semânticas da violência - guerra, território e poder na África mandinga
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Varia Historia
verso impressa ISSN 0104-8775 Varia hist. v.22 n.35 Belo Horizonte jan./jun. 2006 doi: 10.1590/S0104-87752006000100008 ARTIGOS
Semnticas da violncia - guerra, territrio e poder na frica mandinga1
The meanings of violence - war, territory and power in mandinga's Africa
Angelo Turco
Professor do Departamento de Culturas Comparadas da Universidade de L'Aquila
Facolt di Lettere e Filosofia]p.zza S. Margherita 2, 67 100 L'Aquila
RESUMO
Este artigo aborda o grande tema da guerra na frica bsica o qual apresenta
articulaes mltiplas. A tradio mand, da frica ocidental permite compreender
os modos de constituio do significado da violncia organizada, e em especial da
guerra justa, com particular ateno s configuraes do poder em relao
territorialidade.
Palavras-chave: frica, mandinga, violncia
ABSTRACT
This article treats the great theme of war in Africa, which permits multiple
articulations. The mand tradition of West Africa permits the understanding of the
ways the meaning of organized violence are constituted, especially the just war, with
particular attention to the forms of power in relation to territoriality.
Key words: Africa, mandinga, violence
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Complexo e ainda pouco estudado, o grande tema da guerra na frica bsica
apresenta articulaes mltiplas. Quero aqui referir-me a uma tradio da frica
ocidental que tenho podido estudar repetidamente no curso de muitos anos,2 aquela
mand, raciocinando sobre os modos de constituio do significado da violncia
organizada, e em especial da guerra justa, com particular ateno s configuraes
do poder em relao territorialidade. Na tradio mand o tema da guerra,
estreitamente entrelaado com a poltica e da ao perfil civil do homem mandingo,
bastante presente e sutilmente elaborado. O fato blico declinado nas suas muitas
lapidaes e por isso se desenvolve no s como discurso sobre a "arte da guerra" e
a tipologia dos conflitos com as relativas tcnicas defensivas e ofensivas,3 mas
prope ainda o mais amplo quadro da funo social da atividade guerreira4 e dos
relacionamentos entre kel e hera, a guerra e a paz. Um relevo particular assume,
nesta rica perspectiva, o horizonte ideolgico da autoridade, niyamokoya: niyamoko
aquele - moko, a pessoa - que vem antes, que est diante. Esse se repercute em
cheio sobre as problemticas polemolgicas e, a partir da reflexo sobre "esprito
guerreiro", constri um verdadeiro e prprio "discurso sobre a guerra" que se coloca
frente ao cerne da natureza do conflito armado e explora as condies de
possibilidades da sua legitimao.
1. A tradio mand
"Tradio mand" significa neste estudo o conjunto dos traos culturais, materiais e
simblicos, relativos ao povo mandingo, espalhados sobre uma vasta rea da frica
ocidental estendida sobre as bacias da Gmbia, do Alto Senegal, do Alto e Mdio
Nger (fig. 1). Os critrios de definies de tal tradio so necessariamente fluidos.
Sem dvida se podem assinalar os dois resumos mais recentes realizados por J.
Jansen,5 quer dizer a lngua6 e uma produo narrativa (oral) concernente
Sundiata e a sua epopia. A estes critrios se acrescenta aqui um outro, referente
territorialidade mand, e mais precisamente as lgicas que inspiraram e sustentaram
a transformao material, simblica e organizativa do territrio hoje habitado pelos
mandingas. A formao de uma territorialidade mand repousa sobre princpios e
prticas bastante complexas, mas fazem distino entre si - e so neste local de
importncia central - os processos de construo poltica do espao, que indicamos
com o termo resumido de mansaya (da mansa, soberano). O espao poltico
mandingo tem o seu modelo auroral no reino de Sundiata (Mand, Manden,
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Manding) que as fontes rabes medievais indicam como Mall, Mali, Melli, 7 do qual
origina a denominao de "Imprio do Mali". j no seio daquele que as tradies
indicam como duguba, a grande (ba) casa de todos os mandingas,8 que venham
articular-se os canais institucionais voltados assegurar a circulao legtima do
poder, ordenveis em duas grandes famlias (Tab. 1). A primeira, regida por
princpios hierrquicos, diz respeito ao conjunto dos dispositivos que atribuem
autoridade um valor decrescente de um vrtice a uma base. As principais
instituies hierrquicas do Mand dizem respeito esfera familiar (fasiya), com a
esfera poltica (mansaya), com a esfera escravista (jonya) e por fim com a esfera de
casta (nyamakalaya). Sobre as trs primeiras temos meios de retornar a seguir;
quanto nyamalakaya, ela codifica o ordenamento da sociedade de castas,
marcadas por graus de distino, especializao profissional, endogamia.9
A homologia indica por sua vez o conjunto dos dispositivos que organizam a
sociedade a partir da de instncias de igualitarismo. A ordem homolgica, que se
exprime em diversas instituies sociais, tem as funes essenciais de amenizar as
tendncias particularistas e, por tabela, as lenticularizaes territoriais, que a ordem
hierrquica impulsiona ao contrrio de afirmar. Nas diversas formas que pode
assumir, o particularismo ressalta a prevalncia dos interesses econmicos,
polticos, ideolgicos de um grupo ou de uma instituio sobre outras. Tudo isso traz
consigo o perigo grave de uma exploso do Mand que, trado nos valores
comunitrios que lhe h proporcionado a gnese e inspirado o desenvolvimento, 10
vem confiado s foras destrutivas da violncia e da guerra, e deixa por fim de existir
como duguba, quer dizer como construo geogrfica unitria.
Ao modelo auroral do Mand malins, conectam-se experincias hist ricas
multiformes que esto a testemunhar em sntese dois eixos de desenvolvimento do
pensamento e da prtica poltica mand, caracterizadas de uma forte tenso
dialtica.
i. O primeiro eixo coloca em jogo a dupla fasiya/mansaya, o que quer dizer a
legitimao das prticas concretas de governo atravs de princpios de carter
exclusivamente poltico (mansaya) ou por meio do exerccio de uma autoridade do
tipo familiar (fa, pai). O percurso de legitimao fasiya visa a disciplinar a aprovao
e o uso da terra (e por extenso, de todos os recursos naturais: contudo, no s
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agrcolas, mas tambm pastorais, cinegticas, haliuticas, florestais). Trata-se de
uma instncia reguladora voltada a afirmar um direito originrio sobre o espao
natural, entendido este como superfcie que contm, de forma efetiva ou potencial,
os meios destinados a garantir a subsistncia e a reproduo fsica e social da
coletividade estabelecida. um direito originrio, no sentido que ele no depende de
nenhum outro direito precedente ou superior, mas se fundamenta pura e
simplesmente sobre a ocupao primitiva do espao o qual, todavia, deve fazer
imperativamente em seguida a uma prtica qualquer de transformao, seja ela
material ou simblica.11 Enquanto originrio, portanto, o direito fasiya imprescritvel
e exclusivo, isto , no usurpvel; alm disso, ele passa a fazer parte integrante dos
mecanismos de controle social, que obrigam a conservao do bem fundirio em
benefcio da coletividade - familiar ou tambm de cada aldeia (tabanca em crioulo
bissau-guineense); so (em malink) ou tabanc reticular (sokun) - excluindo a norma
livre. O percurso de legitimao mansaya, visa por seu lado a dotar o territrio de
qualidade poltica e a garantir-lhe a organizao. Este percurso no ignora os
valores da fasiya, ao contrrio os atrai: alm disso, reconhece-lhes o estatuto de
corpus regulativo pr-existente e, de algum modo, eminente, como acabamos de
ver. Contudo, a mansaya exige uma sua autonomia prpria que realiza, parece, em
virtude de dois procedimentos fundamentais. O primeiro diz respeito com a criao
ex novo de um direito que tem por objeto qualquer coisa que antes no existia: a
fundao do lugar poltico, o mara propriamente dito, em virtude da guerra - como a
mido na experincia mandingo - ou por outra via (aliana, submisso, protetorado).
