforma em um mecanismo capaz de promover mudanas substanciais na vida do indivduo. O retorno ao passado tambm no deve ser visto como um procedimento evasivo. No entendimento da poetisa, o campo o espao mais adequado para preservar a tradio e a memria cultural nordestina.

    A temtica campestre de grande importncia para a constituio da lrica moderna. Em meio a uma sociedade cada vez mais meca-nicista, o poeta parece ter descoberto no campo a possibilidade de recuperar o sentimento humanitrio perdido. O perfi l coeso e harm-nico da natureza se contrape naturalmente ao cenrio fragmentado da sociedade ps-industrial.

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    [...] a mente inconsciente ou a imaginao anima aquilo a que se sente relacionada; e ainda que as mquinas e engenhocas nos possam ocupar a mente consciente, seja porque delas fazemos uso, seja porque fuamos nelas ou somos usados por elas, a poesia moderna prova defi nitivamente que nosso parentesco com a natureza orgnica s pode ser reprimido, nun-ca erradicado. Quanto mais reprimido, maior sua ameaa civilizao que o reprime (HAMBURGER, 2007, p. 394).

    Na lrica mamediana, a relao do homem com o campo se de-senvolve a partir de trs perspectivas distintas. Na primeira, o sujeito manifesta o interesse de fazer parte da ambientao rural, acredita que esse espao possa lhe restituir a humanidade perdida. Na segunda, o sujeito j est inserido no campo, de modo que a paisagem adquire uma conotao irrevogavelmente idlica. Na terceira, a fi gura do sujei-to se transforma em uma entidade coletiva que precisa abandonar o meio rural em funo dos danos causados pela seca. O deslocamento no espao o esquema estrutural que sintetiza essas perspectivas. O campo s adquire um signifi cado preciso a partir do instante em que o sujeito resolve adentrar, permanecer ou sair do meio rural.

    Na lrica mamediana, o campo tem a capacidade de estabelecer uma ordem para a vida do indivduo. No poema O aude, essa relao com o campo se desenvolve de forma mais clara:

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 45

    O AUDE

    Velha parede ponte limitandoos dois barrancos entre cho e cho.Ao passadio (em que montavam luas,xexus milipousavam no mouro)

    a represana vinha da montanteem balde concha. Sobre a levaodo sangradouro retesou-se tempode quando as guas, nos regando a mo,

    desciam na revncia, verdividaamarelando cheiro de melo:eram celeiros, peixes nas maretas

    e em ns era ternura, era cano.Sobras do antigo na menina extinta:redorme na vazante a solido.

    Fonte: O arado, 1959.

    O poema apresenta a cena do retorno de um sujeito ao ambiente da juventude, mas no se pode afi rmar ao certo se esse retorno fsico ou apenas psicolgico. Nesse sentido, a prpria organizao estrutural do texto j confere ao espao o papel de estabelecer uma tenso entre a estabilidade do passado (uma vez que o eu-lrico teve uma experincia signifi cativa com o aude) e as incertezas do presente (dado que, no instante da leitura, impossvel vincular o eu-lrico a um espao fsico preciso). No se pode negar, contudo, que, devido ao tom altivo com que o aude delineado, esse espao resgatado da memria tem um carter inabalvel.

    A parede do aude vinculada imagem de uma ponte. Alm de explorar a visualidade do signo potico, esse recurso ajuda a propa-gar o teor harmnico que envolve a cena. Alm de represar a gua

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    corrente, neste caso especfi co, a parede cumpre a funo de ligar dois mundos (limitando / os dois barrancos). Dessa forma, ao pos-sibilitar a passagem de um lado para o outro, a parede ponte acaba adquirindo o poder de vincular o sujeito ao seu prprio passado. como se um lado do barranco representasse o presente do indivduo e a margem a que se mira contivesse toda a sua experincia vivida tempos distintos erguidos sobre a mesma terra (entre cho e cho).

    Por ser o elemento comum s duas unidades temporais, o cho corresponde ao equilbrio e segurana do sujeito. Do ponto de vista simblico, a parede fi ncada entre dois lugares slidos parece criar uma moldura consistente para uma experincia de vida igualmente con-sistente. No de se estranhar o fato de ela no ter se corrompido ao longo do tempo (Velha parede ponte). Independente das mudanas que porventura ocorram no mundo e no sujeito, a parede permanece fi rme para que possa atestar a vivncia de uma poca passada. Dessa forma, pode-se dizer que, no poema analisado, a parede do aude um smbolo da tradio e se contrape implicitamente fragilidade das relaes desencadeadas na sociedade moderna. Ela uma forma de resistncia e, portanto, capaz de superar os limites do abismo e resgatar um mundo particular do sujeito.

