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Este artigo faz uma análise panorâmica dos últimos cemanos na Argentina sob a ótica da batalha travada entre os intelectuais e seu público, da imposição e transformação dalíngua no país, das modificações no conceito de “povo” e também dos impasses relacionados a sua representação culturale política.

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  • Os cem anos se dividem em segmentos desiguais. AArgentina foi contempornea de sua poca:a ampliao da repblica em1916; as primeiras vanguardas nos anos vinte e a modernizao culturaldas dcadas seguintes; o protagonismo militar desde 1930; o pero-nismo,populismo plebiscitrio e carismtico,primeiro em sua dimensosocial e poltica, mais tarde rumo violncia e ao terrorismo e final-mente, aps a restaurao neoliberal, sua reconverso num naciona-lismo populista de nova era; a arte poltica dos anos sessenta, em para-lelo s transformaes nos costumes, radicalizao das camadasmdias e violncia revolucionria; a ditadura militar de 1976, culpadade crimes que superaram qualquer outro crime, e a aventura soberba eignorante da invaso das Ilhas Malvinas, cujos mortos tornaram poss-vel a recuperao da democracia. Tratarei de seguir um fio cultural quecruza esses fatos do passado.

    CONFLITOS E REPRESENTAES CULTURAIS1

    Beatriz Sarlo

    RESUMO

    Este artigo faz uma anlise panormica dos ltimos cemanos na Argentina sob a tica da batalha travada entre os intelectuais e seu pblico, da imposio e transformao dalngua no pas, das modificaes no conceito de povo e tambm dos impasses relacionados a sua representao cul-tural e poltica.

    PALAVRAS-CHAVE: Argentina; intelectuais; pblico; povo.

    SUMMARY

    This article overviews the last century in Argentina. The bat-tle between intellectuals and their public, the imposition and transformation of language, the modifications in the con-cept of people and the dilemmas related to its cultural and political representation are the main guidelines analyzedby the author.

    KEYWORDS: Argentina; intellectuals; public; people.

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    [1] Este artigo foi publicado inicial-mente em espanhol na revista Punto deVista, n.84, em abril de 2006. Trata-sedo primeiro texto de uma srie sobre astransformaes por que passou aArgentina desde 1910, data do pri-meiro centenrio da revoluo quederrubou o vice-rei espanhol. A sriede artigos deve completar-se em 2010.

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  • Entre os dois centenrios,a modernidade argentina girou duas vezesem torno de algumas linhas,das quais escolho a prolongada batalha dospblicos, a imposio e transformao da lngua, as modificaes noconceito de povo e tambm em sua representao cultural e poltica.Consider-las fundamentais no responde a uma vontade de sntese,porque conflitos de todo tipo mostram que esses processos no tm des-dobramentos comparveis, salvo aos olhos de um historicista fanticocapaz de encontrar no presente um reflexo do ocorrido no passado.No meu caso: o que est em disputa pode parecer anlogo, mas no . Osassuntos enfrentados tampouco so os mesmos.Os fatos no se repeti-ram nem como tragdia, nem como farsa. E se algo caracteriza com pre-ciso esses cem anos que o pas mudou de forma radical.Por isso,jogaro jogo das comparaes histricas demonstra erudio e engenho, mastambm a crena de que vivemos num teatro de fantasmas recorrentes.Longe da repetio com variaes e simetrias,em cem anos se passou dopas de senhores ao pas de massas e isso basta para atentar mais stransformaes que s recorrncias.

    1. DISSOLVE-SE A IDIA DE QUE OS PROCESSOS CULTURAIS PODEM SER CON-TROLADOS PELAS ELITES. Em 1910, os nacionalistas do primeiro centen-rio acreditaram que suas palavras influam de modo decisivo sobre umarealidade que j no se ajustava a suas expectativas nem a seus desejos.Ainda pensavam que a interveno dos letrados (ancoravam-se em pol-ticas de Estado como a educao) podia competir com tendncias dasociedade que j se insinuavam como independentes e indomveis.Ainda ignoravam que os protagonistas do mercado cultural emergenteno modificariam apenas as massas como,em primeiro lugar,a eles mes-mos. A alguns, como Leopoldo Lugones, isso era to pouco tolervelcomo compreensvel. Outros, como Manuel Glvez, descobriam ummeio onde se tornavam independentes das elites sociais,porque encon-travam no mercado novos leitores,e do debate vanguardista,que os con-siderava escritores medocres ou esteticamente reacionrios.