Afirma-se assim uma espcie de correspondncia funcional entre dois atos
originrios: um concerne apropriao da terra em um espao natural,
substancialmente anecumnico, como veremos no pargrafo sucessivo; o outro diz
respeito instaurao da territorialidade poltica a partir de uma geografia
substancialmente pr-poltica.12 O segundo procedimento, consecutivo ao primeiro,
consiste no entender e no praticar a autonomia no j como desunio, renegamento,
oposio e de qualquer modo competio com a fasiya, porm como proclamao
de independncia e de intangibilidade das duas esferas de legitimidade. Nestas
condies, a fasiya vem no s respeitada, mas verdadeiramente garantida nas
suas exigncias da nova ordem institucional: no por acaso, em uma tradio
proveniente diretamente do mand malins, o novo mansaya presta uma
homenagem simblica ao dugukolotigi, o "senhor da terra", para marcar a diferena
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dos papis.13 De fato, a coexistncia destes dois percursos de legitimao fundase
sobre o mtuo reconhecimento de mbitos de regulao que no possam
reciprocamente insidiar-se porque os campos sociais ao qual se aplicam so
constitutivamente diferentes e, por assim dizer, no comparveis.14
ii. O segundo eixo de desenvolvimento coloca em jogo a dupla farinya/ faamaya, o
que significa um exerccio do poder poltico baseado sobre a sabedoria (fa, padre)
ou ento sobre a fora (fanga).15 Com efeito, a autoridade do mansaya, com o seu
poder especfico exercitado pelo mansa, instaura por excelncia a dimenso poltica
na vida social: a prerrogativa real, plena e autnoma, que consagra o Senhor (ma,
como senhor) no entrecruzamento de evocaes legitimadoras ambivalentes, cujo
alvo em direo ao conjunto das qualidades que a pessoa deve reunir para poder
aspirar ao altssimo cargo (ma, como homem), e por outro em direo referncia
suprema das responsabilidades e dos poderes, ou seja Deus (make, o Ser
Supremo). E, todavia, a autoridade mansaya pode sofrer derivaes ao longo da
evoluo da histria, como repetidamente dito, e assumir conotaes controversas.16
Aquela farin descende dos ancestrais (fa, pai) e o cdigo que a identifica a
sabedoria, prpria dos avs. A autoridade faama, ao contrrio, associando-se
fora (contrao de fangama, aquele que dotado de fora) fia-se mais na eficcia
do despotismo do que na virtude do consenso, fruto de uma persuaso gerada do
agir de acordo com a justia.
A dissoluo do Mali (sculo XVII) contribuiu para criar um perodo de graves
perturbaes na frica Ocidental, vinculado, sobretudo, ao progressivo sucesso do
trfico de escravos de matriz europia e ao conseq ente deslocamento dos fluxos
mercantis que abandonam os circuitos meridianos e se organizam geograficamente
no sentido dos paralelos. 17 No extremo Oeste do Mand, digamos entre os
contrafortes setentrionais do Fouta Djalon e as bacias dos rios Casamance e
Gmbia, a nova situao leva consolidao do Gabu,18 um reino que parece reunir
e defender a hereditariedade da cultura mansal produzida e custodiada pelo Mali,
preservando-a o quanto possvel de vestgio oposto, quer dizer, do tipo faamaya e
do tipo farinya.19 (Fig.2)
No restante do Mand, ao contrrio, observa-se uma regresso em direo a
situaes de tipo decididamente faamaya, como a Segu qual retornaremos, ou
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ento, no oposto, em direo a formas pr-polticas de organizao social e
territorial. Esta tendncia ao retorno na direo da fasiya no coloca porm de tudo
fora do jogo as dinmicas de tipo mansaya: de fato, emergem apesar disso
estruturaes mais francamente polticas ainda que de modesto valor, seja em
termos de populao, que de superfcie (confederaes de aldeias, chefferies).
Neste contesto de reorganizao econmico-mercantil em escala sub-continental, na
qual a violncia organizada si afirma como forma privilegiada da produo de
escravos para o trfico, nasce e se difunde o kafo, quer dizer a estrutura poltica
mais caracterstica do Mand ps malins.20 A opinio de Y. Person sobre a
natureza do kafo motivada e convincente: trata-se de um verdadeiro Estado.21 Esta
estrutura territorial, todavia, tanto no plano interno quanto no externo, apresenta
aspectos equivocados. No plano interno, sobretudo, seja o nascimento seja o
funcionamento realizam-se no rastro de um indeslindvel emaranhado
fasiya/mansaya.22 O kafo surge sobre base familiar, da hegemonia de uma linhagem
ou de um cl sobre outros. Neste sentido, ele um jamana.23 De fato, na percepo
e na expresso comum os dois termos terminam por serem usados
indiferentemente. Basta pensar, pelo que diz respeito ao Alto Nger, que todos os
jamana especificados na nossa pesquisa de campo,24 figuram na lista do capito
M.E.Peroz quais kafo existentes na poca do primeiro imprio de Samory, digamos
na assinatura do tratado de Bisandugu entre a Frana e o Almami (1887). De resto,
a emergncia da funo poltica no kafo comporta necessariamente a passagem do
sistema regulador fasiya quele mansaya. Este ltimo, todavia, freqentemente
muito frgil para reivindicar uma completa autonomia, motivo pelo qual condenado
a conviver, de formas variveis, com o primeiro. S quando, de vez em quando, um
lder, um keltigi particularmente valoroso, arrojado e s vezes visionrio, como no
caso do Samory (Fig.3), reafirma com a guerra e a conquista territorial os valores da
poltica e as suas instncias de funcionamento, mansaya e fasiya reassumem os
papis distintos que so prprios deles.25
2. Estatutos ambguos da violncia organizada: a donsoya
No Mand a violncia organizada atinge a sua importncia social e o seu perfil
cultural na marca geral da ambigidade. Esta pode ser enxergada como pistas de
uma mimese, um jogo tenaz de refrao entre o exerccio brutal e o exerccio
disciplinado da fora. Como primeiro exemplo, citarei sem dvida aquele do donso,
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figura social estratgica do Mand que condensa uma ambivalncia entre o mais
arcaico, historicamente persistentes e espacialmente difusos. O donso o caador,
um cone universal e elevado da prtica social e tambm do imaginrio coletivo
mandingo, sem dvida pr-existente ao duguba e, alis, essencial protagonista da
sua constituio. Ele apresenta alguns traos caracter sticos: forte, corajoso,
sabe manejar as armas, um personagem consciente das suas habilidades e da
sua fora que, todavia - ou talvez prprio por isto - no as pratica gratuitamente, dir-
se-ia, mas as endere a obteno de um resultado. A fora e a habilidade no se
exprimem em uma violncia cega e destrutiva, mas se conjugam para dar curso a
operaes reflexivas e por princpio moral realizar qualquer coisa de benfico.
Parece isto o nervo de uma construo axial da cultura mand, com uma faceta
dupla. A primeira diz respeito conscincia que existe qualquer coisa que se pode
chamar "mal absoluto" - encarnado, por exemplo, por criaturas no humanas, pr-
humanas ou sobrenaturais - e que este mal absoluto se exprime freqentemente
como violncia cega, como subjugao injustificada, como castigo excessivo,
desproporcional culpa. A segunda faceta, por seu lado, entrelaa-se com a
primeira e apresenta um contedo eminentemente geogrfico. O mal absoluto, de
fato, em seguida o exerccio irrefletido da fora que configura a violncia bruta, reina
sobre um mundo que anecumnico, sobre o espao selvagem. esta uma das
conotaes do wula, designador bastante complexo que encerra no seu horizonte
semntico a idia central que se trata da superfcie terrestre ainda no marcada pela
ao humana, ainda fora da atividade domesticadora do homem e por isso em
definitivo ainda no investida do processo de territorializao. Na realidade wula
sim um espao natural, mas o seu estatuto conceitual e jurdico varia em funo da
localizao. Integrado no dugu (o assentamento), wula apropriado: pertence ao so,
aldeia, submetido a um controle simblico serrado ( reconhecido, denominado),
investido de prticas de uso tambm mais intensas, ainda que debilmente
reificadoras. Pensa-se a wula como o espao que circunda a aldeia onde so
localizados os locais dos rituais (floresta sagrada, por exemplo), aonde se vai caa
e a pesca, onde se procura as ervas medicinas, onde se vai colher os frutos da mata
e da submata, onde se leva os animais para pastar, enfim onde se vai buscar a
lenha, sem a qual a vida do so no seria nem mesmo concebvel. Em suma, wula
como parte do nodu26 um territrio para todos os efeitos, que constitui, entre
outros, essencial garantia para a estabilidade do so enquanto superfcie de reserva
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para o crescimento demogrfico e as expanses agrrias. Contudo, se ao contrrio
est localizado fora do nodu, Wula acaba sendo simples espao, pura extenso
natural. necessrio distinguir ainda aqui dois significados semnticos do
designador. O primeiro prope wula como espao limtrofe de indeterminada
jurisdio, que poderia ser por isso integrado no nodu ou ento apropriado no
quadro da criao de um novo dugu e, p fim, da criao de um sokun. O segundo
evoca wula como grande extenso vazia, como natureza hostil, impenetrvel: o
espao verdadeiramente selvagem, sentido como longnquo, sombrio, temvel.27