    A imagem do passadio presente no terceiro verso do poema traz um pouco de mobilidade para um panorama to restrito. Apesar de ser delineado objetivamente, o passadio abre caminho para lugares situados alm da fronteira textual. Como uma espcie de passagem secreta, ele parece desviar a ateno do leitor para o interior de uma mata que no foi apresentada pela poetisa regio sigilosa que cor-responde simbolicamente prpria interioridade do sujeito.

    A ambiguidade do termo represana destaca ainda mais a confi -gurao desse jogo de opostos, j que ele tanto remete reteno da gua no aude (cena exterior), quanto a um sentimento acumulado no corao do sujeito (emoo interior). Observa-se, contudo, que os dois polos tm o elemento gua como denominador comum. Com efeito, a partir do momento em que o eu-lrico projeta suas emoes

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 47

    na natureza, ele cria um vnculo com a realidade campestre. Descrever o aude signifi ca, portanto, descrever a si mesmo. A substncia aqutica entra no contexto desse relacionamento como uma espcie de materializao da afetividade.

    Atravs de um discurso sereno e comedido, a poetisa tenta fazer com que o ambiente natural no parea muito exuberante. Por isso, todos os supostos mpetos da gua corrente esbarram na imagem de um balde concha. A aproximao inusitada de um utenslio doms-tico com um elemento martimo cria um efeito de estranhamento que se faz ainda mais notrio depois de percebermos que esse objeto revela a maneira pela qual a gua desce da sua nascente. Constata--se, portanto, que h uma tentativa de integrar a prtica cotidiana (sinalizada na imagem do balde) ao ambiente natural (concentrado na imagem da concha). Essa interao acaba por expressar uma rela-o harmnica entre o homem e o meio ambiente. Depois, o aspecto do balde concha parece abrandar a natural fria da natureza, j que os dois signos que formam a imagem s podem conduzir pequenas quantidades de lquido. Dessa forma, a gua que desce da montante no tem a fora necessria para oprimir o sujeito. Bem pelo contrrio, ela lhe possibilita um reencontro com a sua prpria memria.

    A imagem da gua empregada por Zila Mamede tem, portanto, caractersticas afetuosas e quase pueris. Ela um canto que ressoa desde um passado remoto com o intuito de confortar o esprito do su-jeito. Intimamente vinculada s lembranas, essa gua uma espcie de linhagem que justifi ca o percurso de uma vida.

    Ainda na primeira estrofe, Zila Mamede destaca, atravs do uso do parntese, um trecho referente imagem do passadio. Essa sen-tena remissiva importante para a arquitetura do poema, pois deixa bastante claro que o passadio cumpre a funo de despertar boas lembranas na mente do sujeito. O tom sentimental que assinala esse segmento provm da confi gurao idlica da cena. Ao se voltar para esse universo coeso e equilibrado, a poetisa acaba renunciando a uma parcela da realidade sertaneja marcada pela seca e pela fome.

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    A prpria multido de pssaros assentada no mouro j transmite uma ideia de calmaria e acolhimento. O canto dos pssaros alegra a paisagem e, por conseguinte, no repele o interesse do sujeito.

    A preferncia por compor um quadro rural brando extremamente coerente com um procedimento potico segundo o qual o campo capaz de estabilizar a vida do homem moderno.

    Apesar de descrever uma cena plstica, o tempo o mote norteador deste poema. Como as experincias do passado permanecem vivas no imaginrio do sujeito, o tempo endurece e quase se torna matria palp-vel (retesou-se tempo). Esse efeito de petrifi cao temporal to intenso que a lembrana parece ser um companheiro com quem se pode dialogar. Ressalta-se que o espao tem um papel decisivo para a solidifi cao do tempo. Afi nal, a durao das lembranas do eu-lrico est diretamente vinculada ao grau de importncia que ele atribui sua experincia com o aude. Por isso, o tempo se enrijece exatamente no ponto nodal do reservatrio, adquirindo um lugar de destaque na composio da cena (Sobre a levao / do sangradouro).