    preciso pensar os cem anos como sucessivas rupturas na relaoentre intelectuais e pblicos;portanto,como redefinio da funo inte-lectual em sua dimenso imaginria (que devem fazer os intelectuais,osescritores, os artistas) e em suas condies materiais (qual sua origem,de que vivem, onde escrevem, a quem se subordinam, a quem temem, aquem desafiam). Do dandismo ao profissionalismo, do jornalismopoltico ao jornalismo de massas, das refinadas edies francesas delivros argentinos s edies de bolso mal impressas dos anos trinta; dadesconfiana em relao s foras do mercado adaptao funcional e,finalmente, aos penosos episdios de rendio com todas as bandeiras.

    Entender o que se passava com os intelectuais foi difcil para eles mes-mos no incio dos cem anos;hoje pode explic-lo um estudante universi-trio, porque essas mudanas se firmaram. As ideologias das ltimasdcadas contriburam tanto para sustent-las como,de algum modo,para

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  • explic-las.De uma idia simples:No existem jornais sem intelectuais-polti-cos e intelectuais-jornalistas que os escrevam,passou-se a um reconhecimentode fato:No existem intelectuais sem jornais que os publiquem.

    A idia de que os processos culturais podem ser governados pelas eli-tes entrou em crise quando essas elites tiveram de dividir com outros,recm-chegados, um espao que respondia s tendncias do mercadocultural,ainda que este ainda no predominasse por completo.O surgi-mento de um jornal como Crtica e, poucos anos mais tarde, El Mundono apenas revelou um pblico como deu aos intelectuais a oportuni-dade de uma relao com leitores desconhecidos. A idia mesma de quefossem desconhecidos era uma novidade,porque indicava que,desde osanos vinte, os intelectuais e seu pblico j no pertenciam invariavel-mente ao mesmo setor social; o que havia sucedido literatura gau-chesca e ao folhetim crioulista no sculo XIX,repetia-se em escala indita.Os letrados tradicionais tiveram a primeira prova de subordinao a for-as que no controlavam por completo.

    A inquietao dos intelectuais surge num espao cujas regras j no eramditadas apenas pelas elites republicanas, mas tambm discutidas e alte-radas por pessoas que, a princpio, no tinham necessidade de subordi-nar-se a elas,porque se moviam na esfera do pblico onde ia se impondoo mercado.A inquietao dos intelectuais provm de sua nova e ambguaautonomia. Independentes da poltica e do Estado, seus laos materiaise a dependncia da esfera pblica se fazem mais fortes.Ao encontrar seuteatro,os intelectuais tambm encontram objetos de aborrecimento,cr-tica e adulao.

    2. OS INTELECTUAIS PARTICIPARAM DA GUERRA DOS PBLICOS E DA GUERRADA LNGUA. Na primeira se joga seu poder simblico. Na segunda, aprova de sua influncia cultural.O destino dessas lutas no esteve defi-nido desde o comeo. Pelo contrrio, os intelectuais pensaram que suainfluncia seria mantida, mesmo que as condies em que a haviamexercido fossem outras. Tambm acreditaram que a batalha da lnguano se encaminhava rumo a um desenlace inevitvel, entre outrasrazes porque se enfrentaram, antes de mais nada, representaessociais que, at 1930, no pareciam irreversivelmente condenadas.