No momento em que o homem se achega ao wula para transform-lo atravs de
operaes de tipo simblico, material ou ento organizativo, a violncia muda seus
traos, sofre o mesmo efeito do processo civilizatrio pelo qual o espao se
transforma em territrio, e se torna um fator da metamorfose de wula em dugu (lugar
habitado, assentamento, e, por extenso, territrio). Neste contexto, a habilidade e a
fora do caador resultam perfeitamente inseridas no projeto de domesticao do
mundo selvagem do qual o homem mandinga se sente investido. E mais: o donso
representa a parte mais consistente daquele processo civilizatrio do mundo que o
destino histrico do povo mandinga e que Sudiata exprimir ao seu nvel mximo
com a criao do Imprio. ao caador, de fato, que nas pegadas do Mansa Ba,
cabe explorar os novos espaos, impelir-se nas temveis profundidades do wula,
entrar corajosamente em contato com as foras obscuras que levam o mal
(incompreensvel e injustificvel) e tornar-se sabiamente forte, com o fito de no
deixar-se derrotar por ele e, pelo contrrio, distanci-lo, construindo uma espcie de
"terra sem mal" onde a violncia vem dominada e onde, em seguida, a disciplina da
fora vem atravs do seu emprego justificado.28
Nota-se um ulterior complexo de valores que conota o caador. Este, de fato, no
s exmio no uso das armas, no s pratica a arte da guerra, mas encarna tambm
o esprito dela. O donso na verdade o depositrio da antiga e nobre arte
cinegtica: um donko, um saber fazer, uma tcnica. Mas ele ainda o depositrio de
um valiosssimo donni, o conhecimento profundo, que se conecta novamente
enquanto tal s formas codificadas da palavra malinesa, a lada, e talvez ainda mais
quelas esotricas da kuma koro ba, a grande palavra (kuma) antiga. Estas formas
de conhecimento no so evidentemente dizveis e aparecem ligadas a dois
aspectos do comportamento e da vida mesma do donso. O primeiro diz respeito,
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ainda uma vez com a territorialidade, da qual o caador um artfice. Ele conhece
wula, o perscruta, o percorre, apropria-se dos seus segredos, o organiza em
localidades que cadastra nas caractersticas deles e consigna a uma denominao
completa, ou seja, que nomeia o campo referencial, simblico e performativo. A
atividade cognitiva na verdade comea com o fixar as referncias que consentem o
mapeamento mental do wula, e portanto os discurso sobre o wula, e os
deslocamentos no seu interior. No domnio simblico, ademais, ela recolhe os
segredos das entidades sobrenaturais que habitam o wula e preserva o inventrio
dos lugares de culto. Enfim, a apropriao intelectual do espao produz as
informaes prticas necessrias caa. Em suma, retirando-o do estado selvagem,
o donso consegue integrar wula no s no universo dos cultos, mas igualmente nas
atividades produtivas e nos circuitos da reproduo social. assim que se desenha
uma verdadeira geografia cinegtica na qual os lugares entrelaam a trama dos
movimentos dos homens e dos animais, associados a tcnicas e instrumentos caso
a caso apropriados:29 bal, s margens dos rios e em geral os locais de bebedouros
dos animais; binyoro e fu, clareiras com relvas mais ou menos cerradas (bow em
pular) onde os animais caados vo se refugiar; tu, a floresta densa; kotu, a floresta
com tneis formados pelas rvores ao longo dos cursos de gua e nas depresses
midas; yeren, o manto florestal ralo. Graas ao donso, o territrio conquista um
novo significado semntico, torna-se um "operador social", e a geografia codifica a si
mesma no s denotativamente, como fundo e suporte da atividade humana, mas
tambm conotativamente como dispositivo capaz de mudar "a natureza da natureza"
e em seguida, por isso mesmo, de mudar a natureza da violncia.30
O segundo aspecto diz respeito a dimenso cooperativa da atividade cinegtica pela
qual, alm do valor individual, a estabilidade institucional e a durao no tempo
que contam. E aqui que se insere a funo da ton. Em vias de princpio no Mand
a ton um "corpo regulamentado", para usar a expresso de Delafosse,31 estranho
parentela, que age sobre a competncia. Esta pode ser de tipo mgico-sagrado e
dar corpo a verdadeiras e prprias sociedades secretas.32 Ela pode ser tambm de
um tipo que por apresentar contedos iniciticos, poder-se-ia dizer profissional.
Neste caso o saber fazer no se conquista por direito de nascimento, como no
sistema nyamakala evocado mais acima, mas nele ingressa atravs do livre
aprendizado ao qual todos, em linha geral, possam participar, desde que dotados
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das necessrias qualidades. Instituio universal do Mand, a donsoton apresenta
caractersticas localmente diferenciadas. No Alto Nger guineano, por exemplo, ela
organizada ao nvel de dugu, mas s vezes tambm ao nvel de sokun, e contm
aspectos iniciticos que justificam de qualquer modo o termo com o qual vem
usualmente indicada em lngua francesa: confrrie (confraria). Tornam-se caadores
depois de um perodo de aprendizado, durante o qual o aprendiz, donso karand,
no pode caar s, mas acompanhado do seu mestre, o caador experimentado
donso karamo. A aprendizagem pode durar um longo tempo e encerrada a critrio
do mestre. Os donso karamo escolhem entre os seu pares o donso kun, o chefe da
ton, caador particularmente hbil, generoso, capaz de evitar os conflitos de
interesses, imparcial e, sobretudo, dotado de um poder mstico que ele exercita
sobre o wula para propiciar a caa e afastar os perigos do espao anecumnico. O
donso kun fica na funo enquanto a assemblia dos donso karamo reconhecer-lhe
as qualidades pelas quais foi originariamente escolhido. Ele exercita as suas
prerrogativas de vrios modos: aconselha, concede permisso para sair caa,
assegura com a sua orao e os seus poderes sobrenaturais a prosperidade para a
ton e para cada um de seus membros. Em roca, tem direito ao respeito dos donso e
a uma parte da caa, em geral o pescoo do animal. O donso kun, enfim, guia a
cerimnia anual de abertura da caa, da qual s podem participar os membros da
ton. A cerimnia dedicada ao irmo de Sundiata, Manden Bori, o primeiro e mais
eminente dos donso, a quem se pede ajuda e proteo.33 Uma ulterior figura do
donsoton alto-nigerino o donso kemo, representante da confraria junto aldeia e
seu portavoz nas reunies que concernem ao wula. Finalmente, alguns donsoton
possuem o seu srwa, que pode ser ou no caador, encarregado de narrar as
crnicas da ton e os feitos de cada um dos caadores, de cantar os louvores da
donsaya, de animar as viglias fnebres em honra de um donso karamo.
Atravs da iniciao aos mistrios da caa, aprendizagem das tcnicas,
participao na vida da ton, ao compartilhamento dos valores da donsaya34 e,
naturalmente, concreta prtica cinegentica, o donso conquista conscincia do seu
status social, cujas razes aprofundam-se seja na tradio mtica, seja na histrica.
Os grandes do Manden, a comear pelo Bori, so heris de caa: Sundiata pode
exaltar entre os seus muitos ttulos, aquele prestigioso de simbon, grande caador,
sem dvida, pertecente ordem instituda por seu av, Mamadi-Kani; Tiramanghan,
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o mtico fundador do Gabu, um Traor, o cl dos caadores, um dos dezesseis
que do origem ao Mand malins; Biton Kulibaly, o fundador do mais tardio reino
de Segu, por sua vez um donso, destinado a tornar-se ma fa donso, caador de
homens e, isto , guerreiro.35 Mas o donso no tem somente um ponto de referncia
mtico. Ele tem sido o elemento mais eficaz e incisivo dos exrcitos mand, elite
guerreira forjada atravs da fidelidade incondicional ao mansa, no menos que
atravs da honra no combate, valores que o consideram toti, homem livre, valente e
leal, incomparavelmente superior ao sofa, ainda que fiel e destemido soldado,
porm, escravo.
3. Estatutos ambguos da violncia organizada: dunya-mara, uma cosmopolis mandinga?
A metamorfose da violncia acompanha, portanto, a transformao do espao em
territrio e a passagem de Wula para dugu. Mas antes ainda, ela parece um fator
constitutivo de dunya - o mundo terrestre como tal36 - o elemento que acompanha o
seu nascimento, a parteira que permite a individualizao de wula, o mundo dos
homens, de qualquer coisa que o precedeu e que era evidentemente um universo
pr- humano.37
Em sua pesquisa sobre kumaba mandinga, S. Camara enfrenta o tema da gnesi
deste mundo que no certamente humano, mas que , no entanto, disposto para
acolher o homem secundando-o e, alis, exigindo dele ao. No seu ltimo livro,38
referente aos percursos iniciatrios do mand senegals-guineense, o nascimento
do mundo visto no tanto como uma "criao",39 mas antes como um parto: as
foras presentes so difceis de definir-se, nem se sabe em realidade porque nunca
as dinmicas da mudana se ativam para unir-se s formaes do mundo humano
sub specie de dunya, cujas entranhas tocar depois de proceder individualizao
dos vrios espaos: wula, dugu, mara. Mas aquilo que a cosmogonia descrita por
Camara relata justamente um sofrimento que acompanha o parto do mundo, no
qual parecem entrela-ar-se os percursos instituidores da ordem de uma parte
atravs da palavra e de outra exatamente atravs da violncia.