    A integrao harmnica entre o homem e a natureza vai se tor-nando cada vez mais consistente na medida em que avana o relato sobre os episdios do passado. A cena da mo sendo irrigada pelas guas do aude, por exemplo, imprime ao poema uma agradvel sensao de frescor (as guas, nos regando a mo). Culturalmente, a imagem da mo comporta um sentido ligado ideia de produtivi-dade e criao. O ato de regar, por sua vez, garante o crescimento e a sobrevivncia das plantas. Atravs da aproximao desses dois vocbulos, chega-se a um conceito segundo o qual o vnculo com a natureza fi gura como alimento necessrio para a ao humana.

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    [...] desenvolvendo as mos e os instrumentos que estendem o seu uso, os homens puderam exercer mais efi cazmente a sua ao sobre o mundo exterior. O re-sultado foi a liberao dos rgos da boca (outrora s ocupados na preenso dos alimentos) para o servio da palavra. Em posio ereta e com a face distanciada do solo, o homem pde, mediante a voz, criar uma nova funo e codifi car o ausente (BOSI, 2000, p. 21).

    Com o intuito de destacar ainda mais a relao afetuosa do eu-lrico com a terna realidade campestre, Zila Mamede estabelece um justo paralelo entre o ambiente externo e a interioridade do sujeito. A cena exterior est marcada pelo signo da fartura, j que o depsito de sortimentos e os peixes na gua podem facilmente suprir as neces-sidades energticas do corpo (eram celeiros, peixes nas maretas). A breve referncia aos produtos da terra mostra que o sustento deve ser obtido por meio de uma relao equilibrada com a natureza que cede os mantimentos, desde que o indivduo no a explore de forma abusiva. Nesse sentido, o poema no revela apenas um mero siste-ma de trocas, mas antes uma verdadeira relao de parceria entre o homem e o meio ambiente.

    Diverso do panorama rido do serto, no h fome e sofrimento no campo aqui representado. Toda essa harmonia que abrange o es-pao acaba por projetar refl exos igualmente harmnicos no interior do eu-lrico. Da porque ele demonstra estar constantemente tomado por um sentimento de afetuosidade (ternura) e de jbilo (cano). A imagem da cano sintomtica dentro desse contexto, pois, alm de designar o encantamento diante de uma realidade que no afl ige, ela tambm alude ao trabalho rtmico executado no corpo do poe-ma. Com efeito, o ritmo bem marcado e a presena de rimas graves imprimem ao texto uma entonao meldica capaz de manter a velha experincia sempre serena na reminiscncia do eu-lrico.

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino50

    Ao perdermos uma paisagem sonora, sempre pode-remos evoc-la atravs de sons que subsistem ou na conversa com testemunhas que a viveram. Ns nos adaptamos longamente ao nosso meio, preciso que algo dele permanea para que reconheamos nosso esforo e sejamos recompensados com estabilidade e equilbrio (BOSI, 2006, p. 447).

    A entonao rtmica do poema contribui para que o relacionamen-to do sujeito com a natureza seja resgatado do passado. A cano que outrora repercutia no interior da menina agora atualizada no ritmo cadenciado dos versos. Dessa forma, o que antes aparecia como tema se converte em uma estrutura potica. Isso signifi ca dizer que a msi-ca permanece imune ao decurso temporal, apesar das transformaes sofridas pelo espao e pelo sujeito lrico.

    Os versos fi nais do poema esto marcados por uma dramaticidade que muito se contrape ao tom sublime das passagens antecedentes. O eu-lrico adquire um semblante triste e pessimista a partir do momen-to em que percebe o efeito corrosivo do tempo. Ao longo dos anos, as suas experincias de vida parecem ter se convertido em migalhas sustentadas pela lembrana (Sobras do antigo na menina extinta). Esses versos atualizam o sentido de tudo o que foi pronunciado antes, de modo que o encanto diante da natureza passa a ser visto como um doloroso lamento impulsionado pela dor da perda. A anulao da menina corresponde, portanto, morte da prpria subjetividade, que foi esmaecendo na medida em que a cena rural fi cava mais distante.

    Por fi m, o sujeito projeta na natureza o sentimento de desencanto que se enraizou na intimidade do seu ser (redorme na vazante a solido). No se estranha, pois, o fato de a solido cair pesada sobre a vazante. A umidez do terreno corresponde densidade sentimental do eu-lrico. Nota-se que o espao rural mantm uma conexo com o sujeito mesmo em situaes divergentes: no passado, ele era o en-

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    quadramento de uma cena alegre; no presente, ele a corporifi cao da angstia humana.