    A noo de estrangeiro foi uma chave para entender as primeiras trsdcadas do sculo XX. Mais que descrever uma origem imigratria, ado-tada como poltica nacional desde o XIX, ela designou a chusma (parausar a expresso de Lugones) que ainda no havia sido construda comopovo, nem aceitado modelar-se segundo a matriz que lhe propunha aescola,ou (mais verossimilmente) no havia tido tempo para exercitar-senessa normalizao ideal. Sentir que a lngua estava ameaada implicoutambm descobrir que ali se escondia um perigo para a raa e a cultura.

    bvio que se experimenta uma ameaa lngua quando, porrazes sociais, urbanas, polticas, as vozes dos imigrantes e seus filhoscomeam a ser ouvidas.A ameaa de contaminao,porque replica,no

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  • simblico, a contaminao de origens nacionais e sociais: existe bomestrangeiro e mau estrangeiro, que dependem exclusivamente daprocedncia e condio social. Para a elite, existe um estrangeiro cos-mopolita e fonte de civilizao e um estrangeiro cuja cultura de origemno se adapta ao padro de cosmopolitismo e cujo lugar na repblica o da mo-de-obra.

    Fortalece-se ento a crena fundacional de que a nao deve serimposta em todas as frentes.Os juzos sobre a contaminao da lngua,a mistura nociva e a perda de originalidade (no sentido em que, des-baratada uma herana, se perde uma origem) provm de um imagin-rio de perigo que acreditou encontrar salvao na defesa das verdadei-ras qualidades que caracterizariam os argentinos. Desde o momentoem que se comeou a escutar na esfera pblica (e no simplesmente nadomstica ou do trabalho) aqueles que no falavam como as elites, seexperimenta uma perda.

    Nas primeiras dcadas do sculo XX, a lngua parte de um mitonacionalista que tem duas caras: a dos nacionalistas do primeiro cente-nrio e a dos vanguardistas dos vinte (que se pode reconhecer ainda naspardias do Adn Buenosayres).Nesse momento,ademais,a lngua nacio-nal deve proteger-se no apenas das ms lnguas da imigrao, comotambm da norma que vem da Espanha e que os escritores, especial-mente Borges, recusam. Trata-se de um conflito com vrias nuances: osnacionalistas do primeiro centenrio no so antiespanhis; os van-guardistas dos vinte, ao contrrio, sim. Mas ambos os grupos impug-nam o italiano, o cocoliche, e sua derivao suburbana no malevo.

    A questo da lngua estrangeira se encerra nos quarenta como con-flito agudo, quando justamente outros estrangeiros se fazem visveis:no mais o imigrante europeu,mas o migrante crioulo.A preocupaose desloca ento da cultura poltica, e se fixa ali com o primeiro pero-nismo.Fez parte,desde ento,das diversas representaes do popular,s quais me referirei adiante. A grande mudana consiste em que a ln-gua deixa de ser um corpo vivo e em disputa para converter-se emcausa a ser defendida no mais frente imigrao europia,mas frentes foras do mercado e dos meios audiovisuais. Finalmente, nas lti-mas dcadas se escuta o lamento sobre o desaparecimento da ricalngua da primeira metade do sculo XX (aquela que antes se acreditavaem perigo),na qual se pensa como lngua pstuma,como um patrim-nio cujo empobrecimento , salvo um milagre, inelutvel e cuja defesa um ato moral.

    3. LNGUA SE PROPE UMA NORMA E UMA INSTITUIO: A ESCOLA, onde asameaas de dialetizao negativa chocaram-se contra uma matriz a ums tempo integradora e disciplinar. Na escola no se aprende apenas aescrever. Aprende-se tambm a pronunciar, isto , a dominar uma orali-dade legtima, no a que os mestres deveriam supostamente ensinar,mas a que efetivamente ensinaram. Por isso, a escala de lnguas anor-

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  • mais no perceptvel apenas para as elites de origem hispano-criou-las. Todo mundo sente e pratica sua diferena. Em uma gua-forte,Roberto Arlt (portador ele mesmo de um nome que qualifica de impro-nuncivel) descreve a lngua gutural, primitiva, animalesca, dos imi-grantes srio-libaneses, que precisam do corpo e dos gestos paraexpressar-se.Quando a alfabetizao se universaliza nas cidades,a ora-lidade segue estigmatizando a diferena social.