Se verdade que o campo da vida (balokena) vem inseminado da palavra, ele,
todavia, produz atos (p.35 e s.). assim que, no arcano depsito das possibilidades
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que precedem o mundo, um movimento gerado pela capacidade de sentimento (a
compaixo, o amor sincero...) enquanto abre a extenso na sua vacuidade
primordial, coloca a distino crucial entre o universo dos "smbolos", que traz
consigo a luz, e aquele das "coisas", marcado pela opacidade e, portanto, falso. No
formar-se da extenso - um termo geogrfico primordial40 - acompanham as
primeiras articulaes entre a vila celeste (santosu), a vila terrestre (dugumasu) e a
vila de meio (talanteemasu). Mas a denominao, a enunciao dos
dugurentogolu, os nomes verdadeiros e secretos, que "irrigam o lugar vago das
existncias que viro" e preparam balokena.
A palavra , portanto, o no giratrio princpio ordenador da extenso que se dispe
a tornar-se dunya e, portanto, wula. Permanece, no entanto, neste percurso, o
inaudito sofrimento do parto do mundo que ser humano, a enfrentar-se desditoso
das pulses, a angustiante, a incessante refrao dos estados emotivos nos quais
se materializa (a compaixo, o amor, a luz, a gua...). De qualquer maneira, a
violncia da gnese prefigura aquela que acompanhar os eventos que ocorrero no
novo mundo e as configuraes que ele vir a assumir - ou seja, a histria e a
geografia do homem - j que elas sero, em ltima instncia, os resultados de uma
ingente "luta dos desejos", destinada a subverter incessantemente cada poder
mundano.
A tradio apenas evocada sugere que a violncia uma necessidade
cosmognica, inerente ao nascimento do mundo terrestre. Do mesmo modo, poder-
se-ia dizer, ela acompanha cada nascimento e, particularmente, cada determinao
geogrfica destinada a articular dunya e a refletir e manter o agir humano, a ao
social. O problema apresenta-se com particular acuidade quando se trata de
instaurar a mansaya e, com ela, o que a reflete e lhe d substncia, ou seja mara, o
lugar poltico. Reapresenta-se aqui o problema que j foi dos esticos, de realizar
cosmospolis, estabelecendo uma conexo entre a ordem do universo (cosmos) e
aquela da polis, ou seja, o espao poltico.41 Tentarei indicar como dunya-mara esta
cosmpole mande, convocando ainda a violncia como instrumento deste novo
disciplinamento geogrfico do mundo. de novo a epopia de Sundiata que oferece
a chave de leitura mais cngrua a respeito do raciocnio que estamos aqui
desenvolvendo. E a belssima tradio de Wa Kamisoko, traduzida e apresentada
por Y.T. Ciss, que explica a necessidade da poltica, como observa perspicazmente
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C. Maillassoux.42 Sundiata enfrenta o problema da segurana do Mand pr-
malins, onde portanto vigoram os procedimentos legitimadores da ao pblica de
tipo fasiya. A questo espinhosssima a partir do momento que se trata de um lado
de preservar a liberdade do Mand das perseguies de Somaoro Kant, soberano
dos Sosso, de outro de extirpar o flagelo do banditismo. Este ltimo se direciona no
tanto aambarcagem de bens, mas de preferncia captura de pessoas para
venderem como escravas no quadro do trfico transaariano. O fato que, conforme
um processo registrado pelo Sudo desde o sculo X,43 o rapto e a venda de
prisioneiros feito no contra "estrangeiros", mas mesmo no interior do Mand e
tambm, anonimamente, entre habitantes da mesma aldeia e membros da mesma
famlia. Sundiata realiza uma aliana entre todas as dugutigiya mandingas
(confederao de aldeias, chefferies pr-mansais) - tradicionalmente especificadas
em trinta - e d combate a Samaoro, destroando-lhe os exrcitos na batalha de
Kirina (1235). O Mand mansal, ou seja, a constituio poltica do espao mandinga
nasce de um ato de violncia organizada, e est a o sentido da expresso "Kel l
ka Mand lo" : sobre a guerra que se edificou o Mand. as, como j na
domesticao de wula, trata-se no de uma viol ncia cega, mas sim de um uso
refletido da fora para fins positivos: Sundiata o lder de uma horoya kel, de uma
guerra defensiva e por isso justa. em seguida se-nko (a vitria) contra Somaoro,
precisamente, que Sundiata pede aos seus pares de elege-lo soberano de uma
federao estvel de dugutigiya, com a finalidade de garantir a paz e de eliminar o
banditismo escravista, ou seja a forma mais odiosa de siakel (a guerra tnica, a
guerra civil), de dugulenkel (a guerra entre coletividades estabelecidas, entre
aldeias), ou at mesmo de fadenkel (a guerra intestina).44 "Voc afastou a guerra
de nossas casas, por isto renunciamos ao nosso poder e te proclamamos
niyamoko": assim Kamisoko (p.42) narra os propsitos dos dugutigi. o ato de
nascimento do Mand mansal e, com ele, do mara. Mara in primis uma forma de
poder. Ele evoca no somente uma capacidade, mas tambm um direito e um
compromisso responsvel, intimamente ligado educao, quanto um poder de
comando consciente das suas prerrogativas e dos seus limites. No pensamento
poltico mandinga mara exprime a idia de poder certo mais complexa, tanto mais
que o termo no s evoca uma qualidade pessoal ou institucional, mas torna-se um
designador geogrfico no momento no qual indica um territrio poltico: mais
especificamente, o territrio poltico de Sundiata e, por extenso, do mansa. Mara,
-
portanto, o poder poltico na sua expresso institucional mais alta, cujas condies
de exerccio so por isso mesma aquelas mais disciplinadoras. Ao mesmo tempo,
ele identifica-se com o mbito espacial do seu prprio exerccio, o que produz dois
efeitos importantes. O primeiro consiste no afirmar uma qualidade especificamente
poltica do territrio independentemente da existncia de outros poderes que
eventualmente se exeram sobre o mesmo: a essncia mesma da dialtica
fasiya/mansaya da qual falamos no primeiro pargrafo. A segunda diz respeito
quilo que com uma expresso ratzeliana chamarei o Raumsinn, o senso do espao
mand. Este confia-se de boa vontade na sua expresso pr-imperial (e, portanto,
de muitas maneiras pr-poltica), a uma figurativizao por pontos (os so, as
aldeias), mais ou menos nitidamente ligados por linhas que conduzem as relaes
mais variadas (confederaes, alianas, trocas), mas privado de extenso
superficial: de incio, como disse Wa Kamisoko, o reino de Sundiata vai "do rio
Woyo-Wayan-Ko, ao p do fromager di Kouroussa" (p.281-3). Configura-se pura e
simplesmente como um espao vetorializado, percorrido por uma linha de fora que
o representa e o descreve: do curso d.gua arvore. Com a criao do imprio o
espao deixa de ser puramente linear e conquista a rea de sua consistncia. Por
um lado, trata-se de uma rea istropa, investida na sua integridade do poder
mansal. Por outro lado, assume o aspecto de uma extenso delimitada por toda
parte - ao Norte, ao Sul, a Leste e a Oeste, ressalta ainda Kamisoko - denominado,
organizado em estruturas que tm status diferentes e diferentes funcionalidades:
domnios da coroa, provncias, estados vassalos. Permanece intacta a alta funo
do rio Nger como fator simblico de estruturao do Mand: il Mansa Ba no
somente um matigi, senhor dos homens, mas tambm um jitigi, senhor da gua.45
A mansaya concretizando-se no mara exprime o poder na sua plenitude poltica: ele
hereditrio e distingue-se por sua moderao, a sua sensibilidade s tradies e a
sua preocupao pela justia. O Mansa Ba, respeitoso da legitimidade fasiya e das
prerrogativas a ela associadas impregna-se do Mand e confere-lhe o status de
mara, um territrio superdotado, de algum modo, uma vez que no sofre mas usufrui
da autoridade do soberano. De fato, o mara um espao de paz e de securana,
mas tambm a substncia de uma geografia prspera, um lugar onde o trfico de
escravos que afligia a sociedade pr-malins no existe mais ( e isto considerado
como um elemento decisivo de civilizao), onde os circuitos comerciais foram
-
reativados e estabilizados, e onde, enfim, pode-se dedicar quela que por
excelncia a atividade mand, ou seja, o cultivo da terra. assim que Sundiata, que
reina do alto de seu trono sobre um imprio rico e forte, sabe escutar a humilde
exortao de um velho sbio que lhe diz: "Mande derrubar as rvores, transforme a
floresta em campos cultivados, e s ento tornar-se- um verdadeiro rei".46 a
essncia mesma da passagem do estado de natureza ao artificial humano, em
virtude do qual um rei torna-se autntico rei porque derrota a precariedade, cria as
condies de estabilidade para o seu povo e pode instituir derrota a os
ordenamentos que acompanharo o desenvolvimento civil. Sobre esta que
representa a mais importante forma de reificao na geografia subsaariana, se fecha
a fisionomia conceitual do mara. A restaurao das prticas culturais o sinal
definitivo de uma grandeza que pode ser somente de quem reina sobre o espao
poltico:47 aquele que afasta a carncia, o desastre da fome, colocandose como um
construtor de perenidade. Se o Mand eterno, porque il maratigi faz-se seu
guardio.