    A presena do sufi xo re na composio do verbo redormir passa a ideia de uma cena que se repete continuamente. De acentuada co-notao plstica, ela lembra o instante em que o sol, ao se pr no ho-rizonte, derrama um ar soturno sobre a terra. O neologismo funciona, portanto, como uma espcie de marcao temporal. precisamente esse vocbulo que certifi ca a constncia da solido que se projeta ao mesmo tempo sobre o sujeito e sobre o espao. Enfatiza-se, portanto, a ideia de que a relao do sujeito com o meio rural perdura apesar da presente distncia que se antepe entre eles.

    O eu-lrico do poema est perfeitamente integrado realidade do campo. A cena campestre primeiro se articula em um tempo passado para somente depois ser resgatada pela memria; ela aparece, portan-to, como algo vivido e como algo lembrado. Dessa forma, o campo se articula a partir de uma duplicidade focal, ainda que o sujeito possa estar ausente no momento em que desfi a as suas lembranas. Ressalta-se, por fi m, que h um dinamismo entre os elementos que compem a cena; nada funciona como adereo ou como mero pano de fundo. Ao atribuir uma funo para cada componente espacial, a poetisa consegue transmitir o efeito de uma realidade toda ajustada.

    Atividades propostas

    a) a exemplo das atividades anteriores, fazer leituras preliminares (silenciosa e em voz alta) para, em seguida, motivar os alunos explorao dos diversos recursos e aspectos (grfi co, fontico, estilstico, etc.);

    b) reforar a discusso sobre a importncia do recurso natural gua para a vida do semirido, destacando as sensaes e emoes expostas pelo eu-lrico no poema O aude. Nessa atividade,

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    aproveitando-se do processo da rememorizao dos elementos de natureza afetiva exercitado pelo eu-lrico, o professor pode retomar ou apresentar momentos da histria do serto do semi-rido atravs da construo desse modelo de reservatrio, o aude. Como forma de motivar e apreender a ateno dos alunos, pode--se apresentar slides, vdeos e fotografi as dos principais audes construdos no serto potiguar;

    c) com o objetivo de promover uma inter-relao do poema de Zila Mamede com outros textos e reforar a temtica da afetividade do eu-lrico com os espaos que o rodeiam, bem como destacar a universalidade da temtica, ler e discutir com os alunos o poe-ma O Tejo, de Alberto Caeiro, heternimo do poeta portugus Fernando Pessoa. Nesse momento, o professor pode retomar a histrica relao da literatura e da cultura brasileiras com Portugal;

    d) solicitar aos alunos um levantamento sobre a existncia de audes construdos no entorno da comunidade, com o objetivo de identi-fi car dados sobre perodo da construo, capacidade de armaze-namento, importncia para a vida local, etc. A atividade ser mais enriquecedora se forem identifi cadas representaes artsticas dos reservatrios, tendo em vista apreciaes;

    e) para concluir a unidade temtica, encaminhar os resultados obti-dos no item anterior (d) para a elaborao de painis (banners, cartazes, fotografi as, etc.) a serem apresentados em sala de aula ou em eventos da comunidade (Feira de Cincias, etc.), de modo a explorar a criatividade e demonstrar a apreenso do conheci-mento acumulado sobre o tema. A atividade poder ser mais bem desenvolvida se for possvel a integrao com outras reas como Histria, Geografi a e Biologia.

  • Saiba mais

    O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 53

    Pequena antologia

    Para sabermos um pouco mais, por meio do site Portal da Memria Literria Potiguar, vinculado ao Ncleo C-mara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses, da UFRN, os pesquisadores componentes desta proposta vm disponi-bilizando a estudiosos e ao pblico em geral obras e partes de obras de escritores locais, de domnio pblico ou de divulga-o autorizada, assim como textos das suas fortunas crticas, e aspectos relevantes da vida literria local representados em documentos iconogrfi cos e em multimeios, com vistas re-soluo do problema de acesso s principais obras literrias do estado, a maioria delas ausentes no mercado editorial. Endereo do site: .

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino54

    EnchenteL vem cabeada...A gua vem com sobrosso do altoDe cima das serras dos barrancos...

    Primeiro de ponta-ps apagandoSilenciosa os rastos das bebidas...Enchendo os bebedouros... as bobocas...Lambendo tudo...Avana...Recua...Pula como um sapo numa loca...Engrossa... perde a calma...Suspende camalies dgua... escurece...E j sem governo urrando arrasta as oiticicas...Derruba as barreiras... vai comendo a areia seca...Chupando... espumando... rosnando...Lambendo como o fogo...Urra por milietas de bocas...Batendo as queixadas como caetetus...Engolindo as vazantes...