    Na primeira metade desses cem anos,a escola venceu a luta,e aquelaeficcia hoje irrepetvel,porque se reconhece que nenhuma batalha cul-tural pode ser vencida somente no contexto das instituies educacio-nais.Desse modo,a lngua da primeira metade do sculo XX torna-se ummodelo em relao ao qual se verifica um retrocesso; uma lngua nadefensiva, assediada e finalmente vencida pelos meios de comunicao,pela preguia, por indigncia imaginativa ou descuido. Do castelhanoitalianizado ao tevenhol, a defesa da lngua, que j no pode entregar-se escola e ao normalismo,se converte numa bandeira elegaca,e j noso os escritores que apresentam o conflito. diferena das vanguardasda dcada de vinte, a questo de uma lngua argentina no preocupa osescritores, para os quais as clivagens lingsticas so uma matria poli-fnica da escrita. Preocupa, ao contrrio, as vozes da opinio pblica,publicitrios, jornalistas, alguns intelectuais que se oferecem comopaladinos de uma causa.

    A convico de que a lngua foi melhor no passado difere das posi-es tomadas no debate anterior sobre como deve ser a lngua nacional.Os perigos vm de lugares distintos.Na primeira metade dos cem anos,os estrangeiros eram o agente deformador.Na segunda metade,e sobre-tudo nas ltimas dcadas,os meios de comunicao so responsabiliza-dos pelo empobrecimento. Ainda que a escola seja vista como parte dasoluo, acredita-se, ao mesmo tempo, que no est em condies defazer frente a essa responsabilidade.Em seu estado atual de decrepitude,a escola perde quando se tm em conta as possibilidades de que dispu-nha cem anos atrs. A batalha da lngua miditica.

    Desde fins do sculo XIX, a escola produziu o pblico dos meios decomunicao escritos que,at os anos quarenta,foram hegemnicos emrelao ao rdio e ao cinema.Foi essa instituio estatal,pblica,gratuitae universal (para homens e mulheres: primeiro caso na Amrica Latina)que ofereceu indstria cultural os leitores capazes de dominar habili-dades que no se adquirem sem treinamento contnuo e intenso.Em umcrculo virtuoso que no voltou a repetir-se, a indstria cultural nocompetia com a escola, mas estabilizava as capacidades adquiridas ali.Ainda que alguns intelectuais depreciassem o que os meios escritos ofe-reciam (condenaram,por exemplo,as novelas de folhetim,os magazinesou os jornais populares), muitos trabalharam precisamente nessesespaos onde se formaram escritores de novo tipo. A indstria culturalnecessitava da cultura letrada. No era um barco navegando solitrio,prepotente e auto-abastecido.

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  • 4. A GRANDE QUEBRA SO AS PRIMEIRAS EMISSES DE RDIO, NO FIM DOSANOS TRINTA. Mas nesse momento ningum se deu conta, e a imagina-o futurista rendeu o tributo do novo meio cultura dos cultos, comose as transmisses inaugurais realizadas do Teatro Coliseo fossem umgesto de resistncia ante o potencial massificador do meio. Dez anosdepois, o rdio j havia estabelecido uma cultura prpria original, comsuas estrelas e gneros. Vinte anos depois, a primeira televiso repetiufugazmente o mesmo gesto do rdio. Trinta anos depois, havia alcan-ado uma cultura autnoma.

    Com o auge da televiso, pela primeira vez nestes cem anos, umadimenso cultural julgada e julga a si mesma independentementeda cultura escrita. diferena do pblico dos meios impressos demassa, a televiso cria seu pblico sem necessitar de outras institui-es. Aprende-se a ser pblico de televiso assistindo televiso, eisso garante a orgulhosa, insolente autonomia do meio em relao aoutras formas discursivas, em especial s formas cultas. A televisono s mais poderosa porque o capitalismo mais forte que oEstado, e o mercado, mais forte que os outros participantes da esferapblica. Mas tambm porque autnoma na dimenso simblica.Ela apresenta um mundo retoricamente mais persuasivo, narrativa-mente mais interessante, socialmente mais inclusivo. Seu carterassombroso tem a ver com tudo isso: completa todos os espaos,desaloja, unifica, homogeneza e se estende. Nunca houve algo todepreciado e to vitorioso.