4. Segou: da tgereya keltigya
luz de tudo isso que foi dito, se pode avaliar plenamente o significado cultural,
histrico e geogrfico do reino de Segu (fig. 4). Digamos que, j a partir do sculo
XVII e, alm disso, em medida crescente no curso do sculo XVIII, a demanda
praticamente inexaurvel por escravos para o comrcio atlntico cria em toda a frica
ocidental uma regresso da vida poltica e, em especial, uma degradao do espao
poltico com o afirmar-se da violncia organizada, seguida da guerra real, como
instrumento central da produo escravagista para o trfico.48 No Mand ps
malins, composto no vale central do Nger por aldeias isoladas (so) e por pequenas
dugutigiya, o trfico escravista europeu criou uma condio geral de instabilidade e
de insegurana para os mandigas, em singular correspondncia com o que ocorria
no Mand pr-mansal com o trfico transaariano de matriz rabe-islmica. Tanto em
um como no outro caso, os fins da captura de seres humanos para vender,
desencadeiam o banditismo (tgereya)49 nas suas duas formas de jodoya e de
soboli.50 A primeira diz respeito ao pequeno banditismo, individual ou de grupos
isolados que se formam por uma ao e depois se dissolvem. A segunda, ao
contrrio, obra de uma ton, como se designa a Segu, um bando consistente
(algumas dezenas) de bandidos s ordens de um chefe (tontigi) que exercitam
-
permanentemente a atividade predatria. Maamari Kulibali, apelidado Biton, uma vez
solitrio donso, trona-se exatamente um tontigi que, graas ao sucesso das suas
aes violentas e astcia das quais d prova,51 v crescer a sua fora (trata-se de
fanga, a fora bruta, a mera capacidade de coero) e acaba estabelecendo um
poder estatal (fanga ke): Biton assume o ttulo de faama e estabelece a sua
residncia em Segukoro (a velha Segu). Nasce assim, em torno de 1720, o reino de
Segu, do qual Mungo Park descrever alguns traos caractersticos por volta do fim
do Setecentos.52 Um sculo depois, a fase expansiva se detm: os exrcitos de
Segu so batidos por Peul do Maasina, que sprimem o reino dos seus territrios
orientais. Uma nova dinastia, com o chefe Ngolo Jar, assume o poder e o manter
at a chegada das armadas jihadistas tuculeur de Omar, em 1861.53
A afirmao da faamaya de Biton, conquanto "regulamenta" o problema da tgereya
- e veremos de que modo especialssimo - no faz mais que afastar para o exterior a
atividade predatria, instaurando uma condio blica contnua, uma kel
permanente que justifica para Segu, segundo J. Bazin a denominao de "Estado
guerreiro".54 A famaya de Segu qualquer coisa de bastante diverso da mansaya de
Sundiata. No entanto, como observa Meillassoux, Biton - e depois dele Ngolo -
chegam cena pblica do nada, no tm uma afiliao de cl que os nobilitem ou
ao menos que os legitimem de alguma forma s pretenses de comando. Ser sem
passado condena, de qualquer maneira, a ser sem futuro: como observa S.
Bagayogo,55 se a mansaya hereditria (recebe-se e pode-se transmitir), a faamaya
conquistada: isto faz com que as dinastias de Segu tenham dbeis fontes de
legitimao, porque na morte de cada faama o pretendente sucesso deve
demonstrar a prpria sebbaya (potncia).
Alm disso, este vir do nada representa de per si uma ruptura da tradio, uma
derrota a princpio socialmente forte da ancianidade. O primado de moba (ancio,
sbio) vem substitudo por novos valores: aquele da fora fsica e do ardor no
combate, que no so certamente os velhos a possurem, mas os kamalen, os
jovens reunidos na ton.
Biton, de outra parte, no combate o banditismo, mas o pratica. Se o elimina no o
faz da maneira de Sundiata, decreta-o pura e simplesmente ilegal, mas obtendo dos
so e das dugutigiya que desejem ser protegidas das incurses dos seus tonden (os
-
pertencentes do seu bando) um direito de compensao, nisongo. o medo da ao
predatria que compele, portanto, as coletividades mandingas a reconhecerem a
autoridade do faama; e este medo ser jogado contra eles, uma vez que a ameaa
de um ato predatrio sempre possvel serve para impedir cada veleidade de
insubordinao. Com o passar do tempo, os tributos pagos s dinastias de Segu a
ttulo de nisongo tornam-se sempre menos consistente. Em compensao,
aumentam outros tipos de obrigaes, entre estas o envio de efetivos em caso de
guerra. E aqui que se insere a questo crucial dos jon, e do peso que no todo a
jonya assume no reino. A passagem, se assim se pode dizer, do banditismo interno
ao banditismo internacional, comporta a institucionalizao da kel como
fundamento de um especfico modo de produo estatal em Segu. A guerra feita
para fazer prisioneiros a se transformar em escravos. Segundo a reconstruo de J.
Bazin, cada keltigya (expedio guerreira) "produz" certa (importante) quantidade
de escravos:56 Estes vo ao faama em um nmero varivel de dois teros (2/3)
metade, enquanto o restante permanece com aqueles que participaram da
expedio blica. Os jon que vo abastecer o tesouro real tomam por sua volta trs
destinaes principais: i) a venda, efetuada diretamente pelo faama a mercadores
de passagem (Jula, Mauri, os habitantes da Mauritnia), ou ento nas aldeias
maraka, que funcionam como centros mercadores,57 ou ento enviam atravs de
rios grupos em direo s grandes praas comerciais como Bamako, Kangaba e
Kankan; ii) a redistribuio, que segue canais diversos (o grupo familiar, a rede
clientelista - sobretudo jali, conselheiros, mori, ou seja sbios islmicos
encarregados de cuidar da baraka do soberano) - enfim, a unidade encarregada de
assegurar a produo agrcola destinada a satisfazer as exigncias das cortes e,
mxime, dos foroba-jon, os escravos pblicos, ou seja aqueles a servio das coroa;
iii) por fim, os escravos atribudos exatamente ao foroba-jon. Destinados a reforar
os exrcitos reais, eles constituem na realidade a verdadeira fora do faama,
tornado assim a nova ton, a ton-jon que substitui a originria ton bandida. Entre os
foroba-jon vem afinal escolhidos os temveis sofa, o corpo especial encarregado da
guarda do palcio.
O Estado guerreiro e o modo de produo que o substancia, projetam-se no solo
com uma especfica organizao territorial. No entanto, as fronteiras do reino so
indeterminadas e mveis, em relao fora da qual o faama pode dispor para
-
assegurar o seu poder. No interior do reino ento, mais que uma estruturao de
tipo administrativo, afirma-se um ordenamento funcional das aldeias. Se o corao
da bamanaya (a sociedade bambara) o faama, o eixo geogrfico do sistema
obviamente Segu, a sede do soberano. Em redor da capital encontram-se aldeias
onde so aquarteladas as guarnies dos escravos, e por isso, chamadas ton-jon.
Cada um destas aldeias ton-jon circundada de pequenas aldeias de cultura
(cikdugu), habitadas da horon e da jon (incluindo as mulheres, jonmuso),
encarregados dos aprovisionamentos. Vem tambm as aldeias maraka, j
mencionadas, algumas das quais, particularmente importantes como Sansanding,
tm marakadugu como satlites (Togu, Busen) e tm tambm os seus especficos
cikdugu. Aldeias mais destacadamente polticas, alm disso, e disseminadas em
todo o corao do reino, so os dendugu (literalmente: aldeias dos filhos) onde so
estabelecidos os princpios da linhagem real. Lembramos enfim as aldeias cujos
chefes so especificamente designados pelo faama como seus representantes e
que exercem assim certo poder sobre assentamentos circundantes.
A importncia crescente dos jon no mbito da bamanaya, o aperfeioamento da kel
como mquina produtiva que pode contar com dispositivos territoriais sempre mais
funcionais, no fazem seno aumentar o mal-estar coletivo e a desagregao das
instituies mandingas. Em um reino no qual a guerra "o destino de cada cfarin",
de cada homem corajoso, livre ou escravo que seja, o soberano torna-se Kel
Mansa, um polemarco;58 o espao poltico declina no mbito da exibio e de
exerccio de um poder exclusivamente fanga. A legitimao fasiya, frente a qual at
mesmo Samory mostrar respeito, vem colocada de fato fora do jogo da faamaya
bambara que negligenciando o mtuo reconhecimento das fontes de legitimao,
esvazia o cdigo mansal do ncleo mais resistente que por sculos garantiu a fora
e a durabilidade da poltica.