    O buso - telgrafoVai ecoando de fazenda em fazenda...

    E na gua embalada vem o porco...Vem o boi... vem a jararaca...Vem o bagao... os balcedos...Mas a gua grande quer seu paradeiro...Quer os audes... as lagoas... onde descansa quieta...E vai virando o velame... levando nas costasAs miunas dos chiqueiros...Lutando nas razes dos umarisFofando a areia das razesAt derrubar e arrastar correntezaAfora de cabea abaixo umaris e oiticicas...E vai descansar espelhando nas barragens dosAudes e lagoas cheios de marrecos e curimats...

    Jorge Fernandes. Livro de poemas de Jorge Fernandes. 1927.

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 55

    NordesteQue mais feliz o teu destino fosse,Do que sujeito ao sol que te consome.Pedes na seca a esmola de gua doceE um pedao de po porque tens fome.

    Sumiu-se a voz do boiadeiro, mudo.Secaram-se as fontes que aleitavam o rio.No desespero de quem perde tudoFecha a porteira do curral vazio.

    Teus lbios racham, ao travo das razes.Carregas o destino de infelizes,Rasgando os ombros nus, nos espinheiros...

    Enquanto arquejas, maltratado, langue,A terra tsica vai golfando sangue,Pela boca vermelha dos cardeiros.

    Palmira Wanderley. Roseira brava e outros poemas. 1965.

    A ponteA ponte vai transpor o rio para o trem de ferro passar carreando as mercadorias,Passaro os carros de bois Os automveis lotados.Os mendigos que vo dois a dois, os amplos chapusde abas longas esburacados.

    Mata a uma, mata a outra margem do rio.Adivinho os veados, as jacutingas engurujadas, pesadas de gordas.E a irara, o lobo, o coelho, a raposa madraa sob as moi-tas enjuriabebadas.

    O cho est toldado de verde.A prata das guas carreia nas balsasLquens e algas, de par com peixes de escamas frias.

    Joo Lins Caldas. Poeira do Cu e outros poemas. 2009.

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino56

    Tu no foste cidadeTu no foste a cidade...Naquela que sonhei e daquela distncia,No, no foste tu a que eu vi l da infncia...

    verdade que acercavas em verdade...Que os teus braos se abriam, pelo mundo...Mas quando eu quis chegar, vinha-me no fundoMuito de amargo pela imensidade...

    cidade de risos e de beijosE de cores lascivas pelas ruas...Tu tens as mos benditamente tuasAcordando-te todos os desejos...

    Eu passo solitrio, sem palavras...E lembrana no h na minha bocaQue te desperte minha linda louca! Por lindos beijos que da boca lavras...

    Amo-te mais assim, talvez por isto...Somos bem dois estranhos conhecidos...... Um bom Pilatos que mal via Cristo,Um sorriso sem sombra de gemidos...

    Somos dois e que dois to diferentes! A minha velha, a perenal cidade,Fica-te em muito longe e em muitas frentes.Conheci-a somente na saudade...

    A saudade que v, mesmo sem olhos...A terra que se foi, sem j ser vista...Ah! No me digas que de lguas dista,Quanto de urtigas e tambm de escolhos...

    No me digas por fi m, demos por fi ndo.Fica tu com teus fi lhos, eu nesses passos...E se, pungido, te cair nos braosNo digas nada deste fi lho lindo...

    Teu fi lho... e no teu fi lho, nunca, nunca...D-me a esponja de fel, como me hs dado...Olha, um que passa, e o vesgo olhar parado...Este tambm que a minha estrada junca...

  • O semirido na literatura a gua d o tom: uma proposta de ensino 57

    No, nem mesmo me v, nada me sabe... teu fi lho to s, esse teu fi lho...Queres-me frente um lucilar de brilho?...

    Mata a ideia no p, mata, e que acabe...Mata a fraca emoo consoladora...No disperses de ti, d-te vontade...Esse o teu povo pela imensidade...No te acerques da leva pecadora...

    Ah, mas to s, eu que me via tudo...Fica-te para os teus, nesta distncia...Eu vou terra que j vi da infnciaE concentrado no meu cerne mudo...

    s tontas que andarei no verei terras...Aquela que esperou, sem meu roteiro,Deu-me por morto, e pelo mundo inteiro,Onde agora me for, achare