    Com o estabelecimento de um pblico totalmente audiovisual, ter-mina a batalha por pblicos destes cem anos. No meio tempo, uma par-ticularidade:o desaparecimento de formas culturais populares indepen-dentes dos meios de comunicao. Tudo que diz respeito ao mundoantes chamado popular tem conexo visvel com a dimenso audiovi-sual. No h um segredo do popular que no tenham conhecidoOlmedo, Amadori, Romay ou Tinelli.

    Depois da unificao do territrio nacional, da incorporao for-ada das etnias, despojadas e convertidas em resduo, da incria assas-sina que muitas vezes provocou sua liquidao fsica, a sobrevivnciados mundos pretritos,campesinos ou indgenas rara exceo.A mis-tura audiovisual captou as dinmicas populares, lhes deu forma e asdevolveu a seu pblico, a quem persuadiu de que ali estava, completa,sua prpria representao:desde as caricaturas de reality show (de que seocupam especialistas em comunicao incapazes de perceber que cadaformato dura to pouco quanto qualquer outra moda e crem,contudo,sempre encontrar uma chave) at os melodramas da televiso-reali-dade e suas estrelas espontneas e fugazes exibidas como peas de umamnagerie. Televiso fcil de aprender. Em conseqncia, seu pblicopercebe que poucas habilidades culturais bastam para capacit-lo a tra-balhar com e em frente cmera. O espao televisivo converte-se emespao expressivo e,portanto,abre s pessoas a possibilidade de repre-

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  • sentar e sentir-se imaginariamente reconhecidas.Por outro lado,a tele-viso inclui todas as inovaes morais, cumprindo um papel seculari-zador e relativista.

    , tambm, um instrumento da internacionalizao cultural, aindaque convenha cautela com relao aos lugares-comuns sobre globaliza-o, visto que os gostos massificados em msica popular e os dolosaudiovisuais so majoritariamente argentinos, o que, evidentemente,no melhora ningum. Mas indica os pontos de ancoragem territorialdas representaes culturais.

    Como detalhe interessante desse desenlace, nos ltimos vinte anosa cultura dos escritores e dos artistas pela primeira vez uma culturaaudiovisual nos anos de infncia.No importa quantas histrias de ini-ciao possam contar a respeito do livro, foi a televiso o meio em quecresceram os escritores e os artistas das ltimas dcadas. Formaram-se,primeiro ou principalmente, como pblico da televiso. Sua memriacultural miditica,cinematogrfica e esportiva,to ou mais fortementeque letrada ou museogrfica. A mudana fundamental quando se temem conta que no afeta apenas escritores e artistas, mas a todos os quenasceram desde meados dos anos sessenta. Com algumas raras exce-es: Sergio Chejfec, por exemplo, cuja literatura solitria indepen-dente dos discursos miditicos.

    As elites sociais e econmicas, naturalmente, compartilham essesolo simblico. Tornaram-se culturalmente plebias. Os ltimostrinta anos so os da mistura que o jornalismo de revista ilustrada esuplemento de domingo obedientemente transformou em imagem. Apoucos ocorreria resistir a uma foto ao lado de Maradona: a equaliza-o cultural e lingstica um dado num pas que, em sentido perfei-tamente inverso, suportou, no mesmo perodo, um processo san-grento de diferenciao econmica. Pensar que a oligarquia argentinatenha a cultura de Victoria Ocampo um equvoco que estende sobreessa classe a excepcionalidade daquela intelectual. Mas pensar que anova burguesia, enquanto amealhou fortuna, realizou acumulaocultural equivalente de suas riquezas implica conferir um refina-mento que lhe estranho. O catlogo da arquitetura dos country clubsexemplifica a vulgaridade esteticamente reacionria que as novasgrandes fortunas alimentam.