5. Entre guerra e poder: a territorialidade como instncia moral
No horizonte cultural mand, o discurso sobre a guerra impacta-se com uma fora e
uma complexidade realmente notvel. no signo da violncia, ainda que
disciplinada, que se produz os grandes eventos e particularmente aqueles
destinados a criar os quadros territoriais nos quais o homem mandinga pode
conduzir serenamente a sua existncia individual e desenvolver plenamente o
-
prprio destino histrico. Dunya, o mundo terrestre, especifica-se progressivamente
como casa do homem em primeiro lugar enquanto wula, depois enquanto dugu,
finalmente enquanto mara: o Mand o lugar onde, precisamente, estas trs
configuraes do espao geogrfico fundem-se harmoniosamente.
Uma problemtica cosmopolitana reverbera-se no pensamento poltico e na concreta
prtica social mand. No seio desta problemtica define- se processualmente a idia
que existe um exerccio da violncia, e por extenso uma prtica blica, destinados
a - e indispensveis para - fundarem uma territorialidade civil. A toro qual esta
idia vem submetida dupla, ideolgica e histrica. sim verdade, com efeito, que
existem guerras que podem "facilmente" definir-se "justas" (a guerra defensiva
horoya kel, a guerra conduzida para prevenir os conflitos civis); igualmente
verdadeiro, todavia, que tambm uma kel desencadeada por motivos
expansionistas, do momento que se resolve pela difuso da ordem Mand - e,
portanto, em uma ampliao daquela precios ssima qualidade geogrfica da
superfcie terrestre que o mara - acaba por ser ideologicamente legitimada.
Historicamente de resto - e estamos na segunda toro - viu-se como a autoridade
faamaya pode erigir a ordem em valor absoluto - e a submisso total no seu
corolrio eminente.59
No Mand, uma cesura precisa distingue aquele que detm o poder e aquele que
dele privado: o primeiro, fangatigi ou maratigi que seja, no s possui um atributo,
mas sobretudo legitimamente habilitado a exercitar um poder; o segundo, por seu
lado - fangatan, maratan - certamente desprovido do poder, mas, mais
radicalmente, no tem ttulo para o seu legtimo exerccio.60 Por outro lado, a
titularidade do tigi no esgota completamente a instncia profundamente moral
contida nas express es que indicam o poder. Este ltimo, de fato, pode ser
exercitado por quem tem direito no "modo justo", ou ento com abuso. Em tal caso o
poder sancionado por uma marca negativa enquanto diagoya (coercitivo), diugu
(errado), dialan (estril). Compete poltica, em definitivo, mediar entre os usos mais
ou menos abertamente instrumentais a que se presta o discurso sobre a guerra,
para impedir, em ltima instncia, que a territorialidade venha a ser reabsorvida
alm cosmpole, em direo as configuraes mais primitivas e temveis do mundo
humano.
-
Artigo recebido em 10/09/2005. Aprovado em 15/11/2005.
1 Traduo de Francisco Vinhosa, a quem o autor agradece.
2 TURCO, A. Strutture di legittimit nella territorializzazione malink del'Alto Niger
(Rep. di Guinea). In: CASTI, E. & TURCO A. (org.). Culture dell.alterit. Il territrio
africano e le sue rappresentazioni. Milano : Unicopli, 1998; TURCO, A. Legitimit et
pouvoir: la recherche de l.espace politique dans l.Afrique mandingue. In: PITTE,
J.R. & SAGUIN, A.L. (org.). Geographie et liberte. Mlanges em hommage Paul
Claval. Paris: L.Harnattan, 1999. Expresso aqui um agradecimento s muitas
pessoas que me ajudaram a compreender as concepes mandingas e as estreitas
conexes que elas desenvolvem com a territorialidade: kumatigi, donso e srwa,
dugutigi, dugukolotigi, almami (iman de aldeia), moba. Todos os estudiosos, os
estudantes europeus e africanos que trabalharam comigo nas aldeias, ocupam um
lugar especial em minha lembrana. Laye Camara, ao meu lado por um decnio no
Mand, foi um autntico mediador cultural. O fio condutor da jali, a palavra
musicada, acompanhou esta minha experincia de pesquisa: a partir das gesta de
Fod Kaba cantadas por griot de Kolda, em Casamance (Senegal, 1983), passando
por aquelas do reino de Kong interpretadas por msicos jula na longa noite de um
casamento Senufo a Kohrogo (Costa do Marfim, 1986), para terminar com aquelas
apocalpticas da destruio de Kansala cantadas por griot de Gabu e por suas duas
mulheres (Guin Bissau, 2005). Em Kolda estava com Candida Ciaccio; em Kohrogo
com Miriam Odd Ambrosetti: dedico este estudo s memrias delas e de Falaye
Oular, dugutigi de Dalafilany (Guin Conakry), mestre de saberes bsicos
tradicionais.
3 Merece ateno: BAH, T.M. Architecture militaire traditionnelle et polioctique dans
le Soudan Occidental du XVII la fin du XIX sicle. Yaound: CLE/ACCT, 1985.
4 A atividade guerreira, de fato, torna-se o cerne de uma verdadeira formao social
que, na perspectiva j indicada por J. Goody, atribui poltica um papel de mediao
entre a atividade de produo e a atividades de destruio (GOODY, J. Technology,
Tradition and the State in Africa. Cambridge: Cambridge UP, 1971).
5 JANSEN, J. Epope, histoire, socit. Paris: Karthala, 2001, p.10 e seg.
-
6 famlia mand pertencem diversas lnguas, entre as quais lembro o Malink, o
Bambara e o Jula.
7 Mali equivale linguisticamente a Mand, uma vez que tem o mesmo som do termo
com o qual os Peul designam o Mand na lngua deles, o pulaar.
8 Duguba quer dizer ainda "terra me" dado ao duplo significado de "ba" adjetivo
(grande) e substantivo (me): uma ambivalncia no desprezvel.
9 No mbito das classes livres, horon, a camada superior (os homens da terra, os
camponeses: simplesmente bamana - ou seja bambara - em Segu) acompanha-se
aquela inferior nyamakala, composta em castas destinadas prtica dos ofcios
(numu, aqueles que trabalham o metal; karank, aqueles que trabalham as peles;
kul, aqueles que trabalham materiais vegetais; maabo, os teceles) ou ao exerccio
da palavra: musicada (jali) ou somente dita, cantada (fina). A elas se ope, no
conjunto, a classe jon, escravos cujas condies, por outro lado, varia com o modo
de aquisio e com a posio de ascendncia no estado de escravido. Se bem que
relativamente autnomas no perfil delas, estas classes entretm relaes
extremamente complexas, seja do ponto-de-vista funcional ou social e poltico. Por
outro lado, se verdade que a supremacia horon inegvel, e protegida pelos
valores da horonya, no certo que a liberdade assegure aos nyamakala uma
posio social superior aos jon se recorda-se que estes ltimos, contrariamente aos
primeiros, podem fazer tudo aquilo que fazem os horon, e dedicar-se ento, se os
seus senhores desejarem, no s s atividades agrcolas, mas ainda ao comrcio e
at mesmo ao ofcio das armas (prtica institucionalizada em grau mximo em Segu,
como se ver).De qualquer forma, nyamakala e jon participam das caractersticas
comuns da sociedade mandinga, assumem como referncia superior o horizonte
axiolgio horon, caracterizado por um conjunto de valores morais entre os quais
destacam-se o ardor no combate, o sentido da honra, a discrio, o respeito s
convenes no comportamento em pblico, a altivez do prprio jamu, o nome de cl.
10 o esprito que regula o Gbara, ou seja, a assemblia constituinte dos cls
mandingas que se realizou na plancie de Kurukanfuga, nas cercanias de Kangaba.
importante observar como a fixao mandinga aos valores comunitrios vm
reafirmada no momento prprio no qual a cultura mansal atinge o seu pice com
-
Sundiata, que no por acaso assume o jamu de Keita, "aquele que pega todas as
coisas", e, por conseguinte, o senhor de tudo (DIETERLEN, G. Myth e et
organisation sociale au Sudan franais. Journal de la Socit ds Africanistes, v.1-2,
p.40, 1955).
11 Sobre este ponto, bastante delicado, remeto a: TURCO, A. Astres et dsastres:
voyage dans la conflictualit pastorale autour du Parc Transfrontalier de la W
(Burkina Faso-Bnin-Niger). Ponts, v.4, 2004.