    5.COMO SE REPRESENTA UMA NAO NO DISCURSO? A batalha da lngua doprimeiro tero do sculo teve um interesse absorvente porque envolveuas vanguardas, que se ocuparam do problema da representao discur-siva do argentino. Em primeiro lugar, Borges e Giraldes tomaramdirees diferentes: Borges, com o crioulismo esttico, a inveno de umazona literria, os subrbios, aos quais atribui uma forma da lngua euma entonao; Giraldes, com a estetizao do crioulismo, uma maneirade dispor e escrever os contedos da literatura, atento s inovaesmenos radicais e figurao de uma ltima idade de ouro pampeana.

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  • Nos anos vinte e trinta, a representao realista e naturalista sub-metida a uma crtica radical.Nas margens entre a cidade e o campo,Bor-ges radica uma mitologia do passado argentino que transborda sobre opresente. Intervm no conflito ideolgico sobre os temas e a lngua daarte e, ao faz-lo, define excluses: nem o imigrante e sua mistura cultu-ral,nem a tentao costumbrista.A cor local atingiu seu fim em Carriego;o estrangeiro no dever ser um fator exterior, mas um sistema de rela-es internas com a cultura europia, que Borges rearma por completo.

    Arlt percorre o caminho inverso: mistura lnguas e saberes domundo popular, suas supersties e crenas; representa a cidade que e a que ser pouco depois;trabalha na paisagem instvel de uma culturaa um s tempo moderna e insegura. Entre Borges e Arlt se estabelecemos termos de um enfrentamento sobre o que deve ser a literatura naArgentina. Durante dcadas, pelo menos at os anos cinqenta, umexclui o outro.

    A grande mudana se d quando os escritores deixam de consider-los mutuamente excludentes. Ento, depois de cinqenta anos, a inclu-so de Borges e Arlt no mesmo sistema indica uma inflexo esttica: oque estava social e artisticamente separado nos anos vinte,aparece inte-grado em um panteo literrio comum. A resistncia suscitada por Bor-ges na cultura de esquerda passa a fazer parte do passado. Igualmente, aidia de Arlt como mau escritor criticada e abandonada por com-pleto. Borges e Arlt so clssicos, figura bifronte do sculo XX para osescritores posteriores aos anos sessenta.

    O que houve foi um duplo reconhecimento que parecia impossvel:por um lado, Borges a pea central que permite ler simultaneamente oargentino em relao com as literaturas ocidentais,precisamente porquesua preocupao foi o carter representativo da lngua literria num pasde traos nacionais em formao.Borges deixa de ser julgado cosmopo-lita e sua mquina literria uma revelao da Argentina. Em relao aArlt, se desvanece a condescendncia que reconhecia a potncia narra-tiva, mas considerava-a limitada por suas capacidades de narrador. Oque se acreditava um limite revela-se a fora de uma inveno colocadano fora das inovaes da vanguarda, mas como pea central do que amodernidade da indstria cultural e do jornalismo trouxeram fico.

    Hoje a literatura argentina se inscreve em uma pluralidade social eregional,miditica,de mercado e experimental.Desde Puig,lido luz deBakhtin,o problema da representao permanece anulado pela respostade que a arte representa as linguagens e seus mecanismos:os gneros,osdiscursos, os dialetos sociais. O debate da representao foi cancelado:tudo literariamente representvel, de todo discurso se pode escreveruma mimese. Da representao j se disse que impossvel ou mesmoilimitada,assim como a produo social de discursos.Juan Jos Saer,emcaminho de originalidade extrema,experimentou frente representaoo pessimismo do que no mais possvel e a tenso esttica do que aindase tenta por caminhos que a representao clssica no havia conhecido.

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  • Nos cem anos se percorreu um itinerrio que vai da crtica ao realismoat a defesa esttica dos diversos hiper-realismos. Dissolveram-se asgrandes categorias que se discutiram at meio sculo atrs, ausentaram-se os grandes sujeitos coletivos (nao, classes, etc.) e passou-se a pres-cindir de pactos imaginrios ou prticos entre artistas e sociedade. Hojeos acordos de pblico so geridos no pela esttica ou ideologia,mas pelomercado, que a muitos oferece, alm dos leitores, um estilo e um tipo defico.Salvo excees que chamam ateno por uma persistncia que temtanto de solidez moral quanto de arcasmo, o ltimo grande episdio daarte poltica foi contemporneo radicalizao dos sessenta e setenta.

    6. QUE O POVO E QUEM O REPRESENTA? Durante cem anos, a questo aresolver foi sua representao poltica no simplesmente como fatoinstitucional, mas tambm como fato de discurso e cultura. Foramexploradas e experimentadas desde formas mais ou menos republica-nas (a ampliao da cidadania pela extenso do voto primeiro a todosos homens,e logo s mulheres) at modalidades plebiscitrias caracte-rsticas do que,desde os anos trinta,se denominou democracia de mas-sas para op-la democracia dos cidados.

    A modernidade argentina foi primeiro,at 1930,democrtico-repu-blicana,e o povo foi o que as elites modernizadoras e pouco mais tarde oradicalismo definiram como corpo eleitoral de cidados, cuja represen-tao universal masculina foi alcanada, na lei escrita, logo aps o pri-meiro centenrio. Desde 1940, o povo se redefiniu nos termos de umaoposio cultural e ideolgica (povo versus oligarquia) cuja representa-o foi populista e plebiscitria e teve o peronismo como espelho. Nosanos sessenta e setenta, o nacionalismo antiimperialista surgido daradicalizao de cristos e peronistas definiu o povo como sujeito eobjeto da luta poltica e da violncia guerrilheira.A militncia formou-sejunto ao povo,em lugar do povo,lutou com o povo e para o povo.Hoje,final-mente, a categoria aparece sob a modalidade populista midiatizada eperdeu especificidade poltica. A gente ou a sociedade no o povo;os pobres o so.De todo modo,a legitimidade democrtica restauradaem 1983 necessita de um sujeito-povo, ainda que seus contedos ideo-lgicos e polticos sejam mnimos.

    A violncia dos golpes militares quebrou esse arco vrias vezes epde conduzi-lo a uma crise definitiva. Apesar disso, e contra toda pre-viso plausvel,os cem anos tm,em seu comeo e final,os dois perodosmais extensos de governos constitucionais. Isso posto, a questo darepresentao os atravessou de ponta a ponta, primeiro potenciada pelaimposio do exlio e logo contraditoriamente no-resolvida pelo voto,porque o ganhador nem sempre foi considerado representante da maio-ria poltica ideal e as intervenes militares converteram essa deficinciaem justificativa.

    O enigma da representao do povo intrigou aos intelectuais parti-cularmente.Grandes correntes da histria como o revisionismo,alm de

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  • [2] As montoneras eram milcias ir-regulares que atuavam durante asguerras civis do sculo XIX (N. T.).

    [3] Montoneros foi o nome ado-tado em 1970 pelo grupo guerrilheiroperonista mais conhecido, respons-vel pelo seqestro e assassinato do ex-presidente Pedro Eugenio Aramburu.

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    uma reivindicao ideolgica das tendncias que acabaram derrotadasno sculo XIX, construram uma aliana (no sem antecedentes euro-peus) entre povo e nao. Talvez fosse melhor dizer nao irredenta epovo submetido. Seu vocabulrio alterou valores e significaes: ptria,caudilho, montonera2, gacho, litoral e provncias, cidade-porto, cen-tralismo e federalismo, colnia, barbrie, inverteram ou transformaramseus sentidos.A batalha revisionista comeou nos anos trinta,e,nos cin-qenta, j havia dito tudo que tinha para dizer. Contudo, sua verdadeiraimpregnao como ideologia de massas culmina muito depois por doiscaminhos: a histria espontnea da radicalizao dos sessenta e setenta; a forma espontnea da divulgao histrica miditica da ltimadcada, uma narrao simples e monocausal perfeitamente afim com adigesto miditica das questes pblicas.

    De fato, entre os revisionistas de trinta e quarenta e os discursosdifundidos pela indstria audiovisual h uma curva descendente. Masacompanhada por uma expanso muito forte nos novos pblicos demassas. O ponto mdio dessa curva, entre os anos sessenta e setenta,marca provavelmente o momento de maior intensidade poltica dosusos da histria (basta ler a interpretao com que os Montonerosacharam oportuno acompanhar o assassinato de Aramburu3) e tambmo de maior centralidade da idia de povo como noo cultural e piv deconsignas e programas.