12 O "lugar poltico" organiza-se em estruturas que possam assumir fisionomias
estatais ou imperiais e, portanto, mais ou menos complexas do ponto de vista
administrativo. A estas formaes geogrficas antes inexistentes que marcam
exatamente a qualidade poltica do territrio - se bem que de maneira no exclusiva
- ,se conectam estreitamente com outras, de natureza econmica: trata-se dos
circuitos de troca, que dizem respeito seja ao comrcio de curta-mdia, ou de mdia-
longa ou de longussima distncia (transaariano, transocenico). Na realidade, as
estruturas mercantis so em certa medida a origem mesma do processo que
impulsiona no sentido de tornar autnoma a funo poltica na sociedade mandinga.
Elas se alimentam dos influxos do Islam e tornam-se fundamentais para o
funcionamento e a reproduo das estruturas mansais. Pode-se ver a este respeito
os grandes afrescos de: MAUNY, R. Tableau gografique de l.Ouest africain au
Moyen Age. Dakar: IFAN, 1961; PERSON, Y. Samory. Une rvolution dyula. Dakar:
IFAN, 1968-1975 (principalmente T. I. cap. III e IV.). Mudando de perspectiva, temos
uma breve sntese em: STEWART, M.H. The role of the manding in the hinterland
trade of the Western Sudan: a linguistic and cultural analysis. Bulletin de l.I.F.A.N., T.
41, sr.B, 2, 1979.
13 PERSON, Y. Samory, p.85; o A. lembra como as vezes o prprio .senhor da
terra. que preside a cerimnia de entronizao (p. 67).
14 Se tivermos em conta as vrias e, s vezes, contrastantes tendncias que
caracterizaram a geografia poltica do Mand a partir da crise do Mali, compreende-
se como na realidade as coisas no so assim simples e as relaes entre fasiya e
mansaya nem sempre so ntidas e cooperativas. assim que as duas fontes de
legitimidade hierrquica devem ser consideradas como arqutipos entre os quais,
-
nas circunstncias locais e histricas, se estabelece um equilbrio que se nutre de
ambigidade e amide de livres misturas. A autoridade fasiya, assim, pode ser
invocada para reforar uma legitimidade mansaya sempre afligida pela precariedade
institucional. Por sua vez, a autoridade mansaya pode servir para enfraquecer uma
fasiya que, sendo muito forte, tende a fazer coincidir as duas ordens de legitimao
em seu exclusivo benefcio. Fica, todavia, sublinhado como ambas as ordens de
legitimao no so monolticas; ao contrrio, cada uma delas apresenta
internamente fortes potencialidades flutuantes. Em particular quando estas
assumem a forma do conflito, criam-se as condies tpicas nas quais fasiya e
mansaya perdem as suas respectivas caracterizaes e tendem a anular-se uma a
outra.
15 No tomo aqui em considerao a conotao almamial da autoridade que, no
ltimo Mand pr-colonial, indica uma componente religiosa do poder de matriz
islmica (al-iman, o guia): Samory recebe sucessivamente o ttulo de keltigi (lder),
faama e por fim lalmami. Daquele momento em diante (1874), tornando-se o chefe
supremo dos exrcitos jula, ele no toma mais parte diretamente dos combates.
(PEROZ, M.E. Au Sudan franais: souvenirs de guerre et de mission. Paris: Calmann
Lvy, 1889, p.398 seg.
16 CISSOKO, S.M. Formations sociales et Etat en Afrique pr-coloniale: approche
historique. Prsence Africaine, v.127/128, 1983.
17 Sobre esta diverso e os seus efeitos econmicos polticos e territoriais pode-se
ver: TURCO, A. Geografie della complessit in frica. Interpretando il Senegal.
Milano: Unicopli, 1986 (Em especial cap. 5 e 7).
18 Que a tradio diz fundado em torno de 1240 por Tiramaghan, primo de Sundiata
e certamente o mais poderoso entre os chefes (keltigi) do Mansa.
19 Da robusta bibliografia sobre o Gabu quero realar ao menos: CARREIRA, A.
Mandingas de Guin Portuguesa. Bissau: CEGP, 1947; CAROO, J.V. Monjur o
Gabu e sua histria. Bissau: CEGP, 1948; MAN, M. Contribuition l'histoire du
Kaabu ds origines au XIX s. Bulletin de l.IFAN, T. 40, ser. B, 1, 1978; Ethiopiques,
28, 1981 (Nmero especial dedicado ao .Colloque international sur les traditions
orales du Gabou.); NIANE, D.T. Histoire des mandingues de l'Ouest. Paris: Karthala,
-
1989. Sobre as formaes polticas mand do extremo oeste africano veja-se:
QUINN, C.A. The mandingo kingdoms of Senegambia. Evanston: Northwestern
University Press, 1972. Entre os trabalhos em lngua italiana sobre o Mand
ocidental ressalto: BELLAGAMBA, A. Ricordati di ieri. Torino: L.Harmattan Italia,
2000.
20 Kafo significa reunio, conselho e, por extenso, rea submetida a uma nica
autoridade poltica.
21 PERSON, Y. Samory, T. 1, especialmente cap. II.
22 Ver, para se ter uma idia, a anlise de: SAMAK, M. Kafo et pouvoir lignager
chez les Banmana. L.hgmonie gonkrbi dans les Cendugu. Cahiers d.Etudes
Africaines, p.331-354, 1988.
23 Jama significa grupo, multido, aglomerao de pessoas, reunies, assemblia,
no dissociadas do lugar ocupado: por extenso, portanto, gente, povo, mas
tambm regio, pas. Jamana indica, por conseqncia, o territrio sobre o qual
vivem reunidas as gentes de..., o povo de...: quer dizer famlias e linhagens
pertencentes ao mesmo cl ou a outros cls aliados com aquele dominante. Os
membros deste ltimo como aqueles dos cls aliados, reconhecem-se pelo
respectivo jamu, por isso mesmo o nome de origem do cl: Keita, o jamu de
Sundiata e, portanto, do cl real, evidentemente o mais prestigioso.
24 TURCO, A. Strutture di legittimit nella territorializzazione malink del'Alto Niger.
25 Como observa Y. Person, "o conquistador no tinha em mira a subverso da
ordem antiga... [a sua obra] dirigia-se, sobretudo, aos Mandinga e ele queria edific-
la respeitando os valores tradicionais que se encarnavam no kafo" (PERSON, Y.,
Samory, T. II, p.1018). Os mesmos dugukunnasigi, representantes dos keltigi
instalados (sigi) nas novas unidades submetidas, no tinham poder algum na gesto
poltica dos kafo, mas se limitavam a garantir algumas especficas competncias
imperiais (ordem pblica, liberdade das relaes comerciais) e a fiscalizar o correto
cumprimento dos compromissos assumidos pelos kafotigi no ato da submisso (por
exemplo, cultivo do "campo do Almami" e contribuio alimentar, envio dos
-
contingentes militares anuais, organizao do recrutamento em massa no caso de
invaso).
26 Nodu o territrio externo aldeia sobre o qual esta ltima exercita a sua plena
jurisdio: no nodu que, entre outros, desenvolve-se a agricultura, principal
atividade mandinga, sobre o sn, quer dizer o conjunto dos campos cultivados ou
em repouso.
27 Nas diversas zonas do Mand encontram-se no posto de wula (wa) ou ao lado
dele, outras designaes como: dan, fodo (foro), kongo (e derivados, como kongo-
kolo, o espao selvagen, e kongo-kolo-ba).
28 De fato, tudo aquilo que externo ao dugu permeado de uma fora misteriosa,
.mgica., razo pela qual no se pode afastar da aldeia sem possuir de alguma
forma o princpio desta energia (JOHNSON, J.W. The epic of Son-Jara, a West
African Tradition. Bloomington: 1986, p.9 e seg. este o grande reconhecimento
que Nar Maghan Konat, o padre de Sundiata, tributa aos mok Traor, os
caadores por antonomsia, dizendo-lhes: .I Dansoko, I Dansoko. (Vs, que
percorreis dan, o epao selvagem!). J. JANSEN. Epope, histoire, socit, p.114.
Mok o antepassado legendrio da origem do jamu.
29 No Alto Nger, os tipos de caas mais freqentes tm nomes giralisi e karobemasi
(de curto raio de ao), watama e lampanatama (de longas distncias), fel (a
grande expedio de caa).
30 Os Traor so os primeiros ocupantes das regies de Kiri, Gagara, Do, que se
tornaro em seguida o centro do imprio de Sundiata. Como lembra Y.T. Ciss, isso
vale ao cl ttulos como o j lembrado dan soko (aqueles que penetram no espao
selvagem: dan, como dito, a brousse), dan sira (caminho), dan suba
(taumaturgos), dan ba (mes). CISS, Y.T. Notes sur ls socits de chasseurs
malink. Journal de la Socit ds Africanistes, p.175, 1964.
31 DELAFOSSE, M. Haut-Sngal-Niger. Paris: Maisonneuve et Larose. T. III,
p.119.