    Em sntese, o processo tem o peronismo como pedra angular erecorre a trs vias:eleitoral,no comeo dos cem anos;social,nas dcadasmarcadas pelo primeiro governo de Pern; revolucionria, na traduoradicalizada do peronismo nos sessenta e setenta.

    Esses cem anos no deram lugar a uma representao da esquerda,que encarou sucessivas aventuras frustradas: aliou-se radicalizao,que gerou a estratgia violenta dos setenta; ou manteve inclume, pelavia reformista, uma marginalidade arcaizante que estava anunciadacomo destino no comeo do sculo XX. No existe hoje identidade pol-tica de esquerda capaz de superar setores sociais muito restritos.

    As palavras da poltica, a definio dos significados e a designaodos lugares simblicos do campo poltico foram operaes em que operonismo demonstrou uma mobilidade e potncia semntica iniguala-das,tomando de emprstimo temas da esquerda,da direita,do fascismo,do nacionalismo revolucionrio,do nacionalismo tradicional,do social-cristianismo, etc., etc. Das ditaduras militares no restaram rastros novocabulrio poltico. Isso indica seu profundo fracasso de doutrina-mento, o que tampouco era previsvel quando o golpe de 1976 ameaoutomar conta da Argentina por muito tempo.

    A persistncia do problema da representao do poltico em umlxico provavelmente continuar fundamental nos prximos anos. Acrise dos partidos uma crise de linguagem, e toda crise de linguagem uma crise da capacidade representativa. A televiso tomou o lugar dessarepresentao.Se a representao poltica est cheia de fissuras,a repre-

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  • sentao televisiva parece plena. Frente ao tempo prolongado das insti-tuies polticas, a televiso trabalha com as potencialidades e promes-sas do tempo real. Oferece uma soluo imaginria a conflitos que seresolvem, se podem resolver, no curso tedioso, formalista e freqente-mente incompreensvel dos prazos institucionais. irresponsabili-dade, incompetncia ou corrupo da poltica, a televiso ope suamagia da completa imediatez e mostra aqueles que, nas ltimas duasdcadas,optam pela presena direta na cena pblica como forma de luta,mas tambm, e fundamentalmente, como conseqncia da descon-fiana em relao a toda mediao poltica.

    7. A ARGENTINA NESTES CEM ANOS ATRAVESSOU DUAS MODERNIDADES. Aprimeira, baseada na expanso eleitoral, na indstria jornalstica e edi-torial, na assimilao do imigrante e represso de suas culturas e ln-guas de origem, na normalizao dos crioulos, ndios e mestios, naurbanizao. A segunda, sustentada pela extenso dos direitos sociais,pela redefinio da democracia, intervenes militares e desenvolvi-mento da indstria cultural.

    Depois do golpe de estado de 1976 e da transio democrtica,entra-mos num terceiro captulo:hegemonia audiovisual,debilidade da repre-sentao poltica e institucional, dois traos tambm atribudos ps-modernidade no Ocidente. Nesses cem anos, o pas que prometiaintegrao crescente se desintegrou e exacerbou cortes sociais que con-tradizem todas as previses da primeira metade do sculo, quando ostraos em cuja estabilidade se confiava eram pleno emprego, alfabetiza-o, ascenso social, universalizao de direitos.

    O centenrio encontra a Argentina muito longe de dois destinos ima-ginrios: ser como a Europa (mesmo nos anos oitenta se sonhou com umPacto da Moncloa para a transio democrtica), fazer a Revoluo (sobre-tudo depois que Cuba demonstrou que seu caminho passa pela Amrica).Um desses destinos caducou em todo o planeta;o outro demonstrou queos limites materiais so mais fortes que os programas e os desejos.

    Beatriz Sarlo crtica literria e editora da revista Punto de Vista.

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    Recebido para publicao em 06de maio de 2006.

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    75, julho 2006pp. 81-91

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