32 Sobre este tema remeto a: ZAHAN, D. Socits d.initiation bambara. Le N.domo,
le Kor. Paris: Mouton, 1960.
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33 No universo cultual alto-nigerino reencontram-se, portadoras dos valores de
unio e de purificao, Sanen e Kontron (Kondolon), as divindades do panteo
cinegtico estudadas escala do Mand por: CISS, Y.T. La confrrie des
chausseurs Manlink et Bambara. Ivry: Nouvelles du Sud: 1994.
34 O juramento de iniciao, entre outros, compromete-se a respeitar a filiao da
Sanen e Kontron e, portanto, a irmandade da donsoton acima de todas as outras
(CISS, Y.T. Notes sur ls socits de chasseurs malink, p.182). O donso alto-
nigerino, por seu lado, compromete-se .a servir Kondolon antes de seu pai.
35 KESTELOOT, L. Le myth et l.histoire dans la formation de l'Empire de Sgou.
Dakar: IFAN, 1980, p.527 e 580 seg.
36 Com outro valor semntico, dunya, "este mundo" que se ope ao alm, lakira, o
outro mundo.
37 A elaborao provavelmente mais completa, ao menos na frica Ocidental, do
conceito de um mundo colocado disposio dos homens, est presente na cultura
baul onde o espao natural, expresso com o designador blo, vem a exercer um
papel de interface entre uma anterioridade mundana pr-humana e um "depois" no
qual o mundo humaniza-se graas ao processo de territorializao (TURCO, A.
Terra ebrnea. Il mito, il luogo, la storia in frica. Milano: Unicopli, 1999).
38 CAMARA, S. Les verger de l'aube. Bordeaux: Confluences, 2001.
39 Como aquela, clebre, do mito narrado por: DIETERLEN, G. Myth e et
organisation sociale au Sudan franais.
40 Que, todavia, no mundo pr-humano tem um antecedente no fuulu faala, o
espao que no ainda expandido (S. Cmara, op. cit., p. 148). No mito narrado por
G. Dieterlen (p.43,) a expanso orientada pelos quatro pontos cardeais: Klebi
(Oeste), Koro (Leste), Kanaga (Norte), Worodugu (Sul).
41 TURCO, A. The Spaces of post-modernity: Reading the Readings. Bollettino della
Societ Geogrfica Italiana, v.2, 2004.
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42 CISS. Y.T. & KAMISOKO, W. La grande geste du Mali des origins la
foundation de l'Empire. Paris: Kartala, 1988. A citao est em: MEILLASSOUX, C.
Anthropologie de l'esclavage. Paris: PUF, 1998, p.143 seg., surpreendentemente,
todavia, parece que o autor aceita a tese que o Mali no tivesse sobrevivido ao seu
fundador.
43 CUOQ, J.M. Recueil des sources rabes concernant l'Afrique occidentale du VIII
au XVIe sicle. Paris: CNRS, 1975, p.69.
44 Propriamente a guerra dos filhos (den) do mesmo pai (fa): a guerra familiar.
Evocamos aqui uma dialtica intra-linhagem que se registra tipicamente no quadro
da senaya (poligamia) mandinga. Trata-se de uma dialtica que acaba por assumir
um papel de grande importncia nos relacionamentos familiares e, por extenso,
sociais: aquela entre fadenya e badenya. A primeira faz referncias as relaes
entre irmos, precisamente filhos (den) de um mesmo pai (fa), mas de mes
diferentes: trata-se de relaes que evocam competitividade, rivalidade e, por
extenso, conflito. A segunda, ao contrrio, faz referncia s relaes entre irmos
filhos de uma mesma me (ba) e de um mesmo pai e so afeioados ao
entendimento e harmonia. Fica bem evidente, que esta dialtica projeta-se sobre o
plano geogrfico em uma multiplicidade de escalas e, partindo do lu (a residncia da
famlia extensa), investe toda a estruturao hierrquica: no s com aquela fasiya,
portanto, mas tambm com aquela mansaya. Ela portadora de tenses e
impulses mudana que seriam dever da funo ordenatria das instituies
mandingas de levarem a cabo na presena de uma certa margem de flutuao.
Todavia, J. Jansen observou como entre fadenya e badenya nem sempre a
oposio clara: uma pode transformar-se na outra, por exemplo, quando se trata
de fazer causa comum contra um parente mais longnquo (primo) (JANSEN, J. The
younger Brother and the Stranger. Cahiers d.Etudes fricaines, 4, 1996, p. 659-688).
Por outro lado, a correspondncia entre badenya e harmonia no de maneira
alguma absoluta, j que o demba (o ncleo familiar formado por uma mulher e os
respectivos filhos), sempre o lugar onde se manifesta a rivalidade entre kodo
(primognito) e doko (caula). Cito ainda o fato de que para complicar o quadro
intervm a biranya, que corresponde parentela por aliana, por ser ela importante
no desenvolvimento das relaes sociais.
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45 atravs de sua autoridade sobre a gua que o Mansa, por no ser um kumatigi,
um senhor da palavra, acaba sendo intimamente permeado dos poderes desta
ltima. De fato existe um paralelismo entre a palavra e a gua como grandes
princpios que modelam o mundo: o Nger, o grande rio que fundamenta a geografia
dos mandingas, d ao mesmo tempo sentido a histria deles graas ao gnio que o
habita, Faro, aquele que se enuncia e por isso mesmo senhor do ko, aquilo que vem
dito.
46 DELAFOSSE, M. Haut-Sngal-Niger, T. II, 1972, p.182-3.
47 No por acaso o Mansa enumera entre os seus ttulos aquele de sanogo,
cultivador, .uma vez que a personalidade daquele que no cultiva ou no sabe
cultivar incompleta..(KONAR, O. La notion de pouvoir dans l.Afrique traditionnelle
et l.aire culturelle manden em particulier. In: AKINJOGBIN, I.A. et al. Le concept de
pouvoir em Afrique. Paris: Unesco, 1986, p.146).
48 Descrevi este processo relativamente aos estados wolof em: TURCO, A.
Geografie della complessit in frica, p. 139 seg. e 220 seg.
49 De tegere, bandido, chamado tambm jado em Segu.
50 BAZIN, J. Guerre et servitude Segou. In: MEILLASSOUX (dir.) L'esclavage em
Afrique prcoloniale. Paris: Maspero, 1975, p.146 seg.
51 Biton provoca de fato elementos de tenso, estende-se em direo a situaes
de conflito, aps apresentase como pacificador. Veja-se o conto narrado por: BAZIN,
J. Etat guerrier et guerres d.Etat. In: BAZIN, J. & TERRAY, E. Guerres de lignages et
guerres d'Etats en Afrique. Editions des Archives Contemporaines, 1982, p.326-7; e
tambm: BAZIN, J. La production d'un rcit historique. Cahiers d.Etudes Africaines,
v.1-4, 1979.
52 PARK, M. Viaggio verso il cuore dell'Africa. Firenze: La Casa Usher, 1990,
specialmente cap. XXII. (e.o. 1799).
53 De fato, os prncipes Ngolsi continuaro a inspirar uma resistncia dominao
de Omar, a ponto que, em 1890, o coronel L. Archinard, ps em fuga as armadas de
-
Madani - filho de Ahmadou e, portanto, neto de Omar - conquista Segu e d um
efmero poder ao faama bambara Kek Mari.
54 BAZIN, J. Etat guerrier et guerres d'Etat. E tambm: ROBERTS, R.L. Warriors,
Merchants and Slaves: The State and the Economy in the Middle Niger Valley, 1700-
1914. Stanford: Stanford University Press, 1987
55 BAGAYOGO S. Lieux et thorie du pouvoir dans le monde mand: pass e
present. Cahiers ds Sciences Humaines, v.4, 1989
56 So os marfalajon, os "escravos feitos por fuzis".
57 Os Maraka so propriamente os mercadores (ou intermedirios) muulmanos,
frequentemente, mas no necess riamente, de etnia Sonink. As suas aldeias -
chamadas exatamente maraka - funcionam como praas especializadas, sobretudo,
para venda dos jon.
58 A frente do qual a faamaya bambara chega a conceber figuras redutivas como o
delik mansa (suplicante) ou at mesmo como o mansamuso (mulher). (BAZIN, J.
Etat guerrier et guerres d'Etat, p.325).
59 por isto que se diz que, com o fim dos Kulibali, no existem mais homens livres
em Segu e que todos os habitantes do reino so jon do faama. O Estado de Segu
aparece, portanto, como uma espcie de comunidade familiar imensa, com um
ncleo de homens livres . a famlia real . e uma massa desproporcional de jon,
geridos no interesse de todos pelo faama: "a servido de Estado como uma servido
privada generalizada". (BAZIN, J. Guerre et servitude Segou, p.165-6).
60 Tigi (que pode contrair-se em ti) o senhor, possuidor, detentor e exprime uma
indicao geral de comando: tan o despossudo.
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